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Ida Alves
Eduardo da Cruz
(Organizadores)

PARA NÃO ESQUECER CASTILHO


Cultura literária oitocentista

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DE PoRTUGAL AO BRASIL: CASTILHO E o
TRATADO DE METRIFICAÇÃO PoRTUGUESA 1

Francine Fernandes Weiss Ricieri

O Tratado e Portugal

Jacinto do Prado Coelho, em publicação de 1947, apontava o que


teria sido a debilidade crítica do romantismo português: "Moderado,
sensato, avesso a grandes especulações, submetido durante longos
anos ao magistério do árcade póstumo, o Romantismo português não
elaborou (nem sequer assimilou no plano teórico) um pensamento
estético paralelo à criação literária" (COELHO, 1947, p. 16). A formu-
lação não é singular, antes recorrente, mas o fato é que uma revisão
que se pretendesse sistemática das ideias críticas e estéticas do pe-
ríodo passaria precisamente pela retomada da vasta atividade crítica
e ensaística do árcade póstumo, em geral esquecida ou deixada em
segundo plano:

[ ... ] essa ignorância, ou de qualquer modo essa secundariza-


ção, seria dolorosamente ilustrada por António Salgado Júnior
num longo, e de resto meritório, estudo que a Castilho dedi-
cou em 1947. Apontando uma fase que iria de 1836 a 1847, o
comentador tem-na por "nula para o poeta - e para o artista
de modo geral". Mas em momento algum atentou Salgado na
assombrosa actividade crítica e ensaística que foi exactamen-
te então, a de Castilho. Nesse período, e apenas no âmbito da
1 Estudo realizado mediante bolsa de pós-doutoramento concedida pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), entre maio de 2007 e novem-
bro de 2009, como parte das atividades constituintes do projeto "Poesia brasileira
do final do XIX: historiografia, crítica, teorias do poético", desenvolvido no Instituto
de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas, sob super-
visão do professor Dr. Paulo Franchetti, a quem agradeço a sugestão de inclusão do
Tratado de Castilho no corpus do trabalho.
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.!!!
ensaística, produziu ele uma dezena de textos fundamentais, perdurado tanto entre nós, mantendo até muito tarde o seu vincado <.>
a:
entre eles a "Conversação preliminar a 'A confissão de Amélia"' caráter normativo e o seu efeito anquilosante" (CASTRO, 1973, p. 70). Cl)
Cl)
·c;;
em A noite do Castelo (1836), o "Prólogo" à 2ª Edição de A pri- Também digno de nota seria outro aspecto, igualmente contex- $
Cl)

mavera (1837), a "Notícia literária acerca da Sra. D. Francisca tual, relacionável ao empenho com que Castilho se dedicava a pre- "'c
"O

de Paula Possollo da Costa" (1841), a série de artigos sobre fácios, textos jornalísticos, artigos a serem publicados em revis- "'
E
tas. Escrevendo sobre as décadas que antecedem a publicação do "'
LL
"Língua Portuguesa" na Revista Universal Lisbonense (1842), Q)
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·c:;
o "Prólogo" a O Judeu Errante (1844), as "Notícias da vida e Tratado, Fernando Venâncio discerne o que seria, então, "um vácuo c
~
LL
obras" de Bernardes (1845) e Bocage (1847). (VENÂNCIO, 1998, em matéria de doutrinação e pedagogia" (VENÂNCIO, 1998, p. 61),
p. 16). ql!e tentariam amenizar, com modestos resultados, Francisco Freire
de Carvalho, Teófilo Braga e Silvestre Ribeiro. Permaneceria atuante,
O que se observa no período recortado (entre os anos de 1836 e contudo, no período, grande indefinição de conceitos.
·u; 1847) prolonga-se, de resto, pelo conjunto da intervenção literária Noções como "língua", "linguagem", "literatura", "poesia" perma-
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CIJ
o de Castilho, dominada por um empenho no ensino que se dirigia não neciam marcadas por conotações classicizantes e formalistas ( deli-
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Cõ apenas à criação literária, mas também à apreciação e ao julgamento mitadas de modo inconsistente e impreciso) a que viriam a se con-
C>

€o das obras. 2 O "magistério do árcade póstumo" (extenso e disperso a trapor em termos "idealistas" Antero e Herculano (não sem coinci-
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ponto de dificultar esforços de análise) evidencia, portanto, precisa- dências entre os "opositores" ou conflito entre os que figuravam nas
"'
Cl

mente o empenho na elaboração teórica que, no período romântico, mesmas frentes). Herculano, em 1834, lamentava-se: "a parte teórica
Jacinto do Prado Coelho considerou ausente. Coube a Aníbal Pinto da literatura há vinte anos que é entre nós quase nula", solicitando
de Castro, de resto, demonstrar quão pouco póstumo, ou, melhor, a formulação de "um corpo de doutrina" que possibilitasse "juízos
quão pouco isolado esteve o que seria o ressaibo árcade do escritor, imparciais" (HERCULANO, 1834, p. 5, apud VENÂNCIO, 1998, p. 62).
derivado de um fenômeno mais amplo, associável à poderosa absor- Os "Prólogos" que acompanham as quatro edições revistas pelo
ção e permanência da crítica francesa em Portugal ao longo do sécu- autor do Tratado de metrificação portuguesa (1851, 1858, 1867, 1874)
lo XVIII, o que ajudaria a entender que "a estética neoclássica tenha fornecem um eloquente testemunho do que os homens de letras de
então sentiram como um vazio doutrinai a que se empenharam em
2 Observe-se o empenho pedagógico referido já no Prólogo à primeira edição do Tra- responder. Castilho, especificamente, ainda que não estivesse desa-
tado (1851):
companhado ao lidar com a questão, parece pretender responder ao
"Quero acabar com uma derradeira ponderação em abono do opúsculo. Tenho eu
que a matéria, que se nele ensina, não é só útil para os que aspiram a fazer versos; problema de modo quase curricular:
entendo que em toda e qualquer educação liberal deve entrar infalivelmente como
elemento; assim o fazem em Itália, em França, em Inglaterra, em muita Alemanha, e
Irão, pois, após este, meu segundo e contumaz pecado, e crime
até já por terras da nossa vizinha, a velha e juvenil Castela, que enquanto nós outros
nos atascamos, por querer, na ignorância hereditária, lá se vai alando com o próprio de leso ramerrão: o ensino da língua latina, obra tomada em
impulso para todo o bom saber./Se o fazer versos é para poucos, o entender de boa parte do Cours de Langue Latine do célebre Lemare, e
versos, o poder avaliá-los com exação, e recitá-los com justeza, é para um e outro
sexo uma prende de manifesta vantagem; requinta-se o gosto de uma importante em boa parte também de minha particular indústria e experiên-
espécie de leitura, que desenvolve, e pule o gosto natural; não se refogue por medo cia; o novo Diccionário de Rimas classificadas, e de esdrúxu-
ou justa vergonha de ler em voz alta e em público, e sobretudo com este tão fácil
lo; um Tratadinho de mnemônica; a reimpressão das Noções
como agradável tirocínio se afaz o ouvido para escrever a prosa nacional com muito
mais graça e afinação; verdade esta que poderá parecer nova e tonteria a alguém, rudimentais, para uso das escolas. Quanto às mais pobrezas,
mas que era já credo velho para Maury, para La Harpe, para Rolin, para Voltaire, de que eu desejava ir paternalmente repartindo com os ainda
para Plínio, para Quintiliano, para Cícero, e para os mestres de Cícero, os homens
da grande Atenas [... ]"(CASTILHO, 1851, p. VIl). mais pobres do que eu, com os meninos e adolescentes; tais
(Atualizei a ortografia em todas as citações de Castilho, fazendo, eventualmente, como: uma tentativa sobre poética; outra sobre declamação;
alterações de pontuação naqueles casos em que o uso atual diverge do encontrado outra sobre elementos de moral; outra sobre o estudo da língua
no texto original.)
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111
Q)

portuguesa, etc., parece-me que já posso pedir as alvíssaras a A decepção de Salgado Júnior, contudo, parece derivar de uma ·c:;
O:
certas pessoas, pois, com suma probabilidade, já não conclui- expectativa que se encaminha em direção contrária àquela em que se (J)
(J)

rei esses trabalhos de amor e fé [... ). (CASTILHO, 1851, p. V e empenha o mesmo Castilho que, em 1856, suplicava em carta dirigida ~(J)
Q)

VI). a Francisco de Monte Alverne um tratado de eloquência que pudesse 'C


c:
conter a degenerescência então em curso nas letras portuguesas; o "'E
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O entusiasmo já se formulara em 1845, quando, nas páginas da mesmo Castilho que, a partir de 1865, faz diversos apelos de teor Q)
c:
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Revista universal, anunciava um "volume de introdução" dedicado à semelhante a Camilo Castelo Branco. O que significa dizer que o em- c:
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LL
"arte de escrever em português, segundo nossos estudos e observa- penho teórico, nesse capítulo específico do trabalho de Castilho, é
ções no-la hão feito conhecer" (VENÂNCIO, 1998, p. 140). O balanço ep.faticamente submetido ao investimento pedagógico. Insisto em re-
fornecido no "Breve prólogo à segunda edição" (1858) parece eviden- produzir outro "prólogo", agora à terceira edição:
ciar que não se tratava de entusiasmo estéril:
·u; Dos vários opúsculos didáticos anunciados, e parte desanun-
Cã"' Ao conteúdo nas precedentes páginas alguma coisa havemos ciados também nos prólogos da primeira e da segunda edição,
o
"'
c;; de subtrair agora, e alguma coisa também acrescentar. eis aqui afinal os que hoje é minha firme tenção dar à luz com
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t Havemos de subtrair, na parte em que reza das obras que en- a possível brevidade:
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c...
Q) tão meditávamos publicar: O Dicionário de rimas, a que demos O Dicionário de Rimas por não ter sido levado a efeito o que
Cl
de mão por sabermos que outrem o andava fazendo no Brasil: no Brasil se projetara e o Tentame de Arte Poética, do qual as
o Tratado de Mnemônica, e as Noçôes Rudimentais, pois já os primeiras folhas se acham impressas já de muito.
demos à luz. (CASTILHO, 1858, p. X). O Tratado de Metrificação terá ensinado a bem versificar.
O Dicionário de Rimas auxiliará nesta fabricação tanto aos
O mesmo "Breve prólogo" retomava a proposta da "Tentativa de aprendizes e oficiais como aos próprios mestres encartados.
arte poética", que conteria "algumas observações gerais sobre a poe- A Poética poderá encaminhar, segundo espero, os primeiros
sia, breves, sucintas, conscienciosas, claras, e, sobretudo, de natu- passos dos neófitos pelas regiões nímio vagas e indemarcadas
reza prática, aplicativa, serviçal" (CASTILHO, 1858, p. XI). Ainda que desse intermúndios infinitos chamados poesia.
esta obra não tenha vindo a ser efetivamente publicada, parece rele- Possível é, e provável, que a estas três obrinhas se ajunte,
vante ao raciocínio que organiza este texto recuperar sua história. como complemento, um volume de poesias portuguesas, esco-
Inocêncio Francisco da Silva (SILVA, 1967, p. 35) faz alusão a uma lhidas para exemplares e para incentivo.
impressão malsucedida, que se teria, enfim, inutilizado, mas cabe a Por hoje mais nada e já não é tão pouco. (CASTILHO, 1867, p.
António Salgado Júnior o testemunho mais minucioso de um contato XIII-XIV).
com o "Livro": "A gente pasma: ele não nos diz o que é Poesia, ele
não nos diz o que é o Poeta. Tal livro da Arte é apenas a exposição do Destaco que os opúsculos anunciados e desanunciados são quali-
modo de reconhecer em alguém natureza poética e o modo de o levar ficados como "didáticos". Quanto ao Tratado de metrificação, supõe
a fazer poesia." (SALGADO JÚNIOR, 1947, p. 78 e 79). 3 Castilho que tenha ensinado a bem versificar, tarefa que pretende au-
xiliar com o prometido Dicionário de rimas (para aprendizes, oficiais
ou mestres). Resta, ainda, o projeto de encaminhar os primeiros pas-
3 Salgado Júnior acrescenta a seu texto a informação de que o próprio Júlio de Casti- sos dos neófitos com uma Poética que, supõe-se, torne didaticamente
lho, mediante consulta, afirmara não conhecer o trabalho a que ele tivera acesso e acessível o que na poesia haja de "regiões nímio vagas e indemar-
de cujo paradeiro não fornece pistas. De fato, não consta nenhum documento que
coincida com sua descrição do acervo de Júlio de Castilho conservado pelo Arquivo cadas". Por fim, o volume de poemas se propõe como exemplar e
Nacional da Torre do Tombo, não tendo sido possível, ainda, localizar evidências a incentivo.
seu respeito na Biblioteca Nacional de Portugal.
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• •
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Temos, portanto, claramente demarcado o magistério do árcade Questões de medida ·o;
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póstumo, voltando-se à formação, como creio ter demonstrado an- Cl)
Cl)

teriormente, de poetas, mas também de leitores especializados ou Rogério Chociay, no verbete "versificação", do Dicionário do ro- ~Cl)

comuns. Que tal empenho coincida com uma vocação classicizante mantismo literário português, após apresentar dados relativos às "'c:
-c

e com o acento nos aspectos formais não o torna contextualmente origens do verso lusitano, em que técnicas versificatórias oriundas "'
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estranho nem aos debates que em Portugal então se travavam, nem à da Provença fazem-se seguir de formas de origem italiana, assinala "'
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·o;
prática e às preocupações então recorrentes entre os homens cultos a permanência, entre românticos, dos componentes versificatórios c:
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u...
voltados às letras, mesmo entre alguns de seus opositores. que caracterizariam a medida velha, em coexistência com elementos
Castilho parecerá particularmente informado sobre as questões t~cnicos originários da Itália. Atribui tal sincretismo ao que seriam
do momento em que escreve, se observarmos por este ângulo as atitudes recorrentes no período, tais como a revalorização do pas-
diferentes edições de seu tratado ou se observarmos também suas sado nacional, a oposição aos postulados neoclássicos e a busca de
.ü'i tentativas, suas desistências, seu debate com o tempo e mesmo con-
~
liberdade formal. Considerados tais aspectos, aponta o que seriam
co
o sigo próprio. Na quarta edição do Tratado (1874) que revisa, são su- traços fundamentais do verso romântico português: o sincretismo
"'
c;; primidos os "Prólogos" até então reproduzidos no conjunto (desde métrico, a busca de liberdade formal e a variedade de soluções. A
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-Eo o primeiro até o mais recente) em cada uma das novas publicações. propósito, entende que:
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Nesta que seria a última versão sob a chancela de Castilho, a obra é o sincretismo métrico realiza-se pela confluência de códigos
finalizada com a seguinte nota: formais: o da métrica tradicional, de base ibérica, o da métrica
italiana e o da métrica francesa, que durante o período come-
O autor anunciara há anos uma tentativa sobre arte poética ça a exercer pressão que se prolongará para além do próprio
para ajuntar como complemento ao presente opúsculo sobre Romantismo. Exemplos dessa confluência de sistemas podem
metrificação. Parte desse projeto principiou a ser impressa; ser vistos: a) na prática, em níveis de frequência equivalentes,
mas tais montanhas de dificuldades a todos os momentos lhe do verso decassílabo e do redondilho maior, diferentemente
surgiam em tão vasto, tão complicado e tão controvertido as- do período neoclássico, em que o decassílabo predominava,
sunto, que o obrigaram a parar e a desistir do empenho e para na obra de alguns poetas românticos é maior o número de poe-
sempre. Uma poética geral para hoje figura-se-lhe coisa impos- mas realizados em redondilhos maiores; b) na prática do verso
sível. Cada um tem a sua, boa ou má, e nenhuma outra aceita- alexandrino francês, dodecassilábico, que se instaura definiti-
ria. (CASTILHO, 1874, p. 156). vamente na poesia portuguesa no período romântico; Castilho
e Tomás Ribeiro, que o praticam, não deixam no entanto de
Em que pese a honestidade das reformulações e a renúncia a qual- fazer experiências esporádicas com o alexandrino espanhol,
quer pretensão de totalização teórica com que, enfim, desiste do tão tetradecassílabico; c) na utilização, particularmente em poe-
acalentado projeto, caberia ressalvar que os princípios formuladores mas narrativos, dos decassílabos brancos, que os românticos
de uma poética (não geral, mas cujo vetor aponta para a poesia que herdaram do período anterior e praticaram com regularidade,
se desenhará na sequência) acompanham o conjunto do texto que sem no entanto incorporarem a aversão à rima que muitos poe-
constitui o Tratado de metrificação portuguesa, à medida que vai sen- tas neoclássicos haviam manifestado. (CHOClAY, 1997, p. 571).
do reformulado e submetido ao crivo da ponderação de seu autor. 4 Já
não é tão pouco, como afirmava o terceiro prólogo. Se podemos afirmar, portanto, que o período romântico coinci-
4 Apresentam-se, aqui, resultados parciais de uma pesquisa em desenvolvimento, em
de, em Portugal, com a incorporação de técnicas de versificação de
que se prepara uma edição anotada e comentada do Tratado, com indicação das al- origem francesa, o fato mais significativo a indiciar tal incorpora-
terações a que a obra foi sendo submetida e discussão de alguns dos pressupostos ção deve ser associado a António Feliciano de Castilho (1800-1875).
teóricos implicados no debate de Castilho com seu próprio texto.
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• -~

Durante a quase totalidade do período romântico, o sistema vigente proposta de contagem até a última tônica. 6 Escrevendo sobre "Couto "ü
i:C
de contagem das sílabas de um verso permanece sendo aquele que Guerreiro e a 'Reforma de Castilho"', Melo Nóbrega assinala que a "'"'
adota o padrão grave (empregado por italianos e espanhóis), segun- obra de Guerreiro "gozava de grande prestígio" (NÓBREGA, 1970, p. ~
125) em Portugal, na primeira metade do século XIX, enquanto Thiers "'
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do o qual as sílabas que compõem o verso devem ser contadas sem- "O
c:

pre até uma unidade silábica além da última tônica (sem que se dife- Martins Moreira registra sua publicação no Brasil, ao longo do mês "'c:Q;
u.
renciem os vocábulos finais dos versos em oxítonas, paroxítonos ou de maio de 1856 e em números seguintes, na Marmota fluminense, de QJ
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proparoxítonas - ou seja, o vocábulo paroxítono ou grave empresta Paula Brito (MOREIRA, [19-], p. 247-255).7 c:
e
u.
padronização à contagem, contando-se invariavelmente até a tônica A publicação na Marmota dista cinco anos da primeira edição do
+ 1 sílaba, esteja esta sílaba adicional ausente, presente, ou, como no T;ratado de metrificação portuguesa e ocorre em um momento em que
caso dos esdrúxulos, tenhamos duas sílabas posteriores à tônica). o poeta português era muito estimado no país, a que viera em 1855
Castilho desempenha papel decisivo no processo por meio do qual para divulgação de seu método de alfabetização, o Método Castilho.
"(i;
aquele sistema foi substituído pelo padrão francês, em que o vocá- Consta que gozava de grande prestígio e desfrutava de convívio
e
CJ
o bulo oxítona ou agudo (em conformidade com a predominância de caloroso junto ao imperador. 8 A curiosa e aparentemente extempo-
"'
êC tonicidade em língua francesa) passa a ser o suporte da padroniza- rânea publicação leva Thiers M. Moreira a suspeitar das intenções
C)
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o ção, estabelecendo-se, portanto, que a sílaba tônica final passe a ser de Paula Brito: "Que teria levado o endiabrado mulato, proprietário
a...
QJ
Cl
o ponto de interrupção na quantificação do verso. 5
6 Em Couto Guerreiro, a proposta alternativa de contagem de sílabas apresenta-se em
A despeito da opinião generalizada que atribui ao Tratado de me- versos:
trificação portuguesa (1851), de Castilho, a proposta de alteração do "Contando até o acento dominante,
padrão de contagem, seria mais rigoroso registrar que, em 1784, em (Que basta para o Verso ser constante)
Dez sílabas o Heróico inteiro tem;
Lisboa, o médico Miguel do Couto Guerreiro publica um Tratado de
A sexta muito aguda lhe convém:
versificação portuguesa (GUERREIRO, 1784), cuja "Regra XI" formula a Todo o quebrado Heróico terá seis;
Ao Lírico maior sete dareis;
De três o seu quebrado constará;
O Lírico menor cinco terá;
Um lírico menor, e outro menor
Unidos Versos são de Arte maior."
E o comentário em prosa que Couto Guerreiro faz à regra:
"Atendendo à brevidade, que afeto, por evitar a frequente repetição de agudo, grave
e esdrúxulo, ponho por novo método, como baliza, ou termo da medição do Verso
Português, a sílaba sobre que cai o seu acento predominante inclusivamente; por-
que estando ele certo até essa sílaba, infalivelmente está certo daí por diante, ou
cresça uma, ou cresçam duas, que de nenhum modo podem crescer mais; porque o
5 No Tratado de metrificação portuguesa, assim se apresenta a questão: acento predominante nunca pode estar em sílaba que anteceda a antepenúltima."
"[ ... ] advertimos que nós contamos por sílabas de um metro as que nele se pro- (GUERREIRO, 1784 apud NÓBREGA, 1970, p. 120 e 121).
ferem até à última aguda ou pausa, e nenhum caso fazemos da uma ou das duas
7 A questão encontra-se desenvolvida em: (MOREIRA, [19-], p. 247-255; NÓBREGA,
breves, que ainda se possam seguir; pois chegado ao acento predominante, já se
acha preenchida a obrigação; nisto nos desviamos da prática geral, que é designar 1970, p. 120-127; MIRANDA; DRUMMOND, 2007, p. 15-28).
o metro, contando-lhe mais de uma sílaba além da pausa, donde veio chamarem 8 Brunno V. G. Vieira, escrevendo sobre "José Feliciano de Castilho e a clâmide ro-
hendecassílabo ou de onze sílabas ao heróico, a que nós tínhamos chamado decas- mana de Machado de Assis", informa, a propósito da visita de António Feliciano ao
sílabo ou de dez sílabas" (CASTILHO, 1851, p. 18). Brasil:
Logo seguida da refutação às possíveis oposições: "Nas suas conferências esteve presente o próprio imperador e, nesse período, há
"Eles fundando-se em que os graves são mais frequentes, que os agudos e os esdrú- notícias de os dois terem se frequentado. O bardo lusitano lera ao imperador o dra-
xulos, e em que podendo os versos de dez sílabas aceitar até doze, quando termi- ma Camões traduzido do francês, obra que lhe dedicara quando da primeira edição
nam por duas breves, o meio entre o mínimo de dez e o máximo de doze, é onze; e em 1849. A afinidade entre os dois crescera a ponto de o monarca, depois, convidá-
nós fundando-nos em que há absurdo em chamar verso de onze sílabas ao que só -lo para a cadeira de Língua Portuguesa no colégio D. Pedro 11, de que se escusou
tem dez, e está certo[ ... ]" (CASTILHO, 1851, p. 19). gentimente o poeta" (VIEIRA, 2009).
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• •
da Marmota Fluminense, a fazer, nesse momento, a reprodução do ou 9" e assim por diante. Terceiros preceptistas, finalmente,
Tratado, de Guerreiro?" (MOREIRA, [19-], p. 249.). Não sendo pos- preferiram repousar na autoridade de Castilho, confessando-
sível responder à indagação, permanece pertinente destacar, sem -o abertamente, como o Sr. F. A. Duarte de Vasconcelos, em
qualquer renúncia ao rigor, o papel estratégico desempenhado por seu Compêndio dos Princípios Elementares de Arte Poética, etc,
Castilho na divulgação do sistema de contagem alternativo, em que editado em Coimbra na década de 60. Essa divisão de opiniões
se empenhou pessoalmente, sendo objeto de simpatias e oposições e a leitura dos manuais franceses, que começou a prevalecer
no decorrer do processo. durante o nosso parnasianismo, acabaram por fazer vitorioso
Para o estudioso de poesia oitocentista, a decorrência mais direta o sistema de Castilho, que arcaizou o outro. Bilac e Guimarães
da alteração está na elucidação da presença, em manuais de versifi- Passos, por exemplo, nem aludem à designação dos versos an-
cação ou de história literária do período romântico, da designação terior a Castilho- designação hoje revogada em Portugal ou no
"hendecassílabo", entre outros exemplos, referida a versos clara- Brasil. (RAMOS, 1959, p. 34).
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mente quantificáveis como decassílabos, segundo o padrão francês.
ô:i"'
o Ao que parece, a alteração do sistema de contagem teria sido, a cer- Ainda que mais de um estudioso assinale que a mudança não afe-
"' ta altura, "esquecida" e o sistema francês passaria a ser percebido taria "a estrutura rítmica do verso", 10 o que sempre admite alguma
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C'>
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o como único, em detrimento da precedência cronológica do outro sis- dose de polêmica, 11 não é desprezível o caso dos versos compostos,
a...
"'
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tema. Não deixa de ser digno de nota que um estudo decisivo como o em que a contagem em separado de cada unidade composicional
de António Coimbra Martins, dedicado, entre outros aspectos, preci- pode resultar em contagens finais com oscilação considerável caso
samente ao papel desempenhado por Castilho nessa transformação, se opte por um ou por outro sistema. Tome-se o exemplo do verso de
estranhe a presença do termo "hendecassílabo" referido ao verso de arte maior, de origem espanhola, composto de duas unidades com po-
Sá de Miranda por Carolina Michaelis (em obra de 1885).9 Péricles sicionais de cinco sílabas e cesura obrigatória na quinta sílaba (5+5).
Eugênio da Silva Ramos fornece detalhes: Se o sistema de contagem espanhol considerava necessariamente
que a contagem deveria (qualquer que fosse a tonicidade do vocábu-
A reforma de Castilho acabou vitoriosa, e hoje contamos os lo final) incluir uma sílaba adicional após a tõnica (padrão grave), o
versos até a última sílaba acentuada, desprezando as demais verso de arte maior computava 12 sílabas (5+1, no primeiro hemistí-
para efeito de designação. Tal vitória não foi conseguida sem quio, 5+ 1 no segundo hemistíquio).
reação da parte de muitos; certos tratadistas rejeitaram ex-
pressamente a inovação, como por exemplo o Sr. Delfim Maria
10 "O assunto não envolve, pois, a menor valia prática, cifrando-se em problema ta-
d'Oliveira Maya, autor de um Manual de Estilo que em 1881
xonômico, de alcance meramente acadêmico. Vem, no entanto, sendo objeto de
estava na 9º. edição, ou o Dr. Paulo Antônio do Vale, profes- estudos e discussôes irrelevantes, não tendo faltado quem lhe atribua exagerada
sor catedrático de Retórica do Curso de Preparatórios Anexo à importância, chegando a preconizar o retorno ao critério de que se afastou a nossa
poética formalística." (NOBREGA, 1970, p. 125).
Faculdade de Direito de São Paulo, que em sua Noções de Arte
Opinião similar pode ser também observada em Celso Cunha que, polemizando com
Poética (1884) achava o processo de Castilho capaz de provo- estudo de António Coimbra Martins, dedicado ao estudo do decassílado de Camilo
car confusão (parecer que já era, aliás, o do Sr. Oliveira Maya). Pessanha, defende, valendo-se do suporte de estudiosos do verso espanhol, que
a duração da tônica final absoluta e a do conjunto tônica + átona ou + átonas se-
Outros autores, como Eduardo Carlos Pereira (Gramática ria aproximadamente a mesma na recitação normal, o que legitimaria igualmente
Expositiva), passaram a indicar acomodaticiamente os dois o sistema de contagem francês (atualmente adotado em português) e o espanhol-
-italiano. Já Coimbra Martins, ainda que defenda a contagem pelo padrão agudo,
sistemas, referindo-se a "versos de 11 ou 10 sílabas", de "10
não considera indiferentes ao ritmo a sílaba ou sílabas posteriores ao acento final
(CUNHA, 1963).
9 Em nota: "Não se hão-de esquecer, porém, o capítulo intitulado o hendecassílabo (!), 11 Veja-se Péricles Eugênio da Silva Ramos, na obra citada, no capítulo "Sistema de
que figura na introdução de Carolina Michaelis para a sua edição crítica das Poesias Contagem dos Versos", que explora algumas das polêmicas sobre o tema (RAMOS,
de Sá de Miranda[ ... ]." (MARTINS, 1969). 1959).
74 75
• •
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-~
Cruzando o Atlântico Contudo, julgo pertinente destacar o levantamento realizado por
a:'"'
Chociay em que ele esclarece como essa espécie de juízo (atribuição "'"'
Ocorre que, contando-se versos de arte maior românticos pelo da noção de "erro" a um verso historicamente anterior ao padrão to- ~
padrão francês, um verso regular e previsto nas tratadísticas ante- mado como "verdadeiro") teria "feito história": o mesmo julgamento "'"'
"O
c
riores a Castilho como contendo 12 sílabas (independentemente da reapareceria em Sílvio Romero (a propósito de alexandrinos "erra- "'
E

tonicidade do vocábulo utilizado na cesura ou no final do verso) pas- dos" de Silva Alvarenga), Sérgio Buarque de Hollanda (a propósito "'
LL.

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sa a ser descrito como irregular ou descuidado. Como se trata de de Basílio da Gama) e Bandeira que, em texto de 1912, teria afirmado c
E
LL.
um problema crítico particularmente relevante para a discussão da que os alexandrinos de nossos românticos seriam, por via de regra,
descrição de versos oitocentistas, parece caber aqui alguma análi- "~rrados" (CHOCIAY, 1989, p. 42). Coube a Silva Ramos, entre ou-
se. Vejam-se os exemplos, fornecidos por Péricles Eugênio da Silva tros estudiosos, a tarefa de demonstrar como Basílio da Gama, Silva
Ramos: Alvarenga, Varela e Castro Alves praticaram a receita do alexandrino
"ü;
Em Álvares de Azevedo o uso do verso de arte maior trai às antigo. Ainda assim, Varela, provavelmente em resposta ao prestígio
a:;"'
o vezes o processo de formação resultante da soma de dois re- de Machado, especula Chociay, teria reescrito todo um poema, trans-
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tti dondilhos menores, embora o primeiro pudesse ostentar ter- formando quadras em oitavas e convertendo em hexassílabos seus
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o minação grave, aguda ou esdrúxula, o que, com a contagem alexandrinos "errados".
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CJ de sílabas posterior a Castilho, faz oscilar o número de síla- A questão dos alexandrinos não é ociosa, como possa eventual-
bas de 10 a 12. Basta ver as seguintes linhas de O Conde Lopo mente parecer à primeira vista, e a defesa sistemática de seu uso, seja
("Prelúdios"): por Castilho, seja por Machado, apresenta ainda outras decorrências
10 sílabas "Porém uma só! não mais! e paguei" críticas. Um estudo de Brunno V. G. Vieira, publicado recentemente
11 sílabas "Amores e glórias!. .. sonhei-vos! e quanto! no site Machado de Assis em linha, discute as relações entre o uso
12 sílabas "Somente uma lágrima da face a descor". do alexandrino pelo Machado de Assis de "Versos a Corina" e aque-
Advirta-se, porém, que na contagem vigente ao tempo de les praticados, em uma tradução dos Amores de Ovídio, por António
Álvares de Azevedo esses três tipos tinham 12 sílabas invariá- Feliciano, publicada no Brasil em 1858, mesmo ano em que Machado
veis, pois ambos os redondilhos, tanto o 2º como o 1º, fosse publica no Correio mercantil seu primeiro poema em alexandrinos.
qual fosse a sua terminação (aguda, grave ou esdrúxula), con- Tendo sido Castilho o divulgador desse metro em Portugal e no
tavam 6 sílabas. O mesmo se dava com outros versos compos- Brasil, Vieira encarece os esforços do tratadista na valorização não
tos, como o alexandrino arcaico, que somava 14 sílabas, fosse apenas do metro, mas de outros recursos técnicos a ele associáveis,
o 1º hemistíquio agudo, grave ou esdrúxulo, indiferentemente. como a mistura de metros praticada na referida tradução, assim
(RAMOS, 1959, p. 8 e 9). como em "Versos a Corina" (a utilização concreta desta "preceptísti-
ca da variedade" é demonstrada pelo ensaísta, que também eviden-
Encontramos ainda em um estudo de Chociay um exemplo das cia indiretamente o caráter multifacetado da obra de Castilho, fértil
decorrências críticas do problema, em que o pesquisador analisa um em oportunizar convergências como esta entre o preceptista e o tra-
texto crítico de Machado de Assis sobre alexandrinos de Fagundes dutor). Transcrevo o trecho do Tratado dedicado à questão:
Varela que realmente não seriam alexandrinos. Os versos "errados"
de Varela, para Machado, deveriam ser corrigidos segundo o mode- Ora como a variedade seja, em cousas de arte e luxo, condição
lo "verdadeiro" desse tipo de verso. Que os alexandrinos praticados muito principal, era claro que, se às duas medidas vulgares do
por Varela fossem, como o demonstra Chociay (1989, p. 37-45), ape- hendecassílabo e do octossílabo, que são todo o nosso haver
nas alexandrinos antigos que não seguiam o padrão francês é opera- heróico e lírico, se pudessem ajuntar, não só o alexandrino,
ção que não julgo necessário reproduzir aqui. mas quaisquer outras combinações métricas, em o diligencias
76

faria boa obra, e boa avença se levaria em o conseguir; de mais contribuição que prestou às letras de seu tempo e legou às gerações
a mais, que assim ficava o escrito mais sortido de tintas de futuras.
melodia para acertar, pelo natural, com as cores do seu pen- Castilho opõs-se francamente ao que seria a facilidade dos român-
samento. Esta tentativa foi a que eu fiz na minha tradução dos ticos seus contemporâneos, valorizando, ainda, uma concepção da
Amores do Ovídio. (CASTILHO apud VIEIRA, 2009, p. 132). escrita como trabalho e esforço de transformação pelo domínio da
técnica. Para Coimbra Martins, "sob o ponto de vista formal, os pro-
A propósito, ainda, do que assinalava anteriormente, a respeito gressos da poesia portuguesa, do romantismo aos nossos dias, se
do problema dos versos compostos e apenas a título de ilustração, podem avaliar por referência a dois marcos principais: as teorias e
gostaria de complementar a análise das decorrêncUJ.s críticas do es- profecias de Castilho, posta de lado a sua prática da poesia, e o exem-
tudo do Tratado fazendo alusão aos versos de Gonçalves Dias, cuja plo de Pessoa, rejeitadas as suas teorias do supra-Camões e afins"
recepção crítica parece merecer algumas reconsiderações à luz da (MARTINS, 1969, p. 224). Para Martins, seriam outras contribuições
observação de seu uso sistemático de modelos versificatórios de do poeta português a
o
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origem espanhola. Um simples exame da cronologia das primeiras
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edições de alguns de seus livros, anteriores ou concomitantes com a [ ... ] percepção, embora não sistematizada, do efeito da pausa
-êo primeira edição do Tratado de Castilho, seria bastante elucidativo. 12 interior na cadência do verso; exigência de que o verso não
c..
Contudo, é sistemática a desconsideração dos versos compostos , comece obrigatoriamente por maiúscula, pois não deve reco-
"'
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de Gonçalves Dias, em análises de sua obra. O fato parece contribuir nhecer-se por sinais gráficos, senão por música intrínseca; ava-
com a recorrente descrição de desleixo formal em referência àquela liação da oportunidade relativa, em determinadas posições, de
poesia. Como, no Brasil, a despeito do Tratado de Couto Guerreiro, versos agudos, graves e esdrúxulos, e no estudo da aptidão da
diversos fatores indicam Castilho como marco efetivo da alteração língua portuguesa para os diferentes metros; explicação do va-
do modelo de contagem, a referida descrição, ainda que possa per- lor onomatopaico das consoantes. Na espantosa descrição da
manecer em debate, jamais será rigorosa enquanto se fundar em um "índole das vogais", que também faz Castilho no Tratado, não é
modelo versificatório que só passaria a ter funcionalidade, no país, a altura de falarmos (MARTINS, 1969, p. 245).
ao longo da segunda metade do século XIX.
Formuladas nesses termos, as considerações anteriores podem Por outro lado, Antõnio Ribeiro dos Santos já assinalou algumas
levar a supor que o papel desempenhado pelo Tratado de António das convergências entre as propostas de pedagogia social formula-
Feliciano de Castilho esteja prioritariamente centrado nos aspectos das por Antero de Quental e António Feliciano de Castilho. Na carta
históricos relativos ao estudo técnico do verso oitocentista, sobretu- a Castilho, Bom senso e bom gosto, o jovem Antero censura os poetas
do na não irrelevante questão do sistema de contagem. No entanto, que "adoram a palavra que ilude o vulgo e desprezam a idéia, que
entre portugueses, escrevendo a partir de um contexto romântico, custa muito e nada luz" e arremata: "São apóstolos do dicionário e
Castilho introduziu preocupações que coincidem com muitas das têm por evangelho um tratado de metrificação" (QUENTAL, 1865, p.
conquistas simbolistas, como a orquestração verbal e a busca de re- 160). As palavras são combativas, como se sabe, e fizeram escola,
cursos que conferem expressividade aos sons do poema. Como se ainda que não sejam mais contundentes que estas outras, presentes
pretendeu desenvolver neste ensaio, é observável, ainda, no embate em duas cartas de Castilho, de 1852 e 1859:
entre o que o Tratado realiza e as propostas que aventa sem chegar a
concretizar, a preocupação do escritor com uma pedagogia da escrita Os verdadeiros socialistas são estes de obras, e não de pala-
poética, o que pode sem dificuldades ser assimilado ao conjunto da vras; levantar o povo a grau de homem; em vez de proclamar
que faça coisas, que ninguém lhe ensinou a fazer, que se colo-
12 1847: Primeiros Cantos; 1848: Segundos Cantos eSextilhas de Frei Antão; 1851: Últimos que em alturas para onde não há subida, e que se torne feliz
Cantos.
78 79
411 111
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com teorias, que nem ele, nem nós mesmos, nem creio que O que de mais relevante se parece destacar de seu texto é a erudi- "'
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seus autores compreenderão bem. Ensinemos o Reino todo a ta e minuciosa reconstrução de um pensamento vivo e atuante, que cn
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ler, escrever e contar. Demos-lhe depois uma Imprensa perió- não se furtava ao debate e sequer às reformulações, que afrontava as ~cn
dica digna dele, e manuais por todos os modos ao seu alcance; próprias contradições e que se empenhava no esclarecimento e na "'c
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manuais para a agricultura, para os misteres, para a higiene, defesa das posições adotadas, permanecendo suficientemente lúcido E
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para a moral, para a economia, para a jurisprudência usual, quanto às implicações de suas propostas, ou apressando-se em re- "'c
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para a política, e ver-se-á onde ele chega. conhecer equívocos ou reformular postulações, quando o debate de c
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E tanto mais preciso trabalharmos, e despendermos com a es- ideias assim o impunha. Não se trata, portanto, de um pensamento
cola popular, quanto nela é que está a Polítjca ampla, profun- PfOnto, a qualquer data, ou distante da discussão, mas de um pensa-
da, séria, duradoira, e o Progresso sem revoluções. (Sei que mento comprometido com causas as mais diversas.
repito, mas repito de propósito.) A maior parte dos políticos Considerado o contexto em que se constituiu e se tornou conhe-
não vêem isto; é por uma espécie de moda, e nada mais, que cido, as transformações e os aspectos técnicos que defendeu e divul-
o falam em- Instrução popular-, porque em realidade, ou pouco gou, bem como as consequências críticas derivadas de suas inter-
"' se embaraçam com ela, ou talvez dela se arreceiam. (SANTOS, venções, o Tratado de metrificação de Castilho interessa, portanto,
1992, p. 51)_13 ao estudo do verso oitocentista segundo uma perspectiva dúplice,
iluminando o que antecede e o que se sucede ao momento de sua
Para Santos, "O jovem de vinte e três anos e o velho de sessenta e publicação. Por um lado, situá-lo em um momento histórico preci-
cinco, que se viram frente a frente num doloroso conflito de que não so permitiria melhor elucidar aspectos técnicos pertinentes à com-
eram inteiramente responsáveis, tinham afinal muito de comum: em preensão da poesia produzida antes de sua consagração. Por outro, a
épocas e em contextos socioculturais bem distintos, ambos tentaram compreensão das alterações que disseminou e nas quais empenhou
generosamente arrancar Portugal do seu atraso secular" (SANTOS, o autor seu prestígio pessoal permite dimensionar o papel que de-
1992, p. 49). Não parece que seja o caso, contudo, de andar na con- sempenharam autor e obra nas transformações do verso no Brasil e
tramão dos achincalhes que Castilho recebeu desde os tumultuosos em Portugal, já na segunda metade do século XIX.
eventos e desdobramentos da Questão Coimbrã, fazendo-lhe um
elogio incondicional por reação, e mantendo, portanto, os mesmos Referências
termos de colocação dos problemas, ainda que invertidos os seus
vetores. Sempre se pode observar que não há pouca ingenuidade na CASTILHO, António Feliciano de. Tratado de metrificação portuguesa
tentativa de mudar-se o mundo à força de manuais, assim como pelos para em pouco tempo e até sem mestre, se aprenderem a fazer versos
meios propostos por Antero. de todas as medidas e composições. Lisboa: I. Nacional, 1851.
Em Estilo e preconceito: a língua literária em Portugal no tempo de
Castilho (1998), Fernando Venâncio discute a visão consagrada que ___ . Tratado de metrificação portuguesa para em pouco tempo e
permanece vigente a respeito do escritor. O livro situa o pensamen- até sem mestre se aprenderem a fazer versos de todas as medidas e
to de Castilho em um intenso debate travado ao longo da primeira composições. Lisboa: L. Central, 1858.
metade do século XIX, em Portugal, analisando suas concepções de
linguagem, estilo, literatura, poesia e, em especial, suas formulações ___. Tratado de metrificação portuguesa para em pouco tempo e
sobre o papel da "elocução" poética no referido contexto. até sem mestre se aprenderem a fazer versos de todas as medidas e
composições. Porto: L. Moré, 1867.
13 O primeiro trecho foi extraído de uma carta a António Xavier Rodrigues Cordeiro
(Cartas, vol. li. Lisboa: Emp da História de Portugal, 1910. p. 54-55) e o segundo, de
uma carta a J. M. Do Casal Ribeiro (Telas literárias. Ed.cit.vol li, p. 149).
80 81

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___ . Tratado de metrificação portuguesa, seguido de considerações NÓBREGA, Melo. Couto Guerreiro e a Reforma de Castilho. Arredores "'
·o;
sobre a metrificação e a poética. Porto: L. Viúva Moré, 1874.
cc
da poesia. São Paulo: Conselho Estadual da Cultura, p. 120-127, 1970. C/)
C/)

~
C/)

CASTRO, Aníbal Pinto. Retórica e teorização literária em Portugal. RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O verso romãntico e outros ensaios. "'c:
"C
co
Coimbra: Centro de estudos românicos, 1973. São Paulo: Conselho Estadual da Cultura, 1959. p. 34. c:
Q;
u..
"'
.!:
CHOClAY, Rogério. Machado de Assis e os Alexandrinos errados. SALGADO JÚNIOR, António. António Feliciano de Castilho. In: 'co"'
c:

Revista de Letras, São Paulo, n. 29, p. 37-45, 1989. .t


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:::J
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jun. 2007. Machado de Assis. In: Machado de Assis em linha, ano 2, n. 4, p. 125-
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p. 247-255, [1969?].
Excertos do Tratado de Metrificação Portuguesa

Prólogo

O presente livro é um quase tratado, segundo eu soube e pude fazê-lo; e ao mesmo


tempo compêndio, que por breve e claro não deixará de aproveitar aos principiantes.
Tudo o que vai em letra mais grada constitui doutrina que tenho por indispensá-
vel; em tipo mais miúdo lancei as explanações e certas digressões de que absolutamen-
te se podia prescindir, mas que servirão para tornar os preceitos mais convincentes. A
consecutiva leitura das páginas todas sobrará, ou eu me engano muito, para qualquer
completar sem mestre o seu tirocínio de poeta.
Examinando tudo o que sobre versificação se escrevera em nossa língua, conven-
ci-me de que a matéria estava apenas encetada, e por homens que só viam a arte da
parte de fora; muito empirismo, alguma coisa de forma, nada de sentimento poético,
nada absolutamente de filosofia.
O amor e consciência com que trabalhei agora nesta cultura, que há trinta anos
é a minha, à primeira vista os reconhecerá quem folhear este voluminho; aqui se lhe
depararão trabalhos minuciosos de análise, que ninguém antes havia feito, que me
conste, nem talvez tentado e cujos resultados práticos devem ser muitos e importan-
tes. Entre esses trabalhos alguns há que pediam e mereciam maior desenvolvimento;
alguns poderão ser melhorados por mais hábeis mãos e provavelmente para o futuro o
hão-de-ser: é fácil acrescentar; e o progresso é de todas as coisas. Daqui até lá entendo
que os professores de poética, seguindo as regras que dou com as elucidações que lhes
junto e ajuntando eles mesmos a umas e outras o que a sua própria perícia lhes acon-
selhar, deitarão das suas escolas alunos muito mais aproveitados; esse o único fim que
me induziu a estas obscuras e inglórias lucubrações.
Se bem soubera alguém, como eu sei, a abundância de dissabores e a pouquidade
de gostos verdadeiros que o poetar e em geral o tratar letras me tem acarretado, por
muito santa alma e honrada língua que ele fosse, temo que me haveria por uma espécie
de sectário do diabo que, por estar penando sem remédio, procura atrair para o seu
inferno os espíritos ainda não perdidos. Eu, porém, em boa e leal verdade não prego
a ninguém que seja poeta ou literato por vida em Portugal; de certo não; o que faço e
84 85

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o que procuro fazer é dar a mão aos imberbes, às senhoritas e ainda a algum pecador Eles fundando-se em que os graves são mais frequentes que os agudos e esdrúxulos
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não calejado que já tem pacto com o demônio da poesia e uma vez que já nasceram e em que podendo os versos de dez sílabas deitar até doze quando terminam por duas t:
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o precitos para as rimas e regrinhas desiguais, induzi-los e acostumá-los a atazanarem o breves, o meio entre o mínimo de dez e o máximo de doze é onze; e nós fundando-nos o
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:~ menos que possam o ouvido, o bom gosto e o bom senso ao seu próximo que nem lhe em que há absurdo em chamar verso de onze sílabas ao que só tem dez e está certo "'u
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fez mal, nem tem culpa do seu fadário. como: ~
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~ [...] É fraqueza entre ovelhas ser leão,
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Quero acabar com uma derradeira ponderação em abono do opúsculo. Tenho eu e em que finalmente em onze há sempre dez e em dez não há onze nem doze. "O
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que a matéria que se nele ensina não é só útil para os que aspiram a fazer versos; Àqueles a quem esta inovação parecer minuciosa, responderemos que não é minúcia ..="'o
entendo que em toda e qualquer educação liberal deve entrar úifalivelmente como ,ser exato no falar e que o sê-lo é obrigação e muito mais quando nenhum lucro se tira "O
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elemento; assim o fazem em Itália, em França, em Inglaterra, em muita Alemanha e do contrário; isto posto, fique entendido que todas as vezes que falamos de versos de €
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até já por terras da nossa vizinha, a velha e juvenil Castela, que enquanto nós outros oito sílabas, nos referimos ao que os outros designam por de nove; os alcunhados de .D
nos atascamos por querer na ignorância hereditária, lá se vai alando com o próprio oito são para nós de sete; os de sete de seis e assim por diante. Prossigamos dando
impulso, para todo o bom saber. exemplos de todas as medidas supra-indicadas. (p. 18-19)
Se o fazer versos é para poucos, o entender de versos, o poder avaliá-los com
exação e recitá-los com justeza é para um e outro sexo uma prenda de manifesta Versos agudos, graves e esdrúxulos
vantagem; requinta-se o gosto de uma importante espécie de leitura que desenvolve
e pule o gosto natural; não se refoge por medo ou justa vergonha de ler em voz alta e Já dissemos o que se entendia por palavras agudas, palavras graves e palavras es-
em público e sobretudo com este tão fácil como agradável tirocínio se afaz o ouvido drúxulas: se a palavra última de um verso qualquer é aguda, agudo se nomeia o verso;
para escrever a prosa nacional com muito mais graça e afinação; verdade esta que se grave, grave; se esdrúxulo, esdrúxulo; do que resulta que os versos de duas sílabas
poderá parecer nova e tonteria a alguém, mas que era já credo velho para Maury, para podem deitar até três e quatro; os de três até quatro e cinco; os de quatro até cinco
La Harpe, para Rolin, para Voltaire, para Plínio, para Quintiliano, para Cícero e para e seis; os de cinco até seis e sete; os de seis até sete e oito; os de sete até oito e nove;
os mestres de Cícero, os homens da grande Atenas; verdade que eu sempre defenderei, os de oito até nove e dez; os de nove até dez e onze; os de dez até onze e doze; os de
pois a conservo como relíquia de um excelente e eruditíssimo varão, que me honrou onze até doze e treze; os de doze enfim até treze e quatorze; que é o maior número
com a sua amizade e com os seus conselhos me introduziu ainda menino ao caminho a que uma linha métrica pode se estender. (Os hexâmetros, se eles fossem possíveis,
das letras. Esta autoridade, que ninguém em Portugal recusará, é a do Sr. António deitariam até dezessete.)
Ribeiro dos Santos, a quem a poesia serviu muito mais ainda na prosa que no verso.
(p. III a VIII) Dos versos graves em geral
[... ]
A grande maioria dos vocábulos portugueses são graves; daqui vem que em todas
Quantas espécies de metros há na língua portuguesa as onze medidas os versos graves são os mais fáceis e óbvios e os mais constantemente
seguidos por todos os poetas. Por esta mesma razão talvez, de ser esta cadência, de
Muitas são as medidas usadas mais ou menos em nossa língua: temos versos de uma longa seguida de uma breve, aquela a que o nosso ouvido anda mais afeito, até na
duas sílabas, de três, de quatro, de cinco, de seis, de sete, de oito, de nove, de dez, de prosa, nos parece o verso grave o mais digno de seu nome, o menos afetado e o mais
onze, de doze; advertimos que nós contamos por sílabas de um metro as que nele se decente ou único decente para os assuntos heróicos, trágicos, filosóficos e didáticos;
proferem até a última aguda ou pausa e nenhum caso fazemos de uma ou das duas pelo menos estão eles de posse imemorial destas e de quantas matérias nobres a poesia
breves que ainda se possam seguir; pois chegado ao acento predominante, já se acha mete em si.
preenchida a obrigação; nisto nos desviamos da prática geral que é designar o metro
contando-lhe mais uma sílaba para além da pausa, donde veio chamarem hendecassí-
labo ou de onze sílabas ao heroico, a que nós chamamos decassílabo ou de dez sílabas.
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V)

t1 Dos versos agudos em geral cuidamos, ela existe realmente entre a natureza do datílico e estas tão diversas nature- "'
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zas de ideias? Ignoramo-lo; a não ser por ventura de que nesse resvalar por duas breves
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o Os versos agudos, pelo seu modo seco e estalado de acabar, sem elasticidade, sem ao cabo da palavra, nesse repousarmo-nos do esforço, que na sílaba longa fizemos, o o
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·c:; nosso espírito como que vai seguindo por mais tempo, ainda que vagamente, o seu
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vibração, se assim o podemos dizer, têm o que quer que seja de ingrato ao ouvido; "''-'
t;::
u.. ·;::
o seriam insofríveis, se alguém se lembrasse de no-los dar enfiados aos centos e aos pensamento ou afeto; assim como um barco, depois do impulso do remo, voga ainda <ã)
·c: 2:
~ milheiros, como os graves nos aparecem, sem nos cansarem; demais, por isso mesmo per si na mesma direção; assim como a ave depois do último bater de asas se continua
c:
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"O

que os vocábulos agudos são menos frequentes, daí tiram os versos agudos um quid de ainda o voo; assim como ao instrumento sonoro, passado o golpe que lhe extraiu uma "O
.l9
exibição e esquisitice, que não pode frisar senão com as ideias extravagantes, cômicas, nota, só pouco a pouco se vai o som esvaecendo. Estas são parte das excelências dos "'
t!=
o
brutescas ou satíricas. Correi os sonetos de Bocage, poeta que no;tocante à decência, \'sdrúxulos; mas eles têm não menos que os agudos um contra, que não será fora de "O
V)

a gosto instintivo e a incorruptível delicadeza de ouvido, seremos sempre obrigados a propósito assinalar. êQ)
'-'
citar como autoridade; em todos os seus sonetos não encontrareis um sério com um ,.iJ

só verso agudo, ao mesmo tempo que jocosos e mordazes todos em versos agudos, Contra dos esdrúxulos
encontrareis muitos.
Dissemos que de serem os vocábulos agudos menos numerosos que os graves, se
Dos versos esdrúxulos em geral seguia o não poderem sem estranheza empregar-se tanto como os graves, no final dos
versos; ora, sendo os vocábulos esdrúxulos menos frequentes ainda que os agudos, se-
As palavras de duas sílabas breves depois de uma longa excedem tanto em música gue-se e pela mesma razão que o seu emprego em remate de versos deve ser muito raro.
aos termos só graves, como os graves excedem aos agudos; e é isto que faz com que, Uma série de versos esdrúxulos sem interrupção, ou com poucas interrupções, tem um
sem embargo de serem os termos esdrúxulos ou datílicos ainda menos frequentes em ar desnatural, afetado, esquisito e que facilmente degenerará em ridículo (p. 22-26}.
nossa língua que os agudos, nem por isso se estranham, quando ocorrem naturalmen-
te. Ideias há talvez, com as quais a sua toada tem uma secreta afinidade; v.g.: a ideia de
extensão ou grandeza; considerais os superlativos, todos datílicos máximo, ótimo, gran-
díssimo, boníssimo, altíssimo, vastfssimo, profundíssimo, amplrssimo etc.; não é verdade que
o mesmo tom material destes adjetivos assim, tem alguma coisa de representativo?
Mas não é só com a ideia de grandeza que os esdrúxulos fraternizam, é com a de sons
aprazíveis: música, cítara, harmônica, melódica, cântico; é com as suavidades, amenidades
e enlevo: plácida, tácito, balsâmico, adarí/ero, florida, simpático, estático, lágrimas, delícia,
êxtase, angélico, zé/ira, cândida, cerúlea, umbrí/ero, selvático, murmúrio, diáfano, /rmpida,
mórbido; é com as de movimento e força: trêmulo, rápido, indômito, quadrúpede, hipógri/o,
armígero, precípite, vértice, ríspida, bárbaro, frenético, túrbido, ímpeto, súbito, relâmpago; é
finalmente até com as opostas às suaves: hórrida, lúgubre, lôbrego, túmulo, tétrico, báratro,
pálida, mortí/ero, pestí/ero, funéreo, lápide, sarcófago, pirâmide, harrí/ico, tóxico, espíritos,
lúci/er, Eumênides.
Quantos outros vocábulos não poderiam enriquecer ainda cada um destes catá-
logos, onde só vão os que afluíram ao correr da pena! E quantos mais ainda se uma
filosofia artística houvesse podido presidir à formação da língua! Mas as línguas são
grandes obras humanas que o homem não faz, fazem-se com ele, talvez dele também;
porém, mais sujeitas a circunstâncias fortuitas e à fortuna que à vontade, ao poder, e à
força de ninguém. Mas, voltando ao assunto, donde provirá esta harmonia, se, como

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