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Ritmo e Poesia em Performance

Uma análise das relações entre texto e música no rap dos Racionais MC’s

Marília Gessa
Unicamp
mariliagessa@gmail.com

Resumo

O presente trabalho dedica-se ao estudo do rap como um gênero poético oral, atual e
corrente na sociedade brasileira. O rap traz em comum com outras poesias orais a sua
natureza performática, que prescinde da co-ocorrência de multisemioses e,
fundamentalmente, da voz. Na performance dos raps dos Racionais MC’s, tecnologias
sonoras, como scratches e samples, combinadas ao uso da linguagem verbal, teatralizam
as situações narradas pelo canto. O artigo empreenderá uma breve análise de “To
ouvindo alguém me chamar”, um rap em que as bases instrumentais utilizadas não
conferem apenas acompanhamento musical ao canto e nem servem de mera ilustração
àquilo que é expresso pela palavra, mas recobrem a música de sentidos que não estão
necessariamente dados no texto verbal.

PALAVRAS-CHAVE: rap, canção popular, poesia oral, performance, sample

Introdução

Há cinco anos, venho desenvolvendo uma série de pesquisas sobre o rap

brasileiro, com especial ênfase sobre o seu principal expoente, o grupo Racionais MC’s.

O estudo deste artefato híbrido, como é toda canção popular, tem me desafiado a

encontrar ferramentas adequadas para sua análise. E esta busca foi o que me motivou a

escrever este trabalho.

Uma vez que a canção tem sido frequentemente entendida pelo ambiente

acadêmico como uma combinação de música e poesia - tomadas aí como duas artes
distintas, desempenhando cada uma o seu papel-, as abordagens em relação ao seu

estudo tem sido marcadas pela unilateralidade: as diferentes perspectivas que já

surgiram e desapareceram nas teorias literárias, lingüísticas e sociológicas voltaram-se

em ampla medida para os textos, tratados como entidades verbais; já no campo da

música, recorreu-se a ferramentas da musicologia convencional para analisar canções

como obras musicais encapsuladas em partituras, frequentemente relevando-se o seu

conteúdo verbal (cf. FINNEGAN, 2008).

Embora se tratem de duas abordagens legítimas, quando a canção é transposta

para páginas escritas, por meio da transcrição verbal ou musical, ela sofre um processo

de redução, no qual muitos de seus traços performáticos desaparecem. Ainda assim,

parece ter sido somente nesta forma textual (e artificial) que a canção pôde se tornar um

objeto legítimo de análise para os acadêmicos.

No campo dos estudos da linguagem, a principal implicação deste tipo de

abordagem foi o tratamento da letra da canção como poema escrito. Em seu livro mais

recente, In the heart of the beat: The Poetry of Rap, Alex Pate adota este enfoque,

buscando “liberar a poesia do rap – a literatura do hip hop – de expectativas

estereotipadas acerca de seu funcionamento como canção” 1 (PATE, 2010: 3). A fim de

analisar os modos de expressão poética inerentes ao rap, o autor acredita ser necessário

isolar a letra do rap de seus aspectos performáticos, inclusive da voz do MC, isto

porque, em sua visão, é a letra que define o gênero rap e seu modo de existência.

“I claim that the poetry of rap constitutes a whole, and that the music,
or the beat of rap, is an addition to that whole. (...) More to the point,
I argue that when it comes to rap, the words are more important than
the music. And to further complicate this challenge, I am also
suggesting that, in order to deal with the literary achievements of a

1
Tradução minha. No original: “I want to liberate the poetry of rap – the literature of hip hop – from the
stereotyped expectations of their function as ‘songs’”.
given rap/poem, we must dismiss the actual sound of the poet’s
voice.” (PATE, 2010:3).

Nas análises empreendidas em sua obra, Pate (2010) procura demonstrar que a

letra de um rap, bem como sua significação e valor literário são independentes da voz e

do acompanhamento musical presentes em sua forma como canção, e que, em última

instância, é somente por meio de sua leitura que se pode efetivamente interpretar e

apreciar as qualidades literárias de um rap.

O ponto de partida implícito no trabalho do professor Pate parece ser o de que a

literatura é feita de textos escritos, pois a letra de rap apresenta-se para ele como objeto

poético apenas quando liberada da canção e da sua performance, transposta ao papel

como um objeto tangível, disponível para análise e releitura. Tal ponto de vista tende a

reiterar a oposição escrito/oral, assimilando-a com a oposição poesia/não-poesia.

Hoje, no entanto, definições sobre gêneros literários e poéticos que os atrelem

diretamente à presença da escrita não satisfazem muitos pesquisadores. Finnegan (2005)

considera que as canções, assim como outras formas poéticas orais, não são

comparáveis à literatura escrita e nem classificadas como literárias no sentido mínimo

de poderem ser reproduzidas como textos escritos, mas sim por possuírem

características próprias, dentre as quais são essenciais o uso da voz e a co-ocorrência de

multisemioses, que definem a sua natureza performática. E, desse modo, acredito que

para discutirmos a natureza literária/poética das canções, uma distinção mais frutífera

para este trabalho seria aquela entre poesia escrita e poesia oral, pois gêneros literários

orais têm diferentes potencialidades em relação à literatura escrita e esse aspecto é de

importância primordial tanto para a apreciação quanto para a análise da canção como

um modo de expressão estética.

Vale ressaltar, no entanto, que ao propor esta distinção, não estou tomando como

verdade que a escrita não possa participar dos processos de criação e até mesmo de
transmissão e performance de um poema oral2. Ao contrário do que se costumava

acreditar, um poema não é considerado oral somente se for composto sem que se recorra

à escrita (cf. FINNEGAN, 1977). À exceção dos freestyles3, o processo de composição

de um rap é geralmente anterior à sua performance e mediado pela escrita.

Mano Brown, membro dos Racionais MC’s, revelou-me em conversa informal

que todas as letras de sua autoria no disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia

foram compostas por escrito, no entanto sem perder de vista o fato de que elas deveriam

ser performatizadas para o público. Cada verso era cantarolado ao mesmo tempo em que

era escrito, para que se adequasse ao ritmo e à métrica do rap. Além disso, cada palavra

no encadeamento dos versos deveria soar claramente quando pronunciadas, do

contrário, elas poderiam prejudicar a audição do verso todo e, consequentemente, o

entendimento do conteúdo da letra pelo ouvinte. Em entrevista a esta pesquisadora, KL

Jay, o DJ do grupo, nos exemplifica este cuidado do MC:

“Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o Mano Brown não


deixa de fazer o plural porque ele não sabe que se fala os meninos ao
invés de os menino. Ele não é ignorante. Acontece que o s é muito
difícil de cantar. Ia soar embolado. Então, como todo mundo fala os
menino, ele escreve também, pela facilidade de cantar. Ou então
substitui os menino por a rapazeada”.

Como podemos ver, no rap, a escrita deixa de possuir o valor de referência

absoluta e de modelo regulador exclusivo do pensamento e do discurso poético para se

tornar uma ferramenta entre muitas disponíveis no processo de criação, transmissão e

2
Finnegan (2005) observa que a escrita pode interagir com a realização oral literária por meio de
transcrição, cartões de memória, anotações, versões impressas de poemas orais, roteiros e até mesmo
como ferramenta para que a audiência possa compreender melhor a performance durante o seu
desenvolvimento, além de múltiplas combinações e seqüências destas e outras formas de interação
escrita/oralidade. Estudos sobre oralidade que vão desde a performance oral de poemas na Corte Imperial
Japonesa e na Europa Medieval até as recitações de poesia contemporânea, performances de canções
populares e produções de rádio e televisão revelam que as formações textuais nestes contextos
intercalam-se entre os modos orais e letrados e podem participar de ambos.
3
Os freestyles são raps improvisados no momento da performance.
performance de um poema (cf. BÉTHUNE, 1999). Assim, embora Mano Brown escreva

as letras de seus raps, ele nunca perde de vista o fato de que elas serão interpretadas em

shows e transmitidas por CDs na forma de canções, ou seja, que seu verdadeiro modo

de existência é o oral, o que quer dizer que seus raps não têm sua existência na forma de

um texto escrito, mas em sua performance realizada de forma temporal e sequencial

através da ativação simultânea da música, do texto e do canto.

Relatos do processo composicional do autor nos revelam indícios de que o rap é

sempre pensado, desde o seu planejamento, numa relação de interdependência entre

base instrumental, letra e canto. Quando perguntado sobre o seu processo de

composição, no programa Do Lado de Cá4, Mano Brown responde:

“Eu vejo um som, eu já dou um tema, o caminho que eu vou seguir,


imagino a letra pronta e ela finalizada. Eu imagino ele [o rap] pronto.”

Embora a concepção da base instrumental e a da letra do rap se dêem em

momentos distintos, fica claro no depoimento de Mano Brown que estes são eventos

profundamente interdependentes. É particularmente interessante aqui o fato de que

Mano Brown inicia o processo de composição pela audição de uma base instrumental. É

ela que guiará toda a concepção da letra, desde o tema até a escolha de palavras, de

acordo com as sonoridades, possibilidades de encadeamento, aspectos timbrísticos,

métrica e o ritmo sugeridos pela base instrumental. E é por isso que, mesmo antes do

início da escrita da letra, o compositor “já imagina o rap pronto”, ele opera com a

conjugação simultânea dos três eixos principais do rap (música, letra e canto) e seus

desdobramentos, no ato da composição. Desse modo, tona-se evidente que o fazer

musical e a visão do produto final aos olhos de Mano Brown não é segmentado.

4
Programa de Internet, disponível em www.doladodeca.uol.com.br
Compor um rap exige o esforço do autor em operar com essas três dimensões e

estabelecer fios de ligação e significação entre elas.

Esta posição de Mano Brown vai ao encontro da opinião de muitos estudiosos

da poesia oral que têm entendido este gênero como um objeto multidimensional, ao

invés de puramente oral. Isto porque os gêneros orais, cada qual com sua própria

estética, podem se valer de uma série de recursos auditivos - rítmicos, prosódicos,

timbrísticos -, visuais e gestuais, entre outros traços performáticos, que se aglutinam,

transcendendo a separação de seus componentes individuais. Nesta perspectiva, no rap,

bem como na canção popular em geral, texto e música compõem facetas superpostas de

um evento performático que não pode ser dividido (cf. FINNEGAN, 2008).

O rap evidencia como as palavras tornam-se um entre outros elementos em jogo

no momento da criação e da performance poéticas - todos cruciais para a sua realização

e recepção literárias-, o que implica em considerar que a poeticidade do rap, como um

gênero oral (e multimodal), não reside apenas em sua realidade verbal, mas na

atualização em performance de música, texto e voz. Portanto, ao se dirigir o foco de

análise dos raps apenas ao seu conteúdo verbal, na forma de poemas escritos, corre-se o

risco de negligenciar aspectos definidores do gênero. E é por isso que observar os

papéis desempenhados por cada um dos elementos do poema em performance tem se

tornado uma abordagem cada vez mais reconhecida para a análise das criações poéticas

orais e é esta que empregarei nas análises do rap “To ouvindo alguém me chamar” dos

Racionais MC’s que empreenderei a seguir.

Longe de poder expor todos os modos pelos quais o canto falado de Mano

Brown interage com a base instrumental e quais os significados que emergem dessa

relação, neste artigo, procurarei exemplificar como as tecnologias sonoras de

sampleagem empregadas na composição interferem ativamente na manipulação e


produção de sentidos dentro da canção, por meio da teatralização de situações narradas

e da inserção de sons não musicais que dirigem, muitas vezes, a interpretação do texto

verbal.

As relações entre texto e música nos raps dos Racionais MC’s: o caso do sample

O rap brasileiro pode ser brevemente resumido como um poema oral

(geralmente de longa duração quando comparado a outras canções populares), em que a

arte de rimar é combinada a bases instrumentais produzidas por uma moderna

tecnologia sonora. A metrificação dos versos não obedece à contagem de sílabas, mas

ao pulso que marca o ritmo da música, na maioria das vezes, numa subdivisão

quaternária (4/4). Em relação aos raps dos Racionais MC’s, tal fato pode elucidar

porque Mano Brown utiliza a base instrumental como guia métrico para a criação de

suas letras.

As instrumentais de um rap são construídas por meio da repetição de uma

mesma sequência musical do início ao fim da canção, por isso, raras vezes um rap

comporta variações e mudanças de compasso. No entanto, é interessante assinalar aqui

que, nos momentos em que não há uma base instrumental acompanhando o canto,

podem ocorrer tais variações e mudanças, pois sem a rigidez rítmica da instrumental, o

intérprete ganha maior liberdade para cantar. A introdução de Jesus Chorou (MANO

BROWN, 2002), por exemplo, iniciada na fórmula de compasso quaternário, para

atender a exigências de metrificação do canto, torna-se ternária em um momento,

conforme nos exemplifica a transcrição abaixo:


Os métodos de produção do acompanhamento musical de um rap são baseados

numa série de procedimentos manuais e tecnológicos de manipulação de sons já

gravados e/ou sintetizados por computador, dentre os quais podemos citar:

- o scratch: uma técnica executada pelo DJ que consiste na produção de uma

escansão rítmica ou um efeito sonoro a partir de um ou vários LPs manipulados

manualmente num vai-e-vem sucessivo sobre uma porção determinada do disco de

vinil.

- a mixagem: misturar as informações de diferentes fontes sonoras a permitir

uma sensação de continuidade entre estes fragmentos, manualmente – utilizando dois

LPs e um crossfader – ou eletronicamente, por meio de um computador.

- a sampleagem: procedimento realizado por um sampleador que consiste na

extração de sequências rítmicas, melódicas, fundos rítmicos, linhas instrumentais etc. de

músicas já gravadas. Tais sequências podem sofrer modificações por métodos de

manipulação sonora.

- o corte: fragmentar frases musicais para serem sampleadas

- o loop: repetição regular ou aleatória de um fragmento sonoro

- layering: superposição de samples


- beat box: biblioteca de sons sintetizados que podem ser incorporados às

canções, adequando-se à velocidade, acentuação métrica, timbre etc.

Por meio destes procedimentos, fragmentos de músicas e sons variados, ambos

previamente gravados, podem ser extraídos de seus contextos originais e combinados de

diversas maneiras de forma a comporem a base rítmica e melódica de um rap. Essa

combinação é executada por um produtor5 e esses “pedaços de música” são chamados

de samples que podem provir tanto de outros raps quanto de músicas pertencentes a

outros gêneros musicais. Os samples podem ser ainda derivados de um material não

musical, tais como diálogos, sons de sirene, choros, tiros, conforme veremos.

O recurso do sample, do ponto de vista musicológico, põe em causa o papel da

nota como a menor unidade da linguagem musical. Segundo Tordjman (1998), o sample

definiu uma mudança brutal no alfabeto e no vocabulário musicais, dos quais a nota

deixou de ser componente, e isso não pôde ocorrer sem que houvesse mudanças nas

práticas de criação musical.

Conforme ressalta Béthune (1999), a composição a partir de notas musicais é

uma atividade altamente formalizada. Ou seja, na música ocidental, utilizar os códigos

musicais tradicionais requer um conhecimento prévio sobre as suas regras e normas

estabelecidas ao longo dos séculos. “Composer à partir de notes, c’est accomplir um

itinéraire esthétique qui part de la théorie pour aller à l’objet.” (BÉTHUNE, 1999:52).

Já na composição de um rap, a prática de criação está calcada na manipulação dos

equipamentos e instrumentos tecnológicos e não há a necessidade de um aprendizado

formal de teoria musical. Trata-se de um processo empírico de recombinação de

materialidades já existentes.

5
O produtor de música rap é aquele reponsável pela montagem em estúdio das canções. É ele quem une a
base de acompanhamento musical (que pode ser de sua autoria ou não) à letra cantada pelo MC e dá o
acabamento final aos raps, inserindo scratches, samples e outros efeitos (cf. SCHLOSS, J., 2004).
“La pratique de l’échantillonnage prive l’oeuvre de sa dimension
spéculative: la démarche créative y demeure exclusivement empirique. (...)
La manifestation sensible de l’oeuvre est desormais déterminée par
l’habilité d’un tâtonnement expérimental où prévaut le sensible, et dont la
mise en oeuvre s’apparente à une sorte de bricolage” (BÉTHUNE,
1999:52).
Na tradição musical ocidental, historicamente, sons que não fossem oriundos de

um instrumento musical convencional não eram utilizados nas composições e seriam

considerados ruídos se ocorressem durante a sua execução6. A técnica da sampleagem

contribuiu decididamente para a mudança deste paradigma, uma vez que os samples

podem ser combinados de diversas formas sem, necessariamente, obedecer a regras de

harmonia, condução melódica, contraponto, entre outras e, com isso, o ruído passa a ser

um som musicável. Deste modo, o rap pode extrair sons de diversas fontes, oriundas ou

não de instrumentos musicais, e combiná-los de modo a constituir sua base instrumental

e este fato é fundamental para o entendimento da importância que a porção musical tem

na atualização dos sentidos provocados por um rap.

Em “To ouvindo alguém me chamar” (MANO BROWN, 1997), por exemplo, os

samples utilizados para compor a porção musical da obra se apresentam como

poderosos recursos de teatralização dos cenários e das situações narradas nas letras,

interagindo com o canto mais do que em aspectos rítmicos e melódicos e influenciando

diretamente na produção de sentido do rap.

A canção “To ouvindo alguém me chamar” é o relato autobiográfico do narrador

da canção, um rapaz de aproximadamente 24 anos sobre a sua vida a partir de sua

entrada no mundo do crime até o momento exato de seu assassinato.

6
Se acompanharmos a história da música ocidental, notaremos profundas mudanças no âmbito do fazer
musical a partir do advento da gravação. Desde os primeiros experimentos com a música concreta, muitas
iniciativas contribuíram decisivamente para o uso de sons provenientes de instrumentos musicais não-
convencionais em composições, tanto na esfera erudita como popular.
A narrativa é construída numa estrutura temporal não-linear, permeada por

lembranças que se entrelaçam com o momento presente, como se o filme da vida do

narrador passasse diante de seus olhos, entre o momento em que ele leva o tiro até o seu

falecimento. Na verdade, a letra começa e termina com a dramatização do assassinato

do narrador, de modo breve e até indecifrável no início da canção, sinalizada apenas

pela fala “Aí, mano, o Guina mandou isso aqui pra você”, proferida por um personagem

que não é o narrador, e de modo mais completo ao final da canção, conforme a

transcrição:

(Exemplo 1)

Letra da Canção Acompanhamento Musical


Base musical acompanhada de batida
Dez minutos atrás forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Foi como uma premonição forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Dois moleque caminharam forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Em minha direção forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Não vou correr forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Eu sei do que se trata forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Se é isso que eles querem então vem forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Me mata
forte sem reverberação
Base musical acompanhada de batida
Disse algum barato pra mim forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Que eu não escutei forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Eu conhecia aquela arma forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
É do Guina eu sei forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Uma três oito zero prateada forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Que eu mesmo dei forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Um moleque novato forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Com a cara assustada forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
forte sem reverberação
“Aí mano o Guina mandou isso aqui pra você”
Fala proferida por outro homem que não
o narrador; a mesma que abre a canção.

Som de quatro tiros

Base musical acompanhada de batida


Mas depois do quarto tiro eu não vi mais nada forte sem reverberação e som de quatro
tiros; Som de monitor cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Sinto a roupa grudada no corpo forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Eu quero viver forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Não posso estar morto forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida
Mas se eu sair daqui eu vou mudar forte sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Batida forte sem reverberação, fim da
Eu tô ouvindo alguém me chamar
base musical.
O som do monitor cardíaco prolonga-se e
depois cessa indicando a parada cardíaca.
Não há mais som forte sem reverberação
indicando o ritmo cardíaco.
FIM DA MÚSICA

Conforme salienta Bentes (2007), este recurso de começar um relato por uma

das cenas do acontecimento final da narrativa (in media res) é pouco utilizado em letras

de música em geral. Porém, o tempo de mais de onze minutos de “To ouvindo alguém

me chamar” permite que Mano Brown explore diversos recursos textuais/narrativos e

sonoros/musicais de modo a situar o ouvinte acerca da situação vivenciada no momento

presente pelo narrador e sobre aqueles fatos que remetem a lembranças do passado.

Desde os primeiros 23 segundos da canção, logo após o primeiro verso, “O

Guina mandou isso aqui pra você”, e até o último verso cantado pelo MC (conforme

transcrição acima), o compositor integra à base musical um som que reproduz o ruído

de um aparelho de eletrocardiograma e batidas graves sem reverberação que sugerem o

ritmo cardíaco do narrador enquanto ele agoniza, e por isso essas batidas são

metricamente irregulares, fora do compasso quaternário da obra.

Ainda que, de início, o ouvinte não saiba que o narrador fora vítima de um

alvejamento, o receptor da obra tem a nítida sensação de que o coração do narrador-

personagem está sendo monitorado, o que sugere que ele esteja sendo atendido por

médicos num pronto-socorro ou por paramédicos em uma ambulância. Para tornar esta

imagem ainda mais acurada, o DJ KL Jay e o MC Mano Brown, produtores da canção,

tiveram o cuidado de fazer com que esse som se movimentasse pelo pan estéreo, ou

seja, que o som alternasse de uma caixa de som para a outra, reproduzindo o movimento

de um gráfico de eletrocardiograma. É somente o efeito de prolongamento deste som, ao

final da canção, sinalizando ausência de batimentos cardíacos, que indica ao ouvinte a

morte do personagem.

Tal procedimento composicional exemplifica uma marca importante de “To

ouvindo alguém me chamar”: a situação presente do narrador é trazida à música menos


por meio do texto verbal do que pelos recursos de encenação que os samples permitem

incorporar. Esta estética é seguida durante a música toda.

Antes do desfecho da narrativa, transcrita no exemplo 1, há apenas dois

momentos em que o narrador canta sobre o seu momento presente, conforme os versos

em negrito na transcrição abaixo. Porém, notem que, a primeira vista, numa análise tão

somente textual, seria possível relacionar os versos em negrito com as situações

narradas que os antecedem e julgar que, apesar do tempo verbal presente, o narrador

está encenando uma lembrança do passado, conforme acontece em outras passagens da

canção. A desambiguação das passagens só se opera se considerarmos a dimensão

sonora da canção em sua análise. Vejamos os exemplos:

(Exemplo 2)

Letra da Canção Acompanhamento


Musical
Cessa a base musical.
Iniciam-se acordes de
- Aí, é um assalto todo mundo pro chão, pro chão teclado, criando clima de
Sample suspense.
Batida forte sem
reverberação e som de
monitor cardíaco
Batida forte sem
- Aí filho da puta aqui ninguém tá de brincadeira
Sample reverberação e som de
não
monitor cardíaco
Batida forte sem
- Mas eu ofereço o cofre mano, o cofre, o cofre
Sample reverberação e som de
- Vamos lá que o bicho vai pegar
monitor cardíaco
Ladrões continuam
Pela primeira vez eu vi o sistema nos meu pés
falando ao fundo
Apavorei... desempenho nota dez
Narrador Batida forte sem
reverberação e som de
monitor cardíaco
Ladrões continuam
falando ao fundo
Narrador Dinheiro na mão o cofre já tava aberto
Batida forte sem
O segurança tentou ser mais esperto
reverberação e som de
monitor cardíaco
Ladrões continuam
falando
Narrador Então,
Sons de tiros
Foi defender o patrimônio do playboy
Batida forte sem
reverberação e som de
monitor cardíaco

Sons de tiros
Cuzão, Batida forte sem
Narrador
Não vai dar mais pra ser super-herói reverberação e som de
monitor cardíaco
Fim dos acordes de teclado
Sons de gritos
Se o seguro vai cobrir
Narrador Batida forte sem
He he, foda-se e daí?
reverberação e som de
monitor cardíaco
Sons de gritos ao fundo
Hã, o Guina não tinha dó Batida forte sem
Narrador
Se reagir, bum, vira pó reverberação e som de
monitor cardíaco
Sons de gritos ao fundo
Sinto a garganta ressecada Batida forte sem
Narrador
E a minha vida escorrer pela escada reverberação e som de
monitor cardíaco
Batida forte sem
Mas se eu sair daqui, eu vou mudar reverberação e som de
Narrador
Eu to ouvindo alguém me chamar monitor cardíaco
Respiração ofegante
Batida forte sem
reverberação e som de
Narrador Eu to ouvindo alguém me chamar
monitor cardíaco
Respiração ofegante
Batida forte sem
reverberação e som de
monitor cardíaco
Sons de respiração
ofegante, sirene policial,
risadas e, ao final, o grito
de uma mulher

INÍCIO DE NOVA ESTROFE

(Exemplo 3)

Letra da Canção
Acompanhamento Musical
Agora é tarde, eu já não podia mais Base musical acompanhada de batida forte
Parar com tudo, nem tentar voltar atrás sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Mas no fundo, mano, eu sabia
sem reverberação e som de monitor
Que essa porra ia zoar minha vida um dia
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Me olhei no espelho e não reconheci
sem reverberação e som de monitor
Estava enlouquecendo, não podia mais dormir
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Preciso ir até o fim
sem reverberação e som de monitor
Será que Deus ainda olha pra mim?
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Eu sonho toda madrugada
sem reverberação e som de monitor
Com criança chorando e alguém dando risada
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Não confiava nem na minha própria sombra
sem reverberação e som de monitor
Mas segurava a minha onda
cardíaco
Sonhei que uma mulher me falou,eu não sei o Base musical acompanhada de batida forte
lugar sem reverberação e som de monitor
Que um conhecido meu, quem?, ia me matar cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Precisava acalmar a adrenalina
sem reverberação e som de monitor
Precisava parar com a cocaína
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Não to sentindo meu braço
sem reverberação e som de monitor
Nem me mexer da cintura pra baixo
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Ninguém na multidão vem me ajudar
sem reverberação e som de monitor
Que sede da porra eu preciso respirar
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Cadê meu irmão?
sem reverberação e som de monitor
Eu to ouvindo alguém me chamar
cardíaco
Sons simultâneos de bebê chorando, de
sirene policial e de ambulância, risadas, e
uma respiração ofegante que vai ficando
cada vez mais forte. Cessa o
acompanhamento musical de base,
tornando-se mais evidentes a batida forte
sem reverberação, indicando o ritmo
cardíaco, e o som de eletrocardiograma.

INÍCIO DE NOVA ESTROFE

Tal como acontece no exemplo 1, o verso “Eu to ouvindo alguém me chamar”,

que fecha cada estrofe, é seguido pelo silêncio do narrador-personagem, também nos

exemplos 2 e 3. Este verso claramente sinaliza ao interlocutor um evento externo àquele

da narrativa que vinha em curso até o momento, chamando a atenção para as ações que

estão acontecendo ao mesmo tempo em que o narrador personagem conta a sua história.

No momento de respiro da canção, que segue o verso em questão, o narrador se cala e

os diversos efeitos de sampleagem vêm a primeiro plano, informando o ouvinte sobre o

cenário em que o personagem se encontra e os diversos eventos externos simultâneos

que estão ocorrendo ao redor dele. A partir destas pistas sonora/musicais, combinadas
com as informações em negrito nos versos, o ouvinte consegue construir a imagem de

um homem que está agonizando, caído no meio da rua, sendo socorrido por uma

ambulância, com uma multidão em volta, e na presença da polícia. Apenas ao final da

narrativa, no entanto, o ouvinte compreenderá que este cenário se deve ao fato do

personagem ter tomado um tiro. E o desfecho da toda a situação se dá também

sonoramente, com o eletrocardiograma sinalizando a morte do personagem, conforme

demonstrado na transcrição.

Em geral, ao longo de toda a canção, as mudanças de cenário, de tópico e tempo

narrativo não se operam linguisticamente. Tal fato aponta para uma diferença

importante no que tange às possibilidades de realização literária oral e escrita: o que na

escritura se opera por meio da explicitação discursiva, o rap integra em sua dimensão

sonora. Em “To ouvindo alguém em chamar”, os recursos de sampleagem criam a

ilusão de que o mundo não figura a título de simples representação, mas que ele se

apresenta concretamente, ou ainda, de que o rapper não fala sobre a realidade, mas de

dentro dela.

“Per le jeu de ses collages complexes e de ses échantillons (samplings)


variés, de ses montages en boucle et de ses superpositions, de ses
scratchings, de ses prévelèments de tout ordres, la mise en scène sonore,
inséparable de textes, accomplit une osmose du scène poétique et du réel
avec une prégnance qui échappe encore à l’image.” (BÉTHUNE, 1999: 47)

Segundo KL Jay, o DJ do grupo Racionais MC’s, em entrevista concedida a

mim, o recurso da sampleagem confere uma expressividade à base musical que vai além

da simples imitação ou ilustração sonora da situação narrada pelo canto, em que, por

exemplo, o MC pronunciaria a palavra “tiro” e sons de disparos seriam tocados

simultaneamente; os efeitos de sampleagem constroem uma narrativa própria, que

ocorre simultaneamente à narrativa falada. Os dois se complementam e, em sua opinião,


não há hierarquia entre elas. A atribuição de maior importância à letra ou à música

dependerá da audição de cada ouvinte.

No processo de construção da base musical das canções dos Racionais MC’s,

primeiro cria-se a base de acompanhamento e, só depois que a voz é colocada, que os

recursos de sampleagem são inseridos. Como o texto verbal cantado não comporta

explicações e contextualizações extensas, o DJ esclarece que cabe ao produtor de

determinado rap perceber e musicar “a parte da história que o MC não conta”. Assim, o

texto cantado não é simplesmente acompanhado por efeitos sonoros, ao contrário, sons

verbais e sons não-verbais fundem-se num evento performático literário que não é

dividido.

De um modo geral, os Racionais MC’s utilizam-se muito do efeito de

sampleagem de sons não musicais em seus raps. No entanto, há algumas canções que

são construídas inteiramente com o recurso da sampleagem de trechos de outras obras

musicais que se repetem durante toda a música, com poucas variações. Sobre esses raps,

KL Jay diz que a base musical é tão importante quanto nos outros, na medida em que é

ela que conduz o ouvinte para o texto. Em entrevista, o DJ me diz:

“Pra fazer o rap, a primeira coisa, a música tem que ser boa. E ela tem que
repetir. O cara ouve aquela base e fica ali, só prestando atenção nos sons,
pensando no que vem depois. Ele se envolve na repetição. É foda. Ele fica
ali... Quando a voz entra, ele [o ouvinte] já tá dentro da música, e começa a
prestar atenção no cara [o MC quando canta]. Só porque ele gosta da música
que ele consegue ouvir a idéia. Senão virava só discurso. A idéia tem que ser
boa, pra frente, mas a música tem que ser do caralho, se não a idéia boa não
serve pra nada.”

KL Jay relata ainda que os ritmos de fala e da música se integram de modo que

as sonoridades da voz e da base de acompanhamento tornam-se um só fluxo musical, e

que a atenção do ouvinte não se divide entre letra e música, mas dirige-se à interação
entre um e outro. O que seria este ato de voltar-se à forma do que é dito mais ou tanto

quanto ao que é de fato dito, senão a recepção poética?

Algumas considerações finais

Finnegan, em seu texto The How of Literature (2005), convida-nos a olharmos

os glossários e enciclopédias de literatura e a observarmos como muito pouco ou

mesmo nada é escrito a respeito dos complexos aspectos performativos dos textos

literários cujas formas principais de realização são a exibição pública no aqui e no

agora, pois seus autores baseiam-se na posição estereotipada de que literários são

aqueles trabalhos cujos pontos de partida e final de referência são a sua existência como

escritura. A autora frisa ainda que, quando mencionados, os aspectos performáticos

aparecem como irrelevantes diante da existência concreta e duradoura dos textos

escritos.

Uma visão de literatura que engloba a oralidade e a imediatez da performance

desafiou o paradigma da alta literatura como a norma pela qual todas as formas de arte

verbal são julgadas e permitiu uma maior valorização da realidade literária de gêneros

populares que se encontram fora do tradicional cânone europeu, como o rap, por

exemplo. Assim, os conceitos de literatura oral e de poesia oral abriram-nos para um

maior entendimento das diversas atividades de realização literária, levando-nos para

além da análise de textos escritos e oferecendo-nos um campo mais amplo de estudos

dos gêneros orais e literários.

A poesia oral põe em causa a suposta separação entre os recursos expressivos

linguísticos e paralinguísticos. Segundo Finnegan (2005), uma das principais

características da literatura oral é a sua multimodalidade. Ora, não poderia ser diferente,
uma vez que esta é também uma das qualidades de qualquer texto oral, formal, informal

ou poético. Para Urbano (1997), a expressividade, inerente à língua falada, se manifesta

não só por meios estritamente lingüísticos como também por outros meios de natureza

não linguística, conforme o esquema abaixo:

(URBANO, 1997: 122)

Para Finnegan (2005), deve ficar claro que aqueles que produzem artes literárias

performáticas fazem mais do que apenas enunciar palavras:

“They also play upon the flexible and remarkable instrument of the voce to
exploit a vast range of non-verbalized auditory devices of which the prosodic
that are up to a point notated within our literary texts – rhyme, alliteration,
assonance, rhythm, acoustic parallelisms – are only a small sample. There
are also subtleties of volume, pitch, tempo, intensity, repetition, emphasis,
length, dynamics, silence, timbre, onomatopoeia, and the multifarious non-
verbal ways performers can use sound to convey, for example, character,
dialect, humor, irony, atmosphere, or tension. And then there are all the
near-infinite modes of delivery: spoken, sung, recited, intoned, musically
accompanied or mediated, shouted, whispered; carried by single or multiple
or alternating voices. (…) It goes beyond the vocal too, huge as that whole
range is. Percussion and instrumental music can play a part too (…)”.
(FINNEGAN, 2005: 170-171)

A posição da autora levou-me a considerar que a poeticidade de um rap existe na

conjugação de um texto integrado a uma composição musical e, por isso, uma


abordagem que trabalhasse com o rap considerando-o como texto escrito não me

pareceu adequada para o entendimento das suas possibilidades de realização

estética/literária: sua análise e sua crítica devem ser empreendidas levando-se em conta

a sua dimensão sonora. Nesta perspectiva, a análise da interação entre o canto do rap e

os samples pareceu-me muito ilustrativa para demonstrar a qualidade multimodal da

obra poética oral e a importância dos aspectos paralinguísticos para a compreensão do

texto verbal.

Na obra dos Racionais MC’s, o sample, como ferramenta composicional da obra

musical, é utilizado de forma a atrair a atenção do ouvinte aos diversos elementos em

jogo na canção e ao modo como eles interagem na criação de uma mensagem poética.

Isto se dá pela intenção consciente do compositor, conforme relato de KL Jay, de

construir uma sequência sonora que seja prazerosa ao ouvinte, para que, assim, ele

possa centrar sua escuta nos modos como o rap se desenrola progressivamente, som a

som, incluindo-se aí a dimensão do canto. A partir, então, do prazer estético suscitado

pela canção, pela atenção dada à forma sob a qual ela se desenvolve, o ouvinte poderá

apreender o seu conteúdo e a sua mensagem, tal qual descreve Jakobson a respeito da

função poética da linguagem.

Ora, se a música constitui-se como esse elemento de mediação importante e, até,

indispensável, conforme salienta o DJ, entre ouvinte, o prazer experimentado na

recepção poética e a construção de sentidos, logo, os aspectos musicais e sonoros do rap

não poderão ser considerados elementos contingenciais adicionados à obra completa e

elaborada das letras, como argumenta Pate (2010).

Longe de se constituírem como aspectos secundários na composição dos raps dos

Racionais MC’s, os samples desempenham papel central nos modos pelos quais o

ouvinte constrói os sentidos do poema. As análises de “To ouvindo alguém me chamar”


demonstraram que as bases instrumentais utilizadas nas composições não conferem

apenas acompanhamento musical ao canto e nem servem de mera ilustração àquilo que

é expresso pela palavra, mas recobrem a música de sentidos que não estão

necessariamente dados no texto verbal. Uma vez que o rapper dispõe da tecnologia de

inserção de efeitos sonoros diversos, ele pode integrar à esfera musical informações que,

na literatura escrita, deveria dar-se por meios de explicitação discursiva. Notem como,

em Sou + Você, o grupo opera a passagem da noite para a manhã, sem utilizar nenhuma

palavra:

Duração do som Tipo de som


0’’ a 5’’ som de carro freando
6’’ a 8’’ som de tiros
7’’ a 16’’ som de cachorros latindo
9’’ a 15’’ som de carro saindo em arrancada
16’’ a 24’’ ((silêncio))
25’’ a 28’’ som de galo cantando
32’’ a 1’45’’ som de despertador tocando
44’’ a 1’47’’ base musical
46’’ a 1’45 canto do rap por Mano Brown

Não quero com isso dar a entender que o texto fora relegado a um lugar de

segunda importância. Ao contrário, não poderíamos compreender “literatura” sem que

este conceito nos remetesse à arte verbal. O fato é que, cada vez mais, o estudo

comparativo das práticas literárias ao redor do mundo tem levado estudiosos a

compreenderem que outras semioses podem co-ocorrer com a palavra, sem que isto

afete a percepção de seus produtores e receptores de que se trata de uma obra literária.

Exemplo disso é que, quando perguntado se era poeta, Mano Brown respondeu-

me assertivamente: “Eu faço rap. E rap é poesia.” À mesma pergunta, KL Jay


respondeu-me, em tom de brincadeira, que era o “poeta das pick-ups7”, já quando

perguntado se rap era poesia, respondeu-me séria e prontamente que sim, “o rap é a

poesia dos pretos”. Ao longo da pesquisa de campo realizada por mim também entre

receptores de rap nas periferias paulistanas, pude perceber que estes sujeitos envolvidos

com a cultura hip hop não consideram haver diferença alguma entre rap e poesia. A

dimensão sonora e musical do rap não o desqualifica, portanto, como um produto

literário. Ao contrário, abre as portas para que, aqueles interessados nas diversas formas

pelas quais a literatura se realiza, possam entender os modos plurais pelos quais ela é

produzida e recebida.

Bibliografia

FINNEGAN, R. Oral poetry. Cambridge: Cambridge University Press. 1977.

_____________. The How of Literature. In: Oral Tradition - vol 20. 2005.

_____________. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance? In: MATOS, C. N.;
TRAVASSOS, E.; MEDEIROS, F. T. Palavra Cantada: Ensaios sobre Poesia, Música e Voz
(pp. 15-43). Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

MANO BROWN. Jesus Chorou. CD. Nada Como Um Dia Após O Outro Dia. Racionais MC’s.
Gravadora Cosa Nostra. São Paulo, 2002.

______________. Sou Mais Você. CD. Nada Como Um Dia Após O Outro Dia. Racionais
MC’s. Gravadora Cosa Nostra. São Paulo, 2002.

______________. To Ouvindo Alguém Me Chamar. CD. Sobrevivendo no Inferno. Racionais


MC's. Gravadora Cosa Nostra. São Paulo, 1997.

PATE, A. In the heart of the beat: The poetry of Hip Hop. Plymouth: The Scarecrow Press, Inc.,
2010

SCHLOSS, J. G. Making beats: the art of sample-based hip-hop. Middletown: Wesleyan


University Press, 2004.

TORDJMAN, G. Sept remarques pour une esthétique du sample. Technikart - vol 20. 1998.

URBANO, H. A expressividade na língua falada de pessoas cultas. In: Preti, D. O discurso oral
culto (pp. 115-139). São Paulo: Humanitas, 1997.

7
Pick-up é um dos nomes dados ao toca-discos.
ZUMTHOR, P. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

___________. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat
e Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec, 1997

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