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Uma análise das relações entre texto e música no rap dos Racionais MC’s
Marília Gessa
Unicamp
mariliagessa@gmail.com
Resumo
O presente trabalho dedica-se ao estudo do rap como um gênero poético oral, atual e
corrente na sociedade brasileira. O rap traz em comum com outras poesias orais a sua
natureza performática, que prescinde da co-ocorrência de multisemioses e,
fundamentalmente, da voz. Na performance dos raps dos Racionais MC’s, tecnologias
sonoras, como scratches e samples, combinadas ao uso da linguagem verbal, teatralizam
as situações narradas pelo canto. O artigo empreenderá uma breve análise de “To
ouvindo alguém me chamar”, um rap em que as bases instrumentais utilizadas não
conferem apenas acompanhamento musical ao canto e nem servem de mera ilustração
àquilo que é expresso pela palavra, mas recobrem a música de sentidos que não estão
necessariamente dados no texto verbal.
Introdução
brasileiro, com especial ênfase sobre o seu principal expoente, o grupo Racionais MC’s.
O estudo deste artefato híbrido, como é toda canção popular, tem me desafiado a
encontrar ferramentas adequadas para sua análise. E esta busca foi o que me motivou a
Uma vez que a canção tem sido frequentemente entendida pelo ambiente
acadêmico como uma combinação de música e poesia - tomadas aí como duas artes
distintas, desempenhando cada uma o seu papel-, as abordagens em relação ao seu
para páginas escritas, por meio da transcrição verbal ou musical, ela sofre um processo
parece ter sido somente nesta forma textual (e artificial) que a canção pôde se tornar um
abordagem foi o tratamento da letra da canção como poema escrito. Em seu livro mais
recente, In the heart of the beat: The Poetry of Rap, Alex Pate adota este enfoque,
estereotipadas acerca de seu funcionamento como canção” 1 (PATE, 2010: 3). A fim de
analisar os modos de expressão poética inerentes ao rap, o autor acredita ser necessário
isolar a letra do rap de seus aspectos performáticos, inclusive da voz do MC, isto
porque, em sua visão, é a letra que define o gênero rap e seu modo de existência.
“I claim that the poetry of rap constitutes a whole, and that the music,
or the beat of rap, is an addition to that whole. (...) More to the point,
I argue that when it comes to rap, the words are more important than
the music. And to further complicate this challenge, I am also
suggesting that, in order to deal with the literary achievements of a
1
Tradução minha. No original: “I want to liberate the poetry of rap – the literature of hip hop – from the
stereotyped expectations of their function as ‘songs’”.
given rap/poem, we must dismiss the actual sound of the poet’s
voice.” (PATE, 2010:3).
Nas análises empreendidas em sua obra, Pate (2010) procura demonstrar que a
letra de um rap, bem como sua significação e valor literário são independentes da voz e
instância, é somente por meio de sua leitura que se pode efetivamente interpretar e
literatura é feita de textos escritos, pois a letra de rap apresenta-se para ele como objeto
como um objeto tangível, disponível para análise e releitura. Tal ponto de vista tende a
considera que as canções, assim como outras formas poéticas orais, não são
de poderem ser reproduzidas como textos escritos, mas sim por possuírem
multisemioses, que definem a sua natureza performática. E, desse modo, acredito que
para discutirmos a natureza literária/poética das canções, uma distinção mais frutífera
para este trabalho seria aquela entre poesia escrita e poesia oral, pois gêneros literários
importância primordial tanto para a apreciação quanto para a análise da canção como
Vale ressaltar, no entanto, que ao propor esta distinção, não estou tomando como
verdade que a escrita não possa participar dos processos de criação e até mesmo de
transmissão e performance de um poema oral2. Ao contrário do que se costumava
acreditar, um poema não é considerado oral somente se for composto sem que se recorra
que todas as letras de sua autoria no disco Nada Como Um Dia Após O Outro Dia
foram compostas por escrito, no entanto sem perder de vista o fato de que elas deveriam
ser performatizadas para o público. Cada verso era cantarolado ao mesmo tempo em que
era escrito, para que se adequasse ao ritmo e à métrica do rap. Além disso, cada palavra
2
Finnegan (2005) observa que a escrita pode interagir com a realização oral literária por meio de
transcrição, cartões de memória, anotações, versões impressas de poemas orais, roteiros e até mesmo
como ferramenta para que a audiência possa compreender melhor a performance durante o seu
desenvolvimento, além de múltiplas combinações e seqüências destas e outras formas de interação
escrita/oralidade. Estudos sobre oralidade que vão desde a performance oral de poemas na Corte Imperial
Japonesa e na Europa Medieval até as recitações de poesia contemporânea, performances de canções
populares e produções de rádio e televisão revelam que as formações textuais nestes contextos
intercalam-se entre os modos orais e letrados e podem participar de ambos.
3
Os freestyles são raps improvisados no momento da performance.
performance de um poema (cf. BÉTHUNE, 1999). Assim, embora Mano Brown escreva
as letras de seus raps, ele nunca perde de vista o fato de que elas serão interpretadas em
shows e transmitidas por CDs na forma de canções, ou seja, que seu verdadeiro modo
de existência é o oral, o que quer dizer que seus raps não têm sua existência na forma de
momentos distintos, fica claro no depoimento de Mano Brown que estes são eventos
Mano Brown inicia o processo de composição pela audição de uma base instrumental. É
ela que guiará toda a concepção da letra, desde o tema até a escolha de palavras, de
métrica e o ritmo sugeridos pela base instrumental. E é por isso que, mesmo antes do
início da escrita da letra, o compositor “já imagina o rap pronto”, ele opera com a
conjugação simultânea dos três eixos principais do rap (música, letra e canto) e seus
musical e a visão do produto final aos olhos de Mano Brown não é segmentado.
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Programa de Internet, disponível em www.doladodeca.uol.com.br
Compor um rap exige o esforço do autor em operar com essas três dimensões e
da poesia oral que têm entendido este gênero como um objeto multidimensional, ao
invés de puramente oral. Isto porque os gêneros orais, cada qual com sua própria
bem como na canção popular em geral, texto e música compõem facetas superpostas de
um evento performático que não pode ser dividido (cf. FINNEGAN, 2008).
gênero oral (e multimodal), não reside apenas em sua realidade verbal, mas na
análise dos raps apenas ao seu conteúdo verbal, na forma de poemas escritos, corre-se o
tornado uma abordagem cada vez mais reconhecida para a análise das criações poéticas
orais e é esta que empregarei nas análises do rap “To ouvindo alguém me chamar” dos
Longe de poder expor todos os modos pelos quais o canto falado de Mano
Brown interage com a base instrumental e quais os significados que emergem dessa
e da inserção de sons não musicais que dirigem, muitas vezes, a interpretação do texto
verbal.
As relações entre texto e música nos raps dos Racionais MC’s: o caso do sample
tecnologia sonora. A metrificação dos versos não obedece à contagem de sílabas, mas
ao pulso que marca o ritmo da música, na maioria das vezes, numa subdivisão
quaternária (4/4). Em relação aos raps dos Racionais MC’s, tal fato pode elucidar
porque Mano Brown utiliza a base instrumental como guia métrico para a criação de
suas letras.
mesma sequência musical do início ao fim da canção, por isso, raras vezes um rap
que, nos momentos em que não há uma base instrumental acompanhando o canto,
podem ocorrer tais variações e mudanças, pois sem a rigidez rítmica da instrumental, o
intérprete ganha maior liberdade para cantar. A introdução de Jesus Chorou (MANO
vinil.
manipulação sonora.
de samples que podem provir tanto de outros raps quanto de músicas pertencentes a
outros gêneros musicais. Os samples podem ser ainda derivados de um material não
musical, tais como diálogos, sons de sirene, choros, tiros, conforme veremos.
nota como a menor unidade da linguagem musical. Segundo Tordjman (1998), o sample
definiu uma mudança brutal no alfabeto e no vocabulário musicais, dos quais a nota
deixou de ser componente, e isso não pôde ocorrer sem que houvesse mudanças nas
itinéraire esthétique qui part de la théorie pour aller à l’objet.” (BÉTHUNE, 1999:52).
materialidades já existentes.
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O produtor de música rap é aquele reponsável pela montagem em estúdio das canções. É ele quem une a
base de acompanhamento musical (que pode ser de sua autoria ou não) à letra cantada pelo MC e dá o
acabamento final aos raps, inserindo scratches, samples e outros efeitos (cf. SCHLOSS, J., 2004).
“La pratique de l’échantillonnage prive l’oeuvre de sa dimension
spéculative: la démarche créative y demeure exclusivement empirique. (...)
La manifestation sensible de l’oeuvre est desormais déterminée par
l’habilité d’un tâtonnement expérimental où prévaut le sensible, et dont la
mise en oeuvre s’apparente à une sorte de bricolage” (BÉTHUNE,
1999:52).
Na tradição musical ocidental, historicamente, sons que não fossem oriundos de
contribuiu decididamente para a mudança deste paradigma, uma vez que os samples
harmonia, condução melódica, contraponto, entre outras e, com isso, o ruído passa a ser
um som musicável. Deste modo, o rap pode extrair sons de diversas fontes, oriundas ou
e este fato é fundamental para o entendimento da importância que a porção musical tem
poderosos recursos de teatralização dos cenários e das situações narradas nas letras,
6
Se acompanharmos a história da música ocidental, notaremos profundas mudanças no âmbito do fazer
musical a partir do advento da gravação. Desde os primeiros experimentos com a música concreta, muitas
iniciativas contribuíram decisivamente para o uso de sons provenientes de instrumentos musicais não-
convencionais em composições, tanto na esfera erudita como popular.
A narrativa é construída numa estrutura temporal não-linear, permeada por
narrador passasse diante de seus olhos, entre o momento em que ele leva o tiro até o seu
pela fala “Aí, mano, o Guina mandou isso aqui pra você”, proferida por um personagem
transcrição:
(Exemplo 1)
Conforme salienta Bentes (2007), este recurso de começar um relato por uma
das cenas do acontecimento final da narrativa (in media res) é pouco utilizado em letras
de música em geral. Porém, o tempo de mais de onze minutos de “To ouvindo alguém
presente pelo narrador e sobre aqueles fatos que remetem a lembranças do passado.
Guina mandou isso aqui pra você”, e até o último verso cantado pelo MC (conforme
transcrição acima), o compositor integra à base musical um som que reproduz o ruído
ritmo cardíaco do narrador enquanto ele agoniza, e por isso essas batidas são
Ainda que, de início, o ouvinte não saiba que o narrador fora vítima de um
personagem está sendo monitorado, o que sugere que ele esteja sendo atendido por
médicos num pronto-socorro ou por paramédicos em uma ambulância. Para tornar esta
tiveram o cuidado de fazer com que esse som se movimentasse pelo pan estéreo, ou
seja, que o som alternasse de uma caixa de som para a outra, reproduzindo o movimento
morte do personagem.
momentos em que o narrador canta sobre o seu momento presente, conforme os versos
em negrito na transcrição abaixo. Porém, notem que, a primeira vista, numa análise tão
narradas que os antecedem e julgar que, apesar do tempo verbal presente, o narrador
(Exemplo 2)
Sons de tiros
Cuzão, Batida forte sem
Narrador
Não vai dar mais pra ser super-herói reverberação e som de
monitor cardíaco
Fim dos acordes de teclado
Sons de gritos
Se o seguro vai cobrir
Narrador Batida forte sem
He he, foda-se e daí?
reverberação e som de
monitor cardíaco
Sons de gritos ao fundo
Hã, o Guina não tinha dó Batida forte sem
Narrador
Se reagir, bum, vira pó reverberação e som de
monitor cardíaco
Sons de gritos ao fundo
Sinto a garganta ressecada Batida forte sem
Narrador
E a minha vida escorrer pela escada reverberação e som de
monitor cardíaco
Batida forte sem
Mas se eu sair daqui, eu vou mudar reverberação e som de
Narrador
Eu to ouvindo alguém me chamar monitor cardíaco
Respiração ofegante
Batida forte sem
reverberação e som de
Narrador Eu to ouvindo alguém me chamar
monitor cardíaco
Respiração ofegante
Batida forte sem
reverberação e som de
monitor cardíaco
Sons de respiração
ofegante, sirene policial,
risadas e, ao final, o grito
de uma mulher
(Exemplo 3)
Letra da Canção
Acompanhamento Musical
Agora é tarde, eu já não podia mais Base musical acompanhada de batida forte
Parar com tudo, nem tentar voltar atrás sem reverberação e som de monitor
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Mas no fundo, mano, eu sabia
sem reverberação e som de monitor
Que essa porra ia zoar minha vida um dia
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Me olhei no espelho e não reconheci
sem reverberação e som de monitor
Estava enlouquecendo, não podia mais dormir
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Preciso ir até o fim
sem reverberação e som de monitor
Será que Deus ainda olha pra mim?
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Eu sonho toda madrugada
sem reverberação e som de monitor
Com criança chorando e alguém dando risada
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Não confiava nem na minha própria sombra
sem reverberação e som de monitor
Mas segurava a minha onda
cardíaco
Sonhei que uma mulher me falou,eu não sei o Base musical acompanhada de batida forte
lugar sem reverberação e som de monitor
Que um conhecido meu, quem?, ia me matar cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Precisava acalmar a adrenalina
sem reverberação e som de monitor
Precisava parar com a cocaína
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Não to sentindo meu braço
sem reverberação e som de monitor
Nem me mexer da cintura pra baixo
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Ninguém na multidão vem me ajudar
sem reverberação e som de monitor
Que sede da porra eu preciso respirar
cardíaco
Base musical acompanhada de batida forte
Cadê meu irmão?
sem reverberação e som de monitor
Eu to ouvindo alguém me chamar
cardíaco
Sons simultâneos de bebê chorando, de
sirene policial e de ambulância, risadas, e
uma respiração ofegante que vai ficando
cada vez mais forte. Cessa o
acompanhamento musical de base,
tornando-se mais evidentes a batida forte
sem reverberação, indicando o ritmo
cardíaco, e o som de eletrocardiograma.
que fecha cada estrofe, é seguido pelo silêncio do narrador-personagem, também nos
da narrativa que vinha em curso até o momento, chamando a atenção para as ações que
estão acontecendo ao mesmo tempo em que o narrador personagem conta a sua história.
que estão ocorrendo ao redor dele. A partir destas pistas sonora/musicais, combinadas
com as informações em negrito nos versos, o ouvinte consegue construir a imagem de
um homem que está agonizando, caído no meio da rua, sendo socorrido por uma
demonstrado na transcrição.
narrativo não se operam linguisticamente. Tal fato aponta para uma diferença
escritura se opera por meio da explicitação discursiva, o rap integra em sua dimensão
ilusão de que o mundo não figura a título de simples representação, mas que ele se
apresenta concretamente, ou ainda, de que o rapper não fala sobre a realidade, mas de
dentro dela.
mim, o recurso da sampleagem confere uma expressividade à base musical que vai além
da simples imitação ou ilustração sonora da situação narrada pelo canto, em que, por
recursos de sampleagem são inseridos. Como o texto verbal cantado não comporta
determinado rap perceber e musicar “a parte da história que o MC não conta”. Assim, o
texto cantado não é simplesmente acompanhado por efeitos sonoros, ao contrário, sons
verbais e sons não-verbais fundem-se num evento performático literário que não é
dividido.
sampleagem de sons não musicais em seus raps. No entanto, há algumas canções que
musicais que se repetem durante toda a música, com poucas variações. Sobre esses raps,
KL Jay diz que a base musical é tão importante quanto nos outros, na medida em que é
“Pra fazer o rap, a primeira coisa, a música tem que ser boa. E ela tem que
repetir. O cara ouve aquela base e fica ali, só prestando atenção nos sons,
pensando no que vem depois. Ele se envolve na repetição. É foda. Ele fica
ali... Quando a voz entra, ele [o ouvinte] já tá dentro da música, e começa a
prestar atenção no cara [o MC quando canta]. Só porque ele gosta da música
que ele consegue ouvir a idéia. Senão virava só discurso. A idéia tem que ser
boa, pra frente, mas a música tem que ser do caralho, se não a idéia boa não
serve pra nada.”
KL Jay relata ainda que os ritmos de fala e da música se integram de modo que
que a atenção do ouvinte não se divide entre letra e música, mas dirige-se à interação
entre um e outro. O que seria este ato de voltar-se à forma do que é dito mais ou tanto
mesmo nada é escrito a respeito dos complexos aspectos performativos dos textos
agora, pois seus autores baseiam-se na posição estereotipada de que literários são
aqueles trabalhos cujos pontos de partida e final de referência são a sua existência como
escritos.
desafiou o paradigma da alta literatura como a norma pela qual todas as formas de arte
verbal são julgadas e permitiu uma maior valorização da realidade literária de gêneros
populares que se encontram fora do tradicional cânone europeu, como o rap, por
características da literatura oral é a sua multimodalidade. Ora, não poderia ser diferente,
uma vez que esta é também uma das qualidades de qualquer texto oral, formal, informal
não só por meios estritamente lingüísticos como também por outros meios de natureza
Para Finnegan (2005), deve ficar claro que aqueles que produzem artes literárias
“They also play upon the flexible and remarkable instrument of the voce to
exploit a vast range of non-verbalized auditory devices of which the prosodic
that are up to a point notated within our literary texts – rhyme, alliteration,
assonance, rhythm, acoustic parallelisms – are only a small sample. There
are also subtleties of volume, pitch, tempo, intensity, repetition, emphasis,
length, dynamics, silence, timbre, onomatopoeia, and the multifarious non-
verbal ways performers can use sound to convey, for example, character,
dialect, humor, irony, atmosphere, or tension. And then there are all the
near-infinite modes of delivery: spoken, sung, recited, intoned, musically
accompanied or mediated, shouted, whispered; carried by single or multiple
or alternating voices. (…) It goes beyond the vocal too, huge as that whole
range is. Percussion and instrumental music can play a part too (…)”.
(FINNEGAN, 2005: 170-171)
estética/literária: sua análise e sua crítica devem ser empreendidas levando-se em conta
a sua dimensão sonora. Nesta perspectiva, a análise da interação entre o canto do rap e
texto verbal.
jogo na canção e ao modo como eles interagem na criação de uma mensagem poética.
construir uma sequência sonora que seja prazerosa ao ouvinte, para que, assim, ele
possa centrar sua escuta nos modos como o rap se desenrola progressivamente, som a
pela canção, pela atenção dada à forma sob a qual ela se desenvolve, o ouvinte poderá
apreender o seu conteúdo e a sua mensagem, tal qual descreve Jakobson a respeito da
Racionais MC’s, os samples desempenham papel central nos modos pelos quais o
apenas acompanhamento musical ao canto e nem servem de mera ilustração àquilo que
é expresso pela palavra, mas recobrem a música de sentidos que não estão
necessariamente dados no texto verbal. Uma vez que o rapper dispõe da tecnologia de
inserção de efeitos sonoros diversos, ele pode integrar à esfera musical informações que,
na literatura escrita, deveria dar-se por meios de explicitação discursiva. Notem como,
em Sou + Você, o grupo opera a passagem da noite para a manhã, sem utilizar nenhuma
palavra:
Não quero com isso dar a entender que o texto fora relegado a um lugar de
este conceito nos remetesse à arte verbal. O fato é que, cada vez mais, o estudo
compreenderem que outras semioses podem co-ocorrer com a palavra, sem que isto
afete a percepção de seus produtores e receptores de que se trata de uma obra literária.
Exemplo disso é que, quando perguntado se era poeta, Mano Brown respondeu-
perguntado se rap era poesia, respondeu-me séria e prontamente que sim, “o rap é a
poesia dos pretos”. Ao longo da pesquisa de campo realizada por mim também entre
receptores de rap nas periferias paulistanas, pude perceber que estes sujeitos envolvidos
com a cultura hip hop não consideram haver diferença alguma entre rap e poesia. A
literário. Ao contrário, abre as portas para que, aqueles interessados nas diversas formas
pelas quais a literatura se realiza, possam entender os modos plurais pelos quais ela é
produzida e recebida.
Bibliografia
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_____________. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance? In: MATOS, C. N.;
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7
Pick-up é um dos nomes dados ao toca-discos.
ZUMTHOR, P. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
___________. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat
e Maria Inês de Almeida. São Paulo, Hucitec, 1997