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Música e Músicos no Paraná: sociedade, estéticas e memória. v.

1,
Curitiba: Artembap, 2014.

PENALVA, UM PÓS-MODERNISTA NA MÚSICA POPULAR:


ANÁLISE DO ARRANJO DA CANÇÃO CARINHOSO

Eduardo Fabrício Frigatti1


edufrigatti@yahoo.com.br

Resumo
O presente artigo discute os procedimentos composicionais empregados por José Penalva,
na elaboração de seu arranjo da canção Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. Para tanto,
faz uso dos conceitos de forma clássica desenvolvidos por Willian Caplin a fim de
compreender como elementos tonais livres se associam às características perceptivas das
funções formais para garantir inteligibilidade da obra.

Palavras-chave: Pixinguinha; José Penalva; Funções formais; Arranjo

PENALVA, A POSTMODERN IN POPULAR MUSIC:


ANALYSIS OF THE ARRANGEMENT OF THE SONG CARINHOSO

Abstract
This paper studies the procedures used by the Brazilian composer José Penalva for
elaboration of his arrangement of the song Carinhoso, by Pixinguinha and Braguinha. He
took into account the concepts of classical form developed by Willian Caplin, in order to
understand how free tonal elements could be associated with perceptual features of formal
functions to ensure the work’s intelligibility.

Keywords: Pixinguinha; José Penalva; Formal functions; Arrangement

1
Compositor e violonista, é formado em musicoterapia pela Faculdade de Artes do Paraná (Fap) e licenciado
em Música pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). Atualmente, com orientação do Prof. Dr.
Maurício Dottori, cursa o Mestrado em Música do programa de pós-graduação da Universidade Federal do
Paraná.
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A década de oitenta marca uma mudança na escrita do compositor José Penalva em


direção às premissas pós-modernas2, sendo que, neste período, a maior parte de sua
produção foi destinada para coro a cappella3. Dentre estas, algumas são arranjos de músicas
do cancioneiro popular brasileiro, e utilizam procedimentos composicionais da música de
vanguarda orientados pelos ideais estéticos daquele momento. No Catálogo Comentado da
Obra de José Penalva – organizado pela Dra. Elisabeth Seraphim Prosser com auxílio do
próprio compositor –, o arranjo de Carinhoso, de 1983, é descrito como tonalmente livre
sendo composto por uma “melodia tonal com elaboração harmonicamente livre. Acentuada
presença de acordes de sétima, nona, décima-primeira e décima-terceira justapostos e sem
resolução. Cromatismo, acordes com notas agregadas. Tratamento polifônico imitativo”
(PROSSER, 2000. p. 161).
Em um gênero inerentemente tonal como o choro, de que maneira os elementos
acima podem ser utilizados sem prejuízo à inteligibilidade formal ou em favor dela? Sem
dúvida a melodia – dada de antemão – deve ajudar o ouvinte a compreender a peça, mas,
em seu arranjo, Penalva respeita as características perceptivas próprias da fraseologia do
choro?
O choro surgiu em festas promovidas por funcionários públicos que compunham a
classe média carioca no final do século XIX e início do século XX. Tais festas de salão eram
animadas com polcas, schottiches, mazurcas, valsas e quadrilhas (TINHORÃO, 1997). Os
músicos populares tocavam essas danças europeias com sotaque exacerbadamente
sentimental ligado à música portuguesa e à malícia rítmica herdada da cultura africana. A

2
Em 1972, o compositor José Penalva participou de um evento, na cidade de Roma, que discutia a vanguarda
dos anos cinquenta. Segundo ele, nesse encontro, que contava com a presença de compositores como J. Cage,
P. Boulez e L. Berio, chegou-se à conclusão de que havia um hermetismo muito grande na música e que essa
era a principal causa da sua falta de aceitação e compreensão por parte do público (PENALVA apud PROSSER,
2000). Buscando uma aproximação, muitos compositores começaram a rever sua escrita e abandonaram as
técnicas antes empregadas ou reincorporaram elementos da música tonal, modal, popular entre outros
procedimentos. Essa nova produção musical – de caráter múltiplo, pluralista e híbrido – passou a ser
denominada de pós-moderna (BUCKNIX, 1998; SALLES, 2003).
3
Essas peças podem ser dividas em dois grupos: de caráter puramente estético, em que o compositor é “ele
mesmo” e escreve com maior liberdade, usando várias técnicas distintas; e outra de caráter estético e de
entretenimento, na qual o compositor aproveita elementos folclóricos ou populares e faz uso moderado de
procedimentos legados da fase anterior. Em ambos casos, o fim maior do trabalho composicional é a busca de
maior expressividade tentado uma maior comunicação com o ouvinte (PROSSER, 2000).
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maneira ‘chorada’ com que os músicos ‘amoleciam’ as danças é uma das prováveis origens
para a ‘choro’ (CAZES, 2005).
A partir do século XVIII, muitas danças de salão das cortes europeias adotaram a
forma rondó. Posteriormente, tal estrutura formal se tornaria uma das características mais
marcantes do choro (ALMADA, 2006, p. 9).

O rondó da polca-choro cristalizou-se numa forma-padrão que consiste,


geralmente, em três partes com 16 compassos cada. A primeira (ou parte A) é a
principal [...]. É apresentada quatro vezes durante a execução de um choro: as duas
primeiras em ritornelo, na abertura, as duas outras intercalando as entradas das
partes B e C (que também são apresentadas com as suas respectivas repetições
[...]. Temática e motivicamente falando, as três partes, na maioria das vezes, têm
grande autonomia, soando como se fossem três choros independentes, sem fortes
ligações de parentesco). Na verdade, os principais elementos de coesão entre as
partes (além da estrutura formal recorrente) são as relações mútuas entre as
tonalidades.

No choro, as estruturas de período e de sentença resumem quase a totalidade de


possibilidades de construção fraseológica, havendo o predomínio da primeira. Muitas de
suas seções, estruturadas tanto como período ou como sentença, apresentam normalmente
quatro frases de quatro compassos cada. Em geral, cada frase tem uma função4 baseada em
sua condução harmônica (ALMADA, 2006).
Da mesma maneira que o choro teve em sua gênese a estrutura periódica da dança,
as primeiras sonatas do estilo pré-clássico herdaram a forma binária e a periodicidade frásica
das danças barrocas, acrescentando a elas a concepção dramática da estrutura formal – tão
cara ao classicismo. Essa simetria estrutural gera um nível de independência das frases,
permitindo às formas5 clássicas uma estruturação baseada na articulação entre as frases
(ROSEN, 1976).
O musicólogo norte-americano William Caplin (1998) afirma haver quatro de tipos de
tema6 comuns no classicismo: sentença, período, pequena ternária e tema híbrido. Cada um

4
Almada discute que tais funções tendo como parâmetro de construção o período, já que, segundo o autor,
trata-se da estrutura mais comum no choro.
5
Rosen (1976) usa o termo estilo clássico no lugar de forma clássica, pois, segundo ele, a teorização formal do
classicismo se deu a posteriori. Ainda, assim, o autor do presente artigo preferiu usar a palavra forma para
evitar discussões e explicações semânticas dispensáveis no momento.
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Não se deve confundir motivo temático com tema. Para Caplin o tema é uma unidade estrutural constituída
por um conjunto de funções de início, meio e fim.
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deles apresenta características próprias, sendo primordial para sua clareza o tipo de
condução harmônica empregada.
Sem se prolongar demasiadamente na questão, é possível traçar algumas analogias
entre o choro e as obras classicistas: origem da forma em ambos, suas estruturas e o
tratamento motívico. Essas similaridades tornam possível a utilização dos conceitos
desenvolvidos por Caplin, originalmente destinados à música erudita do período clássico, no
presente estudo. Em resumo, suas conceituações nos parecem mais apropriadas, pois:
enfatizam o papel das progressões harmônicas locais como determinantes da forma;
distinguem entre função formal7 e estrutura de agrupamento8; reduzem a importância do
conteúdo motívico como critério de definição formal, embora o tratamento desse contribua
para funcionalidade formal; mesmo estritas, suas categorizações formais podem ser
aplicadas de modo flexível; a teoria é descritiva e empírica (CAPLIN, 1998).

CARINHOSO, DE PIXINGUINHA

Carinhoso foi composta por Pixinguinha9 em 1917. Por possuir um esquema formal
atípico para os choros da época, o compositor não a gravou nem a tocou em suas
apresentações. Apenas em 1928, registrou em disco esse choro. Em 1936, a pedido da
cantora e atriz Heloísa Helena10, Braguinha11 criou – às pressas – versos para o choro de
Pixinguinha. No ano seguinte, Orlando Silva12, acompanhado por Pixinguinha e sua

7
“O papel específico desempenhado por uma passagem musical em particular na organização formal do
trabalho. Geralmente expressa uma sensação temporal de começo, meio, fim, antes-do-começo, ou depois-do-
fim. Mais especificamente, pode expressar uma ampla variedade de características e relações formais”
(CAPLIN, 1998, p. 254-255).
8
Caplin (1998, p. 255) entende como uma “organização compartimentada, perceptivelmente significante em
um espaço de tempo (grupo, unidade, parte, seção etc.) em qualquer ou todo nível hierárquico em um
movimento”.
9
Alfredo da Rocha Vianna Filho, conhecido como Pixinguinha (1897-1973), foi um flautista, saxofonista,
compositor e arranjador brasileiro.
10
Heloísa Helena de Almeida Lima (1917-1999) foi uma atriz e cantora brasileira.
11
Carlos Alberto Ferreira Braga (1907-2006), conhecido como Braguinha e também como João de Barro, foi um
compositor brasileiro, famoso pelas suas marchas de carnaval.
12
Orlando Silva (1915-1978).
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orquestra, gravou a versão com letra. A partir de então, a canção ficou tão famosa que se
tornou um marco da cultura popular brasileira (SEVERINO; MELLO, 1998).
Do ponto de vista da análise formal13, dois aspectos chamam atenção na história
dessa canção: a estrutura atípica e a criação a posteriori de seus versos. No que tange à
primeira observação, como será analisado adiante, esse choro possui um esquema formal
ABAB, diferentemente do ABACA que era predominante na época. As suas seções, embora
obedeçam à simetria típica do estilo, são constituídas por uma sentença – menos estrita
devido à expansão de suas funções formais – e que constitui a parte A; um contrasting
middle mais uma sentença de dezesseis compassos que forma a parte B.
O segundo ponto é a razão para o autor deste trabalho evitar deliberadamente a
discussão mais profunda de qualquer relação entre palavra e música no que concerne à
forma. Não que os versos, criados muitos anos mais tarde do que a música, não tenham
influência nas sugestões pictóricas do arranjo em questão, mas suas funções parecem ligar-
se à clarificação ou turvamento da forma e da melodia em alguns trechos, ou como
elemento de contraste em outros. Contudo, a estrutura global não foi determinada pelos
versos, pois existia previamente.
Ao esquema formal original, além de realizar algumas alterações na repetição de A,
Penalva acrescenta no final da repetição do B uma estrutura baseada no material temático
de A. Portanto, podemos descrever a forma final do arranjo como: ABA’B’.
Toda seção A é uma única sentença de dezesseis compassos, assim como na canção
original. O que chama atenção a priori é o fato de Penalva ter escrito o arranjo com um início
tético, enquanto a transcrição o faz anacrústico (Ex. 1.1 e 1.2). A frase de apresentação, que
normalmente duraria quatro compassos, estende-se por oito. Para isso Pixinguinha repete a
mesma ideia básica quatro vezes: duas idênticas e duas transpostas, sendo uma dessas com
uma alteração na última nota.

13
Para auxiliar a discussão, será utilizada a transcrição que Almir Chediak (2004) fez da mesma peça. Essa
transcrição foi feita a partir da gravação de Orlando Silva e Pixinguinha, de 1937.
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Exemplo 1.1 – Frase de Apresentação - Arranjo de Penalva de Carinhoso (Pixinguinha)

Exemplo 1.2 - Frase de apresentação - original de Carinhoso (Pixinguinha)

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No início da transcrição, é possível constatar o que Caplin chama de prolongação da


tônica14, permanência na mesma função tonal que cria estabilidade e ausência de
movimento harmônico. No arranjo, Penalva mantém a mesma concepção, embora agregue
algumas dissonâncias ao trecho. O compositor campineiro também parece explorar um
pouco mais a tensão gerada pela chegada ao iii, inserindo uma pequena mudança no
acompanhamento do tenor, que prepara o clímax da dinâmica desse agrupamento (Ex. 1.1).
Durante toda a frase de apresentação, o pulso – no arranjo – é levemente ausente.
Talvez por isso Penalva tenha decidido não iniciar a peça com um compasso anacrústico.
Como fez, o arranjador consegue evitar que a melodia ataque o tempo forte a cada
compasso. Além disso, o impulso da melodia se desloca para o terceiro tempo. Tais
alterações rítmicas, aliadas à harmonia estática, ao pedal do baixo e aos movimentos
cromáticos das vozes intermediárias, geram uma leve sensação de flutuação com um tênue
acúmulo de energia até o final da frase de apresentação quando há um crescendo que
conduz a sequência harmônica que prevalecerá na função formal de continuação (Ex. 1.1).
O tratamento sequencial da melodia na frase subsequente também se dá no baixo
(Ex. 3). Este imita parcialmente a estrutura rítmica da melodia. Isso turva um pouco a
percepção da harmonia, mas não a sensação de sequência e aceleração do ritmo harmônico
– características fundamentais para a fragmentação que ocorre na função de continuação
(CAPLIN, 1998) (Ex. 3).

Exemplo 3 – Tratamento sequencial da melodia

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Quanto à tonalidade, a transcrição de Almir Chediak está em lá maior e o arranjo de Penalva em mib maior.
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Após a perda de energia, a soprano inicia a função continuação-cadencial sozinha,


com base na ideia rítmica inicial, que o baixo também utiliza (Ex. 3). A melodia transpõe esse
motivo – c – nos compassos seguintes, sugerindo uma sequência (Ex. 3, soprano). A
harmonia, após uma ascensão quase paralela no compasso 14, chega ao acorde de ré bemol
maior com sétima maior e nona maior, que se transforma em nona menor no compasso 16
ao chegar a si bemol (Ex. 4). Embora não haja um acorde de dominante, é possível ter a
sensação de resolução por duas razões: pela chegada muito clara, pela primeira vez, do
acorde de tônica – sem a terça; e pelo salto de quarta ascendente do baixo que precede a
tônica. Esse salto do si bemol ao mi bemol, que o baixo realiza, destaca-se em relação ao
movimento descendente por grau conjunto das outras vozes, além de ocorrer no tempo
fraco e sozinho, privilegiando sua escuta (Ex. 4).

Exemplo 4 – Cadência seção A

A primeira sentença, ou tema principal, embora polifônico, apresenta diversas


passagens em que as vozes se movem juntas, com o mesmo valor rítmico. Logo, pode-se
afirmar que há um predomínio de uma textura coral. Ressalta-se também o modo como
Penalva destaca a melodia em relação às outras vozes durante todo tema principal: ela está
na voz mais aguda; movimenta-se ou sobre pausas ou sobre notas com durações maiores; e,
o mais importante, somente ela tem letra, pois as demais vozes cantam em bocca chiusa.

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A seção B pode ser divida em dois grupos estruturantes: um contrasting middle e


uma sentença. Penalva muda a armadura de clave de todo o B e anota “Mais Agitado” para o
primeiro grupo estruturante, o que não ocorre na transcrição nem parece necessário, visto
que as harmonias dos temas seguintes claramente estão em torno do tom principal. O
trecho pode ser divido em duas frases. A primeira dessas frases se desenvolve sobre a
tonalização da mediante do tom principal; e a segunda prepara uma retransição para o tom
principal (Ex. 5.1).

Exemplo 5.1 - Contrasting middle

No arranjo, a primeira frase do contrasting middle é realizada quase totalmente pelas


vozes femininas, sendo que as masculinas entram apenas no final ligando essa frase à
próxima (Ex. 5.1). É a primeira vez que as demais vozes têm letra. Como a entrada das vozes
é em stretto, a inteligibilidade do texto diminui. Penalva faz um divise do soprano15, sendo
que a mezzo-soprano assume a melodia nos compassos 17 e 18 e a contralto nos compassos
18-19 (Ex. 5.1). Também é possível dizer que a melodia se encontra todo o tempo no
contralto, cabendo ao soprano, uma antecipação no compasso 17 e uma intervenção no
compasso 18 (5.1). Devido à trama polifônica, a condução harmônica dessa primeira frase
não é clara no arranjo, embora seja perceptível uma sugestão de outra região tonal.
A segunda frase (comp. 21-23) apresenta uma condução harmônica mais nítida em
relação à primeira. Na transcrição é possível perceber uma nova tonalização no V do tom

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Procedimento que repetirá adiante.
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principal. Essa nova tonalização permitirá a peça voltar à região tonal inicial. Nesse trecho do
arranjo é possível abstrair uma condução harmônica sugerida, sobretudo, pelas vozes
masculinas: (V) IV-V2-iii7 (ou mesmo I6) e iº7 (também pode ser entendido como viiº7/iii).
Esse acorde pode ser classificado como ornamental, pois adia a chegada ao I, que ocorrerá
no início da próxima estrutura, mas com alteração da terça.
Essas duas frases terminam no terceiro tempo do compasso 23, havendo uma clara
cisão com o que segue. Como visto, a passagem descrita apresenta grande contraste com o
que lhe precede em termos de dinâmica, conteúdo motívico, textura e estrutura. Segundo as
considerações de Caplin (1998) sobre a forma clássica, poder-se-ia classificar essa passagem
como contrasting middle, estrutura frequente em pequenas formas ternárias ou binárias. No
entanto, não há qualquer tentativa de recapitulação de A, o que caracteriza a pequena
forma binária.
As considerações acima apontam para um fato claro na audição da obra: a
instabilidade do referido trecho. Para Caplin (1998) o contrasting middle não é tão
estruturado quanto a seção anterior, o que lhe confere certa instabilidade. Tal instabilidade
é em grande parte oriunda principalmente da harmonia que pode apresentar progressões
sequências para reforçar a instabilidade harmônica ainda mais. Embora, no arranjo, a
instabilidade esteja apenas sugestionada pela melodia, visto que o tratamento polifônico
distorce a percepção da harmonia, é clara a sensação de instabilidade que se utiliza não só
do tratamento harmônico mais denso, mas também, por exemplo, pelas entradas iniciais
sucessivas que geram grande tensão no limiar do trecho, adensando a textura. Ao fim, há, ao
menos na transcrição, uma cadência perfeita, omitida no arranjo. Após essa cadência, uma
sétima menor é adicionada ao acorde final reintroduzindo o tom inicial. Tal procedimento
pode ocorrer na retransição do tom subordinado para o principal (CAPLIN, 1998).
A segunda parte da seção B é formada por uma introdução e uma sentença (Ex. 6.1).

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Ex. 6.1 – Segunda parte da seção B

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Há uma introdução do primeiro tema que vem após uma pequena cisão no compasso
23, aclarada pelo texto. Também é possível perceber um ganho de energia através da
ascensão melódica e a condução harmônica, que parte de um si bemol menor até chegar ao
viiº do tom principal. Na transcrição, a primeira frase tem oito compassos, mas no arranjo
apenas seis. Isso se deve à já mencionada alteração do compasso inicial e à contração
rítmica da frase: ‘dos braços meus’. Notória é a utilização, no antecedente, da segunda frase
da transição como acompanhamento. Prática comum em Haydn, sobretudo nos quartetos
(ROSEN, 1976). Esse procedimento também remete à função do violão de sete cordas no
conjunto típico de choro, ao realizar contracantos que ‘dialogam’ com a melodia (figura 6).
No arranjo, a função de continuação pode ser identificada na sequência melódica, na
sequência harmônica implícita da melodia e na fragmentação rítmica, mesmo que a
harmonia do acompanhamento não realize uma sequência, pois, do compasso 31 ao 33,
mantém uma estrutura de acorde semelhante que muda no compasso 34 para preparar a
função cadencial. Aliás, esse procedimento de paralelismo total ou parcial – como na
primeira sentença – é uma característica do tratamento harmônico empregado por Penalva
na função de continuação.
Há uma elisão entre a função de continuação e a função cadencial no verso “e só
assim então”. Nessa cadência, Penalva faz uma clara alusão ao acorde de Dominante. Antes
da chegada desse acorde (incompleto, mas perceptível), o arranjador conduz a harmonia a
uma vaga sensação de ii – embora esse se mostre alterado: la natural e, posteriormente, fá
sustenido no contralto, que retorna a fá natural no tenor (comp. 36, figura 6). O acorde de
dominante é introduzido apenas com sua tônica: si bemol, que se entende por três tempos.
De modo inesperado, Penalva passa a resolução melódica para o baixo. O longo tempo à
espera por essa resolução permite ao arranjador a troca de registro sem prejuízo à
inteligibilidade e sem causar estranheza, mas sim surpresa. O acorde de dominante está
invertido e com a quinta alterada um semitom abaixo (fab = mi). A força da resolução
melódica, ampliada pela inesperada troca de registro, junto ao rebaixamento da quinta,
garante a força atrativa do acorde mesmo estando invertido e sem a sétima. Nessa
passagem é nítida a concepção de melodia e acompanhamento, seguida por uma seção
polifônica. Assim, distinguem-se claramente as funções que a compõe.

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A seção B no arranjo não é simétrica na escrita, como se pode esperar em um choro


tradicional e como ocorre na transcrição. Isso se deve às alterações rítmicas empregadas
pelo arranjador. No entanto, a cisão no compasso 23 e a permanência prolongada em uma
única nota ao final da seção, compensam essa assimetria.
O final da seção B elide ao início de A’. A principal diferença desta para A, é o fato de
que nessa seção todas as vozes possuem letra. Tal procedimento aproxima os planos
hierárquicos das vozes, ressaltando a tensão entre elas, assim como sua polifonia (Ex. 7.1).

Exemplo 7.1 – Seção A’

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Também é possível notar a inserção de intervalos que aumentam a tensão harmônica


em determinados trechos (Ex. 7.1). Mas a modificação intervalar mais chamativa ocorre no
início da cadência. Ao descer meio tom, Penalva nega o tom mi bemol maior predominante
na melodia da canção. E, nesse caso, negá-lo – onde ele quase sempre esteve claro – é
reafirmá-lo indiretamente (Ex. 7.2).

Exemplo 7.2 – Mudança da cor tonal por alteração do modo sugerido

Após a repetição ipsis litteris de B até o compasso 36, Penalva acrescenta, ao


fechamento dessa seção, uma extensão cadencial com uma cadência evadida que mantém
em suspenso a resolução. Essa extensão inicia com o baixo, por meio de imitação,
executando o si bemol em oitava com o soprano. Esse, após um decréscimo de energia, não
canta o final do verso que se esperava, mas reintroduz a ideia básica do tema principal
modificado. Em seguida, o baixo se dirige a sol bemol, concretizando a cadência evadida ao
dar início a um novo material que mantém em suspensão o precedente.
Durante os compassos seguintes (Ex. 8.2), há um grande pedal sobre o qual é
repetida a ideia básica modificada. Somente no compasso 46b o pedal é retirado junto com
a interrupção das demais vozes, restando apenas o soprano. Após três tempos de destaque
do soprano, no compasso 47b, o baixo, com indicação de acelerando e forte, introduz o
motivo de fechamento da seção B, com o vocábulo ‘num’. Tal expressão parece remeter às
batidas do coração. A seguir, o arranjador faz um cluster distribuído sobre o baixo de mi
bemol, cujas entradas desencontradas e sempre com notas mais agudas, aliadas ao
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crescendo, aumentam a tensão do acorde final. Com exceção da cadência, todo trecho tem
grande coesão tímbrica devido à bocca chiusa, sendo essa mudança da textura um reforço
da ideia de extensão cadencial.

Exemplo 8.2 – Extensão Cadencial

CONCLUSÕES

Penalva consegue recriar o contexto da canção de modo original e sem que esta
perca sua identidade. Isso parece possível graças ao manejo do material harmônico, textural
e textual, orientando o ouvinte e clarificando a percepção das estruturas formais. Por

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exemplo, dentro do contexto da peça, as funções de continuação são tratadas com


paralelismos total ou parcial do acorde; e as cadências que encerram as seções são mais
claras em relação às demais – tal como uma peça clássica, mas com elementos distintos.
Além disso, os finais estruturais sempre contam com um ou mais elementos cadenciais
ligados à cadência perfeita, o que destaca seu fechamento: em A, o salto de si bemol a mi
bemol; em B, o motivo melódico. Aliás, o motivo melódico que arremata o fechamento
estrutural de B parece conceder mais força em relação à cadência de A. É interessante notar
que Penalva enfraquece a resolução de B com uma elisão; e de B’ com o cluster final.
Outro ponto de destaque é o contraste entre texturas polifônicas distintas para
aclarar os blocos estruturais que a melodia sugere. Tal manejo garante, por exemplo, a
distinção das duas passagens que compõe a primeira sentença, visto que o tratamento
polifônico dilui a clareza harmônica; ou a distinção entre o contrasting middle e a segunda
parte de B. No arranjo, a harmonia parece, em geral, criar ambientações como no início de A
ou no segundo tema de B, e sugestões de movimentações próximas às que a melodia sugere
e que se concretizam na transcrição. Assim, a textura empregada enfatiza ou distingue
melhor as funções formais e os blocos estruturais.
A utilização do texto como procedimento de hierarquização da espacialidade é um
ponto chave para alterar a percepção de A em sua repetição, assim como para aumentar o
grau de suspensão na cadência evadida em B’ ao retirar a letra das vozes. Logo, em muitas
passagens, a combinação entre texto e textura é fundamental para expressar o sentido
formal que, na canção original, é garantido pela harmonia. Ainda que não tenha originado a
forma da canção como mencionado anteriormente, o arranjador usa as características do
texto para manipular a forma da canção: aclarando ou turvando.
Assim, pode-se constatar uma possibilidade de assegurar a inteligibilidade das formas
com elementos tonais livres (ou não tonais), desde que esses expressem ou possam ser
auxiliados por outros elementos a expressar as características perceptivas intrínsecas às
funções formais. Há uma estrutura anterior – baseada na percepção – regendo as
possibilidades das manifestações musicais de qualquer forma; estrutura que Penalva
respeita em seu arranjo, tornando-o inteligível e gerador de expectativas.

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REFERÊNCIAS

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Janeiro: Da Fonseca, 2006.
BUCKINX, B. O pequeno Pomo: ou a história da música do pós-modernismo. Trad.: Álvaro
Guimarães. São Paulo: Giordano, 1998.
CAPLIN, W. E. Classical Form: A theory of Formal Functions for the instrumental music of
Haydn, Mozart, and Beethoven. New York: Oxford University Press, 1998.
CAZES, H. O choro. In: Raízes Musicais do Brasil. Rio de Janeiro: SESC Rio, 2005. p. 15-23.
CHEDIAK, A. As 101 melhoras canções do século XX. v. 2. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004. p. 62-
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PROSSER, E. S. Um olhar sobre a música de José Penalva: catálogo comentado. Curitiba:
Champagnat, 2000.
ROSEN, C. The Classical Style: Haydn, Mozart, Beethoven. 2. ed. Londres: Faber and Faber,
1976.
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