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Curitiba: Artembap, 2014.
Resumo
O presente artigo discute os procedimentos composicionais empregados por José Penalva,
na elaboração de seu arranjo da canção Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. Para tanto,
faz uso dos conceitos de forma clássica desenvolvidos por Willian Caplin a fim de
compreender como elementos tonais livres se associam às características perceptivas das
funções formais para garantir inteligibilidade da obra.
Abstract
This paper studies the procedures used by the Brazilian composer José Penalva for
elaboration of his arrangement of the song Carinhoso, by Pixinguinha and Braguinha. He
took into account the concepts of classical form developed by Willian Caplin, in order to
understand how free tonal elements could be associated with perceptual features of formal
functions to ensure the work’s intelligibility.
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Compositor e violonista, é formado em musicoterapia pela Faculdade de Artes do Paraná (Fap) e licenciado
em Música pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). Atualmente, com orientação do Prof. Dr.
Maurício Dottori, cursa o Mestrado em Música do programa de pós-graduação da Universidade Federal do
Paraná.
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Em 1972, o compositor José Penalva participou de um evento, na cidade de Roma, que discutia a vanguarda
dos anos cinquenta. Segundo ele, nesse encontro, que contava com a presença de compositores como J. Cage,
P. Boulez e L. Berio, chegou-se à conclusão de que havia um hermetismo muito grande na música e que essa
era a principal causa da sua falta de aceitação e compreensão por parte do público (PENALVA apud PROSSER,
2000). Buscando uma aproximação, muitos compositores começaram a rever sua escrita e abandonaram as
técnicas antes empregadas ou reincorporaram elementos da música tonal, modal, popular entre outros
procedimentos. Essa nova produção musical – de caráter múltiplo, pluralista e híbrido – passou a ser
denominada de pós-moderna (BUCKNIX, 1998; SALLES, 2003).
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Essas peças podem ser dividas em dois grupos: de caráter puramente estético, em que o compositor é “ele
mesmo” e escreve com maior liberdade, usando várias técnicas distintas; e outra de caráter estético e de
entretenimento, na qual o compositor aproveita elementos folclóricos ou populares e faz uso moderado de
procedimentos legados da fase anterior. Em ambos casos, o fim maior do trabalho composicional é a busca de
maior expressividade tentado uma maior comunicação com o ouvinte (PROSSER, 2000).
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maneira ‘chorada’ com que os músicos ‘amoleciam’ as danças é uma das prováveis origens
para a ‘choro’ (CAZES, 2005).
A partir do século XVIII, muitas danças de salão das cortes europeias adotaram a
forma rondó. Posteriormente, tal estrutura formal se tornaria uma das características mais
marcantes do choro (ALMADA, 2006, p. 9).
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Almada discute que tais funções tendo como parâmetro de construção o período, já que, segundo o autor,
trata-se da estrutura mais comum no choro.
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Rosen (1976) usa o termo estilo clássico no lugar de forma clássica, pois, segundo ele, a teorização formal do
classicismo se deu a posteriori. Ainda, assim, o autor do presente artigo preferiu usar a palavra forma para
evitar discussões e explicações semânticas dispensáveis no momento.
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Não se deve confundir motivo temático com tema. Para Caplin o tema é uma unidade estrutural constituída
por um conjunto de funções de início, meio e fim.
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deles apresenta características próprias, sendo primordial para sua clareza o tipo de
condução harmônica empregada.
Sem se prolongar demasiadamente na questão, é possível traçar algumas analogias
entre o choro e as obras classicistas: origem da forma em ambos, suas estruturas e o
tratamento motívico. Essas similaridades tornam possível a utilização dos conceitos
desenvolvidos por Caplin, originalmente destinados à música erudita do período clássico, no
presente estudo. Em resumo, suas conceituações nos parecem mais apropriadas, pois:
enfatizam o papel das progressões harmônicas locais como determinantes da forma;
distinguem entre função formal7 e estrutura de agrupamento8; reduzem a importância do
conteúdo motívico como critério de definição formal, embora o tratamento desse contribua
para funcionalidade formal; mesmo estritas, suas categorizações formais podem ser
aplicadas de modo flexível; a teoria é descritiva e empírica (CAPLIN, 1998).
CARINHOSO, DE PIXINGUINHA
Carinhoso foi composta por Pixinguinha9 em 1917. Por possuir um esquema formal
atípico para os choros da época, o compositor não a gravou nem a tocou em suas
apresentações. Apenas em 1928, registrou em disco esse choro. Em 1936, a pedido da
cantora e atriz Heloísa Helena10, Braguinha11 criou – às pressas – versos para o choro de
Pixinguinha. No ano seguinte, Orlando Silva12, acompanhado por Pixinguinha e sua
7
“O papel específico desempenhado por uma passagem musical em particular na organização formal do
trabalho. Geralmente expressa uma sensação temporal de começo, meio, fim, antes-do-começo, ou depois-do-
fim. Mais especificamente, pode expressar uma ampla variedade de características e relações formais”
(CAPLIN, 1998, p. 254-255).
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Caplin (1998, p. 255) entende como uma “organização compartimentada, perceptivelmente significante em
um espaço de tempo (grupo, unidade, parte, seção etc.) em qualquer ou todo nível hierárquico em um
movimento”.
9
Alfredo da Rocha Vianna Filho, conhecido como Pixinguinha (1897-1973), foi um flautista, saxofonista,
compositor e arranjador brasileiro.
10
Heloísa Helena de Almeida Lima (1917-1999) foi uma atriz e cantora brasileira.
11
Carlos Alberto Ferreira Braga (1907-2006), conhecido como Braguinha e também como João de Barro, foi um
compositor brasileiro, famoso pelas suas marchas de carnaval.
12
Orlando Silva (1915-1978).
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orquestra, gravou a versão com letra. A partir de então, a canção ficou tão famosa que se
tornou um marco da cultura popular brasileira (SEVERINO; MELLO, 1998).
Do ponto de vista da análise formal13, dois aspectos chamam atenção na história
dessa canção: a estrutura atípica e a criação a posteriori de seus versos. No que tange à
primeira observação, como será analisado adiante, esse choro possui um esquema formal
ABAB, diferentemente do ABACA que era predominante na época. As suas seções, embora
obedeçam à simetria típica do estilo, são constituídas por uma sentença – menos estrita
devido à expansão de suas funções formais – e que constitui a parte A; um contrasting
middle mais uma sentença de dezesseis compassos que forma a parte B.
O segundo ponto é a razão para o autor deste trabalho evitar deliberadamente a
discussão mais profunda de qualquer relação entre palavra e música no que concerne à
forma. Não que os versos, criados muitos anos mais tarde do que a música, não tenham
influência nas sugestões pictóricas do arranjo em questão, mas suas funções parecem ligar-
se à clarificação ou turvamento da forma e da melodia em alguns trechos, ou como
elemento de contraste em outros. Contudo, a estrutura global não foi determinada pelos
versos, pois existia previamente.
Ao esquema formal original, além de realizar algumas alterações na repetição de A,
Penalva acrescenta no final da repetição do B uma estrutura baseada no material temático
de A. Portanto, podemos descrever a forma final do arranjo como: ABA’B’.
Toda seção A é uma única sentença de dezesseis compassos, assim como na canção
original. O que chama atenção a priori é o fato de Penalva ter escrito o arranjo com um início
tético, enquanto a transcrição o faz anacrústico (Ex. 1.1 e 1.2). A frase de apresentação, que
normalmente duraria quatro compassos, estende-se por oito. Para isso Pixinguinha repete a
mesma ideia básica quatro vezes: duas idênticas e duas transpostas, sendo uma dessas com
uma alteração na última nota.
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Para auxiliar a discussão, será utilizada a transcrição que Almir Chediak (2004) fez da mesma peça. Essa
transcrição foi feita a partir da gravação de Orlando Silva e Pixinguinha, de 1937.
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Quanto à tonalidade, a transcrição de Almir Chediak está em lá maior e o arranjo de Penalva em mib maior.
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Procedimento que repetirá adiante.
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principal. Essa nova tonalização permitirá a peça voltar à região tonal inicial. Nesse trecho do
arranjo é possível abstrair uma condução harmônica sugerida, sobretudo, pelas vozes
masculinas: (V) IV-V2-iii7 (ou mesmo I6) e iº7 (também pode ser entendido como viiº7/iii).
Esse acorde pode ser classificado como ornamental, pois adia a chegada ao I, que ocorrerá
no início da próxima estrutura, mas com alteração da terça.
Essas duas frases terminam no terceiro tempo do compasso 23, havendo uma clara
cisão com o que segue. Como visto, a passagem descrita apresenta grande contraste com o
que lhe precede em termos de dinâmica, conteúdo motívico, textura e estrutura. Segundo as
considerações de Caplin (1998) sobre a forma clássica, poder-se-ia classificar essa passagem
como contrasting middle, estrutura frequente em pequenas formas ternárias ou binárias. No
entanto, não há qualquer tentativa de recapitulação de A, o que caracteriza a pequena
forma binária.
As considerações acima apontam para um fato claro na audição da obra: a
instabilidade do referido trecho. Para Caplin (1998) o contrasting middle não é tão
estruturado quanto a seção anterior, o que lhe confere certa instabilidade. Tal instabilidade
é em grande parte oriunda principalmente da harmonia que pode apresentar progressões
sequências para reforçar a instabilidade harmônica ainda mais. Embora, no arranjo, a
instabilidade esteja apenas sugestionada pela melodia, visto que o tratamento polifônico
distorce a percepção da harmonia, é clara a sensação de instabilidade que se utiliza não só
do tratamento harmônico mais denso, mas também, por exemplo, pelas entradas iniciais
sucessivas que geram grande tensão no limiar do trecho, adensando a textura. Ao fim, há, ao
menos na transcrição, uma cadência perfeita, omitida no arranjo. Após essa cadência, uma
sétima menor é adicionada ao acorde final reintroduzindo o tom inicial. Tal procedimento
pode ocorrer na retransição do tom subordinado para o principal (CAPLIN, 1998).
A segunda parte da seção B é formada por uma introdução e uma sentença (Ex. 6.1).
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Há uma introdução do primeiro tema que vem após uma pequena cisão no compasso
23, aclarada pelo texto. Também é possível perceber um ganho de energia através da
ascensão melódica e a condução harmônica, que parte de um si bemol menor até chegar ao
viiº do tom principal. Na transcrição, a primeira frase tem oito compassos, mas no arranjo
apenas seis. Isso se deve à já mencionada alteração do compasso inicial e à contração
rítmica da frase: ‘dos braços meus’. Notória é a utilização, no antecedente, da segunda frase
da transição como acompanhamento. Prática comum em Haydn, sobretudo nos quartetos
(ROSEN, 1976). Esse procedimento também remete à função do violão de sete cordas no
conjunto típico de choro, ao realizar contracantos que ‘dialogam’ com a melodia (figura 6).
No arranjo, a função de continuação pode ser identificada na sequência melódica, na
sequência harmônica implícita da melodia e na fragmentação rítmica, mesmo que a
harmonia do acompanhamento não realize uma sequência, pois, do compasso 31 ao 33,
mantém uma estrutura de acorde semelhante que muda no compasso 34 para preparar a
função cadencial. Aliás, esse procedimento de paralelismo total ou parcial – como na
primeira sentença – é uma característica do tratamento harmônico empregado por Penalva
na função de continuação.
Há uma elisão entre a função de continuação e a função cadencial no verso “e só
assim então”. Nessa cadência, Penalva faz uma clara alusão ao acorde de Dominante. Antes
da chegada desse acorde (incompleto, mas perceptível), o arranjador conduz a harmonia a
uma vaga sensação de ii – embora esse se mostre alterado: la natural e, posteriormente, fá
sustenido no contralto, que retorna a fá natural no tenor (comp. 36, figura 6). O acorde de
dominante é introduzido apenas com sua tônica: si bemol, que se entende por três tempos.
De modo inesperado, Penalva passa a resolução melódica para o baixo. O longo tempo à
espera por essa resolução permite ao arranjador a troca de registro sem prejuízo à
inteligibilidade e sem causar estranheza, mas sim surpresa. O acorde de dominante está
invertido e com a quinta alterada um semitom abaixo (fab = mi). A força da resolução
melódica, ampliada pela inesperada troca de registro, junto ao rebaixamento da quinta,
garante a força atrativa do acorde mesmo estando invertido e sem a sétima. Nessa
passagem é nítida a concepção de melodia e acompanhamento, seguida por uma seção
polifônica. Assim, distinguem-se claramente as funções que a compõe.
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crescendo, aumentam a tensão do acorde final. Com exceção da cadência, todo trecho tem
grande coesão tímbrica devido à bocca chiusa, sendo essa mudança da textura um reforço
da ideia de extensão cadencial.
CONCLUSÕES
Penalva consegue recriar o contexto da canção de modo original e sem que esta
perca sua identidade. Isso parece possível graças ao manejo do material harmônico, textural
e textual, orientando o ouvinte e clarificando a percepção das estruturas formais. Por
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REFERÊNCIAS
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