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Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 135 -

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

confissões religiosas com a educação e a formação dos cristãos em meio a falta de


cerimônia dos enredos confusos e intrincados das ações colonizadoras.
Nesse inquietante imbróglio político, geográfico, econômico, teológico, étnico e
musical, nas adjacências das igrejas e instituições religiosas de ensino 209 e das suas
sempre significativas ingerências nas esferas governamentais, a cultura popular não
pôde deixar de ir ouvindo perifericamente algo de uma música e de uma teoria culta,
possivelmente fragmentada e um tanto incompreensível, envolta, no entanto, em uma
aura de prestígio, poder e beleza. Nessa longa e gradual transição do modal para o
tonal, que jamais se completou totalmente, e ao longo da primeira idade da tonalidade,
são muitos os trânsitos musicais que querendo ou não se resvalam. Na Europa, a música
culta de longa memória foi aprendendo a reconhecer a arte nos gêneros profanos. E
essas músicas igualmente eruditas, profanas e sacras, seguiram seu curso
inevitavelmente escutando o valor e a presença das músicas populares. Enquanto isso,
no Novo Mundo, indivíduos e etnias que nunca se viram são embaralhados ao som de uma
música que jamais se ouviu soar aqui, sem memória e desconhecida, mas poderosamente
governada por uma ordem de mundo fiel a um Deus do qual apenas os que portam armas
de fogo ouviram falar. Uma música que já embarca na Europa em um estágio de
transformação, que desembarca em um mundo revolto em transformações extremas e
profundas, que vai aos poucos se assentando, sempre misturada e reinventada,
estabelecendo um composto tonal impuro e singular que será uma das primeiras
formantes daquilo que posteriormente será chamado de harmonia da música popular.

1.4.6 A prática como teoria: notas sobre a realização harmônica improvisada do baixo
contínuo.210

O baixo contínuo é ao mesmo tempo um ofício, uma cultura e uma arte, um


artesanato e uma técnica. É uma teoria aplicada — com um enorme corpus de
tratados, manuais e instruções (ver os Quadros 1.22 e 1.24) — caracterizada por sua
funcionalidade prática. É uma forma de expressão interativa com a qual o músico se
manifesta por uma variedade de caminhos momentâneos e mutáveis que permitem
uma enunciação musical notavelmente individualizada e única que, por sua

universal, por mais demorada e laboriosa que seja, o Ressuscitado estará vivo e ativo com os seus.”
209
Como é fato conhecido, praticamente todos os confessionalismos cristãos consolidaram redes
transnacionais de ensino laico através de escolas, educandários, ginásios, colégios, conservatórios,
faculdades, etc., que direta ou indiretamente se ocuparam da música. Cf. Holler (2006) e Kerr (2006).
210
Uma tentativa de junção dos títulos usados por Oliver Alain (1969, p. 44) “Baixo contínuo e harmonia
improvisada” e Albert Cohen (2006, p. 540) “Baixo contínuo a prática como teoria”.
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consistência e coerência, se torna capaz de sensibilizar e de se fazer entendida à cada


vez que é diferentemente realizada. 211
Segundo a definição de Williams e Ledbetter (2001, p. 346) basicamente um
baixo contínuo é uma linha instrumental de baixo que corre ao longo de uma peça, em
cima da qual o instrumentista improvisa (realiza) um acompanhamento de
acordes. 212 Para Michels (1989, p. 101), a condição prévia necessária que permitiu o
surgimento do baixo contínuo foi o fato de que, ao longo do século XVI, o acorde
perfeito foi gradativamente se tornando o principal fundamento dos acontecimentos
harmonicos em simultaneidades onde a maior parte dos sons eram próprios da escala
(diatonismo modal e/ou pré tonal), tal condição favoreceu o uso das cifras assim como a
dedução em tempo real (improvisação) de acordes sobre um baixo sem cifras. Outro
fator apontado por Michels é o de que nascimento do contínuo aos finais desse século
XVI, coincide também com o surgimento do novo estilo monódico (madrigais para
solistas, ópera primitiva, etc.), que se serviu amplamente das qualidades inerentes ao
baixo contínuo de prover fundamento harmônico sem comprometer a desejada execução
livre e concertante das vozes superiores.

211
Ao longo do presente comentário estão sendo usadas notas tomadas na singular oportunidade da defesa da
dissertação de mestrado “As instruções sobre Baixo Contínuo de J.S. Bach: uma proposta de utilização no
ensino da matéria no Brasil” pela cravista Stella Almeida Rosa, onde estavam presentes como banca
examinadora os professores cravistas Edmundo Hora, Helena Jank e Marcelo Fagerlande. Programa de Pós-
Graduação em Música do Instituto de Artes da UNICAMP, em 31 de julho de 2007.
212
O termo baixo cifrado (basso numerato em Italiano, bajo cifrado em espanhol, figured bass em Inglês,
basse chifrée em Francês, e bezifferter bass em Alemão) não corresponde exatamente ao conceito de baixo
contínuo (ou apenas contínuo, basso continuo em Italiano, bajo continuo em espanhol, through bass ou
thoroughbass em Inglês, basse continue em Francês, e Generalbass em Alemão), pois nos séculos XVII-XVIII
se escreviam e imprimiam inumeráveis baixos destinados a acompanhar sem numeração alguma, já que se dava
por suposto que o músico saberia encontrar a harmonia apropriada (RIEMANN, 1927, p. 23). Conforme Denis
Stevens “a princípio, as partes de baixo jamais se publicavam com cifras – estas nem sequer se escreviam nos
manuscritos –, por isso o termo baixo cifrado, que frequentemente se utiliza como termo alternativo ao de
basso continuo, em estrita justiça não se pode dizer que seja exato. A ausência de cifras em uma partitura
permitia ao executante uma liberdade considerável em seus acompanhamentos; inclusive podia atuar como uma
espécie de ‘subcompositor’, sem limitar-se ao simples papel de uma máquina encarregada de fornecer os
acordes de recheio” (STEVENS, 1982, p. 467). Conforme Michels (1989, p. 101), o termo continuo se origina
do fato de que, ainda no século XVI, obras vocais polifônicas (no gênero dos Motetes) foram transcritas para
intrumentos (alaude, órgão, etc.). Tais transcrições teriam diversas utilidades, tais como o acompanhamento no
caso dessas obras serem executadas por poucas vozes ou por solistas, ou a função de referência de tom e
andamento permitindo que do próprio órgão o mestre de música dirigisse o coro (e também possíveis funções
no ensino e aprendizagem do ofício musical). Em tais situações práticas, seriam tocadas só as vozes mais
importantes, principalmente uma linha de baixo ininterrupta que seguia a voz mais grave da composição. Esse
baixo instrumental voltado ao acompanhamento se chamou basso continuo ou basso seguente, basso principale
ou generale. Quanto ao termo Generalbass (baixo geral), Marcelo Fagerlande esclarece que “com o passar do
tempo o baixo não era mais contínuo, mas freqüentemente pausado, especialmente em obras seculares e óperas.
Por esta razão, o alemão Friedrich Erhard Niedt (1674-1708), que em 1700 publica o tratado Musikalische
Handleitung, prefere o termo Bassus generalis, ou Generalbass”, que acabou sendo aceito no jargão de muitos
tratados (FAGERLANTE, 2000, p. 9).
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Quadro 1.22: Algumas referências das fontes primárias do baixo contínuo.213

213
A partir de Christensen (1993, p. 47-48), Fagerlande (2002, p. 175-207) e Williams e Ledbetter (2001, p.
363). Para uma listagem mais completa e detalhada dos tratados e instruções que abordam o baixo contínuo
ver o trabalho de Fagerlande, onde as fontes estão organizadas em quadros que contemplam também os
manuscritos e publicações sem data de autoria conhecida ou de autoria anônima.
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O contínuo foi empregado em todos os tipos de música barroca, de onde a


expressão a era do baixo contínuo. Os baixos podem ser figurados (cifrados) com
acidentes e números colocados em cima ou embaixo dessa linha para indicar as harmonias
requeridas, mas podem também não receber nenhuma cifra. A realização do continuo é
essencialmente improvisada, por isso resiste a ser documentada e definida a partir de
qualquer tentativa de fixação. A própria idéia de se transcrever ou apresentar as
realizações na partitura fere a natureza dessa arte e deve ser encarada apenas como um
inevitável recurso de comunicação ou exemplificação para fins didáticos de iniciação.
O termo baixo contínuo pode designar muitas coisas simultaneamente: o
acompanhamento, ou uma determinada maneira de interpretar um acompanhamento,
ou ainda o conjunto instrumental que realiza esse acompanhamento; uma espécie de
“estenografia” (ABROMONT e MONTALEMBERT, 2001, p. 299), ou seja, um processo de
escrita abreviado, rápido, gráfico e simplificado da música; um sistema que auxilia a
memorização mecânico - corporal das obras e de todo um conjunto de regras e recursos
da harmonia; a própria escrita (seus sinais e grafias) impressa ou manuscrita, etc. O
termo refere-se atualmente ao estilo histórico, e continua implicando também em um
método de ensino e análise da harmonia, da improvisação e da composição musical. O
continuo era (e continua sendo) tocado em diferentes conjuntos por toda a Europa e
suas colônias por mais de dois séculos desde por volta de 1600 configurando-se como
uma prática teórica que envolve muitos saberes musicais correlatos, tais como
instrumentação, orquestração, contraponto, ornamentação, repertório, referências de
intérpretes, prosódia de línguas estrangeiras, sistemas de afinação, construção e
manutenção de instrumentos, arregimentação e direção musical, regência e cultura
crítica, estilística e histórica, etc.
Os instrumentos usados variavam muitíssimo conforme as circunstâncias, mas para
fins de definição elementar comumente se diz que incluem teclados (cravo ou órgão,) ou
cordas pinçadas (guitarrone, teorba, alaúde, guitarra, harpa) que se encarregam de tocar
o baixo e os acordes, e um instrumento de corda e arco grave que se encarrega de dobrar
a linha de baixo (viola baixo, violoncelo). 214 Essa premissa do dobramento da linha do

214
Christensen (1993, p. 47) comenta que a grande variedade de instrumentos envolvidos na prática do baixo
continuo contribuiu para a proliferação dos tratados e manuais, pois os textos eram escritos por e para
instrumentistas que realizavam o contínuo em diferentes condições. Assim, as especificidades idiomáticas
dos teclados, guitarras e teorbas (com suas diferentes afinações), geravam diferentes abordagens praticas e
teóricas. A partir de Rameau, um tratado de harmonia vai escrito para todos os músicos e instrumentos, mas
a tradição pedagógica do baixo contínuo procurava ainda atender a demanda diferenciada das
particularidades técnicas e mecânicas de cada especialidade instrumental. Essa prática teórica de certa forma
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baixo, que a princípio visa aumentar a potência e a definição sonora da linha mais grave,
faz com que essa voz seja totalmente escrita e não comporte improvisação. Mas essa
aparente limitação técnica ou mecânica logo se converteu em recurso estilístico
idiomático, dotando as composições de linhas de baixo expressivas e criativas, o que
muito contribuiu para o desenvolvimento da arte da condução de vozes da harmonia.215
Como já enfatizou Fagerlande, “assim como não há uma única Escola de Baixo
contínuo, não há uma única definição do assunto, e mais, um único conceito de suas
funções primordiais” (FAGERLANDE, 2000, p. 9), essa constatação pode ser
significativamente amplificada pela enorme quantidade de tratados e instruções teóricas
216
que essa musica pratica produziu desde os inícios do século XVII (Quadros 1.22 e
1.23).217 Em 1607, no Del sonare sopra 'l basso con tutti li stromenti e dell'uso loro nel

se renova em nossos dias quando – como se a harmonia não fosse de fato a mesma para todos –, voltamos a
conviver com manuais de harmonia com mecânicas especializadas, escritas por e para guitarristas, ou
baixistas, ou tecladistas, ou saxofonistas, ou arranjadores, etc.
215
É significativo observar a diferença do âmbito sonoro, ou tessitura, do acompanhamento implicada na
noção de baixo no baixo contínuo barroco e a idéia de contrabaixo que usamos na linha de baixo da música
popular atual. Os baixos de contínuo não são transpositores de oitava e, como regra geral, trabalham
aproximadamente no registro oitava acima da região que coloquialmente chamamos agora de baixo que, à
rigor, é o registro do contrabaixo (oitava abaixo do baixo). Embora as possíveis dificuldades quanto ao
volume, afinação e clareza de emissão, alguns instrumentos barrocos poderiam possuir e usar tessituras de
contrabaixo (órgãos, teorbas, e mesmo cravos), mas nada que possa se comparar à potência e versatilidade
dos instrumentos que desempenham as funções de contrabaixo atualmente. O contrabaixo moderno continua
permitindo o dobramento à oitava abaixo da linha de baixo dos instrumentos ou conjuntos que realizam o
recheio da harmonia (piano, teclado, guitarra, violão, cavaquinho, coral, conjuntos vocais, naipes de sopros
ou cordas, etc.), mas, comumente, na função de acompanhamento, a linha de contrabaixo atual é
independente e está sensivelmente mais distanciada do registro onde se desenvolvem os acordes. A noção
contemporânea do espaço de acompanhamento é pós-sinfônica, eletro-mecânica e eletrônica, abrangendo
uma tessitura amplificada muitíssimo mais ampla. Essa antiga limitação de tessitura, mais próxima à
tessitura vocal humana, é uma característica essencial à sonoridade da música da primeira tonalidade e
matiza muitos idiomatismos das linhas de baixo barrocas (p.ex., os movimentos de escala que se completam
mediante quebras de saltos de oitava e as diversas limitações e vantagens que diferenciam os recursos dos
baixos dependendo da tonalidade da obra) e continua em uso em certas formações da música popular que
tradicionalmente não usam um instrumento contrabaixo (p.ex. o tradicional regional de choro).
216
Fagerlande informa que “os tratados de baixo contínuo podiam ser tão curtos quanto o de Bianciardi
(1607) que tem uma página somente, ou enciclopédicos, como o de autoria de Hainechem (1728) com 960
páginas. Apareciam não apenas como publicação independente, mas podiam fazer parte de coleções de
música, de tratados de composição ou ainda podiam constituir uma segunda parte de tratados de teclado.
Seus autores podiam ser nomes famosos, como F. Couperin, G. Ph. Telemann, C. Ph. E. Bach, ou nomes que
só sobreviveram através de suas publicações sobre o assunto [...]. Alguns abordam a mecânica das cifras e
suas realizações ou se concentram nas transposições, enquanto outros aplicam o baixo contínuo à
composição. Certos tratados são para iniciantes ou amadores, outros tão complexos que provavelmente são
mais indicados a executantes experientes” (FAGERLANDE, 2002, p. 11-12).
217
Como muitos autores, o professor Ciro Monteiro Brisolla (1979, p. 13-21), em seu Pequeno histórico do
baixo cifrado, também informa que, possivelmente, a primeira referência impressa ao termo baixo contínuo
apareceu em 1602, no título “Cento concerti ecclesiastici, a una, a due, a tre & a quatro voci. Con il basso
contínuo per sonar nell´organo. Nuova inventioni commoda per orgni sorte de cantori, & per gli Organisti,
di Ludovico Viadana”, uma publicação de música vocal sacra com uma parte para baixo contínuo do
compositor, professor e frade franciscano italiano Lodovico Grossi da Viadana (c.1560-1627). Cf. Murata
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conserto (Do tocar sobre um baixo com todos os instrumentos e seu uso no conjunto),
Agostino Agazzari (c.1578-1640), compositor e maestro de coro de Siena, expôs sua
teoria e prática do baixo contínuo (Cf. MURATA, 1998, p. 621-628). Nas palavras de
Agazzari “não se pode estabelecer nenhuma regra definitiva no que se refere à execução
daquelas obras que não figuram sinais de nenhuma classe” (STEVENS, 1982, p. 467).
Conforme Stevens, um dos pontos principais de exposição de Agazzari é que existe mais
de uma maneira de passar de uma consonância para outra, suas sugestões tem caráter
geral e prático, incluindo observações sobre registros do órgão, ornamentação e
discrição, “o organista jamais deve obscurecer a linha do soprano tocando notas altas ou
introduzindo divisões que distraiam a atenção do auditório. Quando outros instrumentos
estão tocando e apoiando o solista, não existe nenhuma razão para que o organista se
limite a dobrar ao solista” (STEVENS, 1982, p. 467).

Exemplo 1.8: Agostino Agazzari, Del sonare sopra ’l basso, 1607.218

Para Agazzari “não há nenhuma necessidade de que se interpretem as partes tal


como estão escritas, se o que se propõe é acompanhar o cantor”. Esse aspecto criativo
da execução do contínuo foi o que permitiu, a todas e a cada uma das interpretações de
uma sonata, concerto ou missa barrocas, afirmar sua individualidade (STEVENS, 1982, p.

(1998, p. 617-620). Rosa (2007, p. 11) informa que “esses concertos para vozes solistas com
acompanhamento de baixo contínuo contêm um cuidadoso prefácio, no qual o autor explicita suas razões
para ter composto tais obras inovadoras, e insere doze regras para sua execução”, sendo assim, dado à suas
modestas proporções e intenções específicas, o trabalho de Viadana não pode ser considerado propriamente
como um tratado de baixo contínuo, embora seu indiscutível “ineditismo e sua importância como marco
inicial da teorização sobre baixo contínuo” (ROSA, 2007, p. 11). As históricas regras de Viadana aparecem
traduzidas e comentadas em Rosa (2007, p. 12 e 13).
218
A partir de Cohen (2006, p. 541), Murata (1998, 623) e Rosa (2007, p. 16). As cifras abaixo do cifrado de
Agazarri são hipotéticas e têm finalidade apenas comparativa com sistemas de cifragem usados atualmente.
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466-468). O Exemplo 1.8 pode dar uma idéia do cifrado de Agazzari como representativo
da fase inicial do baixo contínuo.
Como comenta Fagerlande, em uma definição bem mais madura dessa arte,
publicada no dicionário musical de 1732, J. G. Walther enfatiza a característica do baixo
cifrado conter todas as informações sobre a harmonia da peça numa funcional partitura
completa abreviada.
Bassus generalis (latim) Basso generale (Italiano) é um baixo comum, geral, por isso
assim denominado, pois contém a completa harmonia de uma peça musical, que será
transmitida através das cifras colocadas acima das notas expressas no órgão, cravo,
espineta, tiorba, alaúde, etc. [...] Um baixo geral não cifrado não deve ser na realidade
chamado de baixo geral (Generalbass). (WALTER, Musikalisches... apud
FAGERLANDE, 2000, p. 8). 219

Em seu Kleine General-bass-schule, de 1735, Mattheson considera que

A finalidade do baixo cifrado é servir, não dominar. De que maneira há de servir?


Como apoio, como base, como acompanhamento majestoso, harmonioso, pleno, e
como companheiro da melodia principal e guia de todos aqueles que juntos executam
música [...]. Também como ajuda dos cantores, para dar-lhes o tom, quer dizer, como
coluna sobre a qual descansa todo o concerto (MATTHESON, Kleine... apud
RIEMANN, 1927, p. 55).

O estudo da cravista Stella Almeida Rosa (2007) dedica-se às instruções sobre baixo
contínuo deixadas por Johann Sebastian Bach (1685-1750), o célebre contemporâneo de
Walther e Mattheson. Segundo a autora, “por duas vezes em sua vida Bach ocupou-se da
elaboração de um conjunto de regras para a execução de baixo contínuo: a primeira delas,
em 1725, contida no segundo caderno de peças para Anna Magdalena Bach, e a segunda em
1738, destinada a seus alunos da escola de São Tomás em Leipzig” (ROSA, 2007, p. 58-
62).220 As instruções de 1725 foram traduzidas e comentadas por Rosa (2007, p. 52-56) e são
transcritas aqui no Quadro 1.23.

219
Trata-se do verbete do Musikalisches Lexikon oder musikalische Bibliothek de Johann Gottfried Walther
(1684-1748).
220
Conforme ressalta Rosa, as instruções de 1725 têm intenção doméstica, servindo como introdução do assunto
aos iniciantes, e foram provavelmente ditadas por Bach à sua esposa. As instruções de 1738, conhecidas como
Vorschriften und Grundsätze sumvierstimmigen Spielen des General-Bass oder Accompagment (Preceitos e
Princípios Para Tocar o Baixo Contínuo ou Acompanhamento em Quatro Vozes), são muito mais elaboradas,
consistindo de quatro sessões, a segunda delas constando quase totalmente de trechos transcritos com poucas
modificações do Musicalische Handleitung de Fredrich Erhard Niedt (1674-1708), o já mencionado tratado
publicado em três volumes em Hamburgo a partir de 1700. Segundo Rosa, “o principal interesse do tratado de
Niedt está não exatamente nas regras e exemplos de realização de baixo contínuo, que podem ser encontradas
similarmente em outros tratados, mas na extraordinária descrição contida em sua introdução acerca das condições
sob as quais os organistas alemães adquiriram e praticaram sua arte, e sobre a influência da tablatura germânica de
órgão na construção do processo de transformação da música do século XVII” (ROSA, 2006, p. 342). Sobre o
tratado de Niedt ver Arnold (1965, v.1. p.213-236). Sobre as instruções de 1738, bem como sobre as relações
entre o texto de Bach e o trabalho de Niedt, ver Poulin (1994).
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Quadro 1.23: Algumas das mais necessárias regras do baixo contínuo. Por J. S. Bach.221

221
A partir de Rosa (2007, p. 52-53). As notas e cifras em letra são exemplificações hipotéticas e não
pertencem às instruções de Bach nem ao estudo de Rosa.
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Conforme Fagerlande são dois os prováveis motivos principais que, basicamente,


explicam o surgimento do contínuo. Um primeiro é uma questão de ordem tipicamente
prática e funcional. Essas linhas de baixo contínuo, que a princípio continham pouca ou
nenhuma cifra, funcionavam como uma partitura completa abreviada da parte de órgão
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na música sacra concertante. A partir dessa suficiente e sucinta notação o organista


tocava a nota mais grave junto com o acorde deduzido sem depender de sistemas
gráficos mais dispendiosos, como a tablatura (intavolatura) ou a partitura completa da
composição a várias vozes. Um segundo aspecto é a versátil liberdade de
acompanhamento instrumental que o contínuo possibilita. Para o acompanhamento das
canções seculares e do recitativo livre, novas exigências musicais colocadas pela seconda
pratica e pelo florescimento da ópera, o baixo contínuo mostrou-se como o suporte
harmônico ideal.222 Seu uso na música profana pode ser ainda mais antigo do que na
música sacra, “a linha do baixo cifrada permitia que mais de um instrumento tocasse os
acordes simultaneamente, de acordo com sua natureza, seguindo o rubato dos cantores.
Um acompanhamento escrito com todas as notas não seria apropriado para vários
instrumentos tocarem ao mesmo tempo e só contribuiria para uma rigidez pouco
apropriada à liberdade desejada para a linha melódica do cantor, um dos propósitos da
monodia operística e do recitativo” (FAGERLANDE, 2001, p. 16).
A arte do contínuo é uma veemente validação prática do fato de que, sem perder sua
identidade, um mesmo e único acorde suporta uma enorme variedade de conformações,
suas vozes podem se distanciar, trocar de posicionamento e se inverter de incontáveis
maneiras. A passagem de um acorde para outro pode ser encadeada também de incontáveis
maneiras, e as diferentes combinações de acordes puderam então ser experimentadas como
nunca. O contínuo celebra assim uma das maiores potencialidades da harmonia que é a sua
enorme capacidade de se reinventar permanentemente. A versatilidade do contínuo marca
um momento da história da harmonia que pode ser comparado à alegria da conquista da
capacidade da conversa coloquial entre pessoas que dominam uma língua e um assunto e
podem enunciá-lo a cada momento de uma maneira diferente, em diferentes níveis, com
muita formalidade ou com total informalidade, de modo simples e direto, ou rebuscado e
ornamentado com muitos volteios, com vocábulos e expressões muito complicadas ou
apenas com insinuações, subentendidos e meias palavras. Com o contínuo uma cifra de
harmonia não é uma coisa em si, é antes um exercício de uma potencialidade que se

222
Para Palisca o desejo, nitidamente expresso no fim do século XVI, de fazer a voz solista o suporte
principal do texto e da mensagem de uma obra musical, levou a redução do acompanhamento instrumental a
um apoio acórdico, semi-improvisado que era delineado em uma partitura esquemática. A maneira resultante
do baixo contínuo prevaleceu em toda música vocal e na música para mais de um instrumento desde pouco
depois de 1600 até o redor de 1770 (PALISCA, 1991, p. 5). Segundo Kermann, “a grande vantagem do
moderno estilo monódico dos anos de 1600, a ‘nova música’, era que a voz podia se erguer desimpedida
acima do baixo-contínuo, que fornecia sozinho um simples suporte harmônico. Ritmo, linha melódica e
dissonância estavam na verdade livres para as mais expressivas contorções. Na simplicidade essencial da
textura total, eles não podiam destruir a clara e tranqüilidade do baixo” (KERMAN, 1990, p. 43 apud
CARRASCO, 2003, p. 42)
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redefine conforme a cultura, o treinamento, a habilidade, as referências, a intimidade, o


gosto, o estado de ânimo, as condições acústicas do ambiente, as condições mecânicas e
sonoras dos instrumentos à disposição. A realização do contínuo envolve uma rede de
circunstâncias que interagem de modo tão variável como a própria arte da condução de
vozes da harmonia, é uma celebração sem fim de um vocabulário rico em idiomatismos
metafóricos, jocosos, elípticos, ágeis que pode se dar ao luxo de se manifestar através de
um discurso que suporta essa condição efêmera, pois pode ser prazeirosamente refeito a
cada momento.
No baixo contínuo — parafraseando aqui o verbete criação coletiva de Patrice
Pavis (1999, p. 78-80) — algo da realização musical em curso não está totalmente
elaborado e fixado de antemão por uma figura de um compositor que estaria alheio ao
momento em que a música está ocorrendo. Algumas coisas estão pré-definidas (o baixo,
as melodias, o roteiro geral da harmonia expressa ou não em cifras, etc.), mas outras
estão totalmente abertas, exigindo do intérprete-instrumentista uma série de
habilidades e atitudes críticas e criativas em tempo real. Riscos que, com a acentuada
compartimentação das tarefas musicais que foi se dando na trajetória culta da música
ocidental, rumo a uma composição plenamente escrita previamente, passaram a ser
entendidas como tarefas privadas, realizadas em outro tempo, a priori por um
compositor que concentra os poderes de tomar praticamente todas as decisões estéticas
e ideológicas e, a posteriori pelo analista que avalia a composição ou ainda pelo crítico
que avalia a interpretação. Nesse particular o baixo contínuo é uma prática que lida
com a harmonia de uma maneira que — respeitando-se as devidas distâncias — poderia
ser comparada à algo do modo operante de algumas formas de criação da música
popular atual. Ambas estão ligadas à um clima sociológico que estimula a criatividade do
indivíduo em grupo, estão vinculadas ao exercício do aspecto ritual e coletivo da
atividade musical ao vivo, estão fascinadas e nos fascinam pela improvisação, pela
gestualidade imprevista e pelas formas de comunicação não partituráveis. São fazeres
musicais que, a seus modos, reagem de alguma forma contra a exagerada divisão e
especialização do trabalho, recuperando uma evidência por vezes esquecida na alta
cultura ocidental de que a realização da música é também uma arte de envolvimentos,
reações e interações que se dão em tempo real e de modo imprevisível que nem sempre
precisam ser totalmente pré-fixadas por uns e simuladas por ensaiados personagens-
intérpretes outros.
Os duzentos anos da cultura do baixo contínuo — quando interpretar, compor e
ouvir música ainda não eram divisões tão interessantes —, são representativos de um
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momento limiar naquele percurso histórico que Abraham Moles chamou de as etapas
sucessivas da separação entre o criador e o consumidor musical. Uma história de
distanciamento e gradual separação entre a idéia e o prazer.

(1) Quando Títiro debaixo de uma faia fura sua cana para nela tocar uma área
improvisada, ele é simultaneamente criador e consumidor. Ele “toca” no sentido
original do termo.223 (2) Entre os primitivos, uma parte da tribo especializa-se no
fabrico artesanal dos instrumentos, mas uma parte significativa dessa tribo toca
espontaneamente esses instrumentos enquanto outra escuta e vice-versa. O criador-
executante, o consumidor e o fabricante têm todos um largo crédito. (3) No século
XV começa a surgir uma separação entre aqueles que ouvem e aqueles que
compõem: o compositor cria o fenômeno sonoro sem cuidar ainda da sua notação.
(4) Na renascença constitui-se a notação musical: ela separa o compositor dos
executantes, pois ele pode transmitir-lhes instruções mediante uma mensagem
simbólica - a partitura. Com a intervenção da orquestra, o executante divide-se ele
mesmo em duas partes: aquele que dirige e aqueles que fazem o som. (5) No início
do século XX, a religião musical fica estabelecida. O Compositor distancia-se,
respeitado e incompreendido pelos auditores que ignoram a sua linguagem. Ele
transmite uma folha de papel ao “sacerdote” da religião que, na cena do templo, a
sala de concertos, realiza o “mistério” sonoro empregando ilotas [escravos
espartanos], os fabricantes de notas. O público adora especialmente aquilo que vê: o
maestro [o intérprete] (MOLES, 1990, p 190-191).224

No momento em que a realização harmônica culta esta migrando da cultura do


baixo contínuo para a da partitura, um protagonista importante é Carl Philipp Emanuel
Bach, que é ainda um supermúsico, um profissional coringa que faz de tudo, mas que, no
seu Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen (Ensaio sobre a maneira correta
de tocar teclado), já deixa transparecer os indícios dessa transformação social, e
também estético – musical que está se dando no ofício do músico. No primeiro prefácio
223
Títiro é um personagem das Bucólicas, ou Églogas (Eclogae), a primeira das grandes obras do poeta
romano Publio Vergilio Marón (70a.C - 19 a.C) mais conhecido como Virgilio, também autor das Geórgicas
e da Eneida. O personagem aparece na Égloga Primeira, poema de 83 versos estruturado como diálogo entre
os pastores Malibeo e Títiro, o pastor músico e cantor lembrado por Moles nesse texto. As Églogas de
Virgílio, em número de dez, são cantos inspirados nos Idílios de Teócrito (c.310 a.C. - 250 a.C.) o poeta
grego de maior destaque no período helenístico, onde se faz elogio à vida rural, alternando narração com os
diálogos entre pastores de cabras e ovelhas. Esses diálogos, frequentemente competições que se resolvem por
meio de desafios poéticos onde o pastor que compõe os melhores versos vence, são no entanto, diálogos
demasiadamente refinados e cultos para os homens do campo. Essa cofluência idealizada entre a alta
erudição e as belezas da vida rústica em meio à natureza, vai servir de modelo para a recriação do gênero
pastoril (a poesia bucólica, canto de pastores, pastorela ou poesia pastoral) por autores do Renascimento e
Barroco. O ensaio de Mauro Mendes (2005), justamente intitulado Virgílio e os Cantadores, discorre sobre a
presença dessa tradição da poesia pastoril entre os violeiros e cantadores no sertão nordestino.
224
A narrativa de Moles segue adiante: Com o advento do rádio e, sobretudo do disco, um novo avatar
intervém na cadeia que vai da idéia ao prazer de uma maneira muitas vezes decisiva: o engenheiro de som (a
indústria da música), secreto chefe supremo da orquestra, que manipula a vontade a mensagem estética para
adaptá-la aos cânones da percepção sensual. O disco submerge rapidamente o concerto: a música torna-se
íntima. “Com o aparecimento das máquinas de música, e especialmente da composição mecano-musical,
surge uma etapa recente onde o compositor é recrutado espontaneamente do próprio meio dos auditores. A
música iniciada como um jogo, regressa ao jogo, com os sons gerados sem instrumentos” (MOLES, 1990, p 191).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 148 -
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

do ensaio, meio que reclamando da tamanha sobrecarga de serviços e encargos musicais


depositada sobre os ombros de um tecladista, Carl Philipp defende uma divisão mais
razoável das habilidades musicais que, nesse ponto da história da música centro
européia, já começa a se acumular em demasia.225

Não se contenta em esperar de um tecladista, o que se espera de todo instrumentista.


Isto é, apenas a capacidade de executar uma peça composta para seu instrumento, de
acordo com as regras da boa execução. Além disso, exige-se do tecladista que faça
fantasias de todo tipo; que desenvolva de improviso um tema dado, seguindo as
rígidas regras da harmonia e da melodia. Que toque em todas as tonalidades com a
mesma facilidade, que transponha instantaneamente e sem erros de uma tonalidade
para outra, que toque tudo, indistintamente, à primeira vista, sejam ou não peças
escritas para seu instrumento; que tenha completo domínio da ciência do baixo
contínuo, realizando-o de maneira variada, ora de acordo com a severa harmonia, ora
no estilo galante, ora com poucas, ora com muitas vozes, ora com baixos muito
cifrados, ou pouco cifrados, ou cifrados incorretamente ou mesmo sem nenhuma cifra;
[...] e quem sabe quantas outras exigências ainda não se fazem ao tecladista? (C.P.E.
BACH, Versuch..., 1753, tradução de Fernando Antônio Cazarini).

Esse resmungo circunstanciado do Prefácio estende-se pelo texto afora. Em


outros momentos Carl Philipp coloca o problema do tecladista cuidar daquilo que hoje
(ainda numa época de vigência da divisão especializada dos serviços musicais cultos)
chamamos de regência (dar entradas, cortes, fermatas, ensaiar, anunciar e manter o
andamento, enfim, estabelecer toda uma concepção de execução em conjunto de uma
obra musical).
Ainda no Prefácio, Carl Philipp diz que “quase todo professor obriga seus alunos a
tocar suas [as dos professores] próprias composições adaptações, transcrições e
arranjos, pois hoje em dia parece vergonhoso não saber compor [...] como conseqüência
de tudo isso vemos surgir uma grande quantidade de peças miseráveis para o teclado”.
Carl discorda deste costume de época e atribui a este fato muitos problemas de
ensino/aprendizagem e sugere que se usem sempre peças escritas por grandes
225
Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), o tecladista, compositor e ensaista alemão. A primeira parte do seu
Versuch... foi publicada em 1753, e a segunda, que trata da teoria do acompanhamento e da fantasia livre, foi
publicada em 1762. Em 1787, Carl Philipp publica ainda uma terceira edição à qual são adicionadas seis novas
sonatinhas como suplemento. Os escritos biográficos sobre esse segundo filho de Johann Sebastian Bach
atestam que Carl Philipp “foi um desses raros seres humanos para quem os deuses parecem ter sorrido desde o
nascimento” (McLEISH, 1988, p. 9). Carl Philipp se destaca, conforme comenta Ottaway (1982), pelo papel de
referência que sua produção musical representa nesse período, confuso e prolífero, de transição entre os estilos
e maneirismos que atravessam desde os finais do século XVII até os inícios do século XIX. Sua concepção do
fazer musical é historicamente emblemática como a fiel e verdadeira representante da tradição musical alemã.
Haydn foi seu mais imediato e confesso seguidor: “Tudo o que sei tenho aprendido de Carl Philipp” (apud
OTTAWAY, 1982, p. 77). E Mozart reforça essa mesma opinião: “Carl Philipp é o pai, nós outros os filhos; se
fazemos algo digno o aprendemos com ele, e quem não quer admiti-lo é um canalha” (idem, p. 85). Sobre a
contribuição de Carl Philipp ao estilo galante e ao empfindsamer Stil ver Lippman (1992, p. 79).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 149 -
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

mestres.226 Essas reivindicações de Carl Philipp se tornaram questões determinantes do


ofício musico - instrumental ocidental contemporâneo. Vale dizer que tal desejo de
especialização, então apenas manifesto, foi aos poucos se impondo e convencendo, até
ao ponto onde se encontra o instrumentista erudito atual, em uma situação, de um
modo geral, em pólo oposto.
Podemos nos aproximar da arte do baixo contínuo através de uma rotina teórica
e prática que é encontrada em praticamente todos os tratados de baixo-
A regra contínuo da época de Carl Philipp Bach. 227 Trata-se da regra da oitava, um
da
oitava sistema simplificado de harmonia, uma espécie de guia rápido e pronto, onde a
escala diatônica ascendendo e descendo uma oitava é considerada como uma
parte de baixo que, a cada nota, recebe uma harmonização específica.

Exemplo 1.9: Uma realização da regra da oitava conforme figuração de François Campion, 1716.228

226
Tradução de Fernando Antônio Cazarini.
227
Conforme Alain (1968, p. 45-46), Arnold (1965, p. 280), Barnett (2006, p. 441), Christensen (1992a, p. 35;
1992b, p. 91), Fagerlande (2002, p. 56-67), Lester (2006, p. 756) e Williams (2001, p. 121)
228
A partir da realização e comentários de Christensen (1992b, p. 91). No exemplo, as cifras de Campion são
somente os números que estão acima da clave de fá. As cifras e algarismos romanos abaixo da linha de baixo
têm finalidade apenas comparativa com sistemas de cifras usados atualmente. Na presente cifragem da regra,
apenas as notas tônica e dominante recebem “acordes perfeitos” (no sentido de acordes em estado
fundamental), enquanto as demais notas suportam diferentes tipos de “acordes com sexta” (significando
acordes em primeira e segunda inversão, com sétima ou não, segundo cada caso). Segundo Christensen, esta
estratégia para aprender improvisação foi um desenvolvimento pedagógico de uma escola popular de teclado
dos músicos práticos italianos durante o século XVIII chamada partimenti. Um tratado de partimenti típico
contém uma série de linhas de baixo – cifradas ou não – sobre a qual o tecladista deve desenvolver uma
realização idiomática (ver Exemplo 1.14). A regra da oitava era considerada pelos professores de partimenti
como um exercício rotineiro necessário, mas dificilmente suficiente para uma completa aquisição de uma
proficiência profissional no teclado.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 150 -
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Fagerlande destaca duas características principais na règle: “normalmente são


poucos os graus utilizados, apenas I, IV e V. A segunda característica é que a escala
ascendente tem harmonia diferente da descendente (FAGERLANDE, 2003. p. 56). Como a
nota do baixo não é necessariamente a fundamental do acorde, percebe-se nesta regra da
oitava o avançado estágio que a arte da inversão alcança na era do baixo contínuo.229 O
Exemplo 1.9 reproduz uma das cifras de Campion, que salvo algumas exceções, é uma
figuração encontrada na maioria dos textos do século XVIII. Conforme as informações de
Christensen (1992b), a idéia subjacente à regra é que, a cada grau de escala se associa a
uma harmonia própria, de tal maneira que, reciprocamente, o grau define o acorde e o
acorde define o grau. Assim como a Tabula naturalis (ver Exemplo 1.7) e as progressões
cadenciais pelo círculo das quintas comentadas logo adiante (ver Exemplo 1.11), os músicos
usavam esse dispositivo mnemônico de várias formas e para vários fins. A regra fazia parte
da iniciação dos acompanhadores e compositores que, treinando essas progressões em
várias tonalidades, passavam a ter debaixo dos dedos a maioria das harmonias em voga.
Outra aplicação didática da regra era seu uso no treinamento da arte da improvisação, ou
da arte de preludiar, como era chamada na época, pois a regra era considerada uma
maneira rápida e divertida de se conseguir resultados sofisticados. Conforme Fagerlande,

inumeráveis publicações e escritos dos séculos XVIII contêm a regra de oitava, que
funciona como um modo de aprender as sucessões comuns de acordes, como uma
maneira de lidar com baixos não cifrados e ainda como uma base para a
improvisação. Além disso, funcionou também como um impulsionador de discussões
a respeito da harmonia e da estrutura tonal [...]. A definição da règle por Michel
Corrette em 1753, demonstra o prestígio que alcançou. Esse autor a considera a
“bússola do acompanhador”, que serve para a orientação de qual tom se está, e sobre
que grau desse tom, e ainda, que acorde será conveniente.230 [...] Considera-se que,

229
Conforme Christensen (1991a) e Fagerlande (2002), essas séries de exercícios são conhecidas por vários
nomes, tais como: Ambitus modi, Harmonical scale, Modulazione dell'ottava, Tavola per la modulazione,
Sitze der accorden, Einrichtungen der musikalischen Octaven (disposição de oitava), Ordnung einer octaver-
leiter (ordem de uma escala em oitava), Allgemein Bassleiter (escala de baixo comum), Allgemeine Octav
Gang (passagem de oitava comum) e esse nome que estamos usando aqui, la règle de l'octave ou regola
dell’ottava (a regra da oitava, ou simplesmente la règle). Esse último termo foi usado pelo teorbista e
guitarrista francês François Campion (c.1685-1748) em seu Traité d'Accompagnement et de Composition
selon la régle des octaves de musique, de 1716. No verbete règle de l'octave do seu Dictionnaire de musique
de 1767, Rousseau (1998, p. 413) informa que teria sido Delaire em 1700 o primeiro a publicar essa formule
harmonique (Rousseau provavelmente se refere ao Traité d’accompagnement pour le théorbe, et le clavessin,
cuja primeira edição é de 1690, de Etienne Denis Delair, falecido após 1727). Contudo, sabe-se atualmente
que, como quase tudo em harmonia, a prática dessas rotinas tem autoria desconhecida e datação incerta em
época anterior ao contexto já mais decididamente tonal do século XVIII.
230
O músico, professor e compositor francês Michel Corrette (1707-1795), sua obra como compositor é vasta
e destaca-se pela utilização de melodias populares, mas é também considerada fácil e desigual. Como teórico
escreveu em torno de 17 livros didáticos, dentre os quais se destaca o L’École de Orphée (1738), um tratado
sobre o violino descrevendo os estilos francês e italiano, e o pioneiro método de violoncelo, Méthode
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 151 -
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pelo sucesso que obteve, e pelas simplificações que exigia, a regra de oitava acelerou
bastante a fixação da tonalidade sobre os graus principais. [...] o que levou ao
reconhecimento de como uma tonalidade pode ser expressa pela harmonia. A
importância da tonalidade para a utilização da règle tem como conseqüência que os
métodos do início do século XVIII são os primeiros a publicar todas ou parte das 24
tonalidades (FAGERLANDE, 2002, p. 56-57).231

Quase cinqüenta anos depois de François Campion, em 1762, no último capítulo


da segunda parte do Ensaio..., Carl Philipp Emanuel Bach trata da Fantasia Livre, e
recomenda o treinamento por meio dessas linhas de baixo em oitavas.

A maneira mais rápida e natural de que se podem servir nos prelúdios também os
cravistas com poucas capacidades é a seguinte: com o cuidado necessário, ele elabora
seu baixo a partir da escala ascendente e da descendente da tonalidade prescrita,
acompanhado de várias cifragens (Exemplo 1.10a). Pode-se interpolar alguns
semitons (Exemplo 1.10b) arranjando a escala na seqüência normal ou fora dela
(Exemplo 9c), executando as progressões resultantes, arpejadas ou sustentadas, em
andamento conveniente. Os pontos de órgão [nota pedal] na prima [fundamental] são
convenientes para se fixar a tonalidade escolhida, no início e no fim (Exemplo
1.10d). Antes da conclusão, podem-se introduzir também pontos de órgão sobre a
dominante (Exemplo 1.10e). (C.P.E. BACH, Versuch..., 1762).232

Exemplo 1.10: Alguns baixos para a prática da Fantasia livre, segundo C.P.E. Bach, 1762.233

théorique et pratique. Pour apprendre en peu de temps le Violoncelle dans sa Perfection, publicado em
1741. O título completo, típicamente barroco, do trabalho de Corrette de 1753 que está sendo citado aqui é :
Le maître de clavecin pour l'accompagnement, méthode théorique et pratique, qui conduit en très peu de
tems à accompagner à livre ouvert avec des leçons chantantes où les accords sont notés pour faciliter l'étude
des commençants. Ouvrage utile à ceux qui veulent parvenir à l'excellence de la composition. Le tout selon
la règle de l'octave et de la basse fondamentale.
231
Fagerlande observa ainda que, para alguns comentaristas, a intensa prática da regra da oitava em meados
do século XVIII foi um dos fatores que contribuíram para o gradual declínio do baixo contínuo,
possivelmente em função de seu caráter esquemático e das suas harmonias simples, voltadas ao grande
número de amadores que surgia. “Para esses, o baixo continuo mais que ajuda, podia ser até um empecilho
para fazer música” (FAGERLANDE, 2002, p. 57). (Ver o Exemplo 1.19). O trabalho de Fagerlande tem
especial interesse para o estudo da trajetória da teoria da harmonia no Novo Mundo, pois, através de
raríssima exemplificação cuidadosamente coletada e comentada, analisa especificamente a importância
fundamental que a regra de oitava alcançou nos tratados luso-brasileiros no período de 1751 a 1851.
232
Tradução de Fernando Antônio Cazarini.
233
A partir de C. P. E. Bach (1925, p. 122-123). No exemplo a realização na clave de sol é hipotética, as
cifras de C. P. E.Bach são somente os números que estão acima da clave de fá (no Ensaio... um mesmo baixo
recebe várias cifras diferentes). As cifras abaixo da linha de baixo têm finalidade apenas comparativa com
sistemas de cifragem usados atualmente. Essa série de escalas cifradas de C. P. E.Bach é parcialmente citada
e comentada por Christensen (1992b, p. 111).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 152 -
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Um outro dispositivo mnemônico dos tempos da tabula naturalis e da regra da


oitava que, até hoje, continuamos elaborando e usando é o exercício de progressões
harmônicas cifradas que transitam pelo círculo das quintas. Mesmo que esses
dispositivos sejam tipicamente rotinas práticas que visam a aquisição e o
desenvolvimento das habilidades músico-instrumentais, não podemos deixar de observar
que esses recursos manuais estão longe de ser algo como uma pretensa técnica pura ou
apenas bons exercícios neutros, pois de fato carregam consigo todo uma concepção de
mundo e de música e visam a propagação e o condicionamento de um pesado programa
estético e teórico. O exercício envolvendo simultaneamente os sentidos da audição, da
visão e do tato, a sensibilização emocional, a memória muscular e motora, desencadeia
um complexo cruzamento de sensações, associações e combinações de diferentes
percepções que, indo muito além de uma razão abstrata e imóvel, possivelmente, é o
mais importante livro de teoria da harmonia jamais escrito. Se por um lado o patrimônio
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 154 -
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teórico pôde se conservar e se transmitir através de exposições orais, demonstrações


exemplares, textos escritos, partituras e sistemas gráficos de cifragem e análise, etc.,
por outro, essas rotinas práticas se mostram tanto ou mais capazes de transmitir e
manter sinestesicamente, de conservar e lembrar numa só impressão, um número sem
fim de valores teóricos que guardam consigo algo das concepções filosóficas, morais,
religiosas, econômicas, éticas e étnicas que ambientam a instituição dessas práticas
teóricas. Mesmo correndo o risco de exagerar um pouco nas tintas, podemos dizer que
essa gestualidade técnica — a repetição sem fim dos vocalizes de quinta, a
automatização do balé dos nossos dedos sobre as teclas, chaves e cordas dos nossos
instrumentos, etc. — é uma das mais profundamente enraizadas e difundidas formas de
escritura teórico-estética da harmonia tonal.234
Um registro anterior às regras de Campion de 1716 (Exemplo 1.9), que pode
igualmente ilustrar a gradual propagação, desde o século XVII, dessa
escritura cifrada de persuasão e aprendizagem cinestésica é o conjunto de
exercícios propostos pelo italiano Lorenzo Penna (1613–1693), em seu Li
Progressões primi albori musicali de 1672, comentado por Barnett (2006, p. 445-446). O
pelo circulo
das quintas Exemplo 1.11 mostra o primeiro dos quatro tipos de cadências, chamado de
“Circolo, ò ruota delle cadenze del primo ordine” (círculo, ou roda das
cadências de primeira ordem) que Penna, mostrando uma concepção de
tonalidade já consideravelmente expandida, usa para navegar por um
círculo de doze quintas.235

234
Um tratado gasta páginas para dizer (argumentar e contra-argumentar, explicar, exemplificar e contra-
exemplificar, mapear as razões históricas, estéticas e filosóficas do conceito, etc.) que, tradicionalmente, o
melhor encadeamento de acordes é aquele que respeita a lei do menor esforço, que os movimentos de
oitavas e quintas paralelas são proibidos, que a terça de um acorde não pode ser duplicada sem os devidos
cuidados, que o salto melódico de intervalos aumentados e diminutos acarreta cuidados específicos, etc.
Mas, nas rotinas técnicas e nas obras do repertório tonal propriamente dito, essas grandezas teóricas se
reafirmam na leveza de cada instante. Nesse momento, em todo mundo tonalizado, podemos imaginar que
muitos dos pesados livros de harmonia estão fechados, mas, mesmo assim, as lições continuam sendo
recitadas, sem palavras e de cor, no interior de cada compasso que ouvimos e tocamos e a cada oportunidade
que sentamos para praticar nossos instrumentos. No campo dos estudos das músicas populares – onde
comumente vamos lidar com situações onde hábeis artesãos, mestres consumados da arte da harmonia vão
defender seus domínios, suas crenças e convicções, com frases do tipo “nunca estudei harmonia”, “nunca li
nenhum livro de harmonia”, “nunca tive aula de harmonia”, “não sei nada de harmonia”, “preciso ter aulas
de harmonia”, “não conheço nada de harmonia tradicional”, “não faço a menor idéia do nome que desse
acorde”, “aprendi, ou descobri, sozinho”, etc. – esse pormenor que estamos tentando realçar aqui é muito
significativo, pois abre a possibilidade de um entendimento outro, onde esses mestres consumados da arte da
harmonia popular vão se mostrar como verdadeiros “eruditos” e “grandes estudiosos”, os mais assíduos e
disciplinados leitores desse outro livro de harmonia pleno de tradição e função que, mesmo sem palavras
escritas no papel, afirma, discute, discorda, nega e reafirma o pensamento musical centenário que, vivo em
nossa arte e ofício, interatua com a vida fora da música.
235
Sobre a gradual conquista teórica do círculo das quintas ver Barnett (2006, p. 444) e Lester (1978).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 155 -
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Exemplo 1.11: Exercício para a prática do mesmo tipo cadencial através do círculo de quintas, conforme
figuração de Lorenzo Penna, 1672.236
Ordinari

Estravaganti per bb mole Estravaganti per li#

Tais exercícios — a tabula naturalis, a regra da oitava e as progressões pelo círculo


de quintas — são representativas do processo de instalação dessa outra escritura
moderna da harmonia que, se fazendo tocar e ouvir em rotinas lentamente alimentadas
na fina trama dos costumes e hábitos, das atitudes e gestos, redunda numa espécie de
convencimento biofisiológico de um determinado sentido de beleza, eficiência e
funcionalidade harmônica que passa pela percepção do peso e posição, do movimento
entre tensão e distensão, esforço e compensação, provocados por deslocamentos da mão
humana. E é principalmente por isso que a realização por escrito do baixo cifrado (como
aparece em partitura nos exemplos aqui), tem sempre sentido muito precário de
exposição introdutória e elementar apenas para fins pedagógicos ou teóricos. E mesmo
para essas finalidades a realização escrita pode nos conduzir de forma enviesada, pois
pode nos afastar da natureza de um conhecimento por meio da aproximação à um outro.
Uma realização escrita tem apenas o valor de um convite para que, ao nosso próprio
juízo, experimentemos tocar as cifras em nossos instrumentos. Essa propriedade do
tocar, da necessária ação gestual, evidencia que a diferença substancial entre a arte da

236
A partir de Barnett (2006, p. 446). No exemplo todos os compassos recebem exatamente a mesma
numeração. A realização da harmonia é apenas uma indicação hipotética e as cifras abaixo da clave de Fá
servem apenas para a comparação com uma das possíveis maneiras de cifrar esse tipo cadencial nas atuais
práticas da música popular. O nome um pouco mais completo desse trabalho de 1672 de Lorenzo Penna é: Li
primi albori mvsicali per li principianti della musica figurata distinti in tre' libri: dal primo spuntano le
principij del canto figvrato; dal secondo spiccano le regole del contrapvnto; dal terzo appariscono li
fondamenti per suomare l'organo ò clavicembalo sopra la parte...
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 156 -
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harmonia e a arte do baixo contínuo não está propriamente na matéria que se aprende,
mas sim no como se aprende a matéria.
Os números, como se observa nos exemplos até aqui, indicam os intervalos que se
contam a partir das notas que estão no baixo — as notas do baixo vão sempre escritas — e
não a partir da fundamental dos acordes, como passou a ser o costume contemporâneo.
Os números e demais sinais ocorrentes (como os bemóis, sustenidos, traços e cruzes) do
cifrado não são absolutos e não tem o propósito de fixar um único e determinado acorde,
inversão ou movimento harmônico causado por notas auxiliares (suspensões, passagens,
etc.). Os números e sinais têm valor circunstancial e condicional, pois dependendo das
relações que estabelecem com a armadura de clave e a infinita variabilidade da linha do
baixo, uma mesma numeração pode significar situações harmônicas substancialmente

diferentes (como é o caso do valor da cifra no Exemplo 1.12).

Exemplo 1.12: Numeração igual para situações harmônicas diferenciadas (a,b, c, d) e numerações
diferentes valorizando as inversões específicas do mesmo acorde (e).237

Como o baixo contínuo é testemunho de uma época quando a jovem harmonia,


menos preocupada com os recursos de redução analítica, procurava meios de se
expandir, aquilo que aprendemos a pensar agora como um mesmo e único acorde, na
época do cifrado barroco, dependendo da nota posicionada no baixo, vai ser valorizado
como coisa nitidamente diferente, e por isso representado por números sem clara
relação aparente para os não iniciados (ver Exemplo 1.12e). Essa natureza inconstante e
mutável é um fator altamente positivo da arte e ofício do baixo cifrado, pois estimula no
músico um reflexo de atenção permanente que favorece a formulação de respostas
criativas, desiguais e individualizadas. De maneira comparável às cifragens que usamos
atualmente na música popular, os números do barroco também não determinam

237
A partir de Dahlhaus (1990, p. 136).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 157 -
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exatamente o posicionamento da nota indicada na cifra (no sentido de que um 4 acima


de um 3 não significa necessariamente que a nota correspondente a esse intervalo de
quarta vá acima ou abaixo da nota correspondente ao intervalo de terça). A opção de
abertura do acorde não está dada na cifra que assim será realizada com uma ampla
margem de liberdade, que é algo mais típico dessa natureza do baixo cifrado. O Exemplo
1.13 ilustra hipoteticamente o potencial de diferentes posições (ou aberturas) para uma
mesma cifra sobre uma única nota no baixo.

Exemplo 1.13: Diferentes posições para uma mesma cifra sobre uma única nota no baixo.

O Exemplo 1.13 serve também para introduzir o comentário de que o cifrado não
indica o número de vozes que serão empregadas no acompanhamento. O número de
vozes está relacionado ao controle da expressão e da dinâmica. Segundo C. P. E. Bach,
nas instruções iniciais da segunda parte do Ensaio... (1762), “o acompanhamento pode
ser a uma, duas, três, quatro ou mais vozes. O acompanhamento a quatro ou mais vozes
pertence à música forte, com muitos instrumentistas [...] O acompanhamento a três ou
menos vozes se emprega para coisas delicadas, quando o gosto, o fraseado, ou o afeto
de uma passagem exige certa ductibilidade [aquilo que se pode conduzir, guiar,
direcionar; manejável] na harmonia.” (C. P. E. BACH, Ensaio... apud RIEMANN, p. 76-
79). Ainda conforme C. P. E. Bach, o acompanhamento livre, não se sujeita a conservar
o mesmo número de vozes ao longo da obra, a realização deve variar, saltar e ser
ornamentada. De tal forma, esses acordes esquematicamente escritos como blocos de
notas, estão longe de corresponder à sua efetiva realização artística. Comentando a
grande diferença entre a notação do baixo contínuo e sua efetiva realização,238 Williams
e Ledbertter (2001, p. 362) apresentam uma solução de 1676 (ver Exemplo 1.14),

238
Outra referência que pode ilustrar a importância de não se tocar o que está escrito é o artigo de Tagliavini
(1983) que, com muitas exemplificações, comenta à arte de não deixar o acompanhamento vazio cultivada
pelos tecladistas italianos dos finais do século XVI e inícios do XVII.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 158 -
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encontrada no tratado Musick's Monument do alaudista, compositor e cantor inglês


Thomas Mace (c.1612- c.1706).

Exemplo 1.14: Exemplificação da realização de um baixo cifrado por Thomas Mace, 1676.

Essa exemplificação de Mace, embora tenha nos chegado necessariamente de


forma escrita, é um indicativo de que a realização artística do cifrado não se enquadra
em nenhuma solução fixa e totalmente pré-composta. O intérprete do contínuo deve
estar habilitado à atuar como uma espécie de co-compositor no mínimo da condução de
vozes. Para Fagerlande (2000, p. 11), “Os exemplos mais interessantes desta relação
entre baixo contínuo e composição são de Friedrich Erhard Niedt [...]. A partir de um
baixo cifrado, Niedt mostra algumas possibilidades de como variar sobre uma mesma
harmonia, compondo inícios de variadas danças. Nestes exemplos podemos perceber a
tênue linha divisória entre improvisação a partir de um baixo cifrado e uma composição
propriamente dita.” Algumas das soluções de Niedt, transcritas por Fagerlande, são
reproduzidas aqui no Exemplo 1.15.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 159 -
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Exemplo 1.15: Diferentes possibilidades composicionais a partir de um mesmo baixo cifrado, por Niedt, 1700.239

239
Exemplo transcrito de Fagerlande (2000, p. 12). Tal demonstração aparece no Musicalische Handleitung
(1700) de Fredrich Erhard Niedt (1674-1708). A versão integral do baixo cifrado que serve de base para as
demonstrações de Niedt aparece transcrito e comentado em Youngerman (2002, p. 46-57).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 160 -
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

A demonstração de Niedt ilustra também o fato de que — assim como ocorre na


música popular atual — a realização de qualquer cifra depende de uma infinidade de
conhecimentos e informações que de fato não estão nas cifras, mas sim no seu entorno
contextual. Para a contextualização de sua demonstração Niedt escolhe ambientar o baixo
cifrado no mundo da suíte barroca para teclado, tal como esse gênero musical ficou
conhecido na segunda metade do século XVII após a contribuição do compositor alemão
Johann Jakob Fröberger (1616-1667), considerado uma espécie de pai da suíte barroca. E
essa ambientação alimenta as cifras de inúmeras informações. Como se sabe, nesse
contexto barroco, a suíte é uma sucessão de movimentos de danças de caráter distinto
cuja origem remonta à cultura popular medieval, assim, à época de Niedt, o gênero já
carrega séculos de cultura. Conforme Hodeir (1988, p. 71-74), no século XVII o estilo da
suíte foi impulsionado por mestres da Itália (como Frescobaldi e Corelli), da Alemanha
(Peurl, Fröberger, Schein), Inglaterra (Locke, Purcell) e França (As Ordens de François
Couperin são lembradas como obras primas do gênero),240 que em seu conjunto trouxeram
a grande erudição polifônica que culminará, no século XVIII, nas célebres Partitas e Suítes
de Johann Sebastian Bach que, vale recordar, na sua prática como professor adotava
justamente os ensinamentos do tratado de baixo contínuo de Niedt (MANN, 1994, p. 19;
POULIN, 1994; YOUNGERMAN, 2002, p. 42-43).241

240
Na França que vai ver surgir a teoria da harmonia de Jean-Philippe Rameau (ele próprio tecladista e
também compositor de suítes), a suíte alcançou seu apogeu nos anos de 1700-1710 quando a frutífera escola
francesa de cravo produziu sucessivos livros de suítes publicados por compositores como Gaspard Le Roux
(1660-1707), Nicolas Siret (1663-1754), Elisabeth Jacquet de la Guerre (1665-1729), Charles Dieupart
(1667-1740), Louis Marchand (1669-1732), Louis-Nicolas Clérambault (1676-1749) e Jean-François
Dandrieu (1682-1738).
241
A suíte pós-Fröberger, que parece servir de modelo para os inícios de danças que aparecem no Exemplo
1.15, se baseia na sucessão de movimentos moderados ou lentos e movimentos rápidos, todos na mesma
tonalidade e comumente com uma estrutura interna similar em forma binária (Cf. BENNETT, 1986, p. 15;
GREEN, 1979, p. 167-177; KOHS, 1976, p. 99-105; LaRUE, 1989, p. 139-141). As danças escolhidas por
Niedt carregam um amplo repertório de referências artísticas e peculiaridades histórico-culturais que vão
muito além dos números acima do baixo. Em rápidos comentários poderíamos mencionar algo dessas
referências e peculiaridades que também influem na realização ou figuração da harmonia. Segundo Zamacois
(1985, p. 155-166), a Allemande (dança alemã) é uma dança em compasso quaternário, com andamento
Allegro moderato ou moderato, com um característico início anacrúsico, seu desenho melódico não oferece
geralmente a fisionomia de um verdadeiro tema, mas sim de uma ininterrupta sucessão de semicolcheias
distribuídas entre as duas mãos. A Courante (corrente) tem ritmo ternário e andamento moderadamente
rápido ou rápido, o costume mais antigo exige o início anacrúsico. A Sarabande é uma dança de origem
espanhola que remonta ao século XII, tem compasso ternário simples, movimento pausado e caráter nobre. O
Minuet é uma dança de corte de origem francesa, seu compasso é ternário simples em andamento moderado,
os minuetos primitivos começavam no tempo forte do compasso e suas melodias se formam por grupos de
dois compassos. Os números I e II que aparecem junto ao nome das danças se devem ao fato de que as
danças poderiam se agrupar em pares: Allemande I e II, Courante I e II, etc. Assim, o próprio nome da dança
é também uma espécie de cifra que estimula a criatividade do músico. Em 1739, o teórico iluminista
contemporâneo de Rameau, Johann Mattheson, diz: “Com nada mais do que uma giga (dança francesa bem
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 161 -
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Na época do baixo contínuo a linha do baixo alcançou sua notável mobilidade


moderna, com isso, nem todas as notas do baixo correspondem à acordes, em seu longo
capítulo sobre as notas rápidas no baixo, Arnold (1965, p. 716-777) comenta várias
situações onde isso acontece a partir do General-Bass in der Composition, de 1728, do
compositor e teórico alemão Johann David Heinechen (1683-1729), o Exemplo 1.16
ilustra um desses casos.

Exemplo 1.16: Cifras sobre notas rápidas no baixo segundo o Exemplo 53 de Heinechen, 1728.242

rápida), posso expressar quatro importantes afetos: raiva ou avidez, orgulho, desejo simples e frivolidade.
Por outro lado, se tivesse que expressar palavras francas e sinceras com música, eu não deveria escolher
outro tipo de melodia que não fosse a da Polônia, a polonaise” (MATTHESON apud GAINES, 2007, p. 93).
Sobre as características das danças barrocas ver Horst (1966). Sobre as relações entre a realização harmônica
e a figuração rítmica das danças na cultura barroca francesa ver Rameau (1986, p. 159-161). No início dos
seus comentários sobre métrica no tratado de harmonia de 1722, Rameau (1986, p. 150) cita Descartes que,
em seu Compendium musicae já de 1618, como assinalam Flores, Gabilondo e Gallardo (1992, p. 61), dá
grande importância à dança, como expressão do movimento rítmico compassado, isto é, proporcionado e
adequadamente ordenado no espaço e no corpo, que por meio musical restabelece o equilíbrio entre o ritmo
da respiração e o ritmo da vida (p. 64). A referência à Descartes é um registro da esfera culta, que mostra que
na época do apogeu da suíte barroca as danças já gozavam de status nobremente diferenciado e mostra
também que o assunto era de conhecimento bastante geral, e não apenas específico dos músicos, o que
amplia nossa compreensão dos usos didáticos das danças feitos por músicos-professors como Niedt, Rameau
e J. S. Bach. Flores, Gabilondo e Gallardo (1992, p. 64), comentam que a incidência do assunto em Descartes
se nutre do ambiente, e dão como ilustração a informação de que, na época do Compendium, existiam mais
de 300 maestros de dança em Paris. Nesse ambiente, entre o culto e o vulgar, toda essa viva expressão
também nutriu de sentidos, trouxe referências e oportunizou muitas experiências rotineiras de realização
prática das cifras musicais.
242
A partir de Arnold (1965, p. 762).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 162 -
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O Exemplo 1.17 ilustra a importância do contínuo como uma cultura de


entretenimento entre as classes ricas do século XVIII, trata-se da transcrição da lição de
número 20 com a qual George Frideric Handel (1685-1759), entre 1724 e 1730, ensinava às
princesas Anne, Caroline, Amélia e Louisa, filhas de George II (LEDBETTER, 1990, p. 1),
um dos mais expressivos efeitos da harmonia do barroco conhecido como dupla suspensão.

Exemplo 1.17: Lição para a prática da dupla suspensão segundo Handel, c. 1724-1730.243

Podemos ter uma idéia da realização do contínuo à época de Johann Sebastian Bach
através dos baixos cifrados de seus Corais, já que algumas dessas obras trazem tanto as
cifras quanto a condução de vozes para o coro a quatro vozes. Tanto a harmonização de
melodias corais quanto o acompanhamento desses corais tomam parte dos rudimentos
essenciais da profissão musical do período nas igrejas e comunidades protestantes, e esse
treinamento na arte da harmonização de corais se conserva ainda hoje nas rotinas de
iniciação à harmonia tradicional. A condução que o tecladista toca pode não ser
exatamente a mesma que o coral canta, já que algumas aberturas e movimentações
vocais podem não funcionar no instrumento. No entanto, as partes escritas para as vozes
não são contraditórias às harmonias expressas pelas cifras que são interpretadas com
bastante liberdade.
243
A partir de Ledbetter (1990, p. 30) e Mann (1994, p. 25).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 163 -
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Exemplo 1.18: Partitura e cifras do Coral Wer hat dich so geschlagen da


Paixão Segundo São Mateus de J.S. Bach, 1729.
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O Exemplo 1.18 reproduz a partitura e o cifrado do Coral Wer hat dich so


geschlagen conforme a versão que aparece em 1729 na Paixão Segundo São Mateus de J.S.
Bach. Alguns baixos recebem muitas cifras, mas isso não significa que todo o detalhamento
dos intervalos deva ser necessariamente tocado pelo acompanhante, muitas cifras parecem
indicar mais o que não tocar, pois muitos números podem se referir aos intervalos
resultantes dos movimentos que as linhas melódicas realizam em relação ao baixo.

Exemplo 1.19: Rápidas mudanças de cifras em baixos cifrados da Oferenda Musical de J. S. Bach, 1747.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 165 -
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O Exemplo 1.19 procura ilustrar esse tipo de situação através de três fragmentos
da Trio sonata da Oferenda Musical, BWV 1079, de J. S. Bach (1747), um dos
compositores mais célebres por indicar cifras complexas em mudanças rítmicas muito
rápidas. No exemplo as realizações escritas são do teórico alemão, aluno de Bach,
Johann Philipp Kirnberger (1721-1783).
O Exemplo 1.20a, reproduz a página 248 do Kleiner General-Bass-Schule de
Mattheson, de 1735. As duas primeiras linhas trazem uma cifra para o mesmo baixo que nas
três últimas linhas recebe uma cifragem mais complexa, com muitas suspensões, que é a
cifra que aparece realizada por Hugo Riemann no Exemplo 1.20b.

Exemplo 1.20a: Reprodução da página 248 do Kleiner General-Bass-Schule de Mattheson, 1735. 244

244
Kleiner General-Bass-Schule pode ser traduzido aproximadamente como Escola Elementar de Baixo
Contínuo. Alguns indícios de que o trabalho de Riemann é uma realização escrita para fins didáticos são: o
registro um tanto agudo dos acordes, a realização praticamente homogênea à 5 vozes, e o fato de que a
numeração corresponde literalmente à ordenação das notas na partitura (o que não procede na prática).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 166 -
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Exemplo 1.20b: Resolução do baixo cifrado de Mattheson por Hugo Riemann, 1917.245

245
Foram conservados os números de 1735 (entre as duas pautas) e, abaixo da clave de fá, aparece uma
cifragem hipotética mais ou menos aceita na música popular atual. Todos os acordes são perfeitos e
consonantes, as tensões ocorrentes são notas auxiliares. Os traços horizontais entre os dois números procuram
indicar os movimentos das notas de aproximação (apojaturas, à esquerda do traço) em direção à suas
respectivas resoluções sobre as notas do acorde (a direita do traço). No trecho musical resultante, quase todas as
partes fortes do compasso (a primeira mínima) estão ocupados com acordes estranhos, resultantes desses
movimentos de apojaturas em diferentes vozes, que parece ser a principal habilidade a ser treinada no exercício.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 167 -
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Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 168 -
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A resolução de Riemann (1927, p. 234) aparece como exemplo final do seu manual
de baixo cifrado e pode ilustrar o uso do baixo cifrado no contexto das aulas de
harmonia, estudo que se difere em vários aspectos do uso artístico do cifrado para
acompanhamento na música barroca.
O Exemplo 1.21 é um registro do uso do baixo cifrado na produção musical religiosa
brasileira (mineira) dos séculos XVIII e XIX, reproduz o trecho do compasso 32 ao 43 do
Miserere (Salmo 50) de autor anônimo, editado por Paulo Castagna, que se encontra no
acervo do Museu da Música de Mariana (MG). Acervo que reúne manuscritos musicais que
foram acumulados na Catedral de Mariana, em função das atividades musicais
246
desenvolvidas nessa igreja durante esses séculos. O Quadro 1.24 baseia-se na
contribuição de Fagerlande (2002), um trabalho que investiga, analisa e confronta os
conhecimentos sobre baixo contínuo no Brasil a partir dos tratados em língua portuguesa
existentes nos arquivos brasileiros, que de alguma forma eram minimamente disponíveis
para a consulta dos músicos no nosso país nos séculos XVIII e XIX.

Quadro 1.24: Fontes que abordam o baixo contínuo em língua portuguesa.

Segundo Fagerlande, a produção teórica sobre o baixo o contínuo no Brasil, pode


ser considerada tardia, se comparada à produção dos países europeus (principalmente
Itália, Alemanha, França e Inglaterra), não só em função das datas, mas também em
relação à abordagem do assunto já que os tratados luso-brasileiros estão voltados para
questões tratadas na Europa muitos anos antes, “a grande parte dos autores citados por
nossos tratadistas evidencia este olhar conservador” (FAGERLANDE, 2002, p. 15).

246
Em nosso estudo um fragmento como esse que aparece no Exemplo 1.21 pode também ilustrar como a
figuração desses baixos de igreja, de alguma maneira, possivelmente influiu na formação dos baixos da música
popular que ia nascendo nas imediações das irmandades religiosas. Se conservarmos em mente essa sugestão, é
possível falsear essa hipotética influência das soluções sacras na música de sotaque mais popular
experimentando tocar as cifras e a linha do violoncelo do Misere em diferentes acentuações e andamentos.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 169 -
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Exemplo 1.21: Trecho do Miserere (Salmo 50), de autor anônimo, transcrito por Paulo Castagna,
Museu da Música de Mariana, séc. XVIII – XIX.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 170 -
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O Exemplo 1.22 é uma ilustração hipotética que traz uma tentativa de aplicação
dos princípios do baixo cifrado barroco nos primeiros compassos do choro canção
Ingênuo de Pixinguinha (1897-1973) e nos primeiros compassos do choro Odeon de
Ernesto Nazareth (1863-1934). Essa ilustração é oportuna para introduzir o comentário
de que a impossibilidade de usar o sistema barroco no choro, assim como em boa parte
da música popular, reside principalmente no fato de que, nessas práticas musicais
contemporâneas, a linha do baixo comumente não é composta e sim improvisada. Desse
modo, as cifras não podem se estabelecer a partir de um baixo que na interpretação, a
princípio, percorrerá sempre caminhos diferentes. No entanto, a cifragem barroca é em
parte possível em linhas de baixo que se tornaram mais fixas no repertório, como essas
escalas descendentes comumente tocadas no início do choro Ingênuo, ou a linha
melódica inicial de Odeon que se localiza caracteristicamente no baixo.

Exemplo 1.22a: Versão de baixo cifrado dos oito primeiros compassos de Ingênuo de Pixinguinha, 1948. 247

247
A partir de amostras de baixarias escritas pelo violonista de sete cordas Wagner Segura para o Ingênuo.
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 171 -
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Exemplo 1.22b: Versão de baixo cifrado dos oito primeiros compassos de Odeon de Ernesto Nazareth.248

O baixo contínuo, na visão de Lester, “mais do que uma mera inovação de notação,
confirma a troca da polifonia intervalar orientada pelo tenor [...] para uma condução
vocal de acordes orientada pelo baixo” (LESTER, 1992, p. 49-50 apud FAGERLANDE, 2000,
p. 10). Ou, como colocam Grout e Palisca:

O baixo contínuo cifrado teve uma grande importância nesta evolução teórica [a
teoria da tonalidade maior-menor], pois sublinhava a sucessão dos acordes,
isolando-os, por assim dizer, numa notação especial diferente da notação das
linhas melódicas. O baixo cifrado foi o caminho pelo qual a música transitou do
contraponto para a homofonia, de uma estrutura linear e melódica para uma
estrutura cordal e harmônica (GROUT e PALISCA, 1994, p. 315).

Para Barnett (2006, p. 441) três fundamentos da prática do baixo contínuo do


século XVII contribuíram decisivamente para a moderna concepção do espaço tonal: (1)
o uso de tríades maiores e menores como a sonoridade básica para a realização
harmônica; (2) uma organização geral das harmonizações sobre os graus da escala que
habilitam o instrumentista realizar harmonias onde as cifras são inadequadas ou mesmo
onde não seja indicada nenhuma cifra; e (3) a habilidade para acompanhar, ou
harmonizar, em qualquer que seja o nível de alturas com sustenidos ou bemóis.

248
A partir da transcrição de Odeon realizada por Côrtes (p. 99-106).
Notas de rodapé: Elementos para um estudo da teoria da harmonia da música popular de artesanalidade dissonante - 172 -
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Para Dahlhaus (1980, p. 863), as relações entre a prática do baixo cifrado e o


desenvolvimento da harmonia tonal carregam em si dois valores ou poderes contrários.
Por um lado, o baixo cifrado incentivou a concepção do acorde como a unidade
harmônica primária através da designação da sua estrutura vertical, por meio da qual a
simultaneidade passou a ser pensada como um gesto táctil, e não mais como uma
resultante do entrelaçamento das linhas melódicas. Por outro lado, a prática do baixo
cifrado obstruía a percepção dos acordes como unidades baseadas em fundamentais e
assim conturbava a consciência da funcionalidade ou lógica harmônica que se estabelece
a partir das relações entre essas fundamentais.
No debate entre a teoria e a prática sempre presente na nossa disciplina, essa
rápida introdução ao mundo do baixo contínuo pode ser bastante contributiva, pois
conforme observam Dahlhaus (1980, p. 868) e Fagerlande (2002, p. 36), a diferença
entre o estudo teórico e o estudo prático da harmonia resulta não tanto da divergência
entre as regras e suas aplicações, mas muito mais das diferentes origens históricas
dessas duas disciplinas. Os estudos teóricos da harmonia derivam-se de um
remodelamento da musica theoretica, isto é, das especulações matemáticas sobre os
fundamentos e estruturas do sistema tonal (nessa tradição os números da harmonia
estão fundamentados em princípios filosóficos neoplatônicos e não são apenas
algarismos que medem objetivamente as distâncias intervalares). Os estudos práticos da
harmonia procedem da doutrina do baixo cifrado que se expandiu nos início do século
XVIII transformando-se — em contraposição ao contraponto, considerada a teoria da
composição restrita — numa teoria de composição livre.

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