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A estética dos modelos escalares presentes em cançons de Berenguer de Paloud (c.

1160-
1209) - repercussões na Escola da Nova Simplicidade e em Amoris Divini Humana
Antipathia de Antônio Celso Ribeiro

Ernesto Hartmann
UFPR (Brasil); UFMG (Brasil); UFES (Brasil)

1. Introdução

Na presente comunicação apresentamos alguns elementos já discutidos no artigo Um tributo à


arte de ouvir: O amor cortês nas cançons de Berenguer de Palou (c. 1160-1209) acerca
dos sistemas de organização rítmica e de alturas – modos escalares e rítmicos
relacionando-os as práticas composicionais da chamada Escola da Nova Simplicidade.
Para tal, analisamos uma pequena peça do compositor Antônio Celso Ribeiro (Brasil),
que está claramente posicionada nesta estética. Conclui-se que, nesta obra do século XXI,
a organização rítmica e melódica opera de forma muito similar ao modelo observado nas
canções de Berenguer de Palou, permitindo associações entre a música do século XII e a
música do Século XXI ainda pouco discutidas.

2. A estranheza da Música “Medieval” no contexto da escuta do Século XIX

Se, como afirma Ruiz-Domenec, 20121, “a Música foi alçada, no séc. XIX, à condição de
protagonista do universo mental e onírico do Ocidente. A partir de então, não vivemos sem ela.
E essa é uma característica própria de nossa tradição histórica”, devemos compreender como esta
se instituiu a partir de premissas teórico-práticas que, aparentemente não se relacionam com o
período em que viveu o trovador catalão Berenguer de Palou, (c. 1160-1209)

Digo aparentemente, posto que a notação, a representação e mesmo o corpus teórico disponível
não se assemelha conceitual, visual, ou mesmo sonoramente à manifestação que hoje definimos
(ou ao menos dentro de preceitos dos quatro últimos séculos) como música. Contudo, há, de fato,
relações claramente traçáveis entre a produção hodierna e as inovações que se consolidaram na
prática da música medieval.

Schopenhauer afirma que, “Longe de ser uma mera ajudante da poesia, a música é certamente
uma arte independente, na verdade, é a mais poderosa de todas as artes, por isso atinge seus
fins inteiramente a partir de seus próprios recursos” (Schopenhauer2). Todavia, a afirmação de
Schopenhauer somente diz respeito a música ocidental que hoje definimos como o período
Clássico e parte do período romântico, cujas características centrais são a) Primazia da música
instrumental sobre a música vocal; b) presença de formas independentes e abstratas, pouco ou
nada relacionadas as outras artes; e c) definida em relação dialética com sua própria e complexa
notação, permitindo uma abstração da linguagem culminando com o que Eduard Hanslick3 define
em meados do século XIX como “Música Absoluta”.

Se, por um lado, essas características são absolutamente estranhas à música trovadoresca
medieval, por outro, certos conceitos emergentes da efervescente atividade intelectual a respeito

1
Ruiz-Domènec, José Enrique. Europa. Las claves de su historia. Barcelona: RBA
Libros, S. A., 2012.
2
Schopenhauer, Arthur. Eduardo Ribeiro da Fonseca trad. bras. O mundo como vontade e representação,
tomo II: complementos. Curitiba: Ed. UFPR, 2014.
3
Em o Belo Musical, Eduard Hanslick discute sobre a autonomia da música ante as outras artes, eis que
emerge o conceito da música absoluta, que não refere-se a nada sem ser a si mesma.
da música, materializada tanto nas obras quanto nos escritos teóricos, que, inclusive,
fundamentam a efetiva participação da música no quadrivium, estiveram implicitamente
presentes na música desde a Renascença até o século XX. Esta afirmação, em nada é novidade no
contexto musicológico, todavia, certos elementos que afloraram devido a um novo entendimento
e desvelamento da questão da compreensão da rítmica da música medieval anterior ao advento da
notação, advento esse que retrata a efervescência mencionada, uma vez que é justamente na idade
média que se desenvolve a polifonia e, consequentemente, a notação, não só encontram-se
presentes na em algumas escolas de composição do século XX como em suas repercussões no
século XXI.

O emprego de técnicas oriundas da música medieval no século XX não é propriamente uma


inovação. Debussy já havia empregado o princípio inerente ao organum (dobramento intervalar
unidirecional) em diversas obras, inclusive transformando essa sonoridade em um ícone de seu
estilo. Um dos percursores da chamada Escola da Nova Simplicidade ou Neue Einfachheit, Arvo
Päart desenvolveu, na segunda metade do século XX, uma técnica denominada Tintilabação, cujo
princípio muito deve a formas medievais de protopolifonia, em particular pela divisão do modo
escalar em dois tetracordes.

3. A Escola da Nova Simplicidade

De acordo com o Dicionário Grove, Neue Einfachheit foi um movimento pontual que floresceu
no final da década de 1970 e início da década de 1980 que, buscou uma relação mais imediata e
(i)mediada por planos pré-composicionais complexos entre o seu impulso criativo e sua expressão
musical, e, por conseguinte, entre a música e o ouvinte. Essa intencional objetividade de expressão
foi um eco do “Enfachheit”, para qual os autores germânicos das canções dos séculos XVIII e
XIX aspiravam, porém, mais geralmente representado nas obras da Neue Einfachheit através de
uma nova interação com a linguagem tonal e gestual da música romântica tardia alemã, interação
essa viabilizada pelo retorno do uso de grupos instrumentais mais tradicionais como o quarteto
de cordas e a orquestra sinfônica, além de, em obras envolvendo textos, o frequente uso de
temáticas especificamente germânicas.

Delmondes4 menciona que o termo surge pela primeira vez em Janeiro de 1979, associado a um
grupo de jovens compositores germânicos de vanguarda (Jung Avantgarde) que se identificou
como tal (Novos “Simplistas”) para a célebre revista alemã Neue Zeitschrift für Musik. O grupo
era constituído pelos compositores Hans-Jürgen von Bose (n. 1953), Hans-Christian von
Dadelsen (n. 1948), Detlev Müller-Siemens (nascido em 1957), Wolfgang Rihm (n. 1952),
Wolfgang von Schweinitz (n. 1953), Manfred Trojahn (n. 1949) e Ulrich Stranz (nascido em
1946). Stranz a partir da década de 1990 abandonouo grupo tendo sido substituído por Peter
Michael Hamel (nascido em 1947).

Não infrequentemente, diversos termos como pós-Minimalismo; Novo Romantismo ou novo


Tonalismos, são erroneamente atribuídos a esta concepção. Entretanto, a confusão terminológica
e de nomenclatura (cuja natureza generalizante e reducionista acarretaria inexoravelmente na
inadequação de alguns compositores ao rótulo de Novos Simplistas) não é de todo desprovida de
sentido. Essencialmente, todos esses movimentos (mesmo que paradoxalmente como no caso do
termo Novo Romantismo) representaram uma forte reação ao extremo formalismo imposto pelo
aprofundamento das técnicas seriais (Serialismo Integral). Se por um lado o Minimalismo surge
na América – constituído por uma geração de americanos nativos como reação à escola lá fundada
pelos compositores germânicos, que lecionaram no período pós-guerra (com destaque a
Schoenberg na UCLA), por outro, na Europa, como reposta à influência de Darmstadt surge a
Neue Einfachheit.

4
DELMONDES, Wganer Sander. Cheiro de Terra Molhada de Chuva para voz feminina e piano de Antonio
Celso Ribeiro: uma abordagem interpretativa com ênfase em dinâmica e pedal. Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música da UFMG, Belo Horizonte, 2013, 200p. – p.17.
Dentre as características da nova simplicidade apontadas por GANN5, BETTENDORF6 e
DELMONDES7 destacamos algumas que são de direto interesse para esta comunicação: Neo-
tonalismo/neo-modalismo; Diatonicismo/Cromatismo esporádico; Pouco uso de modulações;
Uso de paradoxismos rítmicos (uso ou total ausência de compasso) e Melodias compostas por
fragmentos de arquétipos escalares, todas essas claramente próximas das práticas encontradas no
estilo contemporâneo à Palou.

Antonio Celso Ribeiro, em entrevista à Delmondes comenta sobre alguns dos elementos presentes
na música medieval na escola da nova simplicidade,

Ainda, segundo o compositor, referindo-se aos procedimentos relacionados à Nova


Simplicidade que emprega em suas obras algumas das técnicas Composicionais da
Idade Média são resgatadas para criar interesse e beleza ao trabalho. Entre estas
técnicas está o uso de notação polifônica ... imitação e contraponto ... policronia –
vários tempos ou andamentos distintos ocorrendo ao mesmo tempo, melodias típicas
de danças ..., uso de retrógrados ..., acompanhamento instrumental em forma de
hocquetus ..., e melodia em estilo de cantochão (Delmondes, 2013, p.28).

Contudo, o compositor não menciona questões que abordo aqui nesta comunicação e que podem
elucidar outras relações fortemente presentes não só na obra, mas no que se define como escola
da nova simplicidade como um todo, não obstante estes procedimentos composicionais não se
instituem como regra e sim, opção.

Destarte, a obra Amoris Divini et Humana Antipathia (2008) para piano do compositor brasileiro
Antônio Celso Ribeiro, por estar confortavelmente posicionada na chamada escola da nova
Simplicidade (Neue Einfachheit), dispõe de elementos que denunciam procedimentos idiomáticos
já presentes e constantes da música medieval, mesmo não sendo esse o seu objetivo central.

Amoris Divini et Humana Antipa é uma peça ou (Suíte) em sete curtos movimentos cuja duração
total é aproximadamente onze minutos. O seu título se refere a uma obra do escritor flamengo
Ludovicus van Veuven, que viveu na Holanda no sec. XVII. Ele disserta em quatro idiomas
simultâneos, sobre os 7 tipos de amor devotados ao Divino (alma) e à natureza humana (paixões):
1. Natura amoris (amor à natureza) 2. L'amour divin (amor divino) 3. L'amour humain (amor
humano) 4. Sanatio amoris (amor que cura) 5. Babylon amoris (amor à Babilônia [amor carnal])
6. Hierusalem amoris (amor à Jerusalém [amor espiritual]) 7. Et humani antipathia (a antipatia
humana). Tratamos aqui, da peça de número 6 Hierusalem amoris, particularmente de sua relação
com o ritmo.

Conforme afirmamos,

Dentre os elementos que destacamos como padrões repetitivos da música


trovadoresca, gostaríamos de ressaltar o contorno melódico. Vários fatores
contribuíram para formá-lo. Distinguimos uma melodia de outra conforme tais
fatores estejam balanceados e modificados, e como essas mudanças são
cronometradas à medida que cada melodia se desdobra no tempo. A singularidade
melódica pode ser causada por um único padrão de contorno. As variáveis que o
definem incluem a forma, a mudança de direção (movimento ascendente ou

5
GANN, Kyle. "Let X = X: Minimalism vs. Serialism." Village Voice (24 February): 76., 1987; GANN,
Kyle Music Downtown: Writings from the Village Voice. University of California Press, 2006.
6
BETTENDORF, Carl Christian. Regaining music as language: an introduction to the Neue Einfachheit
movement in Germany. New York: Columbia University, 2009.
7
Op.cit.
descendente, frequência das mudanças de direção e a duração dessas mudanças) e a
tessitura8

No caso de Berenguer de Palou, as transcrições estão notadas em Neumas, o que impede uma
precisa definição do tempo (algo que nem nossa notação moderna sucede em realizar). De fato,
há algumas possibilidades apontadas pelos musicólogos e tratadistas, essencialmente desde o
século XIII, (Anglès; Jeanroy & Aubry; e Gennrich). Uma das principais teorias, conforme
afirmamos em nosso trabalho é a dos modos rítmicos.

Segundo essa teoria, qualquer poesia trovadoresca se encaixaria, em seus versos e acentos, em
modos rítmicos. Não obstante esses modos determinassem a repetição de diversos padrões de
duração, essencialmente silábicos, a mescla a possibilidade de mesclagem destes modos em uma
mesma canção ou peça é objeto de discussão.

Em nossa investigação acerca das canções do trovador identificamos os modos dáctilo (4


ocorrências); troqueu (2); troqueu anacrústico (1) e tribraco (1), o que representa uma proposta
de realização para estas obras.

No que diz respeito ao desenvolvimento melódico, observamos a divisão tradicional (esta prática,
já bem descrita nos tratados e perceptível nos Neumas, sem maiores complicações) do emprego
de modos eclesiásticos autênticos e plagais, ou seja, a divisão da escala em dois tetracordes
estando o modo em sua forma autêntica ou plagal, dependendo da posição de sua finalis.

4. Amoris Divini et Humana Antipathia

Apresentamos a seguir uma redução da linha melódica da sexta peça de Amoris Divini
(Hierusalém Amoris) que é suficiente para esclarecer os pontos presentes nesta comunicação:

Figura 01 – Redução melódica de Hierusalem Amoris, valores rítmicos alterados.

Neste exemplo, todas as notas foram representadas como semínimas no intuito de se destacar as
relações escalares. Todos os valores finais de cada ligadura são valores de maior duração do que
os imediatamente precedentes, constituindo um fragmento melódico claramente segmentado.
Essa representação facilita o reconhecimento não apenas das características da própria escola (já
citadas), como o emprego de modos rítmicos claramente definidos.

8
R. da Costa, A. C. Ribeiro, E. Hartmann, M. C. da Silva & A. Gaby. Um tributo à arte de ouvir
O amor cortês nas cançons de Berenguer de Palou (c. 1160-1209), eHumanista / IVITRA 15 (2019).
No que diz respeito aos modos escalares encontra-se um procedimento análogo ao que
observamos em nossas análises das canções de Palou (que estão de acordo com o esperado de
acordo com a literatura acerca do assunto), o de divisão das estruturas formais pela delimitação
de tetracordes. Ampliando esse conceito para a releitura realizada pela escola da nova
simplicidade, temos que a parte A não se define pelo tetracorde e sim pelo fragmento superior da
escala formado por cinco sons, portanto um pentacorde.

Estrurtura A – Pentacorde 1 – Fá#; Sol#, Lá, Si, Dó#


Estrurtura B – Pentacorde 2 – Si, Dó#; Ré (Ré#), Mi, Fá#
Estrurtura A’ – Pentacorde 1b – Fá#; Sol#, Lá, Si, Dó# - Acrescido da nota Ré – apenas como ornamento.

Com essa segmentação, fica clara a relação entre a forma ternária e o emprego das divisões da
escala.

No que diz respeito ao ritmo, observa-se que a peça, agora representada em sua totalidade não é
constituída por um motivo que se reconheça pelo seu perfil melódico – posto que sofre constante
variação – e sim, pela sua disposição métrica. Essa técnica relaciona-se ao emprego dos modos
rítmicos tal qual no estilo presente nas canções de Palou. Na nova simplicidade não há a aderência
a um único modo rítmico específico, porém, um número limitado (proporcional ao tamanho da
peça) de modos pode ser encontrado;

U = curto _ = longo

Símbolo Motivo Modo rítmico


u_
y Iâmbico
u__
x
uu_
k
u__
z
__
uuu_
j

Figura 02 –Hierusalem Amoris, segmentação por modos rítmicos.


Essencialmente a peça se constitui do motivo y – um modo curto longo (iâmbico) com 10
ocorrências. Ao examinarmos mais detalhadamente os outros motivos, percebemos que x e k
relacionam-se por inversão da retrogradação, assim como x e j. Ou seja, o que era curto se trona
longo sendo lido de trás para frente. Esses motivos isoladamente têm aparições esporádicas e
pontuais, e a soma de todas as suas ocorrências (9) é próxima, mas não supera as 10 do motivo
iâmbico. Isso aponta para o emprego sistemático de y como o modo principal, alicerçado no fato
de que y está presente nas três subdivisões da peça (A; B e A’).

Considerações finais

Procedimentos técnico-composicionais presentes nas canções de Berenguer de Palou e que


ilustram as práticas correntes de sua região no final do século XII e início do Século XIII de um
modo geral são descartados das discussões acerca da teoria musical contemporânea, que assume
o movimento Ars nova como ponto de partida para a Teoria musical moderna. Todavia, escolas e
mesmo, compositores isolados, a partir do século XX têm buscado refrescar as fontes de usas
inspirações pesquisando por técnicas já esquecidas com a finalidade de promover novos processos
criativos e novas sonoridades. A mescla desses procedimentos caracteriza muito de algumas
escolas do século XX, como a Escola da Nova Simplicidade,

Tal qual ilustrado nesta comunicação, os procedimentos basilares da construção de Hierusalem


Amoris estão muito mais próximos das práticas observadas no século XII do que nas mais
recentes, viabilizando interessantes confrontamentos e cruzamentos entre o corpus teórico
medieval e a música contemporânea. De fato, Não Berenguer de Palou especificamente, mas o
estilo de sua época e sua região geográfica repercutiram, mesmo que não de forma sistemática,
por mais de oito séculos, o que nos convida a investigar e aprofundar mais essas relações ainda
tão pouco desveladas e debatidas.

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