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A história das gravações da obra completa de Schoenberg confirma em absoluto a frase de Taruskin
em epígrafe. Não sendo de modo nenhum conforme ao seu estatuto mítico de compositor fulcral do
Século XX será mais conforme à dificuldade habitualmente associada à sua música. Essa
dificuldade é antes de mais nada verificada na recepção da sua obra por parte dos frequentadores
isolacionista que marcou o modernismo musical durante todo o Século XX. Para além disso, a
relativamente reduzida discografia da obra para piano releva uma segunda dificuldade: não só
provocou a problemática recepção pública como não foi propriamente adoptada pelos pianistas. Os
casos que se podem apontar revelam em primeiro lugar o facto de terem sido já “especialistas de
música contemporânea” – como, por exemplo, Claude Hellfer em França – aqueles que se tornaram
intérpretes da música dos compositores da Segunda Escola de Viena. As duas notáveis excepções
na sua discografia confirmam esta regra pela sua particularidade. Glenn Gould, o genial e excêntrico
pianista canadiano editou em 1968 as cinco peças que constituem o legado pianístico de
Schoenberg. Alguns anos mais tarde, Maurizio Pollini fê-lo igualmente; o grande pianista italiano
pertencia ao grupo de amigos de Claudio Abbado e de Luigi Nono, aliás, genro de Schoenberg.
Pollini teve sempre interesse por alguma música do século XX ao contrário de pianistas de estatuto
profecia-expectativa de Schoenberg que esperava que o tempo viesse a permitir a aceitação geral
da sua música.
Para já algumas informações sobre as datas da composição destas obras: as três peças Op.
11 foram compostas em 1909; as Seis pequenas peças Op. 19 em 1911; as Cinco peças para piano
Op 23 em 1921 e completadas em 1923, data composição da Suite Op 25. As duas peças Op 33a e
procedimento técnico, que visava obter uma forma de organizar o total cromático de acordo com
princípios lógicos, sobretudo no que respeita às deduções a partir de uma forma serial original,
surgiu após uma longa maturação durante a qual Schoenberg viveu uma crise criativa que o impediu
de completar sequer uma peça durante uma década. As Suites Opus 23 e Opus 25 são justamente
das primeiras peças a serem compostas já com a nova técnica e se confrontadas com o Opus 33a e
33b, publicadas já durante o seu exílio nos Estados Unidos, permitem vislumbrar a evolução das
técnicas seriais de Schoenberg. No entanto, mais rico ainda para os ouvintes será comparar as
peças Opus 11 e Opus 19 da chamada fase da atonalidade livre com as outras três obras seriais.
Para além das comparações tradicionais entre estes dois grupos de peças, que abordaremos mais
adiante, foi de certo modo preciso esperar por Wolfgang Rihm para voltar a olhar para as obras da
fase atonal de Schoenberg não como antecipações cromáticas do princípio serial – mas ainda não
intuitiva e livre. Adorno e Boulez marcaram a recepção de Schoenberg nos círculos estreitos da
música contemporânea. Enquanto o primeiro, sempre no fio da navalha que caracterizava a sua
as suas preocupações centradas exclusivamente na linguagem musical. Para ele, Schoenberg não
teria sido capaz de levar até às últimas consequências a sua descoberta genial original. Assim,
Boulez esconjurou o uso das formas barrocas e a rítmica típica das obras seriais de Schoenberg em
detrimento da eleição momentânea de Webern como o verdadeiro modelo a seguir por volta de
Em todo o caso esta trilogia - Schoenberg, Adorno e Boulez - criou aquilo que se
transformou, por um lado, numa vulgata na qual é virtualmente impossível discernir quem disse o
quê e, por outro lado, no discurso hegemónica que dominou o ensino da composição e, até certo
ponto, o pensamento musical no campo contemporâneo até grosso modo 1980. Um bom exemplo
desta posição, entre os muitos possíveis, encontra-se no texto de Henry-Louis de la Grange, incluído
no CD de Gould. O autor escreve sobre o Op. 11: “A primeira e a segunda desta peças traem ainda
pianísticas herdadas de Brahms, mas que aqui insere num contexto inteiramente novo. Com efeito
usa uma linguagem resolutamente atonal, de uma polifonia cada vez mais serrada, ao mesmo tempo
que tende para o “total cromático” e a “variação perpétua”, princípios de base da futura técnica
serial”.
Um dos erros mais comuns da musicologia e da critica musical é assumir sem hesitações
tudo aquilo que Foucault problematizou em torno da noção de autor. É desta assumpção do conceito
de autor e do conceito de obra de forma não-interrogada, não questuionada, que deriva a tendência
para leituras retrospectivas daquelas duas obras atonais. Nós sabemos efectivamente que, mais
tarde, Schoenberg criou os princípios do dodecafonismo serial. Deste conhecimento actual, dá-se o
pequeno passo para ouvir e interpretar estas obras como contendo já em si, em germe, o princípio
serial. É isto que explica que os teóricos americanos da Set Theory tenham dedicado inúmeros
escritos e análises ao estudo das peças atonais de Schoenberg, à procura de princípios intervalares
de similitude ou equivalência entre grupos de notas, justamente aquilo que caracterizava, por
definição, uma série dodecafónica: ser uma determinada estrutura de notas e intervalos dotada de
propriedades invariantes. Este método foi proposto principalmente em The Structure of Atonal Music
de Allan Forte, a partir dos escritos seminais de Milton Babbit do final dos anos 1940, mas os seus
limites analíticos residem principalmente no facto de se concentrar apenas nas relações entre grupos
de notas sem ter em conta sequer o ritmo para não falar de um vislumbre de análise de figuras ou
gestos.
O meu ponto principal neste aspecto considera que a noção de autor, com a sua ilusão
intrínseca de abarcar “toda a obra”, descarta a contingência humana que, apesar dos lugares
comuns das narrativas hegemónicas sobre a história da música do século XX, é absolutamente
circunstância de Schoenberg nesse período atonal. Teria sido absolutamente inevitável para ele
evoluir na direcção da criação da série? Teria sido possível, como hipótese técnica, que Schoenberg
Claro que estou a ouvir os partidários que restam da noção de “tendência histórica do material”
(adornianos orfãos de Adorno) – conceitos aliás idênticos aos conceitos marxistas sobre a evolução
históricas do material”. Não creio. Julgo que alguns aspectos de ordem ideológica e, mesmo,
psicológica terão sido muito (mais) importantes. Dentro das determinações que conduziram o
compositor nessa direcção avulta, por exemplo, a consciência messiânica de uma missão a cumprir.
“Alguém tinha de o fazer, ninguém se ofereceu, respondi eu à tarefa”. Esta ideia deriva da sua
inserção total no pensamento de raiz hegeliana - “A história do mundo é a do progresso da
consciência da liberdade”– e a convicção de que, no campo musical, cabia aos alemães cumprir
esse desígnio histórico. Tinha sido Franz Brendel o primeiro autor a publicar, já em 1852, uma
Geschiste der Musik in Italien, Deutschaland und Frankreich aplicando conscientemente a dialéctica
hegeliana, “que não se limitava a mostrar que as coisas mudam, mas qual era o propósito das
mudanças”, ou seja, o seu fim, o seu destino, a sua razão de ser já inscrita na história.
Para Adorno – que via na fase atonal o momento exemplar do percurso criativo de
suas análises musicais - uma das razões que levaram à série dodecafónica teria sido “o medo da
liberdade”. A fase “da liberdade” atonal – anterior à conceptualização do sistema dos doze sons –
tinha sido, no entanto, muito problemática para o compositor. Apesar dos sucessos das suas peças
pouco depois do Op. 11 e do Op 19, sobretudo a partir do Quarteto nº 2, Schoenberg foi muito
criticado em Viena e radica nesse facto a necessidade que levou à criação de uma Sociedade de
Concertos para apresentar em público as obras do seu círculo. Das acusações de caos sonoro
derivou para o compositor uma gradual necessidade de, após ter realizado a sua missão destrutiva –
consumar o fim da tonalidade - evoluir para um sistema de composição que lhe permitisse organizar
o total cromático que tinha atingido o que ele próprio definia como a “emancipação da dissonância”.
Para Schoenberg, era agora necessário organizar as dissonâncias que ele próprio tinha
concretizava-se na série dodecafónica de uma forma que, para além disso, se inseria na ideia de
Goethe da Urpflanz – a planta arquetipal – base do objecto artistico, feito a partirde uma célula
original, considerado como organismo, dotado de vida própria, em função das suas virtualidades
estaria muito satisfeito comigo”. A série era a promessa cumprida do perfeito organicismo.
O sucesso desta ideia e destes argumentos foi muito superior ao sucesso da música de
Schoenberg propriamente dita. É deveras espantoso – mas é um facto – ouvir ainda hoje a repetição
destes argumentos, enunciados com um tom solene de descoberta pessoal pour épater les jeunes
obsessão de Schoenberg com o seu próprio lugar na história da tradição alemã da qual resultaram
as ambiguidades do seu discurso oscilando entre a recusa radical da tradição tonal – a partir do
no passado, pelo seu uso de motivos e a sua técnica da “developing variation”, por exemplo, no
Face a tudo o foi dito penso não será de todo descabido colocar a hipótese de, apesar de ter
sido essa a evolução real que Schoenberg prosseguiu, ela não ter constituído nenhuma resposta
obrigatória a uma qualquer necessidade histórica mas ter sido antes uma opção do compositor. Na
verdade, muitos outros compositores seus contemporâneos e/ou posteriores a Schoenberg, não
partilharam a sua opção e continuaram a compor com base noutros pressupostos. A narrativa
hegemónica procurou excluí-los da história, procurou anular ou desqualificar o seu trabalho e é por
essa razão que assistimos actualmente a vários esforços no sentido de reescrever a história da
ideológico que marcou fortemente a nossa visão da obra de Schoenberg. É nessa perspectiva que
se pode e deve voltar a ouvir estas peças. Já não sob o peso das perspectivas anteriores que
procurei desmontar, mas simplesmente como peças de um compositor importante. Certamente que
todo o contexto descrito é relevante para uma compreensão plena do seu percurso. Mas o tempo e
as suas propriedades, tanto escultóricas como assassinas, obriga-nos a recolocar as questões de
um outro modo. É nesse sentido que se pode interpretar a posição de Rihm. Ao incluir o Schoenberg
da fase atonal como exemplo de liberdade, ao lado do Beethoven dos últimos quartetos, de
Debussy, Varèse e, acima de todos, de Robert Schumann, Wolfgang Rihm chama a atenção para
aquilo que me parece ser o mais importante: o facto de haver mais “potencial de futuro” nessas
Gostaria de terminar estas notas sobre este1 excelente e importante disco com interpretações
Soveral. Esta petite histoire poderia poupar algum trabalho aos musicólogos históricos futuros, que,
em Portugal, tem uma existência incipiente e bastante confinada às estufas universitárias onde tem
Por volta de 1976, Álvaro Salazar iniciou na Escola de Música do Porto, dirigida por Hélia Soveral,
um dos primeiros senão o primeiro curso de análise musical em Portugal. Essa disciplina não era
então parte do curriculum. A esse grupo de jovens interessados, na descoberta dos mistérios da
música contemporânea, do qual fazia parte, juntou-se pouco depois Madalena Soveral. Após uma
estadia em Paris a pianista regressou ao Porto onde nos satisfazia a ânsia modernista, até então
frustrada, com recitais que incluíam as Klavierstück IX e XI de Stockhausen, a Sonata de Alban Berg
e várias das obras incluídas neste CD. Esta gravação, deste modo, não só realiza um documento
muitos anos – como dá materialidade a um percurso artístico exemplar para a nossa geração.