Sendo pianista, musicógrafo, pedagogo e compositor, Filipe Pires surge como
um dos compositores portugueses mais importantes do século XX, e um dos pioneiros da música electroacústica em Portugal. Nascido em Lisboa, completou os cursos de composição e piano no Conservatório Nacional, tendo depois prosseguido os seus estudos em Hannover e em Salzburgo, de 1957 a 1960, como bolseiro do Instituto de Alta Cultura. Nestes anos teve a oportunidade de se mostrar por vários países da Europa, como pianista e como compositor. Anos mais tarde, entre 1963 e 1965, frequentou os cursos de Darmstadt, onde entrou em contacto com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, o que lhe permitiu familiarizar-se com diferentes estilos e técnicas composicionais. Porém, o verdadeiro contacto com a música electroacústica só viria a acontecer anos mais tarde, no início dos anos 70, quando efectuou um estágio de dois anos em Paris, orientado por Pierre Schaeffer. Isto levou à maleabilidade e flexibilidade composicional de Filipe Pires, que recolheu informação de grandes mestres da música do seu tempo, e incorporou-a nas suas obras: não era preso a nenhuma técnica ou estilo musical; a sua grande compreensão permitia-lhe compor num género ou noutro, o que acrescenta imensa variedade à sua obra.
“ (…) não me sinto prisioneiro de nenhuma tendência, de nenhuma técnica, de
nenhuma estética. Posso ter vontade de, num dado momento, me exprimir de uma determinada maneira e noutro momento de outra maneira. Sinto-me talvez e cada vez mais aberto ao que quer que me chegue.” Filipe Pires (Pedro Figueiredo em Arte Musical, Abril, Nº 3) Premiado em concursos internacionais de Composição em Nápoles, Colónia e Liège, é também detentor do Prémio Nacional Calouste Gulbenkian, que consagrou em 1968 a sua obra coral-sinfónica “Portugaliae Genesis”. A sua obra “Diálogos” foi seleccionada para a Tribuna Internacional de Compositores (Paris) em 1976. De 1975 a 1979, Filipe Pires encontra-se novamente em Paris, como Especialista de Música no Secretariado Internacional da UNESCO. Como representante desta organização, foi enviado em missões oficiais a vários países da Europa de Leste, da África e da América Latina.
Como pedagogo, leccionou composição no Conservatório de Música de Porto e
na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. Em 1997, foi nomeado Director Artístico da Orquestra Nacional do Porto, cargo que desempenhou durante dois anos.
A Obra
As Figurações de Filipe Pires são um conjunto de obras um pouco à
semelhança das sequências de Luciano Berio; cada uma delas tem uma instrumentação diferente. Exceptuando a III, que foi escrita para dois pianos, todas as outras são para instrumento solo. Figurações II é a obra para piano solo, e também a única das Figurações escrita em forma aberta.
O conceito de forma aberta começou a surgir a partir de 1950, e consiste em
pequenos fragmentos musicais que devem ser tocados por uma ordem escolhida pelo intérprete. É uma ideia de constelação, na qual a música existe e pode ser ordenada de diversas formas. Neste tipo de música, certos fragmentos podem ter algum tipo de relação temática, apesar de não ser estritamente necessário. Esta música foi abordada por vários compositores importantes da segunda metade do século XX, nomeadamente John Cage, Luciano Berio (Sequência para Flauta), e os dois mestres com quem Filipe Pires contactou em Darmstadt - Pierre Boulez (3ª sonata para piano) e Karlheinz Stockhausen (Klavierstück IX). Na partitura de Figurações II, Filipe Pires escreve que a peça tem “13 pequenas estruturas”, e que a execução da obra exige duas versões (ordens) de cada uma das 13 estruturas, separadas por um silêncio de longa duração. Ou seja, o intérprete faz uma versão dos 13 fragmentos, um silêncio longo, e de seguida uma ordem diferente. O intérprete tem contudo a liberdade de escolher como encadear os fragmentos entre si, podendo demorar mais ou menos tempo. Em termos composicionais, a obra tem uma escrita dodecafónica, contudo não encontramos uma série, pelo menos uma convencional: Filipe Pires opta por “dividir” a obra em dois hexacordes (Si, Dó, Réb, Fá, Solb, Sol; e Láb, La, Sib, Ré, Mib, Mi). Como o principio serial, um só aparece depois do outro ter sido apresentado e/ou desenvolvido. Apenas não é um serialismo convencional dado que há conjuntos de notas (Exemplo abaixo, fragmento 9)
Este método dos dois hexacordes encaixa perfeitamente nesta música de
forma aberta, porque desta forma o ouvinte consegue sempre ter um ponto de referência entre os fragmentos, algo que dificilmente aconteceria se os sons não se dividissem por dois conjuntos. Assim temos quase que duas “tonalidades” distintas, no sentido em que após uma pequena audição da obra, conseguimos sentir dois planos sonoros, e sobretudo, conseguimos familiarizarmo-nos com eles. Essa é uma das maiores dificuldades inerentes à música pós-tonal, e, nas Figurações II, Filipe Pires consegue colmatar isso. (Exemplos abaixo, fragmentos 10 e 11) Apesar da notória ligação que há entre cada um dos 13 fragmentos, deverá ser também função do intérprete fazer uma interpretação musical que faça jus a esta escrita. Sendo, claro, uma obra de forma livre, deve não obstante haver um cuidado com a ligação entre os fragmentos: por exemplo, se um fragmento acabar com o hexacorde 1, será uma transição natural se passarmos para outro que comece com o mesmo hexacorde; em contrapartida será mais brusca se passarmos para um que comece com o hexacorde 2. Tudo isto terá de ser ponderado pelo pianista, para dar uma “forma” à “forma aberta”.
Em contraste às obras contemporâneas a esta (Boulez e Stockhausen), Figurações II
não obteve grande popularidade, mas não por falta de valor musical; é uma obra que merece ser analisada, reflectida, e sobretudo interpretada, para dar a conhecer esta valiosa música de Filipe Pires. Figurações II foi estreada em Munique, no dia 1 de Janeiro de 1969, com o próprio Filipe Pires ao piano. Desde então tem sido também interpretada e divulgada em várias ocasiões pelas pianistas Madalena Soveral e Sofia Lourenço.
Bibliografia:
Enciclopédia Larousse - “Música Concreta” e “Período do Serialismo”
MIC, Centro de Inverstigação e Informação da Música Portuguesa – Filipe Pires, biografia e obras Garrigues, Juliette - Encyclopeadia Universalis: Musique aléatoire; L’oeuvre ouverte Monteiro, Francisco – The Portuguese Darmstadt Generation