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Apresentação 7

Falar de Christopher Bochmann 11


por Sérgio Azevedo

Christopher Bochmann: uma perspectiva truncada 15


por Pedro M. Rocha

Considerações sobre a música vocal 41


por Armando Possante

A música para piano: reflexões sobre as obras 61


e a escrita instrumental
por Ana Telles

O Trio de Cordas 117


por Benoît Gibson

O equilíbrio acústico das estruturas verticais 157


na Sinfonia de Christopher Bochmann
por Carlos Marecos

À conversa com Christopher Bochmann 199


por Roberto Pérez
(com intervenções de colaboradores desta edição)

Catálogo das obras 219

Discografia 239

Livros publicados 242

Autores dos textos 245


A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS
E A ESCRITA INSTRUMENTAL
por ANA TELLES

No extenso catálogo de obras musicais de Christopher


Bochmann, distinguimos dezassete títulos destinados ao
piano enquanto instrumento solista, aos quais se junta uma
extensa colectânea didáctica e uma obra para piano e orques-
tra. Nenhum outro instrumento assume tal proeminência
no âmbito da música para variados instrumentos a solo do
mesmo autor, que contabiliza cinquenta e cinco títulos; se
entre eles existem quatro peças (mais uma transcrição) para
violino, quatro obras para viola, três para flauta (mais uma
para flauta alto), três para guitarra (a que acresce uma outra
para Altgitarren) e três para violoncelo (instrumento de forma-
ção do compositor), todos os outros instrumentos a solo se
limitam a uma ou duas obras.
O piano tem, para além disso, uma presença assídua nas
obras para diferentes conjuntos instrumentais e de música de
câmara de C. Bochmann; neste âmbito, é de salientar a exis-
tência de três obras para dois pianos e uma obra para dois
pianos e dois percussionistas. Pelo destaque que nelas é dado
ao(s) piano(s), serão consideradas de seguida, juntamente
com as obras para piano solo, as três peças para dois pianos1.

1
Excluímos Double Dialogue (2010), para dois pianos e dois percussionistas,
uma vez que nela a escrita para piano se funde com a escrita para os dois
percussionistas num processo paritário; ou seja, o piano (apesar de “magnifi-
cado” pela multiplicação das suas potencialidades, como nas duas peças para
dois pianos) não assume um papel preponderante, como é o caso de todas as
outras obras que estamos a considerar neste estudo. Excluímos igualmente
da nossa análise a obra O amanhecer de um novo dia, pelo facto de se tratar
de uma extensa colectânea cujo propósito é assumidamente demonstrativo e
didáctico, destinando-se a alunos de piano de nível de iniciação e intermédio;
se, enquadrando-se também numa perspectiva didáctica, retemos as obras
Carrolling Bach e 2369 – 10.x.09, isso deve-se ao facto de, apesar de terem sido
concebidas enquanto demonstrações de técnicas composicionais específicas
perante alunos de nível superior de composição, elas constituírem obras para
62 ANA TELLES

Este importante conjunto foi composto entre o final dos


anos 60 (Sonata for Pianoforte Solo op. 52, 1968) e o ano de 2014
(Letter IV to Jean-Sébastien Béreau), verificando-se, ao lon-
go do tempo, um acréscimo da produtividade do compositor
neste domínio. De facto, dos anos 1960 chegaram até nós, para
além da já referida Sonata op. 5, os Etude nº 1 (1968) e Etude
nº 2 (1969). Datam da década seguinte quatro obras: Piano
Sonata nº 13 (1971), Seven Pieces (1974), Piano Sonata nº 24
(1976) e Preludes (1979); no ano de 1980, surgem os três pri-
meiros cadernos da colectânea O amanhecer de um dia novo
(Six Easy Pieces, Six Polytonal Pieces, Six Modal Pieces), bem
como Toccata, para dois pianos. Os anos 1990 viram nascer
Essay VIII (1991), Monograph (1994), Monograph expanded
(1997) e Music for two pianos I (1998). Com o passar do milénio,
assistimos a uma proliferação de obras, nomeadamente: 18
Miniatures (2001), Letter I, to Ricardo Tacuchian (2003), dois novos
fascículos de O amanhecer de um dia novo (Six Pantonal Pieces
e Six Dodecaphonic Pieces; 2003), Music for two pianos II (2006),
Commentaries on Notations by Pierre Boulez (2007), Carrolling
Bach: Two Fantasies for piano (2008) e 2369 – 10.x.09 (2009). Já
a partir de 2010, vamos encontrar mais três títulos5: Letter II,
to Amílcar Vasques Dias (2010), Letter III, to José Antônio de
Almeida Prado (2013) e Letter IV, to Jean-Sébastien Béreau
(2014).
Desde logo, várias tendências são detectáveis neste corpus
de obras. Aquelas que se reportam, no seu todo, a géneros
específicos da escrita tradicional para o piano, como Estudos,
Sonatas, Peças, Prelúdios e Toccata, encontram-se circunscritas

>>1
piano autónomas e suficientes. Aliás, o próprio Christopher Bochmann,
no catálogo geral das suas obras, inclui O amanhecer... na rubrica “Didactic
Music”, enquanto que Carrolling Bach e 2369 – 10.x.09 figuram em “Solo Music”.
Uma vez que Monograph Expanded pode ser considerada uma extensão
orquestral do texto musical de Monograph, que se mantém muito semelhante
ao original, reteremos apenas este último no presente trabalho.
2
Que designaremos, daqui em diante, como Sonata op. 5.
3
Que designaremos, daqui em diante, como Sonata n.º 1.
4
Que designaremos, daqui em diante, como Sonata n.º 2.
5
O já referido Double Dialogue, para dois pianos e dois percussionistas, data
de 2010.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 63

aos primeiros anos da janela temporal que estamos a consid-


erar, entre 1968 e 1980. Dentro deste conjunto, situa-se a obra
que, em toda a produção para piano do autor, mais se aproxi-
ma do idioma pianístico herdado da tradição romântica, como
veremos adiante: a Sonata op. 5. É também a este grupo de
obras, nomeadamente aos Preludes, à Sonata n.º 2 e à Toccata
para dois pianos que se confinam algumas experiências em
matéria de formas abertas e aleatorismo.
A preocupação didáctica surge em 1980, com o início do
já referido ciclo O amanhecer de um dia novo, e manter-se-á
em anos mais recentes, sendo evidente não só através da ex-
pansão desse mesmo ciclo, em 2003, como em obras com-
postas com o propósito específico de realizar demonstrações
perante alunos do ensino superior de Composição em deter-
minadas ocasiões, como nos casos de Carrolling Bach: Two
Fantasies for piano (2008) e 2369 – 10.x.09 (2009).
Uma certa tendência para a composição de “miniaturas”
musicais, que se pode reportar à influência conceptual de
Arnold Schönberg e Anton Webern6, revela-se através da desig-
nação 18 Miniatures (2001), mas não deixa de estar presente
em obras mais antigas, como Seven Pieces (1974), ou mais
recentes, como Commentaries on Notations by Pierre Boulez
(2007)7.
Essay VIII (1991) e Monograph (1994) podem ser conside-
radas obras-síntese, na medida em que condensam, siste-
matizam e desenvolvem traços de linguagem e da própria es-
crita instrumental que se encontram, de forma mais ou menos
embrionária, em obras anteriores, e que se projectam, ine-
quivocamente, na produção ulterior que estamos a conside-
rar. Não é seguramente por acaso que ambas utilizam, nos
seus títulos, terminologia do âmbito da literatura, num gesto
único dentro do corpus de obras que estudamos.

6
A título de curiosidade, refira-se que Christopher Bochmann realizou, em
2008, uma obra para flauta, clarinete, piano, dois violinos e violoncelo inti-
tulada Opus 27 plus: Commentaries on the first movement of Variations Op.27 by
Anton Webern.
7
Aliás, no Commentary II encontra-se uma alusão explícita à segunda peça de
Sechs kleine Klavierstücke op. 19, de Schönberg.
64 ANA TELLES

Sobre a primeira, diz-nos o autor: “Essay VIII faz parte de


um grupo de peças para instrumentos a solo – superficial-
mente algo semelhante ao grupo de Sequenzas de Luciano
Berio – que tomam as características específicas do instru-
mento como ponto de partida para a composição.”8 O com-
positor refere ainda que: “Não existe qualquer intenção
consciente de explorar a totalidade das hipóteses, nem de es-
crever uma música virtuosística, embora isto por vezes venha
a acontecer”; nesse sentido, a peça vai de encontro à própria
definição de ensaio, na acepção primeira do termo: “com-
posição literária breve sobre determinado tema ou assunto,
geralmente em prosa, de carácter analítico, especulativo ou 
interpretativo”9. Como um verdadeiro ensaio, Essay VIII pau-
ta-se pela concisão e organização dos diferentes traços de es-
crita pianística que a compõem; cada uma das cinco secções
formais em que se estrutura expõem e desenvolvem, de ma-
neira particularmente consistente, vertentes específicas do
domínio instrumental.
Quanto a Monograph, importa mais uma vez citar C.
Bochmann: “[...] Monograph (para piano), foi feita em 1994, e
teve este título (Monografia) por ser uma espécie de resumo
de todas as peças [sic] que eu estava a utilizar naquele mo-
mento.”10 Assim, aproxima-se também da definição primária
do termo monografia, enquanto “descrição, estudo ou trata-
do completo, detalhado e minucioso sobre um assunto relati-
vamente restrito de natureza científica, artística, geográfica,
biográfica”11. Monograph procura assim ir mais longe do que

8
Bochmann, C., Notas sobre Essay VIII publicadas no livreto do CD Cento Anni
di Musica Portohese per Pianoforte: Concerto del 6 Ottobre 2004 nella Chisea di
Sant’Antonio dei Portoghesi in Roma, pianista Ana Telles. Roma, IPSAR, 2005.
9
Dicionário da Língua Portuguesa contemporânea, vol. 1 (A - F), Lisboa, Academia
das Ciências de Lisboa, 2001, p. 1434.
10
Bochmann, C., Entrevista disponível no portal do Centro de Informação e
Investigação da Música Portuguesa, mic.pt (http://mic.pt/dispatcher?where=5
&what=2&show=0&pessoa_id=32&lang=PT, último acesso a 24/11/2014); daqui
em diante referir-nos-emos a esta fonte de forma abreviada, como “Entrevista
mic.pt”.
11
Dicionário da Língua Portuguesa contemporânea, vol. 1 (A - F), Lisboa, Academia
das Ciências de Lisboa, 2001, vol. II (G-Z), 2001, p. 2516.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 65

Essay VIII na codificação de um idioma instrumental próprio


ao compositor; na realidade, vários dos traços da escrita
instrumental que a compõem são semelhantes a outros
que encontramos em Essay VIII, o que nos leva a crer que a
preocupação de sistematização de uma linguagem especifi-
camente pianística é característica do período em que ambas
foram escritas, entre 1991 e 199412.
Se Monograph expanded (1997) representa, como o título
indica, uma “extensão” de Monograph (1994), esse processo
opera-se no âmbito do desenvolvimento tímbrico orquestral e
da própria duração da obra, como nos diz o compositor:

Outra peça, Monograph Expanded, é uma peça que para


mim foi muito importante. Começou por Monograph
(para piano) [...]. E a peça para piano [...] dura sete
ou oito minutos. Depois, peguei nesta mesma peça e
acrescentei à parte de piano partes de uma orquestra
de câmara, de trinta e poucos instrumentos. E a peça
transformou-se numa peça de quinze ou dezasseis
minutos.13

As três obras para dois pianos que estamos a considerar,


Toccata, Music for two pianos I e II (1980, 1998 e 2006, respec-
tivamente), podem também ser encaradas como obras de
“expansão”, desta feita das próprias potencialidades sonoras,
técnicas e tímbricas do piano; nelas, o instrumento emerge
multiplicado, magnificado, transcendendo-se a si próprio
através da fusão com o seu semelhante.
Detectamos ainda uma outra tendência no corpus sobre
o qual nos debruçamos, que podemos assimilar ao conceito
de paródia. Neste âmbito incluem-se várias obras, escritas a
partir de 2003, que se reportam a repertórios específicos ou à
linguagem de determinados compositores: a série de quatro

12
Curioso será notar que esse período de três anos encontra-se praticamente
equidistante das datas de composição da primeira e da mais recente obras
para piano de C. Bochmann.
13
Bochmann, C., Entrevista mic.pt (cfr. nota 7)
66 ANA TELLES

Letters, ou “cartas” musicais, dirigidas a Ricardo Tacuchian


(2003)14, Amílcar Vasques Dias (2010)15, José Antônio de
Almeida Prado (2013)16 e Jean-Sébastien Béreau (2014)17, cujo
ponto de partida é precisamente a linguagem musical desses
autores; a obra Commentaries on Notations by Pierre Boulez
(2007), em que cada andamento elabora, pontua, “comenta”
cada uma das Douze Notations para piano (1945) do compositor
francês; e, por último, Carrolling Bach: Two Fantasies for piano18
(2008). Na primeira destas fantasias (Bach in Wonderland),
Christopher Bochmann parte da sua própria linguagem mu-
sical para chegar à citação fugaz de passagens dos Prelúdios
em Sol maior BWV 884 (c. 14-15), em Dó sustenido maior
BWV 872 (c. 24-26), em Mi menor BWV 879 (c. 36-38) e em Si
bemol maior BWV 890 (c. 53-55) do 2.º volume do Cravo Bem
Temperado de Johann Sebastian Bach; já na segunda fanta-
sia (Bach through the Looking-glass), o processo é o inverso:
o compositor parte da citação do início da Gavotte da Suite
francesa n.º 5, em Sol maior, BWV 816, de Bach para, segui-
damente, a “desconstruir”, transitando para uma linguagem

14
A Letter I to Ricardo Tacuchian motivou, em jeito de resposta, a peça Reply to
Christopher Bochmann (2006), de Ricardo Tacuchian (cfr. Rio de Janeiro: Vivace
Music Edition). Daqui em diante, designaremos esta obra como Letter I.
15
Amílcar Vasques Dias, compositor português nascido em 1945, foi profes-
sor na Universidade de Évora entre 1996 e 2010. Christopher Bochmann, seu
colega de trabalho nesta instituição, dedicou-lhe esta peça por ocasião da sua
aposentação; daqui em diante, designá-la-emos como Letter II.
16
José Antônio de Almeida Prado, compositor brasileiro (1943-2010), foi con-
discípulo de Christopher Bochmann quando ambos estudavam em Paris com
Nadia Boulanger (no final dos anos 1960 e início da década seguinte); através
dele, Bochmann obteve trabalho na Escola de Música de Brasília, onde leccio-
nou entre 1978 e 1980 (cfr. Azevedo, S., A invenção dos sons: uma panorâmica
da composição em Portugal hoje, Lisboa, Caminho, 1998, p. 558). Letter III (de-
signação abreviada que adoptaremos daqui em diante) foi-lhe dedicada no
ano da sua morte.
17
Jean-Sébastien Béreau, maestro e compositor francês nascido em 1934,
radicou-se em Portugal no ano de 2005. Mais conhecido pela sua actividade
no âmbito da direcção de orquestra e da respectiva pedagogia, a sua produção
musical tem tido um significativo acréscimo nos últimos anos, em particular
devido a colaborações com vários músicos e agrupamentos portugueses. A
Letter IV (designação abreviada que adoptaremos daqui em diante) foi-lhe de-
dicada por C. Bochmann por ocasião do seu 80.º aniversário e baseia-se em
gestos provenientes de uma obra recentemente editada em CD, que Bochmann
teve a ocasião de ouvir e analisar.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 67

tipicamente bochmanniana que, de novo, nos conduz a cita-


ções da mesma dança no final da fantasia. Este procedimento
não é exclusivo das obras para piano no conjunto da produção
de C. Bochmann, que explica: “Tenho utilizado bastante a ci-
tação e/ou desmontagem de obras de outros compositores.
[...] Utilizo também a citação de modo a chamar a atenção
para diferenças de sintaxe das linguagens tonal e atonal.”19
O confronto da cronologia das obras em estudo com a perio-
dização proposta por Christopher Bochmann20, no que toca
à sua própria evolução estética, motiva algumas reflexões.
Em primeiro lugar, a constatação de que as primeiras obras
para piano (Sonata op. 5, Piano Etudes nº 1 e nº 2, Sonata n.º 1)
surgem em pleno período de estudos (1967 a 1972)21. Já as
obras subsequentes integram-se no período compreendido
entre o final dos estudos e os anos de 1982-83, que se carac-
teriza pelo recurso a uma grande complexidade, nomeada-
mente rítmica – evidente em Seven Pieces e Sonata n.º 2 – mas
também a formas aleatórias e abertas22, características dos
Preludes e mais uma vez da Sonata n.º 2, mas também da Toccata
para dois pianos, como já vimos.
O período de experimentação por excelência, ao nível das
improvisações controladas e do aleatorismo, compreendido
entre os anos de 1982-83 e 1986-8823, não nos deixou teste-
munhos ao nível da obra pianística (exceptuando os três
primeiros cadernos da obra didáctica O amanhecer de um
dia novo), por razões facilmente compreensíveis; de facto, a
própria natureza das experiências em curso pode explicar a
escassez de partituras escritas nessa época.
Após um período de transição em que o compositor afirma

18
Tanto o título da obra como os das duas fantasias que a compõem reportam-
-se à célebre obra literária Alice in Wonderland (1865) de Lewis Carroll (alias,
Charles Lutwidge Dodgson).
19
Martingo, A., Contextos da Modernidade: um inquérito a compositores portu-
gueses, Porto, Atelier de Composição, 2011, p. 60
20
Nas entrevistas que se encontram disponíveis em Martingo, A., op. cit., p.
55-62 e através do portal mic.pt (cfr. nota 7).
21
Martingo, A., op. cit. p. 55
22
Bochmann. C., Entrevista mic.pt
23
Idem.
68 ANA TELLES

ter tentado conciliar as vertentes aparentemente opostas da


complexidade (influenciada por Pierre Boulez, Luciano Berio
e Karlheinz Stockhausen) e de uma música “livre”24, Essay VIII
surge no ano de 1991, a partir do qual Bochmann afirma con-
ciliar essas duas tendências numa “técnica única”25. Dessa
fase que podemos considerar de maturidade, inaugurada do
ponto de vista que nos interessa não só por Essay VIII mas
também por Monograph (1994), datam todas as outras obras
em estudo.
Procuraremos, de seguida, elencar os principais traços
do idioma pianístico de Christopher Bochmann. Para o fazer,
procedemos a uma análise comparativa das obras em estudo,
estruturada de acordo com uma definição de parâmetros
que se apoia em estudos de Gardner Read26, Laurent Caillet27,
Pierre-Albert Castanet28 e Bruno Moysan29.

24
Na senda de obras específicas de Stockhausen, segundo o que o próprio
compositor refere na entrevista disponibilizada pelo portal mic.pt (último
acesso a 24/11/2014): “Durante o resto daquela década, em 1986, 1987, 1988,
compus várias obras que procuram juntar as duas vertentes – a vertente bas-
tante complexa, oriunda provavelmente da música de Boulez, de Berio, de
Stockhausen, etc, com uma outra música, muito livre, que tinha pouco a ver
com estes compositores (a não ser um pouco com certas obras posteriores
de Stockhausen, mas totalmente por acaso, porque nunca me senti muito
influenciado por Stockhausen”. Numa perspectiva mais recente, Bochmann
admite que “na realidade, a influência de Stockhausen é muito pouca. Os
modelos eram provavelmente menos conhecidos e antes Peter Maxwell
Davies ou David Bedford ou Krysztof Penderecki” (cfr. email endereçado à
autora, 16/11/2014).
25
Entrevista mic.pt.
26
Read, G., Compendium of Modern Instrumental Techniques, Westport,
Greenwood Press, 1993
27
Caillet, L., “Les exigences du piano contemporain” in Pianos et pianistes
dans la France d’aujourd’hui (dir. Danièle Pistone), Paris, Université de Paris
4 – Sorbonne / Observatoire Musical Français, 2007, p. 55-65
28
Castanet, P.A., “Les métamorphoses du piano contemporain: du confidente
camériste au parjure universel” in Vers une musicologie de l’interprétation (dir.
J.P. Armengaud et D. Erhardt), Paris, L’Harmattan, 2010, p. 21-31
29
Moysan, B., “Virtuosité pianistique: les écritures de la subjectivité” in
Romantisme, nº 128, 2005, p. 51-69
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 69

ATAQUES INCISIVOS:
NOTAS SIMPLES E INTERVALOS HARMÓNICOS DE 2.ª

A nota simples, em modo de ataque martellato, tal como a en-


contramos em Essay VIII, assume um valor percussivo inegá-
vel. De facto, na secção inicial Rapido, o compositor exige
ataques incisivos, com um só dedo, empregando o máximo
possível de alternância entre as mãos, num processo de ex-
pansão progressiva a partir de uma nota “âncora” ou “gera-
dora”30 (cfr. Ex. 1); esta nota origina gestos progressivamente
mais extensos e mais amplos, que acabarão por abarcar os
extremos do teclado31.

a) From a) to b) on p. 5, all the notes should be played with only one finger in each
hand with as much hand alternation as possible. The delay in pressing down the
pedal should result in only a hint of the last pitch remaining.
Exemplo 1. Essay VIII, p. 2, 1.º s.32

Se, no que toca a ataques incisivos staccato (muitas vezes


seguidos de pressão silenciosa sobre a tecla para a baixar nova-
mente), encontramos exemplos em obras de K. Stockhausen,
B. A. Zimmerman, S. Bussotti, M. Kagel, H. Pousseur33, o efeito

30
O Dó sustenido central (Dó#3, segundo a convenção de símbolos de registo
francesa que utilizamos sistematicamente neste estudo: cfr. Abromont, C. E
Montalembert, E., Guide de la Théorie de la Musique, Paris, Fayard/Lemoine,
2001, p. 564).
31
Cfr. p. 4, 2.º s.
32
Várias das partituras consultadas não comportam números de compas-
sos; nesses casos, optámos por referenciar os exemplos que nos parecem
pertinentes através da indicação da posição do(s) respectivo(s) compasso(s)
no sistema de duas ou mais pautas (abreviado como “s.”) em que se insere,
complementando esta informação com a indicação da página em causa.
33
Read, G., op. cit., p. 208
70 ANA TELLES

que está aqui em causa é inusitado, pela extensão da sua


aplicação exclusiva às três primeiras páginas da obra e pela
técnica verdadeiramente percussiva que a alternância extre-
mamente rápida das mãos (aliada à força dos ataques pre-
tendidos e a amplas deslocações dos braços) requer.
Além de pouco comum no repertório para piano, este
efeito é também único no contexto das obras de Christopher
Bochmann que estamos a considerar. No entanto, podemos
detectar cinco curtos gestos semelhantes aos que acima des-
crevemos na página 9 de Monograph; curiosamente, a nota
geradora neste caso é igualmente o Dó sustenido central34
(cfr. Ex. 2).

Exemplo 2. Monograph, p. 9, 1.º s.

Um efeito comparável surge em 2369 – 10.x.09 (p. 1-2) e


em 18 Miniatures (VI, p. 7), embora aí o grau de alternância das
mãos requerido seja menor; na realidade, embora os ataques
sobre cada nota sejam definidos pelas indicações gráficas de
staccato e marcato, a distribuição das notas pelas duas pautas

34
O próprio início desta obra consiste num ataque incisivo, com indicações
gráficas de tenuto e marcato e dinâmica forte, da nota “geradora” Dó susteni-
do central (Dó#3), tal como acontece em Music for two pianos II (cfr. c. 1). Para
além disso, a referida nota tem uma presença muito importante noutras
obras para piano de Christopher Bochmann, particularmente como “ponto
de chegada”: no último gesto da Sonata n.º 1, que consiste numa sobre-
posição de Dó sustenido (incluindo o Dó#3) em vários registos; na última
secção formal de Music for two pianos I (desde a barra dupla que figura no 2.º
sistema da p. 20 até ao final), em que a tríade Dó#3 – Mi#3 – Sol#3 é sistemati-
camente reiterada (com diferentes “voicings”, enfatizando do ponto de vista
dinâmico ora uma ora outra das referidas notas) até ao início da p. 23; e em
Letter III, cuja derradeira secção formal, Lento (a partir do 2.º sistema da p.
17), é estruturada precisamente a partir da repetição do Dó#3.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 71

sugere agrupamentos motívicos que permitem a realização


de vários ataques numa mesma posição da mão.
Na secção central de Music for two pianos II (Toccata) encon-
tramos gestos comparáveis àqueles que verificámos existi-
rem no início de Essay VIII, surgindo ora no Piano 1, ora no
Piano 2: trata-se de curtas sequências de 2.as menores har-
mónicas, marcato, exigindo igualmente a alternância das
mãos em ataques que se querem particularmente incisivos
e cuja função é interromper o fluxo do discurso linear, intro-
duzindo um elemento percussivo na textura (cfr. c. 157-158,
por exemplo).

ATAQUES INCISIVOS: AGREGADOS E CLUSTERS

Uma marcada tendência para a exploração das potenciali-


dades percussivas do piano, motivada pela necessidade de
romper com a escrita pianística tradicional e com o legado
técnico do séc. XIX, surge em obras de Igor Stravinsky, Béla
Bartók, Henry Cowell e outros, atingindo o seu auge em obras
da 2.ª metade do séc. XX; várias peças compreendidas nas co-
lectâneas Klavierstücke (1952-2003), de Karlheinz Stockausen,
e Etudes pour agresseurs (1964-1972), de Alain Louvier, são
disso exemplos paradigmáticos.
Nas peças para piano e dois pianos de Christopher Bochmann,
essa exploração começa, como vimos, na definição de ataques
incisivos, martellato, aplicados a uma só nota ou à sucessão
rápida de notas; no entanto, desenvolve-se plenamente na
aplicação do mesmo tipo de articulação (staccato, comple-
mentado com os símbolos gráficos: ‘ , < ou ^) a agregados
sonoros, por um lado, e na utilização de clusters efectuados
no teclado com os dedos, a mão ou mesmo toda a extensão
do(s) antebraço(s), por outro. Ambos os casos encontram-se
geralmente associados a nuances dinâmicas f, ff, fff ou ainda
mais extremas. Um e outro são frequentes nas partituras que
estamos a considerar, encontrando a sua expressão máxima
em Music for two pianos II (cfr. Ex. 3).
72 ANA TELLES

Exemplo 3. Music for two pianos II, p. 16, c. 109-111

A articulação marcato aplicada a agregados sonoros é pra-


ticamente constante no corpus de obras em estudo, podendo
ser referidos como excepção apenas os Estudos n.os 1 e 2; no
entanto, é de assinalar que no trabalho mais recente, Letter IV,
a utilização deste modo de ataque é bastante menos fre-
quente do que na generalidade das obras precedentes, en-
contrando-se confinada às passagens baseadas em 6.as
harmónicas que correspondem à citação de um gesto espe-
cífico da obra Le Chant d’Ilsa, de Jean-Sébastien Béreau35
(p. 2, 3.º sistema; p. 4, 2.º, 3.º e 4.º sistemas), a algumas reite-
rações do Ré-1 com que se inicia a peça (p. 7, 3.º sistema; p. 9,
3.º e 4.º sistemas), ao agregado que conclui o primeiro exten-
so gesto polifónico (p. 5, 3.º sistema) e à nota final, Dó#336.
Quanto à utilização de clusters no teclado, abarcando tecla
brancas e pretas, principalmente no registo grave e subgrave,
encontramos um primeiro e significativo exemplo na Sonata
n.º 1: entre as páginas 6 e 8 deparamo-nos com a ocorrência
de cinco clusters fff, realizados com ambos os antebraços
(cfr. Ex. 4).

35
Jean-Sébastien Béreau, Le Chant d’Ilsa, Letra de ensaio C (parte de piano).
36
Nota que, como já vimos (cfr. nota 34, p. 6), assume um papel de destaque
no conjunto das obras que estamos a estudar.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 73

Exemplo 4. Sonata n.º 1, p. 6, 4.º s.

Na Toccata para dois pianos, a utilização de extensos clusters


tem uma função estruturante: eles marcam as secções intro-
dutória (até ao número de ensaio 1, p. 3, 2.º s.)37 e conclusiva
(“Coda”, p. Z1-4 e Z2-4) da obra, para além de tornarem pro-
gressivamente mais denso o agregado sonoro que envolve a
nota polarizadora Fá#3 que surge no final de cada fragmento
da secção Z, nas suas duas versões (p. Z1-1-4 e Z2-1-4).
Em Monograph, surgem clusters com limites precisamente
definidos, de âmbitos diferentes; embora não haja indicações
expressas do compositor quanto ao modo de execução dos
mesmos, a extensão de cada um deixa supor que se destinam
a ser realizados pelos dedos ou punho (p. 14, 1.º s.; cfr. Ex. 5),
pela palma da mão (p. 13, 4.º s.) e pelo antebraço (p. 14, 3.º s.).

Exemplo 5. Monograph, p. 14, 1.º s.

37
A ressonância do cluster que o Piano 2 ataca logo no início da peça funciona
como “pano de fundo” sobre o qual se vai desenrolar a intervenção do Piano 1
que define toda a referida secção.
74 ANA TELLES

Também em Music for two pianos II verificamos uma defi-


nição exacta dos limites de cada cluster; de forma semelhante,
alguns deles poderão ser executados com os dedos ou punho
(c. 110, 112, 113, 118, 482), outros com a palma da mão (c. 199,
259, 281, 290) e outros ainda com o antebraço (c. 410, 411, 412,
414). Neste contexto, não podemos deixar de referir o profun-
do valor simbólico do cluster fffff que figura no compasso 290
(Piano 2); trata-se, na realidade, de uma espécie de monu-
mento funerário a György Ligeti, cujo falecimento ocorreu
durante o período de composição da obra, sendo esse evento
assinalado na partitura (p. 40) com a referência “György Ligeti
in memoriam, 13.vi.2006”. Nessa obra, a articulação marcato
aplicada a agregados sonoros e o emprego de clusters, ou a
associação de ambos, define praticamente todas as secções
unificadas pelo Tempo I (p. 1-2, 13-17, 55-56); o seu efeito con-
jugado nos dois pianos contribui para uma percepção de signifi-
cativa violência e dinamismo associada às secções em causa.
Em Letter II, os três clusters no registo subgrave (p. 6, 2.º
s.; p. 8, 1.º s.; p. 9, 2.º s.), a realizar com o antebraço, surgem
numa gradação dinâmica que compreende sucessivamente as
nuances fff, f e mf.
Letter III leva ainda mais longe o trabalho realizado ao nível
dos clusters. Se, por um lado, os seus limites respectivos se
tornam menos precisos do que em Monograph, Music for two
pianos II e mesmo Letter II, vemos agora surgir clusters no re-
gisto agudo (p. 11, 3.º s.) ou em rápida sucessão, mãos alter-
nadas, partindo deste para o registo grave (p. 12, 1.º s.; cfr. Ex.
6); deparamo-nos ainda com clusters nas cordas do piano, no
registo subgrave (p. 14, 3.º s., Ex. 7; p. 15, 3.º s.; p. 17, 2.º s.),
procedimento já anteriormente explorado em Essay VIII (p. 13,
2.º s.; p. 17, 2.º s.).

Exemplo 6. Letter III, p. 12, 1.º s.


A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 75

Exemplo 7. Letter III, p. 14, 3.º s.

REPETIÇÃO DE NOTAS / INTERVALOS HARMÓNICOS /


TRÍADES / OUTROS AGREGADOS

A repetição de notas é uma constante na obra para piano de


Christopher Bochmann, funcionando como lugar de experi-
mentação, a nível harmónico, rítmico, tímbrico e dinâmico.
No primeiro caso, é frequente encontrarmos sequências de
acordes unificados por uma nota comum que se repete, num
procedimento de exploração harmónica segundo o qual um
mesmo som surge enquadrado por agregados diferentes38. A
título de exemplo, refira-se o início da secção L’istesso tempo
(p. 5) de Essay VIII, onde encontramos notas repetidas “har-
monizadas” de diferentes maneiras (cfr. Ex. 8).

Exemplo 8. Essay VIII, p. 5, 2.º s.

Um caso extremo deste traço idiomático pode encontrar-se


em Letter III, onde se verificam extensas sequências de acordes
diferentes, construídos sobre uma nota comum que é sucessi-
vamente reiterada (cfr. p. 5, 8, 9, 10; Ex. 9).

38
Verifica-se um procedimento comparável na Toccata para dois pianos em
que, como já foi referido, a nota polarizadora Fá#3 surge no seio de clusters
de diferentes dimensões e nuances dinâmicas, na secção Y (p. Y1-7) e no final
de cada fragmento das secções Z1 e Z2 (p. Z1-1-4 e Z2-1-4).
76 ANA TELLES

Exemplo 9. Letter III, p. 10, 1.º s.

Em Letter IV, encontramos um procedimento semelhante


sob duas formas diferentes: sucessões de acordes sem in-
terrupção (cfr. p. 7, 2.º s., Ex. 10; p. 9, 3.º s.); e sucessões de
acordes separados por pausas, geralmente curtas (cfr. p. 3, 4.º
s.; p. 4, 1.º, 2.º e 3.º s.; p. 7, 2.º s., Ex. 10; p. 9, 1.º s.).

Exemplo 10. Letter IV, p. 7, 2.º s.

Tal procedimento encontra o seu paroxismo na secção Un


poco meno mosso (Tempo IIIº) de Letter III, entre as páginas 12
e 14, onde o compositor nos apresenta sequências de dife-
rentes proporções com acordes repetidos num gesto dinâmi-
co comum: diminuendo a partir da nuance forte (cfr. Ex. 10).

Exemplo 11. Letter III, p. 12, 4.º s.

A repetição, nesse caso, possibilita igualmente a experi-


mentação rítmica, a nível das proporções de duração de de-
terminado agregado.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 77

De modo análogo, mas focando uma nota ao invés de um


acorde, no Presto possibile (p. 8-10) de Essay VIII predomina
a repetição da nota “geradora” da peça (Dó#3) em sequên-
cias de variadas durações; esse processo parece dar origem
a um trilo escrito (Dó# – Ré) no início do gesto final da mesma
secção; regressaremos a este aspecto.
Noutras obras, as notas repetidas, em grupos de dimen-
sões variáveis mas perfeitamente definidas, ajudam a “con-
tar” a passagem do tempo nas secções livres, como ocorre em
Music for two pianos II (cp. 135, 142, 361, 420). Já em Letter II,
a subdivisão de determinada duração em notas ou inter-
valos harmónicos de 2.ª menor repetidos, de valor curto, em
tempo rápido, permite objectivar essa mesma duração (cfr.
p. 4, 1.º e 3.º s.). Em Letter III, encontramos numa passa-
gem específica um procedimento semelhante (p. 4, Tempo II.º);
noutros pontos da mesma obra, a inclusão de determinado
número de reiterações de uma mesma nota no seio de pas-
sagens virtuosísticas construídas uniformemente sobre va-
lores curtos permite que o movimento constante dessas pas-
sagens se mantenha, embora a percepção global acomode
momentos de estagnação aparente associados à fixação
momentânea de determinada altura (cfr. Un poco più mosso,
Tempo II.º, p. 2-4, 10, 15). Refira-se que, já na Sonata n.º 1, é
possível encontrar um procedimento análogo; aí, no entanto,
a intervenção de notas repetidas no seio de passagens virtuo-
sísticas mesuradas faz-se através da introdução de valores
não mensuráveis (acompanhados pela indicação gráfica que
corresponde à execução “o mais rápido possível”), com um
número definido de notas (cfr. Variazioni, p. 4); já nas páginas
subsequentes (5 e 6), as próprias passagens em que se inse-
rem tais conjuntos de notas repetidas deverão ser executa-
das, como essas notas, “o mais rápido possível”.
Se, nos casos que temos vindo a referir, a ocorrência de
notas repetidas em valores curtos funciona como meio para
a estruturação de diferentes durações em passagens basea-
das numa lógica rítmica de carácter livre ou aditivo, em 18
Miniatures (V, p. 6) a utilização de notas repetidas permite
subdividir uma pulsação praticamente constante (semínima)
em unidades assimétricas; o mesmo se passa em Music for
two pianos II (cp. 446-463), particularmente no Piano 2, onde o
78 ANA TELLES

mesmo procedimento se aplica aos tempos de um compasso


quaternário regular, criando-se assim uma proporcionalidade
rítmica que permite ultrapassar os constrangimentos métri-
cos que esse tipo de compasso supõe (cfr. Ex. 11).

Exemplo 12. Music for two pianos II, p. 60, c. 445-447

O motivo final da passagem cuja citação está na origem


de Letter IV 39 termina com a reiteração de uma 6.ª harmónica
aguda; na obra de C. Bochmann, esse motivo é duas vezes
repetido, exibindo um número variável de reiterações do referi-
do intervalo (cfr. p. 3, 2.º s.); mais tarde, a partir da secção
“Vivo” que se inicia na página 6, a ocorrência de passagens
em que se verifica a reiteração de um número variável de 7.as
maiores (e já não 6.as) agudas (Mib5-Ré6), sempre em f, cria um
interessante contraste com o tecido polifónico que se desen-
rola num registo inferior, e que estas passagens vêm pontuar
ou interromper. Mais uma vez, trata-se de um cuidadoso jogo
de proporções, que são geridas justamente pelo número de re-
iterações do intervalo em causa a cada vez que este recurso é
utilizado.
Ainda no que concerne às diferentes funções rítmicas que a
repetição de notas assume, é de referir que, na secção Tranquillo
de Essay VIII (p. 10-13), as várias notas que compõem cada campo
harmónico surgem em repetições lentas, periódicas, cuja sobre-
posição cria interessantes efeitos polirrítmicos não especifica-
mente definidos.

39
Jean-Sébastien Béreau, Le Chant d’Ilsa, Letra de ensaio C (parte de piano).
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 79

Exemplo 13. Essay VIII, p. 10, 3.º s.

No Commentary 5 dos Commentaries on Notations by Pierre


Boulez, a presença reiterada do Fá sustenido central (Fá#3)
proporciona, por um lado, um interessante estudo rítmico e,
por outro lado, um minucioso trabalho tímbrico e dinâmico;
este último efectua-se à custa de uma subtil diferenciação
de nuances, por um lado, mas também da utilização do pedal
una corda e do procedimento que consiste em abafar as cor-
das que correspondem à referida nota no interior do piano,
“retirando-a” do campo harmónico que o pedal de susten-
tação continua a prolongar.

Exemplo 14. Commentary V, de Commentaries on Notations by Pierre Boulez,


p. 6, 1.º s.

O procedimento em questão nesta obra de 2007 tem um


importante precedente na Seconda Parte (particularmente na
Aria) da Sonata n.º 1, escrita trinta e seis anos antes: sobre um
substrato harmónico quase irreal, definido por extensos inter-
valos (de oitava mais nona menor ou oitava mais sétima maior)
colocados nos extremos grave e agudo do registo do piano em
80 ANA TELLES

nuances dinâmicas ppp, uma linha melódica desenvolve-se no


registo médio, partindo de uma escrita despojada para chegar
a um extremo de complexidade melismática e rítmica antes
de regressar à simplicidade inicial; várias notas dessa linha
melódica vão sendo abafadas dentro do piano, através de in-
tervenções do pianista directamente sobre as cordas, indica-
das numa pauta específica.
Ainda no domínio da função tímbrica das notas repetidas,
há a referir um traço de escrita que se encontra em diferen-
tes obras de Christopher Bochmann; nesses casos, a reitera-
ção lenta de uma mesma nota (com ou sem apogiaturas),
complementada com a indicação gráfica que corresponde ao
procedimento lascia vibrare40, forma o substrato sobre o qual
se configuram figurações livres, “espaciais” (cfr. Music for two
pianos I, p. 5-6; Sonata n.º 2, p. 9, módulos F, Sxr e Syr). Na
sétima das Seven Pieces (p. 5), semelhantes notas repetidas
(nesse caso isoladas, sem apogiaturas nem gestos musicais
sobrepostos) figuram em diferentes nuances dinâmicas, num
procedimento que identificaremos em outras obras (ver in-
fra). Em Letter III, as notas repetidas são acompanhadas pela
indicação verbal Lento (comè campane; cfr. p. 14, 15, 17, 18),
numa explícita alusão ao timbre de sinos; embora sem a in-
dicação em causa, e num registo bastante mais grave, um
efeito absolutamente semelhante pode encontrar-se no iní-
cio de Letter IV (p. 1, 1.º e 2.º s.): aí, a reiteração do Ré-1 den-
tro da reverberação do pedal de sustentação contribui para
a criação de um ambiente “Solenne”, ao mesmo tempo que
estabelece o pano de fundo harmónico sobre o qual será apre-
sentada a citação inicial da já referida Le Chant d’Ilsa.
No Commentary 2 de Commentaries on Notations by Pierre
Boulez, a repetição de notas e intervalos harmónicos no início
da peça reporta-se, naturalmente, a um procedimento seme-
lhante que está na base da 2.ª das Notations de Pierre Boulez;

40
Indicado através de uma ligadura sob a nota em questão, ligadura essa que
não é de prolongação nem de expressão, pois permanece em aberto, sem
conexão a qualquer outra nota; em numerosas obras para piano, essa no-
tação tem o mesmo significado que a abreviatura l.v. (lascia vibrare, ou laisser
vibrer), indicando que a(s) nota(s) em questão devem ser prolongadas pelo
pedal de sustentação por uma duração indefinida após o seu ataque.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 81

ao mesmo tempo, dada a nuance fortissimo e os ataques in-


cisivos sobre algumas dessas notas e intervalos repetidos,
essa repetição reforça a vertente percussiva da escrita que
já referimos. Note-se que a utilização de notas repetidas com
valor percussivo é particularmente intensa e significativa em
Music for two pianos II (cfr. c. 2-4, 196-198, 269-270, 393, 408-
-409, 411, 412, 413).
Num registo menos violento, no final do acima referido
Commentary (n.º 2), os intervalos de 3.ª maior repetidos aludem,
como já vimos, à 2.ª peça de Sechs kleine Klavierstücke op. 19,
de Arnold Schönberg. Em Music for two pianos II, a repetição
de notas ou determinados agregados surge como comentário
contrastante relativamente a uma textura principal de carácter
significativamente diferente (particularmente na secção cen-
tral da Toccata, que se desenrola entre as páginas 29 e 41 – cfr. c.
206, 213, 214, 215-216, 231, 232-233 –, mas também em outros
pontos da obra: c. 81, 396, 455-456, 460-461).
A utilização de notas repetidas na obra para piano de
Christopher Bochmann constitui ainda um lugar de experi-
mentação dinâmica, como já pudemos constatar em Seven
Pieces (ver supra); também em Music for two pianos I (p. 3-4
e 21-23), a mesma nota é reiterada num dos pianos, corres-
pondendo cada um dos ataques a uma nuance dinâmica es-
pecífica, compreendida entre p e ff, numa gradação com cinco
intensidades (p, mp, mf, f, ff; cfr. Ex. 14)41. Em 18 Miniatures (VIII,
p. 9) verifica-se um procedimento análogo, desta feita sobre a
tríade de Ré maior no registo central do teclado; já na peça X
(p. 12, 3.º e 4.º s.) da mesma colectânea, esse modo de experi-
mentação dinâmica é efectuado sobre dois agregados dife-
rentes. (v. Ex. 15).

41
Segundo o compositor, a intenção foi a de criar “um Klangfarbenmelodie
com dinâmicas em vez de timbres” (cfr. email à autora, 16/11/2014).
82 ANA TELLES

Exemplo 15. Music for two pianos I, p. 5, 1.º s.

TRILOS, TRÉMULOS E OSTINATI 42

Vimos a importância da repetição de notas ou agregados no


conjunto das obras que estamos a considerar, e a variedade
de funções que tal procedimento assume neste repertório.
Em determinado momento, a repetição de notas parece dar
lugar a um trilo enunciado por extenso, como se tal corres-
pondesse a um processo de suavização ou de esvaziamento
progressivo do nível de energia previamente requerido (cfr.
Essay VIII, p. 10, 2.º s.). Muito mais frequentemente, o trilo
“escrito”, ou melhor, a alternância mesurada entre duas no-
tas adjacentes, visa simplesmente pôr em valor um intervalo-
-chave do pensamento composicional de C. Bochmann, e da

42
Nesta secção como na próxima, seria eventualmente adequado utilizar
a terminologia da “Set Theory” definida por Allen Forte (cfr. Forte, A., The
Structure of Atonal Music, New Haven e Londres, Yale University Press, 1973)
para designar os intervalos. No entanto, e não se tratando aqui de um estudo
analítico fundamental sobre a linguagem musical de Christopher Bochmann,
mantemos a sua designação tradicional (2.ª, 3.ª, 4.ª, etc., maiores e menores,
perfeitos, diminutos e aumentados), que nos será útil uma vez que a nomen-
clatura de determinados parâmetros da escrita e da técnica pianística, por
terem origem em repertórios tonais, são frequentemente associados a essa
terminologia (cfr. “técnica de oitavas”, “terceiras dobradas”, p. ex.); de facto,
se numa perspectiva analítica da linguagem de C. Bochmann, os intervalos de
2.ª maior e 2.ª menor, por exemplo, são absolutamente diferentes e a desig-
nação comum de “2.ª” talvez não faça sentido, numa perspectiva relacionada
com o idioma pianístico esses intervalos têm um traço fundamental em co-
mum: o facto de se realizarem através do recurso a teclas adjacentes.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 83

música dos sécs. XX e XXI em geral: o meio-tom43.


No Etude nº 1, essa alternância entre duas notas adja-
centes constitui o material de base que dá origem às partes
extremas da forma (A e A’), sendo sucessivamente transposta
num movimento perpétuo que acaba por dar origem a uma
série de escalas cromáticas (c. 13-17); estas conduzem-nos
à secção central (B), baseada num ostinato na mão esquer-
da cuja dificuldade reside na utilização exclusiva e rápida de
intervalos disjuntos extensos (6.ª menor ascendente ou 5.ª
aumentada ascendente, 9.ª menor ascendente e 7.ª maior des-
cendente), em várias transposições.
Na Sonata n.º 1 vamos encontrar um procedimento análo-
go, na medida em que as partes extremas da forma (Preludio
e Postludio, p. 1-3 e 15-18) se caracterizam mais uma vez por
um trabalho sobre notas adjacentes ou muito próximas (com
particular destaque para as 2.as maiores e menores), desta
feita tratadas de maneira polirrítmica entre as duas mãos. Ao
Preludio segue-se a secção intitulada Varizioni (p. 4-8), con-
trastante na textura e na utilização de intervalos disjuntos
de grande amplitude, implicando extensas e rápidas deslo-
cações dos membros superiores do pianista.
Na Sonata n.º 2 e em Music for two pianos II verifica-se algo
que podemos identificar como um desenvolvimento do pro-
cedimento base que temos vindo a referir; extensas passagens
destas obras (na primeira, todo o módulo III, compreendido
entre as páginas 4 e 7; na segunda, a passagem que figura
entre os compassos 367 e 384) são construídas com base na
alternância de duas notas adjacentes (trilos enunciados por
extenso) ou separadas por diferentes intervalos disjuntos
(trémulos enunciados por extenso); ocorrem ainda trémulos

43
A alternância entre notas adjacentes formando entre si um intervalo de
tom (ou dois meios-tons) ocorre muito raramente na obra de C. Bochmann;
encontramos um trabalho motívico-intervalar sobre tons e meios-tons nas
partes extremas da forma da Sonata n.º 1, mas esse exemplo é praticamente o
único no contexto a que nos reportamos. Aliás, os próprios trilos (abreviados
como “tr.”) que surgem nas obras em apreço (bem como noutras do mesmo
autor para diferentes formações), nos casos em que não contêm indicação
entre parêntesis da nota que deve alternar com a nota escrita, correspon-
dem, por norma, a trilos de meio-tom (comunicação pessoal de C. Bochmann
à autora, 24/11/2014).
84 ANA TELLES

que fazem alternar uma nota com determinado intervalo har-


mónico, ou mesmo diferentes intervalos harmónicos entre si,
com (em Sonata n.º 2) ou sem (Music for two pianos II) recurso
a polirritmias. A dinâmica global fica compreendida entre mp
e pp, na Sonata n.º 2, sendo que em Music for two pianos II este
procedimento se desenvolve uniformemente em mp (cfr. Ex. 15).

Exemplo 16. Music for two pianos II, p. 51, c. 373-374

Em Music for two pianos II, a passagem referida é enquadra-


da pela utilização de trilos não mesurados, indicados através
da abreviatura usual “tr.”; esses trilos, que parecem assumir
uma função mais ornamental, ou de enchimento textural, en-
contram-se em diversos pontos da obra (cfr. c. 19-21, 124-126,
133-134, 276-278, 362-366, 378-384, 422-424), e incluem, entre
parêntesis, a indicação da nota que deve alternar com aquela
sobre a qual se encontra a referida abreviatura; essa nota en-
contra-se frequentemente à distância de meio-tom da nota
principal, mas noutros casos surgem intervalos específicos44
(como 3.ª maior, por exemplo; v. Ex. 15, c. 373, Piano 2). Refira-
-se ainda que, na secção Cânone (compreendida entre as pági-
nas 58 e 62) da mesma obra, encontramos alguns exemplos de
trémulos sob a forma de apogiaturas (c. 459, 462-463).

44
Ver nota 37. Este procedimento é comum em obras para outras formações
do mesmo autor (cfr. Essay XV, para oboé – p. 2, 3.º s. – por exemplo).
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 85

Utilizações pontuais dos elementos que temos vindo a


discutir figuram noutras obras: na Sonata op. 5, encontra-
mos trémulos de oitavas, intervalo raramente utilizado nas
restantes obras em estudo45; na Toccata para dois pianos en-
contramos trilos46 e trémulos, particularmente nas secções
Z1 e Z2 (p. Z1-1-4, Z2-1-4); em Letter I, verifica-se a ocorrência
de um trémulo de 3.as e um trilo (p. 6, 3.º s.), bem como um
trémulo de 5.as (p. 6, 4.º s.) que parecem reportar-se ao tra-
balho motívico-intervalar que já tivemos a ocasião de referir;
já no Commentary V (dos Commentaries on Notations by Pierre
Boulez), o trilo que surge na página 7 (3.º s.) parece ter uma
função mais ornamental e de sustentação da nota sobre a
qual se encontra. Em Carrolling Bach (I. Bach in Wonderland),
a utilização de trémulos escritos entre os compassos 10 e 13
precede e prepara a citação do Prelúdio e Fuga em Sol maior,
BWV 884, do 2.º volume do Cravo Bem Temperado de Johann
Sebastian Bach, também ele baseado num importante tra-
balho intervalar; adicionalmente, um trilo enunciado por ex-
tenso surge entre os compassos 51 e 53. Já na segunda fan-
tasia da mesma obra, Bach through the Looking-glass, o trilo
escrito que figura entre os compassos 21 e 24 resulta de um
processo de desenvolvimento motívico do elemento apresen-
tado pela mão esquerda entre o segundo tempo do compasso
20 e a primeira colcheia do compasso seguinte.
Verificamos a predominância de ostinati em Letter II; esse
facto deriva da utilização de uma figuração pianística especí-
fica (característica de alguma música do compositor home-
nageado, Amílcar Vasques Dias) como material de base para
a peça em estudo. Além desse ostinato e daquele que identi-
ficámos na secção central da forma do Etude nº 1 (ver supra),
não encontrámos outros exemplos no conjunto das obras em
estudo.

45
Na realidade, segundo o autor, “a oitava (int. 12) não faz parte de nenhuma
das três famílias de intervalos que geralmente utilizo; já a tripla oitava (int.
36) aparece com alguma frequência.” (cfr. Email à autora, 16/11/2014).
46
Nomeadamente de meio tom, mas também (no fragmento a1, p. Z1-1) de
um tom, o que, como já vimos, é relativamente raro na obra de C. Bochmann.
86 ANA TELLES

MOVIMENTOS LINEARES

O pensamento intervalar que está na base do sistema de


composição de Christopher Bochmann estipula relações es-
pecíficas entre notas, em cada obra ou parte de uma obra.
Essas relações intervalares determinam sequências de notas
que muitas vezes se traduzem e desenvolvem em movimen-
tos lineares ascendentes ou descendentes, consistentemente
utilizados ao longo de extensas passagens. Os exemplos
mais concludentes encontram-se em Music for two pianos II,
na passagem L’istesso tempo (Tempo IV) que figura entre os
compassos 32 e 81, e na Toccata, que se encontra entre os
compassos 143 e 330.
Na primeira destas secções (cfr. c. 32-58), verificamos
uma preponderância de gestos ascendentes no Piano 1, ba-
seados em intervalos de 2.ª menor e maior e 3.ª menor, com
a ocorrência pontual de 3.ª maior.
Quanto à Toccata, trata-se de uma passagem cujo esquema
formal é tripartido, sendo as partes extremas e a secção central
diferenciadas pela figuração rítmica empregue, pela dinâmica
e pelo carácter, entre outros elementos; num caso como no
outro, estamos perante uma construção baseada quase exclu-
sivamente em gestos descendentes, sendo a excepção mais
óbvia a que figura entre os compassos 329 e 330; aí, em jeito de
conclusão, os dois pianos elaboram um movimento ascenden-
te paralelo baseado nos intervalos que constituem os gestos
patentes nas partes A e A’ desta Toccata: 3.ª menor e 2.ª menor.
É curioso notar, en passant, que na Sonata op. 5 encontramos
um gesto ascendente baseado nos mesmos intervalos (p. 3, 1.º
s., mão esquerda). Já na secção central da Toccata de Music for
two pianos II, que designamos por B (c. 193-299), os referidos
intervalos vêm dar lugar (cfr. c. 234-283) a extensas sucessões
de 3.as descendentes (maiores e menores)47.
Em Music for two pianos I são igualmente patentes gestos
desta natureza, consistentemente descendentes, entre as pá-
ginas 12 (2.º s.) e 15 (1.º s.); nestes gestos, que se encadeiam

47
Apesar desse movimento descendente evidente, o campo harmónico vai
efectuando uma interessante subida por meios-tons ao longo desta passagem.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 87

entre os dois pianos, predominam uma vez mais os intervalos


de 2.ª menor e 3.ª menor, encontrando-se esporadicamente
3.as maiores.
No Etude nº 1, para além de uma presença marcada de
escalas cromáticas descendentes (c. 14-17 e 57-62), verifica-
mos, em dois momentos (c. 13 e 56-57), um “jogo” de com-
plementaridades no qual fragmentos da escala cromática em
movimento contrário (ascendentes na mão esquerda e des-
cendentes na mão direita) parecem dialogar entre si.
Quanto ao Etude nº 2, os gestos ascendentes e descen-
dentes que verificamos, ora na mão esquerda ora na mão
direita, baseiam-se na escala octatónica48, ou escala de tons
e meios tons; encontramos disso exemplos vários (em movi-
mento ascendente: c. 43-44, 63-65; em movimento descen-
dente: c. 12-13, 40, 45-46, 60; em movimento contrário, exi-
bindo motivos de quatro notas sucessivamente transpostos
na mão direita, complementados com motivos de três notas
na mão esquerda: c. 45-46).
Na primeira fantasia de Carrolling Bach, são visíveis vários
gestos descendentes baseados em sucessões de 5.as perfeitas
separadas, na maioria dos casos, por meios tons (c. 42-45,
48), mas ocasionalmente também por 3.as (c. 30, 35-36 – este
último exemplo é o único que ocorre em versão ascendente);
não será de estranhar a incidência sobre o intervalo de 5.ª
perfeita, dado ser este o primeiro que figura no Prelúdio e Fuga
em Sol maior, BWV 884, do 2.º volume do Cravo Bem Temperado
de Johann Sebastian Bach, a que se reporta a obra em aná-
lise. Em Letter IV (p. 5, 4.º s.), encontramos um gesto único
semelhante, baseado num encadeamento de três 6.as meno-
res49 descendentes, separadas por um meio-tom e um tom.

48
Modo II, de transposição limitada, na terminologia de Olivier Messiaen (cfr.
Messiaen, O., Technique de mon langage musical, Vol. 1, Paris, Leduc, 1944,
p. 51-53; Idem, Vol. 2, p. 50-51). Refira-se que Bochmann teve conhecimento
desta obra teórica durante os seus anos de formação com Nadia Boulanger
em Paris (comunicação pessoal à autora, 24/11/2014). Como é sabido, a teo-
rização sobre os modos de transposição limitada do compositor francês veio
a ser subsequentemente desenvolvida em: Messiaen, O., Traité de rythme, de
couleur et d’ornithologie, Tome VII, Paris, Leduc, 2002, p. 110-119.
49
A 6.ª menor é um intervalo-chave do material citado nessa peça.
88 ANA TELLES

Em Letter III, encontramos vastas sucessões de gestos


descendentes, ora apenas na mão direita, ora nas duas mãos
em movimento paralelo, baseadas em encadeamentos de 3.ª
maior, 2.ª menor e 4.ª perfeita: do 4.º sistema da página 5 até
ao 2.º da página 7, no 1.º e no 3.º sistemas da página 8.
É de notar a ausência de glissandi nas obras para piano e
para dois pianos de Christopher Bochmann; o rigor do pen-
samento intervalar que está na base dos seus movimentos
lineares (e não só) não se compadece facilmente com a rea-
lização de sucessões unicamente diatónicas (glissando em
teclas brancas) ou pentatónicas (glissando em teclas pretas),
ou mesmo do total cromático (glissandi simultâneos sobre te-
clas brancas e pretas; glissando de clusters).

LINHAS PROFUSAMENTE ORNAMENTADAS E APOGIATURAS

Verifica-se uma tendência muito consistente para a utilização


de apogiaturas (compostas por uma só nota, intervalo ou
agregado) ou grupos-apogiatura (compostos por sequências
de notas simples ou de agregados) nas obras compreendidas
entre Essay VIII e Commentaries on Notations by Pierre Boulez,
com antecedentes na Toccata para dois pianos de 1980. Essas
apogiaturas ou grupos-apogiatura surgem ora antes, ora de-
pois de uma dada nota, intervalo ou agregado; introduzem um
interessante elemento de liberdade rítmica, uma vez que se
trata de valores não mensurados, em secções formais quase
sempre estruturadas de modo estrito, e por vezes bastante
complexo, a nível rítmico.
Os precedentes desta prática situam-se na Aria da Sonata
n.º 1 (p. 8-15) – onde a linha melódica geradora, inicialmente
bastante simples e despojada, evolui para uma estrutura line-
ar cada vez mais elaborada, antes de regressar à simplicidade
inicial – bem como nos módulos D1, D2, E1 e E2 de Preludes,
em que extensas apogiaturas compostas por encadeamentos
lineares de notas preparam e ornamentam outras notas ou
intervalos harmónicos específicos.
Na secção Lento de Essay VIII, compreendida entre o 3.º
sistema da página 13 (cfr. Ex. 16) e o 2.º sistema da página 16,
o fio condutor do discurso musical principal é sujeito a um
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 89

tratamento ornamental particularmente elaborado, que per-


mite expandir o seu âmbito harmónico e de ressonâncias, crian-
do um efeito particularmente poético.

Exemplo 17. Essay VIII, p. 13, 3.º s.

Um tratamento semelhante surge em Music for two pianos I,


particularmente na secção formal que se desenvolve entre o
último compasso da página 10 e o 2.º sistema da página 15, nos
dois pianos. Nesta obra, várias outras ocorrências de extensa
ornamentação são detectáveis (p. 2, 2.º s. até p. 6, particular-
mente no Piano 2; p. 15-16, cadência do Piano 1); é de assi-
nalar, entre as páginas 21 e 24 (Piano 1), os grupos-apogiatura
compostos por sucessões de agregados, tendência essa que
se verifica também em Monograph (p. 7, 9). Quanto a esta últi-
ma, importa acrescentar que, entre as páginas 10 e 15, os gru-
pos-apogiatura associam-se entre si de tal modo que as notas
principais para onde eles convergem parecem constituir tão
somente o pretexto para a extensa elaboração que as precede.
Variadas ocorrências de carácter mais pontual figuram nas
peças X (p. 12), XII (p. 14), XIV (p. 16), XVI (p. 17), entre outras,
de 18 Miniatures. Em Letter I, a ornamentação está associada
principalmente às secções comportando a indicação Tempo
Primo (p. 1; p. 3, 3.º s.; p. 6, 5.º s.; p. 7, 1.º s.; p. 9).
Music for two pianos II exibe extensas passagens em que a or-
namentação é uma constante (cfr. c. 90-106, 422-448, 453-463),
além de várias outras ocorrências pontuais ao longo da obra.
Em Commentaries on Notations by Pierre Boulez, utiliza-se
esse procedimento na segunda parte da peça V (p. 7) mas, a par-
tir daí, em obras como 2369 – 10.x.09, Letter II, Letter III e Letter IV,
o recurso a apogiaturas ornamentais é bastante residual.
90 ANA TELLES

INTERVALOS HARMÓNICOS, OITAVAS E ACORDES

Na rúbrica “intervalos harmónicos”, estamos a referir-nos


concretamente ao que se designa por “notas dobradas” na
terminologia pianística tradicional. Como seria de esperar,
não há muito a dizer, neste âmbito, no que toca às obras para
piano e para dois pianos de Christopher Bochmann; tal como
a escrita em oitavas e acordes, trata-se de um parâmetro
importante na análise do repertório pianístico dos períodos
romântico e pós-romântico cuja expressão é praticamente
nula quando nos posicionamos perante obras mais recentes,
particularmente de filiação estética pós-serial.
Na realidade, a escrita em notas dobradas, oitavas ou
acordes no repertório romântico e pós-romântico correspon-
de, segundo Bruno Moysan, a uma exploração da plenitude
sonora, mas também a uma busca da sobrecarga e da desme-
sura que tende para uma retórica do sobre-humano50. O autor
acrescenta: “La fonction de l’octaviation est de renforcer, par
la redondance, la force persuasive de l’énonciation en lui don-
nant une dimension spatiale. Avec la technique d’octaves et
d’accords, nous sommes confrontés à la véritable spécificité
lisztienne.”51
Ora, boa parte da música dos sécs. XX e XXI, influencia-
da, nomeadamente, por obras-chave dos compositores da 2.ª
Escola de Viena, que já tivemos a ocasião de referir, recusa
essa monumentalidade, esse “empolamento” do discurso
melódico e as proporções alargadas das obras geradas de
acordo com essa retórica do exagero. Por outro lado, na óptica
serial e pós-serial, o intervalo de oitava é considerado como
demasiado polarizador e deve, em consequência, ser evitado.
Assim, no conjunto das obras que estamos a considerar,
só duas, do período de estudos do autor, revelam traços do
idioma pianístico oitocentista, no sentido que temos vindo a
referir: a Sonata op. 5 e o Etude nº 2.
No primeiro caso, verifica-se, ao longo dos três andamentos

50
Moysan, B., op. cit., p. 58
51
In Moysan, B., op. cit., p. 56
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 91

que a compõem, uma grande ênfase na utilização de oitavas


(mas também acordes e 3.as dobradas, particularmente no 2.º
andamento; cfr. p. 10-12) como meio para empolar o débito
melódico. Verifica-se ainda a utilização dos registos extremos
do teclado (cfr. p. 8, 3.º s., por exemplo), bem como a definição
de texturas pianísticas tipicamente românticas, igualmente
exploradas em repertórios da primeira metade do séc. XX,
como as seguintes:

1. Melodia em oitavas na mão direita acompanhada por


movimento circular em semicolcheias na mão esquerda
(cfr. p. 13);
2. Sobreposição de planos sonoros (melodia em oitavas,
acordes no registo central, baixos igualmente em oitavas;
p. 13, 4.º s., por exemplo);
3. Trémulos de oitava no registo grave (cfr. p. 11, 15);
4. Rápida sucessão de acordes, em mãos alternadas
(p. 2, 4.º s.)52

Apesar do carácter relativamente convencional dos referi-


dos traços do idioma instrumental na obra em questão, é de
salientar que a textura polifónica do Fugato (3.º andamento)
gera uma curiosa utilização de intervalos dobrados, nomea-
damente em sequências de 2.as e 4.as alternadas (cfr. vários
exemplos ao longo da p. 17; Ex. 17), mas também de outros
intervalos pouco usuais no repertório pianístico.

Exemplo 18. Sonata op. 5, p. 17, 2.º s.

52
Comparável a determinadas passagens de Liszt. Cfr. Liszt, F., “Etude d’exé-
cution transcendante d’après Paganini, nº 4 (versão II)”, in Complete Etudes for
solo piano, series II (Ed. F. Busoni), Mineola, N. Y, Dover, 1988, p. 69, 71; Liszt,
F., “Grandes Etudes de Paganini, nº 2”, in Complete Etudes for solo piano, series
II (Ed. F. Busoni), Mineola, N. Y, Dover, 1988, p. 99 (vide Cadenza ad lib., c. 4).
92 ANA TELLES

Etude nº 2 é dedicado primordialmente ao trabalho sobre


notas dobradas; a sua originalidade reside também, justa-
mente, na utilização de intervalos inusitados, desta feita de
4.ª aumentada ou 5.ª diminuta.
Em Letter IV, o trabalho efectuado sobre intervalos har-
mónicos de 6.ª (cfr. p. 2, 3 e 4) decorre de um procedimento
de glosa (ou variação) sobre um dos motivos citados; já nas
páginas 7 (4.º s.) e 8, encontramos uma extensa utilização
de intervalos de 3.ª que, pela sua relação de complementa-
ridade com os intervalos de 6.ª precedentemente utilizados,
nos parecem justificados pelo desenvolvimento do material
que estimulou a composição da obra, mais do que por alusão
a um aspecto fundamental da técnica pianística oitocentista.

EFEITOS HARMÓNICOS PARTICULARES

Neste âmbito, parece-nos relevante apontar uma tendência


marcada para a definição progressiva de agregados com-
plexos, de âmbito alargado, à custa de articulações progres-
sivas de notas e/ou intervalos constituintes desses mesmos
agregados, como se de apogiaturas sustentadas se tratasse.
Esta tendência, inaugurada na Sonata n.º 2 (final do módulo II)
e na Toccata para dois pianos (vários exemplos nas p. 4 e 5), vai
reproduzir-se consistentemente nas obras compostas entre
2001 e 2007, mais concretamente na décima segunda peça de
18 Miniatures (p. 14), em Letter I (nas secções designadas pela
indicação Tempo primo, p. 1-2, 3, 6-7, 9), Music for two pianos II
(c. 15-17, 18-19, 137, 344-345, 354-355, 405) e Commentaries
on Notations by Pierre Boulez (I, p. 1; V, p. 7); ausente de
Carrolling Bach e 2369 – 10.x.09, este procedimento volta a
surgir nas duas obras mais recentes, Letter II (p. 5, 2.º s.)
e Letter III, com especial incidência nesta última (cfr. p. 1, 1.º-
-2.º s., Ex. 18; p. 3, 3.º s.; p. 4, 1.º-2.º s.; p. 5, 1.º s.; p. 9, 1.º-
-4.º s.; p. 11, 1.º-3.º s.).
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 93

Exemplo 19. Letter III, p. 1, 1.º s.

É importante referir também a utilização de arpejos abre-


viados através dos símbolos gráficos usuais, quer em senti-
do ascendente, quer em sentido descendente e, em alguns
casos, em movimento contrário. Este aspecto, geralmente
evitado por compositores da mesma geração e filiação esté-
tica pós-serial, dadas as suas associações com o repertório
pianístico romântico, surge em obras esporádicas do com-
positor, como Sonata n.º 2 (módulos Ic, II, a, c, IVy, IVx, V, F),
Essay VIII (p. 7, 2.º s.), Toccata para dois pianos (p. 3, 3.º s.; p. 4,
1.º s.; p. 5, 2.º s.), Commentaries on Notations by Pierre Boulez
(V, p. 7; IX, p. 10; XI e XII, p. 11) e Letter III (p. 17-19).

EFEITOS DE PEDAL E FILTRAGEM DE RESSONÂNCIAS

Como seria de esperar em obras do período que estamos


a considerar, verifica-se a utilização diferenciada dos três
pedais do piano de cauda, por forma a contemplar efeitos
harmónicos, tímbricos e dinâmicos específicos. No entanto,
em algumas das obras em estudo, não encontramos qualquer
indicação relacionada com o uso de um ou mais pedais (Etudes
nº 1 e nº 2, Letter I e Carrolling Bach são exemplo disso), o que
não significa que esse(s) recurso(s) sejam ignorados ou pros-
critos; aliás, há passagens nessas e noutras obras relativa-
mente às quais o recurso a um ou mais pedais se encontra
implícito (cfr. Sonata op. 5, c. 37-43, p. ex.).
Passamos agora a detalhar alguns dos modos de utili-
zação e efeitos relacionados com os diferentes pedais nas
obras em estudo.
94 ANA TELLES

a. Pedal de Sustentação

O pedal de sustentação é o mais comummente utilizado na


música para piano, particularmente desde o período român-
tico. Se, por um lado, é determinante a sua capacidade de pro-
longar a duração de determinadas notas para além do tempo
de contacto dos dedos com as respectivas teclas, por outro
lado há que considerar as possibilidades tímbricas que este
pedal oferece, ao permitir a livre vibração de todas as cordas
do piano enquanto determinadas notas são articuladas.
Na obra de Christopher Bochmann, o pedal de sustenta-
ção é utilizado de maneira extremamente precisa, no que
concerne ao início e ao término da sua acção em cada ponto
específico de uma dada partitura; no entanto, o compositor
requer diferentes níveis de pressão sobre o pedal de sus-
tentação (neste caso ½), como fazem Pierre Boulez na sua
Sonata n.º 3 e em Structures (para dois pianos), ou Karlheinz
Stockhausen nos seus já referidos Klavierstücke53, em apenas
uma instância (Toccata para dois pianos: Coda, p. Z1-4 e Z2-4).
Por outro lado, Bochmann não utiliza efeitos percussivos
associados ao pedal, como é comum verificar-se noutras
obras da segunda metade do séc. XX e do séc. XXI (a Sonata
para dois pianos, de Brian Ferneyhough; As when upon a tranced
summer night, de Michael Finnissy; Transición II, de Mauricio
Kagel são apenas alguns exemplos desse tipo de efeitos54).
O pedal de sustentação é utilizado, nas obras que estamos
a considerar, por razões harmónicas e/ou tímbricas; embora
não seja forçosamente possível distinguir essas funções em
todos os momentos em que este pedal é chamado a intervir,
podemos referir alguns efeitos paradigmáticos.

a.i. Função Tímbrica

No corpus de obras a que nos reportamos, o pedal de sus-


tentação intervém frequentemente sobre notas isoladas ou

53
Read, G., op. cit., p. 209-210
54
Read, G., op. cit., p. 88
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 95

conjuntos de notas cujo prolongamento através da pressão dos


dedos nas teclas não colocaria qualquer problema. No entanto,
a utilização do pedal nessas circunstâncias induz um timbre
específico, que o compositor pretende explorar. Encontra-
mos vários exemplos concretos em obras como: Sonata n.º 1,
Preludes, Monograph, Letter II, Letter III, Music for two pianos II.
No entanto, o caso mais paradigmático desta utilização do
pedal de sustentação parece-nos encontrar-se em Commentaries
on Notations by Pierre Boulez. Bastará observar como os
pequenos golpes de pedal sobre as notas graves do início do
Commentary I (p. 1, 1.º s.) ou o Si bemol fff do Commentary IV (p. 5,
4.º s.) enriquecem essas notas do ponto de vista tímbrico; como
o accionamento do pedal a meio da duração de certas notas (cfr.
p. 2, 2.º s.; p. 3, 2.º s.) e de um intervalo harmónico (cfr. p. 3, 3.º.
s.) no Commentary II altera o timbre inicial dessas sonoridades;
como o mesmo pedal aplicado à repetição de intervalos harmóni-
cos no Commentary III (p. 4, 1.º s.; p. 5, 1.º s.) cria uma ressonân-
cia especial nesses casos. Por outro lado, todo o Commentary V
é na realidade um estudo de ressonâncias em que o pedal de
sustentação ajuda a criar sucessivos campos harmónicos e tím-
bricos nos quais ora surge, ora desaparece (por acção directa dos
dedos sobre as cordas) uma nota específica (ver Ex. 13).

a.i.1. After-Pedalling

Esta técnica, que consiste em premir o pedal de sustentação


do piano após o ataque de uma ou mais notas55, encontran-
do-se os dedos responsáveis por essas articulações já fora
das teclas respectivas, é profusamente explorada em obras
como a Sonata n.º 3 de Pierre Boulez (1957), a Sequenza IV de
Luciano Berio (1966) e os números VII, VIII e XIX de Klavierstücke
de Karlheinz Stockhausen (1952-56)56.

55
O intervalo de tempo entre o ataque e o accionamento do pedal pode ser
precisamente definido pelo compositor.
56
Rosenblum, S. P., “Pedalling the Piano: a brief survey from the Eighteenth
Century to the Present”, Performance Practice Review, Vol. 6, n.º 2, artigo 8,
1993 (disponível em http://scholarship.claremont.edu/ppr/vol6/iss2/8/, ace-
dido em 08/08/2014)
96 ANA TELLES

Também George Crumb requer este efeito nas suas Five


pieces for piano (1962)57.
Na obra de Christopher Bochmann, ela surge de maneira
particularmente consistente na secção inicial de Essay VIII
(p. 1-3; v. Ex. 1). Aí, cada um dos gestos monódicos consti-
tuídos, como vimos, pela sucessão de articulações martellato
sobre notas isoladas, termina numa fusa ligada a uma breve;
na realidade, a duração desta última é preenchida apenas
com o remanescente da ressonância da fusa em questão,
captado pelo referido efeito de after-pedalling. De acordo com
a indicação do compositor: “The delay in pressing down the
pedal should result in only a hint of the last pitch remaining.”
(cfr. p. 1). Outros exemplos podem verificar-se no 3.º sistema
da página 7, no 2.º e 3.º sistemas da página 9, no 2.º sistema
da página 10 e ainda na página 17. Embora esta técnica não
seja explorada em obras ulteriores do mesmo autor, encontra
um precedente nas Seven pieces de 1974 (cfr. peça III).

a.i.2. Vibração por Simpatia

Na introdução da Toccata para dois pianos (p. 2-3, antes do


número de ensaio 1), as intervenções do Piano 1 (algumas
delas staccato e, ao longo de toda a passagem, sem qualquer
indicação de pedal) desenvolvem-se sobre a ressonância do
cluster inicial articulado pelo Piano 2, que o pedal de susten-
tação prolonga ao longo de toda a secção. A ressonância total
do conjunto é assim potenciada pelo facto de todas as suas
cordas se manterem disponíveis para vibrar por simpatia em
resposta aos estímulos que emanam do Piano 1. O efeito tím-
brico obtido é particularmente interessante e subtil.
Um efeito semelhante ocorre em Music for two pianos I,
onde o solo final do Piano 1 (p. 23-24) é construído com base
em intervenções secas e curtas, suportadas por agregados
que o pedal sostenuto ajuda a prolongar; enquanto isso, o
pedal de sustentação do Piano 2 deve manter-se accionado,
potenciando mais uma vez a ressonância total do conjunto.

57
Read, G., op. cit., p. 210
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 97

A título complementar, refira-se que a exploração das vi-


brações por simpatia, embora sem o recurso ao pedal de sus-
tentação, se verifica em Commentary X, de Commentaries on
Notations by Pierre Boulez (cfr. p. 10).

a.ii. Função Harmónica

Neste âmbito, importa mencionar que o pedal de sustentação


permite a Christopher Bochmann definir campos harmónicos,
alguns deles perfeitamente circunscritos, outros bastante
alargados; entre estes extremos, vários estádios intermédios
são verificáveis.
Quando se trata de definir campos harmónicos circunscri-
tos, as indicações de pedal são geralmente canceladas pouco
tempo após o acionamento deste recurso, de uma maneira
ritmicamente muito precisa; nesse procedimento, Bochmann
segue de perto a tendência, comum em obras da 2.ª metade
do séc. XX, para definir com exactidão não só o momento do
ataque de determinado som, mas também o da sua extin-
ção. Monograph (cfr. p. 6, Ex. 19), Music for two pianos I
(p. 7, 17, 18-19, 20), Music for two pianos II (cfr. c. 15-17, 18-20,
21-24, 129-131, 132-133, 136-137, 138-139, entre outros) e
Commentaries on Notations by Pierre Boulez (cfr. Commentary I,
p. 1, 2.º s.) dão-nos exemplos concretos disso.

Exemplo 20. Monograph, p. 6, 2.º s.

Já no que toca a campos harmónicos bastante exten-


sos e complexos, é importante referir que as indicações do
compositor quanto ao uso do pedal de sustentação incluem
extensos traços horizontais sob a pauta correspondente à
mão esquerda, traços esses ao longo dos quais por vezes se
98 ANA TELLES

encontram sinais que indicam a necessidade de limpar res-


sonâncias sem levantar completamente o referido pedal; nos
momentos em que este deve deixar de ser accionado, o traço
horizontal é interrompido por uma curta linha vertical, per-
pendicular a ele. Os exemplos mais paradigmáticos encon-
tram-se em Essay VIII (p. 10-13, 14-16), Music for two pianos I
(p. 2-3) e, particularmente, Music for two pianos II (cfr. c. 32-70
e a secção central da Toccata, compreendida entre os compas-
sos 193 e 299).

a.ii.1. Filtragem de Ressonâncias

Verificamos, em diversos pontos das obras que estamos a


considerar, um procedimento a que chamamos globalmente
“filtragem de ressonâncias”, e que corresponde à redução de
um determinado campo harmónico a outro que nele se encon-
trava incluído à partida, por um processo de eliminação de
alguns sons que integravam o complexo sonoro inicial. Esse
procedimento assume as mais variadas formas, como vere-
mos de seguida.
Na Sonata n.º 1 (primeiro exemplo deste procedimento),
encontramos extensos clusters suportados pelo pedal de sus-
tentação, aos quais se adicionam figurações rápidas no regis-
to agudo (cfr. p. 6-8); uma vez terminada a articulação dessas
figurações, os dedos primem silenciosamente determinadas
combinações de teclas e o pedal de sustentação é progressi-
vamente levantado, ficando a soar apenas o agregado corres-
pondente às teclas silenciosamente premidas.
Em Seven pieces, o mesmo procedimento surge em versões
simplificadas: na primeira peça desse conjunto, dois agrega-
dos de seis notas são reduzidos a três (p. 1, 1.º e 2.º s.), en-
quanto que um agregado de três notas é reduzido a uma só
(p. 1, 4.º s.); sendo todo o processo mais rápido nesses casos,
o levantamento do pedal é súbito e não progressivo, como no
caso da Sonata n.º 1.
Outros exemplos concludentes podem encontrar-se em
Essay VIII: no 2.º sistema da página 7 (cfr. Ex. 20), o complexo
sonoro original compreende quatro agregados distintos, dos
quais dois são articulados de maneira arpejada, em movimento
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 99

contrário, nos extremos do teclado; o agregado resultante,


composto por uma sobreposição dos intervalos de 3.ª menor,
5.ª perfeita e 3.ª maior, retém um conjunto de quatro notas
compreendidas no complexo inicial (enunciadas por enarmo-
nia). Já o exemplo que encontramos no 2.º sistema da página
13 filtra um conjunto de quatro sons que não foram prece-
dentemente articulados ao teclado, mas provêm de manipu-
lações no interior do piano (um harmónico e dois clusters
sobre as cordas).

Exemplo 21. Essay VIII, p. 7, 2.º s.

Em três pontos específicos de Monograph, uma única nota


resulta da filtragem dos sons compreendidos em um ou mais
clusters (cfr. p. 13, 4.º s.; p. 14, 1.º e 3.º-4.º s.). Num outro
caso, vemos um agregado de quatro sons surgir do complexo
anterior, que por sua vez resulta da articulação diferenciada,
nota a nota, de onze sons diferentes (cfr. p. 15, 1.º-2.º s.).
Outros exemplos concludentes figuram em 18 Miniatures
(cfr. II, p. 3, 3.º s.; VI, p. 7, 1.º-2.º s.; XIV, p. 16, 2.º s.; XVIII, p. 18,
4.º s.).
Nesta última obra (III, p. 4, 5.º s.; IX, p. 10, 2.º-3.º s. e na
transição da p. 10 para a p. 11; X, p. 12, 1.º 3.º e 4.º s.), bem
como em Letter I (p. 1, 2.º s.; p. 2, 1.º e 2.º s.; p. 3, 3.º s.;
p. 6, 5.º s.; p. 8, 4.º s.; p. 9, 1.º s.), Letter II (p. 4, 5.º s.;
p. 5, 3.º s.; p. 7, 1.º s.; p. 8, 2.º-3.º s.; p. 9, 1.º s.),
Letter III (p. 5, 3.º s.; p. 7, 3.º e 4.º s.; p. 8, 2.º s.) e Music
for two pianos II (variados exemplos entre os c. 82 e 106,
414 e 419) um procedimento análogo efectua-se apenas
com os dedos, sem recorrer ao pedal de sustentação;
nesses casos, um agregado de vários sons reduz-se invaria-
velmente a uma só nota.
100 ANA TELLES

b. Utilização do Pedal Sostenuto

Embora o pedal sostenuto (ou 3.º pedal) tenha sido instalado


nos pianos de cauda Steinway em 1874-7558, raros são os exem-
plos em que a sua utilização é expressa em partituras da pri-
meira metade do séc. XX. Já nos anos 1950, Olivier Messiaen,
em obras como La Bouscarle, de Catalogue d’Oiseaux, indica
claramente este recurso59 e Yvonne Loriod-Messiaen salienta
a “[...] imaginação [do compositor] na utilização do 3.º pedal...”60
John Cage (Music of Changes)61, Luciano Berio (Sequenza IV),
Karlheinz Stockhausen (Klavierstücke V-XI) e Pierre Boulez
(Sonata n.º 3)62 utilizam este pedal (que sustem apenas as notas
correspondentes às teclas premidas quando é accionado), de
maneira particularmente consistente.
Na obra para piano e para dois pianos de Christopher
Bochmann, a utilização do pedal sostenuto é recorrente nas
obras da maturidade, como: Essay VIII (p. 6, 2.º s.), Monograph
(extensa utilização, p. 2-5, 7, 9, 12, 14, 15), Music for two pianos I
(p. 21-24), Music for two pianos II (vários exemplos, c. 110-121),
Commentaries on Notations by Pierre Boulez (XI, p. 10, 2.º s.),
2369 – 10.x.09 (p. 1, 1.º s.) e Letter IV (p. 2, 1.º-2.º e 3.º-4.º s.;
p. 3, 2.º s.; p. 10 – utilização generalizada). Através deste
recurso, o compositor pode constituir agregados sonoros,
simples ou complexos e articular sobre eles episódios inde-
pendentes, sem que haja misturas indesejadas.

58
Rosenblum, S. P., op. cit., p. 173
59
Messiaen, O., “La Bouscarle” in Catalogue d’Oiseaux, vol. 5, Paris, Leduc,
1996, p. 7, 14
60
“[...] imagination dans l’utilisation de la troisième pédale...”; cfr. Loriod-
-Messiaen, Y. «  Étude sur l’œuvre pianistique de Messiaen  » in Portrait(s)
d’Olivier Messiaen (dir. Catherine Massip), Paris, Bibliothèque Nationale de
France, 1996, p. 75
61
Rosenblum, S. P., op. cit., p. 175
62
Bradshaw, S., “Piano Music: 7. After World War II” in The piano, Londres,
Macmillan, 1988, p. 143
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 101

c. Utilização do Pedal una corda

A utilização do pedal una corda não é frequentemente indica-


da nas obras que estamos a considerar. Quando o é, assume
funções dinâmicas (abafando o som, de acordo com a especi-
ficidade do mecanismo) e/ou tímbricas.
Como exemplo do primeiro caso, podemos referir ocor-
rências em Sonata n.º 1 (uso sistemático nas figuras ppp do
Prelúdio, p. 1-3 e do Postludio, p. 15-18), Essay VIII (p. 16, 3.º
s.) e Letter II (p. 9, 2.º-5.º s.).
Quanto à utilização tímbrica do pedal una corda, Monograph
fornece-nos um importante exemplo: três intervenções de
um conjunto variável de acordes (p. 12, 4.º s.; p. 14, 2.º s.;
p. 15, 1.º s.) são diferenciadas da textura circundante pelo
recurso ao pedal una corda, independentemente das nuances
dinâmicas diferenciadas que o compositor emprega para
cada uma delas (p, mp e pp, respectivamente).
Na primeira metade de Commentary V (de Commentaries
on Notations by Pierre Boulez; v. Ex. 13), já vimos que o Fá#3,
sucessivamente reiterado, ora surge sobre os campos
harmónicos consignados à pauta inferior e suportados pelo
pedal de sustentação, ora é eliminado desses mesmos cam-
pos por abafamento dos dedos sobre as respectivas cordas.
Independentemente das nuances dinâmicas, variáveis tanto
no que concerne ao substrato harmónico como no que diz res-
peito às repetições do Fá#3, essa nota é diferenciada das
restantes, do ponto de vista tímbrico, por ser constantemente
associada ao pedal una corda.
Noutros exemplos, como Sonata n.º 1 (p. 15, 1.º s.), Monograph
(p. 14, 2.º s.; p. 15, 1.º s.) e Letter IV (p. 10, 4.º s.), parece-nos
difícil distinguir as funções dinâmica e tímbrica do pedal una
corda.

EXPLORAÇÃO DE REGISTOS EXTREMOS

Âmbitos alargados e a exploração de registos extremos


são praticamente constantes no conjunto das obras que te-
mos vindo a discutir. Se, em algumas dessas obras, como
os Etudes nº 1 e nº 2, Music for two pianos 1, 18 Miniatures,
102 ANA TELLES

Commentaries on Notations by Pierre Boulez e 2369 – 10.x.09,


podemos considerar que o discurso musical se desenrola
entre limites amplos mas não extremos, em todas as outras
obras (excepto Carrolling Bach) verificamos uma exploração
pontual ou mesmo bastante assídua dos registos sobre-agudo
e subgrave. A esse nível, é importante referir que, em alguns
casos, são requeridas mudanças de posição extremamente
rápidas entre um e outro dos registos extremos, como por
exemplo em Essay VIII (p. 3, 2.º s.; p. 7, 2.º s.), Monograph (p. 8,
2.º s.; p. 9, 1.º s.), Letter II (p. 3, 2.º s.).
Noutros casos, encontramos extensas secções centradas
num determinado registo: a Toccata de Music for two pianos II,
primeiramente no registo grave (c. 143-192), depois no agudo
(c. 193-299) e novamente no grave, movendo-se progressiva-
mente para o agudo (c. 300-330), é disso um excelente exemplo.
Uma boa parte da Sonata n.º 1 (Aria e Postludio, p. 8-18)
é escrita em quatro pautas (sendo as claves de Sol e Fá das
pautas extremas frequentemente octaviadas para cima e
para baixo, respectivamente) para acomodar uma presença
constante dos registos extremos.
As secções delimitadas pela indicação Un poco rubato
(presto possibile) em Letter III, constituem também um caso
especial, na medida em que apresentam gestos maioritaria-
mente unidireccionais, reiterados, compreendendo um núme-
ro bem determinado de fusas63, que se precipitam do registo
extremo agudo (ou agudo, nos últimos dois gestos) para o
grave (cfr. p. 5-8). Inversamente, Letter IV baseia-se precisa-
mente num gesto, várias vezes reiterado, que nos conduz do
extremo grave ao extremo agudo (p. 1, 2.º-3.º s.; p. 2, 1.º s.).

UTILIZAÇÃO DE RECURSOS NO INTERIOR DO PIANO


E EFEITOS ACÚSTICOS PARTICULARES

No que toca à utilização de recursos no interior do piano, já tive-


mos a ocasião de referir a realização de clusters directamente

63
4 X 23 fusas, 1 X 33 fusas e 3 X 19 fusas, respectivamente.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 103

sobre as cordas do piano, em registo grave, requerida nas


obras Essay VIII e Letter III. Também já foi referida a técnica
que consiste em abafar, com os dedos (ou a mão), as cordas
correspondentes a uma nota determinada, procedimento que
encontrámos na Sonata n.º 1 e no Commentary V, associado à
reiteração de notas.
No entanto, a obra mais abertamente experimental no que
toca à utilização dos recursos do interior do piano é, sem dúvi-
da, Seven Pieces. Nela verificamos que o abafamento de uma
nota previamente posta em vibração através do mecanismo
da tecla surge na peça n.º 7 (p. 5), com a particularidade de
o compositor especificar o ponto da corda em que pretende
que o pianista leve a cabo essa acção (“damped c. 1 cm from
end of string”). Na peça n.º 4 da mesma obra (p. 3), a acção
de abafar a(s) corda(s) não se aplica a notas previamente arti-
culadas ao teclado, mas prepara as acções seguintes: no pri-
meiro caso, a nota em causa será articulada, staccato e sff,
no teclado, depois de previamente abafada a corda que lhe
corresponde; no segundo caso, a unha do pianista deve arra-
nhar a corda previamente abafada. Na peça n.º 6 (p. 5), o com-
positor requer a realização de pizzicati sobre determinadas
cordas, em alternância com a articulação de agregados de
três sons ao teclado; a acção de arranhar duas cordas, no
final da peça, é também solicitada.
Em Essay VIII (p. 11-13) surge a exploração de harmóni-
cos no interior do piano, cuja justaposição com as mesmas
notas articuladas no teclado cria interessantes jogos tímbri-
cos; trata-se de um procedimento único na obra para piano
de Christopher Bochmann.
A nível de efeitos acústicos particulares, importa referir
que o Commentary X (p. 10) se limita à estimulação acústica
de um agregado que não chega a ser articulado, mas cujas
teclas são premidas em silêncio antes de o pianista tocar
um outro agregado, de dois meios tons, no extremo grave
do piano.
No final das peças n.os 14 e 18, de 18 Miniatures, encontra-
mos um interessante efeito notado através de cruzes no lugar
das notas: em ambos os casos, os sons do agregado que ainda
se encontra a soar, por pressão dos dedos sobre as teclas
(após o processo de filtragem anteriormente concretizado)
104 ANA TELLES

vão sendo progressivamente extintos através da retirada pro-


gressiva e diferenciada de cada um dos dedos64.

CITAÇÃO E AUTO-CITAÇÃO

Já foram mencionadas numerosas citações de obras de outros


compositores no corpus que estamos a focar, particular-
mente em Letter I, II, III e IV, Carrolling Bach e Commentaries on
Notations by Pierre Boulez, tendo sido inclusivamente referida
a postura consciente e inclusiva de Christopher Bochmann
relativamente a essa prática.
Importa agora mencionar, de maneira muito abreviada, al-
guns casos de auto-citação que contribuem para a percepção
de coerência e unicidade tanto a nível global, entre as obras
em apreço, como a nível da estruturação interna de uma
mesma obra.
A título de exemplo do primeiro caso, refiramos que o iní-
cio de Commentary VIII (p. 9) de Commentaries on Notations by
Pierre Boulez corresponde, na realidade, a uma auto-citação
do gesto inicial de 18 Miniatures, transposto meio tom abaixo.
Note-se ainda que o agregado Si – Fá# – Sol (no registo cen-
tral), enunciado progressivamente através de apogiaturas
sustentadas, com que se inicia o referido gesto no Commentary
VIII, figura igualmente no último sistema da página 2 de
Monograph, em pp, e, transposto uma oitava abaixo, em Music
for two pianos I, no Piano 2 (ao início do terceiro sistema da
página 5). É de referir ainda que, em Music for two pianos II,
uma extensa passagem no início da secção central da Toccata
(c. 200-218) se baseia precisamente na reiteração do motivo Si
bemol – Fá – Sol bemol no registo sobreagudo65. O motivo que
consiste na enunciação de quinta perfeita mais meio tom em

64
Segundo o próprio compositor, este efeito deriva da “técnica de tapar lâmi-
nas no vibrafone, como se vê em Boulez” (cfr. Email à autora, 02/11/2014).
65
Não será seguramente por acaso que os gestos descendentes que carac-
terizam as secções extremas da referida Toccata (c. 143-192 e 300-329) bem
como o ponto de chegada do seu único gesto ascendente, no final (c. 330), se
iniciam invariavelmente com um agregado composto justamente pela sobre-
posição de 5.ª perfeita mais meio tom.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 105

sentido ascendente, é, aliás, frequente em várias das obras


de C. Bochmann, não só para piano, a tal ponto que talvez o
pudéssemos considerar uma espécie de “assinatura” musical
do autor, mais do que um exemplo de auto-citação.
Assinalamos também que, no Commentary IX (p. 10) de
Commentaries on Notations by Pierre Boulez, a mão direita (no
primeiro sistema e início do segundo) corresponde a uma auto-
-citação ornamentada do início de Essay XV (para oboé); já a
passagem seguinte, ainda na mão direita (p. 10, 2.º s.) corres-
ponde a uma inversão transposta do motivo rítmico que figura
no início de 18 Miniatures e igualmente no início do Commentary
VIII (p. 9, 3.º s.). Por sua vez, e a título de dispositivo de coerên-
cia interna, o último gesto de Commentary IX, em tercinas de
semicolcheias (p. 10), reitera, na mesma nuance dinâmica (f)
e numa transposição um tom acima, um dos gestos iniciais de
Commentary I (p. 1, 1.º s.).

EVOCAÇÃO DE GÉNEROS E TÉCNICAS COMPOSICIONAIS


DO PASSADO

Para além das já referidas obras cujos títulos remetem para


géneros específicos da tradição erudita ocidental (como
Sonatas, Estudos, Peças, Prelúdios, Toccata), várias das obras
que estamos a considerar incluem, em momentos determi-
nados, alusões aos mesmos ou a outros géneros e técnicas
composicionais cujo apogeu se situa num passado mais re-
moto, como tocata, cânone, fugato.
O primeiro encontra-se explícito em Music for two pianos II,
onde a extensa secção central (c. 143-330) é especificamente
designada pelo autor como Toccata (cfr. p. 21), como temos
vindo a referir.
Do ponto de vista histórico, sabemos que o género Toccata,
cujo apogeu se situa entre 1650 e 175066, se destinava precisa-
mente a evidenciar as capacidades técnicas do intérprete.
Bastará recuarmos até às cinco Toccatas para órgão e sete

66
Denizeau, G., Les genres musicaux: vers une nouvelle histoire de la musique,
Angoulême, Larouse/Bordas, 2000, p. 98
106 ANA TELLES

Toccatas para cravo de Johann Sebastian Bach para o cons-


tatar; nessas obras, a justaposição de diferentes secções
e texturas, por vezes definidas por indicações de tempo e
carácter contrastantes, proporciona material diversificado
sobre o qual o intérprete poderá exibir as suas multifaceta-
das virtudes interpretativas. Por outro lado, a noção de movi-
mento perpétuo associada a este género é uma constante
quase exclusivamente desenvolvida em obras mais tardias
com a mesma designação, de Robert Schumann67, Claude
Debussy68, Maurice Ravel69 e Sergei Prokofiev70, entre outros.
A Toccata para dois pianos apresenta uma variedade de
texturas bem definidas, que se reportam a módulos formais
correspondentes às letras do título T – O – C – C – A – T – A,
sendo que a ordem de execução dos módulos referentes a
cada um dos três pares de letras repetidas (T – T; C – C; A – A)
é determinada pelo intérprete. Nesse sentido, aproxima-se
do modelo formal variado e algo livre da tocata setecentis-
ta, embora não exclua uma secção em movimento perpétuo
(sub-módulos A1, A2, A3, p. X-1; A4, p. X-2).
Na secção tripartida denominada Toccata de Music for two
pianos II, verifica-se uma prevalência exclusiva do movimen-
to contínuo em fusas nas secções extremas, e uma subdi-
visão mais lenta, em tercinas de semicolcheias, na secção
central71. Trata-se de uma passagem que exige extremo vir-
tuosismo e concentração por parte de ambos os intérpretes,
sendo a sua realização técnica especialmente problemática;
acresce que, dada a coincidência da subdivisão constan-
te nos dois pianos e a distribuição desigual de acordes e
sucessões de agregados de 2.ª (que constituem excepções à
textura monódica prevalecente em cada um dos instrumen-
tos), sempre contrariando a métrica regular do compasso

67
Toccata para piano, op. 7 (1830)
68
Toccata da suite Pour le piano (1901)
69
Toccata do Tombeau de Couperin (1917)
70
Toccata para piano op. 11 (1912)
71
Esta última apresenta, para além do movimento perpétuo que a caracteriza
entre os compassos 193 e 258, uma flexibilização a nível rítmico e episódico a
partir do compasso 259 e até ao regresso da textura inicial, no compasso 300.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 107

quaternário72, o perfeito sincronismo exigido é particularmente


difícil de alcançar.
Por todas estas razões, esta importante parte da forma de
Music for two pianos II faz jus à designação que o compositor
lhe associa, particularmente quando pensamos nas tocatas
oitocentistas e novecentistas que citámos.
Embora, no conjunto das obras que estamos a considerar,
estes sejam os únicos exemplos em que o género tocata é
explicitamente invocado, em várias outras ocasiões encon-
tramos a presença de movimentos perpétuos em figurações
rápidas cuja textura se assemelha à que temos vindo a de-
screver. Refiram-se, a título de exemplo, obras como: Etude
nº 1 (c. 1-36 e 47-62), Letter I (Molto vivo, p. 3, 4.º s. a p. 6, 4.º
s.), Letter II (p. 1-3, 3.º s.; p. 6, 4.º s. a p. 7, 1.º s.; p. 7, 2.º s. a p.
8, 1.º s. e outras intervenções esporádicas, derivadas destas),
e, em certa medida, as secções assinaladas com a indicação
“Tempo IIº (Un poco più mosso)” em Letter III, embora nesses
casos o movimento perpétuo de fusas seja frequentemente
interrompido por pontuações de semicolcheia.
A palavra cânone designa, historicamente, uma técnica de
composição e um género autónomo, a partir do séc. XVI73; em
grande medida redescoberto por autores dos sécs. XIX e XX,
como Max Reger, Béla Bartók ou Paul Hindemith, o cânone
interessou particularmente os compositores da 2.ª Escola
de Viena (Arnold Schönberg, Alban Berg, Anton Webern), em
cujas obras atonais ou seriais a escrita contrapontística ocupa
um lugar de destaque74. Nas obras em estudo, encontramos
quatro exemplos significativos em 18 Miniatures: as peças nos

72
A escolha desse compasso quaternário regular prende-se unicamente com
razões práticas, de maneira a simplificar a coordenação dos dois pianos,
como o próprio compositor admite (cfr. Email à autora, 16/11/2014). Na rea-
lidade, a escrita rítmica da obra não é redutível à métrica expectável nesse
quadro de regularidade, embora de maneira quase intuitiva os intérpretes
tenham tendência a reportar-se a ela para garantir o sincronismo, sentindo
a rítmica “real” como excepção a uma regra que, neste caso, é apenas de
conveniência.
73
Montalembert, E. e Abromont, C., Guide des genres de la musique occiden-
tale, Paris, Fayard/Lemoine, p. 120
74
Montalembert, E. e Abromont, C., op. cit., p. 125
108 ANA TELLES

III, VII, XI e XV (respectivamente p. 4, 8, 11 e 16) são na reali-


dade cânones de diferentes tipos que, segundo o composi-
tor, correspondem a uma homenagem às célebres Variações
Goldberg, BWV 988, de Johann Sebastian Bach75; também
Music for two pianos II apresenta um extenso e complexo câno-
ne entre os compassos 427 e 464. A mesma técnica composi-
cional aparece em Letter IV, na secção Vivo ma un poco meno
(p. 7, 4.º sistema; p. 8), embora tal não seja especificamente
referido pelo compositor, ao invés dos casos precedente-
mente assinalados.
O termo fugato surge no XVII para designar uma secção de
uma obra ou de um andamento que utiliza, de maneira mais
ou menos extensa e rigorosa, as técnicas de composição da
Fuga; encontramos exemplos célebres em obras de Johann
Sebastian Bach76 e Ludwig van Beethoven77, bem como de
vários outros compositores do período clássico, particular-
mente nas secções de desenvolvimento de formas-sonata,

75
Harper, N. L, Portuguese Piano Music: An Introduction and Annotated Bibliog-
raphy, Lanham, Scarecrow Press, 2013, p. 135
76
No tratamento da palavra “Alleluja” na primeira parte da Cantata BWV 140,
Wachet auf; cfr. Montalembert, E. e Abromont, C., op. cit., p. 426.
77
Particularmente, no que toca ao piano:
(1.) no 4.º andamento da Sonata op. 101 (a partir do c. 123; cfr. Beethoven,
L., Klaviersonaten, Vol. 2, München. G. Henle Verlag, 1980, p. 220-224; ver
também Tranchefort, F. R., Guide de la Musique de Piano et de Clavecin, Paris,
Fayard, 1987, p. 126); (2.) no desenvolvimento do 1.º andamento da Sonata
op. 106, Hammerklavier (c. 138-176; cfr. Beethoven, L., op. cit., p. 231-232; ver
também Abromont, C., op. cit., p. 426 e Tranchefort, F. R., op. cit., p. 128); (3.) na
5.ª variação do 3.º andamento da Sonata op. 109 (c. 113-152; cfr. Beethoven,
L., op. cit., p. 286-287; ver também Tranchefort, F. R., op. cit., p. 132); (4.) no
1.º andamento da sonata op. 111 (c. 77-83; cfr. Abromont, C., op. cit., p. 426 e
Tranchefort, F. R., op. cit., p. 135); (5.) no 3.º andamento do 3.º Concerto para
piano e orquestra, op. 37 (c. 229-248; cfr. Beethoven, L., Klavierkonzert Nr. 3
op. 37 (arranjo para dois pianos), München. G. Henle Verlag, 1988, p. 79-80).
É importante não confundir estes exemplos com a “Fuga a tre voci, con alcune
licenze” que figura no 4.º (e último) andamento da Sonata op. 106 (a partir do
c. 16; cfr. Beethoven, L., Klaviersonaten, Vol. 2, München. G. Henle Verlag, 1980,
p. 257-272) e com outras soluções encontradas pelo mesmo compositor para
combinar a estrutura formal da fuga com a da forma sonata, particularmente
na Sonata op. 110); cfr. Beethoven, L., op. cit., p. 302-308; Rosen, C., Beethoven’s
Piano Sonatas: A short companion, New Haven e Londres, Yale University
Press, 2002, p. 243 e Tranchefort, F. R., op. cit., p. 133-134.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 109

em sinfonias, sonatas ou quartetos de cordas78. Charles Rosen


comenta:

Combining fugue and sonata was a great classical preoccu-


pation. The fugue was a learned technique and it gave pres-
tige to the more sociable form of the sonata. We must not,
however, ascribe the introduction of fugal texture only to
crass social ambition, as if court musicians wished to as-
sert their qualifications for being admitted to an academy.
Fugue allowed for an intensity of sentiment and a richness
of texture threatened by the galant style of the late eight-
eenth century.79

O terceiro (e último) andamento da Sonata op. 5 (p. 16-22)


corresponde, por seu turno, a um “Fugato” explicitamente
identificado como tal pelo autor. Ligando-se assim inequivo-
camente à tradição da música para piano do período clássico,
o jovem autor parece evitar (com alguma modéstia, podemos
especular) a conotação demasiado formal que o termo e o
género “Fuga” poderia ter tido no contexto de uma obra desig-
nada como “Sonata”.
Christopher Bochmann afirmou, numa entrevista data-
da de 1998: “Talvez por influência ainda das aulas de Nadia
Boulanger, não rejeito de modo algum o neoclassicismo, e
fiz muitas peças neoclássicas, muitas delas um pouco mais
fáceis, para as crianças poderem tocar.”80 O que nos parece in-
teressante salientar aqui é que as alusões a géneros e técni-
cas composicionais do passado se encontram, nos exem-
plos que referimos, não no contexto de obras didácticas mas
em obras significativas do repertório pianístico do autor; se os
títulos da Sonata op. 5, das Sonatas n.os 1 e 2 e dos Prelúdios nos
podem levar a imaginar uma influência mais directa de Nadia
Boulanger durante o período de estudos do compositor em
Paris81, a verdade é que, perante os outros exemplos apontados,

78
Rosen, C., op. cit., p. 242. Ver igualmente Honegger., M., Science de la Mu-
sique, vol. 1, Paris, Bordas, 1976, p. 410.
79
Rosen, C., op. cit., p. 242.
80
Azevedo, S., op. cit., p. 560
81
Essa influência verifica-se globalmente na alusão a géneros do passado, (>)
110 ANA TELLES

somos levados a concluir que um pensamento de cariz neo-


clássico perdura, a certo nível, na actividade composicional
de C. Bochmann, pelo menos até a uma data muito recente.
O interesse em procedimentos composicionais do passado
pode reportar-se a outras influências musicais específicas,
como a dos compositores da 2.ª Escola de Viena, por um lado;
por outro lado, está seguramente relacionado com a activi-
dade pedagógica de Bochmann no domínio da composição,
actividade essa que se tem baseado na observação e análise
de repertórios, de acordo com o testemunho de alunos82.
Em jeito de conclusão, parece-nos importante sintetizar
algumas observações relativamente a cada uma das obras
analisadas. A Sonata op. 5 combina traços de um idioma pia-
nístico romântico ou pós-romântico com ecos neoclássicos,
nomeadamente a nível de procedimentos composicionais e
elementos formais; ainda assim, alguma experimentação a
nível intervalar anuncia desenvolvimentos futuros.
Os Etudes nº 1 e nº 2 partem igualmente de texturas co-
muns em obras do mesmo género de épocas passadas (no
primeiro, o desenvolvimento da técnica digital, sob a forma
de trilos escritos e movimentos lineares, conjugada com am-
plas deslocações, sobretudo na mão esquerda; no segundo,
a utilização de notas dobradas). O pensamento intervalar
que Christopher Bochmann desenvolverá em obras subse-
quentes encontra-se subjacente ao trabalho motívico patente
em ambos os estudos; ele desenvolve-se, no primeiro caso, a
partir do princípio da igualdade dos meios tons e, no segun-
do caso, através de estruturas compostas com base na al-
ternância tom/meio-tom que decorre da utilização da escala
octatónica.
A Sonata n.º 1 parece-nos, sem dúvida, ser a primeira
“grande obra” para piano de C. Bochmann; simples, do pon-
to de vista formal, e mais uma vez não recusando alusões

>81
implícita nos títulos das referidas obras, mais do que no conteúdo e lin-
guagem das mesmas. Ainda assim, no que toca às Sonatas op. 5 e n.º 1, o
compositor admite que a influência de Nadia Boulanger seja “evidente” (cfr.
Email à autora, 16/11/2014).
82
Cfr. Madureira, J., Comunicação pessoal à autora, 07/06/2012.
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 111

neoclássicas a esse nível, é uma obra profundamente original


nas suas texturas e efeitos; vários dos elementos do idioma
pianístico do autor, que virão a ser explorados em obras
subsequentes, encontram-se nesta obra pela primeira vez;
bastará citar, a título de exemplo, acções no interior do pia-
no (como o abafamento de uma corda depois de a respectiva
nota ter sido tocada ao teclado), a exploração de registos ex-
tremos, clusters, ataques incisivos sobre as teclas, filtragem
de ressonâncias, entre outros.
Seven pieces é uma obra particularmente concisa e experi-
mental, ao nível da variedade de efeitos no interior do pia-
no. A tendência exploratória nas obras do mesmo período ou
ligeiramente ulteriores, Sonata n.º 2, Preludes e Toccata, veri-
fica-se sobretudo a nível formal. Esta última obra constitui
a primeira incursão do autor no domínio da formação com-
preendendo dois pianos, o que permite naturalmente “dupli-
car” as potencialidades do instrumento.
Essay VIII representa um marco importante no seio da
produção pianística do autor, inaugurando, do ponto de vista
cronológico, é certo, mas sobretudo do da linguagem, a sua
fase de maturidade composicional no que a este instrumento
diz respeito. É uma obra concisa e particularmente consis-
tente, sistematizando a maioria dos parâmetros que definimos
no processo de análise do idioma instrumental que levámos a
cabo. A variedade e o grau de segurança técnica dos procedi-
mentos envolvidos é significativa.
As duas obras subsequentes, datadas igualmente dos anos
1990 (Monograph e Music for two pianos I) parecem operar um
processo de depuramento progressivo e aperfeiçoamento de
certos parâmetros expostos em Essay VIII; quiçá menos experi-
mentais e demonstrativas, concentram-se em determinados
traços idiomáticos – como clusters ou agregados complexos,
ataques incisivos, filtragem de ressonâncias (em Monograph),
recurso ao pedal sostenuto – e aprofundam a sua utilização.
Embora menos ambiciosa do ponto de vista da variedade de
técnicas empregues, Music for two pianos I é também uma obra
profundamente contrastante a nível emocional, na senda de
Essay VIII, desenvolvendo tanto o lado agreste que esta última
expõe no seu início (levando-o a um patamar de quase violência)
como o lado poético com que a obra precedente chega ao fim.
112 ANA TELLES

Após o virar do milénio, 18 Miniatures revela uma nova ati-


tude experimental; regressando às pequenas formas que
Bochmann explorara em Seven pieces, introduz elementos
composicionais e pianísticos novos, como sejam o recurso
sistemático ao cânone e a indicação da ordem e ritmo de retira-
da dos dedos de um determinado conjunto de teclas. Além dis-
so, recupera e desenvolve um importante parâmetro “ensaia-
do” mais uma vez em Seven pieces (definição progressiva de um
agregado complexo, de âmbito alargado, à custa de apogiaturas
sustentadas), parâmetro esse que se generaliza nas obras sub-
sequentes (com excepção de Carrolling Bach e 2369 – 10.x.09).
Letter I introduz duas noções importantes: a da sobre-
posição de sistemas rítmicos de proporções diferentes pre-
cisamente notadas, com importantes consequências pianísti-
cas a nível da coordenação motora, por um lado, e, por outro
lado, a integração de passagens compostas por sucessões de
ataques incisivos sobre notas isoladas com fragmentos legato
de proporções progressivamente mais extensas, na constru-
ção de grandes gestos lineares, monódicos.
Quanto a Music for two pianos II, a utilização renovada de
dois pianos parece constituir um desafio a que o compositor
responde elevando o parâmetro instrumental a um nível de
desenvolvimento e complexidade sem paralelo nas obras an-
teriores. À excepção das manipulações no interior do piano,
ausentes nesta obra, praticamente todos os outros parâme-
tros analisados no corpus em estudo se encontram presentes
em Music for two pianos II; tal facto justifica, em nosso enten-
der, que a obra seja considerada uma espécie de monumento
pianístico do autor. A nível do conteúdo emocional, chegamos
a um paroxismo em que a variedade e intensidade dos esta-
dos de alma representados ultrapassa tudo o que tinha sido
previamente ensaiado.
As restantes obras da mesma década, Commentaries on
Notations by Pierre Boulez, Carrolling Bach e 2369 – 10.x.09,
consolidam o idioma pianístico do autor, sendo de assinalar
o regresso a procedimentos experimentais a nível acústico,
dentro do piano (abafamento de cordas) e ao teclado (estim-
ulação de vibrações por simpatia), na primeira das referidas
obras; Carrolling Bach exibe uma escrita mais convencional, a
nível das texturas, por razões que se prendem com o propósito
A MÚSICA PARA PIANO: REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS E A ESCRITA INSTRUMENTAL 113

das duas fantasias que a compõem e a origem do respectivo


material de base.
Letter II combina eficazmente o ostinato característico de
alguma música de Amílcar Vasques Dias com o tratamento
intervalar caro ao seu autor; Letter III, por seu turno, expande e
aprofunda muito particularmente alguns dos mais importantes
traços do idioma pianístico de Bochmann, como a repetição de
notas ou agregados e a definição progressiva de um agregado
complexo, de âmbito alargado, à custa de apogiaturas susten-
tadas. As sucessões de acordes rápidos, diferentes, sobre uma
nota reiterada, são específicas a esta peça, embora encontrem
um precedente nas diferentes harmonizações de uma nota
principal que se verificam em Essay VIII. Letter IV assemelha-se
às suas homónimas Letters II e III no sentido em que ambos os
traços que acabamos de salientar, em jeito de síntese quanto a
essas obras, se encontram igualmente representados na mais
recente peça para piano de C. Bochmann.

***

Para caracterizarmos, de um ponto de vista global, o idioma


pianístico de Christopher Bochmann tal como ele se revela nas
obras que perscrutámos, diríamos que as suas origens as-
sentam numa técnica instrumental convencional, herdada da
tradição pianística oitocentista. A permeabilidade a uma sensi-
bilidade neoclássica, estimulada provavelmente pelo contacto
com Nadia Boulanger nos anos de formação, mantém-se ao
longo dos anos e manifesta-se pontualmente, tanto no recurso
a técnicas, géneros e formas do passado, como também, de
maneira mais abrangente, numa constante busca de equilíbrio
e proporcionalidade, transversal a todas as obras.
O idioma em causa é forjado com base nas principais
correntes estilísticas europeias da segunda metade do séc.
XX, sobretudo sob a influência dos autores associados ao
pós-serialismo, mas também dos compositores e obras da 2.ª
Escola de Viena. As experiências no domínio do aleatorismo
têm uma representatividade restrita mas significativa no con-
junto das obras analisadas, assim como um certo grau de
114 ANA TELLES

experimentalismo a nível de efeitos não convencionais83.


Salientamos a significativa consistência deste idioma ins-
trumental, patente na trama de relações que se pode esta-
belecer entre parâmetros bem definidos da escrita pianística
e as obras de diferentes períodos cronológicos em que eles
surgem. Mas, acima de tudo, não podemos deixar de destacar
a notável capacidade do seu autor para se reinventar e auto-
-regenerar em cada nova obra dedicada ao piano.

83
A este nível, refira-se aliás que C. Bochmann considera muito importantes
as experiências a nível do aleatorismo, da notação livre e da pesquisa siste-
matizada de diferentes efeitos instrumentais, ao mesmo tempo que refere o
alcance muito limitado do experimentalismo ao acaso, “para ser diferente”;
cfr. Martingo, A., op. cit. p. 57.

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