Você está na página 1de 8

A função poética da linguagem

O ensaio “Linguística e poética”, de Roman Jakobson, foi apresentado como


palestra em 1958 e publicado em 1960.

Fatores implicados no ato de comunicação:

CONTEXTO
REMETENTE MENSAGEM DESTINATÁRIO
CONTATO
CÓDIGO

Funções da linguagem implicadas nos fatores de comunicação:

REFERENCIAL
EMOTIVA POÉTICA CONATIVA
FÁTICA
METALINGUÍSTICA

Breve comentário às funções da linguagem:

A função emotiva (ou expressiva) está centrada no remetente em relação


àquele que fala; é a função da primeira pessoa, do eu. Em termos de gênero
literário, é a função que aparece intensamente na poesia lírica.

A função conativa (ou apelativa) está orientada para o destinatário (conatum:


impulso, esforço; conação, tendência para atuar); é a função da segunda
2

pessoa, do tu. Em termos de gênero literário, é a função que aparece


intensamente na poesia dramática.

A função referencial está voltada para o contexto (ou referente), isto é, para um
aspecto da realidade que não seja nem o eu, nem o tu; é a função da terceira
pessoa, do ele; caracteriza-se por lançar mão de informações de natureza
lógico-discursiva (como no caso do jornalismo). Em termos de gênero literário,
é a função que aparece intensamente na poesia épica.

A função fática está voltada a estabelecer a comunicação, o contato (fático:


ligado a ruído, rumor em geral); estabelece, interrompe ou prolonga o contato,
operando geralmente com fórmulas ritualizadas.

A função metalinguística está voltada para o código; busca esclarecer o código,


tendo uma função de glosa (comentário ou explicação do léxico).

Em toda situação de comunicação, há sempre uma função predominante.

Comentários sobre a função poética:

Destacamos todos os seis fatores envolvidos na comunicação verbal,


exceto a própria mensagem. O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM
como tal, o enfoque da mensagem por ela própria, eis a função poética
da linguagem. (p. 127-128)

Exemplo de uma fala ou cena cotidiana.

Qual é o critério linguístico empírico da função poética? Em particular,


qual é o característico indispensável, inerente a toda obra poética? Para
responder a esta pergunta, devemos recordar os dois modos básicos de
arranjo utilizados no comportamento verbal, seleção e combinação. Se
“criança” for o tema da mensagem, o que fala seleciona, entre os nomes
existentes, mais ou menos semelhantes, palavras como criança, guri(a),
garoto(a), menino(a), todos eles equivalentes entre si, sob certo aspecto
3

e então para comentar o tema, ele pode escolher um dos verbos


semanticamente cognatos – dorme, cochila, cabeceia, dormita. Ambas
as palavras escolhidas se combinam na cadeia verbal. A seleção é feita
em base de equivalência, semelhança e dessemelhança, sinonímia e
antonímia, ao passo que a combinação, a construção da sequência, se
baseia na contiguidade. A função poética projeta o princípio de
equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. A
equivalência é promovida à condição de recurso constitutivo da
sequência. (p. 129-130)

Tome-se o título de um poema de Manuel Bandeira:

A Dama Branca

É a mesma razão para se entender a escolha das palavras no título da canção


de Caetano Veloso:

Podres poderes

É preciso atentar para o fato de que a função poética não abre mão do
referente (afinal, a poesia fala da realidade); mas o trata de outra forma:

A supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a


referência, mas torna-a ambígua. (p. 150)

E o estudioso fala da presença decisiva da ambiguidade na poesia:

A ambiguidade se constitui em característica intrínseca, inalienável, de


toda mensagem voltada para si própria, em suma, num corolário
obrigatório da poesia. Repitamos com Empson: “As maquinações da
ambiguidade estão nas raízes mesmas da poesia”. Não somente a
própria mensagem, mas igualmente seu destinatário e seu remetente se
tornam ambíguos. (p. 149-150)
4

Jakobson estabelece uma distinção entre a função poética e a função


metalinguística; diz o autor:

Pode-se objetar que a metalinguagem também faz uso sequencial de


unidades equivalentes quando combina expressões sinônimas numa
sentença equacional: A = [B] (“A égua é a fêmea do cavalo”). Poesia e
metalinguagem, todavia, estão em oposição diametral entre si; em
metalinguagem, a sequência é usada para construir uma equação, ao
passo que em poesia [a equação] é usada para construir uma
sequência. (p. 130)

Pensemos numa situação cotidiana e insólita em que uma pessoa dissesse:


“Vou colocar água nas flores” e a outra não soubesse o que significa flor; logo
recorreria à definição do dicionário:

Flor – Designação comum a qualquer planta


cultivada como ornamental por suas flores.

Mas tomemos agora os versos de João Cabral de Melo Neto, do poema


“Antiode”, em que não há esse contexto pragmático:

Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.

Alfredo Bosi, no capítulo de abertura de seu livro O ser e o tempo da poesia,


reconhece a força da formulação de Jakobson, mas chama atenção para a
importância do que não se repete, do que significa uma diferenciação no
discurso poético (apontada é claro no texto do linguista russo):

Re-iterar um som, um prefixo, uma função sintática, uma frase inteira,


significa realizar uma operação dupla e ondeante: progressivo-
regressiva, regressivo-progressiva. (p. 41)
5

Logo a seguir, o crítico explicita o sentido desse movimento que volta, mas que
também caminha:

Entre a primeira e a segunda aparição do signo correu o tempo. O tempo


que faz crescer a árvore, rebentar o botão, dourar o fruto. A volta não
reconhece, apenas, o aspecto das coisas que voltam: abre-nos,
também, o caminho para sentir o seu ser. A palavra que retorna pode
dar à imagem evocada a aura do mito. A volta é um passo adiante na
ordem da conotação, logo na ordem do valor. (p. 42)

A certa altura de seu ensaio, comentando a noção de rima, Jakobson fala do


conceito fundamental para ele de paralelismo, a partir das reflexões do poeta
Hopkins:

A rima é apenas um caso particular, condensado, de um problema muito


mais geral, poderíamos mesmo dizer do problema fundamental, de
poesia, a saber, o paralelismo. (p. 146)

E se estende no comentário sobre o paralelismo:

Em suma, a equivalência de som, projetada na sequência como seu


princípio constitutivo, implica inevitavelmente equivalência semântica, e
em qualquer nível linguístico, qualquer constituinte de uma sequência
que tal suscita uma das duas experiências correlativas que Hopkins
define habilmente como “comparação por amor da parecença” e
“comparação por amor da dessemelhança”. (p. 146-147)

Diferentes formas de paralelismo na poesia:

Deve-se ter em mente que os paralelismos devem ser lidos tanto na condição
de reiteração (atentando para o que se repete e, portanto, criando uma relação
de sentido), quanto na condição de diferença entre o que aparece inicialmente
e o que se modifica ou foge à repetição.
6

a) Paralelismo na construção das estrofes.

Veja-se o pequeno poema “Andorinha”, de Manuel Bandeira:

Andorinha lá fora está dizendo:


– “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!


Passei a vida à toa, à toa...

b) Paralelismo na construção dos versos.

Tomem-se os dois versos da canção “A banda”, de Chico Buarque:

A moça triste que vivia calada sorriu


A rosa triste que vivia fechada se abriu

c) Paralelismo na construção da anáfora.

As figuras de construção (sintática) criam paralelismo bastante acentuado.

Tome-se o pequeno poema “Vício na fala”, de Oswald de Andrade:

Para dizerem milho dizem mio


Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados

Os paralelismos – especialmente os mais acentuados, como a anáfora – criam


uma dupla reação no leitor: primeiro, a expectativa da repetição; depois, a
sensação prazerosa de perceber o que rompeu a simetria do paralelismo:
7

Muito naturalmente, foi Edgar Allan Poe, o poeta e teórico da


antecipação malograda, quem, do ponto de vista métrico e psicológico,
avaliou o sentimento humano de satisfação suscitado pelo aparecimento
do inesperado no seio do esperado; não se pode pensar em um sem
pensar no outro, “assim como o mal não pode existir sem o bem”. (p.
138)

d) Paralelismos sintáticos.

Vejam-se os versos de Cecília Meireles:

A roda anda e desanda,


e não pode parar.
Jazem no fundo, as culpas:
morrem os justos, no ar.

e) Paralelismos no plano sonoro.

Entram aqui todas as formas de equivalência sonora (aliterações, assonâncias,


rimas, paronomásias etc.).

Vejam-se os versos de Manuel Bandeira, em “Peregrinação”:

O córrego é o mesmo.
[...]
Meus passos a esmo

f) Paralelismos do ritmo.

Entram aqui todas as recorrências de ritmo, atentando para o fato de que é


sempre mais produtivo ler as diferenças e discrepâncias de ritmo.

Recordemos um caso de João Cabral:


8

Fazer com que a palavra leve


pese como a coisa que diga,

Nesse caso, vale observar o deslocamento do acento tônico da segunda sílaba


(no início do primeiro) para a primeira sílaba (no início do segundo).

g) Paralelismos nas figuras de sentido.

Entram aqui todos os paralelismos (equivalências) semânticos, seja pelas


metáforas, seja pelas metonímias.

Vejam-se os versos de João Cabral:

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo

Finalmente, vale a última citação do ensaio de Jakobson, em que o estudioso


fala da permanência da poesia:

A capacidade de reiteração, imediata ou retardada, a reificação de uma


mensagem poética e de seus constituintes, a conversão de uma
mensagem em algo duradouro – tudo isto representa, de fato, uma
propriedade inerente e efetiva da poesia. (p. 150)

Referências

BOSI, Alfredo. “Imagem, discurso”. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.

JAKOBSON, Roman. “Linguística e poética”. Linguística e comunicação. Trad. de Isidoro Blikstein


e José Paulo Paes. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1969.

VIDAL, Ariovaldo. “A função poética da linguagem”. São Paulo: e-Disciplinas USP, 2022.

Você também pode gostar