Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Wilton Cardoso
Goiandira,
(péssima carcereira) cuja cumplicidade pode render-lhe a
acusação de facilitação de fuga.
2
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 5
UM TEXTO-MOR CEGO .................................................................................... 7
O PAR QUE ME PARECE ................................................................................. 16
FRAGMENTO 1 .......................................................................................................... 31
3
já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo
4
APRESENTAÇÃO
5
recorro) pode ser lido como literatura, enquanto que a poesia de Leminski, em
contrapartida, tem muito de pensamento. Em segundo lugar, porque as duas obras
confluem em seu espírito contracultural e antiestruturalista. Portanto, nada mais
‘natural’ que colocá-los lado a lado.
6
UM TEXTO-MOR CEGO
DISTÂNCIAS MÍNIMAS
um texto morcego
se guia por ecos
um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?
(Leminski, 1987a, p. 20).
O poema acima começa com uma afirmação que é também uma explicação:
um texto morcego se guia por ecos. A palavra morcego é, ao mesmo tempo um
substantivo e um adjetivo (tal como o homem-morcego), designando uma qualidade do
texto, mas também, como substantivo, substituindo-o, estabelecendo aí uma relação
metafórica mais direta, de identidade: o texto é o morcego: identidade reforçada no
plano sonoro pela rima entre “texto” e “morcego”. A partir desta analogia vai-se
estabelecendo uma sucessão de permutas entre as qualidades do texto e as do morcego:
a cegueira do último é atribuída ao primeiro que, tal como o mamífero voador, se
orienta agora pelo som de seu próprio grito refletido nas paredes: o eco.
7
menos localizado e mais amplo: o horizonte está aberto ao olhar, mas não aos ouvidos.
Além do mais, o olhar no espelho permite um ‘ver-se’ com exatidão (imagem),
possibilitando que o sujeito se torne uma ponte para a transcendência ou a própria
transcendência (caso do romantismo). O texto de que se fala está, portanto, sempre
dependente de seu tempo e de seu espaço para se orientar, fechando a possibilidade de
uma visão transcendente, já que opera por ‘distâncias mínimas’ e delas depende para
sobreviver.
O terceiro verso reforça (ou explicita) este dado: “um texto texto cego”. A
repetição das palavras remete ao tatear de um cego, mais especificamente ao tateio de
um radar, portanto auditivo, mas que, em todo caso precisa de objetos próximos para se
orientar. A palavra ‘cego’, rimando com ‘ecos’ e ‘morcego’, trata de reafirmar ainda
mais as limitações do texto, além de explicitar um recurso muito utilizado por Leminski
em seus poemas (e neste em particular), que é a ocultação de palavras dentro de outras,
multiplicando o sentido do texto: assim, ‘morcego’ já contém ‘cego’ e ambos os semas
contêm ‘ego’. A partir daí se estabelece uma analogia (talvez seja melhor dizer
superposição) entre o texto e o ego, a palavra e a consciência, a linguagem e o sujeito,
todos já portadores da qualidade da cegueira. Qualidade que lhes é inata, pois inscrita no
próprio corpo (da palavra) pelo recurso do anagrama — tomando esta figura num
sentido bem amplo de ocultação de palavras dentro de outras ou numa frase.
O quarto verso (“um eco anti anti anti antigo”) expõe um paradoxo, pois num
sentido, o tateio do eco/ego (outra superposição), de reverberação em reverberação leva
ao antigo, que remete à cultura ou à tradição que só pode ser transmitida de modo
indireto e deformado pela última geração, contemporânea ao texto/sujeito, isto é, só
pode ser absorvida num espaço-tempo circunstancial. Outro sentido, decorrente do
procedimento anagramático, é a leitura como um eco anti-antigo, isto é, novo,
contemporâneo. Pior (ou melhor): se considerarmos cada ‘anti’ como uma negação,
forma-se uma cadeia que se diz e desdiz continuamente: novo-antigo-novo-antigo...
Este paradoxo é o da própria cultura que é ao mesmo tempo um estoque e um fluxo; um
passado que sempre se presentifica e se projeta adiante, continuamente. Estávamos
falando de indivíduo, sujeito, mas aqui já falamos de uma outra coisa, a saber, de uma
coletividade ou pluralidade encerrada sob os nomes de tradição e cultura. O eco, o grito
que retorna não o faz do mesmo modo que saiu: ele volta prenhe de cultura, o que era de
se esperar já que salão em que se move o texto-morcego é o seu contexto: chamemos-
lhe provisoriamente de cultura.
Mas há mais confusões para nos enredarmos, pois todo o poema não tem
pontuação e um dos sentidos possíveis é a identidade entre o texto-morcego (que é
também o sujeito, o ego) e o eco: o período poderia ser reescrito assim: Um texto texto
cego, um eco anti anti antigo, um grito na parede rede rede, volta verde verde verde.
Aqui se instaura uma confusão entre o sujeito, o verbo e o predicado. Eis as frases
pacificadoras que a lógica discursiva procuraria no poema: O texto/ego (sujeito) grita
8
(verbo) para a cultura (predicado); A cultura (sujeito) ecoa/grita de volta (verbo) para o
texto/ego(predicado). O procedimento de embutir a cultura no eco, chamando-o de
antigo seria uma elipse aceitável, pois saberíamos que o denotativo de “eco antigo” é
“cultura antiga”. Mas, com a ausência de pontuação, o poema possibilita a identificação
do texto com o eco, do sujeito com a ação. Esta ação não é o grito do texto-morcego,
mas o eco da cultura, portanto uma ação de outro sujeito, estabelecendo-se uma
confusão entre texto-ego e caverna-cultura, por um lado e, por outro, entre estes dois
sujeitos e suas respectivas ações: gritos e ecos. O texto é então o eco da cultura? Sim,
mas ao mesmo tempo é ele quem emite o grito e é ele que tem o radar (o ego, a
consciência, o mecanismo de auto-localização) para se situar na rede textual da cultura.
Há duas confusões então: a de dois sujeitos, indivíduo e cultura; e a de duas classes
gramaticais, o substantivo e o verbo. Esta última se desdobra numa confusão sintática,
pois não se distingue no poema a ação de seus agentes ativo (sujeito) e passivo
(predicado). Esta última confusão talvez seja mais grave, pois indica que o sujeito é a
ação, que o texto é o eco (que é, por sua vez, seu próprio grito), o que mina a
estabilidade frasal sujeito-verbo-objeto e também a estabilidade, digamos, ontológica do
par sujeito-objeto. Isto acarreta, obviamente, problemas para um exercício crítico que se
apóia neste par, como veremos adiante.
Poderíamos dizer que o poema refere-se a processos que ocorrem num sistema.
Os processos seriam os gritos dos textos/morcegos, portanto as ações destes: suas
mensagens. O sistema seria uma totalidade que chamamos de cultura que, por sua vez, é
composta de entidades menores: sejam elas textos, indivíduos ou regras (códigos). Um
ponto de vista metafísico nos diria que no poema se descrevem os movimentos do
sistema, ou seja, as variações do Ser. Mas a aludida confusão entre substantivo e verbo
(sistema e processo) pode suscitar um outro ponto de vista, que dá primazia à ação e não
ao sujeito ou ao objeto. Em outras palavras, as mensagens (processos) é que precedem e
formam os códigos e as entidades, e não o contrário; e a instabilidade inerente aos
processos é também intrínseca aos entes por eles constituídos. Daí podermos refazer
nossa afirmação inicial e dizer que o poema refere-se a sistemas (ou a um sistema
aberto) que ocorrem nos processos. Ora, isto está de acordo com o título, pois o
processo é o aqui agora do sistema, lidando apenas com a circunstancialidade espaço-
temporal. O inquietante é que a identificação da cultura com o processo (a cultura é o
eco que é o texto/ego) também a transforma em processo, não restando nenhum sistema
fechado (essencialmente estável) aí: o salão onde o morcego se move é móvel também,
circunstancial. Pode-se objetar que estamos exagerando e que a identificação do eco
(processo) com a cultura (sistema) é somente um recurso retórico, uma elipse. Pode ser,
mas o quinto verso parece ir em outra direção: um grito na parede rede rede.
Novamente, no mínimo, duas direções: na repetição de ‘rede’ é o grito (rito?) que galga
os nós da rede que é o sistema da cultura ou esta rede se constitui por ecos, quer dizer,
por processos? Parece que a cultura é uma rede, mas não é fixa e um grito dispara todo
9
um processo, na verdade, dispara a condição de processo que constitui a tradição. Outro
poema nos remete a este problema:
vento
que é vento
fica
parede
parede
passa
meu ritmo
bate no vento
e se
des
pe
da
ça
(Leminski, 1983, p. 80)
O sexto verso (“volta verde verde verde”) nos conduz a novo, renovado, verde.
A volta do grito é uma questão de vida ou morte para o morcego, o feed-back que lhe
dá a condição da vida. A cor verde, além de reforçar este aspecto vital (cor da natureza
vegetal, “verde é vida” é um lugar comum) evoca a visão: ver por ecos é uma maneira
específica de ver o mundo. Novamente temos aqui o procedimento anagramático:
‘verde’ contém ‘ver’ e “rede”. ‘Verde’ realiza anagramaticamente a volta revitalizada da
rede textual, da cultura: uma nova maneira, vital, de ver a tradição. Mas o que volta
renovado não é só o grito/eco, mas também as redes da cultura. Esta parece ser um salão
em que é vital que haja morcegos. Então não estamos falando de um salão comum, um
recipiente de morcegos que é e existe indiferentemente da existência deles, mas sim de
um ambiente que parece depender de seus habitantes para se manter vivo: sim, estamos
falando de uma força vital constituída por gritos-mensagens de morcegos-textos, quer
dizer, de uma multiplicidade textual ou simplesmente multiplicidade.
10
melhor que identidade) entre texto (sujeito) e mensagem/grito (verbo): o ego é apenas
um eco, o sujeito é a ação ou, para ser mais preciso, as ações/gritos; tal como a cultura é
uma multiplicidade feita da mesma matéria: g(ritos), ecos, mensagens, textos,
processos, variações. A posição do morcego é sempre relativa e a este conceito espacial
podemos relacionar vários outros: identidade; unidade; perenidade. A posição relativa, a
condição de processo, a variação contínua tornam estes conceitos também relativos:
qualquer ser identificado nas redes, nos tecidos (textura), na multiplicidade textual tem
um caráter de indefinição, fragmentação e provisoriedade, já que os processos são uma
contínua variação e qualquer idéia de transcendência, centro e universalidade fica
inviabilizada: não devemos esquecer que não só o ego/sujeito/texto é um processo, mas
também a própria cultura: mais que um tecido e uma rede, esta lembra mais um tecer-se
e um enredar-se (“um texto texto cego” e “um grito na parede rede rede” remetem
também à textura se tecendo, à rede textual se enredando).
11
do sujeito. Cada eco corresponde a uma posição diferente, a um ego diferente, a um
reflexo particular, a um ‘se’ (pronome reflexivo) outro. Ainda neste verso, ‘ouvir’ pode
ser escutado como ‘ou vir’, relativo à volta e também à reflexibilidade, dialogando com
o verso anterior, apresentando a alternativa do fracasso da tentativa de construção de
uma subjetividade: “com mim com com consigo ou vir [eco] é ver se se se se se
[multiplicidades]”. Tudo isso leva à consciência que parece perdida em meio à
variabilidade incontrolada. Nunca é demais notar que o poema realiza, formalmente,
esta variabilidade, seja com a metaforização, seja com o recurso ao anagrama, ou com a
ausência de pontuação.
1
Um rizoma, segundo Deuleuze e Guattari, se opõe às raízes e árvores pela sua ausência de pivô central
ou de subdivisões binárias: ele se constitui de linhas que se cruzam e se entrelaçam em qualquer ponto,
sem hierarquias pré-determinadas. Isto implica que, “contra os sistemas centrados (e mesmo
policentrados), de comunicação hierárquica e ligações pré-estabelecidads, o rizoma é um sistema a-
centrado, não hierárquico e não significante, sem General, nem memória organizadora ou autômato
central, unicamente definido por uma circulação de estados.” (Deleuze e Guattari, 1995b, p. 33).
12
de máscara em máscara, seu (a)fundamento na coletividade, o poema parece proceder
na superfície: do texto, do ego, da cultura, dos sistemas. A palavra “texto” é o signo do
qual se parte para outros nomes (ego, grito, eco, rede, antigo, tradição etc.), mas sem
hierarquizá-los num sistema, como, por exemplo, supondo que a origem última do
inconsciente e da cultura seriam os textos. É claro que podemos fazer isto através do
poema, mas também podemos optar por outros caminhos. A metáfora, em sentido
amplo, seria uma boa figura para unir estes signos que se ligam a ‘texto’, mas ela não
precisa ter, necessariamente, os signos de conotação e denotação. Assim, a
subjetividade, que é o último ‘tema’ do poema, não necessita ser o desaguadouro de
todas as outras imagens, como tampouco a metalinguagem.
(...) assim como uma metáfora bem construída não revela, entre seus termos, nenhuma
ordem e suprime todo obstáculo da cadeia polissêmica (ao contrário da comparação,
figura originada), assim uma boa narrativa respeita a pluralidade e a circularidade dos
códigos. (Barthes, 1992, pp. 106-107).
Desse modo, surge uma subjetividade não essencial em si mesma, pois ela não é a
realidade última do ser, dos quais os outros signos seriam apenas derivações. Tampouco
ela é um adiamento do ser que se confundiria com a Cultura, da qual o sujeito seria uma
derivação. O quadro que o poema pinta não é renascentista, pois não há linhas, nem
estática, nem perspectiva; e o ser se perde nas confusões entre os substantivos e entre
estes e os verbos que proporcionam a fuga dos sistemas fechados e da estabilidade. As
redes da cultura são suplementos ao infinito uma das outras e cada nó desta textura não
passa de um grito, um agir, um rito. Este último se sobrepõe tacitamente, no poema, ao
mito, sinal da permanência sobre a qual se assentariam as variações, mas o mito do Ser
é apenas uma soma de ritos repetidos. Desta repetição é que se constroem semelhanças,
pares e hierarquias, “se se me lhe te sigo”, por onde a multiplicidade textual vai
(per)fazer o caminho do organismo, da individuação subjetiva. A pergunta é: o que
aconteceu ao par expressão da subjetividade/construção do objeto estético nesta leitura?
Não diríamos que o perdemos, ou mesmo que rompemos com ele, mas parece que
encontramos o que poderíamos chamar de sua entropia: chegamos ao ponto em que a
oposição sujeito/objeto parece não mais ser confiável como operador dentro de um
sistema. Não significa uma síntese ou superação desta oposição, pois o poema parece
13
flagrar os elementos desses pares exatamente no momento de sua forja, quer dizer,
quando são ainda atos, gritos ou ecos. Leminski trabalha, neste poema, como uma
espécie de arqueólogo dos signos/conceitos, tentando refazer o caminho de seu
surgimento a partir de algo. Este algo parece se identificar com ações sem sujeitos
definidos, portanto não derivadas de nenhuma ordem pré-constituída: no fundo dos
ecos, ecos, somente ecos. Daí o seu trabalho de superfície, sem a perspectiva da
profundidade que implicaria num ponto de fuga, um hierarquizador ou centro.
Mas se nossa obsessão pelas hierarquias não nos deixar em paz, poderíamos
satisfazê-la dizendo que o elemento central deste poema (ou da leitura que dele
fizemos?) é o grito, rito, eco, em suma, a ação. Mas seria um engodo, pois a ação, se
pode e é repetida (e a redundância é uma condição da ordem: cultural, individual,
lingüística...), também é a potência da variação contínua, portanto da instabilidade que
pode levar à entropia ou à individuação (se semelhe te sigo) se for bem manejada.
Portanto, antes de ser um universal, uma origem ou um fim, o grito/eco é um
diferencial, um sempre em meio se tecendo e retecendo na multiplicidade textual.
14
Como podemos, a partir deste poema, estabelecer a noção de dentro e fora e
conteúdo e continente que parece remeter-nos à metáfora do morcego dentro de um
salão ou caverna, se ambos são texturas móveis de gritos/ecos? O sujeito se estabiliza
num dentro que se contrapõe ao fora (que lhe é também anterior) que é a cultura ou
sociedade, mas dentro do sujeito e da cultura e ao mesmo tempo agem os gritos, uma
espécie de fora absoluto que mina a identidade das duas subjetivações, coletiva e
individual. Assim também a linguagem (texto) se compõe de gritos que constantemente
negociam sua posição com o circundante (circunstancial). O poema não nega o sujeito,
a cultura e a linguagem, mas muda o ponto de vista sobre eles, que se torna pragmático-
funcional e não essencial-estrutural. São vistos como sistemas abertos, que se
constituem fundamentalmente a partir de variações, negociações políticas: a posição do
morcego é sempre um negócio entre ele e as paredes.
15
O PAR QUE ME PARECE
O poema acima começa com a indicação de uma falta, uma ausência que
pesaria ao eu lírico: “Pesa dentro de mim / o idioma que não fiz”. Este idioma, mais à
frente, será qualificado de sem fim2, bonito e perfeito, características que o avizinham
do sobre-humano e do sagrado. A ausência desta língua perfeita tem paralelo no
desconcerto do mundo e na queda do homem, que segundo a crença cristã decorre do
pecado original que nos expulsou do Paraíso e do qual somos cúmplices. Este pecado é
o peso que carregaríamos durante a vida. Portanto, a ausência que pesa, no caso cristão,
decorre de uma presença do pecado, de uma má ação inicial e nossa imperfeição (uma
ausência) é o preço/peso que pagamos pelo erro, nossa punição. Seria também este o
caso do poema?
2
Lemos a expressão ‘sem fim’ como índice da infinitude, aproximando-a do sagrado. Mas outro sentido,
o da ausência de finalidade, também aparece e não contradiz o primeiro, pois pode implicar em não
utilitarismo, quer dizer, em ausência de finalidades terrenas. No entanto, outra possibilidade
interpretativa, que vai levar o poema para longe das unidades do sagrado e do ser, pode se conectar a esta
‘ausência de finalidade’ que passaria a remeter, então, à ausência de teleologia ou à impossibilidade da
transcendência.
16
Um dos constituintes desta língua sem fim são os “ais”, as interjeições, o que
há de mais espontâneo na fala humana:
A interjeição é um signo sem significado, sem conceito, mais próximo do ícone que do
símbolo, mais onomatopéico que convencional, o que daria a esta língua sua condição
de universalidade. Mas uma universalidade decorrente da simplicidade e rusticidade,
pois a interjeição nos aproxima mais dos animais, aquém da linguagem, do que dos
deuses, além dela. Outro dos constituintes desta língua são os “aquis”, termo que indica
a circunstancialidade espacial e, por elipse, temporal. Este particularismo de uma
língua, em todos os sentidos imediatista, parece contradizer a universalidade à qual
aludimos: as interjeições e o aqui-agora remetem à vivência imediata e espontânea,
portanto localizada e não universal. Deveríamos abrir mão da universalidade como
característica?
Mas os próximos versos (“Era uma língua bonita, / música, mais que palavra”)
parecem confirmar esta universalidade, se aceitarmos a opinião geral que a música é
universal. Mas aqui se desenha outra oposição, entre música e palavra, intuição e razão,
significante e significado. A música, como as interjeições, é somente uma cadeia de
sons e silêncios que prescindem do conceito e da racionalidade. Há, aqui, a ambição de
uma língua puramente poética, se entendermos que a poesia é uma arte que se avizinha
mais da música e das artes plásticas que da retórica, da linguagem conceitual e
discursiva — mera portadora de mensagens. Esta maneira de ver a poesia é uma
convergência que vai de Sartre, passando por Pound e Jakobson, aos concretistas, dos
quais Leminski é “filho” declarado3. Esta ambição da pureza poética reforça a nossa
hipótese da vizinhança desta língua que falta com o sagrado, também inatingível.
Proximidade confirmada nos próximos versos (“alguma coisa de hitita, / praia do mar
de Java”) que remetem inicialmente a duas distâncias: uma temporal e outra espacial. O
hitita é a mais antiga língua indo-européia, da qual, supostamente, derivaram os idiomas
do Ocidente. Há, então, uma terceira distância, a da origem, afirmada pelos dois versos,
pois o afastamento temporal do hitita remete à origem de nossa linguagem, àquele
estado indefinido entre natureza e cultura. O que é reforçado pelo exotismo da paisagem
natural da “praia do mar de Java” (distância espacial) que tem um quê de Éden, de
Paraíso Perdido. Tudo isso no conduz à origem da linguagem, dádiva divina que nos
diferencia dos animais: o poema remete, então, ao instante pós-animalesco e anterior ao
pecado original ou à torre de Babel que é uma outra maneira de contar nossa queda. A
3
Como se pode confirmar numa entrevista dada a Regis Bonvicino: “A coisa concreta está de tal forma
incorporada em minha sensibilidade que costumo dizer que sou mais concreto que eles [os concretistas]:
eles não começaram concretos, eu comecei.” (Leminki e Bonvicino, 1999, p. 208-209).
17
Língua inaugural, primordial, se confunde com a divindade que nos constitui, mas as
diferenças lingüísticas (a variedade de línguas) são um sinal da imperfeição e da
discórdia dos homens, alijando-os da perfeição universal, homogênea e concordante.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Notamos que suas rimas são estruturadas de maneira diferente dos anteriores: são
opostas (ABBA) enquanto que os dois primeiros quartetos se constroem por rimas
alternadas (ABAB). Em primeiro lugar, isto marca uma diferença formal a partir deste
ponto do poema e que corresponderá a uma diferença de sentido: a alternância rímica
corresponde àquela língua original e perfeita, da qual a simetria certamente seria uma
característica. As rimas opostas, embora simétricas, representam uma dissonância no
andamento contínuo dos versos anteriores: insere-se uma simetria de outra ordem, que
tem o sabor de uma assimetria. Esta é reforçada pelo tamanho dos períodos que, nos
versos anteriores, coincidiam com os quartetos. Neste quarteto há dois períodos, cada
um correspondendo a um dístico: novamente uma simetria de outra ordem, que perturba
o andamento inicial e constante do poema. Se atentarmos ainda mais, vemos (ouvimos)
que todos os versos deste quarteto, na verdade, rimam entre si: ‘perfeito/objeto’ e
‘reto/sujeito’ são rimas imperfeitas: outra simetria local que leva a uma assimetria em
relação ao resto do poema. Mas esta rima continuada também ocorre no primeiro
quarteto (mim/fiz/fim/aquis), o que parece ser um indício de que o poema já nasceu
prenhe de uma certa assimetria geral, pois a rima continuada (toante) mina a simetria da
alternância desde o início. Somente o segundo quarteto tem uma alternância rímica bem
18
marcada (uma rima perfeita e outra toante: bonita/palavra/hitita/Java), justamente o que
remete à busca da origem.
Temos então uma ruptura formal, mas que não é total, pois a simetria continua
de uma outra forma. Além do mais há constantes que perpassam todo o poema, como o
trabalho extremamente preciso e cerrado no plano fonético (aliterações, ecos,
assonâncias, anagramas), característica, aliás, que perpassa todo o livro Distraídos
venceremos, do qual este poema é parte. Outra constante de “O par que me parece” é a
organização espacial dos versos, sempre alternada, que dão a impressão de um vai-vem
monótono e contínuo à primeira vista (literalmente), mas que os outros recursos formais
(como, por exemplo, esta ruptura formal de que estamos falando) podem dar um aspecto
de movimento mais variado e vivo.
Verificamos que este “idioma perfeito / quase não tinha objeto”, não se trata de
uma língua da objetividade, substantiva, como a poesia desejada pelos concretistas. Por
outro lado os “pronomes do caso reto / nunca acabavam sujeitos” também não implicam
numa linguagem de expressão subjetiva, antítese da proposta construtivista da poesia.
Deste jogo com a sintaxe, morfologia e regras da linguagem surge uma dupla negação,
do sujeito e do objeto, a qual é gramatical, mas também, em certo sentido, ontológica, já
que nesta língua utópica não parecem caber perenidades imóveis, seres. Daí podermos
responder que, se há uma busca de um Paraíso original, este está mais para o caos do
que para uma ordem plena. A sombra da presença de um Ser, que pairava sobre a leitura
até a chegada deste quarteto começa a se dissipar: à assimetria formal que estes versos
instauram no poema, corresponde uma assimetria semântica que torna problemática sua
leitura como uma metalingüística transcendental, direção que parecia caber muito bem
até o segundo quarteto. A transcendência, típica de sistemas metafísicos, implica na
passagem de um plano a outro, na ascese que supõe uma aproximação com alguma
espécie de unidade ou centro. A impossibilidade ontológica de sujeitos e objetos, de
entidades fixas enfim, nos faz questionar a possibilidade da existência de alguma
unidade que tenha o estatuto da permanência. Mas há uma outra direção semântica nos
versos “Pronomes do caso reto / nunca acabavam sujeitos” que é exatamente a negação
da sujeição (no sentido de subordinação) e, já que estamos falando de sistemas e regras,
esta não sujeição parece indicar a fuga de qualquer ordem cristalizada que se quer
permanente, una e impositiva. Os versos seguintes vão nesta direção:
19
poesia que está mais para a pragmática do que para as gramáticas dos planos pilotos ou
da expressão subjetiva. A negação de sujeição pode ser lida como uma libertação das
poéticas convencionais que cerceiam os poetas e (extrapolando o literário) impõem um
determinado modo de perceber e sentir o mundo. Mais que metalingüístico este poema é
o que se poderia chamar, com o devido cuidado, de filosófico, algo como uma poesia
pensante (mesmo que o pensamento tenha enlouquecido), pois remete a discussões
sobre conceitos como Ser, sujeito e objeto.
Há neste período (“Tudo era seu múltiplo, verbo, triplo, prolixo”) com sua
profusão de laterais (l) e flepes (o “r” de “triplo” e “prolixo”), com suas aliterações de
bilabiais e sua paronomásia (múltiplo, triplo, prolixo), a afirmação da multiplicidade
que descamba para o descontrole de “prolixo” — que também é, anagramaticamente,
“pro lixo”, como o próprio poema irá explorar mais à frente. A diferença, o erro da
prolixidade, o ímpar implícito em triplo, tudo isso leva justamente à imperfeição, à
impossibilidade da unidade que, antes de se desdobrar no múltiplo, parece ser uma
ilusão construída na multiplicidade — ilusão expressa no título, “o par que me parece”.
O parecer aqui pode indicar uma semelhança de fato, o encontro da metade que faltava
para se consumar o uno perfeito, a língua perfeita. Mas o verbo parecer significa
também ilusão, engodo, a falsidade da semelhança. Esbarramos aqui no problema do
duplo, tal como Roland Barthes coloca em S/Z:
Em “O par que me parece” há o desejo de uma língua perfeita, mas esta língua
trabalharia somente no “campo das réplicas”, das falsas identidades, geradas de forma
quase descontrolada, prolixa, pro lixo. O próprio poema parece um engodo, com todas
as suas reminiscências bíblicas, tacitamente distribuídas pelos versos como armadilhas
para os decifradores encantados. A temática, que pareceria ser a de uma poética de
20
ascese mística, se dissolve em multiplicidades: a língua perfeita é a multiplicidade, a
imperfeição em escala máxima, a fuga para todos os lados, escapando de toda unidade.
Se a variedade é um erro, um desvio, o que se deseja no poema é o erro ao infinito: a
variação contínua.
A unidade, ainda não nomeada, mas sempre à espreita no poema, revela-se na palavra
“únicos”. Mas é uma revelação no mínimo paradoxal e mais obscurece que clarifica,
pois o que é uno e tem primazia é justamente a potência da variação dos sentidos: o
grito, como a música, é um signo constituído apenas do significante, sobre os quais
variam os significados (sentidos), se é que possa ser-lhe atribuído algum. Mas o grito
não é também o Significante primordial (o que implicaria somente num deslocamento
da unidade do significado para o significante), mas uma variação significante: outra
remissão do grito é a ação, no mesmo sentido que nos referimos a ela em Distâncias
mínimas, ou seja, como elemento estranho à fixidez, seja a da língua, a do sujeito ou a
da cultura. A ação implica em mobilidade e provisoriedade, em processos que se criam
e se dissolvem: processos continuados que dão a ilusão de unidade: ritos. Aqui também
é lícito lermos “ritos” (no plural) por dentro de “gritos”: a repetição dos ritos é o
prenúncio da fixidez do mito4, mas este, enquanto rito (ação) se encontra sempre a
mercê das variações, enxergadas muitas vezes como deturpações: não é à toa que as
religiões erigidas numa sólida tradição (será possível a solidez?) mantêm estrita
vigilância sobre os seus rituais ou os reduzem ao mínimo possível.
4
Quando nos referimos à fixidez do mito, estamos nos referindo à crença de sua fixidez e não a qualquer
conceituação de mito, seja ela das ciências sociais ou da psicologia. De certa forma vamos construir nossa
própria definição neste trabalho, não muito rigorosa, mas, cremos, suficiente para o nosso trabalho. Em
termos muito gerais, esta definição vai delinear o mito como um construto humano que aspira à
permanência e ao sagrado. Assim inverte-se a ordem das construções, pois, de acordo com a crença,
sendo o mito permanente e sobre-humano em oposição à precariedade do humano, implica que dele é que
decorre as coisas terrenas, inclusive o rito. A este último costuma-se atribuir a imutabilidade, devido à sua
relação (de re[a]presentação) direta com o mito, mas se considerarmos o mito como construto humano é
lícito inferirmos que o mito é construído pela repetição de ritos que, reduzidos a ações humanas (não
decorrentes do mito e do sobre-humano, mas seus construtores), passam ao estado de performances,
passíveis de desvios. Ora, o desvio no elemento construtor (rito) implicaria no desvio do construído
(mito). Daí segue-se que a variância é um atributo tanto do mito quanto do rito, mas neste último, (que é
ação humana e é primeiro — “g-ritos eram os únicos”) é que estaria a potência da variabilidade que
minaria a ‘permanência’ crida do mito.
21
quando atingida, o é pela repetição, pela duplicação imperfeita constituída da
multiplicação dos ritos e seu risco, sempre iminente, do desvio. Nestes dois versos o fim
do período coincide com a pausa métrica, marcando o final de uma redução progressiva
que se inicia no terceiro quarteto, no qual o período se limitava a dois versos — e a
quatro nos dois primeiros quartetos. Parece que a unidade entre período e quarteto vai
progressivamente sendo minada e a sintaxe vai se fragmentando até que o período seja
reduzido a um único verso, como a língua perfeita seria reduzida aos gritos. Esta
multiplicação de períodos no quarteto marca uma espécie de anticlímax do poema,
justamente onde as expectativas da ascese e da comunhão com as Origens são
frustradas: o resto ia pro lixo: aqui há uma inversão de valores, pois o que vai para o
lixo é justamente o que obstrui a pluralidade; o que, ao contrário de grito, é linguagem,
conceito, palavra. Como “pro lixo” também é, por irradiação, “prolixo”, o que é
considerado demais e redundante, portanto inútil, é justamente a palavra, reforçando a
inversão, já que o “prolixo” do verso anterior parecia referir-se ao “múltiplo”, à
variação incontrolada, como já dissemos.
Aqui o período volta a coincidir com o quarteto, as rimas alternadas retornam, dando a
impressão de uma simetria mais regular. E o tom é de epifania, identidade, completude,
unidade, revelação. Por esta última perspectiva o movimento geral do poema (sua
estrutura profunda?) é o de uma expectativa calma em relação a uma suposta língua
perfeita que, à medida que vai se desenvolvendo, provoca uma série de abalos, após os
quais vai se restabelecer a ordem num outro patamar, digamos, mais elevado: a vitória
da unidade em sua dialética com a multiplicidade.
Uma das palavras que usamos para afirmar esta unidade é “completude”, a qual
supõe uma falta, justamente a enunciada no início do poema: “Pesa dentro de mim / o
idioma que não fiz”. De fato, os dois últimos versos remetem à Bíblia:
(...) tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba; mas havendo
profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará; porque,
em parte conhecemos, e em parte profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito,
então o que é em parte será aniquilado. (...) Porque agora vemos como em espelho,
obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte, então conhecerei
como também sou conhecido. (Bíblia, NT, 1 Coríntios 13:7-12).
22
O amor (e o Deus cristão é o amor) é a completude da metade que falta. O poema de
Leminski remete ao amor o tempo todo (à completude das partes?). A dúvida é se
podemos lê-lo como uma vitória desta completude divina sobre as crises que vão
permeando esta busca do que falta: a língua do amor. E se podemos recobrir esta
característica de completude com a de unidade e identidade centradas. Cremos que esta
leitura é plausível e que não há como excluí-la como incoerente ou algo assim. É uma
leitura orgânica, das grandes estruturas do sentido e que fecha círculos (o último
quarteto é uma retomada do primeiro), mas que pode conviver, no mesmo poema, com
outra, que brota nas frinchas da estrutura. Esta outra leitura não é uma via contrária,
embora seu efeito possa sê-lo, mas uma espécie de corrosão que convive com o sentido
pacificador. Portanto, não é o caso de nos decidirmos por um ou outro caminho, mas
apenas indicar os percalços e desvios que sofre o suposto caminho principal da
interpretação, mostrando que este, na verdade, só parece ser principal porque constrói
uma legibilidade mais pacificadora: o poema como um universo que se curva, fechando-
se em si, correlato de um mundo também Uno (uniforme), a ser atingido pelo homem.
A primeira pergunta a se fazer é: o que será que falta, quando nosso ponto de
vista é a multiplicidade e a unidade (ou identidade, ou Ser, ou perfeição, ou essência) é
uma construção? O Uno, atingido quando acharmos nossa outra metade (está tudo
duplo) na verdade não falta, justamente porque não cabe como Ser numa perspectiva
que enxerga o mundo como multiplicidade: não há, deste ponto de vista, nenhuma falta.
Os pares são pareceres, aparências, duplos construídos, ritos repetidos. O encontro de
uma língua que falta pode ser então a revelação, não do Ser que faltava, mas de uma
perspectiva em que não há falta, apenas expansão do desejo (amor): “tudo era seu
múltiplo, / verbo, triplo, prolixo”. O quarto quarteto, ao invés de um momento de crise e
provação pelo qual passaria aquele que busca o sentido, pode ser lido como o auge da
libertação de qualquer sentido, de qualquer sujeição à lei, ao código: gritos (ritos,
processos) eram os únicos. A falta implica, como seu contrário complementar, uma
presença, plena de si, a ser encontrada. Este poema bem que poderia ser, até o quarto
quarteto, a frustração desta busca, que significa a descrença na presença. Mas se esta
não existe, também não há falta, e esta falta da falta (desculpem o trocadilho) pode
muito bem ser tomada como uma liberdade, como suficiente para a vida: mais que
suficiente, necessária. Esta liberdade que se deve à primazia do processual, da variância
e da multiplicidade, sobre a fixidez estrutural (presença) se aproxima da atitude que
Derrida propõe de “pensar radicalmente” o jogo (ação, processo) da estrutura que
condiciona — e portanto deve prevalecer sobre — o par presença-ausência num
sistema:
23
uma presença ou ausência a partir da possibilidade do jogo e não inversamente.
(Derrida, 1995, p. 248)
A partir desta (anti)revelação da falta da falta, o último quarteto não precisa mais ser
lido como uma vitória da unidade e do sentido (Bem) que falta contra a multiplicidade
(Mal) que frustra o encontro e que deve ser vencido.
24
“aquela língua sem fim” que se aproximaria da almejada descodificação quase absoluta:
lugar onde não há mais falta nem unidades, apenas ordens mínimas, prontas a se
metamorfosear, como no poema a seguir:
Mínimo templo
para um deus pequeno
aqui vos guarda
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de vanguarda.
De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.
A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.
(Leminski, 1987a, p. 104).
Este poema5, que tem como “tema explícito” o hai cai, mas que se aplica a toda
prática poética de Leminski, é uma espécie de afirmação da fuga. Não se quer exprimir
“a dor que peno” e nem saber das máscaras, das profundidades do sujeito. Foge-se
inclusive das vagas da história — da progressividade causalista e explicadora da
história? História do indivíduo ou da sociedade? Foge-se do saber (saiba quem saiba),
das explicações, restando ao poema/poeta (“a mim me basta”) ‘apenas’ a exploração dos
efeitos indiferenciados sem causa definida (“a sombra que se deixa”), a precipitação em
velocidades de distanciamento: “o corpo que se afasta”. Exaltação do hai-kai, mas
também afirmação da opção poética de Leminski: linha de fuga rumo a descodificação,
ao a-significante, ao a-subjetivo, preservando, no entanto, um pouco de significância e
subjetivação, um “mínimo templo para um deus pequeno”. Templo que não guardaria
grandes estruturas cristalizadas (Ser), nem profundezas, mas pequenos pedaços de
organismo, perto de seu limite de precipitação em desordem: “meu extremo anjo de
vanguarda”.
5
Que se intitula “KAI”, formando um duplo com outro chamado HAI, numa espécie de elogio/reflexão
ao hai kai, gênero admirado e praticado por Leminski.
25
assim voltamos à leitura pacificadora que deságua na unidade — como dissemos, não
descartamos esta leitura. Mas o paradoxo pode ser lido também como uma duplicidade
construída que ignora, por um momento, as diferenças para se assemelhar, para parecer.
No entanto o duplo também contém e pode precisar da diferença, que pode ser benéfica
para que os pares (o amor) não se cristalizem em poder ou em morte. Pode-se dizer que
há, realmente, uma epifania no último quarteto, mas esta talvez não implique no
encontro com a unidade, mas na revelação da pluralidade na qual não há mais unidade
que procurar, somente pares a construir, como no poema, como na vida, como no amor
— pois todos estes podem ser temas do texto de Leminski. A partir desta constatação de
inexistência do Uno (e não do seu encontro) tudo se parece:
Esta última leitura corrompe a circularidade de uma leitura pacificadora, pois se não há
o encontro que faltava e nem há mais falta, o que existe é a expansão contínua dos
duplos em sua alteridade e identidade simultâneas.
De onde podemos ver que a indefinição semântica é intencional. Mais que intencional,
talvez seja uma necessidade, pois como vimos em “Distâncias mínimas” e “O par que
me parece”, a abolição da referência (entendendo-a como o referido pela convenção, o
normal, ou a norma codificada) é inevitável num trabalho poético que procura
exatamente as frestas no que se crê inconsútil, o momento da construção do que se crê
intemporal, a mobilidade do que se crê assentado em bases sólidas. Neste espaço-tempo
do indefinido e aberto a todas as possibilidades (inclusive a da entropia total, da morte),
como definir claramente entidades, temas, sentidos se estes estão por nascer?
Pelo que dissemos, parece que Leminski procura por um momento original, no
passado, onde as coisas ainda não se definiram. Nada mais enganoso, pois sua obra não
está nem aquém nem além de algum tempo ou lugar. Pelo contrário, encontra-se
26
radicalmente comprometida com o presente: é no agora e para o agora que se procura a
abertura a novas e particulares possibilidades. O ‘antigo’ de “Distâncias mínimas” e o
‘hitita’ de “O par que me parece” remetem a tempos imemoriais, à nossa tradição, mas
nos dois casos há uma afirmação do presente e da circunstância, inerentes à ação, ao
processo que é sempre singular e circunstancial e que é um elemento fundamental,
como vimos, nestes poemas. A tradição (ou a cultura mesma) é um processamento
(enredar) constante do texto-morcego, dos (g)ritos duplicados/multiplicados
infinitamente: ela é antes um uso que uma presença.
***
O lirismo se define então por sua subjetividade, pela expansão dos estados
interiores, subjetivos (não necessariamente do poeta, mas de um eu lírico), que vão
englobar toda a realidade circundante. A lógica analógica da metáfora, os paralelismos
sonoros, as rupturas sintáticas, tudo isto seriam índices da manifestação do sujeito,
essencialmente (e inconscientemente) onírico, simbólico, imagético. O mundo interior
se abre e acolhe o exterior, tornando-o uma extensão de suas leis muito particulares.
27
projeção utópica. Não obstante, parece perpassar as obras dos poetas a desconfiança a
respeito da funcionalidade da leitura que vê em suas obras, ou a expressão da
subjetividade, ou a construção de objetos poéticos: o que designa, para Oswald, Mário,
Drummond, Gullar, a primeira pessoa ou o nome próprio? Mas a crítica sempre pode
contornar estes problemas evocando a subjetividade problemática, esfacelada, múltipla,
mas sempre subjetividade: problemática, esfacelada e múltipla são atributos que a
complicam, mas não retiram sua essência. Do outro lado, na margem objetiva (a anti-
lira ou poesia de estruturação), a crítica pode sempre dizer: a subjetividade falta; e com
razão, pois a poesia se define (não que ela seja realmente) por esta falta que é seu pólo
complementar e, portanto, necessário.
Mas se fizermos uma pequena subversão nas classes gramaticais, usando, não o
adjetivo ‘múltiplo’, mas sua forma substantiva, como Deleuze usa, a ‘multiplicidade’,
como ficaria a subjetividade? Tornar-se-ia, por inversão o adjetivo ‘subjetivo’?
Teríamos então uma multiplicidade subjetiva, mas somente como resultado de um
processo de subjetivação, que pode comportar o seu contrário, de des-subjetivação: a
subjetividade se tornaria uma ação, um verbo (subjetivar) de uma pluralidade.
28
“Distâncias mínimas” realiza, entre tantas coisas, um processo (que é sempre uma
tentativa) de subjetivação. Mas a subjetivação não é somente a construção de um sujeito
individual ou coletivo (isto ainda seria a busca do sujeito perdido): ela pode ser
qualquer delimitação, de um evento, objeto, texto. Mesmo quando se diz ‘eu’, o que nos
garante que este pronome não passa de uma construção textual (ruinosa)? Qualquer um
destes individuados é constituído de multiplicidades, não que eles as contenha (isto
reavivaria o dentro e o fora, o micro e o macrocosmo), mas são atravessados por elas
que, por sua vez, perpassam outros sistemas, sempre mudando os ‘ambientes’
perpassados e também se modificando a cada conexão que faz. É o caso do texto-
morcego e da cultura-caverna: ambos são textos plurais que se interpenetram, ou
melhor, pluralidades que mudam de regime, que se ajeitam, ora como morcego, ora
como caverna: não há, rigorosamente, nem morcego nem caverna, nem texto nem
cultura, apenas gritos e ecos, texturas e aculturação: subjetivações diferenciadas.
Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre
tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais
ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia
gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo;
perdido neste tecido — nesta textura — o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que
se dissolvesse ela mesma nas secreções constitutivas de sua teia. Se gostássemos dos
neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o
tecido e a teia de aranha). (Barthes, 1977, pp. 82-83).
30
FRAGMENTO 1
Estas palavras de Deleuze e Guattari vão ao encontro do que tenho dito neste
texto a respeito de Leminski. Estaria eu interpretando (ou usando, torcendo e
distorcendo?) este último à luz do pensamento daqueles? Creio apenas que as idéias
de ambos confluem com a produção textual do próprio Leminski, de modo que o que
faço aqui é antes aproximá-los do que aplicar o pensamento de uns sobre a arte do
outro. A totalidade originária ou teleológica, o ser essencial e metafísico são
abandonados nos poemas, em favor da multiplicidade. O pensamento de Deleuze e
Guatarri constitui, para mim, uma perspectiva que facilita a abordagem dos poemas
onde outros pontos de vista, mais solidamente instalados no campo literário, apenas
criavam empecilhos constantes. Neste sentido, posso dizer que me proporcionaram
um instrumental mais adequado para a tarefa que me propus: uma abordagem da obra
de Paulo Leminski. Mas um instrumental não implica em método e muito menos em
filiação a uma escola ou corrente, apenas um desbloqueio, algo como uma chave ou,
como diriam Deleuze e Guatarri, uma máquina desejante que se conecta bem à
máquina que é a obra em questão: de modo algum uma fôrma onde a obra (e eu)
seria(mos) aprisionada(os).
31
se instaura no Modernismo Brasileiro que, na sua dominante, como vê bem Antônio
Cândido (1976), se propõe a uma busca das peculiaridades brasileiras, do Brasil,
portanto ainda inserindo-se dentro do projeto de construção de uma identidade
nacional: identidade, unidade, totalidade. Mesmo que o fracasso seja inevitável e a
tentativa resulte no Macunaíma, a unidade é, no mínimo, um porvir utópico.
32
em fechá-la nos códigos de apreensão modernistas, fatalmente o resultado de minha
pesquisa seria o de que Leminski é um poeta falho, cheio de trocadilhos e cacoetes,
incapaz de engendrar poemas longos ou investir em metáforas densas e profundas.
Esta incapacidade, esta recusa das profundezas que ele faz questão de afirmar —
“Detesto a poesia dita profunda. Estou cagando e andando para a psicologia”.
(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 194). — é elemento constituinte de sua poesia de
“ventania”, rajadas de vento que impulsionam seu texto sempre para mais longe de
qualquer porto: engendrar-se perpétuo que não se quer deixar aprisionar em códigos
literários. Assim, o exercício textual, que sob o ponto de vista dos sistemas literários
pré-armados pode parecer superficialidade no sentido pejorativo do termo (o que se
opõe à essência é o excremento), pode ser tomado como a superficialidade mais
intensa e mais revolucionária:
a que nem pergunta mais pela presença, pelas essências ou pela verdade e expande-
se (e torna-se) na superfície do texto-textura que nada encobre: nenhum mito por
baixo, apenas registros de superfície, ritos repetidos e diferidos — em processo.
33
inclusive leis e unidades de medida? Estas questões são freqüentemente abordadas
na obra de Leminski e sua opção, parece-me, é em favor de uma perspectiva que
tende ao movimento e à relatividade própria desses sistemas sem o centro e sem a lei
(ou o código: os dez mandamentos).
Mas que sistemas centrados são estes contra os quais os textos de Leminski
podem ser colocados como uma perspectiva a-centrada? Creio que todos os que se
inscrevem no campo que os antropólogos chamam de cultura, quer dizer,
simplesmente todas as fábulas que se cristalizaram (estruturaram) numa metafísica,
supondo um Ser ou uma Autoridade onipotente e necessária, controlando de fora as
cadeias de eventos do mundo — as fábulas que tomam ou querem tomar o poder. E
(o que me interessa especificamente neste momento) esta perspectiva de fuga da
Autoridade aplica-se à Literatura em geral e à Literatura Brasileira em particular:
Fazer poemas fundindo verbal e visual é sempre uma boa. Como o é fundir verbal e
sonoro-musical, verbal e gestual. O diabo. O que não dá mais para agüentar são
essas argumentações do tipo: ‘No marasmo asmático reinante, é preciso separar o
passo adiante do passo ao lado’. E eu pergunto: Quem vai fazer isso? O general
Newton Cruz? (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 25).
34
AIS. OU MENOS
35
Mas a estruturação, embora se desvincule da expressão, não é indiferente a ela
e a supõe como etapa complementar, necessária à prática poética, embora insuficiente
para determinar sua qualidade. Esta seria determinada pela coisa em si, pela forma
como os significantes são arranjados no objeto poético de modo a subordinar os
conteúdos expressivos que o motivaram (o aquém de sua prática) e a fazer deslizar
sobre a estrutura os conteúdos expressivos que o poema irá estimular (o além da
construção): “O poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente
organizadora, que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o
campo de possibilidades aberto ao leitor.” (Campos, 1975b, p. 100). O rigor seria,
então, fundamental neste processo, pois implica numa (auto)disciplina que controlaria
os fluxos espontâneos, irresistíveis e pouco controláveis da subjetividade. Por que esta
obsessão em fugir do lirismo expressivo, da espontânea expansão subjetiva? Para criar
novidade, mensagens inéditas, rupturas; para evitar as formas gastas, repetitivas e
codificadas. A subjetividade gera e consome formas gastas porque tende à conservação
e a poesia, no entender dos defensores da estruturação, deve ser a revolução das formas
para ser a revolução dos conteúdos, das ideologias, do sujeito e (por que não?) da
política e do regime econômico. A poesia deve multiplicar o sujeito, fazê-lo variar,
romper consigo mesmo: o que é a tradição senão a expressão de um supersujeito
coletivo, seja ele transcendental ou histórico?
1
Deturpar, aqui, não tem um sentido pejorativo (que teria para os opositores do concretismo) nem
positivo (se assumíssemos a posição concretista, identificando a deturpação com o make it new
poundiano), mas simplesmente operacional: implica em reler a tradição de uma perspectiva não usual,
contestatória, não raro provocativa, o que é uma atitude de toda vanguarda.
2
A expressão, crítica e bem humorada, é de Leminski (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 48).
36
subjetividades que o cercam. O poema concreto não é, por esta perspectiva, lido como
uma estrutura móvel, mas sim como uma estrutura fixa que movimenta as
subjetividades contra as quais ele se ergue e que são o seu complemento (opositivo)
necessário.
AIS OU MENOS
Senhor
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.
Quero forças para o salto
do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.
Por dentro de mim, a pedra,
e, aos pés da pedra,
essa sombra, pedra que se esfalfa.
Pedra, letra, estrela à solta,
sim, quero viver sem fé,
levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.
(Leminski, 1987a, p. 67).
Quanto à forma do conteúdo, este poema, como a maior parte dos publicados
nas obras posteriores a Caprichos e Relaxos, tende para a dança louca das idéias, claras
ou obscuras demais para permitirem uma interpretação, se pensarmos esta como o
desvendamento de um segredo que, em Leminski, se torna cada vez mais difuso, seja
pelo excesso de clareza ou de obscuridade: “É porque não temos mais nada a esconder
que não podemos mais ser apreendidos”. (Deleuze e Guattari, 1996, p. 70).
38
O título do poema, “Ais ou menos” (que também é o título de uma parte de
Distraídos Venceremos), diz respeito a uma gradação que vai do confessional à sua
diminuição, do texto como exteriorização das dores do eu lírico a alguma coisa menor,
não se sabe se em importância, em densidade ou tensão. É claro que o título é
perpassado pelo humor (ou pelo menos pela ironia), pois além do elemento sério (as
dores) vir sob a forma banal de uma interjeição, a gradação para baixo tem o efeito de
uma degradação de sua seriedade. Além disso, o título remete à expressão “(m)ais ou
menos”, um duplo sentido que intensifica a aludida degradação da seriedade. Mas o que
era gradação vai se tornar, no subtítulo, uma contradição: oração pela descrença. O texto
tem sua suposta identidade revelada: trata-se de uma oração. Mas a oração não tem o
objetivo de superação das dores pela fé, pois é, paradoxalmente, pela descrença que se
ora. Seriedade e humor, fé e descrença, (de)gradação e contradição: eis os elementos
que percebemos na ante-sala do texto, anunciando-o. Vamos a ele:
Senhor
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.
‘sombra’ pode ser sinônimo, tanto de ‘sono’ como de ‘ais ou menos’. No primeiro caso,
o sono aparece como uma sombra num sonho que remeteria à vida. Todo este aparato
semântico do poema recupera a tradição do símbolo como profundidade da existência.
Como se o eu lírico quisesse dominar este mundo de luzes e sombras onde sua
consciência se põe esfacelada. Dado este passo interpretativo, o sentido está pronto para
caminhar em direção às grandes estruturas: memória, alma, psique, deus. Isso quer dizer
que o sentido está quase pronto para ser desvelado, pois se pede poderes sobre o mundo
oculto para desvelá-lo e cultuá-lo, por meio da fuga, no sonho, na arte ou no símbolo. A
visão da vida como um sonho e do sono como uma sombra em seu interior indicaria a
39
mistificação do mundo e o rompimento da fronteira entre real e simbólico pela expansão
deste último. O real essencial não estaria na vigília, mas no mundo onírico, no estado de
adormecimento da consciência vigilante e o mergulho no sono significaria o mergulho
no ser.
numa espécie de rarefação quase absoluta do ser (e de seus sentidos), o qual se torna o
espaço de uma espécie de grau zero da presença: falta de mim. O verbo encontrar pode
ser tanto uma localização espacial como um índice da identidade: abismo, buraco negro
da identidade que suga os fluxos da vida para o precipício de significação, memória e
subjetividade. Interessante como o abismo, que também é uma ausência (de chão),
torna-se, por seu poder de atração, uma espécie de presença que se contrapõe à falta e é
dotada de profundidade, de força gravitacional, de onde não se escapa com facilidade:
“A subjetivação não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua
paixão, suas redundâncias.” (Deleuze e Guattari, 1996, p. 31).
Esta oposição entre fluxo e obstrução, é realizada tanto na cadeia das idéias
(forma do conteúdo) quanto na sonora (forma da expressão). É que, embora ambas se
desenvolvam independentemente, elas se pressupõem reciprocamente, de maneira que
40
não se pode separá-las. Esta pressuposição recíproca não se trata duma relação causal,
mas de interferência de uma cadeia na outra, de entrecruzamento, de ocupação e
distribuição de espaço. O poema é um emaranhado de idéias e sons, deslocados de seu
emprego usual: é um outro uso, outra máquina.
Tanto o hiato quanto o abismo são ausências, mas este último implica num
fundo, numa atração gravitacional rumo a algo ou alguém, ou seja, numa falta que pede
para ser completada no ser. Características que o hiato não tem, pois este é uma espécie
de falta positiva e absoluta que não pede complemento: um falto, um salto para o alto —
ausência de gravidade onde os fluxos correm em todas as direções. Mas fluxos de que
ou quem? Talvez do que outrora tenha sido um eu lírico: do que fora um aprisionamento
e ordenamento dos fluxos descodificados da multiplicidade num fosso gravitacional, ou
seja, uma identidade. Esta, por sua tendência à permanência se avizinha da pedra,
seus limites precisos, seu peso e sua dureza propícios à queda e à estática temporal e
espacial. Uma pedra que está no dentro: signo do fechamento, do ser, da estrutura, do
organismo. Mas na base desta pedra a sombra-sono, a diluição da pedra, o rompimento
dos limites entre fora e dentro.
Mas o suposto eu lírico do poema não deseja esta falta abissal que só no ser
encontra sua completude, mas, ao contrário, quer saltar “do abismo onde me encontro /
ao hiato onde me falto”. O que se deseja, aqui, é o hiato, a falta-sombra-sono que
funciona como uma abertura absoluta, a ponto de não haver mais dentro, nem mais jogo
entre dentros e foras. Desejo que é reforçado quando o sujeito-pedra-eu lírico se
dissolve na base que deveria sustentá-lo: pedra que se esfalfa (falfa/falta). O salto não se
dá por um empuxo maior, pela atração de outro abismo, mas pelo dissolvimento, pela
descodificação absoluta da pedra em pó, poeira literária e cósmica, fluxo livre dos
fossos gravitacionais:
41
Vejamos a cadeia sonora deste verso. O movimento do ‘r’ pós-consonantal da
sílaba átona em ‘pedra’ e ‘letra’ para a sílaba tônica em ‘estrela’ é como que o
deslocamento (irregular de uma pedra rolando aos solavancos) de um elemento que na
pedra e na letra se encontrava subjacente, aprisionado: a prisão dos códigos, do abismo
gravitacional absorvendo o fluxo de luz. O som se debate num ritmo binário que relega
inicialmente o ‘r’ pós-consonantal para as posições átonas (em pedra e letra), até que
este se livra e passa à posição dominante (em estrela), sugerindo um est(r)alo de luz.
Mas não permanece aí, pois a palavra ‘solta’ (note-se sol e sou por dentro dela)
preenche a próxima sílaba tônica do verso com uma consoante fricativa (s), quase sem
oclusão: a passagem do ar quase não é obstruída e o deslizamento da voz torna-se o
elemento predominante — a oclusiva ‘t’ está na sílaba final átona. O ‘r’ pós-consonantal
é um defeito que faz estalar (estralar/estrelar) a máquina binária oclusiva-vogal, ou seja,
é o responsável pelo esfalfamento da letra-pedra que se queima/quebra em estrela e
literalmente se solta (de si, de sua identidade, de sua ordenação sonora) em “solta”: o ‘r’
da pedra rola pelas palavras até a intensidade máxima (tônica) em “estrela” e sua
dissolução, sua falta em “solta”. Devir corpo, devir máquina do poema: obstrução e
passagem de fluxos sonoros, semânticos, corporais, maquínicos.
Resta-nos relacionar esta clareza libertária com os versos anteriores e o que lemos neles.
Do ponto de vista da forma da expressão lingüística (significante) predominam, neste
trecho, as fricativas, sibilantes (s) e labiodentais (v,f), ou seja, a sensação de tendência
ao deslizamento da cadeia sonora do verso imediatamente anterior “Pedra, letra,estrela à
solta”, se efetiva, aqui, num deslizamento/liberação dos fluxos sonoros (agora mais
fluentes que obstruídos) que passam pela máquina fonadora. À quase não obstrução das
fricativas se liga a descodificação do ser. Com efeito, “é” e “fé” são, nada menos que a
presença do ser e sua força, o fosso gravitacional e sua gravidade ordenadora do espaço
de onde se quer saltar: levar a vida que falta. Falta que remete à vida por vir, que resta,
mas também a vida da falta positiva que não deseja se completar no ser. Nesta
perspectiva, não tem mais relevância a questão: quem é? Não faz diferença que seja
deus, a razão, a estrutura do poema, o eu ou o eu lírico, nem mesmo a sociedade. Não se
quer saber, não se quer interpretar, desvendar, ser atraído (voluntária ou forçadamente)
pela força de gravidade do buraco negro (abismo) da presença e do centramento.
42
A autoridade é um significado, um conceito ou uma idéia presente no poema de
Leminski. Esta idéia pressupõe o senhor, ou deus, mas também qualquer autoridade,
inclusive a do sujeito, a do gerente, a do general, a da lei. O que está em jogo são
regimes de produção e distribuição de códigos — mas também de bens, já que a
codificação implica necessariamente na economia e vice-versa. Pode-se dizer então que
a política é uma matéria ‘tematizada’ ou ‘tratada’ no poema. Trata-se, como muita
poesia que se fez e faz, de uma fuga da autoridade, de um regime de codificação. Mas
há fugas e fugas. Podemos fugir de um sistema codificado para outro no qual sempre
falta uma presença (fuga romântica para o sujeito, fuga simbolista para a arte) e, neste
caso, apenas substitui-se uma autoridade pela outra, não raro mais despótica. Há
também fugas para uma ausência positiva, onde, na verdade, nada falta: espaços vazios
a serem explorados com experimentações e não preenchidos com significações que se
acumulam até formarem um fosso gravitacional atrator de mais significações. “Ais ou
menos” parece tender para essa fuga positiva em que não se procura autoridade
nenhuma, nenhum é (nenhum Ser). A palavra “falto” (assim como “salto”), que se opõe
a “encontro” contém “alto”, que se opõe a abismo, baixo, profundo: sorvedouro de
significâncias e subjetividades (pedra), lugar onde o sujeito se encontra. Esta dicotomia
é explorada no poema e o verso “Pedra, letra, estrela à solta” é uma espécie de
passagem do aprisionamento à liberdade, do estático ao dinâmico, do peso à ausência de
gravidade, da matéria à energia e ao vácuo: pedra, letra, estrela: metamorfose da pedra
em estrela que depois se “solta” (palavra que não mais rima com a anterior, como as
outras: há também uma soltura rímica), desliza no espaço vazio. O signo, a “letra”,
aparece como passagem desta transformação: a poesia-letra como esfalfamento da
pedra-ser, até se chegar ao ponto em que não se quer saber mais, não importa mais saber
“quem é”. Neste sentido o poema é uma descodificação, máquina de descentramento
que fará liberar os fluxos aprisionados na subjetividade e na significância. O resultado
não será o caos, efeito de uma precipitação desgovernada. Não é à toa que se pede
“poderes sobre o sono” e “forças para o salto” (para o alto/gravidade zero), há todo um
cuidado neste trabalho descodificador para não se perder a vida e poder levar a vida que
falta:
43
se abismam numa única direção imposta pela lei (gravitacional, bio-psíquica, social).
Mas ganha-se sempre uma nova vida-terra-estrela a solta.
Os riscos deste exercício são sempre grandes: por um lado, pode-se não ir
longe (ou fora) o suficiente, ficando preso ao “abismo onde me encontro” da
3
Uma interessante abordagem a respeito deste assunto e da qual somos tributários encontra-se em Iser
(1983).
44
significação e da subjetivação; por outro lado, há o perigo de uma precipitação muito
rápida, uma descodificação muito violenta que leva ao caos absoluto (morte) como
podemos ler neste outro texto de Leminski:
***
Durante muito tempo compartilhei de uma certa ilusão que se deve a minha admiração
por Décio Pignatari, a da idéia de se combater o logocentrismo, a palavra no centro
das coisas e tudo o mais em volta. As outras manifestações de linguagem ficariam
submanifestações e o idioma como manifestação por excelência. (...) Acho hoje, com
a maior clareza do mundo, que existe um específico do idioma, da linguagem com a
palavra que não tem paralelo, e nem outras linguagens. A palavra pode falar de um
quadro, um quadro não pode falar das palavras. (...) As palavras têm uma espécie de
estatuto metalingüístico, um estatuto crítico, um estatuto de dizer sobre, que é o seu
específico. (...) Foi um ultra-esquerdismo icônico que vivi durante muito tempo, de
pensar assim, de colocar uma espécie de horizontal dada em todos os códigos, em
todas as linguagens. (...) A própria poesia que faço, a que procuro fazer hoje, uma
poesia não imagética, não melopaica, quer dizer, não musical, quer dizer, não
excluindo esses valores, mas uma poesia, sobretudo, feita de pensamentos, quer dizer
45
raciocínios. (...) as pessoas que lêem as coisas que venho fazendo, vêm observando
constantemente que, num poema, eu procuro a poesia numa girada do pensamento,
não propriamente numa explosão de cores e imagens. O redondo rolar daquele
pensamento que sai e a loucura lógica dele, que é a sua poeticidade. [grifo do autor]
(Leminski, 1987b, pp. 299-300).
Não podemos voltar atrás [às máquinas abstratas anteriores a de rostidade]. (...) É
porque o muro branco do significante, o buraco negro da subjetividade, a máquina de
rosto são impasses, a medida de nossas submissões, de nossas sujeições; mas
nascemos dentro deles, e é aí que devemos nos debater. Não no sentido de um
momento necessário, mas no sentido de um instrumento para o qual é preciso inventar
um novo uso. É somente através do muro do significante que se fará passar as linhas
de a-significância que anulam toda recordação, toda remissão, toda significação
possível e toda interpretação que possa ser dada [quero viver sem fé / levar a vida que
falta / sem nunca saber quem é]. É somente no buraco negro da consciência e da
paixão subjetivas que se descobrirão as partículas capturadas, sufocadas,
transformadas, que é preciso relançar para um amor vivo [do abismo onde me
encontro / ao hiato onde me falto], não subjetivo, no qual cada um se conecte com
espaços desconhecidos do outro sem entrar neles nem conquistá-los [Pronomes do
caso reto, / nunca acabavam sujeitos], no qual as linhas se compõem como linhas
partidas. É somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro e em seu muro
branco que os traços de rostidade poderão ser liberados, como os pássaros [pedra,
letra, estrela à solta.] (...) (Deleuze e Guattari, 1996, p. 59).
46
FRAGMENTO 2
vozes a mais
vozes a menos
a máquina em nós
que gera provérbios
é a mesma que faz poemas,
somas com vida própria
que podem mais que podemos
(Leminski, 1995, p. 37).
Uma máquina define-se como um sistema de cortes. Não se trata de modo algum do
corte considerado como separação da realidade; os cortes operam em dimensões
que variam com o caráter considerado. Qualquer máquina está, em primeiro lugar,
em relação com um fluxo material contínuo (hylé) que ela corta. Funciona como uma
máquina de cortar presunto: os cortes fazem extrações do fluxo associativo. (...) Cada
fluxo associativo deve ser considerado idealmente como um fluxo infinito de uma
imensa perna de porco. A hylé designa, com efeito, a continuidade pura que uma
matéria possui idealmente.(...) Longe de se opor à continuidade o corte condiciona-a,
implica ou define aquilo que corta como continuidade ideal. É que, como vimos, todas
as máquinas são máquinas de máquinas. A máquina só produz um corte de fluxo se
estiver ligada a outra máquina que se supõe produzir o fluxo. E claro que esta
máquina também é, por seu turno, um corte. Mas só em relação a uma terceira
máquina que produz idealmente, ou seja, relativamente, um fluxo contínuo infinito.
(...) Em suma, qualquer máquina é corte de fluxo em relação àquela com que está
conectada, e é fluxo ou produção de fluxos em relação à que está conectada com ela.
[grifos dos autores] (Deleuze e Guattari, 1995a, pp. 39-40).
47
ruptura (no qual o estruturalismo tem um papel fundamental) que “ter-se-ia talvez
produzido no momento em que a estruturalidade da estrutura deve ter começado a ser
pensada” (p. 231), momento a partir do qual “deve-se sem dúvida ter começado a
pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na forma de um
sendo-presente, que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo mas
uma função, uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente
substituições de signos” (p. 232). A estrutura começa a ser percebida como
estruturação, desejo totalitário de centro, como o funcionamento (despótico) de uma
maquinaria. Na máquina não se procura um fundo ou a essência, ou melhor, esta se
identifica com seu funcionamento, por seu uso e necessidade produtivos. Ela só tem
sentido quando relacionada com outras máquinas (humanas, sociais, técnicas,
lingüísticas) com as quais encontra-se conectada, de uma maneira ou de outra. O que
se entende normalmente por significado só tem sentido se recobrir o funcionamento
destas máquinas, a maneira como elas se conectam com outras, sua situação de uso
enfim, sempre circunstancial no tempo-espaço. Por isto, gosto da palavra uso, que não
coincide (embora possa recobrir) com a noção capitalista de utilitarismo: noção técnica
e unidimensional, que objetiva a mais-valia de capital. A máquina está sempre numa
situação de produção, processual, enquanto que a estrutura se caracteriza pela
representação de uma verdade oculta, de um mito por trás dos ritos que o
representam: na estrutura não se concebe a construção do mito pelo rito, isto já são
coisas de maquinaria.
48
científica, religiosa, literária ou filosófica) que desde sempre domina o Ocidente: a
estrutura, antes de ser um fato, um corpo constituído, é uma percepção, a construção
de um ponto de vista. Os entes e eventos podem ser percebidos de outra forma, como
maquinarias: máquinas. Esta possibilidade de um outro ponto de vista foi sem dúvida
aberta pelo estruturalismo (entre outras perspectivas e autores anteriores a ele) que
desnudou, mais que a estrutura, a estruturação desta, ou seja, a perspectiva que
deseja a construção de sistemas centrados: o desejo despótico das máquinas
desejantes. Nesta perspectiva, não existe a verdade do universo dos objetos
maquínicos e seu opositor, o dos objetos estruturais; trata-se, antes, de dois tipos de
abordagens que muda, sem dúvida, a coisa abordada: quase arrisco dizer que a
(re)constrói. Na multiplicidade se constroem, sem parar, estruturas que brotam de
maquinarias e vice-versa, totalizações e sua fuga.
O poema pode ser abordado, ora como máquina, ora como estrutura ou em
relação a uma outra estrutura (a da poesia ‘em geral’, por exemplo). Às vezes,
acontecem as duas coisas ao mesmo tempo: a leitura do texto literário estrutura-o e
maquina-o sem parar, restando saber para qual perspectiva ela tende com mais força.
Encará-lo predominantemente como máquina pode fazer recair sobre mim a acusação
de anti-humanismo, de reificação do poema, reduzido a um mero mecanismo. Mas
pelo conceito de máquina que intentei (tomei de empréstimo), não se trata,
obviamente, de mecanicismo nem de tecnicismo: como estes ismos se posicionariam
em relação aos fluxos e cortes de fluxos, à multiplicidade e proliferação não
hierárquicas da maquinaria? Quanto à posição humanista, que se apóia na religião
(teológica), no sujeito (psicológica) ou na sociedade (sociológica), o que posso dizer é
que suas construções (ser, sujeito, sociedade), em muitos casos, não são nem mais
nem menos que estruturas (às vezes com um pouco de maquinaria), como as
concebidas/percebidas pelo estruturalismo. Se a máquina é desumana, fria,
antivitalista, a estrutura não o é em menor grau ou por alguma diferença qualitativa:
talvez a concebamos mais humana simplesmente porque gostaríamos, por uma
morbidez de nossa consciência, que o humano se identificasse com as mais frias e
antivitais características de sua idealização: a totalidade, a onisciência, a onipotência,
a permanência e a imutabilidade.
49
DOR, AMOR, HUMOR.
a luz se põe
em cada átomo do universo
noite absoluta
desse mal a gente adoece
como se cada átomo doesse
como se fosse esta a última luta
50
relação aos afetos, da qual a revolução dos costumes, facilmente absorvida e
recodificada pelo capitalismo4, talvez tenha sido apenas um apêndice.
Pois somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita; estas se
conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de infortúnio, linhas
que criam a variação da própria linha de escrita, linhas que estão entre as linhas
escritas. [grifo dos autores] (Deleuze e Guattari, 1996, p. 66).
O amor e a dor são afetos moldados o tempo todo pelos códigos. Numa sociedade
burguesa é sempre alguém que ama ou sofre, sob determinados regimes e leis. E a dor
certamente tem a ver com algum pecado ou, se não se crê, com algum complexo
encravado na infância. Ela sempre ensina ou ensinará algo quando e se dela se sair. Um
algo sempre vinculado aos códigos: não peque mais, aprenda a conviver com seu
complexo, não seja mau.
O achado da revolução cultural foi tomar os afetos, entre eles a dor, como
linhas a serem experimentadas sem nenhuma salvaguarda de um ser ou estrutura que os
controlem por trás de seu turbilhão, foi toma-los com fluxos intensivos que nos
atravessam e nos constituem e com o qual temos de lutar, conviver, negociar, sempre
circunstancialmente.
4
Há nichos de mercado (e de código) para todas as antigas perversões (homossexualismo, sadismo,
masoquismo) e para grupos minoritários (negros, mulheres). Pode-se dizer que o capitalismo precisa de
desigualdade, mas é relativamente indiferente à natureza dos discriminados e aos modos de se instaurar as
discriminações que, parece, tem se tornado cada vez mais interna aos grupos antes marginalizados em
bloco.
51
ponta a ponta e que tendem a esfacelá-lo. Como observam Deleuze e Guatarri, a
socialização dos fluxos do desejo e a opção pela deriva nestes fluxos são alternativas
esconjuradas pela psicanálise:
(...) a sua grandeza [de Freud] foi a de ter determinado a essência ou a natureza do
desejo, não em relação aos objetos, fins ou origens (territórios), mas como essência
subjetiva abstrata, libido ou sexualidade. Simplesmente ele refere ainda esta essência à
família, como última territorialidade do homem privado. Tudo se passa como se Freud
se desculpasse por ter descoberto a sexualidade, dizendo-nos: garanto-lhes que isto
não sairá da família. E assim temos o segredinho nojento em vez da imensidão
entrevista; o rebatimento familiarista em vez da deriva do desejo; pequenos riachos
recodificados no leito materno em vez dos grandes fluxos descodificados; a
interioridade em vez de uma nova relação com o exterior. (Deleuze e Guattari, 1995a,
p. 282).
“Luto por mim mesmo”, sob uma perspectiva da representação dos sentimentos
do eu lírico, certamente nos apareceria como a expressão de uma alma doentia, mórbida
e masoquista, estranhamente atravessada pelo humor (quase negro):
A primeira estrofe:
a luz se põe
em cada átomo do universo
noite absoluta
52
desse mal a gente adoece
como se cada átomo doesse
como se esta fosse a última luta
trata das características da dor que, como qualquer afeto muito intenso, parece tomar
conta da vida durante a sua vivência. A macro (noite absoluta) e a micro (como se cada
átomo doesse) percepção encontram-se minadas pela dor, com a qual o embate se torna
decisivo para a vida (como se esta fosse a última luta). Isto é que torna os afetos pontos
nevrálgicos nos sistemas de codificação, pois quando sua intensidade ultrapassa
determinados limites, sua ação torna-se quase que despótica, subordinando as outras
linhas da vida às suas leis e necessidades: não é casual que os casos de conversão
religiosa (recodificação dos fluxos) se dêem, normalmente, sob condições de extremo
sofrimento (descodificação abrupta e descontrolada dos fluxos). Os códigos, as
explicações, a fé, aparecem como uma espécie de consolo, um chão firme (ao mesmo
tempo punidor e acolhedor) onde se agarraria a alma (e o corpo) maltratada pela dor. O
outro pólo seria o da descodificação violenta provocada pelo sofrimento e que
precipitaria na morte ou na loucura. Este pólo é, ao mesmo tempo o adversário e o
aliado dos códigos. Adversário porque é o que se deve evitar a qualquer custo mediante
recodificações, explicações e processos de cura e diminuição da dor; e aliado porque,
como pólo oposto, não deixa de ser complementar e pode e é sempre usado de maneira
pedagógica (de uma pedagogia do terror), contra o qual se deve prevenir (levar uma
vida sem excessos) ou, caso não se consiga, ser forte o suficiente para se agarrar aos
códigos pacificadores em meio ao turbilhão.
Ser arrastado por afetos muito intensos (seja o amor, o ódio, a alegria, a
tristeza, a dor, o prazer) sempre foi um risco com o qual a sociedade e seus códigos
(religiosos, científicos, comportamentais) têm de se haver, assim como Leminski
também teve. Passando à segunda estrofe, o seu tom já não é mais o de descrição geral
do processo da dor, antes, é uma descrição minuciosa (embora abstrata, portanto
altamente indeterminada) de sua ação, de seu como:
A identificação da dor e da arte (o estilo desta dor) supõe uma vivência estética da
primeira, e uma estética de domínio pleno sobre os materiais formados: a clássica. É
interessante notar que o poema todo é referido na terceira pessoa (despersonalisado) e se
53
há um personagem ou um sujeito aí, este só pode ser a dor. Não a dor no sentido
universal, mas uma determinada dor circunstancial, do qual o texto depurou a
causalidade explicativa (não se diz quem ou de que se sofre), conservando apenas os
efeitos de intensidade (olha como, quanto e onde se sofre). É quase como uma poética
da dor, no sentido em que Aristóteles concebeu sua poética, seu ideal de poesia, com
base nos grande poemas de seu tempo. Isto não quer dizer que esta dor seja uma
vivência subjetiva depurada em objetividade, mas sim, uma experimentação positiva de
um determinado afeto que atravessa a linha da vida, relacionando-se com ela. Que o
texto não trate das circunstâncias concretas da dor, não tem importância realmente
decisiva, apenas explicita a opção de sua experimentação positiva de intensidades puras,
opção já afirmada em Caprichos e relaxos (p. 59):
ver
é dor
ouvir
é dor
perder
é dor
só doer
não é dor
delícia
de experimentador
Voltando a “Luto por mim mesmo”, há nele uma injeção de bom humor nesta
experimentação:
dói nos himalaias, nos interstícios
e nos países baixos
Os “países baixos” remetem aos órgãos genitais, o que pode ser o índice de problemas
ligados à sexualidade (ou problemas amorosos em geral), arrastando neste significado
toda a comicidade da qual o assunto é socialmente investido. Na verdade, não só o tom
destes dois versos, mas de toda a estrofe, com suas referências espaciais se sobrepondo
às do corpo que, por sua vez, se sobrepõe às da alma, com seu metro curto, ritmo ligeiro
e intenso trabalho sonoro de reiterações, tudo isto remete a uma espécie de alegria
(atmosfera: forma do conteúdo não significativa) que beira a comicidade — isto
acontece em muitos poemas de Leminski; se quiserem, é uma característica de sua obra.
Vivência estética da dor, poética da dor, a dor como ponto (não essencial, mas
operatório) de subjetivação, experimentação positiva de intensidades puras, injeção de
alegria e humor neste exercício: seria o nosso poeta um masoquista?
54
uma dor que goza
como se doer fosse poesia
já que tudo mais é prosa
Esta leitura ainda se vincularia ao problema das perversões dos sujeitos individuais. O
poeta ou o eu lírico do poema seria um pervertido, um desviado. Dessa maneira
recodificamos, pela marginalização do eu lírico (e a margem, neste caso, é um lugar no
sistema), uma experiência, ou pelo menos, a tentativa da experimentação de um afeto
que não se agarra às codificações pré-estabelecidas nem se precipita numa
descodificação muito violenta que resultaria no louco de hospício ou na morte.
Há toda uma luta para que esta precipitação não ocorra, a começar pelo título,
que também remete a luto, morte. Há um luto pela morte do eu e ao mesmo tempo uma
luta pela construção de um (novo?) “mim mesmo”. O eu como estado sempre
provisório, resultante de uma luta de guerrilha, ou seja, uma conquista estética, como o
poema, que se faz sempre sob condições não muito bem pré-estabelecidas ou, pelo
menos, se quer fazer assim. Na linha da vida surge a do sofrimento: a luz se põe / em
cada átomo do universo. As duas se entrelaçam:
Por que não vivenciar estas linhas entrelaçadas, negociando com elas a cada instante,
explorando toda as novas perspectivas sobre as coisas que a dor oferece? Não significa
dizer que não há, de fato, sofrimento, talvez haja no mais alto grau e não se trata de um
sofrimento voluntário. Trata-se de uma atitude, já que estamos aqui não adianta
reclamar, já expressa por Leminski em outro poema:
Mas também não se quer mais pagar o preço pelo consolo dos códigos e, obviamente,
não se quer a morte nem o hospício. Assim como se pode viver o amor como processo
proliferativo, também se pode encarar a dor da mesma maneira. Os cuidados devem ser
análogos, pois se trata, como em “Ais ou Menos” de um salto do abismo demarcado
pela gravidade dos códigos, para o alto, para a gravidade zero. Assim como lá é
necessário ter poderes sobre o sono, aqui é preciso ter poderes, não sobre a dor, mas na
dor ou da dor, já que a linha da vida se mescla com a da dor, constituindo uma nova
55
subjetivação que deve se estabilizar precariamente em luta/negociação com o
sofrimento.
Voltando a “Luto por mim mesmo”, o poema nos leva a considerar o que
normalmente se considera aquém do poema enquanto arte: exatamente as motivações,
digamos, psicológicas, que resultaram no poema: a experiência da dor. O objeto
principal da crítica literária deveria ser o texto e, como objeto que é, muito
provavelmente deve ser dotado de uma estrutura (mesmo que não se seja estruturalista),
quer dizer, de determinados elementos sob arranjos específicos que lhe dão uma feição
de coisa acabada, o que implica dizer que é dotado de limites e de uma espécie de
identidade. Assim se estabelece um jogo de dentro e fora, no qual os aquéns ou
motivações do texto encontram-se dialeticamente fora dele:
56
Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos
vários níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em
primeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na
designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem
que intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, este resultado, o
texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que os transcendem e
não se deixam reduzir a eles. (Candido, 1993, p. 33).
É claro que este ponto de vista é operacionalmente válido, mas não quer dizer que não
possamos olhar o texto de outra perspectiva. A produção da totalidade do texto e sua
relação com outros extratos (psíquicos, sociais), é sempre uma totalização ao lado dele,
quer dizer, é sempre uma produção que não coincide com a do texto, na qual estão
envolvidas miríades de códigos. Normalmente esta produção de totalidade (que implica
numa capa estrutural que envolveria a maquinaria do poema) é delegada ao
departamento da crítica, enquanto ao departamento dos escritores cabe montar
dispositivos muito díspares, resultando muitas vezes em maquinarias monstruosas,
cheias de defeitos e de ruídos insuportáveis. Ou seja, a totalidade, ao lado, é uma
espécie de parte agregada ao texto. Por isto cada época e cada receptor (até mesmo o
próprio autor) estabelecem suas próprias totalizações particulares das obras literárias: a
produção do texto nunca termina e a sociedade é sua fábrica permanente.
A relação entre homens e texto, pode ser abordada de outra forma que não a
relação entre sujeito e objeto ou entre grandes conjuntos distribuídos em níveis ou
estratos: o formal (intrínseco); o psíquico e o social (extrínsecos). Talvez possamos
trabalhar numa crítica que flagre uma espécie de relação libidinal (rizomática, nos
termos de Deleuze e Guatarri), ou seja, de produção e reprodução entre textos e homens,
como se uns fossem partes das maquinarias que constituem os outros: “Os homens, são
apenas os órgãos sexuais das fábulas” (Leminski, 1998, p. 23). Mas, por outro lado:
Quem maior que os deuses? Quem senão o destino que, um dia, disse que os deuses
dariam metamorfoses e caberiam dentro das fábulas? A fábula é o destino, fábulas são
maiores que os deuses. A vida de Zeus cabe dentro de uma fábula, casca de nós
boiando nas águas de Narciso (...). (Leminski, 1998, p. 34).
Ou seja, os deuses dentro das fábulas dentro de Narciso (dentro dos homens): as fábulas
como órgãos reprodutores dos homens, como sua produção e reprodução de
contigüidade, tradição, cultura. Uns maquinam os outros. Quem disse que as máquinas
não se reproduzem? Apenas as grandes máquinas, as que depositam sua funcionalidade
na totalidade do conjunto são estéreis:
57
segundo as quais funcionam, e funcionam improvisando, inventando, formando estas
mesmas ligações. Um funcionalismo molar é pois um funcionalismo limitado, que não
chegou às regiões onde o desejo maquina independentemente da natureza
macroscópica do que maquina: elementos orgânicos, lingüísticos, sociais, etc., todos
cozinhados ao mesmo tempo na mesma panela. (Deleuze e Guattari, 1995a, p.187).
É isto que tentamos fazer em “Luto por mim mesmo” (e também nos outros
poemas), verificar a linha da dor num poema, como ela se mescla com as do som, da
alegria e do humor, da vida. Como ela é experimentada de forma abstrata como
intensidade pura e, no entanto, de maneira circunstancial, localizada e não universal: é
“esta dor”. Como ela constitui uma espécie bem particular de subjetivação desprendida
(e também desamparada) da codificação social dos afetos, tornando-se uma espécie de
viagem arriscada para além dos limites dessa codificação. Como esta experiência se
vincula às linhas beatnik-hippie-marginal-tropical, contemporâneas a Leminski. Enfim,
como tudo isto é arrastado num bloco vivo (maquinaria) sem limites muito precisos
(matéria em fusão: “estrela à solta”) do qual as linhas do poema, assim com as outras,
são fluxos de intensidade que escapam por todos os lados. A produção do poema pelos
homens em situação de dor, mas também a sua reprodução através dos homens em dor
(ou não): os homens como aparelho reprodutor do poema, como parte da maquinaria do
poema. Mas também o contrário, o poema como parte dos homens, interpenetração de
máquinas em produção, umas disparando as outras.
58
o psicologismo está por fora da obra; ou antes, como motivação, ou depois, como efeito.
Em todo caso os afetos estão relacionados com a obra (e como não poderiam estar?),
mas ainda à maneira de grandes conjuntos: o texto e seus elementos intrínsecos; o
contexto e seus níveis de estratificação, o exterior (sociedade, sujeito, tradição) em
relação dialética com o interior (estrutura do texto).
Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
simplesmente me desfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo.
(Leminski, 1987a, p. 26).
59
de conjunto para conjunto. Os textos poéticos de Leminski talvez se demonstrem mais
fecundos se os abordarmos como uma produção expansiva e microscópica do desejo,
seja na dança dos sons ou das idéias, seja nas linhas da dor ou do amor, do humor ou do
heroísmo. Captura e mesclagem do que se passa, quase imperceptível, sob e através dos
grandes conjuntos delimitados: as linhas mínimas (“mínima linha vazia”; “apenas o
mínimo / em matéria de máximo”; “mínimo templo / para um deus pequeno”) que
podem conduzir a uma transposição absoluta de limites, fazendo estourar as totalidades
codificadas. Linhas de vida e poesia, linhas de dor e humor, linhas de rima e amor,
linhas de ritmo, descodificação e fuga:
60
FRAGMENTO 3
Referi-me, no texto anterior, a uma tênue linha entre o abismo dos códigos e
a sua descodificação, linha que procuro mostrar ser também a da poesia (de Leminski
e, por que não, a de muitos outros?), que se encontra entre o uso normal dos códigos
e a descodificação absoluta (e não entre o uso normal e um outro código total,
transcendente), ou seja, encontra-se nos limites dos sistemas, pronta para fazê-los
fugir. Talvez seja sob este aspecto que devamos ler a aproximação entre poesia e dor
e o afastamento desta da prosa (uso normal dos códigos) em “Luto por mim mesmo”:
“como se doer fosse poesia/já que tudo o mais é prosa”.
Mais uma vez, como se vê, metalinguagem, dor e reflexão sobre a dor podem
ser temáticas deste poema. Talvez esta noção, ‘temática’, não seja adequada. Os
poemas de Leminski não são multisignificativos, mas fazem fugir os significados
(temáticas). Mas também posso lê-los (como já tentei) como poemas que fazem fugir
os significantes, ou seja, que tentam escapar à significância (significante+significado,
forma+conteúdo). Esta a-significância é uma característica de Leminski ou a invento?
É claro que há obras poéticas que não suportariam tal uso, mas creio que seja
possível em Leminski (se não acreditasse nisso, este texto não teria sentido), não
como uma característica intrínseca de sua obra, nem mesmo como elemento
potencial, mas como possibilidade de leitura (uso, funcionamento) que ela abre na
multiplicidade dos códigos.
O livro como imagem do mundo é, de toda maneira uma idéia insípida. Na verdade
não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade
tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao
contrário, de maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de
que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando
sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever
a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de multiplicidade. Um rizoma como haste
subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os
tubérculos são rizomas. (Deleuze; Guattari, 1995b, pp. 14-15).
Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como
árvore-imagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma é uma
antienealogia. É uma memória curta ou uma antimemótia. O rizoma procede por
61
variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à
fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser
produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com
múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga.(Deleuze e Guattari, 1995b, pp.
32-33).
É este esquecimento das grandes estruturas, da unidade do ser (“quero viver sem
fé/sem nunca saber quem é”) que procuro em Leminski, em meu texto (será que posso
ainda dizer eu? talvez o diga apenas por conveniência) e que se aproxima do texto
plural de Barthes:
62
(abrindo-lhes fendas, picadas), sejam eles lingüísticos, sociais, psíquicos etc. Assim
como pode haver críticas que operam por arborificação e rizoma, também se pode
dizer que as obras literárias oscilam entre estas perspectivas — veja bem que não há
exclusividade de um pólo, mas tendência a um. Os textos poéticos de Leminski
operam, creio, tendencialmente por rizoma, daí a fecundidade de uma perspectiva que
também opere dessa maneira. Se o leitor quiser pode-se dizer que a obra de Leminski
trata-se, nos termos de Barthes, de um texto moderno, que ele opõe ao clássico,
utilizando-se da noção de plural do texto:
O texto clássico é, pois, tabular (e não linear), mas essa característica é vetorizada,
obedece a uma ordem lógico temporal. Trata-se de um sistema multivalente, mas
incompletamente reversível. O que limita o plural do texto clássico é aquilo que
bloqueia a reversibilidade. Esses bloqueios têm nomes: por um lado, a verdade e, por
outro lado, a empiria: precisamente contra o que — ou entre o que — está o texto
moderno. (Barthes, 1992, p. 63).
63
CAPRICHO, RELAXO
Se eu soubesse agora,
como eu soube antes,
a dança alegórica
entre as vogais e as consoantes!
Domínio que se estenderá ao além da construção, quer dizer, ao pólo da recepção, cuja
interpretação da obra não deve sair de certos limites muito estritos: “a platéia chorando /
e eu contando os compassos”. Arriscamos dizer que este quadro, nas vanguardas
construtivas, pode ou não sofrer mudanças significativas: muitas vezes o que há é uma
ampliação das possibilidades interpretativas, que devem permanecer, no entanto, dentro
de certos limites relativos:
(...) o poema concreto possui o seu número temático: isto é, as cargas de conteúdo das
palavras, tratadas do ponto de vista material, só autorizam um determinado número de
implicações significantes, justamente aquelas que atuam como vetores estruturais do
64
poema, que participam irremissivelmente de sua “Gestalt”. Nenhum decorativismo,
nenhum efeito intimista de pirotécnica subjetiva. (Campos H., 1975a, p. 77).
O que faz diferença em muitos aspectos, mas que, no entanto, conserva o da auto-
disciplina formal e o do domínio rigoroso das matérias intra e extra textuais. Há algo
comum a ambos os pólos (poesia de estruturação ou construção e poesia de expressão
ou emoção) da oposição que estamos trabalhando e que deve ser explicitado: o
problema do controle sobre grandes conjuntos. No poema de Leminski este problema é
patente, pois o músico domina toda a platéia (e, com isso, as possibilidades
interpretativas) e nos últimos quatro versos é já o poeta dominando a estrutura sonora (e
semântica: alegórica, consoantes) do artefato poético. Nas poéticas modernistas e
vanguardistas de construção esta preocupação de domínio se reverte em consciência da
estruturalidade do texto, suas relações internas (formais) e suas possibilidades de efeitos
ou relações com seu contexto: sociedade e subjetividades. O domínio do artefato e de
seus efeitos evolui da conotação, que limitaria as possibilidades interpretativas, para a
delimitação, modular ou probabilística, destas possibilidades, tornando-se uma questão
de amplitude de campos de significância. Passa-se do domínio do duplo sentido para o
controle estatístico: ainda se trata de um problema político, da relação de poder entre o o
autor e texto de um lado e os receptores do outro — “a platéia chorando e eu contando
os compassos”.
65
convenções) pelo domínio estrito dos materiais que circulam e são formados no poema.
Mas ambas as poéticas produzem uma espécie de fechamento que rebatem estas
liberdades em algum tipo de totalidade: a do sujeito ou a da estrutura. Leminski
percebeu bem a encruzilhada em que se colocou o concretismo e sua face voltada à
cristalização: “o classicismo implícito na coisa concreta que leva a eliminar o presente,
as menções explícitas ao atual, ao circunstancial, ao efêmero... uma poesia que já quer
nascer universal, geral, genérica, nasceu morta...” (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 117).
Talvez o problema deva ser colocado de uma outra forma, pois a questão
relevante não é saber qual das poéticas é mais rigorosa, se a da construção ou a da
expressão. Nem saber se é bom ou ruim que haja rigor numa opção poética. O que
vamos observar é que ambas as poéticas têm seus rigores (caprichos) e liberdades
(relaxos) em seus próprios termos e o que vai interessar realmente é sabermos qual o
regime destes caprichos e relaxos de cada uma.
66
instantânea e rimas de muleta: eis as receita de dezenas de pocket poets à la Paulo
Leminski, (...). (Tolentino, 1999).
E a lição que nos legam os vazios é clara: é preciso reduzir a velocidade... É preciso
arquivar e esquecer Leminskis e Anas Cs, Cacasos e Gugus, confusos e confrades. É
preciso em seguida ler com toda a calma o que, da Arcádia Mineira ao Condor Baiano,
de Gonçalves Dias a Manuel Bandeira, de Drummond a Cabral e de Cecília a Adélia,
o que por aqui se escreveu com toda a atenção, segundo aquela “emoção recordada na
tranqüilidade” de que Wordsworth investiu o ato de poíesis há mais de século e meio.
(Tolentino, 1999).
Este pedido de calma e redução da velocidade talvez remeta mais a uma preocupação de
preservação da estática estrutural do ser (da tradição, a maioria dos autores citados por
Tolentino são signos-instituições ‘basilares’ da tradição poética) que com os cuidados
formais e conteudísticos da prática poética.
67
interessante notar que, embora Tolentino tenda para uma poética da expressão, ele
defende, numa interessante composição, o rigor construtivo, numa perspectiva,
digamos, clássico-modernista), para o problema das totalizações dos conjuntos e sua
fuga, não é preciso mais tentar mostrar, ponto por ponto, como Tolentino se equivoca.
Ele não está equivocado e sua lista de características negativas a respeito de Leminski (e
outros contemporâneos) tem sido confirmada por nós ao longo deste texto. Apenas
propomos deslocar o problema que incomoda Tolentino e que não se trata apenas de
rigor. O que o preocupa em Leminski é a ausência de um certo rigor convencional,
implicado numa determinada concepção de poesia que a supõe como expressão
subjetiva, vinculando-a a dois sujeitos: o individual do poeta e o coletivo da tradição.
Tolentino deixa transparecer que a poesia, para ser rigorosa (de boa qualidade), deveria
fazer jus a estes dois grandes sistemas (encarados como totalidades), estabelecendo com
eles um vínculo representativo. Na verdade a obra poética de um autor deveria ser, nesta
perspectiva, ela mesma um grande sistema textual que de alguma forma englobe e
transcenda os outros dois (indivíduo e tradição), mantendo com eles uma espécie de
relação dialética. Portanto, o texto de Tolentino não diz respeito apenas ao rigor e sua
ausência na obra de Leminski, mas principalmente da ausência de totalidade(s) em sua
obra, de sua não expressividade, de sua incapacidade (ou resistência) de ser apreendida
como um grande sistema centrado em relação com outros sistemas do mesmo teor
(Tolentino não encontra nos poemas de Leminski os rigores das totalidades
convencionais da Literatura de expressão: dicção, idéias densas, cultura, permanência,
profundidade filosófica etc). Mas, nos deslocando para a perspectiva da fuga, o que
seria um defeito dos textos de Leminski pode tomar outro aspecto, menos assombroso
ou pejorativo. Temos tentado mostrar que sua poesia tende para uma dissolução das
totalizações rumo a uma espécie de limiar de descodificação absoluto, a ponto de a
unidade não fazer mais sentido, nem como múltipla ou esfacelada, utópica ou
nostálgica. Depois das leituras que fazemos não se pode, cremos nós, afirmar que lhe
falta rigor (o texto-morcego deve ser extremamente preciso), mas este problema não se
coloca mais sob os termos das poéticas da construção ou da expressão. Não se trata de
dominar grandes conjuntos estruturais, nem de despotismo subjetivo. Nem mesmo de
um despotismo do significante. Vimos que não se trata de um deslocamento de
significados sobre a carne de um significante rigorosamente estruturado. A mobilidade
geral, a preponderância do verbo sobre o substantivo (em termos de classes gramaticais)
e sobre o sujeito ou os objetos (em termos sintáticos) implica no predomínio da
variância e do diferencial em oposição à permanência e ao universal. Trata-se, como diz
o próprio Leminski, de lidar com “distâncias mínimas”, circunstancialidades absolutas,
variações microscópicas (e não controles macroscópicos), linhas e fluxos; dicção rala:
eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
68
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
(Leminski, 1983, p. 72).
Não podemos dizer que Leminski revoluciona a técnica poética, pois apesar de
um uso todo particular da língua e das convenções poéticas (seu estilo?), ele trabalha
dentro da tradição do verso, com um domínio cerrado do que a crítica chamaria de
figuras de sonoridade: assonâncias, consonâncias, aliterações, rimas, ecos etc. Já
tivemos a oportunidade de flagrar estes procedimentos nos poemas. Do ponto de vista
das figuras de sentido, haveria um uso da metáfora em seu plural (que não pode ser
freada em um ponto do código, ou seja, em uma profundidade conotada), do anagrama
que multiplica os campos semânticos e uma tendência à poesia de idéias,
enlouquecendo-as. No poema “Luto por mim mesmo” pudemos verificar bem o
procedimento que permite o entrecruzamento das linhas da dor e da vida, não no sentido
metafísico e genérico destas (não se trata da Dor ou da Vida), mas de uma dor e de uma
vida específicas. Por outro lado, não se trata da dor ou da vida de um sujeito particular
(nem de um eu lírico), mas dor e vida são (foram lidas como) linhas de intensidades,
abstratas e localizadas, fluxos microscópicos que se cruzam entre si e com as linhas dos
versos: circulação pura de intensidades fazendo vazar os grandes conjuntos (sujeito,
tradição, estrutura do poema ou da poesia). Junto com o uso da metáfora em seu plural,
este procedimento reflexivo-andante de fazer circular intensidades torna o lado
semântico de sua poética extremamente original. Mas o lado sonoro não fica atrás, pois
tratam-se de poemas não necessariamente medidos e aparentemente simples do ponto de
vista rítmico, mas cujo trabalho fonético é extremamente rigoroso, mantendo-se sempre
em jogo (de pressuposição recíproca) com o trabalho semântico.
69
Para chegarmos aos rigores de Leminski agimos como intérpretes tradicionais,
na bi-articulação significado e significante, procurando comentar e desvendar os jogos
de linguagem dos poemas, mas também tentamos construir outras relações com os
textos de Leminski, pressupondo-os como plurais ou rizomas, textos-morcego. Este
procedimento crítico não implica mais em (somente) apreender a obra, interpretá-la e
classificá-la, mas em conectar-se com ela, mesclar linhas de textos críticos com os
poéticos. Por isto, nosso texto teve também de tender, pelo menos um pouco, ao rizoma,
ao plural bathesiano. Tudo isso porque achamos que a obra de Leminski poderia ser
levada mais longe do que os métodos tradicionais de crítica, representativos ou
estruturais, a levariam: levá-la além da estrutura, da subjetividade e da significância que
impregna a ambas. E também levá-la além da tradição literária, embora utilizemo-nos
de seus instrumentos. Lida assim, sua obra está além da Literatura como instituição,
conforme a percepção do próprio Leminski:
70
Pra mim, a literatura não passa de um fetiche universitário. Não estou interessado mais
na idéia de uma literatura, nem mesmo de uma continuidade literária. Não tenho
nenhuma intenção que minhas coisas, por exemplo, tenham um padrão de
continuidade com isso que se chama de literatura. Quero, pretendo estar atuando sobre
a coisa mais complexa, que se chama cultura. (Leminski, 1994c).
Mas esta opção pela atuação na cultura não implica numa adequação a ela, que
resultaria apenas num cerceamento posterior, embora sob o regime de um sistema mais
amplo e complicado. Também na cultura ele propunha provocar vazamentos, variância:
Aqui aparece claramente a opção por fazer fugir os sistemas (glasnost da Gestalt:
libertação da totalidade) e não de fugir deles, abandonando-os. Aparece também a
direção da incerteza e do perigo dada pelo verbo ‘desconfiar’: a fuga parece não ter um
termo, uma certeza, um saber aonde chegar. Des-subjetivação, a-significação,
desestruturação da Ordem, da Gestalt, levando os artefatos/arde-fardos (máquinas
desejantes?) da Cultura para além de seus limites, fazendo-os “dançar e cantar”,
escapando do abismo subjetivo e do cerceamento da significação.
6
A citação anterior é um trecho de uma entrevista dada em 1978 e esta última é parte de um texto
(auto)crítico-criativo de 1986, intitulado “Oração principal”.
71
A LEI DO QUÃO
Até que chegue o momento de explosão casual da primeira estrofe, um rigoroso trabalho
de preparo para a deriva, para as negociações com o acaso:
Ai do acaso,
se não ficar do meu lado.
(Leminski, 1995, p. 93).
À disposição de deriva descuidada (fazer tudo que qualquer jeito) o texto opõe uma
ameaça ao acaso nas duas últimas linhas: o “fazer de qualquer jeito” não como um
descuido, mas como um jogo de risco, configuração precária do caos, caotificação
máxima da ordem (mas até um certo ponto que preserve um pouco de organismo para a
sobrevivência). É uma questão de forças (quero forças para o salto) e preparo: saber
levar as coisas até um certo limiar quase absoluto de descodificação, nunca parar:
72
Aonde vão dar estes passos?
Acima, abaixo?
Além? Ou acaso
se desfazem ao mínimo vento
sem deixar nenhum traço?
(Leminski, 1995, p. 39).
Numa leitura em que se obedece a pausa dos versos, esta pode funcionar como ponto e a
palavra “acaso” aparece então como destino (inconcluso) dos passos, do pensamento
andante de curta memória, rizoma: sem deixar nenhum traço (permanência). Esta
poesia-movimento, onde o movimento, o processo, se constitui como perturbação da
estática dos sistemas, prevalecendo sobre ela, se nutre também do erro. Aliás, acaso,
erro e movimento são velhos parceiros (errar é andar sem destino) que os sistemas
centrados sempre tentaram evitar:
73
sua capacidade (ou não) de desfazer estes limites sem, no entanto, precipitar no caos
absoluto. Fazer prevalecer a variância e o diferencial (erro, caos/acaso,
movimento/processo) sobre a permanência e o universal, a ponto destes dois últimos
derivarem do primeiro, e não o contrário. Não é o sistema que varia, mas a variância se
sistematiza. O sujeito não se multiplica, mas na multiplicidade surgem pontos de
subjetivação, sempre por negociações/lutas políticas, por (des)conquista de poder.
ICEBERG
Os quatro últimos versos de “Iceberg”, ao sobrepor falar e falo (órgão sexual), identifica
o erro com o desejo (“ao falar (falo) provoco / nuvens de equívocos”). “Nuvens de
equívocos”, “enxame de monólogos”, multiplicidade de falas/falos que constituem
condição de vida, contra os rigores estruturais que evitam a deriva e a proliferação dos
“enxames”: Sim, inverno, estamos vivos.
Se retomarmos o problema dos afetos (dor, amor, humor), vemos que sua
leitura como experimentações de intensidades puras, linhas à deriva que se mesclam às
linhas dos poemas, implicam no erro, na errância permanente. A verdade, o profundo e
o centro vinculam-se ao certo, tanto do sentido de certeza e clareza (que sempre se
espera, depois de desvendado o Mistério), quanto no sentido de correção moral. Ao
desvincular os afetos da expressão de uma subjetividade, encarando-os como
74
intensidades sem sujeitos, os poemas de Leminski perdem toda noção de centramento,
de localização correta em relação a algum centro de referência. O erro, em sua poesia,
na verdade não se opõe ao certo: qual universal daria os critérios de certeza? Não se
trata, portanto, de um erro negativo (em relação à qual certeza, à qual moral
transcendente?), mas puramente positivo: não se “erra uma vez” apenas, mas “só o erro
tem vez”, o erro como variação contínua, errância: os afetos, as idéias, os versos, não
são linhas que erram o caminho, mas são linhas erráticas:
Nem acima, nem abaixo, nem além, que implicam em pontos de referências certos e aos
quais se podem opor os caminhos errados, as linhas enganosas. Os passos-linhas vão dar
no acaso, nas errâncias. A errância é fluxo permanente, nomadismo. O que se opõe ao
nomadismo é o sedentarismo, o refluxo das linhas e a reconstrução do certo-errado, da
presença-ausência e da invariância — máquinas represadas.
Uma poesia errática não tem como critérios de rigor o certo em si, a verdade ou
a permanência. Seu rigor, seu acerto, não deriva de sua acomodação aos critérios de boa
qualidade de uma totalidade, seja ela subjetiva ou estrutural. Suas linhas enganosas não
são as erradas (elas sempre são erráticas) em relação a alguma certeza transcendente,
mas as que refluem novamente em algum sedentarismo (bloqueando os fluxos e
reconstruindo centramentos) ou as que se precipitam no caos, sem preservar as
possibilidades de confluência. Os fluxos de uma poética errática devem confluir (pontos
provisórios de encontro, efetivações de fluxos). É na confluência dos fluxos de desejo
que ela encontra os seus rigores e suas liberdades muito peculiares. E o que ela deve
evitar são dois perigos que a rondam:
Os rigores da poesia implicam numa estética, mas toda estética pressupõe uma
moral, escolhas éticas, questões políticas. Uma poesia errática recusa todo
estabelecimento de poder que a subordine, mas também recusa a conquista do poder
através da obstrução das linhas com as quais opera (se mescla) um auto-descentramento
constante (errância). A conquista do poder implicaria na construção de uma identidade,
na cristalização de uma unidade, numa arborificação implantada no rizoma, obstruindo
sua proliferação descodificada. Uma maquinaria textual suficientemente errante
75
(avariada, aberta à imprevisibilidade e à variação) quer apenas confluir fluxos para
depois deflui-los, procurando outras confluências possíveis, sem cristalizá-las em
estruturas, sujeitos, tradição, nem compondo uma memória muito longa ou permanente:
apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
(Leminski, 1983, p. 66).
O charme, no qual a sílaba ‘me’ não se refere mais à subjetividade, é apenas uma
intensidade, um atributo inexplicável — para além (ou aquém?) da significância — que
transforma a pessoa num campo magnético. É apenas uma subjetivação precária que
eletriza o ambiente por onde circula: esquecimento dos pontos de apoio da matéria em
favor da circulação energética. Esquecimento das grandes estruturas em favor da
experimentação dos fluxos. O charme pode ser usado para conquistar o poder: o
charmoso é um conquistador. Mas o chame (abstrato e particular) como linha intensiva
que se configura e atravessa os grandes conjuntos sem a eles se agarrar (o charmoso é
um grande conjunto, uma subjetividade que integra o charme em sua memória, como
característica sua) recusa toda conquista e oferece apenas a possibilidade da
confluência, do amor processual: enredamento contínuo de fluxos. O charme é, nesta
perspectiva uma linha a ser experimentada e não elemento ou energia a ser armazenada
para a conquista e a manutenção de domínios. A subjetividade implícita no ‘me’ de
‘desmanchar-me’ é um domínio (um limite) que deveria ser mantido e que a palavra
‘charme’ corrompe com seu ‘me’ não subjetivo.
O humor tem, mais uma vez, um papel decisivo neste poema, pois advém,
como nos ensina Bergson, de uma reação crítica ao “mecânico calcado no vivo”
(Bergson, 1983, p. 27). A subjetividade implica exatamente num sistema mecânico se a
opomos à mobilidade errática do charme, cujo mecanismo subjetivo quer aprisionar. A
liberação do charme passa pelo jogo anagramático de palavras e pelo humor. Charme
que está (ou parece) dentro do sujeito. Mas sua agilidade e a maleabilidade fazem da
subjetividade uma máquina muito certa (previsível), que tende ao peso, à gravidade (no
sentido de força física e de seriedade). Máquina propícia, portanto, às ‘brincadeiras
espirituosas’, à galhofa. Todo humor, como o charme, é ágil. Na verdade, a agilidade,
em oposição à estática mecânica, é que resulta no humor: por isto se ri dos palhaços,
pela sua inabilidade, por sua mecanicidade insensível à maleabilidade da vida. Ora,
qualquer intensidade liberada da gravidade subjetiva (ou estrutural) já é potencialmente
76
bem humorada, pois diante dos grandes conjuntos os fluxos intensivos constituem
agilidade pura. Dor, amor, todos os afetos libertos do abismo subjetivo constituem
pequenas máquinas (desejantes) errantes que avariam (variam) os mecanismos
sistêmicos. Nesta situação, todos estes afetos são potencialmente bem humorados, assim
como as linhas dos poemas de Leminski fazem fugir (a provocação seguida de fuga é
uma brincadeira muito engraçada) a própria literatura, desconcertando a crítica. O
humor, como o erro é uma avaria nos mecanismos sistêmicos. Uma maquinaria sem
avarias torna-se um mecanismo previsível, harmonizando o funcionamento de todas as
micro-máquinas que passam a ser elementos na hierarquia de um sistema centrado. Os
textos de Leminski riem do sujeito, da estrutura, da tradição, da memória e da literatura,
tornando-se avarias, máquinas avariadas, desvairadas, variantes, errantes: charme-
humor, charme-charge, sabotagem dos mecanismos da subjetividade, da estrutura e da
literatura.
77
FRAGMENTO 4
7
Este texto faz parte de uma carta (provavelmente de 1976) de Leminski a Régis Bonvicino.
78
devem ser avariadas (variadas, variantes) o bastante para provocar errâncias não
ressistematizáveis, resistências à recodificação promovida pelo fluxo do capital:
79
ATÉ ELA
80
corpo ou mais especificamente com os órgãos sexuais da mulher (a flor é o órgão
reprodutor das plantas). Aqui já entramos no campo do ciframento e deciframento8
(nossa leitura opera, até o momento, nos limites dos códigos) textuais. Este jogo cifrar-
decifrar estabelece uma série de expectativas e surpresas que jogam com a capacidade
(quase poderíamos dizer esperteza) do leitor-decifrador em perceber mais ou menos
rapidamente, com ou sem ajuda, a interpenetração dos campos semânticos (“ah! então a
flor é uma mulher!” — note-se que esta leitura estabelece um fundo ou verdade da
metáfora, que se constitui na mulher) e de sua capacidade de tirar conseqüências desta
interpenetrabilidade: é um poema erótico! Outros comentários poderiam ser
acrescentados, como a percepção de que se trata de uma metáfora extremamente gasta, a
ponto de se tornar um uso normal fora do campo literário. Resta saber se o poema opera
a metáfora de maneira a não cair também no lugar comum: este questionamento remete
ao problema da originalidade e habilidade do poeta, portanto, à sua qualidade.
8
Vamos, inicialmente, produzir uma leitura de decifração do poema, quer dizer, voltada para o
‘desvendamento de sua estrutura ou suas verdades’. Esta leitura representativa (na verdade, produção de
representação) é sempre uma possibilidade aberta pelos textos de Leminski, que atuam no seio da tradição
e que, portanto, permitem uma abordagem tradicional. A outra possibilidade, que escapa ao jogo de cifrar
e decifrar é a leitura produtiva que, menos que interpretar sua estrutura, se conecta com a máquina do
poema: regime de produção de códigos. Assim como Leminski opera no seio da tradição da representação
para escapar dela, nossa leitura se encontra sempre delimitada, de início, pela leitura representativa,
mesmo que tacitamente. Neste caso resolvemos explicitar estes limites iniciais e agir dentro deles, para
depois tentar rompê-los.
81
Ainda percorrendo a linha do anagrama e fazendo uma leitura vertical do
poema, podemos chegar a:
até ela
de pé
em pé
de pé
em pé
até desp[e,é]
que implica numa série de ações que precedem (enquanto se está de pé a flor-mulher é
despida, (de pé)tala em pétala) e que culminam no ato sexual, “despé”, quer dizer,
deitados (e despidos, sentido insinuado por “despe”).
Ainda nos limites dos códigos literários e nos deslocando para a estética
concretista (este é um poema que pressupõe o concretismo), podemos notar que a
disposição gráfica dos signos no papel realiza visualmente o movimento de deitar: o
poema se horizontaliza. Mas não se trata de um ‘pouso suave’ e sim de um deitar
acidentado, correlato ao movimento dos corpos no ato sexual. Aqui também perpassa,
na carne do texto, a ondulação alegre e sinuosa (forma do conteúdo não significativa) do
desejo — ou dos corpos em desejo.
Este último passo implica em outro movimento que perpassa o poema, desta
vez sob o regime dos códigos sociais: o do desejo sexual na sociedade, que faz os
corpos se encontrarem, mas sempre sob determinadas leis e costumes sociais. Como já
dissemos, perpassa este poema uma atmosfera de alegria e liberdade sexual, típica da
contracultura dos anos 60 e 70, voltada para o riso e desprendida de complexos de culpa
ou noção de pecado.
82
sociedade e da vida. Se continuarmos neste caminho, o máximo que podemos dizer é
que o humor presente (de forma patente) no poema coloca todos os seus conteúdos (e
falamos de sexualidade e, conseqüentemente, cultura burguesa, de tradição literária
modernista e concretista, da língua ‘normal’) em cheque. Conclusão próxima à que
Roberto Schwarz chega em sua intrigante análise de “Pobre alimária” de Oswald de
Andrade, poeta que para compensar a ausência de densidade “deu a tudo um certo ar de
piada. É neste, e levada em conta a situação complexa a que responde, que se encontra a
verdade da poesia pau-brasil, um dos momentos altos da literatura brasileira.” (Schwarz,
1987, p. 28).
Quando lemos “até ela” com outras pessoas (ou não) geralmente rimos muito.
De que se ri? Ou melhor, qual o regime deste riso, com o que ele se conecta?
83
racionalmente explicados pela ciência. O riso, como já dissemos, é agilidade pura,
maleabilidade da vida contra os rigores dos mecanismos sistêmicos. A presença de
elementos chulos se escondendo e se insinuando espertamente (ao leitor é exigida
esperteza para se conectar – decifrar? – com estes elementos) na normalidade aparente
dos versos mostra a sexualidade sem culpa e desvinculada do grande Amor como uma
travessura contra a gravidade (seriedade, mas também peso, imobilidade) mecânica dos
códigos sociais, que procuram delimitá-la, pelo menos até o ponto de não se deixar
mencionar suas baixezas (num sentido tanto corporal quanto moral) em público. Sempre
rimos das travessuras que provocam pequenas(?) avarias nos sistemas enrijecidos.
Henri Bergson (1983, pp. 18-19) nos diz que estas pequenas avarias do humor
servem como correção de rota para os mecanismos sociais, punindo com o riso as
pessoas que deixam as regras se cristalizarem de tal forma que se tornam mecânicas
diante das exigências da vida em sociedade. Trata-se, portanto, de críticas corretivas (e
punitivas), essencialmente humanas, do enrijecimento dos códigos sociais: maquinaria
de adaptabilidade social, e não mais biológica como nos animais. É uma concepção de
humor pertinente ao poema de Leminski, pois a sexualidade e o amor a que se refere o
poema são exatamente os desejados pela Revolução Cultural, rapidamente absorvida e
recodificada pelo capitalismo. O poema de Leminski funcionaria então como uma
crítica à sexualidade burguesa tradicional, abrindo a possibilidade de uma outra postura
sexual. Mas o capitalismo somente descodifica as coisas para recodificá-las mais à
frente, impondo novos cerceamentos ao desejo: mecanismos científicos, psicológicos,
subjetivos, sociais: não se perverta, você adoecerá; é necessário um pouco de
tranqüilidade familiar para produzir bem, viver mais, regime monástico; só a falta
propicia o prazer. Neste sentido o poema de Leminski se abre à nova moral sexual
burguesa que poderia utilizar-se de seu texto no intuito de descodificar a moral
tradicional para recodificá-la depois. Mas também poderia se abrir a um uso que não
procura recodificar a sexualidade, já que permite uma leitura que não obstrui os fluxos
do desejo, deixando-os apenas fluir livre e alegremente: arriscamos dizer que o poema
suporta melhor esta última leitura que a primeira, constituindo-se numa máquina
suficientemente avariada para resistir à ressitematização de sua errância. O humor, aqui,
talvez possa levar a avaria corretiva ao ponto de se tornar uma errância que toma todo o
código sexual burguês (que sempre dependerá da má consciência — o Édipo freudiano,
ancorado no incesto, não deixa de ser um regime de desejo (auto)reprimido, uma culpa
com a qual o ego deve conviver asceticamente) como um mecanismo sem
maleabilidade. Nesta perspectiva, portanto, o erro a ser corrigido pelo humor não é
apenas um enrijecimento local de um certo ponto de vista mais conservador da
sociedade (de algum determinado grupo ou pessoa) sobre a sexualidade, mas toda a
visão burguesa do assunto.
84
transcendental (somente um ponto de vista metafísico excessivamente estático veria o
humor como erro, já que ele impele os sistemas à mudança), mas sim em seu sentido
positivo, como nós. Só que Bergson pára no uso corretivo do humor pelos sistemas
sociais, os quais utilizam-no de maneira exclusivamente repressora — trata-se de uma
repressão não física a uma certa inadequação às maleabilidades da vida e da sociedade.
Mas pode-se afirmar essa positividade para além da mobilidade relativa dos códigos
sociais, a ponto de, na perspectiva destes, o humor se tornar uma avaria e não mais uma
correção — ri-se de toda e qualquer recodificação, o humor torna-se errância, variância
intermitente que resiste a qualquer reabsorção sistêmica. Na perspectiva dessa linha de
fuga na qual se transforma o humor (e por onde vazam os sistemas), não haverá mais
negatividade, apenas intensidades a experimentar. Eis o limite (devir?) extremo ao qual
queremos levar o poema de Leminski, o da errância gratuita. O humor como movimento
que tende para o fora absoluto de qualquer sistema: riso-rizoma.
85
um raciocínio, e os voltamos contra quem os faz ou poderia fazê-los, de maneira que
tenha dito o que não queira dizer e que venha a cair na própria armadilha da
linguagem.” (Bergson, 1983, p. 59). Ora, “quem poderia ter dito” e sempre diz esta
metáfora é o grande sujeito da tradição literária.
11
E esta proliferação pode ser saudável e libertadora (linhas de fuga absolutas, anarquistas) ou
cancerígena e despótica (linhas de fuga recodificadoras, fascistas).
86
espécie de fuga absoluta (entropia) dos sistemas e das ressitematizações com
aspirações a permanência. Correção-errância, movimento puro de intensidades, moral
nômade à qual o humor ‘serviria’ — na verdade, construiria.
Mas não só o humor funciona como linha de entropia, mas também, como
vimos, o amor, a dor, a des-subjetivação, a a-significação e mesmo a tradição, encarada
como rede processual (caverna-cultura e textos-morcego) e não como edifício-presença.
Isto porque os textos de Leminski se colocam (suportam serem colocados), antes de
mais nada, sob a perspectiva do processo e da maquinaria, ao invés do sistema e da
estrutura. As invariâncias, quando surgem, emergem da variação e estão sempre sob
(auto)questionamento. Podemos dizer que os seus textos são constituídos pelo desejo da
multiplicidade entrópica (desejo de fazer rizoma). Esta multiplicidade gera e utiliza
estabilidades provisórias, ao contrário dos textos da Literatura, nos quais se deseja a
estabilidade que utiliza a entropia para variar e, no entanto (ou por isso mesmo),
permanecer, mesmo que múltipla, multiplicada (desejo de árvore, binarismo, hierarquia,
totalidade).
Saindo de “até ela” e partindo para outros poemas de Leminski, notamos que
eles têm, não raro, um andamento cômico que nos induz ao riso. Mais que irônico, o seu
tom é humorístico: “Ora se enunciará o que deveria ser, fingindo-se acreditar ser
87
precisamente o que é. Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada
vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam
ser.” (Bergson, 1983, p. 68). Mais à frente, Bergson compara o humorista ao cientista,
por causa de seu amor à exatidão, tornando-se menos sutil e retórico (menos literato?)
que o homem irônico:
Acentua-se o humor (...) descendo-se cada vez mais baixo no interior do mal que é,
para lhe notar as particularidades com a mais fria indiferença. Vários autores, entre os
quais Jean Paul, observaram que o humor gosta dos termos concretos, dos pormenores
técnicos, dos fatos rigorosos. Se nossa análise estiver certa não se trata de um feitio
casual do humor, mais nisso consiste a sua própria essência. O humorista é no caso um
moralista disfarçado em cientista, algo como um anatomista que só faça dissecação
para nos desagradar; e o humor, no sentido restrito que damos à palavra, é de fato uma
transposição do moral em científico. (Bergson, 1983, p 68).
MERDA E OURO
Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam padres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da pessoa amada.
(Leminski, 1987a, p. 30)
A sua poesia bem humorada não deve ser encarada como um apêndice
circunstancial e descartável de seu projeto estético, mas como uma das linhas
constitutivas de sua poesia ético-estética, que não intenta se separar das vivências
mundanas. Bergson já observara o quanto o cômico se move rente à superfície da vida,
em oposição à dramaticidade da emoção:
Assim, ao optar pelo humor, Leminski assume o risco de estar sempre próximo à vida (e
longe da alma), lidando com suas circunstancialidades, ou melhor, tornando tudo o que
normalmente se considera dramático (permanente, profundo e maleável) risível
(passageiro, superficial, rígido). O vantajoso da abordagem que Bergson faz do cômico
é sua relatividade, já que define algo como dramático ou cômico menos por uma
suposta essência ideal sua que pela maneira como é tratada por um ator, isto é, pela
maneira como este dota esse algo de certa mecanicidade (no caso do cômico) que
resistirá à sociabilidade, provocando o riso censor e corretivo. Ora, se há uma moral
nos textos poéticos de Leminski, trata-se, evidentemente de uma moral nômade e
12
Há outras leituras (mais sérias?) possíveis de se acrescentar ao poema, como a que aproximaria o fluxo
de fezes ao libidinal e ao de capital, relações muito exploradas pela psicanálise e aludidas no poema, no
qual notamos a presença de categorias sociais e do amor (libido), sem mencionar o título que liga
explicitamente os fluxos de dinheiro e fezes. Outra possibilidade a explorar seria a estética underground
deste poema deliberadamente desbocado e despudorado e que o vincularia à poesia marginal de 70.
89
anarquista, em oposição a qualquer sedentarismo ou aparelho de estado — que
procede sempre por consolidação de domínios.
90
DIVERSONAGENS SUSPEITAS
Não há um querer consciente que guiaria o versejar (“Não versejo porque eu quero”),
mas também não há uma vontade transcendental que guiaria a consciência (“versejo
quando converso/e converso por conversar.”) Depois o poema tenta (contrariando a falta
de objetivo do versejar, expressa nos primeiros quatro versos) encontrar teimosamente
um motivo para a prática poética. O que acha, no entanto, é somente a dispersão, a
contrariedade e a superficialidade:
91
Entre tantos jogos de palavras, há o que brinca com o verbo ser que também remete ao
Ser metafísico. O suposto eu lírico/ser de linguagem vem acompanhado dos atributos
“vinte”, “versa” e “super superfície”, que solapam, respectivamente, sua unidade,
identidade e profundidade. Estes jogos sucessivos de palavras-idéias, somados ao
sempre alegre maquinismo fonético, parecem fazer a razão perder as estribeiras,
dissolvendo-se na multiplicidade a-significativa. Nesta perda de si, a razão13 arrasta o
jogo de subjetividade e objetividade que a define:
É claro que, além do humor (ao seu lado e com ele), o poema alude à impossibilidade de
se localizar com certeza o verso (seus objetivos ou causas) que parece buscar
unicamente a mobilidade e o desfocamento (o avesso do inverso). Se há algum motivo
para a prática poética, ele se aproxima da efetivação provisória (confluência de fluxos)
da fuga, experimentação de estados intensivos: “susto de quem se perde / no exato lugar
onde está”.
Por fim, o poeta/poema pede, de forma ainda mais bem humorada (em uma,
entre tantas, paródia da Canção do Exílio), que nunca perca o jeito de perversor de
prosas (as quais remetem ao pensamento racional):
13
É claro que se trata de uma razão iluminista (burguesa). Está fora de questão a existência de uma Razão
acima de qualquer regime social. Este é um resultado de nossa leitura do poema de Leminski: o caráter de
coisa produzida da razão ocidental.
92
Por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.
***
93
MÁQUINAS LÍQUIDAS
(capitalismo e poesia)
Todos os poetas têm que se haver com a coletividade que, mais que os define,
os cerca. Esta relação com a sociedade não se dá antes ou depois do texto, mas no
momento de sua produção e de sua leitura (re-produção). É uma relação, portanto, que
não se situa fora do texto, mas nele próprio. No entanto, mais importante que estas
categorias espaciais e temporais (dentro e fora, antes e depois) é a funcionalidade do
texto. Quanto a ela, podemos afirmar que o texto poético opera diretamente nos códigos
da cultura, estando ligado, portanto, de forma direta ao regime de produção da
sociedade na qual é produzido e re-produzido (lido). Mas que regime de produção seria
este no qual o poema opera diretamente? Estamos falando da produção simbólica (nível
da ideologia) ou da produção material (nível da economia) de uma sociedade? Ou
devemos nos situar primeiramente no plano das idéias e mentalidades, fazendo
(posteriormente ou simultaneamente) a ponte dialética com a base material que define
‘realmente’ um regime de produção e, conseqüentemente, uma sociedade?
1
Usamos este termo de forma abrangente, de modo a abarcar toda a crítica que dá, de uma maneira ou de
outra, uma importância muito grande à relação da obra com a sociedade.
94
freqüentemente, o atributo de conteudistas. Obviamente este atributo diz, de forma
indireta, que os críticos-sociólogos não entendem, de fato, de literatura, objeto cujos
meandros e particularidades só poderiam ser realmente explorados por uma perspectiva
imanentista. Mas os formalistas também têm, em algum momento, que se haver com a
sociedade (ou, pelo menos, com o sujeito, outra totalidade extrínseca ao texto), pois, a
não ser que se conceba a obra como um objeto transcendental, é dela que o texto faz
parte. Como os críticos formalistas e os textos operam no plano simbólico, há, muitas
vezes, uma simpatia destes críticos por concepções de sociedade que dão primazia a este
plano. Neste aspecto, o estruturalismo é bem afortunado, pois se trata de uma
teoria/método que se aplica tanto à literatura quanto a antropologia, ciência social que
tradicionalmente se opõe ao marxismo por privilegiar o simbólico.
É claro que as coisas não são tão simples assim e, não raro, os críticos
conseguem ultrapassar, no seu exercício de leitura (e até de teorização), os limites
teóricos que os cercam (não devemos nos esquecer que a crítica é uma ficção) atingindo
um estado de verdadeira produção textual, cuja relação com o texto lido é muito menos
apreensiva e representativa que experimental e produtiva. E isto em críticos de
orientações e ‘estilos’ os mais variados, como Jakobson, Octavio Paz e Roberto
Schwarz, por exemplo.
95
Esta passagem é operada concretamente pelo desfazimento das alianças
localizadas de parentesco das sociedades primitivas (que definem uma variedade de
grupos, tribos, e clãs, muito móveis e indefinidos) e o estabelecimento de uma nova
aliança de todo o socius com um único déspota:
Esta mudança do socius, operada pela instauração da máquina despótica, muda também
a superfície de inscrição, que deixa de ser o corpo pleno da terra:
O corpo pleno como socius deixou de ser a terra, é agora o corpo do déspota, o
próprio déspota ou seu deus. As prescrições e os interditos que quase o impossibilitam
de agir, fazem dele um corpo sem órgãos. Ele é a única quase-causa, a origem e o
estuário do movimento aparente. Em vez de destacamentos móveis da cadeia
significante, há um objeto destacado que saltou para fora da cadeia; em vez de
extrações de fluxos, há convergência de todos os fluxos para um grande rio que
constitui o consumo do soberano: radical mudança de regime no fetiche ou no
símbolo. E o que conta não é a pessoa do soberano, nem sequer a sua função que pode
ser limitada. A máquina social é que se modificou profundamente: em vez da máquina
territorial há a “mega-máquina” de Estado, pirâmide funcional em cujo cume está o
déspota, motor imóvel, o aparelho burocrático na superfície lateral como órgãos de
transmissão, e os camponeses na base, como peças trabalhadoras. [grifos nossos]
(Desleuze e Guattari, 1995a, p. 201).
96
nos dois planos, material (forma do conteúdo) e simbólico (forma da expressão), sem
primazia de nenhum. Ela apenas supõe estes planos como não essenciais (não há uma
realidade essencialmente material e outra essencialmente simbólica, as diferenças são
funcionais, circunstanciais) e em relação de pressuposição recíproca (um plano
pressupõe, necessariamente, o outro). As mudanças de código e de produção de bens se
pressupõem mutuamente, assim como as mentalidades (ideologia?) e as relações de
trabalho. Embora genérica, a noção de máquina abstrata despótica nada tem de idealista,
uma vez que ela se constitui como uma espécie de desejo de centro (desejo de
idealismo?) e hierarquia que se instala (normalmente de fora, por conquista) no seio
socius primitivo, descodificando-o. Ela é ideal e metafísica na cabeça do déspota e de
seus súditos, mas se constitui de princípios abstratos e, no entanto, bem definidos de
funcionamento, que vão ser a base de todo Estado:
A passagem do Estado despótico para o capitalismo irá mudar, mais uma vez, a
superfície de inscrição do socius, que deixa de ser o corpo pleno do déspota e se torna o
corpo pleno do capital, o qual passa, por sua vez, não a sobrecodificar, mas a
descodificar todos os fluxos. O problema é que, desta vez, o corpo pleno não é uma
presença (o soberano ou deus), mas um fluxo e, como tal, menos que inscrever e
ordenar estruturalmente, o capital apenas produz e se reproduz. Ele é um descodificador
universal e abstrato, completamente descomprometido com as metafísicas das
sociedades tradicionais e atua menos por centralização dos fluxos que por controles
modulados. As constantes crises e rupturas (avarias) da máquina capitalista são, como
bem sabem os marxistas, não apenas uma conseqüência do seu regime de produção, mas
uma necessidade determinante sua. Ela só funciona desfuncionalizando
(descodificando) os fluxos sem parar:
98
No capitalismo, na verdade, não há mais códigos, mas uma axiomática de códigos que
se expande constantemente. Os códigos do regime de produção despótico fecham um
sistema, impondo um limite de descodificação que, se ultrapassado, faz o sistema perder
sua identidade, mas no capitalismo os limites são constantemente ampliados, as rupturas
não têm fim e sempre se encontra outras axiomáticas de códigos para substituir as
antigas e empurrar os limites do capital um pouco mais para fora, internalizando as
antigas margens no seu regime. O capitalismo esquizofreniza o tempo todo os fluxos,
deixa que eles se esquizofrenizem alucinadamente, mas somente para axiomatizá-los
(recodificá-los) depois. A esquizofrenia (descodificação geral dos fluxos/anarquismo
libidinal) talvez seja a única opção realmente revolucionária no interior do capitalismo
(no qual todos nos encontramos). Mas ele já não esquizofreniza o suficiente? Se
pensarmos em velocidade, é mais que suficiente, mas o que importa é como o faz:
Já nos referimos ao jogo que um sistema necessita fazer o tempo todo com sua entropia
para se manter em equilíbrio. Pode-se dizer que a esquizofrenia seria a entropia da qual
o capitalismo depende e que também é o seu temor: a ciência e as artes capitalistas, por
exemplo, esquizofrenizam sem parar e a sociedade burguesa deve sempre inventar
novas axiomáticas para reabsorver estas descodificações que são necessárias, mas
perigosamente revolucionárias: “porque é que ela vigia com tanto cuidado os seus
artistas e até os seus sábios, como se eles pudessem fazer correr fluxos perigosos, cheios
de potencialidades revolucionárias, enquanto não são recuperados ou absorvidos pelas
leis do mercado?” (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 256).
99
despótico, mas se filia ao fluxo de capital cuidando de boa parte de sua axiomática,
administrando-a: a burocracia torna-se tecnoburocracia. O capitalismo ainda precisa de
um agente territorializador, do Urstaat:
(...) a axiomática social das sociedades modernas existe entre dois pólos, e oscila
sempre entre um pólo e outro. Estas sociedades — nascidas da descodificação e da
desterritorialização, sobre as ruínas da máquina despótica — oscilam entre o Urstaat
que gostariam de ressuscitar como unidade sobrecodificante e reterritorializante e os
fluxos soltos que as reconduzem para um limiar absoluto. Recodificam com toda
força, com ditadura mundial, ditaduras locais e polícia todo-poderosa, enquanto
descodificam ou deixam descodificar quantidades fluentes dos seus capitais e das suas
populações. Elas encontram-se entre duas direções: arcaísmo e futurismo, neo-
arcaísmo e ex-futurismo, paranóia e esquizofrenia. Vacilam entre dois pólos: o signo
despótico paranóico, o signo significante do déspota que tentam reanimar como
unidade de código; e o signo-figura do esquizo como unidade de fluxos
descodificados, esquize, ponto-signo ou corte-fluxo. Estrangulam um, mas expandem-
se ou derramam-se pelo outro. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 271).
É claro que a poesia, entendida como produção no regime de signos de uma sociedade,
está envolvida com (e no) capitalismo, que modula (ou pelo menos tenta), em última
análise, toda a produção, inclusive a poética.
100
romantismo se constitui, de fato, numa descodificação revolucionária de fluxos,
traçando uma linha de fuga para fora da sociedade burguesa, provocando-lhe
vazamentos, mas apenas para reconstituir, mais à frente um novo Urstaat, seja ele a
nação ou um espaço-tempo mítico (natureza, Medievo), seja ele uma internalização
subjetiva: o sujeito, eu romântico. De fato, o indivíduo, isto é, a subjetividade burguesa
tem todas as prerrogativas de um Estado: limites claros; sobrecodificação dos fluxos
que confluem para a identidade; corpo pleno do ser, imagem e semelhança do deus
cristão — toda uma metafísica da unidade se configura com a subjetividade. O sujeito
cristão, por exemplo, confina-se num Urstaat internalizado, por deixar submeter todos
os fluxos que atravessam-no numa unidade sobrecodificante (alma), aprisionado em si
mesmo, cordeiro de deus: piedade e cinismo. Enquanto as pessoas se acreditavam
centradas em si, o capitalismo descodificava todas as tradições (políticas, artísticas,
científicas, religiosas, associativas) liberando os fluxos aprisionados nelas para absorvê-
los em sua axiomática.
Mas porque não descodificar o próprio sujeito? Como o capitalismo iria resistir
à tentação de surrupiar o poder do último déspota? Nietzsche já havia começado o
trabalho com seu ataque simultâneo ao romantismo e ao cristianismo. Bastava
redirecionar as forças revolucionárias e esquizofrênicas do super-homem, do Zaratustra
nietzschiano para uma descodificação mais modulável pelo capital, mais aceitável pela
sociedade burguesa. Na opinião de Deleuze e Guatari, esta absorção foi feita pela
psicanálise freudiana e sua construção do Édipo:
101
do Anti-Édipo parecem ser também as que Leminski quer realizar com sua poesia
errática. Durante todo este trabalho temos mostrado a fuga que Leminski provoca na
subjetividade (mesmo a esfacelada), na significação (muitas vezes personificada pela
razão) e no desejo de estruturação/centramento, vinculados ao regime de produção
capitalista. Talvez por serem contemporâneos (e terem ‘levado a sério’) das mesmas
máquinas de fuga (nômades) que foram os beatniks, hippies e revolucionários de 68,
eles possam ser aproximados (conectados) de maneira tão fácil. Leminski soube, como
pudemos verificar muitas vezes, que seu campo de atuação é a sociedade capitalista,
mesmo quando falava do sujeito, mesmo quando dizia ‘eu’ (pronome no qual ele talvez
nunca tenha acreditado).
102
deve ser axiomatizado, rebatido sobre esta representação (mesmo que múltipla,
esfacelada) do mito.
O caminho da poesia contra a razão cai, muitas vezes, nesta outra margem
mítica, da representação da unidade, no mistério das origens (o Mistério com maiúscula,
pólo oposto e complementar da Razão). O que procuramos mostrar na poesia de
Leminski (ou retirar dela?), é sua rebeldia contra a significação racional, sua rarefação
significante, mas não no sentido da nostalgia de um mistério divino e sim na direção do
enlouquecimento entrópico da razão: talvez haja magia nisto, mistério (nunca sabemos
exatamente o que se passa em seus poemas), mas como linha de fuga absoluta da
significação, loucura da linguagem. Tentamos flagrar a sua poesia como conhecimento,
como experimentação de linhas de intensidade, saltando para fora do abismo da
representação e da axiomática do capital; dos cerceamentos da razão burguesa, seja
ela utilitarista (no sentido de gerar lucro) ou representativa (no sentido de desvendar
arquétipos).
2
Separação no tempo: o estoque de conhecimento e tradições que definiriam uma identidade é
constantemente afetado pelas descodificações constantes do regime capitalista, que evolui o tempo todo
em suas técnicas e modalidades de consumo, exigindo que o sujeito ‘passe a borracha’ em sua identidade
anterior e desenvolva outra(s). No espaço: Baudelaire já havia percebido como as pessoas não passam de
pontos móveis nas ruas de uma grande cidade. Em outros espaços as máscaras mudam: em casa o sujeito
é uma pessoa íntima, no trabalho um profissional e assim por diante.
103
burguesa, não a denuncia explicitamente, salvo em alguns poemas muito raros (e que
talvez não sejam os seu melhores) como este:
de repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que eu te vi
o dia em que me viste
de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana
(Leminski, 1983, p. 84).
das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros
são
104
aquelas
em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?
(Leminski, 1983, p. 17).
Os mínimos ímpetos infinitos, linhas de fuga absolutas que ninguém sabe (ninguém
racionaliza). As que passam subitamente (ímpetos) sem que a consciência saiba
exatamente o que se passou. O seu procedimento é micro, molecular, rarefeito e quase
nunca se delineará classes sociais, sujeitos inteiros ou pensamentos acabados em suas
poesia, mas tão somente objetos parciais, segmentos flu(t,x)uantes, máquinas
desejantes. E, no entanto, sua operação textual é sempre na sociedade, atuando
diretamente nos fluxos parciais da sociedade capitalista e não na subjetividade (ou no
grupo social) entendida como realidade à priori, como unidade elementar. O molecular
não se identifica com o pequeno (não é o sujeito particular em relação ao conjunto
maior da sociedade) nem implica num ponto de vista particularista (não se trata de uma
visão de um grupo, de um gueto ou provinciana). Deleuze e Guattari procuram alertar
sobre os equívocos a respeito das linhas de segmentaridade moleculares, ou flexíveis:
Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga,
que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações
binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: aquilo que se
atribui a uma ‘evolução dos costumes’, aos jovens, às mulheres, aos loucos, etc.
(Deleuze e Guattari, 1996, p. 94).
É claro que estas operações textuais são condicionadas pelos limites dos
sistemas que nos cercam a todos. Mais amplamente são condicionadas pela sociedade
capitalista. Quando dizemos condicionadas, não queremos dizer que são reflexo do
capitalismo, mas que são cerceadas por seus limites, sempre muito fluidos e prontos a se
alargarem. Há mil olhos esperando um vazamento, não para estancá-lo, mas para
persegui-lo, estudá-lo e chegar a uma maneira de convertê-lo em fluxo de capital: o
capitalismo tem toda uma micropolítica da reabsorção (micropolícia?), e das mais
eficientes. Portanto, pode-se dizer que estes vazamentos entrópicos são, em princípio,
aliados (sempre suspeitos, mas aliados) do regime de produção capitalista. Os críticos
marxistas, neste ponto, têm razão em detestar este tipo de poesia: “tão banal quanto um
3
Estes três versos fazem parte do texto “Transmatéria contrasenso” que funciona como uma espécie de
prefácio de Distraídos venceremos.
106
comercial de TV, piruetas criativas”. Mas até que ponto a poesia mais prosaica e
‘densa’, diretamente crítica também não é previsível (e desejada) pela sociedade?
No Brasil há todo um lance de poder que vai desde o Conselho editorial das revistas,
da distribuição das edições na área do Rio de Janeiro. Das colunas, das influências.
Enfim, do poder. Esse poder, em termos de poesia brasileira, fez um empuxo da
vanguarda concreta paulista, por exemplo, como sendo formalismo alienado e
consagrou um determinado tipo de discurso na realidade drummondiano e na realidade
nada revolucionário, pelo contrário, do sistema. Esse movimento então, que é
encarnado pelos CPCs, pela figura de Ferreira Gullar, pela figura de Thiago de Mello,
eles canonizam um tipo de poesia que é uma poesia discursiva, uma poesia retórica,
uma poesia demagógica e no fundo, cristã. Apelativa, sentimentalóide, quando se
pretende contundente politicamente e enquanto denunciando as malezas sociais aqui e
ali. Essa poesia vai conservando o bom velho discurso no qual estão encarnados os
princípios todos do sistema (...). (Leminski, 1994c, p. 30).
Todo criador opera sempre limitado pelas possibilidades do regime de produção ao qual
pertence e tanto a poesia mais retórica que tende a operar com a significância e os
grandes conjuntos, sendo ela mesma um deles (a grande obra), quanto a poesia que
tende para os processos moleculares4 da sociedade são esperadas, desejadas e
(per)seguidas por agentes de absorção que tentam submetê-las à axiomática do fluxo de
capital. O os acadêmicos são, senão agentes ordenadores que vão filtrar os autores e
seus textos, produzindo leituras preparatórias para editoras, indústria de concursos
(inclusive vestibulares), jornalistas, produtores de entretenimento e publicitários, que
tornam os fluxos da cultura peças de um estoque, prontas para integrarem a maquinaria
do capital e gerar lucro5? A academia é uma instituição, um grande conjunto, mas
4
Será que esta oposição repete a de Haroldo de Campos, poesia da expressão (grandes conjuntos) e da
estruturação (molecular)? De certa forma, sim, pois uma das características da poesia da estruturação é a
limitação do material com que lida e a operação extremamente minuciosa com este material, o que pode
se parecer muito com o procedimento de experimentação de intensidades puras, depuradas de seus
supostos agentes causadores (grandes conjuntos), de que temos falado. O problema é que o concretismo
pareceu tentado (isto nos anos heróicos) a transformar estas operações minuciosas e rizomáticas em
estruturas maiores, matrizes de procedimentos moleculares que são instâncias de poder, pois estabelecem
de antemão o que é lícito e o que não é em termos de operação textual. Este é um risco de toda vanguarda:
de máquina de guerrilha passar a à máquina de guerra, aparelho militar de Estado. O concretismo sempre
caminhou no limiar destas duas tendências. Uma poesia que tende para o molecular geralmente resiste a
uma rígida estruturação, ou seja, não deseja se institucionalizar. Por isto renega, além da representação
subjetiva a estruturação objetiva que talvez não passe de uma projeção da representação nas estruturas,
também dotadas de profundidade e verdade, portanto passíveis de uma abordagem que lhe desvende suas
essências. Toda estrutura suporta (pede?) uma metafísica.
5
Outro procedimento que se espera da academia é a produção de leituras representativas ou estruturais
que, de certa forma, acomodam as coisas na subjetividade expressada, na objetividade estruturada, ou
numa síntese de ambas. Assim como Deleuze e Guattari acusam a nostalgia do mito e do Urstaat no
despedaçado sujeito freudiano, podemos acusar nessas leituras uma nostalgia do déspota e seu Estado
sobrecodificador, ou interiorizada no sujeito moderno que lamenta sua fragmentação, ou projetada nas
estruturas que desejam a Estrutura e seu centro. Esta nostalgia de certa forma resiste à descodificação
contínua promovida pelo capital (em função do lucro) mas constitui, pela via da oposição, o pólo da
unidade perdida a ser lamentada, de que o capitalismo necessita para sua axiomática, impedindo uma
107
também tem suas micropolíticas, pois toda a produção (artística ou científica) com a
qual lida é altamente descodificadora, fazendo vazar o tempo todo os fluxos na
sociedade capitalista. Muitas vezes, ela constitui a ponte entre esta sociedade e seus
sábios esquizofrênicos: por enquanto deixem que eles pesquisem e delirem a vontade (a
hora da esquizofrenia descodificada), no momento certo os seus fluxos descodificados
serão absorvidos pela axiomática do capital, a hora do mercado e da axiomática
recodificadora.
O que se deve tentar é fugir cada vez mais dessa axiomática, não produzindo
sempre mais rápido e gerando mais novidade:
não resta dúvida q esse culto do novo em poesia de vanguarda está ligado ao “novo”
que a publicidade usa... novo Omo, novo Rinso... novo... novo... mais novo... novo pra
que ? ou o novo não precisa se justificar ? novo é novo, e tá acabado ? claro, existe
uma preocupação com novidade em qualquer artista de verdade. com novidade, com
originalidade, com voz própria. mas o novo custe o que custar me parece um mito,
uma alienação. alienação é uma coisa que subsiste depois que perdeu seu uso. sua
finalidade. seu emprego social. (Leminski e Bonvicino, 1999, pp. 110-111).
Mas fugir, como Leminski parecia saber bem, se perguntado “pra quê?”, com que
finalidade? Será que nossa fuga é útil para nos desatarmos mais e mais da axiomática do
fluxo do capital? Será que somos forte o suficiente para, depois da tentativa de
reabsorção, nos proporcionar ainda um pouco de a-significância e a-subjetividade
proliferante? E estas linhas de fuga não serão cancerígenas gerando uma recodificação
fascista pior que a capitalista? Elas vão se precipitar no caos absoluto, morte (é preciso
preservar também um pouco de significância e subjetivação)? É sempre um risco fazer
vazar os sistemas e os critérios de orientação são sempre circunstanciais: os textos de
fuga são sempre textos-morcego, livros-rizoma ou o que Barthes chamaria de escritura.
A moral destes textos é sempre nômade, produzida, estética. Mas pode ser que se
consiga. E o que se consegue com isso, o que se efetiva quando conseguimos? Deleuze
e Guattari (1996, p. 27) costumam chamar a efetivação de uma fuga bem sucedida de
Corpo sem Órgãos:
O CsO [Corpo sem Órgãos] é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é
contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de
experimentação, seu meio associado. O ovo é um meio de intensidade pura, o spatium
e não a extensio, a intensidade Zero como princípio de produção.
descodificação generalizada que o levaria à entropia sistêmica (esquizofrenia), na qual o fluxo de capital
não conseguiria mais se sobrepor, isto é, não modularia mais o outros fluxos do desejo segundo seu
regime.
108
Muito semelhante ao que se consegue com um bom poema, como nos diz neste texto
criativo e pensativo de Octavio Paz sobre os obsessivos jogos com as palavras, que
perseguem e são perseguidos pelos poetas:
Pero esos juegos acaban por cansar. Y entonces no queda sino el Gran Recurso: de una
manotada aplastas seis o siete —o diez o mil millones— y con esa masa blanda haces
una bola, que dejas a la intemperie hasta que se endurezca y brille como una partícula
de astro. Una vez que esté bien fría, arrójala con fuerza contra esos ojos fijos que te
contemplan desde que naciste. Si tienes tino, fuerza y suerte, quizá destroces algo,
quizá le rompas la cara al mundo, quizá tu proyectil estalle contra al muro y le
arranque unas breves chispas que iluminen un instante el silencio6. (Paz, 1992, pp. 23-
24).
É necessário tino, força e sorte para talvez conseguir. Corpo sem Órgãos, ao que parece,
também presente no tiro certo (o poema?) de que nos fala o texto a seguir, misto de
sincopado, zen, histórico, mítico e despudorado:
Que flecha é aquela no calcanhar daquilo? Picatacapau! Pela pena é persa, pela
precisão do tiro — um mestre. Ora os mestres persas são sempre velhos. E mestre,
persa e velho só pode ser Artaxerxes ou um irmão, ou um amigo, ou discípulo ou
então simplesmente alguém que passava e atirou por despautério num momento
gaudério de distração. Flecha se atira em movimento, ninguém está parado. Nem o
cavalo, nem o cavaleiro; nem a mente, nem a mão; nem o arco, nem a flecha, e o alvo
o vento leva: tiro certo7. (Leminski, 1989, p. 51).
Estas efetivações positivas dos fluxos (Corpos sem órgãos) se dão sempre no plano
molecular, micropolítico, por onde os fluxos se descodificam e as territorialidades se
desfazem. Tentamos ler os poemas de Leminski como buscas, tentativas de construções
de Corpos sem Órgãos (estrela a solta), conjunções de linhas de fuga, fluxos que vazam
dos ordenamentos sistêmicos e escapam inclusive dos agentes de reabsorção capitalistas
(e como leitores especializados, explicadores, nós encarnamos um ou vários destes
agentes, sendo necessário tentar escapar de nós mesmos). Mas para fazer este tipo de
leitura é preciso, de alguma maneira, tentar construir também para nós um Corpo sem
Órgãos com as nossas linhas e com as de Leminski: as leituras como tentativas de
conjunção de fluxos, de experimentação e efetivação das linhas em fuga, errâncias
positivas. Não é possível apenas conhecer a multiplicidade, dizendo: lá está ela, seus
procedimentos são esses, suas formas são essas. Ela não constitui um objeto, nem
mesmo uma realidade à parte. É uma perspectiva (e, no entanto, é o real), um modo de
proceder e se quisermos encontrá-la é preciso fazê-la, fazer nela, abandonar
6
Resolvemos deixar este trecho de ¿Aguila o sol? em espanhol, pois é um texto criativo (embora portador
de uma reflexão bastante densa sobre o exercício poético) cuja tradução talvez desvirtue em demasia.
7
Parte deste trecho do Catatau é a epígrafe de Distraídos Venceremos.
109
subjetividades e objetividades e experimentar suas linhas sempre em fuga, produzir(-se)
com ela, entranhar-se nela, estranhar-se:
110
UM METRO DE GRITO
111
É por esta fenda nas estruturalidades e gestalts, aberta, no plano da reflexão poética,
pelos concretos, que Leminski vai se intrometer com toda a sua maquinaria errática.
112
da arte/poesia, da vida e da tradição. Vejamos o poema a seguir, no qual o capital
aparece de modo, digamos, mais patente:
UM METRO DE GRITO
(MÁQUINAS LÍQUIDAS)
Leiam-se índices,
mil olhos de lince,
entre meus filmes,
leonardos da vinci.
Abri-vos, arcas, arquivos,
súmulas de equívocos,
fechados,
para que servem os livros?
Livros de vidro,
discos, issos, aquilos,
coisas que eu vendo a metro,
eles me compram aos quilos.
Líquidas lâminas,
linhas paralelas,
quanto me dão
por minhas idéias?
(Leminski, 1987a, p. 37).
Há, neste poema, toda uma circunstancialidade de quem vive às voltas com a
tradição cultural, toda uma vivência erudita de um criador de textos em meio às malhas
da cultura, “um eco anti anti anti antigo” que, no entanto deve ser posto em movimento
para servir à vida: “fechados / para que servem os livros?” A ligação de “Um metro de
grito” com “Distâncias mínimas” é imediata e embora Leminski não se denomine um
poeta de obsessões, a tradição literária é uma recorrência em seus textos, seja como
limite, seja como possibilidade de rompê-lo. Há também a perspectiva do detalhe,
algumas linhas intensivas percorridas pelo texto e que remetem à visão atenta de quem
perscruta a tradição como caçador: mil olhos de lince. O texto-morcego se alimenta do
sangue da tradição para viver, para re-viver a tradição numa outra circunstância (numa
outra vida) assim como o olho de lince do poeta (ou do texto?) procura atentamente sua
caça em meio à selva de signos. A visão aqui tem algo de construtora, pois a presa, mais
que encontrada e capturada deve ser a construção de uma perspectiva que resulte na
captura. A leitura que se faz da tradição é sempre produtiva (de re-produção), pois o que
ela nos lega são apenas ecos, índices: “leiam-se índices”. Este esforço implica na
concentração máxima numa tarefa sempre indefinida e que por isso mesmo exige uma
extrema precisão, um pouco de sorte e ainda a capacidade de se distrair (esquecer-se),
deixando-se levar nos fluxos, uma operação que os românticos gostavam de chamar de
113
inspiração. O mundo dos signos (nunca separado do mundo da vida) costuma esgotar e
deturpar quem se dispõe a correr seus riscos, como podemos perceber neste outro texto:
A segunda estrofe de “Um metro de grito” pode ser lida como uma resposta à
pergunta que finaliza a primeira: fechados / para que servem os livros? Pergunta que,
além de evidenciar a necessidade de re-produção e re-utilização noutros termos da
tradição, remete imediatamente a outra: e abertos, para que servem? Se o texto
questiona a validade de uma tradição morta, não recriada (na qual não se constroem
caças e presas?), obviamente o movimento vital (a abertura) que impõe a esta velha
senhora (sempre um pouco en-trevada, diga-se de passagem) deve servir para alguma
coisa:
Livros de vidro,
discos, issos, aquilos,
coisas que eu vendo a metro,
eles me compram aos quilos.
8
Notemos o duplo sentido de riscos, que rima com rabiscos, indicando uma dificuldade de decifração, já
que o rabisco é uma multiplicidade de traços (riscos) desordenados. Este espaço meio caótico (ou pelo
menos o ponto de vista que o constrói assim) é um constante risco/perigo à mente, ao sujeito, já que lhe
abre a possibilidade do estranhamento, da perversão (desvio da regra): a mente torta de malícias. O quarto
verso (como me deixastes os olhos piscos) é excessivamente longo em relação aos outros, além de
apresentar duas sílabas parecidas (como me) em seqüência, numa quase cacofonia, e uma saturação de
sibilantes. Esta distribuição fonética funciona como uma obstrução à leitura e um incômodo aos ouvidos,
uma tortuosidade para a mente (torta de malícias): ciscos nos olhos, ciscos na alma.
114
Os artistas estão inevitavelmente no jogo do mercado e toda esta tradição em
uso, operada pelo poeta, enfim, os seus textos são “coisas que eu vendo”, portanto
dotadas de valor de troca: a descodificação esquizofrênica da poesia e sua tentativa de
construir linhas de fuga, fazendo vazar os sistemas é sempre vigiada, seguida e
reabsorvida pela axiomática do fluxo de capital, vendida. O utilitarismo esquizofrênico
(valor de uso da poesia) se torna em utilitarismo capitalista (valor de troca). Mas há
sempre uma dissonância residual nestas operações de reabsorção capitalista: estes
descompassos os marxistas chamam de contradições, mas que talvez, neste trabalho
microsegmentar que nos propomos, seja melhor chamá-los de vazamentos, sempre
múltiplos, ou melhor, multidirecionais, enquanto as contradições são sempre
polarizadas, dualistas.
O que destoa, o que vaza nesta operação de venda, aparece no poema através
da diferença de medida: enquanto o poeta lida com metros, o mercado lida com quilos.
E ‘comprar aos quilos’ é uma expressão popular que significa comprar muito e sem
cuidado, no atacado, o que remete ao consumismo desenfreado e sem filtro da burguesia
em sua relação com o mercado cultural (e Leminski foi, nas décadas de 70 e 80, uma
espécie de poeta cult, muito consumido, ou pelo menos conhecido de ‘ver falar’, ao que
parece, por universitários de classe média); enquanto “vendo a metro”9 refere-se ao que
é medido, ao que se faz com cuidado, de maneira precisa e meticulosa, remetendo,
talvez, à produção poética de Leminski: micrométrica? Esta diferença se acentua
quando lembramos que as preocupações do poeta em relação a seu texto dizem respeito
ao ritmo, não só dos versos, mas quase que podemos dizer que da tradição, dos códigos,
da multiplicidade, da vida: cronomicrometragem do acaso, no dizer do plano piloto
concretista.
9
E “vendo”, aqui, pode se referir à produção poética (o verbo ‘vendar’ como maneira de produzir), à
perspectiva diante da poesia e do real (o verbo ‘ver’ como perspectiva) ou à maneira de relação com o
receptor/consumidor (verbo vender). Mais à frente trataremos deste triplo sentido de “vendo”.
115
dinheiro, refazendo as territorialidades que estes desfazem. Mas alguns poetas que
gostam de se transmutar em textos-morcego parecem não operar com contrapesos ou
consolidação estatística de territórios:
LÁPIDE 2
epitáfio para a alma
viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte
E arriscam tudo a cada lance como o lince em seu ataque fulminante: mestre em
desastres.
Mais que duplo, o sentido é triplo, pois “vendo” também é flexão do verbo
vendar. O texto oculta algo nas entrelinhas? Uma verdade mais profunda que a das leis
do mercado que se disfarça, emaranhando-se ao fluxo de capital? Parece realmente um
jogo de gato e rato entre os dois fluxos, duas descodificações, uma interferindo na outra,
tentando enganar-se mutuamente. Mas se há verdade por trás do ocultamento, esta não é
10
Ao lado do humor, há uma atmosfera trágica neste e em muitos outros poemas de Leminski. Tragédia
que não tem nada a ver com uma saudade da unidade impossível ou perdida, mas, como o humor, trata-se
de um sentido nômade do desastre. Os esquizofrênicos sofrem muito o tempo todo, talvez com mais
intensidade que os sedentários (paranóicos), mas seu sofrimento nada têm de nostalgia doentia. Nietzsche
nos fala de um niilismo construtivo ou criador, trágico à grega (de uma Grécia pré-socrática), nascido do
sofrimento intenso e criativo do homem “demasiadamente humano”. Parece que Leminski sofria desse
mal saudável.
116
dotada, nem de profundidade, nem de densidade, mas trata-se de “líquidas lâminas,
linhas paralelas”.
Depois que o nômade se despe da ilusão da paz no Urstaat, depois que percebe
a farsa que quer fazê-lo acreditar que a pluralidade dos textos, das fábulas, oculta a
verdade profunda da permanência do mito, ele se pergunta:
Para que serve um enredo? Para onde vai uma história? Donde vêm esses
seres fluidos, essas máscaras que significam máscaras? Era uma vez. Assim seja.
Estava escrito. Amém. O mito é fundado no rito, a palavra brota do gesto, ramos de
loureiro do corpo de Dafne. A fábula já está na cerimônia, o mito celebra o rito
(Leminski, 1998, p. 27).
O mito se constitui do rito, sua perspectiva molecular que o funda, mas que é também
sua entropia. Linhas do (g)rito sempre em fuga a serem seguidas pelo nômade.
Seguindo os fluxos anárquicos das fábulas(-rito) que deveriam apenas ordenar a vida
(fábulas-mito), ele começa a perceber de outro modo, a se dizer num outro, mas este
outro não é sua completude ou sua essência:
11
No caso do poema, de linhas paralelas: “Líquidas lâminas / linhas paralelas / quanto me dão / por
minhas idéias?”. Será que este paralelismo remete à impossibilidade de encontro das duas linhas, a do
capital e a da poesia? À impossibilidade da confluência de ambas, ou melhor, da captura da segunda pela
primeira? Ou, por outro lado, as próprias “idéias líquidas paralelas” são paralelas entre si,
impossibilidades racionais? O paralelismo, a liquidez, a lâmina são, por si só perturbadores, seja pelo
desconforto mente ou ao corpo (numa perspectiva bem dualista). A união paradoxal destes desconfortos,
por si só uma impossibilidade, leva a perturbação ao máximo: são idéias desnorteantes, não domáveis,
não moduláveis às idéias burguesas e ao fluxo de capital?
117
A tudo Narciso está atento [olhos de lince?], ao sonho que faz de uma cabeça
e peitos de mulher, asas de pássaro e corpo de leão, uma esfinge e de um tronco de
cavalo e torso de homem, um centauro, o ser, esse sonho das metamorfoses.
Esta noite, nada permanece em seu ser, os seres padecem as dores do parto
das mais improváveis alterações.
Não há ser, tudo é mudança, ecos, revérberos, câmbios perpétuos.
Tudo pode se transmutar em tudo. (Leminski, 1998, p. 19).
Não lhe resta alternativas e, mesmo que restasse, ele só desejaria fazer rizoma com o
mundo, seguir linhas cada vez mais descodificadas, experimentar estados intensivos,
afirmar sua única metafísica possível, a multiplicidade:
Que mais existe senão afirmar a multiplicidade do real, a igual probabilidade dos
eventos impossíveis, a eterna troca de tudo em tudo, a única realidade absoluta? Seres
se traduzem, tudo pode ser metáfora de alguma coisa ou de coisa alguma, tudo
irremediavelmente metamorfose. (Leminski, 1998, p. 25).
Depois de montar uma máquina dessas, líquida, (des)medidora de g-ritos, feita de linhas
de intensidade prontas para vazar de qualquer controle modulado, sabendo de todos os
riscos (de reabsorção, de precipitação brusca no caos, de retomada metafísica) dos quais
nunca se safa inteiramente, nunca se sabe se realmente ganhou ou perdeu, mesmo assim
só resta ao nômade que viaja sem sair do lugar propor um novo jogo, uma nova disputa
a cada lance, máquina contra máquina, liquidez contra liquidez:
quanto me dão
por minhas idéias?
118
FRAGMENTO 5: nós
1
Este ‘tu’ refere-se a Alcmeno Bastos que fez interessantes observações, no intuito de “dialogar” com o
texto. Como diz a Estética da Recepção, a obra é a totalidade de suas leituras. Tomei, então, a liberdade
de responder a estas observações neste fragmento, tornando o diálogo parte efetiva da obra. Como os
fragmentos se propõem a ser lugares críticos e autocríticos deste trabalho, surgindo à medida que os
problemas teóricos vão aparecendo, não creio que seja uma incoerência minha em relação à proposta
inicial: “não precisamos saber pra onde vamos”.
2
Esta introdução da dissertação, feita para acalmar os espíritos acadêmicos com algumas explicações,
advertências e justificativas iniciais, eu cortei desta versão, por achar desnecessária, mas a pergunta
continua valendo.
119
As próprias noções de uso e instrumento talvez já definam este “outro uso”, pois
implicam num deslocamento das noções de teoria de apoio ou de referencial teórico,
da posição de centralidades ordenadoras para a disposição (no sentido de
disponibilidade e possibilidade) de linearidades conectáveis, ou seja, transformar os
pontos e as coordenadas (que são as teorias de apoio, as suas estruturas) em linhas
(que são os instrumentos, as máquinas, pois umas se ligam às outras ‘em linha’) com
as quais se mesclaria as desta dissertação (outra máquina). Como esta mesclagem
não segue parâmetros muito fixos (já que as centralidades se desfiam num
emaranhado de linhas), o rigor passa a ser circunstancial, quer dizer, negociado a
cada passo da exploração, a cada confluência de linhas, e as balizas são sempre
provisórias, embora devam existir, pois constituem efetivações (ou pontos provisórios,
noção que é um deslocamento do conceito de finalidade e até de estrutura) do tecido
em que se torna o texto da dissertação, além de serem distanciamentos relativos do
movimento textual (momentos de parada?) os quais se tornam lugares (auto)críticos
que possibilitam mudanças ou correções de rumo.
Mas agora percebo o que já se insinuava de forma latente para mim: que em
muitos lugares a dissertação não é ‘deliberadamente tateante’ e passa à
contundência. Isto cria uma certa dissonância de tom, uma audácia incisiva que se
contrapõe à ‘audácia do tateio e da precariedade’, de maneira que você tem razão em
apontar cuidados excessivos ao lado de riscos talvez demasiados. Mas (já construindo
uma justificativa ao trabalho que é posterior à sua tecitura), esta dissonância não seria
também um funcionamento deste rigor a que me proponho? Na ausência de
referenciais muito seguros, o texto-morcego não teria momentos (ou lugares?) de
hesitação, perscrutação, parada, reflexão e momentos de contundência, ação, fuga,
delírio?
***
120
Tu: A recusa das categorias “bem estabelecidas” e dicotomizadas — lirismo
subjetivo x antilira objetiva, por exemplo — parece-me enfraquecida pela sua
substituição por outras, como processual x sistêmico, máquina x estrutura (p. 47 –
descobrir não “o que está no fundo do poemas”, mas “descobrir como funciona”),
sistematização x sistema. A recusa das categorias “bem estabelecidas”, por julgar o
autor da dissertação não serem elas satisfatórias para dar conta da poesia de
Leminski, não representa, em última instância, sua negação definitiva, mas ainda
assim uma avaliação neutra talvez conclua haver-se tratado de uma simples “troca de
guarda”.
121
A questão passa a ser, então, se estas categorias duais cumprem a sua
função de ultrapassar as que se limitam ao interior de certo sistema já bem codificado.
E, mais ainda, se elas são úteis para nós, isto é, se conseguem resolver
provisoriamente alguns problemas que nos afligem, sejam eles teóricos ou de vida
(outra dualidade?), pois a simples ultrapassagem de um sistema talvez caia no
problema do novo pelo novo, do jogo pelo jogo: uma gratuidade perigosamente
próxima ao movimento das modas consumidas avidamente pela burguesia: o jogo
puramente gratuito, por mais longe que vá, ainda é um lugar no sistema, facilmente
absorvido pelo fluxo de capital e sua capacidade, quase ilimitada, de criar nichos
(lugares) para todos os ‘gostos’. Uma falsa gratuidade, portanto, pois
instrumentalizada pelo capital.
***
122
Tu: O trabalho, no todo, cumpre o prometido, no que diz respeito ao
acompanhamento da obra (os poemas de Leminski) em seu funcionamento, como
processo, e não em sua expressividade ou em sua estruturalidade. Cabe, no entanto,
uma pergunta: tal procedimento não depende por demais das habilidades do analista,
ele mesmo potencialmente criador? Todas as descobertas feitas no texto de Leminski,
sobretudo no que diz respeito ao plano fônico estariam ao alcance de um outro
analista não dotado da propensão a construir seu texto crítico de modo análogo ao do
poeta? Na p. 42, por exemplo, haveria um lamento do analista ao constatar que
Leminski, às vezes (felizmente?), “é claro demais e frustra o decifrador que procura o
fundo, o por trás do texto”? É um método, sim, buscado no desconstrucionismo pós-
estruturalista (a propósito, por que nenhuma referência a Derrida e sua escritura?),
mas confesso temer que o trabalho analítico repouse em demasia na sedução que o
desempenho do analista possa suscitar.
Eu: Creio que esta questão passa, novamente, pelo problema do rigor teórico
ou, pelo menos, do rigor dos procedimentos críticos, já que a sedução poderia
acobertar (embora não necessariamente) uma falta de consistência metodológica,
levando o leitor mais ao deleite que à reflexão. É um problema que envolve o prazer
que o texto crítico deve ou não proporcionar. Assim, admite-se normalmente que o
texto proporcione prazer, desde que, primariamente, ele leve à reflexão, o que só é
possível com um mínimo de rigor teórico. O analista, como sedutor, tomaria o lugar do
poeta, cuja sedução é concedida (quase que exigida) pela sociedade, que o aproxima
do princípio do prazer: os deuses do poeta são Dionísio, Afrodite e Orfeu. Ao crítico
restaria o princípio da realidade ou, em termos nietzschianos, a tendência apolínea:
Apolo, Atenas, Hermes. Como não sou freudiano e não acredito em sublimação, gosto
de me perguntar sempre se o prazer ou, em termos mais amplos, o desejo, não estaria
presente, inclusive numa crítica mais apolínea, supostamente mais racional
(sublimadora) e menos sedutora que a tendência dionisíaca, embriagadora (sedutora)
dos leitores, obstruindo-lhes a reflexão.
123
Quanto às potencialidades do analista como criador, estas podem também
estar presentes numa crítica como a de Cândido, Schwarz e Bosi, para continuarmos
a exemplificação com a mesma linha crítica: a de tendência sociológica. Roberto
Schwarz não se torna um criador (ou re-criador?), quase tão bom quanto Machado,
em Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo, a despeito da
inegável e assumida filiação ao método sociológico? Tenho estes três, e isto não deixa
de ser um elogio, na conta de excelentes ficcionistas.
A partir desta opção, outra pergunta nos surge: até que ponto uma crítica com
estas características rompe o limite entre texto crítico e texto literário? Pois, a despeito
da ficcionalidade da crítica sociológica, este limite é claramente mantido, pois o
universo crítico, em relação ao literário, é construído, aí, de modo oposto nos
procedimentos e complementar na sua finalidade de mediação e esclarecimento da
leitura.
Talvez a alternativa mais coerente com minha opção seja a de Barthes e seu
conceito de escritura, ou ainda, a multiplicidade de Deleuze e Guatarri. O que implica
no rompimento, tanto com a categoria de literatura quanto com a de crítica, restando,
agora, somente a multiplicidade textual, a textualidade, ou ainda, a escritura
barthesiana. Nesta perspectiva você tem razão em questionar se “tal procedimento
não depende por demais das habilidades do analista, ele mesmo potencialmente
criador?” Mas também poderíamos perguntar aos poetas e prosadores que optam pelo
rompimento dos limites entre crítica e literatura (e desde Mallarmé e Valéry esta
questão pode ser posta de forma contundente), se sua atividade criadora não entra
demais no campo da crítica, dependendo de competências tradicionalmente deixadas
aos críticos: rigor reflexivo, capacidade analítica, construção e justificação de juízos.
Na verdade, a multiplicidade textual abole ou torna muito fluido o limite entre crítica e
literatura, o que resulta na ineficácia destes conceitos para quem (criadores ou
críticos: ambos agora produtores textuais ou, no dizer de Barthes, escritores) opta pela
produção na/da multiplicidade: e creio que Leminski esteja entre eles.
Assim posta a questão, acredito que o seu temor de “que o trabalho analítico
repouse em demasia na sedução que o desempenho do analista possa suscitar”, seja
justificado, pois remete ao temor sobre a ausência de necessidade (perda de função)
124
da crítica que, sem dúvida, é questionada pelas teorias ditas pós-estruturalistas e por
esta dissertação — na verdade, minada pelo rompimento de seus limites com a
criação literária. A sedução que o texto crítico e o texto literário exercem não se
diferencia substancialmente, o que aproxima (perigosamente, para um e para outro,
enquanto gêneros textuais) a ficcionalidade de ambos. É uma opção que escolhi e
aceito os seus riscos, mesmo que estes impliquem numa dissolução da atividade
crítica como a entendemos normalmente. E sem saber aonde levará esta dissolução.
***
***
126
semântica: o seu efeito é de multiplicação do sentido, como a metáfora e a metonímia.
Só que, ao contrário destas figuras, a polissemia não decorre da construção de uma
proximidade semântica, mas de uma casualidade morfológica. Quase poderíamos
dizer que a insistência no anagrama desvela uma propensão trocadilhesca na poesia
de Leminski.
É aí que este pode ser visto como um poeta falho (assim como a crítica que
se contenta em evidenciar estes aspectos anagramáticos), pois este procedimento não
parte da desconstrução de uma sintaxe (no sentido de construção codificada) normal
para a reconstrução de outra, não usual — como a metáfora e a metonímia o fazem. O
anagrama faz, sem dúvida, proliferar os sentidos, mas de maneira um tanto casual,
sem construir outra sintaxe, mesmo que muito tênue, no lugar da usual. E aí, o poeta
cai no risco da gratuidade pura, aproximando-se dos dadaístas: entropia máxima da
linguagem. Mas esta recusa em não construir outra ordem não seria um risco coerente
com a proposta de poesia, entrópica, de Leminski? Assim, as casualidades fônicas e
morfológicas são muito exploradas em sua obra (traços recorrentes, característica,
invariância), mas a gratuidade destes procedimentos resulta, às vezes, em
aproximações imprevisíveis (desvio, variância), quase que grotescas, pela ausência de
sintaxe ordenadora: realmente há, aqui, uma certa facilitação, tanto ao poeta, quanto
ao analista que irá percorrer estas linhas a-sintáticas.
127
(por q tanta literatura ?
***
128
o classicismo implícito na coisa concreta q leva a eliminar o presente, as menções
explícitas ao atual, ao circunstancial, ao efêmero... uma poesia que já nasceu
universal, geral, genérica, nasceu morta... (Leminski e Bonvicino, 1999, p 117).
Procurei ler o poema “Ais ou menos” como a realização poética de uma fuga
das profundezas, no caso, do sujeito. Assim o “abismo onde me encontro”, tem toda
uma conotação de profundidade subjetiva que aprisiona os fluxos do desejo, com suas
leis (rigores), sua moral subjetiva (burguesa?), análogas à lei gravitacional que forma e
aprisiona a pedra. O esfalfamento da pedra e sua passagem à estrela implicam na
libertação dos rigores do sujeito, da poesia de expressão: é o “salto ao hiato onde me
falto”. Assim também em outros poemas, onde procurei ler uma fuga da
estruturalidade poética.
Não quero dizer que Leminski não se utilize dos procedimentos, tanto da
poesia da expressão quanto da estruturação. Na verdade, é do interior dos conflitos e
confluências de ambas que ele parte ou, em outros termos, é do interior deste
sistemas e de suas possibilidades que ele constrói sua poesia, utilizando-se dos
recursos de ambas. Assim, seria bem possível resolver o problema com o conceito de
sincretismo, ainda mais que esta noção costuma resultar em dissolução das oposições
rigidamente sistematizadas, criando, não raro, outros ambientes sistêmicos, talvez
mais abertos. Por outro lado, o procedimento sincrético parece deixar intactas as
ortodoxias da qual se separou, no sentido em que não há uma recusa a estas
ortodoxias, havendo, inclusive, uma convivência cordial com elas. O que não parece
ser o caso dos textos poéticos de Leminski que, apesar de partirem do sistema bipolar
poesia de expressão x poesia de estruturação e até utilizando-se de seus
procedimentos, não convivem bem nem com uma nem com outra, já que há, neles,
uma dupla recusa ao que existe de fundamental em ambos os pólos: a subjetividade
profunda e a estruturalidade universal. Mesmo que o sujeito se fragmente e a estrutura
esteja em permanente construção, podemos sempre desconfiar que, no horizonte, há
um sujeito ou uma estrutura ideais que “a poesia dita profunda” e “o classicismo
implícito na coisa concreta” desejam alcançar: platonismo, a perfeição que falta.
129
alegra, sente prazer ou dor, consistindo apenas em linhas de vida, abstratas mas
particulares, mescladas às dos poemas, como procurei mostrar (seguir).
Por tudo isto, prefiro referir-me à poética de Leminski como uma maquinaria
que escapa à estrutura e ao sujeito (ambos podem ser conceituados como estrutura,
como procurei mostrar anteriormente), ou como uma poesia verbificada, processual,
que foge à substantivação e suas substâncias que, mesmo fragmentárias, aspiram à
unidade e à permanência. Talvez sincretismo dê conta de todas estas fugas e
dissoluções, mas tenho a impressão de que implica muito mais em uma convivência
pacífica com as oposições que numa fuga entrópica e alucinada das codificações.
Fuga que faz vazar os sistemas, junto com suas lutas internas e suas possibilidades
de confluência.
Quanto ao modernismo, você tem razão: o que tento fazer é apenas levá-lo
cada vez mais longe em suas possibilidades críticas e autocríticas. Quando falo dos
códigos de apreensão modernistas e de sua incapacidade para ‘apreender’ Leminski,
refiro-me à sua cristalização canônica, à sua institucionalização que os engessa para
transformá-los em moldes críticos, que já trazem pré-codificadas as categorias, os
métodos de análise e até os juízos de valor. Assim como não creio em pós-
modernidade (no sentido de cultura) nem em pós-capitalismo (no sentido de regime
de produção), não creio também num pós-modernismo artístico. O modernismo e
parte do pensamento moderno (o marxismo entre eles) surgiram no seio do socius
capitalista e constituem os meios mais eficazes de sua crítica: talvez consistam na
única alternativa a ele, não utópica, mas entrópica, de fuga.
130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Plano-piloto para
poesia concreta. In: ____. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos,
1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
CAMPOS, Haroldo de. Notas a margem de uma análise de Pessoa. In: JAKOBSON,
Roman. Lingüística. Poética. Cinema. – Roman Jakobson no Brasil. Tradução:
Francisco Achcar et. al. São Paulo: Perspectiva, 1970.
____. Poesia concreta – linguagem – comunicação. In: CAMPOS, Augusto de;
CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos
críticos e manifestos, 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975a.
____. Aspectos da poesia concreta. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de;
PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos,
1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975b.
____. Evolução de formas: poesia concreta. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS,
Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e
manifestos, 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975c.
131
Célia Pinto costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995b.
____. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. Tradução de: Ana Lúcia de
Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995c.
____. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução de: Aurélio Guerra
Neto et. al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
ECO, Umberto. Conceito de Texto. Tradução de: Carla de Queiroz. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1984.
132
____. O ex-estranho. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1996.
____. Metaformose. São Paulo: Iluminuras, 1998.
LEVIN, Samuel. R. Estruturas lingüísticas em poesia. Tradução de: José Paulo Paes.
São Paulo: Cultrix, 1975.
POUND, Ezra. ABC da literatura. Tradução de: Augusto de Campos e José Paulo Paes.
São Paulo: Cultrix, 1970.
SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: ____. Que horas
são? : ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
TOLENTINO, Bruno. Berimbau de barbante. Bravo, São Paulo, n. 23, p. 45, agosto
1999.
133