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LEMINSKI SEM LEME

Wilton Cardoso

Goiânia, junho de 2001.


AGRADECIMENTOS

Zezinha, André e Wé,


pelo carinho e pelo apoio — e por suportarem a
chatíssima persona do escrevinhador;

Meus colegas de estudo,


companheiros de inquietudes mundanas e intelectuais
que, sem dúvida, colaboraram para este trabalho;

Goiandira,
(péssima carcereira) cuja cumplicidade pode render-lhe a
acusação de facilitação de fuga.

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 5
UM TEXTO-MOR CEGO .................................................................................... 7
O PAR QUE ME PARECE ................................................................................. 16
FRAGMENTO 1 .......................................................................................................... 31

AIS. OU MENOS .................................................................................................. 35


FRAGMENTO 2 .......................................................................................................... 47

DOR, AMOR, HUMOR. ..................................................................................... 50


FRAGMENTO 3 .......................................................................................................... 61

CAPRICHO, RELAXO ........................................................................................ 64


FRAGMENTO 4 .......................................................................................................... 78

ATÉ ELA ................................................................................................................. 80


MÁQUINAS LÍQUIDAS .................................................................................... 94
UM METRO DE GRITO ................................................................................... 111
FRAGMENTO 5: Nós ............................................................................................... 119

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................... 131

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já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço


melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando


é a única coisa que me acalma.
(Leminski, 1994a).

Mas não precisamos saber pra onde vamos


Nós só precisamos ir
(Gessinger, 1991a).

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APRESENTAÇÃO

Esta obra, originalmente uma dissertação de mestrado, é uma leitura da poesia


de Paulo Leminski e se organiza por ensaios e textos-fragmentos. Os primeiros são a
crítica literária propriamente dita, cuidando do corpo a corpo com os poemas e das
investidas teóricas mais abstratas — na falta de termo melhor. Já os fragmentos
funcionam como uma parada para pensar a leitura e suas opções teóricas e
metodológicas: são uma espécie de auto-avaliação de rumos.

Os ensaios, embora interligados transversalmente, podem ser lidos de maneira


independente uns dos outros, pois são poucas as referências recíprocas entre eles:

- Os dois primeiros, “Um texto-mor cego” e “O par que me parece”, tratam


principalmente do problema da expressão da subjetividade e de como ele é
(des)tratado na obra de Leminski;

- Os quatro ensaios que se seguem, “Ais. Ou menos”, “Dor, amor, humor”,


“Capricho, relaxo” e “Até ela” tratam, sem esquecer do problema da expressão
subjetiva, de outras questões, tais como a metalinguagem e a relação dos poemas
com a significância, os afetos (dor, amor) e a estruturalidade do poema. Tratam
também do que poderíamos chamar de estratégias construtivas de Leminski, tais
como o humor, a errância, o pensamento-poesia e sua abertura para o caos, o
acaso e o movimento;

- Os dois últimos ensaios tratam da relação entre sua poesia e a sociedade


contemporânea.

Duas características atravessam esta obra: a obsessão pela expressão da


subjetividade e a aproximação de Leminski com a filosofia de Gilles Deleuze e Felix
Guatarri.

Quanto à subjetividade e seus quiproquós, ela serve de mote para se chegar às


outras questões (já referidas acima), tão importantes quanto ela. Mas devo confessar que
se trata de uma obsessão pessoal, alertando que não é um mal solitário: a sociedade
contemporânea também o sofre e o próprio Leminski padecia desta obstinação, é claro
que de modo não psicologizante.

Já a aproximação entre Leminski e Deleuze & Guatarri não tem o objetivo de


embasar a análise crítica dos poemas na teoria dos filósofos. É uma aproximação
mesmo, como entre dois campos de energia que se interagem. Também não foi preciso
malabarismos retóricos para juntá-los. Em primeiro lugar porque o pensamento de
Deleuze e Guatarri (principalmente o Antiédipo e Mil Platôs que são as obras às quais

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recorro) pode ser lido como literatura, enquanto que a poesia de Leminski, em
contrapartida, tem muito de pensamento. Em segundo lugar, porque as duas obras
confluem em seu espírito contracultural e antiestruturalista. Portanto, nada mais
‘natural’ que colocá-los lado a lado.

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UM TEXTO-MOR CEGO

DISTÂNCIAS MÍNIMAS

um texto morcego
se guia por ecos
um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
ou se se me lhe te sigo?
(Leminski, 1987a, p. 20).

O poema acima começa com uma afirmação que é também uma explicação:
um texto morcego se guia por ecos. A palavra morcego é, ao mesmo tempo um
substantivo e um adjetivo (tal como o homem-morcego), designando uma qualidade do
texto, mas também, como substantivo, substituindo-o, estabelecendo aí uma relação
metafórica mais direta, de identidade: o texto é o morcego: identidade reforçada no
plano sonoro pela rima entre “texto” e “morcego”. A partir desta analogia vai-se
estabelecendo uma sucessão de permutas entre as qualidades do texto e as do morcego:
a cegueira do último é atribuída ao primeiro que, tal como o mamífero voador, se
orienta agora pelo som de seu próprio grito refletido nas paredes: o eco.

Estas qualidades do morcego transpostas ao texto sugerem, em primeiro lugar,


os problemas da construção (e da leitura: re-construção) do poema, retomando as
inquietações de Jakobson (1971), sobre o problema dos paralelismos e seu significado
para a poesia. Os textos poéticos funcionam como um sistema de ressonâncias em que
os elementos semelhantes (ecos) se alternam e se transformam ao mesmo tempo:
projeção do eixo das semelhanças (alternância) no eixo dos sintagmas (tranformação).
Diríamos mesmo que realiza isto, pois o jogo de ecos, rimas e ressonâncias
faz/concretiza o que é também dito/teorizado.

Um segundo aspecto que a analogia sugere é a da relação de um texto com o


seu contexto: seja sócio-econômico, seja literário, quer dizer, em face dos outros textos.
O único meio de orientação de que dispõe o morcego é o seu radar que lhe dá uma
posição sempre muito relativa, pois depende do que está próximo, à sua volta. Não há
um satélite por cima do ambiente ao qual o texto/morcego poderia recorrer, tendo assim
uma ‘visão’ do todo: não há esta possibilidade de transcender à sua relatividade.
Também ao morcego não socorre o sentido da visão, mesmo sendo relativa, quer dizer,
mesmo sendo apenas um ponto de vista seu. A visão, mesmo quando mono-focal dá,
não obstante, uma amplitude maior do que um radar, possibilitando, um ponto de vista

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menos localizado e mais amplo: o horizonte está aberto ao olhar, mas não aos ouvidos.
Além do mais, o olhar no espelho permite um ‘ver-se’ com exatidão (imagem),
possibilitando que o sujeito se torne uma ponte para a transcendência ou a própria
transcendência (caso do romantismo). O texto de que se fala está, portanto, sempre
dependente de seu tempo e de seu espaço para se orientar, fechando a possibilidade de
uma visão transcendente, já que opera por ‘distâncias mínimas’ e delas depende para
sobreviver.
O terceiro verso reforça (ou explicita) este dado: “um texto texto cego”. A
repetição das palavras remete ao tatear de um cego, mais especificamente ao tateio de
um radar, portanto auditivo, mas que, em todo caso precisa de objetos próximos para se
orientar. A palavra ‘cego’, rimando com ‘ecos’ e ‘morcego’, trata de reafirmar ainda
mais as limitações do texto, além de explicitar um recurso muito utilizado por Leminski
em seus poemas (e neste em particular), que é a ocultação de palavras dentro de outras,
multiplicando o sentido do texto: assim, ‘morcego’ já contém ‘cego’ e ambos os semas
contêm ‘ego’. A partir daí se estabelece uma analogia (talvez seja melhor dizer
superposição) entre o texto e o ego, a palavra e a consciência, a linguagem e o sujeito,
todos já portadores da qualidade da cegueira. Qualidade que lhes é inata, pois inscrita no
próprio corpo (da palavra) pelo recurso do anagrama — tomando esta figura num
sentido bem amplo de ocultação de palavras dentro de outras ou numa frase.

O quarto verso (“um eco anti anti anti antigo”) expõe um paradoxo, pois num
sentido, o tateio do eco/ego (outra superposição), de reverberação em reverberação leva
ao antigo, que remete à cultura ou à tradição que só pode ser transmitida de modo
indireto e deformado pela última geração, contemporânea ao texto/sujeito, isto é, só
pode ser absorvida num espaço-tempo circunstancial. Outro sentido, decorrente do
procedimento anagramático, é a leitura como um eco anti-antigo, isto é, novo,
contemporâneo. Pior (ou melhor): se considerarmos cada ‘anti’ como uma negação,
forma-se uma cadeia que se diz e desdiz continuamente: novo-antigo-novo-antigo...
Este paradoxo é o da própria cultura que é ao mesmo tempo um estoque e um fluxo; um
passado que sempre se presentifica e se projeta adiante, continuamente. Estávamos
falando de indivíduo, sujeito, mas aqui já falamos de uma outra coisa, a saber, de uma
coletividade ou pluralidade encerrada sob os nomes de tradição e cultura. O eco, o grito
que retorna não o faz do mesmo modo que saiu: ele volta prenhe de cultura, o que era de
se esperar já que salão em que se move o texto-morcego é o seu contexto: chamemos-
lhe provisoriamente de cultura.

Mas há mais confusões para nos enredarmos, pois todo o poema não tem
pontuação e um dos sentidos possíveis é a identidade entre o texto-morcego (que é
também o sujeito, o ego) e o eco: o período poderia ser reescrito assim: Um texto texto
cego, um eco anti anti antigo, um grito na parede rede rede, volta verde verde verde.
Aqui se instaura uma confusão entre o sujeito, o verbo e o predicado. Eis as frases
pacificadoras que a lógica discursiva procuraria no poema: O texto/ego (sujeito) grita

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(verbo) para a cultura (predicado); A cultura (sujeito) ecoa/grita de volta (verbo) para o
texto/ego(predicado). O procedimento de embutir a cultura no eco, chamando-o de
antigo seria uma elipse aceitável, pois saberíamos que o denotativo de “eco antigo” é
“cultura antiga”. Mas, com a ausência de pontuação, o poema possibilita a identificação
do texto com o eco, do sujeito com a ação. Esta ação não é o grito do texto-morcego,
mas o eco da cultura, portanto uma ação de outro sujeito, estabelecendo-se uma
confusão entre texto-ego e caverna-cultura, por um lado e, por outro, entre estes dois
sujeitos e suas respectivas ações: gritos e ecos. O texto é então o eco da cultura? Sim,
mas ao mesmo tempo é ele quem emite o grito e é ele que tem o radar (o ego, a
consciência, o mecanismo de auto-localização) para se situar na rede textual da cultura.
Há duas confusões então: a de dois sujeitos, indivíduo e cultura; e a de duas classes
gramaticais, o substantivo e o verbo. Esta última se desdobra numa confusão sintática,
pois não se distingue no poema a ação de seus agentes ativo (sujeito) e passivo
(predicado). Esta última confusão talvez seja mais grave, pois indica que o sujeito é a
ação, que o texto é o eco (que é, por sua vez, seu próprio grito), o que mina a
estabilidade frasal sujeito-verbo-objeto e também a estabilidade, digamos, ontológica do
par sujeito-objeto. Isto acarreta, obviamente, problemas para um exercício crítico que se
apóia neste par, como veremos adiante.

Poderíamos dizer que o poema refere-se a processos que ocorrem num sistema.
Os processos seriam os gritos dos textos/morcegos, portanto as ações destes: suas
mensagens. O sistema seria uma totalidade que chamamos de cultura que, por sua vez, é
composta de entidades menores: sejam elas textos, indivíduos ou regras (códigos). Um
ponto de vista metafísico nos diria que no poema se descrevem os movimentos do
sistema, ou seja, as variações do Ser. Mas a aludida confusão entre substantivo e verbo
(sistema e processo) pode suscitar um outro ponto de vista, que dá primazia à ação e não
ao sujeito ou ao objeto. Em outras palavras, as mensagens (processos) é que precedem e
formam os códigos e as entidades, e não o contrário; e a instabilidade inerente aos
processos é também intrínseca aos entes por eles constituídos. Daí podermos refazer
nossa afirmação inicial e dizer que o poema refere-se a sistemas (ou a um sistema
aberto) que ocorrem nos processos. Ora, isto está de acordo com o título, pois o
processo é o aqui agora do sistema, lidando apenas com a circunstancialidade espaço-
temporal. O inquietante é que a identificação da cultura com o processo (a cultura é o
eco que é o texto/ego) também a transforma em processo, não restando nenhum sistema
fechado (essencialmente estável) aí: o salão onde o morcego se move é móvel também,
circunstancial. Pode-se objetar que estamos exagerando e que a identificação do eco
(processo) com a cultura (sistema) é somente um recurso retórico, uma elipse. Pode ser,
mas o quinto verso parece ir em outra direção: um grito na parede rede rede.
Novamente, no mínimo, duas direções: na repetição de ‘rede’ é o grito (rito?) que galga
os nós da rede que é o sistema da cultura ou esta rede se constitui por ecos, quer dizer,
por processos? Parece que a cultura é uma rede, mas não é fixa e um grito dispara todo

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um processo, na verdade, dispara a condição de processo que constitui a tradição. Outro
poema nos remete a este problema:

vento
que é vento
fica

parede
parede
passa

meu ritmo
bate no vento
e se
des
pe
da
ça
(Leminski, 1983, p. 80)

Esta paradoxal impermanência do permanente (parede passa) e vice-versa (vento fica)


pode ser lida como a afirmação da força e da energia contra a suposta durabilidade da
matéria, dos pontos de apoio: o triunfo da dinâmica sobre a estática; do processo sobre o
sistema; da pragmática sobre a gramática. É claro que neste poema há oposições a
explorar (corroer?) como entre natureza e cultura; e tempo e espaço, mas, por ora,
vamos voltar ao texto-morcego.

O sexto verso (“volta verde verde verde”) nos conduz a novo, renovado, verde.
A volta do grito é uma questão de vida ou morte para o morcego, o feed-back que lhe
dá a condição da vida. A cor verde, além de reforçar este aspecto vital (cor da natureza
vegetal, “verde é vida” é um lugar comum) evoca a visão: ver por ecos é uma maneira
específica de ver o mundo. Novamente temos aqui o procedimento anagramático:
‘verde’ contém ‘ver’ e “rede”. ‘Verde’ realiza anagramaticamente a volta revitalizada da
rede textual, da cultura: uma nova maneira, vital, de ver a tradição. Mas o que volta
renovado não é só o grito/eco, mas também as redes da cultura. Esta parece ser um salão
em que é vital que haja morcegos. Então não estamos falando de um salão comum, um
recipiente de morcegos que é e existe indiferentemente da existência deles, mas sim de
um ambiente que parece depender de seus habitantes para se manter vivo: sim, estamos
falando de uma força vital constituída por gritos-mensagens de morcegos-textos, quer
dizer, de uma multiplicidade textual ou simplesmente multiplicidade.

Falamos de gritos-mensagens de morcegos-textos, mas deveríamos falar


somente de gritos-mensagens, pois, como vimos, há uma superposição (palavra talvez

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melhor que identidade) entre texto (sujeito) e mensagem/grito (verbo): o ego é apenas
um eco, o sujeito é a ação ou, para ser mais preciso, as ações/gritos; tal como a cultura é
uma multiplicidade feita da mesma matéria: g(ritos), ecos, mensagens, textos,
processos, variações. A posição do morcego é sempre relativa e a este conceito espacial
podemos relacionar vários outros: identidade; unidade; perenidade. A posição relativa, a
condição de processo, a variação contínua tornam estes conceitos também relativos:
qualquer ser identificado nas redes, nos tecidos (textura), na multiplicidade textual tem
um caráter de indefinição, fragmentação e provisoriedade, já que os processos são uma
contínua variação e qualquer idéia de transcendência, centro e universalidade fica
inviabilizada: não devemos esquecer que não só o ego/sujeito/texto é um processo, mas
também a própria cultura: mais que um tecido e uma rede, esta lembra mais um tecer-se
e um enredar-se (“um texto texto cego” e “um grito na parede rede rede” remetem
também à textura se tecendo, à rede textual se enredando).

O sétimo verso apresenta os mesmos recursos de tateio, busca cega sempre em


meio, mas soa discrepante, fere os ouvidos: este efeito se deve à interposição de ‘mim’
entre os ‘com’ que se repetem quebrando a cadeia de ecos. A incorreção gramatical
‘com mim’ também incomoda, lembrando a inabilidade da criança que ainda não usa
corretamente os pronomes retos, oblíquos e reflexivos. Mais que de tateio, a impressão
aqui é de gaguez e inabilidade. Esta sensação de incômodo sonoro e sintático surge
exatamente quando aparece a subjetividade e pode ser o índice da dificuldade de sua
estabilidade que, como vimos, é sempre um construir-se a partir e com as malhas da
cultura ou textuais. O ‘mim’ (eu/subjetividade individual) se interpõe, ou melhor, se
diferencia da cadeia de ecos: é um trabalho duro, doloroso como um parto e, no entanto,
necessário a cada momento, já que a estabilidade não está fora dos processos. Este eu é
oblíquo (‘mim’), oposto à estabilidade do pronome reto ‘eu’ e, ainda por cima, usado
incorretamente — ‘com mim’ e não ‘comigo’. Tudo isso resulta em obstáculo,
dificuldade que o verbo conseguir (‘consigo’), guaguejado até ser pronunciado, vem
confirmar semanticamente. Este ‘consigo’, verbo, é também o pronome reflexivo que
remete a outrem, indicando que a subjetividade, estabilidade das linhas que delimitam
uma zona interior, só é mantida no jogo contínuo com o fora que, na verdade, apenas
por construção (gritos e ecos) se diferencia do dentro. O eu parece ser um arranjo árduo
e permanente de textos/gritos para formar uma unidade discreta e, como vimos acima,
discrepante na multiplicidade textual.

Esta precariedade do eu aparece no penúltimo verso: ouvir é ver se se se se se.


Como afirmamos antes, a orientação pela audição é um ver problemático: é ver ses, ver
várias condicionais, várias alternativas, vários caminhos a seguir (con-sigo) ou
construir: a orientação é sempre relativa: qual, se existe, o melhor caminho para o
texto/ego? Mas este verso também pode ser lido como ‘ver-se’, um ver-se múltiplo: o
eco, como a luz refletida, remete também à reflexividade, mas esta é bem diferente: não
retorna uma imagem, mas uma posição, um índice, o que mina a identidade e unidade

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do sujeito. Cada eco corresponde a uma posição diferente, a um ego diferente, a um
reflexo particular, a um ‘se’ (pronome reflexivo) outro. Ainda neste verso, ‘ouvir’ pode
ser escutado como ‘ou vir’, relativo à volta e também à reflexibilidade, dialogando com
o verso anterior, apresentando a alternativa do fracasso da tentativa de construção de
uma subjetividade: “com mim com com consigo ou vir [eco] é ver se se se se se
[multiplicidades]”. Tudo isso leva à consciência que parece perdida em meio à
variabilidade incontrolada. Nunca é demais notar que o poema realiza, formalmente,
esta variabilidade, seja com a metaforização, seja com o recurso ao anagrama, ou com a
ausência de pontuação.

O último verso é uma alternativa positiva, se é que, nessas alturas, possamos


falar assim. Novamente o recurso da repetição, mas agora assonante, pois somente as
vogais se repetem, indicando aí mais semelhança do que redundância. Até aqui
havíamos lido os ecos como repetição que leva à indefinição: a mesma coisa em tempos
diferentes produz uma redundância constante que é também uma variação constante,
algo muito próximo do que costumamos chamar de caos, mas que se definiria melhor
como multiplicidade ou rizoma1. Aqui a redundância existe, mas as partículas que se
repetem são apenas parecidas (assonantes), produzindo a semelhança na diferença: ou se
se me lhe (‘semelhe’, se juntarmos as partículas) te sigo. Se a semelhança é dada pela
junção das partículas “se”, “me” e “lhe”, estas, individualmente (mais a partícula “te”)
são pronomes reflexivos (se) e oblíquos (nas três pessoas: me, lhe, te) que se ligam ao
verbo seguir, resultando na multiplicidade de identidades ou caminhos. Portanto, além
das diferenças sonoras entre as partículas existe diferença semântica (de pessoa), que
mina a unidade da subjetividade que emerge no texto. Simultânea e mesmo em simbiose
com a diferença, a semelhança não é uma síntese ou um meio termo entre a
identidade/unidade e a diferença, mas uma construção feita certamente de ambas: a
continuidade de gritos (ritos) domando, precariamente, a multiplicidade textual. Mas
este ‘precariamente’ não parece ser um lamento, pois o poema é, como discurso, apenas
uma descrição que leva a crer mais numa afirmação: (quer-se) um texto morcego / (que)
se guia por ecos. Não há saudade, aqui, da transcendência ou da plenitude, há somente a
descrição/performance de uma tentativa, que pode ser a do texto, a da subjetividade, a
da cultura ou a de qualquer ordem mínima (semelhança) alegre, contínua e vitalmente
ligada à multiplicidade na qual, da qual e contra a qual se constrói.

Da leitura do poema surge a questão da subjetividade e sua estabilidade como


sistema fechado ou organismo. Mais que um aprofundamento no sujeito, que revelaria,

1
Um rizoma, segundo Deuleuze e Guattari, se opõe às raízes e árvores pela sua ausência de pivô central
ou de subdivisões binárias: ele se constitui de linhas que se cruzam e se entrelaçam em qualquer ponto,
sem hierarquias pré-determinadas. Isto implica que, “contra os sistemas centrados (e mesmo
policentrados), de comunicação hierárquica e ligações pré-estabelecidads, o rizoma é um sistema a-
centrado, não hierárquico e não significante, sem General, nem memória organizadora ou autômato
central, unicamente definido por uma circulação de estados.” (Deleuze e Guattari, 1995b, p. 33).

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de máscara em máscara, seu (a)fundamento na coletividade, o poema parece proceder
na superfície: do texto, do ego, da cultura, dos sistemas. A palavra “texto” é o signo do
qual se parte para outros nomes (ego, grito, eco, rede, antigo, tradição etc.), mas sem
hierarquizá-los num sistema, como, por exemplo, supondo que a origem última do
inconsciente e da cultura seriam os textos. É claro que podemos fazer isto através do
poema, mas também podemos optar por outros caminhos. A metáfora, em sentido
amplo, seria uma boa figura para unir estes signos que se ligam a ‘texto’, mas ela não
precisa ter, necessariamente, os signos de conotação e denotação. Assim, a
subjetividade, que é o último ‘tema’ do poema, não necessita ser o desaguadouro de
todas as outras imagens, como tampouco a metalinguagem.

Fixando o conceito da subjetividade, por exemplo, podemos perceber que ele


se confunde com outros, inclusive o de grito, que antes de ser uma ação do sujeito
parece constituí-lo. Desta sobreposição de diversas entidades (substantivo) e ações
(verbos) resulta uma dificuldade muito grande em encontrar limites, tanto hierárquicos
ou de níveis, quanto de territórios ou planos, entre as unidades sobrepostas. A metáfora
funcionaria, então, apenas de maneira analógica, sobrepondo indefinidamente os signos,
ficando fora de sua definição a função hierárquica que freia num certo ponto (o da
subjetividade por exemplo) o jogo contínuo das sobreposições:

(...) assim como uma metáfora bem construída não revela, entre seus termos, nenhuma
ordem e suprime todo obstáculo da cadeia polissêmica (ao contrário da comparação,
figura originada), assim uma boa narrativa respeita a pluralidade e a circularidade dos
códigos. (Barthes, 1992, pp. 106-107).

Desse modo, surge uma subjetividade não essencial em si mesma, pois ela não é a
realidade última do ser, dos quais os outros signos seriam apenas derivações. Tampouco
ela é um adiamento do ser que se confundiria com a Cultura, da qual o sujeito seria uma
derivação. O quadro que o poema pinta não é renascentista, pois não há linhas, nem
estática, nem perspectiva; e o ser se perde nas confusões entre os substantivos e entre
estes e os verbos que proporcionam a fuga dos sistemas fechados e da estabilidade. As
redes da cultura são suplementos ao infinito uma das outras e cada nó desta textura não
passa de um grito, um agir, um rito. Este último se sobrepõe tacitamente, no poema, ao
mito, sinal da permanência sobre a qual se assentariam as variações, mas o mito do Ser
é apenas uma soma de ritos repetidos. Desta repetição é que se constroem semelhanças,
pares e hierarquias, “se se me lhe te sigo”, por onde a multiplicidade textual vai
(per)fazer o caminho do organismo, da individuação subjetiva. A pergunta é: o que
aconteceu ao par expressão da subjetividade/construção do objeto estético nesta leitura?
Não diríamos que o perdemos, ou mesmo que rompemos com ele, mas parece que
encontramos o que poderíamos chamar de sua entropia: chegamos ao ponto em que a
oposição sujeito/objeto parece não mais ser confiável como operador dentro de um
sistema. Não significa uma síntese ou superação desta oposição, pois o poema parece

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flagrar os elementos desses pares exatamente no momento de sua forja, quer dizer,
quando são ainda atos, gritos ou ecos. Leminski trabalha, neste poema, como uma
espécie de arqueólogo dos signos/conceitos, tentando refazer o caminho de seu
surgimento a partir de algo. Este algo parece se identificar com ações sem sujeitos
definidos, portanto não derivadas de nenhuma ordem pré-constituída: no fundo dos
ecos, ecos, somente ecos. Daí o seu trabalho de superfície, sem a perspectiva da
profundidade que implicaria num ponto de fuga, um hierarquizador ou centro.

Mas se nossa obsessão pelas hierarquias não nos deixar em paz, poderíamos
satisfazê-la dizendo que o elemento central deste poema (ou da leitura que dele
fizemos?) é o grito, rito, eco, em suma, a ação. Mas seria um engodo, pois a ação, se
pode e é repetida (e a redundância é uma condição da ordem: cultural, individual,
lingüística...), também é a potência da variação contínua, portanto da instabilidade que
pode levar à entropia ou à individuação (se semelhe te sigo) se for bem manejada.
Portanto, antes de ser um universal, uma origem ou um fim, o grito/eco é um
diferencial, um sempre em meio se tecendo e retecendo na multiplicidade textual.

Fixando-nos ainda na subjetividade, podemos dizer que sua estabilidade como


sistema, como ordem sistemática, depende então de um constante jogo com outros
sistemas e também com a própria instabilidade que lhe constitui. É um sistema que se
mantêm por repetição e diferença, produzindo duplos, pares, semelhanças que são
balizas provisórias que definem sua posição relativa. A posição no espaço sempre foi
um recurso utilizado para construir “visões de mundo”: o todo e a posição no conjunto.
Um ponto de vista metafísico supõe sempre um centro e/ou um topo a partir do qual se
ordenam as periferias, também elas constituindo subcentros e subperiferias. Outra
característica de um sistema metafísico é a imobilidade do centro onde “é proibida a
permuta ou a transformação dos elementos”. (Derrida, 1995, p. 230). Supondo que
também há movimento e transformação nos sistemas metafísicos, estas variações não
atingem o centro e são, antes, um atributo seu: o Ser múltiplo, “múltiplo” aqui tomado
como desdobramentos do Uno. Ser, Uno, Centro, estas essências não aparecem no
poema, seja na forma da subjetividade individual ou coletiva (cultura), seja da forma da
linguagem. Estes sistemas ou ordens aparecem no poema como conjuntos precariamente
definidos, que se sobrepõem uns aos outros, embora pareçam subsistir distintamente:
não são centros e nem remetem, através de subordinação, a algum sistema centrado. Um
sistema centrado é o que temos chamado de sistema fechado, do qual se poderia dizer:
esta é a essência/centro de tal sistema. O poema de Leminski parece nos remeter a
sistemas a-centrados ou abertos: multiplicidades onde tudo se move e o centramento
não passa de construções: sujeito; cultura; linguagem. Daí podermos dizer que a
oposição subjetividade/objetividade seja difícil de se manter, pois ela se baseia, ou na
centralidade do sujeito ou na do objeto; ou na de um terceiro que seria a síntese de um
processo dialético entre sujeito e objeto.

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Como podemos, a partir deste poema, estabelecer a noção de dentro e fora e
conteúdo e continente que parece remeter-nos à metáfora do morcego dentro de um
salão ou caverna, se ambos são texturas móveis de gritos/ecos? O sujeito se estabiliza
num dentro que se contrapõe ao fora (que lhe é também anterior) que é a cultura ou
sociedade, mas dentro do sujeito e da cultura e ao mesmo tempo agem os gritos, uma
espécie de fora absoluto que mina a identidade das duas subjetivações, coletiva e
individual. Assim também a linguagem (texto) se compõe de gritos que constantemente
negociam sua posição com o circundante (circunstancial). O poema não nega o sujeito,
a cultura e a linguagem, mas muda o ponto de vista sobre eles, que se torna pragmático-
funcional e não essencial-estrutural. São vistos como sistemas abertos, que se
constituem fundamentalmente a partir de variações, negociações políticas: a posição do
morcego é sempre um negócio entre ele e as paredes.

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O PAR QUE ME PARECE

O PAR QUE ME PARECE

Pesa dentro de mim


o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.
(Leminski, 1987a, p. 31)

O poema acima começa com a indicação de uma falta, uma ausência que
pesaria ao eu lírico: “Pesa dentro de mim / o idioma que não fiz”. Este idioma, mais à
frente, será qualificado de sem fim2, bonito e perfeito, características que o avizinham
do sobre-humano e do sagrado. A ausência desta língua perfeita tem paralelo no
desconcerto do mundo e na queda do homem, que segundo a crença cristã decorre do
pecado original que nos expulsou do Paraíso e do qual somos cúmplices. Este pecado é
o peso que carregaríamos durante a vida. Portanto, a ausência que pesa, no caso cristão,
decorre de uma presença do pecado, de uma má ação inicial e nossa imperfeição (uma
ausência) é o preço/peso que pagamos pelo erro, nossa punição. Seria também este o
caso do poema?

2
Lemos a expressão ‘sem fim’ como índice da infinitude, aproximando-a do sagrado. Mas outro sentido,
o da ausência de finalidade, também aparece e não contradiz o primeiro, pois pode implicar em não
utilitarismo, quer dizer, em ausência de finalidades terrenas. No entanto, outra possibilidade
interpretativa, que vai levar o poema para longe das unidades do sagrado e do ser, pode se conectar a esta
‘ausência de finalidade’ que passaria a remeter, então, à ausência de teleologia ou à impossibilidade da
transcendência.

16
Um dos constituintes desta língua sem fim são os “ais”, as interjeições, o que
há de mais espontâneo na fala humana:

aquela língua sem fim


feita de ais e de aquis

A interjeição é um signo sem significado, sem conceito, mais próximo do ícone que do
símbolo, mais onomatopéico que convencional, o que daria a esta língua sua condição
de universalidade. Mas uma universalidade decorrente da simplicidade e rusticidade,
pois a interjeição nos aproxima mais dos animais, aquém da linguagem, do que dos
deuses, além dela. Outro dos constituintes desta língua são os “aquis”, termo que indica
a circunstancialidade espacial e, por elipse, temporal. Este particularismo de uma
língua, em todos os sentidos imediatista, parece contradizer a universalidade à qual
aludimos: as interjeições e o aqui-agora remetem à vivência imediata e espontânea,
portanto localizada e não universal. Deveríamos abrir mão da universalidade como
característica?

Mas os próximos versos (“Era uma língua bonita, / música, mais que palavra”)
parecem confirmar esta universalidade, se aceitarmos a opinião geral que a música é
universal. Mas aqui se desenha outra oposição, entre música e palavra, intuição e razão,
significante e significado. A música, como as interjeições, é somente uma cadeia de
sons e silêncios que prescindem do conceito e da racionalidade. Há, aqui, a ambição de
uma língua puramente poética, se entendermos que a poesia é uma arte que se avizinha
mais da música e das artes plásticas que da retórica, da linguagem conceitual e
discursiva — mera portadora de mensagens. Esta maneira de ver a poesia é uma
convergência que vai de Sartre, passando por Pound e Jakobson, aos concretistas, dos
quais Leminski é “filho” declarado3. Esta ambição da pureza poética reforça a nossa
hipótese da vizinhança desta língua que falta com o sagrado, também inatingível.
Proximidade confirmada nos próximos versos (“alguma coisa de hitita, / praia do mar
de Java”) que remetem inicialmente a duas distâncias: uma temporal e outra espacial. O
hitita é a mais antiga língua indo-européia, da qual, supostamente, derivaram os idiomas
do Ocidente. Há, então, uma terceira distância, a da origem, afirmada pelos dois versos,
pois o afastamento temporal do hitita remete à origem de nossa linguagem, àquele
estado indefinido entre natureza e cultura. O que é reforçado pelo exotismo da paisagem
natural da “praia do mar de Java” (distância espacial) que tem um quê de Éden, de
Paraíso Perdido. Tudo isso no conduz à origem da linguagem, dádiva divina que nos
diferencia dos animais: o poema remete, então, ao instante pós-animalesco e anterior ao
pecado original ou à torre de Babel que é uma outra maneira de contar nossa queda. A

3
Como se pode confirmar numa entrevista dada a Regis Bonvicino: “A coisa concreta está de tal forma
incorporada em minha sensibilidade que costumo dizer que sou mais concreto que eles [os concretistas]:
eles não começaram concretos, eu comecei.” (Leminki e Bonvicino, 1999, p. 208-209).

17
Língua inaugural, primordial, se confunde com a divindade que nos constitui, mas as
diferenças lingüísticas (a variedade de línguas) são um sinal da imperfeição e da
discórdia dos homens, alijando-os da perfeição universal, homogênea e concordante.

Até aqui poderíamos dizer que há uma espécie de saudade da origem, do


momento em que o homem estava em paz consigo, com a natureza e com Deus. Apenas
alguns inconvenientes a esta leitura, como no quarto verso que parece remeter ao
circunstancial e à vivência imediata das sensações, mas que poderia muito bem ser
resolvido com o argumento de que se trata de uma ingenuidade do homem mais
próximo, temporal e culturalmente, da natureza. Por trás desta leitura paira a sombra de
uma presença, algo ou alguém doador do sentido, dotado de uma unidade essencial.
Mas esta unidade original pode remeter tanto a um mundo ordenado e hierarquizado
quanto a uma espécie de caos primordial. A leitura que remete à presença de um Ser vai
na primeira direção, mesmo que fora deste Ser o mundo seja um caos: há uma unidade
pré-existente que, por sua vontade, pode concertar (ou desconcertar) o universo.

Se atentarmos para os versos do terceiro quarteto (este poema se constrói por


quartetos), parece que eles tomam uma outra direção:

Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.

Notamos que suas rimas são estruturadas de maneira diferente dos anteriores: são
opostas (ABBA) enquanto que os dois primeiros quartetos se constroem por rimas
alternadas (ABAB). Em primeiro lugar, isto marca uma diferença formal a partir deste
ponto do poema e que corresponderá a uma diferença de sentido: a alternância rímica
corresponde àquela língua original e perfeita, da qual a simetria certamente seria uma
característica. As rimas opostas, embora simétricas, representam uma dissonância no
andamento contínuo dos versos anteriores: insere-se uma simetria de outra ordem, que
tem o sabor de uma assimetria. Esta é reforçada pelo tamanho dos períodos que, nos
versos anteriores, coincidiam com os quartetos. Neste quarteto há dois períodos, cada
um correspondendo a um dístico: novamente uma simetria de outra ordem, que perturba
o andamento inicial e constante do poema. Se atentarmos ainda mais, vemos (ouvimos)
que todos os versos deste quarteto, na verdade, rimam entre si: ‘perfeito/objeto’ e
‘reto/sujeito’ são rimas imperfeitas: outra simetria local que leva a uma assimetria em
relação ao resto do poema. Mas esta rima continuada também ocorre no primeiro
quarteto (mim/fiz/fim/aquis), o que parece ser um indício de que o poema já nasceu
prenhe de uma certa assimetria geral, pois a rima continuada (toante) mina a simetria da
alternância desde o início. Somente o segundo quarteto tem uma alternância rímica bem

18
marcada (uma rima perfeita e outra toante: bonita/palavra/hitita/Java), justamente o que
remete à busca da origem.

Temos então uma ruptura formal, mas que não é total, pois a simetria continua
de uma outra forma. Além do mais há constantes que perpassam todo o poema, como o
trabalho extremamente preciso e cerrado no plano fonético (aliterações, ecos,
assonâncias, anagramas), característica, aliás, que perpassa todo o livro Distraídos
venceremos, do qual este poema é parte. Outra constante de “O par que me parece” é a
organização espacial dos versos, sempre alternada, que dão a impressão de um vai-vem
monótono e contínuo à primeira vista (literalmente), mas que os outros recursos formais
(como, por exemplo, esta ruptura formal de que estamos falando) podem dar um aspecto
de movimento mais variado e vivo.

Verificamos que este “idioma perfeito / quase não tinha objeto”, não se trata de
uma língua da objetividade, substantiva, como a poesia desejada pelos concretistas. Por
outro lado os “pronomes do caso reto / nunca acabavam sujeitos” também não implicam
numa linguagem de expressão subjetiva, antítese da proposta construtivista da poesia.
Deste jogo com a sintaxe, morfologia e regras da linguagem surge uma dupla negação,
do sujeito e do objeto, a qual é gramatical, mas também, em certo sentido, ontológica, já
que nesta língua utópica não parecem caber perenidades imóveis, seres. Daí podermos
responder que, se há uma busca de um Paraíso original, este está mais para o caos do
que para uma ordem plena. A sombra da presença de um Ser, que pairava sobre a leitura
até a chegada deste quarteto começa a se dissipar: à assimetria formal que estes versos
instauram no poema, corresponde uma assimetria semântica que torna problemática sua
leitura como uma metalingüística transcendental, direção que parecia caber muito bem
até o segundo quarteto. A transcendência, típica de sistemas metafísicos, implica na
passagem de um plano a outro, na ascese que supõe uma aproximação com alguma
espécie de unidade ou centro. A impossibilidade ontológica de sujeitos e objetos, de
entidades fixas enfim, nos faz questionar a possibilidade da existência de alguma
unidade que tenha o estatuto da permanência. Mas há uma outra direção semântica nos
versos “Pronomes do caso reto / nunca acabavam sujeitos” que é exatamente a negação
da sujeição (no sentido de subordinação) e, já que estamos falando de sistemas e regras,
esta não sujeição parece indicar a fuga de qualquer ordem cristalizada que se quer
permanente, una e impositiva. Os versos seguintes vão nesta direção:

Tudo era seu múltiplo


verbo, triplo, prolixo.

Pode-se afirmar que este poema é metalingüístico. Mais especificamente, um


de seus temas é a linguagem poética que se almeja atingir e que não se estabiliza nem
no poema-objeto concretista, nem na expressão lírica de fundo romântico, mas se
‘instabiliza’ na ação pura e simples, no movimento das mensagens, ou seja, é uma

19
poesia que está mais para a pragmática do que para as gramáticas dos planos pilotos ou
da expressão subjetiva. A negação de sujeição pode ser lida como uma libertação das
poéticas convencionais que cerceiam os poetas e (extrapolando o literário) impõem um
determinado modo de perceber e sentir o mundo. Mais que metalingüístico este poema é
o que se poderia chamar, com o devido cuidado, de filosófico, algo como uma poesia
pensante (mesmo que o pensamento tenha enlouquecido), pois remete a discussões
sobre conceitos como Ser, sujeito e objeto.

No caso deste último par, como em “Distâncias mínimas”, a oposição


sujeito/objeto parece perder um pouco a eficácia justamente por implicar em entidades
estáveis e pré-existentes à ação, portanto dotadas de alguma essência. Aqui, não se trata
de um absorver o outro, de uma expansão ou profusão da subjetividade (con)fundindo
todas as coisas, como se costuma caracterizar a poesia. Trata-se do abandono deste par
em favor de outro elemento, estranho a ele e que, num sistema centrado seria secundário
em importância, não raro marcado pela perversão: a variação, a mudança contínua
potencializada no processo, no “verbo, triplo, prolixo”.

Há neste período (“Tudo era seu múltiplo, verbo, triplo, prolixo”) com sua
profusão de laterais (l) e flepes (o “r” de “triplo” e “prolixo”), com suas aliterações de
bilabiais e sua paronomásia (múltiplo, triplo, prolixo), a afirmação da multiplicidade
que descamba para o descontrole de “prolixo” — que também é, anagramaticamente,
“pro lixo”, como o próprio poema irá explorar mais à frente. A diferença, o erro da
prolixidade, o ímpar implícito em triplo, tudo isso leva justamente à imperfeição, à
impossibilidade da unidade que, antes de se desdobrar no múltiplo, parece ser uma
ilusão construída na multiplicidade — ilusão expressa no título, “o par que me parece”.
O parecer aqui pode indicar uma semelhança de fato, o encontro da metade que faltava
para se consumar o uno perfeito, a língua perfeita. Mas o verbo parecer significa
também ilusão, engodo, a falsidade da semelhança. Esbarramos aqui no problema do
duplo, tal como Roland Barthes coloca em S/Z:

A perfeição é uma extremidade do código (origem ou fim, como queiram); exalta ou


põe fim à fuga das réplicas, suprime a distância entre o código e a performance, entre
a origem e o produto, entre o modelo e a cópia; e, como esta distância faz parte do
estatuto humano, a perfeição — que a anula — encontra-se fora dos limites
antropológicos, na sobre-natureza (...) pois a vida, a norma, a humanidade não são
mais que migrações intermediárias, no campo das réplicas. (Barthes, 1992, p.101).

Em “O par que me parece” há o desejo de uma língua perfeita, mas esta língua
trabalharia somente no “campo das réplicas”, das falsas identidades, geradas de forma
quase descontrolada, prolixa, pro lixo. O próprio poema parece um engodo, com todas
as suas reminiscências bíblicas, tacitamente distribuídas pelos versos como armadilhas
para os decifradores encantados. A temática, que pareceria ser a de uma poética de

20
ascese mística, se dissolve em multiplicidades: a língua perfeita é a multiplicidade, a
imperfeição em escala máxima, a fuga para todos os lados, escapando de toda unidade.
Se a variedade é um erro, um desvio, o que se deseja no poema é o erro ao infinito: a
variação contínua.

O grito, diante dos sons da linguagem, é a consubstanciação do não sentido, do


não conceitual, portanto exprime o irracional e constitui o ruído na linguagem:

Gritos eram os únicos.


O resto, ia pro lixo.

A unidade, ainda não nomeada, mas sempre à espreita no poema, revela-se na palavra
“únicos”. Mas é uma revelação no mínimo paradoxal e mais obscurece que clarifica,
pois o que é uno e tem primazia é justamente a potência da variação dos sentidos: o
grito, como a música, é um signo constituído apenas do significante, sobre os quais
variam os significados (sentidos), se é que possa ser-lhe atribuído algum. Mas o grito
não é também o Significante primordial (o que implicaria somente num deslocamento
da unidade do significado para o significante), mas uma variação significante: outra
remissão do grito é a ação, no mesmo sentido que nos referimos a ela em Distâncias
mínimas, ou seja, como elemento estranho à fixidez, seja a da língua, a do sujeito ou a
da cultura. A ação implica em mobilidade e provisoriedade, em processos que se criam
e se dissolvem: processos continuados que dão a ilusão de unidade: ritos. Aqui também
é lícito lermos “ritos” (no plural) por dentro de “gritos”: a repetição dos ritos é o
prenúncio da fixidez do mito4, mas este, enquanto rito (ação) se encontra sempre a
mercê das variações, enxergadas muitas vezes como deturpações: não é à toa que as
religiões erigidas numa sólida tradição (será possível a solidez?) mantêm estrita
vigilância sobre os seus rituais ou os reduzem ao mínimo possível.

A unicidade (“Gritos eram os únicos”) é atribuída justamente ao que não


hierarquiza, não delimita sentidos e não se fixa, ou seja, à potência da variação. Portanto
é uma unidade controversa que afirma justamente o plural e a diferença; e a identidade,

4
Quando nos referimos à fixidez do mito, estamos nos referindo à crença de sua fixidez e não a qualquer
conceituação de mito, seja ela das ciências sociais ou da psicologia. De certa forma vamos construir nossa
própria definição neste trabalho, não muito rigorosa, mas, cremos, suficiente para o nosso trabalho. Em
termos muito gerais, esta definição vai delinear o mito como um construto humano que aspira à
permanência e ao sagrado. Assim inverte-se a ordem das construções, pois, de acordo com a crença,
sendo o mito permanente e sobre-humano em oposição à precariedade do humano, implica que dele é que
decorre as coisas terrenas, inclusive o rito. A este último costuma-se atribuir a imutabilidade, devido à sua
relação (de re[a]presentação) direta com o mito, mas se considerarmos o mito como construto humano é
lícito inferirmos que o mito é construído pela repetição de ritos que, reduzidos a ações humanas (não
decorrentes do mito e do sobre-humano, mas seus construtores), passam ao estado de performances,
passíveis de desvios. Ora, o desvio no elemento construtor (rito) implicaria no desvio do construído
(mito). Daí segue-se que a variância é um atributo tanto do mito quanto do rito, mas neste último, (que é
ação humana e é primeiro — “g-ritos eram os únicos”) é que estaria a potência da variabilidade que
minaria a ‘permanência’ crida do mito.

21
quando atingida, o é pela repetição, pela duplicação imperfeita constituída da
multiplicação dos ritos e seu risco, sempre iminente, do desvio. Nestes dois versos o fim
do período coincide com a pausa métrica, marcando o final de uma redução progressiva
que se inicia no terceiro quarteto, no qual o período se limitava a dois versos — e a
quatro nos dois primeiros quartetos. Parece que a unidade entre período e quarteto vai
progressivamente sendo minada e a sintaxe vai se fragmentando até que o período seja
reduzido a um único verso, como a língua perfeita seria reduzida aos gritos. Esta
multiplicação de períodos no quarteto marca uma espécie de anticlímax do poema,
justamente onde as expectativas da ascese e da comunhão com as Origens são
frustradas: o resto ia pro lixo: aqui há uma inversão de valores, pois o que vai para o
lixo é justamente o que obstrui a pluralidade; o que, ao contrário de grito, é linguagem,
conceito, palavra. Como “pro lixo” também é, por irradiação, “prolixo”, o que é
considerado demais e redundante, portanto inútil, é justamente a palavra, reforçando a
inversão, já que o “prolixo” do verso anterior parecia referir-se ao “múltiplo”, à
variação incontrolada, como já dissemos.

Após o anticlímax há um retorno à condição inicial no último quarteto:

Dois leos em cada pardo,


dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade
silêncio, está tudo duplo.

Aqui o período volta a coincidir com o quarteto, as rimas alternadas retornam, dando a
impressão de uma simetria mais regular. E o tom é de epifania, identidade, completude,
unidade, revelação. Por esta última perspectiva o movimento geral do poema (sua
estrutura profunda?) é o de uma expectativa calma em relação a uma suposta língua
perfeita que, à medida que vai se desenvolvendo, provoca uma série de abalos, após os
quais vai se restabelecer a ordem num outro patamar, digamos, mais elevado: a vitória
da unidade em sua dialética com a multiplicidade.

Uma das palavras que usamos para afirmar esta unidade é “completude”, a qual
supõe uma falta, justamente a enunciada no início do poema: “Pesa dentro de mim / o
idioma que não fiz”. De fato, os dois últimos versos remetem à Bíblia:

(...) tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba; mas havendo
profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará; porque,
em parte conhecemos, e em parte profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito,
então o que é em parte será aniquilado. (...) Porque agora vemos como em espelho,
obscuramente, então veremos face a face; agora conheço em parte, então conhecerei
como também sou conhecido. (Bíblia, NT, 1 Coríntios 13:7-12).

22
O amor (e o Deus cristão é o amor) é a completude da metade que falta. O poema de
Leminski remete ao amor o tempo todo (à completude das partes?). A dúvida é se
podemos lê-lo como uma vitória desta completude divina sobre as crises que vão
permeando esta busca do que falta: a língua do amor. E se podemos recobrir esta
característica de completude com a de unidade e identidade centradas. Cremos que esta
leitura é plausível e que não há como excluí-la como incoerente ou algo assim. É uma
leitura orgânica, das grandes estruturas do sentido e que fecha círculos (o último
quarteto é uma retomada do primeiro), mas que pode conviver, no mesmo poema, com
outra, que brota nas frinchas da estrutura. Esta outra leitura não é uma via contrária,
embora seu efeito possa sê-lo, mas uma espécie de corrosão que convive com o sentido
pacificador. Portanto, não é o caso de nos decidirmos por um ou outro caminho, mas
apenas indicar os percalços e desvios que sofre o suposto caminho principal da
interpretação, mostrando que este, na verdade, só parece ser principal porque constrói
uma legibilidade mais pacificadora: o poema como um universo que se curva, fechando-
se em si, correlato de um mundo também Uno (uniforme), a ser atingido pelo homem.

A primeira pergunta a se fazer é: o que será que falta, quando nosso ponto de
vista é a multiplicidade e a unidade (ou identidade, ou Ser, ou perfeição, ou essência) é
uma construção? O Uno, atingido quando acharmos nossa outra metade (está tudo
duplo) na verdade não falta, justamente porque não cabe como Ser numa perspectiva
que enxerga o mundo como multiplicidade: não há, deste ponto de vista, nenhuma falta.
Os pares são pareceres, aparências, duplos construídos, ritos repetidos. O encontro de
uma língua que falta pode ser então a revelação, não do Ser que faltava, mas de uma
perspectiva em que não há falta, apenas expansão do desejo (amor): “tudo era seu
múltiplo, / verbo, triplo, prolixo”. O quarto quarteto, ao invés de um momento de crise e
provação pelo qual passaria aquele que busca o sentido, pode ser lido como o auge da
libertação de qualquer sentido, de qualquer sujeição à lei, ao código: gritos (ritos,
processos) eram os únicos. A falta implica, como seu contrário complementar, uma
presença, plena de si, a ser encontrada. Este poema bem que poderia ser, até o quarto
quarteto, a frustração desta busca, que significa a descrença na presença. Mas se esta
não existe, também não há falta, e esta falta da falta (desculpem o trocadilho) pode
muito bem ser tomada como uma liberdade, como suficiente para a vida: mais que
suficiente, necessária. Esta liberdade que se deve à primazia do processual, da variância
e da multiplicidade, sobre a fixidez estrutural (presença) se aproxima da atitude que
Derrida propõe de “pensar radicalmente” o jogo (ação, processo) da estrutura que
condiciona — e portanto deve prevalecer sobre — o par presença-ausência num
sistema:

A presença de um elemento é sempre uma referência significante e substitutiva


inscrita num sistema de diferenças e o movimento de uma cadeia. O jogo é sempre
jogo de ausência e de presença, mas se o quisermos pensar radicalmente, é preciso
pensá-lo antes da alternativa da presença e da ausência; é preciso pensar o ser como

23
uma presença ou ausência a partir da possibilidade do jogo e não inversamente.
(Derrida, 1995, p. 248)

A partir desta (anti)revelação da falta da falta, o último quarteto não precisa mais ser
lido como uma vitória da unidade e do sentido (Bem) que falta contra a multiplicidade
(Mal) que frustra o encontro e que deve ser vencido.

A vida precisa de pares (“se semelhe te sigo”), ordens mínimas, pequenos


fechamentos de sentido para se perpetuar: amor (em seus vários sentidos) talvez seja a
palavra mais exata que nós, ocidentais, temos para exprimir esta necessidade vital. Mas
o amor (que é uma temática deste poema) é um campo semântico no qual trava-se uma
luta, tão antiga quanto a palavra: ele implica numa expansão (órfica, dionisíaca) infinita
do desejo ou se avizinha do conhecimento e do conceito, tornando-se prudente e contido
em busca de algo ou alguém que tudo una numa ordem perfeita e intemporal?

Dois leos em cada pardo,


dois saltos em cada pulo,

O leopardo, como felino, remete à força, velocidade, precisão e inteligência: o


pulo do gato é o que ninguém sabe ou espera e que o livra das situações mais adversas.
O que remete a outra alusão possível que é a da sabedoria de vida que os felinos têm.
Tudo isso são lugares comuns tirados da cultura (erudita, popular), o que não
desqualifica o poema, nem, cremos nós, a leitura: o quê, na cultura, nunca foi dito e não
constitui, pelo menos potencialmente, um lugar comum? Tudo depende, para se escapar
do lugar comum, do manejo, das combinações que são feitas com os códigos culturais.
Mas, além destas possibilidades de sentido, a palavra “leopardo” contem “léo” e
“pardo” de onde deduzimos leão (ou leonino) pardo. Mas uma leitura que os puros
chamariam de pervertida e os hereges de divertida, pode chegar a “léu” de “ao léu”, que
remete ao casual e à ausência de finalidade. O “pardo” de “leopardo” remete também ao
ditado (e Leminski era obcecado pelos ditos populares): no escuro, todos os gatos
(leopardos?) são pardos. Pardo aparece então como signo do indiferenciado e da
confusão: algo muito próximo do que temos chamado de multiplicidade. Há duas
leituras de “leo”: o felino (o gênero ordenador e hierarquizador) e o indefinido (o acaso
entrópico). Mas há também duas leituras de “pardos”: a cor que define a espécie
(individuação) e a cor da indiferenciação (dividuação, pluralidade). Leopardo: signo, ao
mesmo tempo, da semelhança e da diferença. Em cada pulo (processo) há, na verdade,
dois saltos (dois processos): um que se fecha na definição das ordens hierarquizadas
(leo=gênero, pardo=espécie) e outro que constitui a fuga das hierarquias, fazendo
proliferar os sistemas codificados (leo=acaso, pardo=indefinição), descodificando-os
quase que rumo ao caos absoluto: acaso, indefinição. Mas o organismo convive com sua
desorganização e é preciso preservá-lo, minimamente que seja, para que ainda haja vida:
o poema (a atividade poética) talvez seja este limiar, ou melhor, o meio de se atingir

24
“aquela língua sem fim” que se aproximaria da almejada descodificação quase absoluta:
lugar onde não há mais falta nem unidades, apenas ordens mínimas, prontas a se
metamorfosear, como no poema a seguir:

Mínimo templo
para um deus pequeno
aqui vos guarda
em vez da dor que peno,
meu extremo anjo de vanguarda.

De que máscara
se gaba sua lástima,
de que vaga
se vangloria sua história,
saiba quem saiba.

A mim me basta
a sombra que se deixa,
o corpo que se afasta.
(Leminski, 1987a, p. 104).

Este poema5, que tem como “tema explícito” o hai cai, mas que se aplica a toda
prática poética de Leminski, é uma espécie de afirmação da fuga. Não se quer exprimir
“a dor que peno” e nem saber das máscaras, das profundidades do sujeito. Foge-se
inclusive das vagas da história — da progressividade causalista e explicadora da
história? História do indivíduo ou da sociedade? Foge-se do saber (saiba quem saiba),
das explicações, restando ao poema/poeta (“a mim me basta”) ‘apenas’ a exploração dos
efeitos indiferenciados sem causa definida (“a sombra que se deixa”), a precipitação em
velocidades de distanciamento: “o corpo que se afasta”. Exaltação do hai-kai, mas
também afirmação da opção poética de Leminski: linha de fuga rumo a descodificação,
ao a-significante, ao a-subjetivo, preservando, no entanto, um pouco de significância e
subjetivação, um “mínimo templo para um deus pequeno”. Templo que não guardaria
grandes estruturas cristalizadas (Ser), nem profundezas, mas pequenos pedaços de
organismo, perto de seu limite de precipitação em desordem: “meu extremo anjo de
vanguarda”.

Voltando a “O par que me parece”, o duplo aparece como identidade ou como


diferença? Parece que os processos (pulos) e os sistemas (leopardos) estão sempre numa
situação ambígua neste poema, pois são um só e, ao mesmo tempo, diversos, reversos.
Esta contradição pode ser entendida como a síntese dos contrários, rumo à identidade, e

5
Que se intitula “KAI”, formando um duplo com outro chamado HAI, numa espécie de elogio/reflexão
ao hai kai, gênero admirado e praticado por Leminski.

25
assim voltamos à leitura pacificadora que deságua na unidade — como dissemos, não
descartamos esta leitura. Mas o paradoxo pode ser lido também como uma duplicidade
construída que ignora, por um momento, as diferenças para se assemelhar, para parecer.
No entanto o duplo também contém e pode precisar da diferença, que pode ser benéfica
para que os pares (o amor) não se cristalizem em poder ou em morte. Pode-se dizer que
há, realmente, uma epifania no último quarteto, mas esta talvez não implique no
encontro com a unidade, mas na revelação da pluralidade na qual não há mais unidade
que procurar, somente pares a construir, como no poema, como na vida, como no amor
— pois todos estes podem ser temas do texto de Leminski. A partir desta constatação de
inexistência do Uno (e não do seu encontro) tudo se parece:

eu que só via a metade,


silêncio, está tudo duplo.

Esta última leitura corrompe a circularidade de uma leitura pacificadora, pois se não há
o encontro que faltava e nem há mais falta, o que existe é a expansão contínua dos
duplos em sua alteridade e identidade simultâneas.

Há uma indefinição temática neste poema, que há também em “Distâncias


mínimas”: de que fala ou, pelo menos, a que sentidos o poema remete (ou resvala)?
Ambos os poemas pertencem a Distraídos Venceremos e no prefácio desta obra
Leminski faz a seguinte introdução/advertência, ela mesma uma espécie de poema em
prosa:

Nas unidades de Distraídos Venceremos (1983-1987), resultado do impacto


da poesia de Caprichos e Relaxos (1983) sobre a fina e grossa cútis da minha
sensibilidade lírica, calmes blocs ici-bas chus dún desastre obscur, cadeias de Markoff
em direção a uma frase absoluta, arrisco crer ter atingido um horizonte longamente
almejado: a abolição (não da realidade, evidentemente) da referência, através da
rarefação. (Leminski, 1987a, p. 7).

De onde podemos ver que a indefinição semântica é intencional. Mais que intencional,
talvez seja uma necessidade, pois como vimos em “Distâncias mínimas” e “O par que
me parece”, a abolição da referência (entendendo-a como o referido pela convenção, o
normal, ou a norma codificada) é inevitável num trabalho poético que procura
exatamente as frestas no que se crê inconsútil, o momento da construção do que se crê
intemporal, a mobilidade do que se crê assentado em bases sólidas. Neste espaço-tempo
do indefinido e aberto a todas as possibilidades (inclusive a da entropia total, da morte),
como definir claramente entidades, temas, sentidos se estes estão por nascer?

Pelo que dissemos, parece que Leminski procura por um momento original, no
passado, onde as coisas ainda não se definiram. Nada mais enganoso, pois sua obra não
está nem aquém nem além de algum tempo ou lugar. Pelo contrário, encontra-se
26
radicalmente comprometida com o presente: é no agora e para o agora que se procura a
abertura a novas e particulares possibilidades. O ‘antigo’ de “Distâncias mínimas” e o
‘hitita’ de “O par que me parece” remetem a tempos imemoriais, à nossa tradição, mas
nos dois casos há uma afirmação do presente e da circunstância, inerentes à ação, ao
processo que é sempre singular e circunstancial e que é um elemento fundamental,
como vimos, nestes poemas. A tradição (ou a cultura mesma) é um processamento
(enredar) constante do texto-morcego, dos (g)ritos duplicados/multiplicados
infinitamente: ela é antes um uso que uma presença.

***

Neste texto e no anterior ensaios tratamos obstinadamente do par sujeito-objeto


e sua presença na (leitura da) poesia. Isto se dá porque temos que nos haver com a
tradição em qualquer trabalho textual e há, estabelecida nesta tradição, uma definição
ainda válida (quando dizemos válida, referimo-nos à validade dos códigos,
convencionada) da poesia, que se constitui exatamente da oposição entre sujeito e
objeto.

O lirismo se define então por sua subjetividade, pela expansão dos estados
interiores, subjetivos (não necessariamente do poeta, mas de um eu lírico), que vão
englobar toda a realidade circundante. A lógica analógica da metáfora, os paralelismos
sonoros, as rupturas sintáticas, tudo isto seriam índices da manifestação do sujeito,
essencialmente (e inconscientemente) onírico, simbólico, imagético. O mundo interior
se abre e acolhe o exterior, tornando-o uma extensão de suas leis muito particulares.

A tentativa de uma poesia objetiva, voltada para as coisas (sejam elas do


mundo: a sociedade; ou do signo: o significante) suscita logo a categoria da anti-lira,
que se define pelo centramento no objeto e a recusa do sujeito e da subjetividade. Mas
esta permanece, seja como antagonista necessária (o mal), seja como o elemento
marginalizado que retorna pelas frinchas dos artefatos poéticos, nunca perfeitamente
impermeáveis ao fluxo subjetivo — nem que seja a da subjetividade coletiva. Como o
poema-objeto pode se tornar impermeável à expressão subjetiva se ele se define pelo
confronto com o sujeito? E o confronto não deixa de ser uma interdependência.

A identificação da poesia com a subjetividade não seria uma invenção


romântica (talvez renascentista)? Este sujeito seria primeiro o cristão, sólido e imutável,
que se esfacelava com a consolidação do capitalismo e, depois, o sujeito moderno,
freudiano, problemático, esfacelado. Este último até se concilia bem com a chamada
anti-lira ou poesia objetiva: o foco no objeto seria a expressão desta subjetividade
cindida. Em todo caso há o sujeito (ou o Sujeito), seja o inconsútil de uma suposta
poesia romântica, seja o cindido da poesia modernista — mas cuja unidade, mesmo que
inatingível, se constitui numa meta a ser alcançada, seja pelo retorno nostálgico ou pela

27
projeção utópica. Não obstante, parece perpassar as obras dos poetas a desconfiança a
respeito da funcionalidade da leitura que vê em suas obras, ou a expressão da
subjetividade, ou a construção de objetos poéticos: o que designa, para Oswald, Mário,
Drummond, Gullar, a primeira pessoa ou o nome próprio? Mas a crítica sempre pode
contornar estes problemas evocando a subjetividade problemática, esfacelada, múltipla,
mas sempre subjetividade: problemática, esfacelada e múltipla são atributos que a
complicam, mas não retiram sua essência. Do outro lado, na margem objetiva (a anti-
lira ou poesia de estruturação), a crítica pode sempre dizer: a subjetividade falta; e com
razão, pois a poesia se define (não que ela seja realmente) por esta falta que é seu pólo
complementar e, portanto, necessário.

De fato, a oposição e a ruptura (e a poesia da estruturação se propõe como um


discurso de ruptura), não raro, apenas vêm confirmar as polaridades de um sistema, o
seu jogo pré-constituído de ausências e presenças, reforçando a unidade sujeito-objeto
que se pretendia desintegrar com a opção pela objetividade:

(...) a destruição do discurso não é um termo dialético, mas um termo semântico:


alinha-se docilmente sobre o grande mito semiológico do versus (branco versus
negro); a partir daí a destruição da arte está condenada às exclusivas formas
paradoxais (aquelas que vão, literalmente, contra a doxa): os dois lados do paradigma
estão colados um no outro de um modo finalmente cúmplice: há acordo estrutural
entre as formas contestantes e as formas contestadas. (Barthes, 1977, p. 71).

E há também meio-tons, sínteses sujeito-objeto, eu-mundo que permitem uma variada e


complexa gama de cruzamentos e entrecruzamentos entre as duas essências. Os poetas
realmente costumam sonhar, devanear, delirar, enlouquecer. Há os que são lúcidos e
geométricos, projetistas de linguagens. Certamente são ambas as coisas: o delírio não se
apossaria das atividades supostamente lúcidas, como a ciência e a engenharia, nos seus
momentos criativos? Mas o que garante serem estes delírios uma expansão da
subjetividade individual, de seu inconsciente ou o de um suposto eu lírico (que apenas
torna o ser da subjetividade mais abstrato e ideal)? Não resolvemos o problema
deslocando a subjetividade do indivíduo para a coletividade ou sua linguagem, se ainda
concebemos esta coletividade como sistemas centrados: a cultura brasileira; a língua
brasileira; a linguagem enquanto estrutura ou mesmo a linguagem literária em sua
imanência.

Mas se fizermos uma pequena subversão nas classes gramaticais, usando, não o
adjetivo ‘múltiplo’, mas sua forma substantiva, como Deleuze usa, a ‘multiplicidade’,
como ficaria a subjetividade? Tornar-se-ia, por inversão o adjetivo ‘subjetivo’?
Teríamos então uma multiplicidade subjetiva, mas somente como resultado de um
processo de subjetivação, que pode comportar o seu contrário, de des-subjetivação: a
subjetividade se tornaria uma ação, um verbo (subjetivar) de uma pluralidade.

28
“Distâncias mínimas” realiza, entre tantas coisas, um processo (que é sempre uma
tentativa) de subjetivação. Mas a subjetivação não é somente a construção de um sujeito
individual ou coletivo (isto ainda seria a busca do sujeito perdido): ela pode ser
qualquer delimitação, de um evento, objeto, texto. Mesmo quando se diz ‘eu’, o que nos
garante que este pronome não passa de uma construção textual (ruinosa)? Qualquer um
destes individuados é constituído de multiplicidades, não que eles as contenha (isto
reavivaria o dentro e o fora, o micro e o macrocosmo), mas são atravessados por elas
que, por sua vez, perpassam outros sistemas, sempre mudando os ‘ambientes’
perpassados e também se modificando a cada conexão que faz. É o caso do texto-
morcego e da cultura-caverna: ambos são textos plurais que se interpenetram, ou
melhor, pluralidades que mudam de regime, que se ajeitam, ora como morcego, ora
como caverna: não há, rigorosamente, nem morcego nem caverna, nem texto nem
cultura, apenas gritos e ecos, texturas e aculturação: subjetivações diferenciadas.

As loucuras e os delírios do poeta (ou do eu lírico) seriam o abandono de si a


estes fluxos e refluxos que constituem e atravessam as subjetivações precárias e não a
expressão de um sujeito centrado ou esfacelado. Seriam o abandono do eu lírico à
“língua sem fim, feita de ais e de aquis”, do morcego aos gritos e ecos que o guia(?).
Neste processo, nem o poeta é mais ativo do que os fluxos, nem vice-versa, porque ele
mesmo se torna em fluxo como quando nos abandonamos na correnteza de um rio:

Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre
tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais
ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia
gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo;
perdido neste tecido — nesta textura — o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que
se dissolvesse ela mesma nas secreções constitutivas de sua teia. Se gostássemos dos
neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o
tecido e a teia de aranha). (Barthes, 1977, pp. 82-83).

Geralmente o sentido normal das coisas (as convenções) se quebra no exercício


poético, isto é lugar comum. Uma destas normalidades rompidas é a da arbitrariedade
do signo, a qual pode ser interpretada como uma tentativa de unir corpo (significante) e
alma (significado) no nível da linguagem. É claro que todo este rompimento com a
normalidade da língua remeteria a uma suposta língua mais pura: delírio teleológico
rumo às essências. Mas a construção da motivação do signo como rompimento com a
normalidade, pode ser apenas mais um processo particular de subjetivação que resulta
no texto poético, ele mesmo uma individuação constituída (ladeada, atravessada,
encharcada) de plural: o poema é um ‘sujeito’, a multiplicidade subjetivada. Como diz
Samuel R. Levin, “o poema gera seu próprio código, do qual é a única mensagem”
(1975, p. 67). Esta singularidade radical do poema é que o faz fugir das pré-
codificações, inclusive as de transcendência ontológica: corpo+alma=Ser. O delírio
codificador ao qual se abandona o poeta sob a perspectiva dos sistemas abertos é um
29
abandono aos fluxos da multiplicidade que, se são subjetivados, não deixam de mudar
de natureza a cada subjetivação (o poema gera seu próprio código) e não imitam ou
simbolizam outro sujeito, ou seja, não galgam redes hierárquicas rumo à subjetivação-
mor, seja ela a essência do Ser, seja a estrutura da linguagem poética.

Leminski, enquanto articulador, conector e desconector de dispositivos, não só


de linguagem, mas culturais, subjetivos, religiosos, simbólicos, enquanto poeta enfim,
deixa perpassar esta perspectiva (ou esta possibilidade de uso) de sua obra: a da textura,
ou melhor, a do tecer-se sem saudade da fixidez ou do molde enquanto causa inicial ou
final do enredamento. Mas esta fuga do molde e do centramento não perpassaria toda a
poesia, sendo sua identificação com a subjetividade, com uma função quase sagrada de
preservação do Ser, apenas uma arborescência de autoritarismo numa atividade que
sempre se caracterizou pela propagação? Praga: rimas, aliterações, ecos, ritmos, versos,
pausas, analogias, contrastes, pares, pareceres, duplos, acoplamentos, conjunções e
disjunções, fluxo, cortes de fluxo, fazer-se, geração delirante de códigos, expansão do
desejo.

30
FRAGMENTO 1

Só a categoria da multiplicidade, empregue como substantivo e superando tanto o


múltiplo como o Uno, superando a relação predicativa do Uno e do múltiplo, será
capaz de explicar a produção desejante: a produção desejante é multiplicidade pura,
ou seja, afirmação irredutível à unidade. Estamos na idade dos objetos parciais, dos
tijolos e dos restos. Já não acreditamos nesses falsos fragmentos que, como os
pedaços de uma estátua antiga esperam vir a ser completados e reunidos para
comporem uma unidade que é, também, a unidade de origem. Já não acreditamos
numa totalidade original, nem sequer numa totalidade final. Já não acreditamos numa
velha pintura de uma enfadonha dialética evolutiva, que pensa que pacificou os
pedaços porque lhes arredondou as arestas. (Deleuze; Guattari, 1995a, p. 45).

Estas palavras de Deleuze e Guattari vão ao encontro do que tenho dito neste
texto a respeito de Leminski. Estaria eu interpretando (ou usando, torcendo e
distorcendo?) este último à luz do pensamento daqueles? Creio apenas que as idéias
de ambos confluem com a produção textual do próprio Leminski, de modo que o que
faço aqui é antes aproximá-los do que aplicar o pensamento de uns sobre a arte do
outro. A totalidade originária ou teleológica, o ser essencial e metafísico são
abandonados nos poemas, em favor da multiplicidade. O pensamento de Deleuze e
Guatarri constitui, para mim, uma perspectiva que facilita a abordagem dos poemas
onde outros pontos de vista, mais solidamente instalados no campo literário, apenas
criavam empecilhos constantes. Neste sentido, posso dizer que me proporcionaram
um instrumental mais adequado para a tarefa que me propus: uma abordagem da obra
de Paulo Leminski. Mas um instrumental não implica em método e muito menos em
filiação a uma escola ou corrente, apenas um desbloqueio, algo como uma chave ou,
como diriam Deleuze e Guatarri, uma máquina desejante que se conecta bem à
máquina que é a obra em questão: de modo algum uma fôrma onde a obra (e eu)
seria(mos) aprisionada(os).

Há em Leminski uma rebeldia ao enquadramento, inclusive ao auto-


enquadramento, em alguma totalidade. Pode-se afirmar que, ao eleger o substantivo
como lema de sua poesia, os concretistas pretendem atingir um lirismo básico,
estrutural, dispensando todos os badulaques expressivos tão caros à poesia em língua
portuguesa, particularmente brasileira. No pólo oposto, a lírica se subjetiva e a
linguagem, no limite da hipertrofia do sujeito, torna-se um mero predicado da atividade
criadora. Este sujeito hipertrofiado pode ser tanto uma coletividade (a sociedade, a
cultura, o homem brasileiro) quanto uma individualidade, uma pessoa. As coisas
podem se embaraçar e ficarem muito complexas, mas os pólos continuam a agir.
Primeiro o pólo sujeito-linguagem; o primeiro termo deste se subdivide em sujeito
individual e sujeito coletivo: indivíduo e sociedade; o segundo, por sua vez, se
decompõe em forma e conteúdo, significante e significado. Dados os elementos do
sistema, resta verificar suas sutilezas, seus melindres em cada autor: como enquadrar
Mário, Drummond, Bandeira? Há também que moldar o sistema às influências
estranhas, estrangeiras: e Joyce, Pound, Mallarmé? Como enfrentar/absorver a crítica
psicanalítica, estruturalista, culturalista? Essa perspectiva crítica, ao mesmo tempo
simples e engenhosa (pois permite uma crescente complexidade), é exatamente a que

31
se instaura no Modernismo Brasileiro que, na sua dominante, como vê bem Antônio
Cândido (1976), se propõe a uma busca das peculiaridades brasileiras, do Brasil,
portanto ainda inserindo-se dentro do projeto de construção de uma identidade
nacional: identidade, unidade, totalidade. Mesmo que o fracasso seja inevitável e a
tentativa resulte no Macunaíma, a unidade é, no mínimo, um porvir utópico.

Mas a pergunta que se deve fazer é se a crítica literária brasileira também


não desposou, à sua maneira, este projeto, não apenas como contempladora altiva da
luta dos artistas, mas principalmente como combatente às vezes mais atuante que os
próprios artistas. De Cândido à Schwarz e Bosi, de Oswald aos Concretos, pela forma
ou pelo conteúdo, universal ou particular, com todos e com tudo que se tinha à mão,
da década de 20 à de 50, toda a literatura do Brasil Colônia, Imperial e Republicano foi
relida, revista (reusada e retorcida); muita crítica literária foi produzida, tudo isto para
se construir um prédio, um tanto ruinoso, que se chama Literatura Brasileira que, por
sua vez, é fundamental numa cidade chamada Cultura ou Sociedade Brasileira. É
admirável toda esta Tradição construída em tão pouco tempo, mas talvez sempre
tenha perpassado entre seus artífices-mores a sensação de que esta unidade toda
estava sempre por ruir, se é que já não esteve o tempo todo arruinada: mas isto é um
mal-estar de todos os modernos, sejam eles brasileiros ou europeus, pois a
modernidade é exatamente a tradição da ruptura como nos ensina Octávio Paz (1993,
cap. 1). Mas mesmo neste tipo de (anti)tradição, ainda sobrevivem lugares que
transcendem todo movimento, tais como sujeito-objeto, forma-conteúdo: Cabral é
objeto e — ao mesmo tempo e à sua maneira — forma e conteúdo. Estes portos
seguros não significam nem simplicidade nem comodismo, pois suas variações são
complexas e os caminhos para os portos cada vez mais tortuosos e perigosos. Talvez
os concretistas representem, ao mesmo tempo, o ápice e a ruína desta aventura
totalizante. Sua obsessão pela estrutura se mescla à paixão pelo movimento; sua
objetividade rigorosa se deixa contaminar pela vivência vanguardista, de furor e
entrega; seu projeto de construir “paideumas” e novos cânones radicais, portanto de
conquista de poder dentro do campo literário, se contamina muitas vezes com
casamentos suspeitos com a música popular, com a ruptura constante consigo mesmo
e com o contato — crítico e entusiástico — com os meios de comunicação de massa.
Mas ainda assim afirmavam sua poética substantiva como lema — será que a
praticaram?

Se pudesse indicar a classe gramatical em que se enquadra a poética de


Leminski, a única que me vem à mente é a do verbo. Isto já foi afirmado por mim na
análise dos poemas. Ora, o sentido dessa afirmação, quando colocada em confronto
com a tradição da crítica literária brasileira, de que estou tratando aqui, é a de uma
inadequação das ferramentas ou das categorias que ela me oferece para abordar sua
poesia. A crítica modernista tem elaborado sistemas em que a obra deve ser
apreendida. É claro que, para isto, ela parte das próprias obras e do campo social, ou
pelo menos de um nível de exigência destes — sempre há vários —, mas seus
sistemas talvez não sirvam para abordar Leminski. Em primeiro lugar porque sua obra
não parece pedir para ser apreendida, nem mesmo como uma “obra aberta” que
sonha ou lamenta o seu impossível fechamento. Em segundo lugar, se eu insistisse

32
em fechá-la nos códigos de apreensão modernistas, fatalmente o resultado de minha
pesquisa seria o de que Leminski é um poeta falho, cheio de trocadilhos e cacoetes,
incapaz de engendrar poemas longos ou investir em metáforas densas e profundas.
Esta incapacidade, esta recusa das profundezas que ele faz questão de afirmar —
“Detesto a poesia dita profunda. Estou cagando e andando para a psicologia”.
(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 194). — é elemento constituinte de sua poesia de
“ventania”, rajadas de vento que impulsionam seu texto sempre para mais longe de
qualquer porto: engendrar-se perpétuo que não se quer deixar aprisionar em códigos
literários. Assim, o exercício textual, que sob o ponto de vista dos sistemas literários
pré-armados pode parecer superficialidade no sentido pejorativo do termo (o que se
opõe à essência é o excremento), pode ser tomado como a superficialidade mais
intensa e mais revolucionária:

Pra que sirvo se não pra isto,


pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super superfície
onde o verbo vem ser mais?
(Leminski, 1987a, pg. 83).

a que nem pergunta mais pela presença, pelas essências ou pela verdade e expande-
se (e torna-se) na superfície do texto-textura que nada encobre: nenhum mito por
baixo, apenas registros de superfície, ritos repetidos e diferidos — em processo.

O verbo não estabelece presenças como o substantivo, nem se identifica com


atributos destas presenças, caso do adjetivo (ou da predicação, do ponto de vista
sintático). Ele é apenas o processo, a ação e o movimento constantes, sem origem ou
fim necessários que lhe pré ou pós existam — não há um aquém ou um além do
processo. O que não quer dizer que ele seja um fim em si mesmo, um meio que se
torna fim, mas simplesmente seus fins são absolutamente circunstanciais,
negociações permanentes: a finalidade de um processo é sua efetivação, mas esta
não se liga a nenhuma causa inicial ou teleologia que lhe guie. Efetivação é um termo
muito próximo de subjetivação, construção de limites provisórios: não são os limites (e
os territórios que eles definem) depois de dados que importam (eles nunca estão
completamente dados ou terminados), mas sua construção e uso, sua efetivação. É
claro que numa construção sintagmática aceitável (submetida a um código) a ação
remete (depende) quase sempre a um sujeito e muitas vezes a seus atributos. Assim
também se comportam as narrativas clássicas: sempre existem agentes causadores
da ação, segundo determinados códigos narrativos e culturais. Mas se se aceitar que
estes códigos são construtos (e uma contribuição fundamental do estruturalismo foi
tomá-los como tais) pode-se supor que outras leis poderiam reger as narrativas e os
sintagmas. Mas também se pode supor que a ação, que os processos é que
constituem o elemento fundamental de um sistema ou, se quiser, de uma estrutura.
Ora, isto implica em aceitar que tudo nesta suposta estrutura está fazendo-se
permanentemente, inclusive seus agentes, seu(s) centro(s) e suas leis. Como é
possível a gramática, a unidade ou a presença num tal sistema onde tudo se move,

33
inclusive leis e unidades de medida? Estas questões são freqüentemente abordadas
na obra de Leminski e sua opção, parece-me, é em favor de uma perspectiva que
tende ao movimento e à relatividade própria desses sistemas sem o centro e sem a lei
(ou o código: os dez mandamentos).

Mas que sistemas centrados são estes contra os quais os textos de Leminski
podem ser colocados como uma perspectiva a-centrada? Creio que todos os que se
inscrevem no campo que os antropólogos chamam de cultura, quer dizer,
simplesmente todas as fábulas que se cristalizaram (estruturaram) numa metafísica,
supondo um Ser ou uma Autoridade onipotente e necessária, controlando de fora as
cadeias de eventos do mundo — as fábulas que tomam ou querem tomar o poder. E
(o que me interessa especificamente neste momento) esta perspectiva de fuga da
Autoridade aplica-se à Literatura em geral e à Literatura Brasileira em particular:

Fazer poemas fundindo verbal e visual é sempre uma boa. Como o é fundir verbal e
sonoro-musical, verbal e gestual. O diabo. O que não dá mais para agüentar são
essas argumentações do tipo: ‘No marasmo asmático reinante, é preciso separar o
passo adiante do passo ao lado’. E eu pergunto: Quem vai fazer isso? O general
Newton Cruz? (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 25).

Uma afirmação dessas (que se direciona contra projetos totalitários vanguardistas)


não teria muita importância, entre tantas que alguém inconstante como Leminski fez,
se sua obra não realizasse (ou pelo menos tentasse), de alguma maneira, esta
perspectiva não progressiva — no sentido de se caminhar para algum ápice que
implique em domínio (topo, centro) de uma totalidade. Mas é justamente o que sua
poesia-processo quer realizar: a fuga permanente dos códigos e subjetividades pré-
estabelecidas, a (a)variação constante dos sistemas tornando-os abertos.

34
AIS. OU MENOS

Forma e conteúdo, significante e significado: pares utilizados mais ou menos


como sinônimos pela crítica modernista e nos quais o rigor estaria nos primeiros termos:
a forma e o significante ou a forma do significante caracterizariam as ditas poéticas
rigorosas ou construtivas, assim também como a crítica sensível às conquistas destas
poéticas. Outro par, já conhecido nosso, entraria nesta lógica: exatamente a oposição
objeto-sujeito, completando a tríplice bi-articulação: forma/conteúdo, rigor/não rigor,
objeto/sujeito. Estas oposições foram bem resumidas numa única por Haroldo de
Campos (1970, pp. 203-204): a poesia de estruturação, por um lado e a poesia de
expressão, por outro. Estes termos são muito eficazes, pois explicitam o que está por
trás de muitas brigas que se travam no campo da crítica literária em torno destas
bipolaridades.

Grosseiramente, a expressão implica numa representação e num representado,


ou seja, na expressividade de algo ou alguém supostamente fixo (e inatingível) cujo
jogo representativo tentaria apreender. Este algo ou alguém representado pode coincidir
com a noção de sujeito, identificado como ser fixo e imutável, embora inapreensível,
seja ele Deus, o Homem ou o Eu. O não rigor da poesia de expressão decorreria de uma
certa espontaneidade desta mesma expressão que fluiria naturalmente do ser, bastando
que este estivesse adequadamente motivado para isto: uma grande dor, por exemplo. O
que se representaria do ser seriam conteúdos (ou significados), nacos compreensíveis
(mas incompletos) transportados pela obra e que proporcionariam um vislumbre terreno
e finito de sua natureza sobrenatural, infinita e completa.

A poesia de estruturação implicaria numa prática poética desvinculada (mas


não indiferente) da subjetividade e de sua expressão. Estas seriam colocadas em posição
secundária: ou aquém ou além da prática construtora do poema. Aquém porque ocuparia
a ante-câmera da prática poética, como motivação social ou psicológica que não
interessaria (pois não determinaria a qualidade final do produto) ao objeto literário
enquanto artefato construído. Além porque a subjetividade agiria no momento da
fruição, dando à forma objetiva do poema os conteúdos que este permite (pois o poema
formaliza também conteúdos) e que, ao mesmo tempo, interessam e pertencem ao
receptor, sujeito da fruição. A fruição (recepção) da obra seria definida como o choque
entre a estrutura construída do poema e a estrutura espontânea do sujeito: choque entre
arte e natureza ou, pelo menos, entre arte e sociedade (da qual emergiria a subjetividade
individual – mas a própria sociedade constituiria uma espécie de hiper-sujeito, com
identidade, limites e uma certa fixidez). De certa forma, o concretismo pôs, no âmbito
da literatura brasileira, estes termos de forma transparente, optando pela via do rigor, da
objetividade e da forma, resumidos no termo estruturação.

35
Mas a estruturação, embora se desvincule da expressão, não é indiferente a ela
e a supõe como etapa complementar, necessária à prática poética, embora insuficiente
para determinar sua qualidade. Esta seria determinada pela coisa em si, pela forma
como os significantes são arranjados no objeto poético de modo a subordinar os
conteúdos expressivos que o motivaram (o aquém de sua prática) e a fazer deslizar
sobre a estrutura os conteúdos expressivos que o poema irá estimular (o além da
construção): “O poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente
organizadora, que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o
campo de possibilidades aberto ao leitor.” (Campos, 1975b, p. 100). O rigor seria,
então, fundamental neste processo, pois implica numa (auto)disciplina que controlaria
os fluxos espontâneos, irresistíveis e pouco controláveis da subjetividade. Por que esta
obsessão em fugir do lirismo expressivo, da espontânea expansão subjetiva? Para criar
novidade, mensagens inéditas, rupturas; para evitar as formas gastas, repetitivas e
codificadas. A subjetividade gera e consome formas gastas porque tende à conservação
e a poesia, no entender dos defensores da estruturação, deve ser a revolução das formas
para ser a revolução dos conteúdos, das ideologias, do sujeito e (por que não?) da
política e do regime econômico. A poesia deve multiplicar o sujeito, fazê-lo variar,
romper consigo mesmo: o que é a tradição senão a expressão de um supersujeito
coletivo, seja ele transcendental ou histórico?

O concretismo quer recuperar este supersujeito, a tradição literária, nos seus


pontos obscuros, renegados pela codificação oficial: Sousândrade, Kilkerry, Gregório.
Quer traduzi-la para hoje — ou para amanhã — deturpando-a1, fazendo-a variar com
suas mudanças de perspectiva e suas heresias. Mas aqui o próprio sujeito/tradição já é
encarado como uma construção (como a caverna-cultura no poema de Leminski) e não
como ser, como entidade centrada. Aí está a contradição (saudável) em que o
concretismo se instalou: o sujeito é, ele mesmo, construção, movimento que se cristaliza
em entidade fixa, ou sua fixidez é, de alguma maneira, uma realidade em si? Este
pêndulo, não esclarecido nos anos heróicos do movimento, parece que vai pender,
posteriormente, pela primeira alternativa nas obras dos poetas que tomaram parte do
movimento vanguardista. Mas no “concretismo clássico”2 dos anos 50 e 60 a
ambigüidade prevalece e não raro os concretos vão tratar o sujeito, não como
subjetivação provisória, mas como dotado de uma espécie fixidez, contra o qual eles
vão lutar quixotescamente. Assim, por oposição, a obra literária torna-se também fixa,
um artefato imanente, uma espécie de significante despótico sobre o qual deslizam uma
infinidade de significados passiveis de interpretação, quase um objeto sagrado em torno
do qual circulam os sujeitos, uma imutabilidade formal que dá mutabilidade às

1
Deturpar, aqui, não tem um sentido pejorativo (que teria para os opositores do concretismo) nem
positivo (se assumíssemos a posição concretista, identificando a deturpação com o make it new
poundiano), mas simplesmente operacional: implica em reler a tradição de uma perspectiva não usual,
contestatória, não raro provocativa, o que é uma atitude de toda vanguarda.
2
A expressão, crítica e bem humorada, é de Leminski (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 48).

36
subjetividades que o cercam. O poema concreto não é, por esta perspectiva, lido como
uma estrutura móvel, mas sim como uma estrutura fixa que movimenta as
subjetividades contra as quais ele se ergue e que são o seu complemento (opositivo)
necessário.

A outra perspectiva aberta pelos concretos (e que, acreditamos, foi a que


Leminski explorou obsessivamente em sua obra, mais radicalmente do que os poetas
concretistas) dissolve a subjetividade no movimento, olha-a como construto, como
tradição-processo, processamento de codificações, maquinaria codificadora. E o poema
em si, a poesia e seus pares (forma-conteúdo, significado-significante, rigor-não rigor)
como se situaria diante desta perspectiva? Entre o poema e seus aquéns ou aléns (suas
subjetivações), apenas se instaura numa fronteira provisória, pois ele viria de
subjetivações construídas em direção a outras, ele mesmo uma espécie de subjetivação
precária, ordenamento provisório de códigos conectados às subjetivações que ele
descodifica o tempo todo, para recodificar-se e recodificá-las. O poema como uma
máquina desejante, sempre ligada a outras máquinas, compondo uma maquinaria (fluxo
maquínico). As perguntas seriam: qual o regime de funcionamento destas máquinas-
poemas. E como elas se conectam às outras, sejam elas individuais, sociais ou literárias?

AIS OU MENOS

(oração pela descrença)

Senhor
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.
Quero forças para o salto
do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.
Por dentro de mim, a pedra,
e, aos pés da pedra,
essa sombra, pedra que se esfalfa.
Pedra, letra, estrela à solta,
sim, quero viver sem fé,
levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.
(Leminski, 1987a, p. 67).

Se seguíssemos a terminologia de Ezra Pound (1970, p. 63), poderíamos dizer


que os poemas de Leminski são caracterizados por uma forte melopéia em jogo com
uma não menos forte logopéia: dança violenta dos sons e louca dança das idéias. Música
e pensamento (significante e significado). Chamemos a melopéia (ou dança dos sons) de
37
forma da expressão, deixando claro que este termo “expressão” não guarda parentesco
com a chamada poesia de expressão, que talvez seria mais bem designada se a
chamássemos poesia de emoção — é que esta poesia se caracterizaria pela
exteriorização dos sentimentos do poeta ou do ‘eu lírico’, daí sua denominação que se
vincula à ‘expressão dos sentimentos íntimos’. Continuando, chamemos a logopéia (ou
dança das idéias) de forma do conteúdo. Estas denominações, tomadas de Hjelmslev
(1975), são apenas funcionais e acreditamos serem mais produtivas que o par
saussuriano significante-significado.

Tomemos a forma da expressão no poema de Leminski — chamamo-la de


‘forma’ porque se trata de uma cadeia sonora ordenada de alguma maneira. Há uma
predominância da redondilha maior, metro para qual os versos tendem e em torno do
qual vai se constituir o ritmo que oscila entre ternário e binário, com ligeira
predominância do segundo. Há um intenso trabalho com as rimas (sono/sonho/encontro;
salto/falto/esfalfa/solta/falta; fé/é) não muito simétrico, mas que marca bem a pausa no
final dos versos ecoando as sonoridades paralisadas nas outras pausas, fazendo-as
mover-se novamente, à medida que progredimos na leitura dos versos, mas sobre outras
circunstâncias e em relação com outros sons — a rima é uma volta, uma repetição
diferida, quase um ponto de subjetivação.

Além das rimas há também, em “Ais ou menos”, uma intensa aliteração,


principalmente a das consoantes nasais (m,n), labiodentais (f,v), da sibilante “s” e das
oclusivas “b”, “p”, “d” e “t”. Este trabalho aliterativo, que também funciona por
semelhança e diferença, garante a ressonância sonora de todo o poema, independente de
sua repartição em verso. No penúltimo, por exemplo, há, nas posições acentuadas, uma
saturação de labiodentais (f,v) que se encontram mais espraiadas em outros pontos do
poema, como se, de repente, houvesse a intensificação de uma vibração que permanecia
quase que aleatória. Intensificação que afetará todas as outras labiodentais que se
espalham pelos outros versos.

Repetição, diferença, distribuição intensiva ou extensiva de fonemas,


precipitação de velocidades, ritmos e pausas: assim pode ser descrita a matéria sonora
deste (de qualquer) poema. O poeta faz o texto circular as substâncias de conteúdo e de
expressão. O poema funciona, movimenta ou pára estas substâncias, por isso dizemos
máquinas e funcionamento e não estruturas e componentes.

Quanto à forma do conteúdo, este poema, como a maior parte dos publicados
nas obras posteriores a Caprichos e Relaxos, tende para a dança louca das idéias, claras
ou obscuras demais para permitirem uma interpretação, se pensarmos esta como o
desvendamento de um segredo que, em Leminski, se torna cada vez mais difuso, seja
pelo excesso de clareza ou de obscuridade: “É porque não temos mais nada a esconder
que não podemos mais ser apreendidos”. (Deleuze e Guattari, 1996, p. 70).

38
O título do poema, “Ais ou menos” (que também é o título de uma parte de
Distraídos Venceremos), diz respeito a uma gradação que vai do confessional à sua
diminuição, do texto como exteriorização das dores do eu lírico a alguma coisa menor,
não se sabe se em importância, em densidade ou tensão. É claro que o título é
perpassado pelo humor (ou pelo menos pela ironia), pois além do elemento sério (as
dores) vir sob a forma banal de uma interjeição, a gradação para baixo tem o efeito de
uma degradação de sua seriedade. Além disso, o título remete à expressão “(m)ais ou
menos”, um duplo sentido que intensifica a aludida degradação da seriedade. Mas o que
era gradação vai se tornar, no subtítulo, uma contradição: oração pela descrença. O texto
tem sua suposta identidade revelada: trata-se de uma oração. Mas a oração não tem o
objetivo de superação das dores pela fé, pois é, paradoxalmente, pela descrença que se
ora. Seriedade e humor, fé e descrença, (de)gradação e contradição: eis os elementos
que percebemos na ante-sala do texto, anunciando-o. Vamos a ele:

Senhor
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um sonho.

O poema é gramaticalmente correto, o que contrasta com sua estranheza


semântica, evidenciando-a: um recurso muito utilizado desde o simbolismo e também
por Leminski. O eu lírico inicia a ‘prece’ pedindo “poderes sobre o sono”, um espaço-
tempo em que ele falta (sol em que me ponho) ou no qual ele sofre suas dores (ou
menos), se passamos ao próximo verso e continuamos a oração: a sofrer meus ais ou
menos. Aqui parece haver uma espécie de simpatia pelo mundo onírico em que o eu
quer se refugiar: a opção romântica, simbolista ou surrealista pelo sonho. Mundo, ao
que parece, solar e sombrio ao mesmo tempo, pois ‘sol’ é sinônimo de sono, assim
como no quinto verso:

sombra, quem sabe, dentro de um sonho

‘sombra’ pode ser sinônimo, tanto de ‘sono’ como de ‘ais ou menos’. No primeiro caso,
o sono aparece como uma sombra num sonho que remeteria à vida. Todo este aparato
semântico do poema recupera a tradição do símbolo como profundidade da existência.
Como se o eu lírico quisesse dominar este mundo de luzes e sombras onde sua
consciência se põe esfacelada. Dado este passo interpretativo, o sentido está pronto para
caminhar em direção às grandes estruturas: memória, alma, psique, deus. Isso quer dizer
que o sentido está quase pronto para ser desvelado, pois se pede poderes sobre o mundo
oculto para desvelá-lo e cultuá-lo, por meio da fuga, no sonho, na arte ou no símbolo. A
visão da vida como um sonho e do sono como uma sombra em seu interior indicaria a

39
mistificação do mundo e o rompimento da fronteira entre real e simbólico pela expansão
deste último. O real essencial não estaria na vigília, mas no mundo onírico, no estado de
adormecimento da consciência vigilante e o mergulho no sono significaria o mergulho
no ser.

No entanto o sono é o dentro do sujeito, o dentro mais profundo, denso e


fechado que existe. Como este fechamento revelaria a essência do real. As leituras do
poema como expressão da subjetividade, muitas vezes interpretam o mundo onírico
como um fechamento relativo, um dentro em relação ao mundo da vigília, aos campos
de referência da consciência. Fechada a porta a este mundo, abre-se a da infinitude do
ser. Esta perspectiva subjetiva pode muito bem ser um ponto de partida para a leitura
deste poema, que caminharia para uma espécie de aventura onírica pensante do eu
lírico: dramas, comédias e tragédias da subjetividade contemporânea.

Seguindo o fluxo semântico do poema, os próximos versos, que são uma


aprofundamento e especificação do pedido inicial (“peço poderes sobre o sono”), vão da
ausência para a ausência:

Quero forças para o salto


do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.

numa espécie de rarefação quase absoluta do ser (e de seus sentidos), o qual se torna o
espaço de uma espécie de grau zero da presença: falta de mim. O verbo encontrar pode
ser tanto uma localização espacial como um índice da identidade: abismo, buraco negro
da identidade que suga os fluxos da vida para o precipício de significação, memória e
subjetividade. Interessante como o abismo, que também é uma ausência (de chão),
torna-se, por seu poder de atração, uma espécie de presença que se contrapõe à falta e é
dotada de profundidade, de força gravitacional, de onde não se escapa com facilidade:
“A subjetivação não existe sem um buraco negro onde aloja sua consciência, sua
paixão, suas redundâncias.” (Deleuze e Guattari, 1996, p. 31).

Passando ao plano sonoro do trecho, verificamos que, ao excesso consonantal


de ‘abismo’ opõe-se, no próximo verso, o predomínio das vogais da palavra ‘hiato’. As
vogais se distinguem das consoantes por sua característica de fluxo sem barreiras, sem
oclusão ou obstrução. O abismo/buraco negro é um sorvedouro e um bloqueador: um
construtor de unidades. Ao hiato falta a obstrução, permanecendo somente pausas e
fluxos, sons e silêncios: ondas intensivas.

Esta oposição entre fluxo e obstrução, é realizada tanto na cadeia das idéias
(forma do conteúdo) quanto na sonora (forma da expressão). É que, embora ambas se
desenvolvam independentemente, elas se pressupõem reciprocamente, de maneira que

40
não se pode separá-las. Esta pressuposição recíproca não se trata duma relação causal,
mas de interferência de uma cadeia na outra, de entrecruzamento, de ocupação e
distribuição de espaço. O poema é um emaranhado de idéias e sons, deslocados de seu
emprego usual: é um outro uso, outra máquina.

Tanto o hiato quanto o abismo são ausências, mas este último implica num
fundo, numa atração gravitacional rumo a algo ou alguém, ou seja, numa falta que pede
para ser completada no ser. Características que o hiato não tem, pois este é uma espécie
de falta positiva e absoluta que não pede complemento: um falto, um salto para o alto —
ausência de gravidade onde os fluxos correm em todas as direções. Mas fluxos de que
ou quem? Talvez do que outrora tenha sido um eu lírico: do que fora um aprisionamento
e ordenamento dos fluxos descodificados da multiplicidade num fosso gravitacional, ou
seja, uma identidade. Esta, por sua tendência à permanência se avizinha da pedra,

Por dentro de mim, a pedra,


e, aos pés da pedra,
essa sombra, pedra que se esfalfa.

seus limites precisos, seu peso e sua dureza propícios à queda e à estática temporal e
espacial. Uma pedra que está no dentro: signo do fechamento, do ser, da estrutura, do
organismo. Mas na base desta pedra a sombra-sono, a diluição da pedra, o rompimento
dos limites entre fora e dentro.

Anteriormente apresentamos o sono como dentro, fechamento ao real (como


campos de referência), mas somente na perspectiva de uma abertura posterior, através
do sonho, a uma realidade mais ‘real’ e completa (que não deixa de ser, portanto,
fechada). Nesta linha, a sombra-sono funciona como um abismo, isto é, como uma falta
negativa que pede uma presença, um outro abismo que ordene os fluxos — uma
abertura que implica num fechamento posterior que a complete, seja no sujeito, no ser
ou na arte.

Mas o suposto eu lírico do poema não deseja esta falta abissal que só no ser
encontra sua completude, mas, ao contrário, quer saltar “do abismo onde me encontro /
ao hiato onde me falto”. O que se deseja, aqui, é o hiato, a falta-sombra-sono que
funciona como uma abertura absoluta, a ponto de não haver mais dentro, nem mais jogo
entre dentros e foras. Desejo que é reforçado quando o sujeito-pedra-eu lírico se
dissolve na base que deveria sustentá-lo: pedra que se esfalfa (falfa/falta). O salto não se
dá por um empuxo maior, pela atração de outro abismo, mas pelo dissolvimento, pela
descodificação absoluta da pedra em pó, poeira literária e cósmica, fluxo livre dos
fossos gravitacionais:

Pedra, letra, estrela à solta,

41
Vejamos a cadeia sonora deste verso. O movimento do ‘r’ pós-consonantal da
sílaba átona em ‘pedra’ e ‘letra’ para a sílaba tônica em ‘estrela’ é como que o
deslocamento (irregular de uma pedra rolando aos solavancos) de um elemento que na
pedra e na letra se encontrava subjacente, aprisionado: a prisão dos códigos, do abismo
gravitacional absorvendo o fluxo de luz. O som se debate num ritmo binário que relega
inicialmente o ‘r’ pós-consonantal para as posições átonas (em pedra e letra), até que
este se livra e passa à posição dominante (em estrela), sugerindo um est(r)alo de luz.
Mas não permanece aí, pois a palavra ‘solta’ (note-se sol e sou por dentro dela)
preenche a próxima sílaba tônica do verso com uma consoante fricativa (s), quase sem
oclusão: a passagem do ar quase não é obstruída e o deslizamento da voz torna-se o
elemento predominante — a oclusiva ‘t’ está na sílaba final átona. O ‘r’ pós-consonantal
é um defeito que faz estalar (estralar/estrelar) a máquina binária oclusiva-vogal, ou seja,
é o responsável pelo esfalfamento da letra-pedra que se queima/quebra em estrela e
literalmente se solta (de si, de sua identidade, de sua ordenação sonora) em “solta”: o ‘r’
da pedra rola pelas palavras até a intensidade máxima (tônica) em “estrela” e sua
dissolução, sua falta em “solta”. Devir corpo, devir máquina do poema: obstrução e
passagem de fluxos sonoros, semânticos, corporais, maquínicos.

No trecho a seguir há um excesso de clareza que frustra o decifrador a procura


da profundidade, do que estaria por trás do texto:

sim, quero viver sem fé,


levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.

Resta-nos relacionar esta clareza libertária com os versos anteriores e o que lemos neles.
Do ponto de vista da forma da expressão lingüística (significante) predominam, neste
trecho, as fricativas, sibilantes (s) e labiodentais (v,f), ou seja, a sensação de tendência
ao deslizamento da cadeia sonora do verso imediatamente anterior “Pedra, letra,estrela à
solta”, se efetiva, aqui, num deslizamento/liberação dos fluxos sonoros (agora mais
fluentes que obstruídos) que passam pela máquina fonadora. À quase não obstrução das
fricativas se liga a descodificação do ser. Com efeito, “é” e “fé” são, nada menos que a
presença do ser e sua força, o fosso gravitacional e sua gravidade ordenadora do espaço
de onde se quer saltar: levar a vida que falta. Falta que remete à vida por vir, que resta,
mas também a vida da falta positiva que não deseja se completar no ser. Nesta
perspectiva, não tem mais relevância a questão: quem é? Não faz diferença que seja
deus, a razão, a estrutura do poema, o eu ou o eu lírico, nem mesmo a sociedade. Não se
quer saber, não se quer interpretar, desvendar, ser atraído (voluntária ou forçadamente)
pela força de gravidade do buraco negro (abismo) da presença e do centramento.

42
A autoridade é um significado, um conceito ou uma idéia presente no poema de
Leminski. Esta idéia pressupõe o senhor, ou deus, mas também qualquer autoridade,
inclusive a do sujeito, a do gerente, a do general, a da lei. O que está em jogo são
regimes de produção e distribuição de códigos — mas também de bens, já que a
codificação implica necessariamente na economia e vice-versa. Pode-se dizer então que
a política é uma matéria ‘tematizada’ ou ‘tratada’ no poema. Trata-se, como muita
poesia que se fez e faz, de uma fuga da autoridade, de um regime de codificação. Mas
há fugas e fugas. Podemos fugir de um sistema codificado para outro no qual sempre
falta uma presença (fuga romântica para o sujeito, fuga simbolista para a arte) e, neste
caso, apenas substitui-se uma autoridade pela outra, não raro mais despótica. Há
também fugas para uma ausência positiva, onde, na verdade, nada falta: espaços vazios
a serem explorados com experimentações e não preenchidos com significações que se
acumulam até formarem um fosso gravitacional atrator de mais significações. “Ais ou
menos” parece tender para essa fuga positiva em que não se procura autoridade
nenhuma, nenhum é (nenhum Ser). A palavra “falto” (assim como “salto”), que se opõe
a “encontro” contém “alto”, que se opõe a abismo, baixo, profundo: sorvedouro de
significâncias e subjetividades (pedra), lugar onde o sujeito se encontra. Esta dicotomia
é explorada no poema e o verso “Pedra, letra, estrela à solta” é uma espécie de
passagem do aprisionamento à liberdade, do estático ao dinâmico, do peso à ausência de
gravidade, da matéria à energia e ao vácuo: pedra, letra, estrela: metamorfose da pedra
em estrela que depois se “solta” (palavra que não mais rima com a anterior, como as
outras: há também uma soltura rímica), desliza no espaço vazio. O signo, a “letra”,
aparece como passagem desta transformação: a poesia-letra como esfalfamento da
pedra-ser, até se chegar ao ponto em que não se quer saber mais, não importa mais saber
“quem é”. Neste sentido o poema é uma descodificação, máquina de descentramento
que fará liberar os fluxos aprisionados na subjetividade e na significância. O resultado
não será o caos, efeito de uma precipitação desgovernada. Não é à toa que se pede
“poderes sobre o sono” e “forças para o salto” (para o alto/gravidade zero), há todo um
cuidado neste trabalho descodificador para não se perder a vida e poder levar a vida que
falta:

O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas


precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós,
mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre
um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar
favorável, eventuais movimentos de desterritorialização [desestratificação], linhas de
fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar
segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço
de uma nova terra. (Deleuze e Guattari, 1996, pp. 23-24).

Perde-se ‘apenas’ a vida com fé, o seu aprisionamento/estratificação em ordens


hierárquicas nas quais as multiplicidades são rebatidas na unidade da pedra e os fluxos

43
se abismam numa única direção imposta pela lei (gravitacional, bio-psíquica, social).
Mas ganha-se sempre uma nova vida-terra-estrela a solta.

No início deste texto, lemos o mergulho no sono-sonho como evocação da


sondagem do inconsciente e nossa leitura não precisa mudar este aspecto. Apenas não
existe o mergulho para o fundo e sim o salto do abismo: o inconsciente como alto,
vácuo sem gravidade aberto à exploração, à viagem (estrela à solta), como
multiplicidade povoada de possibilidades. Ao invés da profundidade psíquica, o poema
nos leva à amplitude espacial onde a subjetivação será apenas fluxos energéticos em
conjunção, matéria em fusão: estrela. O que antes era matéria inerte torna-se fluxo em
movimento: o sentido e a identidade como estados circunstanciais e intensivos desta
matéria que se consome e não tem fronteiras com o espaço: o calor e a luz são
prolongamentos da estrela no vácuo.

Se lermos o poema como metalinguagem, ele remete (ou deseja) ao texto


poético como uma espécie de campo de intensidade, subjetivação momentânea ou
matéria em fusão (estrela). Neste caso, os limites com o ambiente (contexto, campos de
referência) são sempre muito provisórios. “Ais ou menos” é um tipo de texto que vai
nesta direção e, digamos, com certa consciência. Mais ainda, o poema quer este
dissolvimento de limites e encara a si mesmo, ao ser e ao ‘eu’ como campos intensivos
(subjetivações) de limites efetivos, mas não essenciais nem definitivos. Devir de um
campo no outro: de pedra-eu-ser em letra-língua-poema e daí em estrela, circulação
pura de intensidades. Em toda pedra uma estrela, não metaforicamente, mas no sentido
de que os sistemas e seus códigos são aprisionamento de fluxos que, no entanto, estão
prontos para vazar por todos os lados.

O próprio poema carrega o seu punhado de codificação (de sistema, portanto),


já que rearranja matérias formadas em outros regimes. Mas o regime desta codificação
é bem diferente do dos campos de referência que são codificações as quais chamamos
de real3. O texto literário em sua seleção e rearranjo destes campos procura sempre
injetar um pouco de caos neles, ou seja, é uma “irrealização do real e uma realização do
imaginário”, para usarmos os termos de Wolfgang Iser (1983, p. 387): desarranjo, por
seleção não pré-codificada, dos campos de referência para, por combinação também não
pré-codificada, atingir um rearranjo fictício, ou seja, consciente de seu caráter
construtivo. Configurar um pouco de caos, trazendo-o ao mundo real; linhas de fuga,
“pedra, letra, estrela à solta”.

Os riscos deste exercício são sempre grandes: por um lado, pode-se não ir
longe (ou fora) o suficiente, ficando preso ao “abismo onde me encontro” da

3
Uma interessante abordagem a respeito deste assunto e da qual somos tributários encontra-se em Iser
(1983).

44
significação e da subjetivação; por outro lado, há o perigo de uma precipitação muito
rápida, uma descodificação muito violenta que leva ao caos absoluto (morte) como
podemos ler neste outro texto de Leminski:

vi ontem na tv o “three seconds to hell” do aldrich


é a história de um grupo de desmontadores de bomba
da alemanha do após guerra
um erro mínimo e a bomba PUM ! na cara do desmontador
escrever poemas é assim
um erro e o poema explode na tua cara
(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 138).

O desmonte da bomba remete ao desmonte da linguagem, ou melhor, dos códigos


(descodificação, des-subjetivação, a-significância) que, intentado sem a perícia e as
precauções necessárias (tão decisivas para o poeta quanto para os desmontadores de
bombas), pode ser fatal. Não estamos falando por metáforas. Excesso de vida,
rompimento dos limites que se precipita em morte, atingem não apenas os poetas,
artistas e loucos, mas qualquer um. É um problema de códigos, mas os códigos são um
problema da vida e do desejo.

***

Da leitura que fizemos, pode-se dizer que agimos (tradicionalmente) na bi-


articulação significante-significado, na qual o poema se abre à cifração e à decifração,
por mais que o poeta (e o crítico) queira fugir delas: o jogo da linguagem, mesmo para
ser superado (ou tentar sê-lo) passa inevitavelmente pela significância. Enquanto
sensação e corporeidade o poema arrasta em seu campo intensivo matérias
extralingüísticas, mas a linguagem (as palavras) também é arrastada no turbilhão
(mesmo que para serem descodificadas, arrastadas para fora de si) e sua importância não
deve ser menosprezada:

Durante muito tempo compartilhei de uma certa ilusão que se deve a minha admiração
por Décio Pignatari, a da idéia de se combater o logocentrismo, a palavra no centro
das coisas e tudo o mais em volta. As outras manifestações de linguagem ficariam
submanifestações e o idioma como manifestação por excelência. (...) Acho hoje, com
a maior clareza do mundo, que existe um específico do idioma, da linguagem com a
palavra que não tem paralelo, e nem outras linguagens. A palavra pode falar de um
quadro, um quadro não pode falar das palavras. (...) As palavras têm uma espécie de
estatuto metalingüístico, um estatuto crítico, um estatuto de dizer sobre, que é o seu
específico. (...) Foi um ultra-esquerdismo icônico que vivi durante muito tempo, de
pensar assim, de colocar uma espécie de horizontal dada em todos os códigos, em
todas as linguagens. (...) A própria poesia que faço, a que procuro fazer hoje, uma
poesia não imagética, não melopaica, quer dizer, não musical, quer dizer, não
excluindo esses valores, mas uma poesia, sobretudo, feita de pensamentos, quer dizer

45
raciocínios. (...) as pessoas que lêem as coisas que venho fazendo, vêm observando
constantemente que, num poema, eu procuro a poesia numa girada do pensamento,
não propriamente numa explosão de cores e imagens. O redondo rolar daquele
pensamento que sai e a loucura lógica dele, que é a sua poeticidade. [grifo do autor]
(Leminski, 1987b, pp. 299-300).

Não se trata, obviamente, de uma guinada à recodificação lingüística, mas do


reconhecimento de que, quando se lida com o código da língua, é impossível não
considerar suas especificidades, nem que seja para leva-lo à “loucura lógica”: dança
louca das idéias. A descodificação ou a poeticidade deve passar pelos códigos, levando-
os além de seus limites auto-impostos, sempre um salto mais para o alto, do abismo da
significância para o vácuo a-significante. Assim também, a des-subjetivação (de que
temos tratado obsessivamente) deve passar obrigatoriamente pelo sujeito — construção
burguesa, capitalista. Este conjunto, subjetividade+significância, é chamado por
Deleuze e Guattari de rostidade, uma máquina abstrata que nos cerca e, por isso mesmo,
deve ser nosso ponto de partida:

Não podemos voltar atrás [às máquinas abstratas anteriores a de rostidade]. (...) É
porque o muro branco do significante, o buraco negro da subjetividade, a máquina de
rosto são impasses, a medida de nossas submissões, de nossas sujeições; mas
nascemos dentro deles, e é aí que devemos nos debater. Não no sentido de um
momento necessário, mas no sentido de um instrumento para o qual é preciso inventar
um novo uso. É somente através do muro do significante que se fará passar as linhas
de a-significância que anulam toda recordação, toda remissão, toda significação
possível e toda interpretação que possa ser dada [quero viver sem fé / levar a vida que
falta / sem nunca saber quem é]. É somente no buraco negro da consciência e da
paixão subjetivas que se descobrirão as partículas capturadas, sufocadas,
transformadas, que é preciso relançar para um amor vivo [do abismo onde me
encontro / ao hiato onde me falto], não subjetivo, no qual cada um se conecte com
espaços desconhecidos do outro sem entrar neles nem conquistá-los [Pronomes do
caso reto, / nunca acabavam sujeitos], no qual as linhas se compõem como linhas
partidas. É somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro e em seu muro
branco que os traços de rostidade poderão ser liberados, como os pássaros [pedra,
letra, estrela à solta.] (...) (Deleuze e Guattari, 1996, p. 59).

46
FRAGMENTO 2

vozes a mais
vozes a menos
a máquina em nós
que gera provérbios
é a mesma que faz poemas,
somas com vida própria
que podem mais que podemos
(Leminski, 1995, p. 37).

Proponho um deslocamento, neste trabalho, do conceito de estrutura para o


de máquina. Ao invés de procurar descobrir a estrutura (saber o que está no fundo) de
um poema ou de uma obra, ou uma estrutura da linguagem poética, da qual derivam
ou para a qual convergem os textos literários, talvez seja mais interessante e fecundo
descobrir como funciona (saber como se usa) uma dada máquina textual. Assim como
o conceito de estrutura, o de máquina nada tem de metafórico, pois implica numa
ampliação (que é também uma redefinição) da concepção usual que se tem dela:

Uma máquina define-se como um sistema de cortes. Não se trata de modo algum do
corte considerado como separação da realidade; os cortes operam em dimensões
que variam com o caráter considerado. Qualquer máquina está, em primeiro lugar,
em relação com um fluxo material contínuo (hylé) que ela corta. Funciona como uma
máquina de cortar presunto: os cortes fazem extrações do fluxo associativo. (...) Cada
fluxo associativo deve ser considerado idealmente como um fluxo infinito de uma
imensa perna de porco. A hylé designa, com efeito, a continuidade pura que uma
matéria possui idealmente.(...) Longe de se opor à continuidade o corte condiciona-a,
implica ou define aquilo que corta como continuidade ideal. É que, como vimos, todas
as máquinas são máquinas de máquinas. A máquina só produz um corte de fluxo se
estiver ligada a outra máquina que se supõe produzir o fluxo. E claro que esta
máquina também é, por seu turno, um corte. Mas só em relação a uma terceira
máquina que produz idealmente, ou seja, relativamente, um fluxo contínuo infinito.
(...) Em suma, qualquer máquina é corte de fluxo em relação àquela com que está
conectada, e é fluxo ou produção de fluxos em relação à que está conectada com ela.
[grifos dos autores] (Deleuze e Guattari, 1995a, pp. 39-40).

Por um lado, a máquina, como a estrutura, é uma espécie de ordenador, uma


produtora e reprodutora de códigos, ela mesma codificada. Mas enquanto a estrutura
implica numa estática, a máquina só tem sentido em movimento, em seu uso, mesmo
as manuais como o martelo ou a panela: ela é sempre pragmática. A estática se
relaciona, por sua vez, com o conceito de centro ou presença, uma espécie de motor
imóvel que tem como função “não apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura —
não podemos efetivamente pensar uma estrutura inorganizada — mas sobretudo levar
o princípio de organização da estrutura a limitar o que poderíamos denominar jogo da
estrutura.” [grifo do autor] (Derrida, 1995, p. 230). A estrutura implica, então, numa
perspectiva de desvendamento de seu centro, que ao mesmo tempo organizaria e
estaria fora do movimento intermitente das permutas as quais são mobilidades
aparentes e periféricas. Derrida, no mesmo texto, refere-se a um acontecimento de

47
ruptura (no qual o estruturalismo tem um papel fundamental) que “ter-se-ia talvez
produzido no momento em que a estruturalidade da estrutura deve ter começado a ser
pensada” (p. 231), momento a partir do qual “deve-se sem dúvida ter começado a
pensar que não havia centro, que o centro não podia ser pensado na forma de um
sendo-presente, que o centro não tinha lugar natural, que não era um lugar fixo mas
uma função, uma espécie de não-lugar no qual se faziam indefinidamente
substituições de signos” (p. 232). A estrutura começa a ser percebida como
estruturação, desejo totalitário de centro, como o funcionamento (despótico) de uma
maquinaria. Na máquina não se procura um fundo ou a essência, ou melhor, esta se
identifica com seu funcionamento, por seu uso e necessidade produtivos. Ela só tem
sentido quando relacionada com outras máquinas (humanas, sociais, técnicas,
lingüísticas) com as quais encontra-se conectada, de uma maneira ou de outra. O que
se entende normalmente por significado só tem sentido se recobrir o funcionamento
destas máquinas, a maneira como elas se conectam com outras, sua situação de uso
enfim, sempre circunstancial no tempo-espaço. Por isto, gosto da palavra uso, que não
coincide (embora possa recobrir) com a noção capitalista de utilitarismo: noção técnica
e unidimensional, que objetiva a mais-valia de capital. A máquina está sempre numa
situação de produção, processual, enquanto que a estrutura se caracteriza pela
representação de uma verdade oculta, de um mito por trás dos ritos que o
representam: na estrutura não se concebe a construção do mito pelo rito, isto já são
coisas de maquinaria.

Outra vantagem do ponto de vista maquínico é a obsolescência das


máquinas, que implica em sua não permanência, numa espécie de evolução
filogenética não progressiva, mas adaptativa, à maneira dos organismos (máquinas)
biológicos. A estrutura, ao contrário, é quase sempre pensada como dada desde
sempre: algo que pode mudar, mas nunca essencialmente. Percebe-se aí como as
noções de identidade e sujeito devem ser redefinidas, quase que abolidas, com esta
mudança de foco. O centro de uma estrutura organiza elementos os mais diversos,
perpassando-os e unindo-os em torno de uma identidade permanente — como o ser
cristão ordena os elementos da alma e do corpo. Em outras estruturas, os mesmos
elementos podem ter outra ordem, outro centro ou Ser. As peças das máquinas, ao
contrário são vistas como proto-máquinas, portanto dotadas de uma singularidade e
autonomia relativas que não se repete em outras máquinas: não são mais os mesmos
elementos. Daí segue-se que as unidades de medida e o regime de funcionamento (os
modos de percepção) mudam de máquina para máquina, impedindo o uso de qualquer
comparador universal, de qualquer régua de Deus: os cavalos de força de um
automóvel não são reduzíveis aos cavalos de uma charrete. Numa máquina não há
nem identidade com ela mesma, nem com alguma ordem exterior, com algum
macrocosmo que a circunscreva: há apenas relações de produção, regimes de
funcionamento — as identidades são produções de estabilidades temporárias num
sistema em desequilíbrio permanente.

Quando ataco o conceito de estrutura, pode parecer que me restrinjo a


discordar do estruturalismo, quando, na verdade, devo muito a ele (todos devemos),
pois a descoberta da estrutura é a descoberta de uma perspectiva totalizante (seja ela

48
científica, religiosa, literária ou filosófica) que desde sempre domina o Ocidente: a
estrutura, antes de ser um fato, um corpo constituído, é uma percepção, a construção
de um ponto de vista. Os entes e eventos podem ser percebidos de outra forma, como
maquinarias: máquinas. Esta possibilidade de um outro ponto de vista foi sem dúvida
aberta pelo estruturalismo (entre outras perspectivas e autores anteriores a ele) que
desnudou, mais que a estrutura, a estruturação desta, ou seja, a perspectiva que
deseja a construção de sistemas centrados: o desejo despótico das máquinas
desejantes. Nesta perspectiva, não existe a verdade do universo dos objetos
maquínicos e seu opositor, o dos objetos estruturais; trata-se, antes, de dois tipos de
abordagens que muda, sem dúvida, a coisa abordada: quase arrisco dizer que a
(re)constrói. Na multiplicidade se constroem, sem parar, estruturas que brotam de
maquinarias e vice-versa, totalizações e sua fuga.

O poema pode ser abordado, ora como máquina, ora como estrutura ou em
relação a uma outra estrutura (a da poesia ‘em geral’, por exemplo). Às vezes,
acontecem as duas coisas ao mesmo tempo: a leitura do texto literário estrutura-o e
maquina-o sem parar, restando saber para qual perspectiva ela tende com mais força.
Encará-lo predominantemente como máquina pode fazer recair sobre mim a acusação
de anti-humanismo, de reificação do poema, reduzido a um mero mecanismo. Mas
pelo conceito de máquina que intentei (tomei de empréstimo), não se trata,
obviamente, de mecanicismo nem de tecnicismo: como estes ismos se posicionariam
em relação aos fluxos e cortes de fluxos, à multiplicidade e proliferação não
hierárquicas da maquinaria? Quanto à posição humanista, que se apóia na religião
(teológica), no sujeito (psicológica) ou na sociedade (sociológica), o que posso dizer é
que suas construções (ser, sujeito, sociedade), em muitos casos, não são nem mais
nem menos que estruturas (às vezes com um pouco de maquinaria), como as
concebidas/percebidas pelo estruturalismo. Se a máquina é desumana, fria,
antivitalista, a estrutura não o é em menor grau ou por alguma diferença qualitativa:
talvez a concebamos mais humana simplesmente porque gostaríamos, por uma
morbidez de nossa consciência, que o humano se identificasse com as mais frias e
antivitais características de sua idealização: a totalidade, a onisciência, a onipotência,
a permanência e a imutabilidade.

49
DOR, AMOR, HUMOR.

LUTO POR MIM MESMO

a luz se põe
em cada átomo do universo
noite absoluta
desse mal a gente adoece
como se cada átomo doesse
como se fosse esta a última luta

o estilo desta dor


é clássico
dói nos lugares certos
sem deixar rastos
dói longe dói perto
sem deixar restos
dói nos himalaias, nos interstícios
e nos países baixos

uma dor que goza


como se doer fosse poesia
já que tudo mais é prosa
(Leminski, 1995, p. 92).

O temperamento instável, o alcoolismo, a doença e a morte do filho. O


sofrimento atravessa, como uma linha constitutiva, toda a obra de Leminski,
particularmente La vie en close, publicado postumamente. Mas não podemos mais dizer
que sua obra é a expressão das dores de uma pessoa, nem mesmo a expressão da dor
transfigurada pela sensibilidade do artista. Não podemos mais nos utilizar do clássico
lugar comum modernista que concebe a biografia como motivo extrínseco e
desimportante para a qualidade do resultado final que é a obra: biografia cuja
sensibilidade do poeta saberia tornar em eu lírico que toca a alma humana ou expressa a
interioridade do homem de uma época, eu (e obra) universal. Nem a resposta romântica
(ou neo) nem a modernista nos servem, pois ambas se prendem demais a fora e dentro,
sujeito e objeto, causa e efeito. A dor, como todo afeto, tem suas codificações. Um
aspecto importante do que se costumou chamar de revolução cultural (que remete a
maio de 68, beatniks, hippies, tropicália, marginália), foi uma nova perspectiva em

50
relação aos afetos, da qual a revolução dos costumes, facilmente absorvida e
recodificada pelo capitalismo4, talvez tenha sido apenas um apêndice.

Um fator importante da revolução cultural, não importa os eventos ou os


grupos de que se tratem, é o seu caráter de desprendimento, manifestado na obsessão
pela viagem: nas drogas, na música, no sexo, na estrada. A viagem não mais como
mudança do ser, nem mais como sua negação. Simplesmente não se tem mais a
perspectiva da fixidez do ser como essencial, mas como uma espécie de estancamento
artificial dos fluxos que nos atravessam: gravidade do abismo codificador. Os afetos
(dor, amor) são vividos (experimentados) como estados intensivos por que se passa, que
nos atravessam e nos constitui numa dada circunstância. Não há o sujeito (deus, eu, eu
lírico, tribo, sociedade) que sofre, mas apenas linhas que se cruzam:

Pois somos feitos de linhas. Não queremos apenas falar de linhas de escrita; estas se
conjugam com outras linhas, linhas de vida, linhas de sorte ou de infortúnio, linhas
que criam a variação da própria linha de escrita, linhas que estão entre as linhas
escritas. [grifo dos autores] (Deleuze e Guattari, 1996, p. 66).

O amor e a dor são afetos moldados o tempo todo pelos códigos. Numa sociedade
burguesa é sempre alguém que ama ou sofre, sob determinados regimes e leis. E a dor
certamente tem a ver com algum pecado ou, se não se crê, com algum complexo
encravado na infância. Ela sempre ensina ou ensinará algo quando e se dela se sair. Um
algo sempre vinculado aos códigos: não peque mais, aprenda a conviver com seu
complexo, não seja mau.

O achado da revolução cultural foi tomar os afetos, entre eles a dor, como
linhas a serem experimentadas sem nenhuma salvaguarda de um ser ou estrutura que os
controlem por trás de seu turbilhão, foi toma-los com fluxos intensivos que nos
atravessam e nos constituem e com o qual temos de lutar, conviver, negociar, sempre
circunstancialmente.

O regime e a lei, tanto do amor quanto da dor, são os do desejo e da


sexualidade, que a psicanálise procurou abordar a partir de Freud. Mas a abordagem
freudiana rebate os afetos sobre a família, sobre o complexo de Édipo, sobre a
subjetividade cindida. Mesmo instável e múltiplo, o sujeito freudiano ainda é um eu
(indivíduo) que sofre, que ama, que sente culpa e má consciência e que terá de construir
um ego suficientemente forte para sobrepujar os fluxos libidinais que atravessam-no de

4
Há nichos de mercado (e de código) para todas as antigas perversões (homossexualismo, sadismo,
masoquismo) e para grupos minoritários (negros, mulheres). Pode-se dizer que o capitalismo precisa de
desigualdade, mas é relativamente indiferente à natureza dos discriminados e aos modos de se instaurar as
discriminações que, parece, tem se tornado cada vez mais interna aos grupos antes marginalizados em
bloco.

51
ponta a ponta e que tendem a esfacelá-lo. Como observam Deleuze e Guatarri, a
socialização dos fluxos do desejo e a opção pela deriva nestes fluxos são alternativas
esconjuradas pela psicanálise:

(...) a sua grandeza [de Freud] foi a de ter determinado a essência ou a natureza do
desejo, não em relação aos objetos, fins ou origens (territórios), mas como essência
subjetiva abstrata, libido ou sexualidade. Simplesmente ele refere ainda esta essência à
família, como última territorialidade do homem privado. Tudo se passa como se Freud
se desculpasse por ter descoberto a sexualidade, dizendo-nos: garanto-lhes que isto
não sairá da família. E assim temos o segredinho nojento em vez da imensidão
entrevista; o rebatimento familiarista em vez da deriva do desejo; pequenos riachos
recodificados no leito materno em vez dos grandes fluxos descodificados; a
interioridade em vez de uma nova relação com o exterior. (Deleuze e Guattari, 1995a,
p. 282).

O sofrimento, a alegria e o amor e sua interpretação (decodificação) como


culpa e projeção de fantasmas individuais e familiares, como neuroses, constitui o
regime de codificação dos afetos da sociedade burguesa, que recusa a “deriva do
desejo” e o dissolvimento do sujeito nesta deriva-processo socializada. Em
contraposição, a viagem, o desprendimento dos hippies e beatniks e roqueiros, da
tropicália e da marginália, diz respeito exatamente à opção pela deriva, pela
experimentação processual, portanto circunstancial e desgarrada, dos afetos.

“Luto por mim mesmo”, sob uma perspectiva da representação dos sentimentos
do eu lírico, certamente nos apareceria como a expressão de uma alma doentia, mórbida
e masoquista, estranhamente atravessada pelo humor (quase negro):

o estilo desta dor


é clássico
dói nos lugares certos
sem deixar rastos

Seria isto uma espécie de romantismo crepuscular, deslocado no tempo-espaço, auto-


irônico com seu próprio sentimentalismo? Uma espécie de remontagem pós-moderna de
um neo-romantismo? Talvez seja melhor nos desembaraçarmos um pouco das
nomeclaturas da teoria e nos concentrarmos no texto, sob a luz de uma outra perspectiva
da dor (e do desejo) que não a burguesa.

A primeira estrofe:

a luz se põe
em cada átomo do universo
noite absoluta

52
desse mal a gente adoece
como se cada átomo doesse
como se esta fosse a última luta

trata das características da dor que, como qualquer afeto muito intenso, parece tomar
conta da vida durante a sua vivência. A macro (noite absoluta) e a micro (como se cada
átomo doesse) percepção encontram-se minadas pela dor, com a qual o embate se torna
decisivo para a vida (como se esta fosse a última luta). Isto é que torna os afetos pontos
nevrálgicos nos sistemas de codificação, pois quando sua intensidade ultrapassa
determinados limites, sua ação torna-se quase que despótica, subordinando as outras
linhas da vida às suas leis e necessidades: não é casual que os casos de conversão
religiosa (recodificação dos fluxos) se dêem, normalmente, sob condições de extremo
sofrimento (descodificação abrupta e descontrolada dos fluxos). Os códigos, as
explicações, a fé, aparecem como uma espécie de consolo, um chão firme (ao mesmo
tempo punidor e acolhedor) onde se agarraria a alma (e o corpo) maltratada pela dor. O
outro pólo seria o da descodificação violenta provocada pelo sofrimento e que
precipitaria na morte ou na loucura. Este pólo é, ao mesmo tempo o adversário e o
aliado dos códigos. Adversário porque é o que se deve evitar a qualquer custo mediante
recodificações, explicações e processos de cura e diminuição da dor; e aliado porque,
como pólo oposto, não deixa de ser complementar e pode e é sempre usado de maneira
pedagógica (de uma pedagogia do terror), contra o qual se deve prevenir (levar uma
vida sem excessos) ou, caso não se consiga, ser forte o suficiente para se agarrar aos
códigos pacificadores em meio ao turbilhão.

Ser arrastado por afetos muito intensos (seja o amor, o ódio, a alegria, a
tristeza, a dor, o prazer) sempre foi um risco com o qual a sociedade e seus códigos
(religiosos, científicos, comportamentais) têm de se haver, assim como Leminski
também teve. Passando à segunda estrofe, o seu tom já não é mais o de descrição geral
do processo da dor, antes, é uma descrição minuciosa (embora abstrata, portanto
altamente indeterminada) de sua ação, de seu como:

o estilo desta dor


é clássico
dói nos lugares certos
sem deixar rastos
dói longe dói perto
sem deixar restos
dói nos himalaias, nos interstícios
e nos países baixos

A identificação da dor e da arte (o estilo desta dor) supõe uma vivência estética da
primeira, e uma estética de domínio pleno sobre os materiais formados: a clássica. É
interessante notar que o poema todo é referido na terceira pessoa (despersonalisado) e se

53
há um personagem ou um sujeito aí, este só pode ser a dor. Não a dor no sentido
universal, mas uma determinada dor circunstancial, do qual o texto depurou a
causalidade explicativa (não se diz quem ou de que se sofre), conservando apenas os
efeitos de intensidade (olha como, quanto e onde se sofre). É quase como uma poética
da dor, no sentido em que Aristóteles concebeu sua poética, seu ideal de poesia, com
base nos grande poemas de seu tempo. Isto não quer dizer que esta dor seja uma
vivência subjetiva depurada em objetividade, mas sim, uma experimentação positiva de
um determinado afeto que atravessa a linha da vida, relacionando-se com ela. Que o
texto não trate das circunstâncias concretas da dor, não tem importância realmente
decisiva, apenas explicita a opção de sua experimentação positiva de intensidades puras,
opção já afirmada em Caprichos e relaxos (p. 59):

ver
é dor
ouvir
é dor
perder
é dor

só doer
não é dor
delícia
de experimentador

Voltando a “Luto por mim mesmo”, há nele uma injeção de bom humor nesta
experimentação:
dói nos himalaias, nos interstícios
e nos países baixos

Os “países baixos” remetem aos órgãos genitais, o que pode ser o índice de problemas
ligados à sexualidade (ou problemas amorosos em geral), arrastando neste significado
toda a comicidade da qual o assunto é socialmente investido. Na verdade, não só o tom
destes dois versos, mas de toda a estrofe, com suas referências espaciais se sobrepondo
às do corpo que, por sua vez, se sobrepõe às da alma, com seu metro curto, ritmo ligeiro
e intenso trabalho sonoro de reiterações, tudo isto remete a uma espécie de alegria
(atmosfera: forma do conteúdo não significativa) que beira a comicidade — isto
acontece em muitos poemas de Leminski; se quiserem, é uma característica de sua obra.

Vivência estética da dor, poética da dor, a dor como ponto (não essencial, mas
operatório) de subjetivação, experimentação positiva de intensidades puras, injeção de
alegria e humor neste exercício: seria o nosso poeta um masoquista?

54
uma dor que goza
como se doer fosse poesia
já que tudo mais é prosa

Esta leitura ainda se vincularia ao problema das perversões dos sujeitos individuais. O
poeta ou o eu lírico do poema seria um pervertido, um desviado. Dessa maneira
recodificamos, pela marginalização do eu lírico (e a margem, neste caso, é um lugar no
sistema), uma experiência, ou pelo menos, a tentativa da experimentação de um afeto
que não se agarra às codificações pré-estabelecidas nem se precipita numa
descodificação muito violenta que resultaria no louco de hospício ou na morte.

Há toda uma luta para que esta precipitação não ocorra, a começar pelo título,
que também remete a luto, morte. Há um luto pela morte do eu e ao mesmo tempo uma
luta pela construção de um (novo?) “mim mesmo”. O eu como estado sempre
provisório, resultante de uma luta de guerrilha, ou seja, uma conquista estética, como o
poema, que se faz sempre sob condições não muito bem pré-estabelecidas ou, pelo
menos, se quer fazer assim. Na linha da vida surge a do sofrimento: a luz se põe / em
cada átomo do universo. As duas se entrelaçam:

desse mal a gente adoece


como se cada átomo doesse
como se fosse esta a última luta

Por que não vivenciar estas linhas entrelaçadas, negociando com elas a cada instante,
explorando toda as novas perspectivas sobre as coisas que a dor oferece? Não significa
dizer que não há, de fato, sofrimento, talvez haja no mais alto grau e não se trata de um
sofrimento voluntário. Trata-se de uma atitude, já que estamos aqui não adianta
reclamar, já expressa por Leminski em outro poema:

PRA QUE CARA FEIA?


NA VIDA
NINGUÉM PAGA MEIA.
(Leminski, 1983, p. 131).

Mas também não se quer mais pagar o preço pelo consolo dos códigos e, obviamente,
não se quer a morte nem o hospício. Assim como se pode viver o amor como processo
proliferativo, também se pode encarar a dor da mesma maneira. Os cuidados devem ser
análogos, pois se trata, como em “Ais ou Menos” de um salto do abismo demarcado
pela gravidade dos códigos, para o alto, para a gravidade zero. Assim como lá é
necessário ter poderes sobre o sono, aqui é preciso ter poderes, não sobre a dor, mas na
dor ou da dor, já que a linha da vida se mescla com a da dor, constituindo uma nova
55
subjetivação que deve se estabilizar precariamente em luta/negociação com o
sofrimento.

Esta nova subjetivação, construção estética, experimentação permanente, goza


de todas as novas perspectivas abertas pelo sofrimento (uma dor que goza), sempre na
estreita linha entre o abismo dos códigos e a descodificação absoluta. As linhas da vida
se mesclam com as linhas dos versos (como se doer fosse poesia), formando uma
espécie de bloco vivo. Não há elementos por fora nem por dentro do poema, mas sim o
arrastar de todas estas linhas neste bloco: o poema se projeta no fora absoluto, com
limites apenas efetivos, mas nunca essenciais, ele dispara as linhas, oferece-as ao leitor
que irá percorrê-las e mesclá-las com suas linhas muito particulares — interpenetração
de multiplicidades, enredamento perpétuo. Há uma indiferenciável (e indisfarçável)
mistura de vida e poesia na obra de Lemisnki, linhas de vida e linhas de poesia, como
no poema que se segue:

Vim pelo caminho difícil,


a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
(Leminski, 1987a, p. 18).

Linha, vida, palavra. Escolhos (tinha uma pedra no meio do caminho) e


quebras, dobras da linha sem fim, vazia. Este se enredar contínuo faz parte do trabalho
poético de Leminski, mas também é um trabalho de vida, não apenas individual, mas
coletivo, de uma coletividade povoada menos por pessoas que por fluxos intensivos,
linhas, subjetivações provisórias. Os poemas de Leminski parecem máquinas que fazem
disparar os processos de deriva nos/dos fluxos, de experimentação das linhas e de
produção de subjetivações, parecem querer estourar as demarcações dos códigos e se
precipitar numa linha de fuga absoluta: “a linha que nunca termina”.

Voltando a “Luto por mim mesmo”, o poema nos leva a considerar o que
normalmente se considera aquém do poema enquanto arte: exatamente as motivações,
digamos, psicológicas, que resultaram no poema: a experiência da dor. O objeto
principal da crítica literária deveria ser o texto e, como objeto que é, muito
provavelmente deve ser dotado de uma estrutura (mesmo que não se seja estruturalista),
quer dizer, de determinados elementos sob arranjos específicos que lhe dão uma feição
de coisa acabada, o que implica dizer que é dotado de limites e de uma espécie de
identidade. Assim se estabelece um jogo de dentro e fora, no qual os aquéns ou
motivações do texto encontram-se dialeticamente fora dele:

56
Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos
vários níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em
primeiro lugar, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na
designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem
que intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, este resultado, o
texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que os transcendem e
não se deixam reduzir a eles. (Candido, 1993, p. 33).

É claro que este ponto de vista é operacionalmente válido, mas não quer dizer que não
possamos olhar o texto de outra perspectiva. A produção da totalidade do texto e sua
relação com outros extratos (psíquicos, sociais), é sempre uma totalização ao lado dele,
quer dizer, é sempre uma produção que não coincide com a do texto, na qual estão
envolvidas miríades de códigos. Normalmente esta produção de totalidade (que implica
numa capa estrutural que envolveria a maquinaria do poema) é delegada ao
departamento da crítica, enquanto ao departamento dos escritores cabe montar
dispositivos muito díspares, resultando muitas vezes em maquinarias monstruosas,
cheias de defeitos e de ruídos insuportáveis. Ou seja, a totalidade, ao lado, é uma
espécie de parte agregada ao texto. Por isto cada época e cada receptor (até mesmo o
próprio autor) estabelecem suas próprias totalizações particulares das obras literárias: a
produção do texto nunca termina e a sociedade é sua fábrica permanente.

A relação entre homens e texto, pode ser abordada de outra forma que não a
relação entre sujeito e objeto ou entre grandes conjuntos distribuídos em níveis ou
estratos: o formal (intrínseco); o psíquico e o social (extrínsecos). Talvez possamos
trabalhar numa crítica que flagre uma espécie de relação libidinal (rizomática, nos
termos de Deleuze e Guatarri), ou seja, de produção e reprodução entre textos e homens,
como se uns fossem partes das maquinarias que constituem os outros: “Os homens, são
apenas os órgãos sexuais das fábulas” (Leminski, 1998, p. 23). Mas, por outro lado:

Quem maior que os deuses? Quem senão o destino que, um dia, disse que os deuses
dariam metamorfoses e caberiam dentro das fábulas? A fábula é o destino, fábulas são
maiores que os deuses. A vida de Zeus cabe dentro de uma fábula, casca de nós
boiando nas águas de Narciso (...). (Leminski, 1998, p. 34).

Ou seja, os deuses dentro das fábulas dentro de Narciso (dentro dos homens): as fábulas
como órgãos reprodutores dos homens, como sua produção e reprodução de
contigüidade, tradição, cultura. Uns maquinam os outros. Quem disse que as máquinas
não se reproduzem? Apenas as grandes máquinas, as que depositam sua funcionalidade
na totalidade do conjunto são estéreis:

É que as grandes máquinas molares [grandes conjuntos, estratos] supõem ligações


prévias que o seu funcionamento não explica, visto que é delas que ele deriva. Só as
máquinas desejantes [funcionamentos micro, moleculares] é que produzem ligações

57
segundo as quais funcionam, e funcionam improvisando, inventando, formando estas
mesmas ligações. Um funcionalismo molar é pois um funcionalismo limitado, que não
chegou às regiões onde o desejo maquina independentemente da natureza
macroscópica do que maquina: elementos orgânicos, lingüísticos, sociais, etc., todos
cozinhados ao mesmo tempo na mesma panela. (Deleuze e Guattari, 1995a, p.187).

A máquina do poema, se a encararmos como estrutura macroscópica que produz


determinados efeitos sob determinadas circunstâncias realmente é mecânica e estéril,
mas se procuramos seguir suas linhas para além de sua totalidade estrutural e de suas
relações com os grandes estratos iremos encontrar sua maquinaria microscópica, seu
regime de produção e reprodução: seus devires corpo, motor, animal, sonoro, mas
também social, psíquico, por que não?

É isto que tentamos fazer em “Luto por mim mesmo” (e também nos outros
poemas), verificar a linha da dor num poema, como ela se mescla com as do som, da
alegria e do humor, da vida. Como ela é experimentada de forma abstrata como
intensidade pura e, no entanto, de maneira circunstancial, localizada e não universal: é
“esta dor”. Como ela constitui uma espécie bem particular de subjetivação desprendida
(e também desamparada) da codificação social dos afetos, tornando-se uma espécie de
viagem arriscada para além dos limites dessa codificação. Como esta experiência se
vincula às linhas beatnik-hippie-marginal-tropical, contemporâneas a Leminski. Enfim,
como tudo isto é arrastado num bloco vivo (maquinaria) sem limites muito precisos
(matéria em fusão: “estrela à solta”) do qual as linhas do poema, assim com as outras,
são fluxos de intensidade que escapam por todos os lados. A produção do poema pelos
homens em situação de dor, mas também a sua reprodução através dos homens em dor
(ou não): os homens como aparelho reprodutor do poema, como parte da maquinaria do
poema. Mas também o contrário, o poema como parte dos homens, interpenetração de
máquinas em produção, umas disparando as outras.

Não estamos falando em representação da dor, mas de sua experimentação sob


determinados regimes. A representação da dor é um tipo de experiência própria dos
códigos burgueses que supõem o sujeito e suas dores, quer dizer, trata-se, em última
instância, da representação da subjetividade, de se chegar ao seu fundo (“abismo onde
me encontro”), à sua verdade ou ao seu centro. Os concretistas têm razão em fugir do
psicologismo neo-romântico que persistiu em quase todos os modernistas: “(...) aos
poetas, que calem suas lamúrias pessoais ou demagógicas e tratem de construir poemas
à altura dos novos tempos, à altura dos novos objetos industriais racionalmente
planejados e produzidos.” (Pignatari, 1975, 125). Com efeito, o sentimentalismo e o
confessionalismo são experimentações da dor sob regimes despóticos, codificações
burguesas; são fugas que se recodificam mais à frente ressuscitando o grande sujeito
universal. Mas renegando a experimentação dos afetos para um aquém ou um além da
obra literária, os concretos não fizeram mais que construir uma oposição complementar:

58
o psicologismo está por fora da obra; ou antes, como motivação, ou depois, como efeito.
Em todo caso os afetos estão relacionados com a obra (e como não poderiam estar?),
mas ainda à maneira de grandes conjuntos: o texto e seus elementos intrínsecos; o
contexto e seus níveis de estratificação, o exterior (sociedade, sujeito, tradição) em
relação dialética com o interior (estrutura do texto).

Já que é impossível alijar os afetos (maneiras de sentir) do texto (assim como


não se pode alijar as maneiras e pensar e perceber), talvez seja possível experimentá-los
de uma outra maneira. Não os rebatendo sobre as representações da subjetividade ou os
relegando (mesmo que dialeticamente) para fora do texto, mas encarando-os como
processos, fluxos do desejo, produções de maquinaria: linhas de intensidades a serem
mescladas às do poema e experimentadas sempre circunstancialmente, produzindo com
elas pontos de subjetivação provisórios, rebeldes aos códigos pré-formados que tentam
demarcar a experiência de fuga, recodificando-a. Amor, dor, humor, alegria, tristeza,
são linhas de vida que se mesclam às dos poemas de Leminski, despreocupado com sua
representação (interpretação) e atento aos processos exploratórios (experimentação)
destas linhas, como neste poema:

Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
simplesmente me desfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo.
(Leminski, 1987a, p. 26).

Ao invés de pegar (saber,exprimir, traduzir) o que se passa, isto é, a verdade do íntimo,


do dentro representado, rapta-se (uma captura não consentida) uma linha rítmica,
experimenta-se clandestinamente a linha que conduz para fora das demarcações da
significância e da subjetividade, “quando me aproximo / simplesmente me desfaço”: o
aproximar como afastamento rumo a um fora de si, dissolvimento de limites. Neste
processo, os grandes conjuntos cedem lugar aos funcionamentos microscópios das
linhas do desejo que, somente por aprisionamento (no “abismo onde me encontro”), se
tornam elementos de estruturas globais sob codificação totalizante — os
estratos/estruturas do poema, do sujeito, da sociedade, da tradição e suas macro-relações

59
de conjunto para conjunto. Os textos poéticos de Leminski talvez se demonstrem mais
fecundos se os abordarmos como uma produção expansiva e microscópica do desejo,
seja na dança dos sons ou das idéias, seja nas linhas da dor ou do amor, do humor ou do
heroísmo. Captura e mesclagem do que se passa, quase imperceptível, sob e através dos
grandes conjuntos delimitados: as linhas mínimas (“mínima linha vazia”; “apenas o
mínimo / em matéria de máximo”; “mínimo templo / para um deus pequeno”) que
podem conduzir a uma transposição absoluta de limites, fazendo estourar as totalidades
codificadas. Linhas de vida e poesia, linhas de dor e humor, linhas de rima e amor,
linhas de ritmo, descodificação e fuga:

nascemos em poemas diversos


destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima a primeira vista nos vimos


trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura


nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
(Leminski, 1983, p. 88).

60
FRAGMENTO 3

Referi-me, no texto anterior, a uma tênue linha entre o abismo dos códigos e
a sua descodificação, linha que procuro mostrar ser também a da poesia (de Leminski
e, por que não, a de muitos outros?), que se encontra entre o uso normal dos códigos
e a descodificação absoluta (e não entre o uso normal e um outro código total,
transcendente), ou seja, encontra-se nos limites dos sistemas, pronta para fazê-los
fugir. Talvez seja sob este aspecto que devamos ler a aproximação entre poesia e dor
e o afastamento desta da prosa (uso normal dos códigos) em “Luto por mim mesmo”:
“como se doer fosse poesia/já que tudo o mais é prosa”.

Mais uma vez, como se vê, metalinguagem, dor e reflexão sobre a dor podem
ser temáticas deste poema. Talvez esta noção, ‘temática’, não seja adequada. Os
poemas de Leminski não são multisignificativos, mas fazem fugir os significados
(temáticas). Mas também posso lê-los (como já tentei) como poemas que fazem fugir
os significantes, ou seja, que tentam escapar à significância (significante+significado,
forma+conteúdo). Esta a-significância é uma característica de Leminski ou a invento?
É claro que há obras poéticas que não suportariam tal uso, mas creio que seja
possível em Leminski (se não acreditasse nisso, este texto não teria sentido), não
como uma característica intrínseca de sua obra, nem mesmo como elemento
potencial, mas como possibilidade de leitura (uso, funcionamento) que ela abre na
multiplicidade dos códigos.

Estou afirmando aqui uma abordagem da obra poética (e uma proposta de


escrita de minha própria dissertação) que recusa o ponto de vista da estrutura, seus
relacionamentos e seus elementos, em favor da perspectiva da multiplicidade-rizoma
de Deleuze e Guattari:

O livro como imagem do mundo é, de toda maneira uma idéia insípida. Na verdade
não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade
tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao
contrário, de maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de
que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando
sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever
a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de multiplicidade. Um rizoma como haste
subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos, os
tubérculos são rizomas. (Deleuze; Guattari, 1995b, pp. 14-15).

Opor a pluralidade dos rizomas (conceito retirado da biologia) à hierarquia disciplinar


das raízes e árvores, dotadas de memória longa (condição da identidade, do
fechamento e da permanência):

Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como
árvore-imagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma é uma
antienealogia. É uma memória curta ou uma antimemótia. O rizoma procede por

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variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à
fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser
produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com
múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga.(Deleuze e Guattari, 1995b, pp.
32-33).

É este esquecimento das grandes estruturas, da unidade do ser (“quero viver sem
fé/sem nunca saber quem é”) que procuro em Leminski, em meu texto (será que posso
ainda dizer eu? talvez o diga apenas por conveniência) e que se aproxima do texto
plural de Barthes:

Em presença do texto plural, o esquecimento de um sentido não pode, pois, ser


considerado uma falta. Esquecer em relação a quê? Qual é a soma do texto? Alguns
sentidos podem perfeitamente ser esquecidos, mas, caso se tenha optado por
observar o texto com um olhar singular. No entanto, a leitura não consiste em fazer
cessar a cadeia dos sistemas, a fundar uma verdade, uma legalidade do texto e, por
conseguinte, em provocar as “faltas” do leitor; consiste em imbricar estes sistemas,
não de acordo com sua quantidade finita, mas de acordo com sua pluralidade (que é
um ser, não uma redução): passo, atravesso, articulo, provoco, não conto. (Barthes:
1992, p.45)

Encontrar temáticas e características formais na obra de Leminski seria como “fundar


uma verdade, uma legalidade” de seu texto, fechá-lo num sistema arbóreo dentro do
qual encerro relações e elementos organicamente articulados: subjetividade,
significância, formas, dialética com o contexto.

Quando falo em fazer fugir a significância (temáticas e formas) trata-se mais


de uma possibilidade de uso da obra de Leminski. Encaro seu exercício poético (e
posso fazê-lo com qualquer outro) como uma operação na multiplicidade. Há
operações que procedem por arborificação, estabelecimento de sistemas com limites
claros, ordenações hierárquicas dentro destes limites, construção de identidades
(memória longa), verdades. Mas também há procedimentos rizomáticos que formam
apenas bulbos temporários, mas cujo objetivo são as linhas de fuga, muitas vezes
estourando com os sistemas arbóreos. Pois não se trata de duas realidades, a da
árvore e a do rizoma, mas de dois procedimentos diante de uma mesma realidade:
fazer rizoma e fazer árvore. Creio que fazer rizoma com a obra de Leminski seja mais
fecundo, talvez a única possibilidade de não ‘enquadrá-lo’ na subliteratura (que é um
lugar no sistema): afirmar a fuga que ele provoca na literatura e em suas estabilidades,
mesmo modernistas. A impossibilidade da significância em sua obra resulta da minha
perspectiva, minha disposição em fazer rizoma com ela. Então não é uma
característica da obra? Não há sentido nesta pergunta, seria melhor reformulá-la para:
É fecundo este uso (que é uma questão de conexão) de sua obra, fazendo-a fugir da
significância? É uma máquina boa para isto? Será que suporta bem este tipo de
conexão ou mesmo a pede? Será útil para mim e meu leitor?

Mas essa impossibilidade da significância resulta também da perspectiva de


Leminski, ou melhor, da perspectiva com que sua obra se enreda nos códigos

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(abrindo-lhes fendas, picadas), sejam eles lingüísticos, sociais, psíquicos etc. Assim
como pode haver críticas que operam por arborificação e rizoma, também se pode
dizer que as obras literárias oscilam entre estas perspectivas — veja bem que não há
exclusividade de um pólo, mas tendência a um. Os textos poéticos de Leminski
operam, creio, tendencialmente por rizoma, daí a fecundidade de uma perspectiva que
também opere dessa maneira. Se o leitor quiser pode-se dizer que a obra de Leminski
trata-se, nos termos de Barthes, de um texto moderno, que ele opõe ao clássico,
utilizando-se da noção de plural do texto:

O texto clássico é, pois, tabular (e não linear), mas essa característica é vetorizada,
obedece a uma ordem lógico temporal. Trata-se de um sistema multivalente, mas
incompletamente reversível. O que limita o plural do texto clássico é aquilo que
bloqueia a reversibilidade. Esses bloqueios têm nomes: por um lado, a verdade e, por
outro lado, a empiria: precisamente contra o que — ou entre o que — está o texto
moderno. (Barthes, 1992, p. 63).

Apesar de Barthes se referir a narrativas (e no caso das narrativas de Leminski, que


não estou abordando, a citação acima é extremamente pertinente) pode-se dizer que,
pela fuga da significância e da subjetividade, que se constituem, de certa maneira, a
verdade (a busca das essências no fundo ou por trás) da poesia ocidental, por essa
fuga os textos poéticos de Leminski intentam o plural do texto: fazem rizoma com o
mundo, entrelaçam linhas (as raízes-rizomas são linhas) em vez de estabelecer
pontos e promover subdivisões binárias e hierárquicas (árvores), funcionam como
máquinas produtoras em vez de estruturas representativas.

O proceder por rizoma é correlato à fuga da tematização/significância. Trata-


se então de uma característica funcional (se o leitor não se conformar com minha
recusa em encontrar características) da poesia de Leminski, portanto não encerrada
em seu dentro, mas à disposição de um uso, de uma conexão que, para ser mais
fecunda, talvez precise também operar por rizoma. É este exercício de conexão,
irregular e um tanto imprevisível (inclusive para mim), que tenho tentado em minha
aproximação com sua obra.

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CAPRICHO, RELAXO

Quem dera eu fosse um músico


que só tocasse os clássicos,
a platéia chorando
e eu contando os compassos.
Se eu soubesse agora,
como eu soube antes,
a dança alegórica
entre as vogais e as consoantes!
(Leminski, 1995, p. 47).

Um intenso rigor quase científico e que chega às raias da frieza guiaria o


exercício poético dos poetas da estruturação. A frieza racional desse exercício, longe de
consistir num ponto a ser reparado, motivo de autocrítica, torna-se um trunfo,
principalmente da poesia de vanguarda. Quase se pode dizer que esta frialdade é
praticada com paixão: “A poesia concreta coloca o poema sob o foco de uma
consciência rigorosamente organizadora, que atua sobre o material da poesia da maneira
mais ampla e mais conseqüente possível.” (Campos. H., 1975c, p. 51). Como contestar
este rigor sem cair na opção oposta, a poesia de expressão e seu tom confessional e
discursivo, mesmo quando voltada para preocupações sociais?

Há na literatura dita clássica (e o clássico, neste poema, tem um quê de


modernismo e concretismo) todo um exercício de contensão e impassibilidade, um
ateísmo passional em nome do domínio da formação das matérias que circulam no
artefato artístico:

Se eu soubesse agora,
como eu soube antes,
a dança alegórica
entre as vogais e as consoantes!

Domínio que se estenderá ao além da construção, quer dizer, ao pólo da recepção, cuja
interpretação da obra não deve sair de certos limites muito estritos: “a platéia chorando /
e eu contando os compassos”. Arriscamos dizer que este quadro, nas vanguardas
construtivas, pode ou não sofrer mudanças significativas: muitas vezes o que há é uma
ampliação das possibilidades interpretativas, que devem permanecer, no entanto, dentro
de certos limites relativos:

(...) o poema concreto possui o seu número temático: isto é, as cargas de conteúdo das
palavras, tratadas do ponto de vista material, só autorizam um determinado número de
implicações significantes, justamente aquelas que atuam como vetores estruturais do

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poema, que participam irremissivelmente de sua “Gestalt”. Nenhum decorativismo,
nenhum efeito intimista de pirotécnica subjetiva. (Campos H., 1975a, p. 77).

O que faz diferença em muitos aspectos, mas que, no entanto, conserva o da auto-
disciplina formal e o do domínio rigoroso das matérias intra e extra textuais. Há algo
comum a ambos os pólos (poesia de estruturação ou construção e poesia de expressão
ou emoção) da oposição que estamos trabalhando e que deve ser explicitado: o
problema do controle sobre grandes conjuntos. No poema de Leminski este problema é
patente, pois o músico domina toda a platéia (e, com isso, as possibilidades
interpretativas) e nos últimos quatro versos é já o poeta dominando a estrutura sonora (e
semântica: alegórica, consoantes) do artefato poético. Nas poéticas modernistas e
vanguardistas de construção esta preocupação de domínio se reverte em consciência da
estruturalidade do texto, suas relações internas (formais) e suas possibilidades de efeitos
ou relações com seu contexto: sociedade e subjetividades. O domínio do artefato e de
seus efeitos evolui da conotação, que limitaria as possibilidades interpretativas, para a
delimitação, modular ou probabilística, destas possibilidades, tornando-se uma questão
de amplitude de campos de significância. Passa-se do domínio do duplo sentido para o
controle estatístico: ainda se trata de um problema político, da relação de poder entre o o
autor e texto de um lado e os receptores do outro — “a platéia chorando e eu contando
os compassos”.

No pólo oposto, da expressão, há uma aparência de maior liberdade no


exercício poético, mais espontâneo e a mercê dos fluxos subjetivos. Mas uma certa
forma de domínio é exercida por uma entidade fora do controle dos recursos de
construção que o poeta domina os quais, se são necessários para a espera da inspiração,
não são, por si só (nem mesmo se somados ao talento), suficientes para a deflagração do
poema. Este se torna ou o prolongamento dessa entidade fora do controle do poeta
(sujeito, cultura, deus, ser) ou um objeto autônomo derivado dela.

É claro que as coisas não se apresentam assim tão puramente repartidas na


maioria dos casos, mas esta pressuposição bi-articulada é uma espécie de limite ideal
em torno do qual as obras oscilariam. Tanto é que um pólo interpenetra o outro: para
esperar o poema como dádiva de algum deus é necessário domínio construtivo; para
construí-lo é preciso dominar e sobrepujar as motivações subjetivas aquém ou além da
construção. Também é claro que não estamos falando do exercício poético em si (na
verdade intangível), mas de poéticas, ou seja, de concepções que poetas ou críticos têm
a respeito do exercício poético. Ambas as poéticas, de expressão e construção, sejam
elas modernistas ou vanguardistas, reivindicam para si uma certa liberdade e, de fato,
ambas a têm, em seus termos: num caso a liberdade de deriva nos fluxos da
subjetividade, liberando a prática poética de um excesso de auto-disciplina construtiva
e, principalmente, do fechamento do poema na estruturalidade; no outro a libertação do
despotismo da subjetividade (individual, mas também coletiva, da tradição, das

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convenções) pelo domínio estrito dos materiais que circulam e são formados no poema.
Mas ambas as poéticas produzem uma espécie de fechamento que rebatem estas
liberdades em algum tipo de totalidade: a do sujeito ou a da estrutura. Leminski
percebeu bem a encruzilhada em que se colocou o concretismo e sua face voltada à
cristalização: “o classicismo implícito na coisa concreta que leva a eliminar o presente,
as menções explícitas ao atual, ao circunstancial, ao efêmero... uma poesia que já quer
nascer universal, geral, genérica, nasceu morta...” (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 117).

Uma poética implica na determinação do que ou quem prepondera no exercício


poético (tanto na sua feitura quanto na sua recepção, ou no texto em sua imanência),
mas é claro que estas demarcações implicam no exercício do poder no campo da
Literatura e, extrapolando-a, implicam em posturas políticas em geral, como bem
observa Leminski:

o q a gente precisa sempre é combater/debelar alguns interditos e tabus q a poesia


concreta instalou, o facismo (vindo de pound, v. queria o q?) da distinção entre
inverntors, masters e diluters, por ex. a raça pura, as raças inferiores... esteticismo de
campo de konzentration... nesta ala, os inventors... aos fornos crematórios os
diluidores... (Leminski e Bonvicino, 1999, p. 109).

Talvez o problema deva ser colocado de uma outra forma, pois a questão
relevante não é saber qual das poéticas é mais rigorosa, se a da construção ou a da
expressão. Nem saber se é bom ou ruim que haja rigor numa opção poética. O que
vamos observar é que ambas as poéticas têm seus rigores (caprichos) e liberdades
(relaxos) em seus próprios termos e o que vai interessar realmente é sabermos qual o
regime destes caprichos e relaxos de cada uma.

No caso da poesia de expressão invoca-se a liberdade do delírio contra o


aprisionamento da rigorosidade construtiva, mas esta liberdade acaba se abismando na
subjetividade (“abismo onde me encontro”), em outras palavras, nos rigores da unidade
e da identidade, já presentes ou a serem encontradas (unidade esfacelada). Na poesia de
construção, não raro há a confusão do rigor com a totalidade, o domínio dos grandes
conjuntos: a subjetividade motivadora, a estrutura do poema, as subjetividades que
sofrerão seu efeito. Portanto, ambas as poéticas têm, como dissemos, os seus “caprichos
e relaxos”. E ambas concebem geralmente uma noção de totalidade que irá se confundir
com o seu rigor (as suas responsabilidades, os seus rigores a sua gravidade), que é o seu
limite de fuga. Esta confusão de rigor com totalidade é responsável por pontos de vista
como estes:

Em 1922, os maestrores paulistanos inventaram o poema-piada; meio século


depois, seus bisnetos criaram o poeta-piada. Dicção rala, idéias curtas, cultura de
almanaque, arritmia crônica, berimbau de barbante, razionate de bar, ethos de
radialista, estética de violão, filosofia de publicitário, ritmos de mingau, versalhada

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instantânea e rimas de muleta: eis as receita de dezenas de pocket poets à la Paulo
Leminski, (...). (Tolentino, 1999).

Em toda esta descrição, feita por um defensor conservador da poesia de expressão,


perpassa, por trás da crítica ao não rigor (em seus termos), a denúncia da dispersão
(dicção rala), da irresponsabilidade (cultura de almanaque) da traição à densidade
(razionate de bar), à profundidade (filosofia de publicitário) e à permanência (pocket
poets). Traição ao super-sujeito da tradição:

E a lição que nos legam os vazios é clara: é preciso reduzir a velocidade... É preciso
arquivar e esquecer Leminskis e Anas Cs, Cacasos e Gugus, confusos e confrades. É
preciso em seguida ler com toda a calma o que, da Arcádia Mineira ao Condor Baiano,
de Gonçalves Dias a Manuel Bandeira, de Drummond a Cabral e de Cecília a Adélia,
o que por aqui se escreveu com toda a atenção, segundo aquela “emoção recordada na
tranqüilidade” de que Wordsworth investiu o ato de poíesis há mais de século e meio.
(Tolentino, 1999).

Este pedido de calma e redução da velocidade talvez remeta mais a uma preocupação de
preservação da estática estrutural do ser (da tradição, a maioria dos autores citados por
Tolentino são signos-instituições ‘basilares’ da tradição poética) que com os cuidados
formais e conteudísticos da prática poética.

Poderíamos permanecer dentro dos pólos poesia de construção e de expressão e


tentar, com nossa leitura fazer Leminski tender a um deles, sintetizá-los ou até mesmo
transcendê-los numa espécie de dialética. Neste caso permaneceríamos nos limites das
grandes totalizações (sujeito, tradição, estrutura, subjetividade-objetividade), repondo
em seus termos o problema do rigor e da ausência do rigor. Tentaríamos mostrar como
Tolentino está equivocado quando afirma a ausência de rigor na poesia de Leminski que
se trata, segundo ele, de um “poeta-piada” absolutamente medíocre. Mas talvez
Leminski esteja fazendo fugir estas grandes totalizações (entre elas a Literatura, outra
totalização que se apóia nelas) e, obviamente, desestruturando seus critérios, suas
regulamentações e valores sistêmicos — seus rigores. O problema então não se
colocaria em termos de rigor e não rigor dentro dos limites dos grandes conjuntos, mas
nos termos das totalizações que estes conjuntos formam e as possibilidades entrópicas,
de fuga, que eles oferecem. Fugas que desmantelariam os termos do rigor destes
sistemas, não através de uma polarização radical dentro deles (como, por exemplo,
estabelecendo um rigor construtivo voltado ao objeto em oposição à subjetividade, caso
da poesia concreta), mas dissolvendo suas bi-articulações (o que pode confundir muitas
leituras: Leminski pode ser lido como poeta da expressão e da construção, além de
poeta-piada).

Se mudarmos o eixo da discussão do problema do rigor e de sua ausência


dentro dos limites que circunscrevem as poesias de expressão e de construção (e é

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interessante notar que, embora Tolentino tenda para uma poética da expressão, ele
defende, numa interessante composição, o rigor construtivo, numa perspectiva,
digamos, clássico-modernista), para o problema das totalizações dos conjuntos e sua
fuga, não é preciso mais tentar mostrar, ponto por ponto, como Tolentino se equivoca.
Ele não está equivocado e sua lista de características negativas a respeito de Leminski (e
outros contemporâneos) tem sido confirmada por nós ao longo deste texto. Apenas
propomos deslocar o problema que incomoda Tolentino e que não se trata apenas de
rigor. O que o preocupa em Leminski é a ausência de um certo rigor convencional,
implicado numa determinada concepção de poesia que a supõe como expressão
subjetiva, vinculando-a a dois sujeitos: o individual do poeta e o coletivo da tradição.
Tolentino deixa transparecer que a poesia, para ser rigorosa (de boa qualidade), deveria
fazer jus a estes dois grandes sistemas (encarados como totalidades), estabelecendo com
eles um vínculo representativo. Na verdade a obra poética de um autor deveria ser, nesta
perspectiva, ela mesma um grande sistema textual que de alguma forma englobe e
transcenda os outros dois (indivíduo e tradição), mantendo com eles uma espécie de
relação dialética. Portanto, o texto de Tolentino não diz respeito apenas ao rigor e sua
ausência na obra de Leminski, mas principalmente da ausência de totalidade(s) em sua
obra, de sua não expressividade, de sua incapacidade (ou resistência) de ser apreendida
como um grande sistema centrado em relação com outros sistemas do mesmo teor
(Tolentino não encontra nos poemas de Leminski os rigores das totalidades
convencionais da Literatura de expressão: dicção, idéias densas, cultura, permanência,
profundidade filosófica etc). Mas, nos deslocando para a perspectiva da fuga, o que
seria um defeito dos textos de Leminski pode tomar outro aspecto, menos assombroso
ou pejorativo. Temos tentado mostrar que sua poesia tende para uma dissolução das
totalizações rumo a uma espécie de limiar de descodificação absoluto, a ponto de a
unidade não fazer mais sentido, nem como múltipla ou esfacelada, utópica ou
nostálgica. Depois das leituras que fazemos não se pode, cremos nós, afirmar que lhe
falta rigor (o texto-morcego deve ser extremamente preciso), mas este problema não se
coloca mais sob os termos das poéticas da construção ou da expressão. Não se trata de
dominar grandes conjuntos estruturais, nem de despotismo subjetivo. Nem mesmo de
um despotismo do significante. Vimos que não se trata de um deslocamento de
significados sobre a carne de um significante rigorosamente estruturado. A mobilidade
geral, a preponderância do verbo sobre o substantivo (em termos de classes gramaticais)
e sobre o sujeito ou os objetos (em termos sintáticos) implica no predomínio da
variância e do diferencial em oposição à permanência e ao universal. Trata-se, como diz
o próprio Leminski, de lidar com “distâncias mínimas”, circunstancialidades absolutas,
variações microscópicas (e não controles macroscópicos), linhas e fluxos; dicção rala:

eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

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eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
(Leminski, 1983, p. 72).

Enquanto “Quem dera eu fosse um músico” ri (descarta) do poeta da estruturação, “eu


queria tanto” ri do poeta da expressão, seja a expressão da subjetividade individual
(poeta maldito) ou social (poeta social). Só resta ao poeta (e ao poema) a sopa/dicção
rala, as linhas finas e rarefeitas que constituem o funcionamento microscópico dos
grandes sistemas e que os atravessam de ponta a ponta provocando-lhes fissuras quase
imperceptíveis. Inútil tentar tornar densa ou profunda a rarefação que Leminski
persegue obstinadamente: mal dá para um, se tomarmos este um como eu (lírico ou
biográfico). Que rigores perpassam, então, a maquinaria textual de Leminski?

Não podemos dizer que Leminski revoluciona a técnica poética, pois apesar de
um uso todo particular da língua e das convenções poéticas (seu estilo?), ele trabalha
dentro da tradição do verso, com um domínio cerrado do que a crítica chamaria de
figuras de sonoridade: assonâncias, consonâncias, aliterações, rimas, ecos etc. Já
tivemos a oportunidade de flagrar estes procedimentos nos poemas. Do ponto de vista
das figuras de sentido, haveria um uso da metáfora em seu plural (que não pode ser
freada em um ponto do código, ou seja, em uma profundidade conotada), do anagrama
que multiplica os campos semânticos e uma tendência à poesia de idéias,
enlouquecendo-as. No poema “Luto por mim mesmo” pudemos verificar bem o
procedimento que permite o entrecruzamento das linhas da dor e da vida, não no sentido
metafísico e genérico destas (não se trata da Dor ou da Vida), mas de uma dor e de uma
vida específicas. Por outro lado, não se trata da dor ou da vida de um sujeito particular
(nem de um eu lírico), mas dor e vida são (foram lidas como) linhas de intensidades,
abstratas e localizadas, fluxos microscópicos que se cruzam entre si e com as linhas dos
versos: circulação pura de intensidades fazendo vazar os grandes conjuntos (sujeito,
tradição, estrutura do poema ou da poesia). Junto com o uso da metáfora em seu plural,
este procedimento reflexivo-andante de fazer circular intensidades torna o lado
semântico de sua poética extremamente original. Mas o lado sonoro não fica atrás, pois
tratam-se de poemas não necessariamente medidos e aparentemente simples do ponto de
vista rítmico, mas cujo trabalho fonético é extremamente rigoroso, mantendo-se sempre
em jogo (de pressuposição recíproca) com o trabalho semântico.

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Para chegarmos aos rigores de Leminski agimos como intérpretes tradicionais,
na bi-articulação significado e significante, procurando comentar e desvendar os jogos
de linguagem dos poemas, mas também tentamos construir outras relações com os
textos de Leminski, pressupondo-os como plurais ou rizomas, textos-morcego. Este
procedimento crítico não implica mais em (somente) apreender a obra, interpretá-la e
classificá-la, mas em conectar-se com ela, mesclar linhas de textos críticos com os
poéticos. Por isto, nosso texto teve também de tender, pelo menos um pouco, ao rizoma,
ao plural bathesiano. Tudo isso porque achamos que a obra de Leminski poderia ser
levada mais longe do que os métodos tradicionais de crítica, representativos ou
estruturais, a levariam: levá-la além da estrutura, da subjetividade e da significância que
impregna a ambas. E também levá-la além da tradição literária, embora utilizemo-nos
de seus instrumentos. Lida assim, sua obra está além da Literatura como instituição,
conforme a percepção do próprio Leminski:

acho que estamos depois da literatura


não é preciso combatê-la
o que nós estamos fazendo já não é ela
a produção de signos
de bens simbólicos
de mensagens
já ultrapassou a barreira da cultura verbal
em plena conquista de um espaço intersemiótico
(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 33).

Embora trate da ultrapassagem do verbal nesta carta (provavelmente de 1976) a Régis


Bonvicino, não se pode dizer que sua poesia verbal implique (somente) num espaço de
preservação do literário. Ela até pode ser lida assim, na medida em que, como dissemos,
utiliza-se de recursos tradicionais, mas o que tentamos mostrar é que suporta ser levada
mais adiante, para além da tradição literária. As leituras-produções que tentamos nesta
dissertação vão neste sentido. Este além não implica numa superação evolutiva ou em
transcendência, mas numa espécie de dissolução do sistema literário pelo trabalho
microscópico das linhas de intensidade (processuais) que, em nossa leitura, prevalecem
sobre as cristalizações e organicidades. Estas operações micro-processuais das linhas se
constituem em fugas. Não se trata de fugir dos sistemas fechados, mas de fazê-los fugir,
abrindo-os permanentemente, tornando-os a-centrados5. Leminski se mostrava
consciente desta possibilidade de leitura (em fuga) de sua obra, procurando produzir
textos que buscam a entropia da Literatura, abrindo-a para a cultura:
5
O conceito de a-centramento é diferente de policentramento. Este último, apesar de multiplicar o centro,
preserva a concepção de centralidade, mesmo que de maneira muito fluida. O regime de produção (de
bens e códigos) capitalista é poli ou multicentrado, como são as obras modernistas, (re)construídas em
leituras que procuram nelas a expressividade ou a estruturação. É o caso de se perguntar se algumas
dessas obras não suportariam também uma leitura que as (re)construíssem a-centradas.

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Pra mim, a literatura não passa de um fetiche universitário. Não estou interessado mais
na idéia de uma literatura, nem mesmo de uma continuidade literária. Não tenho
nenhuma intenção que minhas coisas, por exemplo, tenham um padrão de
continuidade com isso que se chama de literatura. Quero, pretendo estar atuando sobre
a coisa mais complexa, que se chama cultura. (Leminski, 1994c).

Mas esta opção pela atuação na cultura não implica numa adequação a ela, que
resultaria apenas num cerceamento posterior, embora sob o regime de um sistema mais
amplo e complicado. Também na cultura ele propunha provocar vazamentos, variância:

O edifício da cultura humana (signos insubstanciais: temperos, artes,


ciências, saberes, mitos, técnicas, ritos, textos, cultos, linguagens, desejo de infinito,
que vida alguma se conforma que tenha o tamanho da vida): o campo de ruínas da
cultura humana, isso representa o mais alto grau de harmonia em toda realidade
universal (onde a Ordem, necessariamente, encerra o mais reles de todos os delitos).
Estes artefatos, arde-fardos, objetos plasmos com idéias-palavras, que creio
saber fazer dançar e cantar, se darão por perfeitamente felicíssimos se lhes
proporcionarem a prerrogativa e a elétrica oportunidade de devanear que são “flashs”
da glasnost desta Gestalt, brumas em rumo daquele ponto cardeal que, se a gente não
sabe, pelo menos desconfia. Desconfiar é um gesto vazio, o mais perigoso dos gestos.
O sonho, afinal, é tão improvável quanto a equação e o poema.6 [grifo do
autor] (Leminski, 1994b, p. 8).

Aqui aparece claramente a opção por fazer fugir os sistemas (glasnost da Gestalt:
libertação da totalidade) e não de fugir deles, abandonando-os. Aparece também a
direção da incerteza e do perigo dada pelo verbo ‘desconfiar’: a fuga parece não ter um
termo, uma certeza, um saber aonde chegar. Des-subjetivação, a-significação,
desestruturação da Ordem, da Gestalt, levando os artefatos/arde-fardos (máquinas
desejantes?) da Cultura para além de seus limites, fazendo-os “dançar e cantar”,
escapando do abismo subjetivo e do cerceamento da significação.

É claro que nesta perspectiva de viagem, de deriva e enredamento contínuo, o


erro e o acaso acabam sendo necessários, ousamos dizer que constituem (ao lado da
disposição de deriva e o preparo para ela, muitas vezes com instrumentos tradicionais)
os termos do rigor de sua poesia. É preciso saber lidar com o acaso, preparar-se para ele
não como uma dádiva de um ente divino ao poeta (que seria acaso apenas
aparentemente), mas aceitá-lo como rigorosamente imprevisível, órfão de agentes
causadores e perigosamente forte: trazer um pouco de caos para a ordem, ordenar
precária e precisamente o caos:

6
A citação anterior é um trecho de uma entrevista dada em 1978 e esta última é parte de um texto
(auto)crítico-criativo de 1986, intitulado “Oração principal”.

71
A LEI DO QUÃO

Deve ocorrer em breve


uma brisa que leve
um jeito de chuva
à última branca de neve.

Até lá, observe-se


a mais estrita disciplina.
a sombra máxima
pode vir da luz mínima.
(Leminski, 1997a, p. 16).

Até que chegue o momento de explosão casual da primeira estrofe, um rigoroso trabalho
de preparo para a deriva, para as negociações com o acaso:

Faça os gestos certos,


o destino vai ser teu aliado,
ouço uma voz dizendo
do fundo mais fundo do passado.
Hoje, não faço nada direito,
que é preciso muito mais peito
pra fazer tudo que qualquer jeito.

Ai do acaso,
se não ficar do meu lado.
(Leminski, 1995, p. 93).

À disposição de deriva descuidada (fazer tudo que qualquer jeito) o texto opõe uma
ameaça ao acaso nas duas últimas linhas: o “fazer de qualquer jeito” não como um
descuido, mas como um jogo de risco, configuração precária do caos, caotificação
máxima da ordem (mas até um certo ponto que preserve um pouco de organismo para a
sobrevivência). É uma questão de forças (quero forças para o salto) e preparo: saber
levar as coisas até um certo limiar quase absoluto de descodificação, nunca parar:

Andar e pensar um pouco,


que só sei pensar andando.
Três passos, e minhas pernas
já estão pensando

72
Aonde vão dar estes passos?
Acima, abaixo?
Além? Ou acaso
se desfazem ao mínimo vento
sem deixar nenhum traço?
(Leminski, 1995, p. 39).

Numa leitura em que se obedece a pausa dos versos, esta pode funcionar como ponto e a
palavra “acaso” aparece então como destino (inconcluso) dos passos, do pensamento
andante de curta memória, rizoma: sem deixar nenhum traço (permanência). Esta
poesia-movimento, onde o movimento, o processo, se constitui como perturbação da
estática dos sistemas, prevalecendo sobre ela, se nutre também do erro. Aliás, acaso,
erro e movimento são velhos parceiros (errar é andar sem destino) que os sistemas
centrados sempre tentaram evitar:

ERRA UMA VEZ

nunca cometo o mesmo erro


duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez
(Leminski, 1995, p. 46).

O erro remete à involuntariedade, portanto, ao casual que, no entanto, é buscado


insistentemente. Os procedimentos do erro, da deriva casual, um implicando no outro
reciprocamente, são processos de fuga, desmantelando a unidade e fazendo a
multiplicidade. O rigor desta poesia está em sua capacidade de preservar um mínimo de
recodificação em meio à descoficação generalizada: um ponto de subjetivação
provisório em meio à linhas de des-subjetivação absolutas, uma precária compreensão
em meio à proliferação a-significante: mínimo templo / para um deus pequeno. Mas um
ponto de subjetivação não implica em retomada do sujeito ontológico, mas apenas a
efetivação de uma baliza provisória: não é um retorno nem uma representação, mas uma
invenção, uma construção, uma produção. Da mesma forma a significância não existe
para exprimir leis e limites de um sistema, mas apenas como processos de mapeamento,
diagramas situacionais: radares de textos morcegos.

Na poesia da expressão, o rigor se liga à preservação dos limites subjetivos


(mesmo que proceda pela fragmentação do sujeito) que a poesia da estruturação, no
intuito de fugir destes mesmos limites, renega, alojando-se no pólo da objetividade. Esta
opção pela polarização apenas reforça, pela oposição, os limites dos grandes conjuntos:
o sujeito e a estrutura objetiva. O rigor da poesia de Leminski situa-se exatamente em

73
sua capacidade (ou não) de desfazer estes limites sem, no entanto, precipitar no caos
absoluto. Fazer prevalecer a variância e o diferencial (erro, caos/acaso,
movimento/processo) sobre a permanência e o universal, a ponto destes dois últimos
derivarem do primeiro, e não o contrário. Não é o sistema que varia, mas a variância se
sistematiza. O sujeito não se multiplica, mas na multiplicidade surgem pontos de
subjetivação, sempre por negociações/lutas políticas, por (des)conquista de poder.

Ainda se tratando do erro, a maquinaria que constitui os textos de Leminski,


para funcionar bem (?), deve estar permanentemente avariada, propensa ao erro (só o
erro tem vez) e à penetrabilidade do caos, pronta para a própria entropia, mergulho na
multiplicidade:

ICEBERG

Uma poesia ártica,


claro, é isso que desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não. Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?).
Sim, inverno, estamos vivos.
(Leminski, 1987a, p. 22).

Os quatro últimos versos de “Iceberg”, ao sobrepor falar e falo (órgão sexual), identifica
o erro com o desejo (“ao falar (falo) provoco / nuvens de equívocos”). “Nuvens de
equívocos”, “enxame de monólogos”, multiplicidade de falas/falos que constituem
condição de vida, contra os rigores estruturais que evitam a deriva e a proliferação dos
“enxames”: Sim, inverno, estamos vivos.

Se retomarmos o problema dos afetos (dor, amor, humor), vemos que sua
leitura como experimentações de intensidades puras, linhas à deriva que se mesclam às
linhas dos poemas, implicam no erro, na errância permanente. A verdade, o profundo e
o centro vinculam-se ao certo, tanto do sentido de certeza e clareza (que sempre se
espera, depois de desvendado o Mistério), quanto no sentido de correção moral. Ao
desvincular os afetos da expressão de uma subjetividade, encarando-os como
74
intensidades sem sujeitos, os poemas de Leminski perdem toda noção de centramento,
de localização correta em relação a algum centro de referência. O erro, em sua poesia,
na verdade não se opõe ao certo: qual universal daria os critérios de certeza? Não se
trata, portanto, de um erro negativo (em relação à qual certeza, à qual moral
transcendente?), mas puramente positivo: não se “erra uma vez” apenas, mas “só o erro
tem vez”, o erro como variação contínua, errância: os afetos, as idéias, os versos, não
são linhas que erram o caminho, mas são linhas erráticas:

Aonde vão dar estes passos?


Acima, abaixo?
Além? Ou acaso[?]

Nem acima, nem abaixo, nem além, que implicam em pontos de referências certos e aos
quais se podem opor os caminhos errados, as linhas enganosas. Os passos-linhas vão dar
no acaso, nas errâncias. A errância é fluxo permanente, nomadismo. O que se opõe ao
nomadismo é o sedentarismo, o refluxo das linhas e a reconstrução do certo-errado, da
presença-ausência e da invariância — máquinas represadas.

Uma poesia errática não tem como critérios de rigor o certo em si, a verdade ou
a permanência. Seu rigor, seu acerto, não deriva de sua acomodação aos critérios de boa
qualidade de uma totalidade, seja ela subjetiva ou estrutural. Suas linhas enganosas não
são as erradas (elas sempre são erráticas) em relação a alguma certeza transcendente,
mas as que refluem novamente em algum sedentarismo (bloqueando os fluxos e
reconstruindo centramentos) ou as que se precipitam no caos, sem preservar as
possibilidades de confluência. Os fluxos de uma poética errática devem confluir (pontos
provisórios de encontro, efetivações de fluxos). É na confluência dos fluxos de desejo
que ela encontra os seus rigores e suas liberdades muito peculiares. E o que ela deve
evitar são dois perigos que a rondam:

1) o refluir dos fluxos (seu estancamento, obstrução das linhas de intensidades,


“abismo onde me encontro”) numa poética da expressão subjetiva da
estruturação (a bi-articulação das totalidades sujeito-objeto);

2) e o fluir desenfreado dos fluxos como fim em si (precipitação no caos).

Os rigores da poesia implicam numa estética, mas toda estética pressupõe uma
moral, escolhas éticas, questões políticas. Uma poesia errática recusa todo
estabelecimento de poder que a subordine, mas também recusa a conquista do poder
através da obstrução das linhas com as quais opera (se mescla) um auto-descentramento
constante (errância). A conquista do poder implicaria na construção de uma identidade,
na cristalização de uma unidade, numa arborificação implantada no rizoma, obstruindo
sua proliferação descodificada. Uma maquinaria textual suficientemente errante

75
(avariada, aberta à imprevisibilidade e à variação) quer apenas confluir fluxos para
depois deflui-los, procurando outras confluências possíveis, sem cristalizá-las em
estruturas, sujeitos, tradição, nem compondo uma memória muito longa ou permanente:

apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
(Leminski, 1983, p. 66).

O charme, no qual a sílaba ‘me’ não se refere mais à subjetividade, é apenas uma
intensidade, um atributo inexplicável — para além (ou aquém?) da significância — que
transforma a pessoa num campo magnético. É apenas uma subjetivação precária que
eletriza o ambiente por onde circula: esquecimento dos pontos de apoio da matéria em
favor da circulação energética. Esquecimento das grandes estruturas em favor da
experimentação dos fluxos. O charme pode ser usado para conquistar o poder: o
charmoso é um conquistador. Mas o chame (abstrato e particular) como linha intensiva
que se configura e atravessa os grandes conjuntos sem a eles se agarrar (o charmoso é
um grande conjunto, uma subjetividade que integra o charme em sua memória, como
característica sua) recusa toda conquista e oferece apenas a possibilidade da
confluência, do amor processual: enredamento contínuo de fluxos. O charme é, nesta
perspectiva uma linha a ser experimentada e não elemento ou energia a ser armazenada
para a conquista e a manutenção de domínios. A subjetividade implícita no ‘me’ de
‘desmanchar-me’ é um domínio (um limite) que deveria ser mantido e que a palavra
‘charme’ corrompe com seu ‘me’ não subjetivo.

O humor tem, mais uma vez, um papel decisivo neste poema, pois advém,
como nos ensina Bergson, de uma reação crítica ao “mecânico calcado no vivo”
(Bergson, 1983, p. 27). A subjetividade implica exatamente num sistema mecânico se a
opomos à mobilidade errática do charme, cujo mecanismo subjetivo quer aprisionar. A
liberação do charme passa pelo jogo anagramático de palavras e pelo humor. Charme
que está (ou parece) dentro do sujeito. Mas sua agilidade e a maleabilidade fazem da
subjetividade uma máquina muito certa (previsível), que tende ao peso, à gravidade (no
sentido de força física e de seriedade). Máquina propícia, portanto, às ‘brincadeiras
espirituosas’, à galhofa. Todo humor, como o charme, é ágil. Na verdade, a agilidade,
em oposição à estática mecânica, é que resulta no humor: por isto se ri dos palhaços,
pela sua inabilidade, por sua mecanicidade insensível à maleabilidade da vida. Ora,
qualquer intensidade liberada da gravidade subjetiva (ou estrutural) já é potencialmente

76
bem humorada, pois diante dos grandes conjuntos os fluxos intensivos constituem
agilidade pura. Dor, amor, todos os afetos libertos do abismo subjetivo constituem
pequenas máquinas (desejantes) errantes que avariam (variam) os mecanismos
sistêmicos. Nesta situação, todos estes afetos são potencialmente bem humorados, assim
como as linhas dos poemas de Leminski fazem fugir (a provocação seguida de fuga é
uma brincadeira muito engraçada) a própria literatura, desconcertando a crítica. O
humor, como o erro é uma avaria nos mecanismos sistêmicos. Uma maquinaria sem
avarias torna-se um mecanismo previsível, harmonizando o funcionamento de todas as
micro-máquinas que passam a ser elementos na hierarquia de um sistema centrado. Os
textos de Leminski riem do sujeito, da estrutura, da tradição, da memória e da literatura,
tornando-se avarias, máquinas avariadas, desvairadas, variantes, errantes: charme-
humor, charme-charge, sabotagem dos mecanismos da subjetividade, da estrutura e da
literatura.

O poema “apagar-me” opera um processo de desmanche do eu, de seus limites,


fazendo-o vazar no fluxo do charme-humor, do “desmanchar-me” anagramático. A
efetivação do processo ou ponto precário de subjetivação é o charme indefinível que
resta depois do desmanche. Charme que é, ao mesmo tempo, uma confluência dos
fluxos e uma possibilidade de (des)fluência, avessa a qualquer estabelecimento de
limites (e poderes) subjetivos. E o sujeito, como individualidade, é um cerceamento aos
fluxos, um limite (fluido, mas rigorosamente controlado) construído pelo regime de
códigos burgueses. Há toda uma moral da errância, que funciona mais por produção, é
claro, que por representação.

77
FRAGMENTO 4

Apenas uma maquinaria bastante defeituosa (bastante errática) pode operar a


abertura de fendas propícias ao vazamento dos sistemas fechados e ainda não se
ressistematizar (refluir) mais à frente: a produção capitalista de códigos e bens luta o
tempo todo para ressistematizar as avarias (e não simplesmente evitá-las),
modulando-as numa freqüência compatível com a do fluxo do capital que, no mesmo
momento que descodifica os sistemas o tempo todo, vai recodificar suas fugas mais à
frente, sob seu regime. O capitalismo procede por avarias moduladas, controles
estatísticos de fugas. Os textos poéticos contemporâneos ao capitalismo avançado
correm o risco de se tornarem uma maquinaria modulável pelo fluxo de capital,
principalmente quando buscam a novidade de forma obstinada:

fiz uma palestra/debate


proposta minha
na arquitetura daqui
sobre o tema O BELO VERSUS O NOVO

no qual desenvolvi a idéia seguinte


isso que se chama arte moderna
deslocou o centro da idéia de BELO
para a idéia de NOVO
q eu disse ser própria de sociedades industriais
em adiantado estado de consumismo
capitalistas e socialistas
o pau quebrou vou te contar7
(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 35).

Para escapar desta recodificação estatística, os defeitos da maquinaria poética talvez


devam ser levados a um tal limite de avarias que não seja mais possível recodificá-las
por modulação, reintegrando-as aos regimes do capital.

Na verdade, esta reintegração é inevitável a qualquer obra (há sempre uma


máquina de vestibular, uma dissertação de mestrado, um nicho (cult) de mercado,
uma leitura estrutural ou expressiva à sua espreita). O que proponho é questionar se
determinada obra, apesar das absorções e reabsorções sistêmicas ainda é uma
maquinaria suficientemente avariada (errática) a ponto de suportar leituras (não
apenas de críticos) que tentem levá-la sempre mais fora do alcance da recodificação
capitalista, ou melhor, será que podem levar as pessoas que as lêem (levar as
leituras) a romper os fluidos limites sistêmicos do capitalismo? Afinal as linhas das
obras não se mesclam com as da vida? Os viventes levam as obras mais longe em
suas leituras apenas para irem também cada vez mais longe: as leituras também

7
Este texto faz parte de uma carta (provavelmente de 1976) de Leminski a Régis Bonvicino.

78
devem ser avariadas (variadas, variantes) o bastante para provocar errâncias não
ressistematizáveis, resistências à recodificação promovida pelo fluxo do capital:

Tudo é vago e muito vário,


meu destino não tem siso,
o que eu quero não tem preço,
ter um preço é necessário,
e nada disso é preciso
(Leminski, 1995, p. 64).

79
ATÉ ELA

Vamos tentar produzir uma leitura deste poema calcada inicialmente no


problema da passagem de um estado para outro, portanto, no problema do movimento.
Este é um ponto de referência fixado intuitivamente e não pretende ser, de modo algum,
absoluto. Apenas queremos fazer circular cadeias de significância em torno deste ponto
inicial que pode e deve ser relativizado. Trata-se, portanto, de uma entrada neste texto
que, como qualquer outro, possui uma multiplicidade de entre-linhas — frestas na
malha textual que constituem possibilidades de enredamento.

Se considerarmos o que se convencionou chamar de código padrão da língua,


notamos que o poema se utiliza deste código para operar duas ações: a caminhada (de
pé em pé) de um sujeito indefinido até o objeto para a execução de um procedimento
(de pétala em pétala). Esta dinâmica é correlata à mudança de classe gramatical das
palavras mais importantes de cada verso(?): de pronomes (ela) e substantivos (pé,
pétala) que indicam objetos e estática passa-se ao verbo “despetalar” que se configura
em ação sobre os objetos.

Passando ao código literário verificamos o movimento metafórico operado pelo


poema no transporte do campo semântico de flor para mulher, ou vice-versa, implicando
numa série de interpenetrações destes campos e de suas periferias: assim as pétalas da
flor implicam nas vestimentas da mulher, enquanto que a corola se identifica com o

80
corpo ou mais especificamente com os órgãos sexuais da mulher (a flor é o órgão
reprodutor das plantas). Aqui já entramos no campo do ciframento e deciframento8
(nossa leitura opera, até o momento, nos limites dos códigos) textuais. Este jogo cifrar-
decifrar estabelece uma série de expectativas e surpresas que jogam com a capacidade
(quase poderíamos dizer esperteza) do leitor-decifrador em perceber mais ou menos
rapidamente, com ou sem ajuda, a interpenetração dos campos semânticos (“ah! então a
flor é uma mulher!” — note-se que esta leitura estabelece um fundo ou verdade da
metáfora, que se constitui na mulher) e de sua capacidade de tirar conseqüências desta
interpenetrabilidade: é um poema erótico! Outros comentários poderiam ser
acrescentados, como a percepção de que se trata de uma metáfora extremamente gasta, a
ponto de se tornar um uso normal fora do campo literário. Resta saber se o poema opera
a metáfora de maneira a não cair também no lugar comum: este questionamento remete
ao problema da originalidade e habilidade do poeta, portanto, à sua qualidade.

O movimento metafórico vem acompanhado do anagramático, próximo nos


resultados, mas diferente no procedimento. O anagrama opera na carne do significante
(forma da expressão lingüística), mais precisamente na ocultação do som (e também da
visualidade) de uma palavra em outra, resultando na multiplicação dos sentidos —
como a metáfora também resulta. Assim, “pétala” contém “tala” numa referência
burlesca ao órgão sexual masculino. Em “despe(tala)-la”, então, encontra-se, a
corola/vagina despida e a tala/falo, prontos para o ato sexual. Por dentro de “despetalá-
la” corre “espetá-la” numa referência bem humorada (de um humor popularesco) à
penetração. A sexualidade somente é dita ou praticada ‘na surdina’, de maneira que se
deixe perceber de viés. O anagrama esconde prudentemente (como em sociedade) os
aspectos que são julgados mais animalescos ou chulos da prática sexual, exatamente os
que se referem aos detalhes anatômicos e de funcionamento dos órgãos genitais. O
poema se deixa, então, impregnar pelo fluxo do desejo, incorporando a alegria e a
espontaneidade do ato sexual. Podemos, inclusive, ler na vertical um “lá lá lá”
descomprometido que atravessa o texto: leitura facilitada pela disposição gráfica da
sílaba “la”, que se desprende progressiva e displicentemente das palavras que a contém,
numa alegria/música liberada pelo desejo e pela sexualidade. Estamos diante de um
erotismo não reprimido e sem culpa.

8
Vamos, inicialmente, produzir uma leitura de decifração do poema, quer dizer, voltada para o
‘desvendamento de sua estrutura ou suas verdades’. Esta leitura representativa (na verdade, produção de
representação) é sempre uma possibilidade aberta pelos textos de Leminski, que atuam no seio da tradição
e que, portanto, permitem uma abordagem tradicional. A outra possibilidade, que escapa ao jogo de cifrar
e decifrar é a leitura produtiva que, menos que interpretar sua estrutura, se conecta com a máquina do
poema: regime de produção de códigos. Assim como Leminski opera no seio da tradição da representação
para escapar dela, nossa leitura se encontra sempre delimitada, de início, pela leitura representativa,
mesmo que tacitamente. Neste caso resolvemos explicitar estes limites iniciais e agir dentro deles, para
depois tentar rompê-los.

81
Ainda percorrendo a linha do anagrama e fazendo uma leitura vertical do
poema, podemos chegar a:

até ela

de pé
em pé

de pé
em pé

até desp[e,é]

que implica numa série de ações que precedem (enquanto se está de pé a flor-mulher é
despida, (de pé)tala em pétala) e que culminam no ato sexual, “despé”, quer dizer,
deitados (e despidos, sentido insinuado por “despe”).

Ainda nos limites dos códigos literários e nos deslocando para a estética
concretista (este é um poema que pressupõe o concretismo), podemos notar que a
disposição gráfica dos signos no papel realiza visualmente o movimento de deitar: o
poema se horizontaliza. Mas não se trata de um ‘pouso suave’ e sim de um deitar
acidentado, correlato ao movimento dos corpos no ato sexual. Aqui também perpassa,
na carne do texto, a ondulação alegre e sinuosa (forma do conteúdo não significativa) do
desejo — ou dos corpos em desejo.

Este último passo implica em outro movimento que perpassa o poema, desta
vez sob o regime dos códigos sociais: o do desejo sexual na sociedade, que faz os
corpos se encontrarem, mas sempre sob determinadas leis e costumes sociais. Como já
dissemos, perpassa este poema uma atmosfera de alegria e liberdade sexual, típica da
contracultura dos anos 60 e 70, voltada para o riso e desprendida de complexos de culpa
ou noção de pecado.

Até o momento não ultrapassamos muito os limites da crítica tradicional, que


procura nos elementos intratextuais a ponte de ligação do texto aos seus vários
contextos: sociedade, biografia, mentalidades, ciências sociais. Isto talvez seja sempre
possível nos textos de Leminski, que são constituídos no seio da tradição literária, como
já dissemos, utilizando-se de todo seu instrumental na construção poética.
Permanecendo nestes limites, poderíamos dizer que Leminski, como Oswald, é um
poeta extremamente criativo e divertido. Mais que Oswald inclusive, ele domina muito
bem os signos, tanto em sua materialidade quanto em sua semântica, produzindo
engenhosos jogos de ciframento e deciframento, com algumas agudas alfinetadas na
sexualidade burguesa, tratando-a de maneira burlesca, à popular. Mas até aqui
encontramos um texto engenhoso que toca apenas a superficialidade do leitor, da

82
sociedade e da vida. Se continuarmos neste caminho, o máximo que podemos dizer é
que o humor presente (de forma patente) no poema coloca todos os seus conteúdos (e
falamos de sexualidade e, conseqüentemente, cultura burguesa, de tradição literária
modernista e concretista, da língua ‘normal’) em cheque. Conclusão próxima à que
Roberto Schwarz chega em sua intrigante análise de “Pobre alimária” de Oswald de
Andrade, poeta que para compensar a ausência de densidade “deu a tudo um certo ar de
piada. É neste, e levada em conta a situação complexa a que responde, que se encontra a
verdade da poesia pau-brasil, um dos momentos altos da literatura brasileira.” (Schwarz,
1987, p. 28).

Mas Schwarz ainda se prende a problemas de profundidade, perguntando


sempre se a estrutura (formal e conteudística, ele não é um crítico do conteúdo, embora
pareça não conseguir se distanciar do par forma-conteúdo ou maneira-matéria,
justamente por conta de suas preocupações com profundidade e totalidade) da obra
representa, mesmo que de maneira muito dialética, os impasses e contradições da
sociedade. Trata-se ainda de um jogo dos grandes conjuntos (obra e sociedade), embora
sua crítica rompa os limites desses conjuntos em muitos momentos. Um deles é quando
deixa indicado o problema do humor em Oswald, sem desenvolvê-lo mais.

Quando lemos “até ela” com outras pessoas (ou não) geralmente rimos muito.
De que se ri? Ou melhor, qual o regime deste riso, com o que ele se conecta?

Vamos propor uma outra categoria de movimento que chamaremos, de maneira


um tanto arbitrária, de movimento sob o regime do riso. Em primeiro lugar, ri-se
popularescamente dos códigos sociais que tratam da sexualidade burguesa, concebida
idealmente como encontros de dois seres, dois corpos e duas almas, dois sujeitos. A
concepção padrão que se têm da sexualidade não exclui o prazer carnal nem o ato
sexual que tenha apenas este fim, mas subordina-os hierarquicamente à sexualidade
fundada no amor, completude de almas. A tradição popular sempre riu muito desta
construção burguesa por meio de ditos, versos e piadas chulas. A tradição literária
também já operou várias críticas a esta espécie de metafísica burguesa, mas raramente
procedeu de maneira burlesca (algumas das exceções são o Macunaíma de Mário de
Andrade e o próprio Oswald), pelo menos até a marginália e a tropicália — mas será
que ainda podemos referir-nos a estes movimentos como literários? Os escritores (as
leituras que se fazem deles) sempre preferiram ancorar a crítica ao amor e sexualidade
burgueses em pressupostos mais densos, em causas mais profundas como a sociedade, a
psique, a natureza humana.

Mas o movimento alegre e descomprometido dos corpos, correlato ao


movimento sinuoso dos versos se deitando resulta, como já dissemos, num erotismo
alegre e desprendido, sem qualquer culpa ou má consciência, tão presentes na
moralidade burguesa, mesmo quando disfarçadas em cuidados meramente assépticos,

83
racionalmente explicados pela ciência. O riso, como já dissemos, é agilidade pura,
maleabilidade da vida contra os rigores dos mecanismos sistêmicos. A presença de
elementos chulos se escondendo e se insinuando espertamente (ao leitor é exigida
esperteza para se conectar – decifrar? – com estes elementos) na normalidade aparente
dos versos mostra a sexualidade sem culpa e desvinculada do grande Amor como uma
travessura contra a gravidade (seriedade, mas também peso, imobilidade) mecânica dos
códigos sociais, que procuram delimitá-la, pelo menos até o ponto de não se deixar
mencionar suas baixezas (num sentido tanto corporal quanto moral) em público. Sempre
rimos das travessuras que provocam pequenas(?) avarias nos sistemas enrijecidos.

Henri Bergson (1983, pp. 18-19) nos diz que estas pequenas avarias do humor
servem como correção de rota para os mecanismos sociais, punindo com o riso as
pessoas que deixam as regras se cristalizarem de tal forma que se tornam mecânicas
diante das exigências da vida em sociedade. Trata-se, portanto, de críticas corretivas (e
punitivas), essencialmente humanas, do enrijecimento dos códigos sociais: maquinaria
de adaptabilidade social, e não mais biológica como nos animais. É uma concepção de
humor pertinente ao poema de Leminski, pois a sexualidade e o amor a que se refere o
poema são exatamente os desejados pela Revolução Cultural, rapidamente absorvida e
recodificada pelo capitalismo. O poema de Leminski funcionaria então como uma
crítica à sexualidade burguesa tradicional, abrindo a possibilidade de uma outra postura
sexual. Mas o capitalismo somente descodifica as coisas para recodificá-las mais à
frente, impondo novos cerceamentos ao desejo: mecanismos científicos, psicológicos,
subjetivos, sociais: não se perverta, você adoecerá; é necessário um pouco de
tranqüilidade familiar para produzir bem, viver mais, regime monástico; só a falta
propicia o prazer. Neste sentido o poema de Leminski se abre à nova moral sexual
burguesa que poderia utilizar-se de seu texto no intuito de descodificar a moral
tradicional para recodificá-la depois. Mas também poderia se abrir a um uso que não
procura recodificar a sexualidade, já que permite uma leitura que não obstrui os fluxos
do desejo, deixando-os apenas fluir livre e alegremente: arriscamos dizer que o poema
suporta melhor esta última leitura que a primeira, constituindo-se numa máquina
suficientemente avariada para resistir à ressitematização de sua errância. O humor, aqui,
talvez possa levar a avaria corretiva ao ponto de se tornar uma errância que toma todo o
código sexual burguês (que sempre dependerá da má consciência — o Édipo freudiano,
ancorado no incesto, não deixa de ser um regime de desejo (auto)reprimido, uma culpa
com a qual o ego deve conviver asceticamente) como um mecanismo sem
maleabilidade. Nesta perspectiva, portanto, o erro a ser corrigido pelo humor não é
apenas um enrijecimento local de um certo ponto de vista mais conservador da
sociedade (de algum determinado grupo ou pessoa) sobre a sexualidade, mas toda a
visão burguesa do assunto.

Esta concepção de humor não é essencialmente diferente da de Bergson que


não o define negativamente como um erro em relação a alguma referência

84
transcendental (somente um ponto de vista metafísico excessivamente estático veria o
humor como erro, já que ele impele os sistemas à mudança), mas sim em seu sentido
positivo, como nós. Só que Bergson pára no uso corretivo do humor pelos sistemas
sociais, os quais utilizam-no de maneira exclusivamente repressora — trata-se de uma
repressão não física a uma certa inadequação às maleabilidades da vida e da sociedade.
Mas pode-se afirmar essa positividade para além da mobilidade relativa dos códigos
sociais, a ponto de, na perspectiva destes, o humor se tornar uma avaria e não mais uma
correção — ri-se de toda e qualquer recodificação, o humor torna-se errância, variância
intermitente que resiste a qualquer reabsorção sistêmica. Na perspectiva dessa linha de
fuga na qual se transforma o humor (e por onde vazam os sistemas), não haverá mais
negatividade, apenas intensidades a experimentar. Eis o limite (devir?) extremo ao qual
queremos levar o poema de Leminski, o da errância gratuita. O humor como movimento
que tende para o fora absoluto de qualquer sistema: riso-rizoma.

A metáfora flor-mulher é uma das figuras mais gastas da lírica ocidental. O


poeta que se disponha a trabalhar com ela deveria ser habilidoso e criativo o suficiente
para revitalizá-la. Pode-se argumentar que Leminski realiza bem esta árdua tarefa com o
recurso da materialidade visual, do anagrama e do erotismo bem humorado, deslocando-
a da aura de pureza do amor romântico para o contato físico dos corpos9, perspectiva
mais própria aos anos pós-revolução cultural. Indo um pouco além, o que é
despido/despetalado no poema, mais que a mulher, parece ser a própria metáfora: o
poema age, neste caso, como perversor que retira a pureza da figura imaculada, embora
gasta. Todo ato perversor tem a possibilidade de se tornar cômico, principalmente
quando a figura que sofre a perversão é ingenuamente velha: ri-se da metáfora flor-
mulher, seduzida, despetalada e reduzida à realidade mais corpórea (diríamos mesmo
mais chula) flor-vagina10. Ri-se, por irradiação, de toda tradição na qual se ampara a
literatura das profundidades, preocupada com a sondagem interior do sujeito e à qual se
liga esta metáfora. Os termos de baixo calão (tala, espetá-la) que se escondem, por
anagrama, sob palavras aparentemente inofensivas brincam agilmente com a
ingenuidade enrijecida da metáfora, fazendo-a dizer o que não deseja e despertando o
riso, como na comicidade de palavras de Bergson: “Captamos uma metáfora, uma frase
9
Embora a flor sempre tenha tido um caráter erótico em sua relação metafórica com a mulher, podemos
dizer que este erotismo sempre esteve investido da má consciência burguesa, encoberto pela beleza, pelo
perfume e até mesmo pela impossibilidade do contato sexual, já que a flor é exuberante por um curto
espaço de tempo e somente enquanto não tocada, não colhida: após a colheita ela morre rapidamente.
Sempre houve um jogo de céu e terra na metáfora flor-mulher, jogo que “até ela” abole, assumindo a
sexualidade sem nenhuma culpa.
10
É claro que esta sedução/quase estupro da metáfora (pelo poema ou pelo poeta) é um engodo, pois o
estupro se caracteriza por uma agressão não consentida. O poema apenas explora a sexualidade sempre
encoberta pela metáfora. Arriscamos dizer que este encobrimento constitui uma das razões de ser da
metáfora. Ao desnudá-la, portanto, o poema dissolve a identidade da velha figura e não a reformula em
outros termos. Mas esta destruição, por dissolução, é feita com os próprios termos da metáfora flor-
mulher que, como todo sistema, carrega sua própria entropia. Leminski desencadeia, com o humor, a
entropia da antiga figura. A entropia seria um convite, uma provocação (libidinal? inconsciente?) de todo
sistema aos pervertidos(?) para que estes liberem seus fluxos aprisionados.

85
um raciocínio, e os voltamos contra quem os faz ou poderia fazê-los, de maneira que
tenha dito o que não queira dizer e que venha a cair na própria armadilha da
linguagem.” (Bergson, 1983, p. 59). Ora, “quem poderia ter dito” e sempre diz esta
metáfora é o grande sujeito da tradição literária.

Os procedimentos metafóricos e anagramáticos provocam um riso (se voltam


contra), em última analise, da literatura, entendida de maneira tradicional, da qual
Leminski não queria fazer parte: riso como fuga ágil do campo literário e que não
recorre a qualquer outra profundidade/unidade, mas faz dispersar (mais que romper) a
tradição (na sua perspectiva temática e formal) saltando para fora da problemática da
totalidade ou da densidade do texto poético e sua relação representativa com o contexto:
apenas podemos apreciar bem o poema percorrendo suas linhas de fuga, erotismo,
humor, alegria: máquina avariada não recodificável pelo sistema literário. As relações
de todas estas linhas, que configuram o texto, com a tradição e a sociedade existem e
não são fúteis, como já vimos, mas são mais de produção e conexão que de
representação. As linhas não constituem outro sistema (derivado ou não) em relação
macro-estrutural (mesmo que dialética) com os sistemas contextuais ou literários. Elas
operam um movimento de fuga nos sistemas e é assim que estes são arrastados (e
deturpados) nelas.

A mobilidade e o dinamismo energético são vitais para quaisquer sistemas e


vimos como o humor é fundamental para manter os elementos da sociedade (grupos e
pessoas) ágeis e maleáveis o suficiente para se adaptarem aos movimentos/processos
sistêmicos. Mas isto pressupõe a primazia do sistema sobre o processo, da estática sobre
o movimento, da unidade sobre a multiplicidade. É claro que a mobilidade de um
sistema incorre sempre em riscos, pois um processo que seria apenas corretivo pode
desencadear uma proliferação incontrolada11. Isto porque os processos lidam com a
entropia de um sistema, sua tendência à dissolução: todo sistema se (des)equilibra entre
a conservação e a dissolução. O humor, portanto, sempre terá algo de entrópico e
energético (a energia está sempre pronta para se dissolver/transmutar) que os sistemas
sociais (mais especificamente o capitalismo) tentarão utilizar para manter-se numa
espécie equilíbrio tenso. O humor na poesia de Leminski parece tentar escapar aos
controles sistêmicos, procurando potencializar e realizar suas tendências entrópicas,
causando a dissolução dos sistemas. É neste sentido que ele pode se tornar uma avaria
permanente para o sistema social e não mais um saudável corretivo de seus
enrijecimentos localizados, que direcionaria as linhas entrópicas do humor para a
ressistematização. Por outro lado, da perspectiva desse humor/linha de fuga, todo o
sistema social (e suas codificações cerceadoras) seria um grande mecanismo enrijecido
a ser corrigido. Correção que não implica em novos cerceamentos e limites, mas numa

11
E esta proliferação pode ser saudável e libertadora (linhas de fuga absolutas, anarquistas) ou
cancerígena e despótica (linhas de fuga recodificadoras, fascistas).

86
espécie de fuga absoluta (entropia) dos sistemas e das ressitematizações com
aspirações a permanência. Correção-errância, movimento puro de intensidades, moral
nômade à qual o humor ‘serviria’ — na verdade, construiria.

Mas não só o humor funciona como linha de entropia, mas também, como
vimos, o amor, a dor, a des-subjetivação, a a-significação e mesmo a tradição, encarada
como rede processual (caverna-cultura e textos-morcego) e não como edifício-presença.
Isto porque os textos de Leminski se colocam (suportam serem colocados), antes de
mais nada, sob a perspectiva do processo e da maquinaria, ao invés do sistema e da
estrutura. As invariâncias, quando surgem, emergem da variação e estão sempre sob
(auto)questionamento. Podemos dizer que os seus textos são constituídos pelo desejo da
multiplicidade entrópica (desejo de fazer rizoma). Esta multiplicidade gera e utiliza
estabilidades provisórias, ao contrário dos textos da Literatura, nos quais se deseja a
estabilidade que utiliza a entropia para variar e, no entanto (ou por isso mesmo),
permanecer, mesmo que múltipla, multiplicada (desejo de árvore, binarismo, hierarquia,
totalidade).

Por último, ri-se, no poema, da estática concretista. Os que são familiares ao


concretismo dos anos 50 e 60 notam imediatamente a ligação de “até ela” com os
poemas concretos: utilização do espaço da página, exploração da visualidade dos
signos, desarticulação do verso, exploração do anagrama e do jogo de palavras, releitura
revolucionária da tradição, concisão, em suma, como costumam dizer os concretistas,
trata-se de um objeto estético verbivocovisual em sua plenitude. Mas nesta dissolução
concretista da metáfora flor-mulher, algo do bom humor se volta para a seriedade
(gravidade) concreta, sempre tão sisuda em suas rupturas. As letras que se desprendem
dos versos (pétalas-roupas arrancadas da flor-mulher?) não remetem somente ao
defloramento da metáfora e de toda subjetividade, burguesa e idealista, implicada nela.
O poema não ri apenas da poesia de expressão. As letras-pétalas parecem se
desgarrarem (visualmente) do compromisso com a estruturalidade do poema. O riso da
metáfora se reverte em riso da estrutura e dos procedimentos (leis) estruturais que
(in)formam um bom poema concretista. O anarquismo libidinal de “até ela” não convém
à organicidade simétrica do poema concreto que, à sua maneira, tenta aprisionar as
linhas (de significação, subjetivação etc.) que o perpassam num sistema estabilizado —
ou será que isto é mais uma afirmação teórica em favor da radicalidade do objeto
poético (uma tática vanguardista de luta?) que uma realidade da prática poética dos
concretistas? Em todo caso, o riso desencadeia um movimento de fuga para fora (se não
da prática poética, pelo menos) da estética concretista, fazendo-a vazar — ela, que já é
um vazamento no sistema literário.

Saindo de “até ela” e partindo para outros poemas de Leminski, notamos que
eles têm, não raro, um andamento cômico que nos induz ao riso. Mais que irônico, o seu
tom é humorístico: “Ora se enunciará o que deveria ser, fingindo-se acreditar ser

87
precisamente o que é. Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada
vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam
ser.” (Bergson, 1983, p. 68). Mais à frente, Bergson compara o humorista ao cientista,
por causa de seu amor à exatidão, tornando-se menos sutil e retórico (menos literato?)
que o homem irônico:

Acentua-se o humor (...) descendo-se cada vez mais baixo no interior do mal que é,
para lhe notar as particularidades com a mais fria indiferença. Vários autores, entre os
quais Jean Paul, observaram que o humor gosta dos termos concretos, dos pormenores
técnicos, dos fatos rigorosos. Se nossa análise estiver certa não se trata de um feitio
casual do humor, mais nisso consiste a sua própria essência. O humorista é no caso um
moralista disfarçado em cientista, algo como um anatomista que só faça dissecação
para nos desagradar; e o humor, no sentido restrito que damos à palavra, é de fato uma
transposição do moral em científico. (Bergson, 1983, p 68).

Parece que Bergson estava antecipando a leitura de um poema como este:

MERDA E OURO

Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam padres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da pessoa amada.
(Leminski, 1987a, p. 30)

no qual, apesar da advertência inicial do perigo (prática e poeticamente falando) de se


mexer com excrementos, uma particularidade (digamos autoral) da matéria é fria e
detidamente examinada, chegando-se à beleza da merda, em primeiro lugar por sua
capacidade de a todos igualar e, em segundo lugar, pela sua capacidade de acentuar a
diferença (positiva) da pessoa amada que, por um ‘descuido’ de linguagem se identifica
com os excrementos: “a bosta da pessoa amada” pode significar “a pessoa amada é uma
bosta”. Nossa leitura parece também cômica e um tanto chocante, mas isto talvez
ocorra porque decidimos continuar fria e meticulosamente a linha de análise do poema.

O riso, aqui, decorre da inadequação entre forma e fundo normalmente aceita


socialmente: não se diz coisas chulas de forma erudita. É um velho recurso que a poesia
satírica utiliza, muito mais no intuito prático e moral de interferência imediata na
sociedade que com fins ‘artísticos’. Mas de que se ri no caso de “Merda e ouro”? Se
acreditássemos em eu lírico diríamos que este se mascara de um idiota que tem o
perfeito domínio da técnica poética, mas que é absolutamente incapaz de dizer qualquer
88
coisa profunda. Rimos então da mecanicidade da linguagem poética nas mãos de um eu
lírico incapaz de profundidade12. Talvez seja por isto que Tolentino chama Leminski de
“poeta piada” (Cf. p. 66 deste texto), já que, na maior parte das vezes só consegue
engendrar um eu lírico superficial. A moralidade (moral da história crítica?) expressa
por Leminski seria então: não sejam poetas como eu, que só consegue mostrar como
não se faz poesia-arte (densa, profunda), chegando apenas ao nível da lírica satírica
(rala, superficial). Mas talvez Lemisnki, ou melhor, o seu poema, queira realmente
afirmar que não sabe como se faz poesia (se a entendemos como expressão de
profundidades), mas provocando: sejam como eu (como meus textos) que não sei fazer
poemas. Não há, em Leminski, uma poesia séria (expressiva ou estrutural) para se
contrapor à sua suposta lírica satírica. Mesmo nos poemas sem humor dificilmente
encontraremos esta espécie de seriedade ou responsabilidade.

A sua poesia bem humorada não deve ser encarada como um apêndice
circunstancial e descartável de seu projeto estético, mas como uma das linhas
constitutivas de sua poesia ético-estética, que não intenta se separar das vivências
mundanas. Bergson já observara o quanto o cômico se move rente à superfície da vida,
em oposição à dramaticidade da emoção:

Poderíamos dizer que uma emoção é dramática, comunicativa, quando todos os


harmônicos soam com a nota fundamental. Pelo fato de que o ator vibra
completamente, é que o público poderá por sua vez também vibrar. Pelo contrário, na
emoção que nos deixa indiferentes e que se tornará cômica, há certa rigidez que a
impede de entrar em relação com o resto da alma onde ela se instala. Essa rigidez
poderá manifestar-se, em dado momento, por movimentos de fantoche e então
provocar o riso, mas já antes contrariava nossa simpatia. (Bergson, 1983, p. 750).

Assim, ao optar pelo humor, Leminski assume o risco de estar sempre próximo à vida (e
longe da alma), lidando com suas circunstancialidades, ou melhor, tornando tudo o que
normalmente se considera dramático (permanente, profundo e maleável) risível
(passageiro, superficial, rígido). O vantajoso da abordagem que Bergson faz do cômico
é sua relatividade, já que define algo como dramático ou cômico menos por uma
suposta essência ideal sua que pela maneira como é tratada por um ator, isto é, pela
maneira como este dota esse algo de certa mecanicidade (no caso do cômico) que
resistirá à sociabilidade, provocando o riso censor e corretivo. Ora, se há uma moral
nos textos poéticos de Leminski, trata-se, evidentemente de uma moral nômade e

12
Há outras leituras (mais sérias?) possíveis de se acrescentar ao poema, como a que aproximaria o fluxo
de fezes ao libidinal e ao de capital, relações muito exploradas pela psicanálise e aludidas no poema, no
qual notamos a presença de categorias sociais e do amor (libido), sem mencionar o título que liga
explicitamente os fluxos de dinheiro e fezes. Outra possibilidade a explorar seria a estética underground
deste poema deliberadamente desbocado e despudorado e que o vincularia à poesia marginal de 70.

89
anarquista, em oposição a qualquer sedentarismo ou aparelho de estado — que
procede sempre por consolidação de domínios.

O humor é um procedimento textual adotado por Leminski e que funciona bem


com esta moralidade do movimento, já que ele se volta potencialmente contra toda
rigidez. O que pode ser dramático e, portanto, maleável e conforme, numa perspectiva
social, pode ser cômico (denúncia de rigidez e mecanicidade) noutra: o riso da estética
(e da mentalidade) parnasiana, denunciando-lhe o desajeitamento e a inadaptabilidade
em relação à novo sociedade que se configurava no país, é uma das principais frentes de
combate do nosso modernismo (vanguardista?) de 20. O que talvez seja incômodo nos
poemas de Leminski é que eles não tentam repor uma outra maleabilidade relativa
ancorada nalguma profundidade sistêmica (limite da maleabilidade) à qual se deveria
conformar os fluxos agora libertos da mecanicidade que se quis corrigir/punir. Estes
fluxos, pelo contrário, se encontram libertos de toda gravidade (“estrela à solta”),
prontos para fluir e confluir uns com os outros, mas sempre resistentes a refluir para
algum sistema centrado (“abismo onde me encontro”), mesmo que muito maleável. São
fluxos de maleabilidade absoluta.

O riso na poesia de Leminski se volta, então, ao poema concebido como


expressividade ou estruturalidade, como expressão da subjetividade ou como estrutura
significante. Seus textos poéticos não são dotados de um eu lírico travestido de idiota
mecanizado para denunciar e corrigir as rigidezes (idiotices) sistêmicas, mas a própria
idéia de eu lírico, superficial ou profundo, parece-lhes uma idiotice, assim também
como a seriedade estrutural (de certa forma foi isso que procuramos ler em “até ela”). E,
por mais que a sociedade burguesa se autocritique e ria de si mesma, seria interessante
nos perguntarmos se ela suportaria a dessubjetivação e a a-significância quase absolutas
às quais o riso de Leminski parece querer fazê-la atingir, fazendo-a fugir. Isto ocorre
porque os seus poemas (mesmo quando as linhas da poesia se misturam às da dor)
parecem ser atos de alegria, comprometidos mais com a disseminação do desejo na
superfície da vida (do texto, da multiplicidade) do que com a busca/descoberta
responsável das verdades ‘sérias’ e profundas. Poesia de produção e expansão e não de
representação e aprofundamento. Qualquer profundidade que se insinua (qualquer
presença, centralidade, verdade) parece ser atingida pelo riso que funciona (estamos de
acordo com Bergson) como corretivo moral nos seus poemas. Mas a correção de rumos,
aqui, quer se precipitar numa fuga alucinada de qualquer ressocialização sedentária,
criando uma moralidade nômade que ri dos sistemas fechados e centrados e de sua
tentativa de fazer cessar a fuga. Vejamos o poema a seguir:

90
DIVERSONAGENS SUSPEITAS

Meu verso, temo, vem do berço.


Não versejo porque eu quero,
Versejo quando converso
e converso por conversar.
Pra que sirvo se não pra isto,
pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super superfície
onde o verbo vem ser mais?

Não sirvo pra observar.


Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.

Onde estará meu verso?


Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
Por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.
(Leminski, 1987a, p. 83).

Não há um querer consciente que guiaria o versejar (“Não versejo porque eu quero”),
mas também não há uma vontade transcendental que guiaria a consciência (“versejo
quando converso/e converso por conversar.”) Depois o poema tenta (contrariando a falta
de objetivo do versejar, expressa nos primeiros quatro versos) encontrar teimosamente
um motivo para a prática poética. O que acha, no entanto, é somente a dispersão, a
contrariedade e a superficialidade:

Pra que sirvo se não pra isto,


pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super superfície
onde o verbo vem ser mais?

Em toda esta maquinaria pensante perpassa o humor na forma de meticulosidade


científica que procura obsessivamente pensar/pegar um motivo para a poesia e só
encontra a multiplicidade, nem causal nem finalista. A poesia pensante de Leminski
dispara um riso contra a razão e a metafísica ocidentais, fazendo-as perder o tino e
provocando em nós o riso de sua loucura, como perversamente rimos dos loucos de rua.

91
Entre tantos jogos de palavras, há o que brinca com o verbo ser que também remete ao
Ser metafísico. O suposto eu lírico/ser de linguagem vem acompanhado dos atributos
“vinte”, “versa” e “super superfície”, que solapam, respectivamente, sua unidade,
identidade e profundidade. Estes jogos sucessivos de palavras-idéias, somados ao
sempre alegre maquinismo fonético, parecem fazer a razão perder as estribeiras,
dissolvendo-se na multiplicidade a-significativa. Nesta perda de si, a razão13 arrasta o
jogo de subjetividade e objetividade que a define:

Não sirvo pra observar.


Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.

No lugar do sujeito que observa, o que se conserva e persevera é, contraditoriamente, a


eletricidade do susto (intensidade instantânea) do sujeito se perdendo sem sair do lugar
ou, se contrapormos o verbo estar ao ser, se perdendo no seu estado que designa, aqui,
apenas um ponto de subjetivação provisório ante a permanência e a verdade do ser.
Depois o poema/pensamento pergunta “onde estará meu verso?”, numa tentativa de
mapear-lhe a fuga, caindo novamente no bem humorado jogo de palavras que
enlouquece a razão mais uma vez, pondo em cheque sua tentativa de ressistematizar a
fuga:

Onde estará meu verso?


Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.

É claro que, além do humor (ao seu lado e com ele), o poema alude à impossibilidade de
se localizar com certeza o verso (seus objetivos ou causas) que parece buscar
unicamente a mobilidade e o desfocamento (o avesso do inverso). Se há algum motivo
para a prática poética, ele se aproxima da efetivação provisória (confluência de fluxos)
da fuga, experimentação de estados intensivos: “susto de quem se perde / no exato lugar
onde está”.

Por fim, o poeta/poema pede, de forma ainda mais bem humorada (em uma,
entre tantas, paródia da Canção do Exílio), que nunca perca o jeito de perversor de
prosas (as quais remetem ao pensamento racional):

13
É claro que se trata de uma razão iluminista (burguesa). Está fora de questão a existência de uma Razão
acima de qualquer regime social. Este é um resultado de nossa leitura do poema de Leminski: o caráter de
coisa produzida da razão ocidental.

92
Por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.

Nunca deixar de perverter as prosas explicativas (a significação, a racionalização), fazer


vazar os sistemas (rir deles), inclusive as ressitematizações que podem surgir nas fugas,
eis o que parece querer a proliferação errante e alegre das linhas de poesia de Leminski.

***

É interessante notar que a medida e o ritmo dos poemas de Leminski se


aproximam muito da simplicidade sonora dos versos populares. Sua poesia tende ao à
redondilha maior e à alternância entre o ritmo binário e ternário. Esta simplicidade
provoca uma sensação (forma do conteúdo não lingüística) de descompromisso e
alegria, além de uma impressão de rudeza mecânica, própria dos “batatinha quando
nasce” populares. É claro que nas entrelinhas (literalmente) deste mecanismo flagramos
uma máquina poética extremamente complicada e avariada que estabelece ligações
(produtivas) complexas com a cultura (entendida em sentido amplo). Mas esta
mecanicidade fonética não seria um riso disparado contra a grande literatura
versificatória (oratória?) e sua ostentação malabarística de uma enormidade de ritmos e
medidas (mesmo o verso livre) variadas, seu paciente trabalho técnico de adaptação da
forma sonora à matéria tratada (significante e significado), enfim seu longo, meticuloso
e sério esforço de construção de uma tradição da música da palavra? Não que Leminski
não se utilize ou não goste dessa música, mas talvez seus poemas riam um pouco do
excesso de harmonia e da suavidade melódica desse prédio-sinfonia que se construiu e,
continuando a dissolução iniciada pelos modernistas, coloque um pouco mais de ritmo e
dissonância, mais percussão e violão, na tradição da palavra poética. Assim, toda a
tradição sonora da poesia ocidental em geral, e de língua portuguesa em particular, é
explorada e utilizada em sua complexidade máxima (como tivemos a oportunidade de
verificar em várias leituras) nos seus poemas, mas de modo a se configurar num ritmo
mecânico e popularesco (de mingau?) quando consideramos macroestruturalmente a
sonoridade do poema. Já as estruturas mínimas, os ritmos das máquinas desejantes por
entre a totalidade sonora do poema... Aí, já é outra história.

93
MÁQUINAS LÍQUIDAS
(capitalismo e poesia)

Antes de atirar minha TV pela janela


Eu ouvi o que ela dizia
“Quando não houver mais ninguém
Será um belo dia”
Estranha coisa pra se dizer
Antes de vender mais mercadoria
Mas é assim o mundo que nos cerca:
Nos cerca muito bem
(Gessinger, 1991b).

Todos os poetas têm que se haver com a coletividade que, mais que os define,
os cerca. Esta relação com a sociedade não se dá antes ou depois do texto, mas no
momento de sua produção e de sua leitura (re-produção). É uma relação, portanto, que
não se situa fora do texto, mas nele próprio. No entanto, mais importante que estas
categorias espaciais e temporais (dentro e fora, antes e depois) é a funcionalidade do
texto. Quanto a ela, podemos afirmar que o texto poético opera diretamente nos códigos
da cultura, estando ligado, portanto, de forma direta ao regime de produção da
sociedade na qual é produzido e re-produzido (lido). Mas que regime de produção seria
este no qual o poema opera diretamente? Estamos falando da produção simbólica (nível
da ideologia) ou da produção material (nível da economia) de uma sociedade? Ou
devemos nos situar primeiramente no plano das idéias e mentalidades, fazendo
(posteriormente ou simultaneamente) a ponte dialética com a base material que define
‘realmente’ um regime de produção e, conseqüentemente, uma sociedade?

Estes problemas sempre foram um empecilho à crítica marxista em particular e


à sociológica, em sentido mais amplo, pois o texto poético, segundo suas categorias,
opera evidentemente no plano ideológico que, do ponto de vista do marxismo (mesmo o
mais heterodoxo), mantém uma relação de dependência com o plano material, de
produção de bens. Perpassa a crítica sociológica um indisfarçável mal estar por ter que
situar seu objeto de análise (e sua profissão) em segundo plano no sistema social. Os
textos são sempre operações derivadas da base material e a leitura crítica deve, de uma
maneira ou de outra, descortinar as relações entre texto e sociedade, produção simbólica
e material, muitas vezes ocultadas pelo autor.

Para o deleite da crítica dita formalista ou imanentista, os críticos da sociologia


da literatura1 raramente conseguem sair desse impasse, o que lhes rendem,

1
Usamos este termo de forma abrangente, de modo a abarcar toda a crítica que dá, de uma maneira ou de
outra, uma importância muito grande à relação da obra com a sociedade.

94
freqüentemente, o atributo de conteudistas. Obviamente este atributo diz, de forma
indireta, que os críticos-sociólogos não entendem, de fato, de literatura, objeto cujos
meandros e particularidades só poderiam ser realmente explorados por uma perspectiva
imanentista. Mas os formalistas também têm, em algum momento, que se haver com a
sociedade (ou, pelo menos, com o sujeito, outra totalidade extrínseca ao texto), pois, a
não ser que se conceba a obra como um objeto transcendental, é dela que o texto faz
parte. Como os críticos formalistas e os textos operam no plano simbólico, há, muitas
vezes, uma simpatia destes críticos por concepções de sociedade que dão primazia a este
plano. Neste aspecto, o estruturalismo é bem afortunado, pois se trata de uma
teoria/método que se aplica tanto à literatura quanto a antropologia, ciência social que
tradicionalmente se opõe ao marxismo por privilegiar o simbólico.

É claro que as coisas não são tão simples assim e, não raro, os críticos
conseguem ultrapassar, no seu exercício de leitura (e até de teorização), os limites
teóricos que os cercam (não devemos nos esquecer que a crítica é uma ficção) atingindo
um estado de verdadeira produção textual, cuja relação com o texto lido é muito menos
apreensiva e representativa que experimental e produtiva. E isto em críticos de
orientações e ‘estilos’ os mais variados, como Jakobson, Octavio Paz e Roberto
Schwarz, por exemplo.

Em todo caso, a dicotomia material/simbólico, base/ideologia (corpo/alma?) é


uma presença efetiva que sempre se encontra ‘por trás’ ou na base do exercício crítico
(talvez de todo pensamento ocidental), cerceando-o. Nossa pretensão é saltar para fora
(mais uma fuga?) desta dualidade, o que não é fácil, mas que talvez seja necessário
tentar, mesmo que tenhamos que construir outras dualidades. Para isto vamos recorrer a
uma obra que também tentou realizar este salto e, cremos, obteve relativo sucesso.
Trata-se d’O Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que nos interassa
particularmente nesta obra é sua concepção de regimes de produção. Assim, os autores
definem três máquinas abstratas (modos de funcionamento) que maquinam três regimes
de produção ou sociedades: o primitivo, o bárbaro (ou despótico) e o civilizado. Estas
máquinas se sucedem umas às outras (a civilizada se assenta sobre as duas máquinas
anteriores), mas esta ordem não implica em nenhum tipo superioridade ou
evolucionismo. Todas elas funcionam por produção e inscrição sobre um corpo pleno.
A inscrição, grosso modo, se identifica com um regime de recorte de fluxos ou, mais
claramente, implica na ordenação, na codificação do mundo e da vida — ordenação que
os antropólogos chamariam de cultura. Ela é também uma produção: a máquina
primitiva produz essencialmente inscrições no corpo pleno da terra (sem metáforas). O
corpo pleno seria o referencial máximo de uma máquina, seu limite de operação que,
ultrapassado, mudará todo o regime de produção, ou seja, irá transformá-la em outra
máquina. Esta ultrapassagem, no caso do socius primitivo, é feita por descodificação
dos fluxos codificados pela máquina primitiva, desfazendo as territorialidades (limites,
regiões codificadas) construídas por ela.

95
Esta passagem é operada concretamente pelo desfazimento das alianças
localizadas de parentesco das sociedades primitivas (que definem uma variedade de
grupos, tribos, e clãs, muito móveis e indefinidos) e o estabelecimento de uma nova
aliança de todo o socius com um único déspota:

Pode-se resumir do seguinte modo a instauração da máquina despótica ou do socius


bárbaro: nova aliança e filiação direta. O déspota recusa as alianças laterais e as
filiações extensas da antiga comunidade. Impõe uma nova aliança e coloca-se em
filiação direta com o deus: o povo deve segui-lo. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 199).

Esta mudança do socius, operada pela instauração da máquina despótica, muda também
a superfície de inscrição, que deixa de ser o corpo pleno da terra:

O corpo pleno como socius deixou de ser a terra, é agora o corpo do déspota, o
próprio déspota ou seu deus. As prescrições e os interditos que quase o impossibilitam
de agir, fazem dele um corpo sem órgãos. Ele é a única quase-causa, a origem e o
estuário do movimento aparente. Em vez de destacamentos móveis da cadeia
significante, há um objeto destacado que saltou para fora da cadeia; em vez de
extrações de fluxos, há convergência de todos os fluxos para um grande rio que
constitui o consumo do soberano: radical mudança de regime no fetiche ou no
símbolo. E o que conta não é a pessoa do soberano, nem sequer a sua função que pode
ser limitada. A máquina social é que se modificou profundamente: em vez da máquina
territorial há a “mega-máquina” de Estado, pirâmide funcional em cujo cume está o
déspota, motor imóvel, o aparelho burocrático na superfície lateral como órgãos de
transmissão, e os camponeses na base, como peças trabalhadoras. [grifos nossos]
(Desleuze e Guattari, 1995a, p. 201).

Verificamos aqui, além da fundação do Estado, o aparecimento da metafísica, que


implica no conhecimento (e na conexão com) do corpo pleno do déspota, ou seu deus
— o monoteísmo só tem sentido na sociedade bárbara. Aqui se situa também o
aparecimento da escrita, com todas as suas características de centralização e controles
burocráticos, mas também como representação (ela é o grande significante) da voz de
deus ou do déspota. Há toda uma vontade das origens e da presença na palavra escrita:
os poetas sabem (e muitas vezes sofrem) disso muito bem. Somente na máquina
despótica pode ser concebido o sujeito, mas ainda se trata de um proto-sujeito, uma
entidade coletiva, unificada sob a tutela do déspota, para o qual correm todos os fluxos.
Temos aqui o sujeito da tradição, de um povo, mas ainda não apareceu o indivíduo,
sujeito burguês rostificado (invenção renascentista sobre o ser judaico-cristão).

Esta perspectiva de Deleuze e Guattari tem a vantagem de não separar o


material do simbólico, pois as máquinas são tanto manuseáveis (mão-ferramentas)
quanto codificadoras e codificáveis (máquinas de linguagens). A máquina abstrata opera

96
nos dois planos, material (forma do conteúdo) e simbólico (forma da expressão), sem
primazia de nenhum. Ela apenas supõe estes planos como não essenciais (não há uma
realidade essencialmente material e outra essencialmente simbólica, as diferenças são
funcionais, circunstanciais) e em relação de pressuposição recíproca (um plano
pressupõe, necessariamente, o outro). As mudanças de código e de produção de bens se
pressupõem mutuamente, assim como as mentalidades (ideologia?) e as relações de
trabalho. Embora genérica, a noção de máquina abstrata despótica nada tem de idealista,
uma vez que ela se constitui como uma espécie de desejo de centro (desejo de
idealismo?) e hierarquia que se instala (normalmente de fora, por conquista) no seio
socius primitivo, descodificando-o. Ela é ideal e metafísica na cabeça do déspota e de
seus súditos, mas se constitui de princípios abstratos e, no entanto, bem definidos de
funcionamento, que vão ser a base de todo Estado:

Ur, ponto de partida de Abraão ou da nova aliança. O Estado não se formou


progressivamente, mas já surgiu todo armado, num golpe de mestre, Urstaat original,
modelo eterno de tudo o que o Estado quer ser e deseja. A produção dita asiática, com
o Estado que a exprime e que constitui o seu movimento objetivo, não é uma formação
distinta; é a formação de base que está no horizonte de toda a história. Hoje em dia,
descobrem-se formas imperiais que precederam as formas históricas tradicionais, e
que se caracterizam pela propriedade de Estado, a posse comunal ladrilhada e a
dependência coletiva. [grifo dos autores] (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 225).

O sonho nostálgico do Paraíso que se costuma ler em muita poesia, do


renascimento para cá, menos que remeter à sociedade primitiva que o Ocidente
desconheceu em seu funcionamento até o começo do século XX, talvez remeta ao
Urstaat perfeito e ideal de que nos fala Deleuze e Guattari, e no qual se pode pensar a
idéia do uno (Natureza?) que se desdobra em dois: a Sociedade/déspota como duplo do
mundo e o texto poético como representação desta relação dual, voz de deus. Menos que
a codificação proliferante primitiva de inscrição no corpo pleno da terra, a poesia como
analogia do mundo parece implicar na sobrecodificação despótica, busca da unidade
ideal, pela voz, no corpo pleno do déspota. Déspota que talvez seja uma recorrência no
Eu romântico ou no Mistério simbolista. Máquina despótica que talvez ressurja na
nostalgia parnasiana pela Antiguidade. Esta saudade metafísica foi percebida, com a
agudeza de sempre, por Octavio Paz (1993, p. 62), que observa que a poesia moderna
oscila entre uma saudade religiosa das origens, da inocência e da igualdade (no Urstaat
não há classes em luta, apenas hierarquias pacíficas) por um lado, e a força
revolucionária, descodificadora, por outro.

Mas ao nos referirmos a forças revolucionárias, já nos encontramos no regime


de produção capitalista, que vive de revoluções e rupturas constantes, mas que no
mesmo movimento de liberação dos fluxos os recodifica novamente. As possibilidades
do capitalismo existem em qualquer regime despótico baseado no Urstaat, que jamais
consegue uma confluência concentricamente ideal de todos os fluxos. Sempre há fluxos
97
descodificados percorrendo um império, ameaçando o soberano e que já fazem parte de
outro movimento de desterritorialização, desta vez contra o corpo pleno do déspota:

O primeiro grande movimento de desterritorialização aparecia com a


sobrecodificação do Estado despótico. Mas não é nada ao pé desse outro grande
movimento, o que se vai fazer por descodificação dos fluxos. Todavia, não basta que
haja fluxos descodificados para que o novo corte atravesse e transforme o socius, isto
é, para que o capitalismo nasça. Os fluxos descodificados tornam o Estado despótico
latente, submergem o tirano, mas fazem-no voltar com formas inesperadas —
democratizam-no, oligarquizam-no, segmentarizam-no, monarquizam-no, mas
interiorizando-o e espiritualizando-o sempre com o Urstaat latente — cuja perda todos
lamentam — no horizonte. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 231).

Esta resistência à descodificação geral dos fluxos (de mercadorias, de dinheiro, de


códigos, de idéias [de desejo?]) que persegue as sociedades tradicionais é marcada por
uma certa saudade da tradição mítica e pelo desejo de fixidez, contrapostos à constante
avaria sistêmica, própria do regime de produção capitalista, o qual vive de sua crises e
rupturas internas: a razão, a crítica e a ciência, são palavras que nos dão bem a idéia do
estado de permanente descodificação em que se encontra o capitalismo.

A passagem do Estado despótico para o capitalismo irá mudar, mais uma vez, a
superfície de inscrição do socius, que deixa de ser o corpo pleno do déspota e se torna o
corpo pleno do capital, o qual passa, por sua vez, não a sobrecodificar, mas a
descodificar todos os fluxos. O problema é que, desta vez, o corpo pleno não é uma
presença (o soberano ou deus), mas um fluxo e, como tal, menos que inscrever e
ordenar estruturalmente, o capital apenas produz e se reproduz. Ele é um descodificador
universal e abstrato, completamente descomprometido com as metafísicas das
sociedades tradicionais e atua menos por centralização dos fluxos que por controles
modulados. As constantes crises e rupturas (avarias) da máquina capitalista são, como
bem sabem os marxistas, não apenas uma conseqüência do seu regime de produção, mas
uma necessidade determinante sua. Ela só funciona desfuncionalizando
(descodificando) os fluxos sem parar:

A civilização [a sociedade capitalista] define-se pela descodificação e pela


desterritorialização dos fluxos na produção capitalista. Todos os processos são bons
para fazer esta descodificação universal: a privatização, não só de bens, dos meios de
produção, mas também dos órgãos do próprio “homem privado”; a abstração não só
das quantidades monetárias, mas também da quantidade de trabalho; (...) a forma
científica e técnica que os próprios fluxos de código tomam; a formação de
configurações flutuantes a partir de linhas e de pontos sem identidade discernível.
(Deleuze e Guattari, 1995a, p. 255).

98
No capitalismo, na verdade, não há mais códigos, mas uma axiomática de códigos que
se expande constantemente. Os códigos do regime de produção despótico fecham um
sistema, impondo um limite de descodificação que, se ultrapassado, faz o sistema perder
sua identidade, mas no capitalismo os limites são constantemente ampliados, as rupturas
não têm fim e sempre se encontra outras axiomáticas de códigos para substituir as
antigas e empurrar os limites do capital um pouco mais para fora, internalizando as
antigas margens no seu regime. O capitalismo esquizofreniza o tempo todo os fluxos,
deixa que eles se esquizofrenizem alucinadamente, mas somente para axiomatizá-los
(recodificá-los) depois. A esquizofrenia (descodificação geral dos fluxos/anarquismo
libidinal) talvez seja a única opção realmente revolucionária no interior do capitalismo
(no qual todos nos encontramos). Mas ele já não esquizofreniza o suficiente? Se
pensarmos em velocidade, é mais que suficiente, mas o que importa é como o faz:

(...) o capitalismo é de fato o limite de todas as sociedades, porque faz a


descodificação dos fluxos que as outras formações sociais codificavam e
sobrecodificavam. No entanto, ele é o seu limite ou corte relativos, porque substitui os
códigos por uma axiomática extremamente rigorosa que mantém a energia dos fluxos
num estado ligado sobre o corpo do capital como socius desterritorializado, mas que é
ainda mais implacável que qualquer outro socius. A esquizofrenia, pelo contrário, é o
limite absoluto que faz passar os fluxos livremente sobre o corpo sem órgãos
dessocializado. Podemos assim dizer que a esquizofrenia é o limite exterior do próprio
capitalismo, o termo da sua tendência mais profunda, mas que o capitalismo só
funciona se a inibir, ou se repelir e deslocar esse limite substituindo-o pelos seus
próprios limites relativos imanentes que reproduz numa escala cada vez maior. O que
ele descodifica com uma mão, axiomatiza com a outra. [grifos dos autores] (Deleuze e
Guattari, 1995a, p. 256).

Já nos referimos ao jogo que um sistema necessita fazer o tempo todo com sua entropia
para se manter em equilíbrio. Pode-se dizer que a esquizofrenia seria a entropia da qual
o capitalismo depende e que também é o seu temor: a ciência e as artes capitalistas, por
exemplo, esquizofrenizam sem parar e a sociedade burguesa deve sempre inventar
novas axiomáticas para reabsorver estas descodificações que são necessárias, mas
perigosamente revolucionárias: “porque é que ela vigia com tanto cuidado os seus
artistas e até os seus sábios, como se eles pudessem fazer correr fluxos perigosos, cheios
de potencialidades revolucionárias, enquanto não são recuperados ou absorvidos pelas
leis do mercado?” (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 256).

A axiomatização dos fluxos (ou sua recodificação de mutabilidade estatística)


implica sempre numa desterritorialização seguida de uma nova territorialização. Ora, o
estabelecimento de territórios é uma tarefa do Estado. E efetivamente, o Estado
capitalista tem a função de controlar o fluxo de capital, obstruindo sua passagem onde
há excesso, fazendo-o passar onde falta, absorvendo a mais valia excedente para
provocar a escassez. O Estado capitalista não subordina mais todos os fluxos como o

99
despótico, mas se filia ao fluxo de capital cuidando de boa parte de sua axiomática,
administrando-a: a burocracia torna-se tecnoburocracia. O capitalismo ainda precisa de
um agente territorializador, do Urstaat:

(...) a axiomática social das sociedades modernas existe entre dois pólos, e oscila
sempre entre um pólo e outro. Estas sociedades — nascidas da descodificação e da
desterritorialização, sobre as ruínas da máquina despótica — oscilam entre o Urstaat
que gostariam de ressuscitar como unidade sobrecodificante e reterritorializante e os
fluxos soltos que as reconduzem para um limiar absoluto. Recodificam com toda
força, com ditadura mundial, ditaduras locais e polícia todo-poderosa, enquanto
descodificam ou deixam descodificar quantidades fluentes dos seus capitais e das suas
populações. Elas encontram-se entre duas direções: arcaísmo e futurismo, neo-
arcaísmo e ex-futurismo, paranóia e esquizofrenia. Vacilam entre dois pólos: o signo
despótico paranóico, o signo significante do déspota que tentam reanimar como
unidade de código; e o signo-figura do esquizo como unidade de fluxos
descodificados, esquize, ponto-signo ou corte-fluxo. Estrangulam um, mas expandem-
se ou derramam-se pelo outro. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 271).

Passando ao campo poético, há muita semelhança entre esta teoria do capitalismo de


Deleuze e Guattari e a concepção de poesia moderna que Octavio Paz desenvolve em
Os filhos do barro:

Crítica da crítica e suas construções, a poesia moderna, desde os pré-


românticos, procura fundamentar-se em um princípio anterior à modernidade e
antagônico a ela. (...) A poesia moderna afirma que é a voz de um princípio anterior à
história, a revelação de uma palavra original de fundamento. A poesia é a linguagem
original da sociedade — paixão e sensibilidade — e por isso mesmo é a linguagem
verdadeira de todas as revelações e revoluções. Esse princípio é social, revolucionário:
regresso ao pacto do começo, antes da desigualdade; esse princípio é individual e
atinge cada homem e cada mulher: reconquista da inocência original. Dupla oposição
à modernidade e ao cristianismo, que é uma dupla confirmação do tempo histórico da
modernidade (revolução) como do tempo mítico do cristianismo (inocência original).
Em um extremo, o tema da instauração de outra sociedade é um tema revolucionário,
que insere o tempo do princípio no futuro; no outro extremo, o tema da restauração da
inocência original é um tema religioso, que insere o futuro cristão em um passado
anterior à Queda. A história da poesia moderna é a história das oscilações entre estes
dois extremos: a tentação revolucionária e a tentação religiosa. (Paz, 1984, pp. 57-58).

É claro que a poesia, entendida como produção no regime de signos de uma sociedade,
está envolvida com (e no) capitalismo, que modula (ou pelo menos tenta), em última
análise, toda a produção, inclusive a poética.

Os críticos marxistas sempre desconfiaram das fugas românticas: para a


natureza, para a Idade Média, para o sujeito, para a morte. E eles têm razão, pois o

100
romantismo se constitui, de fato, numa descodificação revolucionária de fluxos,
traçando uma linha de fuga para fora da sociedade burguesa, provocando-lhe
vazamentos, mas apenas para reconstituir, mais à frente um novo Urstaat, seja ele a
nação ou um espaço-tempo mítico (natureza, Medievo), seja ele uma internalização
subjetiva: o sujeito, eu romântico. De fato, o indivíduo, isto é, a subjetividade burguesa
tem todas as prerrogativas de um Estado: limites claros; sobrecodificação dos fluxos
que confluem para a identidade; corpo pleno do ser, imagem e semelhança do deus
cristão — toda uma metafísica da unidade se configura com a subjetividade. O sujeito
cristão, por exemplo, confina-se num Urstaat internalizado, por deixar submeter todos
os fluxos que atravessam-no numa unidade sobrecodificante (alma), aprisionado em si
mesmo, cordeiro de deus: piedade e cinismo. Enquanto as pessoas se acreditavam
centradas em si, o capitalismo descodificava todas as tradições (políticas, artísticas,
científicas, religiosas, associativas) liberando os fluxos aprisionados nelas para absorvê-
los em sua axiomática.

Mas porque não descodificar o próprio sujeito? Como o capitalismo iria resistir
à tentação de surrupiar o poder do último déspota? Nietzsche já havia começado o
trabalho com seu ataque simultâneo ao romantismo e ao cristianismo. Bastava
redirecionar as forças revolucionárias e esquizofrênicas do super-homem, do Zaratustra
nietzschiano para uma descodificação mais modulável pelo capital, mais aceitável pela
sociedade burguesa. Na opinião de Deleuze e Guatari, esta absorção foi feita pela
psicanálise freudiana e sua construção do Édipo:

Freud é o Lutero e o Adam Smith da psiquiatria. Mobiliza todos os recursos do mito,


da tragédia e do sonho para reencadear o desejo, mas agora no interior: um teatro
íntimo. E, todavia, o Édipo é de fato o universal do desejo, o produto da história
universal — mas só com uma certa condição que Freud não observa: a de que o Édipo
seja capaz de fazer sua autocrítica, pelo menos até certo ponto. A história universal, se
não conquista as condições de sua contingência, da sua singularidade, da sua ironia e
da sua própria crítica, não passa de uma teologia. E quais são essas condições, esse
ponto de autocrítica? Descobrir, sob o rebatimento familiar, a natureza dos
investimentos sociais do inconsciente. Descobrir, sob o fantasma individual, a
natureza dos fantasmas de grupo. Ou, o que vai dar no mesmo, levar o simulacro até o
ponto em que ele deixa de ser uma imagem de imagem, para encontrar as figuras
abstratas, os fluxos-esquizes que ele oculta. Substituir o sujeito privado da castração,
clivado em sujeito de enunciação e sujeito de enunciado, e que remete apenas para as
duas ordens de imagens pessoais, pelos agentes coletivos que remetem para arranjos
maquínicos. Reverter o teatro da representação na ordem da produção desejante: é
esta, precisamente, a tarefa da esquizo-análize. (Deleuze e Guattari, 1995a, p. 283).

Intentar, contra o modelo freudiano de sujeito, a dessubjetivação radical, a socialização


do desejo, a deriva (errância) dos e nos fluxos, a exploração experimental das linhas
abstratas: maquinismo, movimento, processo. Estas tarefas que nos propõe os autores

101
do Anti-Édipo parecem ser também as que Leminski quer realizar com sua poesia
errática. Durante todo este trabalho temos mostrado a fuga que Leminski provoca na
subjetividade (mesmo a esfacelada), na significação (muitas vezes personificada pela
razão) e no desejo de estruturação/centramento, vinculados ao regime de produção
capitalista. Talvez por serem contemporâneos (e terem ‘levado a sério’) das mesmas
máquinas de fuga (nômades) que foram os beatniks, hippies e revolucionários de 68,
eles possam ser aproximados (conectados) de maneira tão fácil. Leminski soube, como
pudemos verificar muitas vezes, que seu campo de atuação é a sociedade capitalista,
mesmo quando falava do sujeito, mesmo quando dizia ‘eu’ (pronome no qual ele talvez
nunca tenha acreditado).

Mas voltando à subjetividade freudiana, trata-se de uma máquina descodificada


e descodificadora que expande o tempo todo os seus limites: ela é atravessada (na
verdade, constituída) por pulsões do id e pressões do superego. Nos limites destes
campos energéticos, entre eles, o ego tenta se estabilizar. Mas toda essa produção, todas
essas conjunções e disjunções de fluxos são rebatidas no complexo de Édipo, tornando-
se a projeção representativa de um mito original — Urstaat interiorizado. A psique
freudiana oscila também entre a energia pura da libido, produção que a descodifica; e
entre a representação mítica que a submete à sua codificação. Subjetividade múltipla,
cindida, fragmentária, mas sempre nostálgica de sua unidade, o adulto com saudade do
útero, a burguesia lamentando a perda do Urstaat original. Toda a sorte de profundidade
é evocada para descortinar o mito representado, por um lado e, por outro, toda a força
descodificadora quer expandir e multiplicar suas projeções cada vez mais: “arcaísmo e
futurismo”. É claro que esta versatilidade, esta fragmentação do sujeito é útil ao
capitalismo, pois não se pode descodificar as coisas o tempo todo sem encontrar
resistências de um sujeito uno, plenamente mítico. A mitificação do sujeito uno foi um
recurso da máquina capitalista para que se abrissem outros espaços à descodificação,
através da interiorização do Urstaat, mas desde sempre já havia também um processo de
descodificação da própria subjetividade, o que são movimentos contrários, mas não
contraditórios. Devemos nos lembrar que o capitalismo oscila entre os sistemas
centrados e seu descentramento modulado pelo capital (policentramento), portanto, o
centramento do sujeito é uma condição necessária ao seu policentramento modulável.

Outra característica desta máquina subjetiva (máquina de rostidade) é sua


explicabilidade, as suas infinitas cadeias explicativas, racionais, que tentam o tempo
todo entender tudo o que se passa: era da razão. A razão também é um elemento
entrópico e precisa, o tempo todo, ser modulada, axiomatizada pelo fluxo de capital. A
subjetividade freudiana faz a razão girar o tempo todo em torno da representação
edipiana: os analistas sabem de antemão os destinos da libido, por mais tortuosos que
sejam os seus caminhos: papai e mamãe, Édipo. O sujeito se explica constantemente, o
analista pensa o tempo todo e este imenso esforço reflexivo cai sempre no abismo do
Édipo, na psicologia profunda da representação. O pensamento sobre o inconsciente

102
deve ser axiomatizado, rebatido sobre esta representação (mesmo que múltipla,
esfacelada) do mito.

O caminho da poesia contra a razão cai, muitas vezes, nesta outra margem
mítica, da representação da unidade, no mistério das origens (o Mistério com maiúscula,
pólo oposto e complementar da Razão). O que procuramos mostrar na poesia de
Leminski (ou retirar dela?), é sua rebeldia contra a significação racional, sua rarefação
significante, mas não no sentido da nostalgia de um mistério divino e sim na direção do
enlouquecimento entrópico da razão: talvez haja magia nisto, mistério (nunca sabemos
exatamente o que se passa em seus poemas), mas como linha de fuga absoluta da
significação, loucura da linguagem. Tentamos flagrar a sua poesia como conhecimento,
como experimentação de linhas de intensidade, saltando para fora do abismo da
representação e da axiomática do capital; dos cerceamentos da razão burguesa, seja
ela utilitarista (no sentido de gerar lucro) ou representativa (no sentido de desvendar
arquétipos).

Outra tentativa, ainda se tratando da máquina de rostidade, é o da fuga da


subjetividade propriamente dita. Procuramos evitar sempre a subjetividade fragmentada,
justamente por ela ser pior que o sujeito uno. O capitalismo exige uma separação
constante do sujeito de si mesmo, no tempo ou no espaço2, embora precise da crença de
uma profundidade essencial para que a mudança seja percebida apenas como uma
variação relativa da unidade e nunca uma produção constante de subjetivações
precárias. Ao lado das religiões e sobrepondo-se a elas, o Édipo daria esta crença ‘atéia’
sem a qual os sujeitos se dissolveriam em fluxos puramente intensivos (desman-
charme), nos quais as subjetivações consistiriam apenas de confluências provisórias
desses fluxos, prontas para a fluxão por todos os lados. Como controlar, mesmo com o
regime muito flexível e preciso da axiomática do capital, uma sociedade sem sujeitos (a-
sujeitada), uma multiplicidade? É este salto para fora do sujeito e de sua multiplicação
que tentamos dar com os textos poéticos de Leminski. Para além ou aquém do ser e seus
afetos, encontramos as linhas afetivas (dor, amor, humor) do texto, da vida. Linhas
abstratas e particulares de experimentação, fluxos intensivos de desejo que confluem
momentaneamente num poema: conjunções e disjunções de fluxos.

Este salto para fora da complexa máquina de rostidade capitalista é, antes de


mais nada, uma operação na sociedade. Leminski não se refere diretamente à vida

2
Separação no tempo: o estoque de conhecimento e tradições que definiriam uma identidade é
constantemente afetado pelas descodificações constantes do regime capitalista, que evolui o tempo todo
em suas técnicas e modalidades de consumo, exigindo que o sujeito ‘passe a borracha’ em sua identidade
anterior e desenvolva outra(s). No espaço: Baudelaire já havia percebido como as pessoas não passam de
pontos móveis nas ruas de uma grande cidade. Em outros espaços as máscaras mudam: em casa o sujeito
é uma pessoa íntima, no trabalho um profissional e assim por diante.

103
burguesa, não a denuncia explicitamente, salvo em alguns poemas muito raros (e que
talvez não sejam os seu melhores) como este:

de repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que eu te vi
o dia em que me viste

de repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana
(Leminski, 1983, p. 84).

O melhor Leminski parece ser o que lida com as experimentações de intensidades


abstratas, que são particulares (e não universais) mas não se referem a nenhuma
significação imediata e precisa. Quando o seu texto insinua uma ordem cultural, uma
subjetivação, um afeto, uma explicação, descodificando-os em linhas de experimentação
ou confluências circunstanciais de fluxos é que ele consegue retirar o máximo de seus
procedimentos poéticos. O forte de sua poesia é proceder nas frinchas dos sistemas, por
onde ele rarefaz a significância e faz vazar os fluxos:

das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros
são

104
aquelas
em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?
(Leminski, 1983, p. 17).

Os mínimos ímpetos infinitos, linhas de fuga absolutas que ninguém sabe (ninguém
racionaliza). As que passam subitamente (ímpetos) sem que a consciência saiba
exatamente o que se passou. O seu procedimento é micro, molecular, rarefeito e quase
nunca se delineará classes sociais, sujeitos inteiros ou pensamentos acabados em suas
poesia, mas tão somente objetos parciais, segmentos flu(t,x)uantes, máquinas
desejantes. E, no entanto, sua operação textual é sempre na sociedade, atuando
diretamente nos fluxos parciais da sociedade capitalista e não na subjetividade (ou no
grupo social) entendida como realidade à priori, como unidade elementar. O molecular
não se identifica com o pequeno (não é o sujeito particular em relação ao conjunto
maior da sociedade) nem implica num ponto de vista particularista (não se trata de uma
visão de um grupo, de um gueto ou provinciana). Deleuze e Guattari procuram alertar
sobre os equívocos a respeito das linhas de segmentaridade moleculares, ou flexíveis:

Evitaremos quatro erros que concernem a esta segmentaridade maleável e molecular.


O primeiro é axiológico e consistiria em acreditar que basta um pouco de flexibilidade
para ser “melhor”. Mas o fascismo é tanto mais perigoso por seus microfascismos, e as
segmentações finas são tão nocivas quanto os segmentos mais endurecidos. O segundo
é psicológico, como se o molecular pertencesse ao domínio da imaginação e remetesse
somente ao individual ou ao interindividual. Mas não há menos Real-social numa
linha do que na outra. Em terceiro lugar, as duas formas não se distinguem
simplesmente pelas dimensões, como uma forma pequena e outra grande; e se é
verdade que o molecular opera no detalhe e passa por pequenos grupos, nem por isso
ele é menos co-extensivo a todo campo social, tanto quanto a organização molar [de
grandes conjuntos]. Enfim, a diferença qualitativa das duas linhas não impede que elas
se aticem ou se confirmem de modo que há sempre uma relação proporcional entre as
duas, seja diretamente proporcional, seja inversamente proporcional. [grifos nossos]
(Deleuze e Guattari, 1996, p. 93).

E o capitalismo, de fato, arranja grandes conjuntos molares (classes, sexos, Estados), ao


mesmo tempo que intensifica sua micropolítica de guetos e gangues, de fluxos de
capital, trabalho e signos, de pequenos despotismos empresariais, familiares,
associativos — sem esquecer a co-extensão do funcionamento desta dimensão micro a
todo campo social. Uma boa poesia pode trabalhar também com grandes conjuntos, ao
lado das segmentaridades finas (é o caso do Poema sujo de Ferreira Gullar e de alguns
poemas seus em Dentro da noite veloz). Este problema de funcionamento das obras de
diferentes poetas, e até mesmo de diferentes momentos num mesmo poeta, é um caso de
procedimento, de estratégia textual que, por si só, não define a fecundidade ou não de
105
seus textos — isto não quer dizer que estas estratégias sejam conscientes, absolutamente
voluntárias: sabe-se lá das miríades de fluxos que atravessam a produção poética.

Os fluxos, as microestruturas estão por toda parte no corpo da sociedade, como


as moléculas formam um organismo. Disso resulta que um procedimento molecular
pode ter tanta amplitude quanto o que lida com grandes conjuntos, e ser tão fatal quanto
ele: o vírus é um caso exemplar. E um grande sistema só pode vazar por suas linhas de
fuga a-subjetivadas e a-significantes, sempre finas, maleáveis, moleculares:

Do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga,
que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações
binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: aquilo que se
atribui a uma ‘evolução dos costumes’, aos jovens, às mulheres, aos loucos, etc.
(Deleuze e Guattari, 1996, p. 94).

É quando a vida vase


É quando como quase.
Ou não, quem sabe3.
(Leminski, 1987a, p. 7).

O procedimento molecular de Leminski não constitui, portanto, algo absolutamente


localizado, que concerne somente ao seu momento político ou ao seu espaço curitibano.
Também não ficaríamos satisfeitos se colocássemos sua maquinaria textual num sistema
de apreensão que considere apenas relações entre grandes conjuntos, como classes
sociais, subjetividade e sua própria obra que, considerada estruturalmente, talvez não
teria a ossatura suficiente para ser tomada como consistente numa perspectiva dessas:
seria, sem dúvida um poeta falho, sem ‘profundidade’. Tentamos então procurar suas
linhas finas, sua operação de abrir picadas através das pequenas fendas dos sistemas:
tradição, sujeito, estrutura, sociedade, cultura.

É claro que estas operações textuais são condicionadas pelos limites dos
sistemas que nos cercam a todos. Mais amplamente são condicionadas pela sociedade
capitalista. Quando dizemos condicionadas, não queremos dizer que são reflexo do
capitalismo, mas que são cerceadas por seus limites, sempre muito fluidos e prontos a se
alargarem. Há mil olhos esperando um vazamento, não para estancá-lo, mas para
persegui-lo, estudá-lo e chegar a uma maneira de convertê-lo em fluxo de capital: o
capitalismo tem toda uma micropolítica da reabsorção (micropolícia?), e das mais
eficientes. Portanto, pode-se dizer que estes vazamentos entrópicos são, em princípio,
aliados (sempre suspeitos, mas aliados) do regime de produção capitalista. Os críticos
marxistas, neste ponto, têm razão em detestar este tipo de poesia: “tão banal quanto um

3
Estes três versos fazem parte do texto “Transmatéria contrasenso” que funciona como uma espécie de
prefácio de Distraídos venceremos.

106
comercial de TV, piruetas criativas”. Mas até que ponto a poesia mais prosaica e
‘densa’, diretamente crítica também não é previsível (e desejada) pela sociedade?

No Brasil há todo um lance de poder que vai desde o Conselho editorial das revistas,
da distribuição das edições na área do Rio de Janeiro. Das colunas, das influências.
Enfim, do poder. Esse poder, em termos de poesia brasileira, fez um empuxo da
vanguarda concreta paulista, por exemplo, como sendo formalismo alienado e
consagrou um determinado tipo de discurso na realidade drummondiano e na realidade
nada revolucionário, pelo contrário, do sistema. Esse movimento então, que é
encarnado pelos CPCs, pela figura de Ferreira Gullar, pela figura de Thiago de Mello,
eles canonizam um tipo de poesia que é uma poesia discursiva, uma poesia retórica,
uma poesia demagógica e no fundo, cristã. Apelativa, sentimentalóide, quando se
pretende contundente politicamente e enquanto denunciando as malezas sociais aqui e
ali. Essa poesia vai conservando o bom velho discurso no qual estão encarnados os
princípios todos do sistema (...). (Leminski, 1994c, p. 30).

Todo criador opera sempre limitado pelas possibilidades do regime de produção ao qual
pertence e tanto a poesia mais retórica que tende a operar com a significância e os
grandes conjuntos, sendo ela mesma um deles (a grande obra), quanto a poesia que
tende para os processos moleculares4 da sociedade são esperadas, desejadas e
(per)seguidas por agentes de absorção que tentam submetê-las à axiomática do fluxo de
capital. O os acadêmicos são, senão agentes ordenadores que vão filtrar os autores e
seus textos, produzindo leituras preparatórias para editoras, indústria de concursos
(inclusive vestibulares), jornalistas, produtores de entretenimento e publicitários, que
tornam os fluxos da cultura peças de um estoque, prontas para integrarem a maquinaria
do capital e gerar lucro5? A academia é uma instituição, um grande conjunto, mas

4
Será que esta oposição repete a de Haroldo de Campos, poesia da expressão (grandes conjuntos) e da
estruturação (molecular)? De certa forma, sim, pois uma das características da poesia da estruturação é a
limitação do material com que lida e a operação extremamente minuciosa com este material, o que pode
se parecer muito com o procedimento de experimentação de intensidades puras, depuradas de seus
supostos agentes causadores (grandes conjuntos), de que temos falado. O problema é que o concretismo
pareceu tentado (isto nos anos heróicos) a transformar estas operações minuciosas e rizomáticas em
estruturas maiores, matrizes de procedimentos moleculares que são instâncias de poder, pois estabelecem
de antemão o que é lícito e o que não é em termos de operação textual. Este é um risco de toda vanguarda:
de máquina de guerrilha passar a à máquina de guerra, aparelho militar de Estado. O concretismo sempre
caminhou no limiar destas duas tendências. Uma poesia que tende para o molecular geralmente resiste a
uma rígida estruturação, ou seja, não deseja se institucionalizar. Por isto renega, além da representação
subjetiva a estruturação objetiva que talvez não passe de uma projeção da representação nas estruturas,
também dotadas de profundidade e verdade, portanto passíveis de uma abordagem que lhe desvende suas
essências. Toda estrutura suporta (pede?) uma metafísica.
5
Outro procedimento que se espera da academia é a produção de leituras representativas ou estruturais
que, de certa forma, acomodam as coisas na subjetividade expressada, na objetividade estruturada, ou
numa síntese de ambas. Assim como Deleuze e Guattari acusam a nostalgia do mito e do Urstaat no
despedaçado sujeito freudiano, podemos acusar nessas leituras uma nostalgia do déspota e seu Estado
sobrecodificador, ou interiorizada no sujeito moderno que lamenta sua fragmentação, ou projetada nas
estruturas que desejam a Estrutura e seu centro. Esta nostalgia de certa forma resiste à descodificação
contínua promovida pelo capital (em função do lucro) mas constitui, pela via da oposição, o pólo da
unidade perdida a ser lamentada, de que o capitalismo necessita para sua axiomática, impedindo uma

107
também tem suas micropolíticas, pois toda a produção (artística ou científica) com a
qual lida é altamente descodificadora, fazendo vazar o tempo todo os fluxos na
sociedade capitalista. Muitas vezes, ela constitui a ponte entre esta sociedade e seus
sábios esquizofrênicos: por enquanto deixem que eles pesquisem e delirem a vontade (a
hora da esquizofrenia descodificada), no momento certo os seus fluxos descodificados
serão absorvidos pela axiomática do capital, a hora do mercado e da axiomática
recodificadora.

O que se deve tentar é fugir cada vez mais dessa axiomática, não produzindo
sempre mais rápido e gerando mais novidade:

não resta dúvida q esse culto do novo em poesia de vanguarda está ligado ao “novo”
que a publicidade usa... novo Omo, novo Rinso... novo... novo... mais novo... novo pra
que ? ou o novo não precisa se justificar ? novo é novo, e tá acabado ? claro, existe
uma preocupação com novidade em qualquer artista de verdade. com novidade, com
originalidade, com voz própria. mas o novo custe o que custar me parece um mito,
uma alienação. alienação é uma coisa que subsiste depois que perdeu seu uso. sua
finalidade. seu emprego social. (Leminski e Bonvicino, 1999, pp. 110-111).

Mas fugir, como Leminski parecia saber bem, se perguntado “pra quê?”, com que
finalidade? Será que nossa fuga é útil para nos desatarmos mais e mais da axiomática do
fluxo do capital? Será que somos forte o suficiente para, depois da tentativa de
reabsorção, nos proporcionar ainda um pouco de a-significância e a-subjetividade
proliferante? E estas linhas de fuga não serão cancerígenas gerando uma recodificação
fascista pior que a capitalista? Elas vão se precipitar no caos absoluto, morte (é preciso
preservar também um pouco de significância e subjetivação)? É sempre um risco fazer
vazar os sistemas e os critérios de orientação são sempre circunstanciais: os textos de
fuga são sempre textos-morcego, livros-rizoma ou o que Barthes chamaria de escritura.
A moral destes textos é sempre nômade, produzida, estética. Mas pode ser que se
consiga. E o que se consegue com isso, o que se efetiva quando conseguimos? Deleuze
e Guattari (1996, p. 27) costumam chamar a efetivação de uma fuga bem sucedida de
Corpo sem Órgãos:

O CsO [Corpo sem Órgãos] é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é
contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de
experimentação, seu meio associado. O ovo é um meio de intensidade pura, o spatium
e não a extensio, a intensidade Zero como princípio de produção.

descodificação generalizada que o levaria à entropia sistêmica (esquizofrenia), na qual o fluxo de capital
não conseguiria mais se sobrepor, isto é, não modularia mais o outros fluxos do desejo segundo seu
regime.

108
Muito semelhante ao que se consegue com um bom poema, como nos diz neste texto
criativo e pensativo de Octavio Paz sobre os obsessivos jogos com as palavras, que
perseguem e são perseguidos pelos poetas:

Pero esos juegos acaban por cansar. Y entonces no queda sino el Gran Recurso: de una
manotada aplastas seis o siete —o diez o mil millones— y con esa masa blanda haces
una bola, que dejas a la intemperie hasta que se endurezca y brille como una partícula
de astro. Una vez que esté bien fría, arrójala con fuerza contra esos ojos fijos que te
contemplan desde que naciste. Si tienes tino, fuerza y suerte, quizá destroces algo,
quizá le rompas la cara al mundo, quizá tu proyectil estalle contra al muro y le
arranque unas breves chispas que iluminen un instante el silencio6. (Paz, 1992, pp. 23-
24).

É necessário tino, força e sorte para talvez conseguir. Corpo sem Órgãos, ao que parece,
também presente no tiro certo (o poema?) de que nos fala o texto a seguir, misto de
sincopado, zen, histórico, mítico e despudorado:

Que flecha é aquela no calcanhar daquilo? Picatacapau! Pela pena é persa, pela
precisão do tiro — um mestre. Ora os mestres persas são sempre velhos. E mestre,
persa e velho só pode ser Artaxerxes ou um irmão, ou um amigo, ou discípulo ou
então simplesmente alguém que passava e atirou por despautério num momento
gaudério de distração. Flecha se atira em movimento, ninguém está parado. Nem o
cavalo, nem o cavaleiro; nem a mente, nem a mão; nem o arco, nem a flecha, e o alvo
o vento leva: tiro certo7. (Leminski, 1989, p. 51).

Estas efetivações positivas dos fluxos (Corpos sem órgãos) se dão sempre no plano
molecular, micropolítico, por onde os fluxos se descodificam e as territorialidades se
desfazem. Tentamos ler os poemas de Leminski como buscas, tentativas de construções
de Corpos sem Órgãos (estrela a solta), conjunções de linhas de fuga, fluxos que vazam
dos ordenamentos sistêmicos e escapam inclusive dos agentes de reabsorção capitalistas
(e como leitores especializados, explicadores, nós encarnamos um ou vários destes
agentes, sendo necessário tentar escapar de nós mesmos). Mas para fazer este tipo de
leitura é preciso, de alguma maneira, tentar construir também para nós um Corpo sem
Órgãos com as nossas linhas e com as de Leminski: as leituras como tentativas de
conjunção de fluxos, de experimentação e efetivação das linhas em fuga, errâncias
positivas. Não é possível apenas conhecer a multiplicidade, dizendo: lá está ela, seus
procedimentos são esses, suas formas são essas. Ela não constitui um objeto, nem
mesmo uma realidade à parte. É uma perspectiva (e, no entanto, é o real), um modo de
proceder e se quisermos encontrá-la é preciso fazê-la, fazer nela, abandonar

6
Resolvemos deixar este trecho de ¿Aguila o sol? em espanhol, pois é um texto criativo (embora portador
de uma reflexão bastante densa sobre o exercício poético) cuja tradução talvez desvirtue em demasia.
7
Parte deste trecho do Catatau é a epígrafe de Distraídos Venceremos.

109
subjetividades e objetividades e experimentar suas linhas sempre em fuga, produzir(-se)
com ela, entranhar-se nela, estranhar-se:

O que quer dizer, diz.


Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
(Leminski, 1987a, p. 36).

110
UM METRO DE GRITO

Na obra de Paulo Leminski dificilmente aparecerá o contexto brasileiro e suas


problemáticas tradicionais de identidade, de oscilação entre atraso e modernidade, de
questionamento de problemas sociais do país ou de ufanismo. Salvo em alguns raros
poemas e uma possível contextualização de Catatau e Agora é que são elas, seus textos
criativos passam ao largo da explicitação do ambiente social que, nem mesmo é um
pano de fundo para o desenvolvimento de outros problemas, como já foi lida a presença
da sociedade brasileira na obra de Machado de Assis: paisagem circunstancial onde se
desenrola o drama do homem e se dá a exploração de suas profundezas — numa leitura
psicológica de seus romances.

Tampouco a ausência da sociedade implica numa espécie de purificação


máxima da matéria poética que atingiria sua suposta essência mais profunda: a natureza
humana em conflito com ela mesma e com a natureza, homem e cosmo. Já falamos o
suficiente da resistência aos universais que perpassam os seus textos, mesmo que, à
primeira vista, possa parecer que Leminski, de maneira inábil, tente tratar dessas
profundidades metafísicas.

Outro descarte, apesar da descendência concretista de Leminski, é o da


chamada poesia da estruturação se a concebemos como exploração das formas do
conteúdo e da expressão, entendidas como significante e significado, resultando (ou
querendo resultar) a sua manipulação num objeto estético que, antes de se alienar
parnasianamente da sociedade, quer agir, de modo revolucionário, sobre ela:
“Realmente apoiado verbi-voco-visualmente, em elementos que se integram numa
consonância estrutural, o poema concreto agride imediatamente, por todos os lados, o
campo perceptivo do leitor que nele busque o que nele existe: um conteúdo estrutura.”
(Campos H., 1975, p. 81). Ação que mantém, entretanto, as relações de conjunto para
conjunto, de grandes estruturas interagindo, mesmo que dialeticamente. É claro que o
concretismo, enquanto projeto estético, abre outra possibilidade além da produção
rigorosa de estruturas delimitadas: a de uma perspectiva da poesia como codificadora do
caos, mas simultaneamente caotificadora da ordem, linha de fuga, texto-morcego:

renunciando à disputa do “absoluto”, a poesia concreta


permanece no campo magnético do relativo perene.
cronomicrometragem do acaso. controle. cibernética. o poema
como um mecanismo, regulando-se a si próprio: “feed-bak”,
a comunicação mais rápida (implícito um problema de
funcionalidade e de estrutura) confere ao poema um valor
positivo e guia a sua própria confecção
(Campos A.; Campos H.; Pignatari, 1975, pp. 157-158).

111
É por esta fenda nas estruturalidades e gestalts, aberta, no plano da reflexão poética,
pelos concretos, que Leminski vai se intrometer com toda a sua maquinaria errática.

Mas, voltando ao problema inicial, como ficaria, na perspectiva processual em


que estamos lendo Leminski, a realidade circundante? O contexto do país e do mundo?
São perguntas que a tradição crítica brasileira (estabelecida a partir do modernismo e
que tem inclusive localização geográfica: a USP) insiste em fazer e que se mantêm
urgentes e atuais e a qualquer obra poética contemporânea, inclusive a de Leminski, é
lícito fazer este tipo de questionamento. No entanto, não são estas linhas de sua poesia
que procuramos e esperamos que as que temos seguido possam ser úteis para que essa
abordagem contextual(?) possa se fazer de outra forma, em outros regimes que não o
representativo que se organiza, mesmo que dialeticamente, por grandes dicotomias,
talvez enrijecidas em excesso (indivíduo-coletividade, ideologia-economia, obra-
sociedade, povo-elite) e que irão encontrar somente superficialidades (como sinônimo
de falta de qualidade) em poetas como Leminski e Oswald, sem contar vários
contemporâneos nossos.

Procuramos mostrar como Leminski atua na sociedade capitalista e como esta


atuação é crítica, não no sentido da negativa (que lida com grandes conjuntos), mas no
da dissolução de seus limites cerceadores (fuga sistêmica), mesmo quando seu ‘assunto’
parece se restringir a brincadeiras com uma metáfora como em “Até ela”. Quer dizer,
mesmo quando parece atuar apenas indiretamente, por alusão, procuramos lê-lo como
ação direta no regime de produção capitalista. Esta oposição entre ação direta e indireta
encobre um jogo de profundidade ou de espelhos que não queremos para nossa leitura,
por isto partimos para os problemas de produção e de utilidade, para os funcionamentos
moleculares, onde as funções e estruturas das máquinas não se separam da produção e
esta, por sua vez, não se desvincula do desejo: máquinas desejantes que deixam passar
ou obstruem os fluxos do desejo. A sociedade como maquinaria de maquinarias,
máquinas em conexão produtiva cuja realidade(?) fica aquém, mas também vai além
dos grandes conjuntos (subjetividade, classes, sociedade, língua, literatura etc.): linhas e
fluxos de desejo, máquinas, textos morcegos, inumanidades. Se não podemos evitar
uma metafísica, como não se pode prescindir das dualidades, assim como procuramos
fazer proliferar os pares, talvez devamos propor a metafísica mais absurda: a do uno que
se identifica com a multiplicidade, onde nenhuma região pode ser definida como
superior, em termos absolutos (transcendentais), que outra.

Se os textos de Leminski não operam com a nomeação dos conflitos de classe


da sociedade capitalista ou das particularidades deste conflito na sociedade brasileira
(Nem por isto nós vamos dizer que eles atuam indiretamente nestes grandes conjuntos.
Atuam diferentemente?), eles não deixam de operar, à sua maneira, nomeando(?) o
funcionamento molecular dos fluxos de capital na sociedade, mesclando-o com as linhas

112
da arte/poesia, da vida e da tradição. Vejamos o poema a seguir, no qual o capital
aparece de modo, digamos, mais patente:

UM METRO DE GRITO
(MÁQUINAS LÍQUIDAS)

Leiam-se índices,
mil olhos de lince,
entre meus filmes,
leonardos da vinci.
Abri-vos, arcas, arquivos,
súmulas de equívocos,
fechados,
para que servem os livros?

Livros de vidro,
discos, issos, aquilos,
coisas que eu vendo a metro,
eles me compram aos quilos.
Líquidas lâminas,
linhas paralelas,
quanto me dão
por minhas idéias?
(Leminski, 1987a, p. 37).

Há, neste poema, toda uma circunstancialidade de quem vive às voltas com a
tradição cultural, toda uma vivência erudita de um criador de textos em meio às malhas
da cultura, “um eco anti anti anti antigo” que, no entanto deve ser posto em movimento
para servir à vida: “fechados / para que servem os livros?” A ligação de “Um metro de
grito” com “Distâncias mínimas” é imediata e embora Leminski não se denomine um
poeta de obsessões, a tradição literária é uma recorrência em seus textos, seja como
limite, seja como possibilidade de rompê-lo. Há também a perspectiva do detalhe,
algumas linhas intensivas percorridas pelo texto e que remetem à visão atenta de quem
perscruta a tradição como caçador: mil olhos de lince. O texto-morcego se alimenta do
sangue da tradição para viver, para re-viver a tradição numa outra circunstância (numa
outra vida) assim como o olho de lince do poeta (ou do texto?) procura atentamente sua
caça em meio à selva de signos. A visão aqui tem algo de construtora, pois a presa, mais
que encontrada e capturada deve ser a construção de uma perspectiva que resulte na
captura. A leitura que se faz da tradição é sempre produtiva (de re-produção), pois o que
ela nos lega são apenas ecos, índices: “leiam-se índices”. Este esforço implica na
concentração máxima numa tarefa sempre indefinida e que por isso mesmo exige uma
extrema precisão, um pouco de sorte e ainda a capacidade de se distrair (esquecer-se),
deixando-se levar nos fluxos, uma operação que os românticos gostavam de chamar de

113
inspiração. O mundo dos signos (nunca separado do mundo da vida) costuma esgotar e
deturpar quem se dispõe a correr seus riscos, como podemos perceber neste outro texto:

TEXTOS TEXTOS TEXTOS


malditas placas fenícias
cobertas de riscos rabiscos
como me deixastes os olhos piscos
a mente torta de malícias
ciscos8
(Leminski, 1995, p. 52).

Voltando a “Um metro de grito”, a súmula de equívocos (no sentido pejorativo


ou do erro positivo, errância? ou ambos?) é sempre um risco aos olhos do lince que
precisa se perder em meio aos signos para achar a presa.

A segunda estrofe de “Um metro de grito” pode ser lida como uma resposta à
pergunta que finaliza a primeira: fechados / para que servem os livros? Pergunta que,
além de evidenciar a necessidade de re-produção e re-utilização noutros termos da
tradição, remete imediatamente a outra: e abertos, para que servem? Se o texto
questiona a validade de uma tradição morta, não recriada (na qual não se constroem
caças e presas?), obviamente o movimento vital (a abertura) que impõe a esta velha
senhora (sempre um pouco en-trevada, diga-se de passagem) deve servir para alguma
coisa:

Livros de vidro,
discos, issos, aquilos,
coisas que eu vendo a metro,
eles me compram aos quilos.

Quando abertos os livros e o mundo da tradição for transpassado e transformado pelos


olhos de lince (o vidro como refração, convite à penetração do olhar como visão
distorcida ou como coisa frágil a ser quebrada?) e, além disso, somado à cultura
contemporânea de que se alimenta o vampiro-poeta (os livros de vidro como remissão à
TV e ao vídeo e os discos): o que fazer com tudo isso posto em movimento?

8
Notemos o duplo sentido de riscos, que rima com rabiscos, indicando uma dificuldade de decifração, já
que o rabisco é uma multiplicidade de traços (riscos) desordenados. Este espaço meio caótico (ou pelo
menos o ponto de vista que o constrói assim) é um constante risco/perigo à mente, ao sujeito, já que lhe
abre a possibilidade do estranhamento, da perversão (desvio da regra): a mente torta de malícias. O quarto
verso (como me deixastes os olhos piscos) é excessivamente longo em relação aos outros, além de
apresentar duas sílabas parecidas (como me) em seqüência, numa quase cacofonia, e uma saturação de
sibilantes. Esta distribuição fonética funciona como uma obstrução à leitura e um incômodo aos ouvidos,
uma tortuosidade para a mente (torta de malícias): ciscos nos olhos, ciscos na alma.

114
Os artistas estão inevitavelmente no jogo do mercado e toda esta tradição em
uso, operada pelo poeta, enfim, os seus textos são “coisas que eu vendo”, portanto
dotadas de valor de troca: a descodificação esquizofrênica da poesia e sua tentativa de
construir linhas de fuga, fazendo vazar os sistemas é sempre vigiada, seguida e
reabsorvida pela axiomática do fluxo de capital, vendida. O utilitarismo esquizofrênico
(valor de uso da poesia) se torna em utilitarismo capitalista (valor de troca). Mas há
sempre uma dissonância residual nestas operações de reabsorção capitalista: estes
descompassos os marxistas chamam de contradições, mas que talvez, neste trabalho
microsegmentar que nos propomos, seja melhor chamá-los de vazamentos, sempre
múltiplos, ou melhor, multidirecionais, enquanto as contradições são sempre
polarizadas, dualistas.

O que destoa, o que vaza nesta operação de venda, aparece no poema através
da diferença de medida: enquanto o poeta lida com metros, o mercado lida com quilos.
E ‘comprar aos quilos’ é uma expressão popular que significa comprar muito e sem
cuidado, no atacado, o que remete ao consumismo desenfreado e sem filtro da burguesia
em sua relação com o mercado cultural (e Leminski foi, nas décadas de 70 e 80, uma
espécie de poeta cult, muito consumido, ou pelo menos conhecido de ‘ver falar’, ao que
parece, por universitários de classe média); enquanto “vendo a metro”9 refere-se ao que
é medido, ao que se faz com cuidado, de maneira precisa e meticulosa, remetendo,
talvez, à produção poética de Leminski: micrométrica? Esta diferença se acentua
quando lembramos que as preocupações do poeta em relação a seu texto dizem respeito
ao ritmo, não só dos versos, mas quase que podemos dizer que da tradição, dos códigos,
da multiplicidade, da vida: cronomicrometragem do acaso, no dizer do plano piloto
concretista.

Metros do verso, micrométrica do acaso, medida-percepção do pulsar vital que


podem muito bem se sintetizar na palavra “metro”, principalmente se notarmos que o
título do poema é “Um metro de grito”. Já pudemos verificar o quanto o grito implica
em a-significância e mobilidade nos textos de Leminski: o poema é uma máquina de
precisão, mas seu mapeamento procede por critérios de medição absolutamente
incompatíveis com o mapeamento capitalista. O lince e o morcego medem, calculam os
riscos, perscrutam o ambiente passo a passo somente para medir de novo, correr novos
riscos. Mas o capitalista também faz isso, vivendo sempre do risco e medindo o tempo
todo os seus lances em seu jogo com o acaso. Mas ele nunca arrisca tudo, sempre há um
contrapeso, um peso, uma ponderação, um abismo gravitacional (“abismo onde me
encontro”) que reabsorve e obstrui os fluxos liberados pela descodificação promovida
pelos fluxos de capital, espécie de Urstaat que se desdobra e flui ao lado dos fluxos de

9
E “vendo”, aqui, pode se referir à produção poética (o verbo ‘vendar’ como maneira de produzir), à
perspectiva diante da poesia e do real (o verbo ‘ver’ como perspectiva) ou à maneira de relação com o
receptor/consumidor (verbo vender). Mais à frente trataremos deste triplo sentido de “vendo”.

115
dinheiro, refazendo as territorialidades que estes desfazem. Mas alguns poetas que
gostam de se transmutar em textos-morcego parecem não operar com contrapesos ou
consolidação estatística de territórios:

LÁPIDE 2
epitáfio para a alma

aqui jaz um artista


mestre em desastres

viver
com a intensidade da arte
levou-o ao infarte

deus tenha pena


dos seus disfarces10
(Leminski, 1995, p. 83).

E arriscam tudo a cada lance como o lince em seu ataque fulminante: mestre em
desastres.

Voltando à “Um metro de grito”, as divergências nos critérios de medida


indicam que, mesmo submetidos à reabsorção capitalista, os fluxos do texto poético
podem ou desejam vazar, cortar e fugir: líquidas lâminas. A palavra “vendo”, além de
uma flexão do verbo vender, pode ser também o subjuntivo de ver. Não cremos que
estamos exagerando, vendo ambigüidades onde elas não existem, pois a primeira estrofe
trata exatamente da visão, como pudemos verificar. O que constitui, para o poeta, visão
ou medição em construção-andamento (vendo), cronomicrometragem do acaso ou linha
de fuga, é medição de lucro para o fluxo de capital, intensificando, pelo duplo sentido
de “vendo”, a dissonância das duas operações: poética e mercadológica.

Mais que duplo, o sentido é triplo, pois “vendo” também é flexão do verbo
vendar. O texto oculta algo nas entrelinhas? Uma verdade mais profunda que a das leis
do mercado que se disfarça, emaranhando-se ao fluxo de capital? Parece realmente um
jogo de gato e rato entre os dois fluxos, duas descodificações, uma interferindo na outra,
tentando enganar-se mutuamente. Mas se há verdade por trás do ocultamento, esta não é

10
Ao lado do humor, há uma atmosfera trágica neste e em muitos outros poemas de Leminski. Tragédia
que não tem nada a ver com uma saudade da unidade impossível ou perdida, mas, como o humor, trata-se
de um sentido nômade do desastre. Os esquizofrênicos sofrem muito o tempo todo, talvez com mais
intensidade que os sedentários (paranóicos), mas seu sofrimento nada têm de nostalgia doentia. Nietzsche
nos fala de um niilismo construtivo ou criador, trágico à grega (de uma Grécia pré-socrática), nascido do
sofrimento intenso e criativo do homem “demasiadamente humano”. Parece que Leminski sofria desse
mal saudável.

116
dotada, nem de profundidade, nem de densidade, mas trata-se de “líquidas lâminas,
linhas paralelas”.

O texto poético, tradição em movimento/dissolvimento, é feito de linhas11,


máquinas líquidas que cortam e vazam por todos os lados, liberando fluxos
esquizofrênicos, anárquicos. Mas o capitalismo também é fluxo, fluxão de capital (pelo
menos no sentido de vender, “vendo” é um signo comum às duas linhas, a de fuga e a
da axiomática dos códigos, signo de encontro dos dois fluxos e de sua discórdia,
diferença inconciliável), ou seja, trata-se de outra máquina líquida, axiomatizada,
estatística, que procede modulando as fugas do sistema. Talvez por isto o jogo de
ocultamento (vendar): e Leminski oculta palavras (anagramas), idéias, signos-conceitos,
vivências. Mas um ocultamento estratégico, de jogo político e não de essências que
remeteria a grandes conjuntos e suas metafísicas. Não estamos falando das idéias fixas,
imutáveis e perfeitas de Platão, projetadas (ocultas) nas sombras da caverna-mundo a
ser descortinadas por alguns escolhidos (filósofos-déspotas?). Falamos de idéias que são
líquidas lâminas, que precisam ser líquidas, pois talvez seja a única maneira de uma
máquina saltar fora do controle modular do fluxo de capital sem (desejar) retornar aos
buracos negros da lei despótica, sem a nostalgia do corpo pleno do déspota e seu
Urstaat, paraíso metafísico da unidade.

Depois que o nômade se despe da ilusão da paz no Urstaat, depois que percebe
a farsa que quer fazê-lo acreditar que a pluralidade dos textos, das fábulas, oculta a
verdade profunda da permanência do mito, ele se pergunta:

Para que serve um enredo? Para onde vai uma história? Donde vêm esses
seres fluidos, essas máscaras que significam máscaras? Era uma vez. Assim seja.
Estava escrito. Amém. O mito é fundado no rito, a palavra brota do gesto, ramos de
loureiro do corpo de Dafne. A fábula já está na cerimônia, o mito celebra o rito
(Leminski, 1998, p. 27).

O mito se constitui do rito, sua perspectiva molecular que o funda, mas que é também
sua entropia. Linhas do (g)rito sempre em fuga a serem seguidas pelo nômade.
Seguindo os fluxos anárquicos das fábulas(-rito) que deveriam apenas ordenar a vida
(fábulas-mito), ele começa a perceber de outro modo, a se dizer num outro, mas este
outro não é sua completude ou sua essência:

11
No caso do poema, de linhas paralelas: “Líquidas lâminas / linhas paralelas / quanto me dão / por
minhas idéias?”. Será que este paralelismo remete à impossibilidade de encontro das duas linhas, a do
capital e a da poesia? À impossibilidade da confluência de ambas, ou melhor, da captura da segunda pela
primeira? Ou, por outro lado, as próprias “idéias líquidas paralelas” são paralelas entre si,
impossibilidades racionais? O paralelismo, a liquidez, a lâmina são, por si só perturbadores, seja pelo
desconforto mente ou ao corpo (numa perspectiva bem dualista). A união paradoxal destes desconfortos,
por si só uma impossibilidade, leva a perturbação ao máximo: são idéias desnorteantes, não domáveis,
não moduláveis às idéias burguesas e ao fluxo de capital?

117
A tudo Narciso está atento [olhos de lince?], ao sonho que faz de uma cabeça
e peitos de mulher, asas de pássaro e corpo de leão, uma esfinge e de um tronco de
cavalo e torso de homem, um centauro, o ser, esse sonho das metamorfoses.
Esta noite, nada permanece em seu ser, os seres padecem as dores do parto
das mais improváveis alterações.
Não há ser, tudo é mudança, ecos, revérberos, câmbios perpétuos.
Tudo pode se transmutar em tudo. (Leminski, 1998, p. 19).

Não lhe resta alternativas e, mesmo que restasse, ele só desejaria fazer rizoma com o
mundo, seguir linhas cada vez mais descodificadas, experimentar estados intensivos,
afirmar sua única metafísica possível, a multiplicidade:

Que mais existe senão afirmar a multiplicidade do real, a igual probabilidade dos
eventos impossíveis, a eterna troca de tudo em tudo, a única realidade absoluta? Seres
se traduzem, tudo pode ser metáfora de alguma coisa ou de coisa alguma, tudo
irremediavelmente metamorfose. (Leminski, 1998, p. 25).

Depois de montar uma máquina dessas, líquida, (des)medidora de g-ritos, feita de linhas
de intensidade prontas para vazar de qualquer controle modulado, sabendo de todos os
riscos (de reabsorção, de precipitação brusca no caos, de retomada metafísica) dos quais
nunca se safa inteiramente, nunca se sabe se realmente ganhou ou perdeu, mesmo assim
só resta ao nômade que viaja sem sair do lugar propor um novo jogo, uma nova disputa
a cada lance, máquina contra máquina, liquidez contra liquidez:

quanto me dão
por minhas idéias?

118
FRAGMENTO 5: nós

Tu1: Conforme o “Fragmento 0: Introdução”2, a Dissertação tem uma


“concepção um tanto quanto diversa de um texto acadêmico tradicional”. De fato, a
circunstância de não se dividir formalmente em capítulos, de comportar
“excertos/notas”, de incorporar textos atribuídos a autor fictício, de reproduzir, como
“Apêndice”, o projeto original da dissertação, em grande parte abandonado, de
ressaltar seu descompromisso com uma conclusão convencional — se bem que o
último, “Máquinas líquidas” tem inegável jeito conclusivo (“funciona como uma
conclusão dissertação, abordando o problema da produção poética no âmbito da
produção capitalista”, —, tudo isso é incomum. Mas nem por isso a dissertação
escapa do rigor acadêmico na formulação clara de um propósito: “uma leitura de sua
obra [de Leminski]” como “uma abordagem que se aproxima da chamada crítica pós-
estruturalista, que vê a obra literária não como um objeto textual entre outros objetos,
produzidos e a serem fruídos por sujeitos, mas como um recorte ou uma entrada numa
rede textual da qual fazem parte os sujeitos e as obras, sem falar da sociedade e de
seus respectivos regimes de produção de bens e de signos”. A proposta implica riscos,
é claro, o mais óbvio dos quais é resultar num passeio excessivamente
descomprometido pela obra do autor eleito, se bem que isso mesmo, em termos
estritamente metodológicos, seja aceitável. Assim sendo, penso que o autor deva
assumir, na versão definitiva, um tom mais incisivo na defesa da sua proposta, pois
me parece que ainda restem cautelas desnecessárias. A caracterização do trabalho,
no Resumo, como uma “precária sistematização” (grifo meu) não faz justiça ao rigor
demonstrado ao longo de toda a dissertação. Taticamente, é compreensível, mas
esbate um pouco o tom de audácia da proposta.

Eu: Os riscos da proposta se tornar um “passeio excessivamente


descomprometido” (a definição de compromisso e com o quê ou quem se deva
comprometer são pontos passíveis de discussão), talvez se relacione com o fato de o
texto se propor a ser uma espécie de tateio, ‘texto-morcego’, que se constrói, na
verdade, sem tomar as ditas teorias de apoio como referências basilares (ou
balizadoras). Assim, em relação aos rigores teóricos de um estruturalismo e mesmo da
crítica de tendência sociológica (principalmente se tomarmos estas ‘teorias’ em suas
vertentes mais cristalizadas, ‘oficializadas’), realmente a proposta pode resultar num
trabalho descomprometido. Mas tentei desenvolver outros rigores, que não os
resultantes do uso convencional de determinado método ou teoria crítica. Estes outros
rigores não implicam tanto em invenção de novos instrumentos críticos (embora, às
vezes, seja necessário), mas no uso inusitado (distorcido?) dos velhos instrumentos.

1
Este ‘tu’ refere-se a Alcmeno Bastos que fez interessantes observações, no intuito de “dialogar” com o
texto. Como diz a Estética da Recepção, a obra é a totalidade de suas leituras. Tomei, então, a liberdade
de responder a estas observações neste fragmento, tornando o diálogo parte efetiva da obra. Como os
fragmentos se propõem a ser lugares críticos e autocríticos deste trabalho, surgindo à medida que os
problemas teóricos vão aparecendo, não creio que seja uma incoerência minha em relação à proposta
inicial: “não precisamos saber pra onde vamos”.
2
Esta introdução da dissertação, feita para acalmar os espíritos acadêmicos com algumas explicações,
advertências e justificativas iniciais, eu cortei desta versão, por achar desnecessária, mas a pergunta
continua valendo.

119
As próprias noções de uso e instrumento talvez já definam este “outro uso”, pois
implicam num deslocamento das noções de teoria de apoio ou de referencial teórico,
da posição de centralidades ordenadoras para a disposição (no sentido de
disponibilidade e possibilidade) de linearidades conectáveis, ou seja, transformar os
pontos e as coordenadas (que são as teorias de apoio, as suas estruturas) em linhas
(que são os instrumentos, as máquinas, pois umas se ligam às outras ‘em linha’) com
as quais se mesclaria as desta dissertação (outra máquina). Como esta mesclagem
não segue parâmetros muito fixos (já que as centralidades se desfiam num
emaranhado de linhas), o rigor passa a ser circunstancial, quer dizer, negociado a
cada passo da exploração, a cada confluência de linhas, e as balizas são sempre
provisórias, embora devam existir, pois constituem efetivações (ou pontos provisórios,
noção que é um deslocamento do conceito de finalidade e até de estrutura) do tecido
em que se torna o texto da dissertação, além de serem distanciamentos relativos do
movimento textual (momentos de parada?) os quais se tornam lugares (auto)críticos
que possibilitam mudanças ou correções de rumo.

Quanto à ausência de um “tom mais incisivo na defesa da dissertação”, creio


que a ousadia estaria, muitas vezes, na recusa da afirmação muito incisiva. Assim,
uso muito os termos ‘talvez’, ‘precário’, ‘provisório’, além dos verbos acreditar, crer e
parecer, sem falar nos freqüentes pontos de interrogação e na própria tática de
suspender uma linha de raciocínio para refletir sobre ela. Tudo isso remete (o próprio
‘remeter’ é mais fraco que significar ou causar) à incerteza de uma proposta de
exploração tateante de uma obra. Com o perdão do paradoxo, eu diria que estas
dubiedades são utilizadas de modo incisivo, quer dizer, estão deliberadamente
espalhadas pelo texto, fazendo parte da proposta de rigor exposta acima. O exemplo
que você cita, no resumo, quando chamo meu trabalho de precária sistematização é
um caso realmente interessante. Talvez eu não tenha me expressado muito bem, mas
o termo precário não remete a um zelo excessivo ou à modéstia (pelo menos não
neste caso), mas à abertura do sistema construído que, por sua ausência de limites
definitivos e de centro (pelo menos desejada) é sempre provisório, aberto a novas
conexões que lhe darão, sem dúvida outros limites e, conseqüentemente, outras
identidades — outros pontos de subjetivação?

Mas agora percebo o que já se insinuava de forma latente para mim: que em
muitos lugares a dissertação não é ‘deliberadamente tateante’ e passa à
contundência. Isto cria uma certa dissonância de tom, uma audácia incisiva que se
contrapõe à ‘audácia do tateio e da precariedade’, de maneira que você tem razão em
apontar cuidados excessivos ao lado de riscos talvez demasiados. Mas (já construindo
uma justificativa ao trabalho que é posterior à sua tecitura), esta dissonância não seria
também um funcionamento deste rigor a que me proponho? Na ausência de
referenciais muito seguros, o texto-morcego não teria momentos (ou lugares?) de
hesitação, perscrutação, parada, reflexão e momentos de contundência, ação, fuga,
delírio?

***

120
Tu: A recusa das categorias “bem estabelecidas” e dicotomizadas — lirismo
subjetivo x antilira objetiva, por exemplo — parece-me enfraquecida pela sua
substituição por outras, como processual x sistêmico, máquina x estrutura (p. 47 –
descobrir não “o que está no fundo do poemas”, mas “descobrir como funciona”),
sistematização x sistema. A recusa das categorias “bem estabelecidas”, por julgar o
autor da dissertação não serem elas satisfatórias para dar conta da poesia de
Leminski, não representa, em última instância, sua negação definitiva, mas ainda
assim uma avaliação neutra talvez conclua haver-se tratado de uma simples “troca de
guarda”.

Eu: A construção de categorias duais talvez seja uma imposição da cultura


ocidental da qual não se foge facilmente: nossa mente funciona, ao que parece, por
simetria. Em certa passagem do Mil Platôs3, Deleuze e Guatarri dizem da
impossibilidade de se fugir dos dualismos e da necessidade de se construir
biarticulações em fuga das que já se cristalizaram. Problema de mesma natureza
aborda Leminski em seu Metaformose, quando afirma a proliferação das fábulas sobre
o cadáver das fábulas mortas. As próprias fábulas são, ao mesmo tempo,
explicadoras, ordenadoras do real; e entrópicas, desarticuladoras de suas próprias
construções. Quero dizer, com tudo isto, que as fugas dos sistemas devem, e só
podem ser feitas com elementos e procedimentos destes mesmos sistemas. Assim, a
questão não é a da troca de um dualismo por outro, pois é quase inevitável a
construção de outras biarticulações, como afirmo no corpo deste trabalho:

Em todo caso, a dicotomia material/simbólico, base/ideologia (corpo/alma?)


é uma presença efetiva que sempre se encontra ‘por trás’ ou na base do exercício
crítico (talvez de todo pensamento ocidental), cerceando-o. Nossa pretensão é saltar
para fora (mais uma fuga?) desta dualidade, o que não é fácil, mas que talvez seja
necessário, mesmo que para isso construamos outras dualidades.

De fato, outros dualismos são construídos. A questão é se estes dualismos proliferam


em regime arbóreo ou rizomático, como em muitos exercícios poéticos, nos quais os
paralelismos e as redundâncias parecem construir suas próprias leis à medida que vão
se desenvolvendo, não seguindo nenhuma “gramática” prévia e tomando o erro e o
desvio como aliados: digamos que se tratam de dualismos mutantes e proliferantes.

A própria oposição (dual) entre arbóreo e rizomático é muito mais processual


e instrumental que sistêmica e essencial (mais dois dualismos). E o processual e o
instrumental são polaridades que permitem o movimento e a entropia dos sistemas, ou
seja, são fugas de seus limites: são os pólos de algumas dicotomias deliberadamente
construídas no e do interior dos sistemas justamente para colocarem em jogo o Ser do
sistema — assim também as dicotomias sistema x sistematização e sujeito x
subjetivação.
3
Vou tomar a liberdade de não citar a página, referindo-me à passagem de memória: estou ciente dos
riscos de infidelidade deste procedimento. Mas, neste ponto do trabalho, esta questão de fidelidade talvez
não seja tão urgente assim. Por acaso, qualquer citação, pelo recorte, sempre um tanto arbitrário, de seu
contexto, já não seria uma infidelidade?

121
A questão passa a ser, então, se estas categorias duais cumprem a sua
função de ultrapassar as que se limitam ao interior de certo sistema já bem codificado.
E, mais ainda, se elas são úteis para nós, isto é, se conseguem resolver
provisoriamente alguns problemas que nos afligem, sejam eles teóricos ou de vida
(outra dualidade?), pois a simples ultrapassagem de um sistema talvez caia no
problema do novo pelo novo, do jogo pelo jogo: uma gratuidade perigosamente
próxima ao movimento das modas consumidas avidamente pela burguesia: o jogo
puramente gratuito, por mais longe que vá, ainda é um lugar no sistema, facilmente
absorvido pelo fluxo de capital e sua capacidade, quase ilimitada, de criar nichos
(lugares) para todos os ‘gostos’. Uma falsa gratuidade, portanto, pois
instrumentalizada pelo capital.

A oposição entre máquina e estrutura, por exemplo, coloca tanto a


subjetividade do sujeito quanto a objetividade da estrutura, normalmente em oposição
essencial, na mesma situação de metafísicas do ser. O conceito de máquina relativiza
a oposição entre subjetividade e objeto, não pela síntese (o que tornaria o conceito de
máquina em apenas mais um nó, um pouco mais, acima numa hierarquia arbórea),
mas evidenciando e questionando o fato de ambas remeterem, à sua maneira, à
essencialidade, objetiva ou subjetiva, do ser. Esta característica comum da
essencialidade é que dá a possibilidade de síntese (um nó superior) entre sujeito e
objeto: a junção miraculosa de suas essências contrárias e complementares. Ao
colocar tanto o sujeito quanto a estrutura na posição de estrutura, identificando-a com
uma espécie de metafísica, dotada, conseqüentemente, da possibilidade da
transcendência, ocorre uma crítica à estática sistêmica de ambos os termos da
polaridade sujeito-estrutura, possibilitando uma fuga de seus limites, que se dá pela
nova polaridade, máquina x estrutura, cujo primeiro termo se torna em linha de fuga da
estática sistêmica do segundo (a estrutura, que engloba sujeito e objeto). Esta
oposição se faz de modo não essencial (o que é questionado aí é a própria
possibilidade da essencialidade), mas simplesmente funcional — par também
complicado.

Do conceito de máquina, por exemplo, podemos passar ao de processo,


funcionamento e sistematização, mas não se trata de uma derivação hierárquica, de
modo que, partindo de qualquer um destes conceitos, pode-se chegar ao de máquina.
Também não se trata de um universo conceitual fechado, do qual não se pode sair
(outros conceitos podem proliferar aí), o que constituiria um sistema cujo rompimento
dos limites levaria à sua morte — perda de identidade. Este procedimento maquinal
procura evitar o fechamento e a identidade (essência do ser) buscando uma espécie
de sistematização em abertura constante, o “fora absoluto” de Deleuze e Guatarri, ou
a supersuperfície de Leminski: ausência de dentro, ausência de profundidade; “morrer
de vez em quando é a única coisa que me acalma”.

***

122
Tu: O trabalho, no todo, cumpre o prometido, no que diz respeito ao
acompanhamento da obra (os poemas de Leminski) em seu funcionamento, como
processo, e não em sua expressividade ou em sua estruturalidade. Cabe, no entanto,
uma pergunta: tal procedimento não depende por demais das habilidades do analista,
ele mesmo potencialmente criador? Todas as descobertas feitas no texto de Leminski,
sobretudo no que diz respeito ao plano fônico estariam ao alcance de um outro
analista não dotado da propensão a construir seu texto crítico de modo análogo ao do
poeta? Na p. 42, por exemplo, haveria um lamento do analista ao constatar que
Leminski, às vezes (felizmente?), “é claro demais e frustra o decifrador que procura o
fundo, o por trás do texto”? É um método, sim, buscado no desconstrucionismo pós-
estruturalista (a propósito, por que nenhuma referência a Derrida e sua escritura?),
mas confesso temer que o trabalho analítico repouse em demasia na sedução que o
desempenho do analista possa suscitar.

Eu: Creio que esta questão passa, novamente, pelo problema do rigor teórico
ou, pelo menos, do rigor dos procedimentos críticos, já que a sedução poderia
acobertar (embora não necessariamente) uma falta de consistência metodológica,
levando o leitor mais ao deleite que à reflexão. É um problema que envolve o prazer
que o texto crítico deve ou não proporcionar. Assim, admite-se normalmente que o
texto proporcione prazer, desde que, primariamente, ele leve à reflexão, o que só é
possível com um mínimo de rigor teórico. O analista, como sedutor, tomaria o lugar do
poeta, cuja sedução é concedida (quase que exigida) pela sociedade, que o aproxima
do princípio do prazer: os deuses do poeta são Dionísio, Afrodite e Orfeu. Ao crítico
restaria o princípio da realidade ou, em termos nietzschianos, a tendência apolínea:
Apolo, Atenas, Hermes. Como não sou freudiano e não acredito em sublimação, gosto
de me perguntar sempre se o prazer ou, em termos mais amplos, o desejo, não estaria
presente, inclusive numa crítica mais apolínea, supostamente mais racional
(sublimadora) e menos sedutora que a tendência dionisíaca, embriagadora (sedutora)
dos leitores, obstruindo-lhes a reflexão.

Em outros termos, não seriam as críticas sociológica e estruturalista, por


exemplo, tão sedutoras quanto a que me proponho? Tomemos um exemplo concreto:
Antonio Cândido e sua Formação da Literatura Brasileira. Trata-se de uma obra
sedutora, sem dúvida, mas pode-se argumentar que, ali, o rigor e a lucidez crítica se
sobrepõe à expansão do desejo, reduzida a um ‘belo estilo’, competência de sedução
apenas complementar à principal, que seria a competência analítica, racional. Mas
esta mesma lucidez crítica, a ponderação e o rigor analíticos, o não extremismo no
julgamento e a elegância da linguagem, não seriam elementos sedutores? Não seriam
funcionamentos da máquina desejante que é esta obra? Tudo bem que, no caso, trata-
se mais de um desejo de centro e ordem (a literatura como sistema), ou seja, de
estrutura, do que uma expansão rizomática do desejo: as linhas de análise de Candido
tendem a confluir num único ponto. Ele é um crítico bastante reservado em sua
atividade, mas esta reserva não seria uma prática de sedução, uma espécie de
charme?

123
Quanto às potencialidades do analista como criador, estas podem também
estar presentes numa crítica como a de Cândido, Schwarz e Bosi, para continuarmos
a exemplificação com a mesma linha crítica: a de tendência sociológica. Roberto
Schwarz não se torna um criador (ou re-criador?), quase tão bom quanto Machado,
em Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo, a despeito da
inegável e assumida filiação ao método sociológico? Tenho estes três, e isto não deixa
de ser um elogio, na conta de excelentes ficcionistas.

O que talvez devamos nos perguntar é sobre o tipo de sedução que um


determinado trabalho crítico desempenha: que desejos ele movimenta? em que
regime? quais os seus rigores? que tipo de ficção ele produz (cria)? Vou tentar
responder estas questões de forma sucinta e grosseiramente objetiva, pois creio que o
seu desenvolvimento já se faz neste excerto ou o foi no restante do trabalho: esta
dissertação tenta movimentar um desejo de descentramento e fuga constantes; o
regime deste movimento quer-se rizomático ou processual; o rigor procura ser
estético, construído circunstancialmente, à medida que se processa a crítica (rigor em
fuga); o universo ficcional que se quer criar é o de um sistema aberto, que se aproxima
mais da sistematização, da subjetivação e da estruturação (substantivos em ação ou
verbificados) do que da essencialidade implicada no sistema, no sujeito e na estrutura.

A partir desta opção, outra pergunta nos surge: até que ponto uma crítica com
estas características rompe o limite entre texto crítico e texto literário? Pois, a despeito
da ficcionalidade da crítica sociológica, este limite é claramente mantido, pois o
universo crítico, em relação ao literário, é construído, aí, de modo oposto nos
procedimentos e complementar na sua finalidade de mediação e esclarecimento da
leitura.

Talvez a alternativa mais coerente com minha opção seja a de Barthes e seu
conceito de escritura, ou ainda, a multiplicidade de Deleuze e Guatarri. O que implica
no rompimento, tanto com a categoria de literatura quanto com a de crítica, restando,
agora, somente a multiplicidade textual, a textualidade, ou ainda, a escritura
barthesiana. Nesta perspectiva você tem razão em questionar se “tal procedimento
não depende por demais das habilidades do analista, ele mesmo potencialmente
criador?” Mas também poderíamos perguntar aos poetas e prosadores que optam pelo
rompimento dos limites entre crítica e literatura (e desde Mallarmé e Valéry esta
questão pode ser posta de forma contundente), se sua atividade criadora não entra
demais no campo da crítica, dependendo de competências tradicionalmente deixadas
aos críticos: rigor reflexivo, capacidade analítica, construção e justificação de juízos.
Na verdade, a multiplicidade textual abole ou torna muito fluido o limite entre crítica e
literatura, o que resulta na ineficácia destes conceitos para quem (criadores ou
críticos: ambos agora produtores textuais ou, no dizer de Barthes, escritores) opta pela
produção na/da multiplicidade: e creio que Leminski esteja entre eles.

Assim posta a questão, acredito que o seu temor de “que o trabalho analítico
repouse em demasia na sedução que o desempenho do analista possa suscitar”, seja
justificado, pois remete ao temor sobre a ausência de necessidade (perda de função)

124
da crítica que, sem dúvida, é questionada pelas teorias ditas pós-estruturalistas e por
esta dissertação — na verdade, minada pelo rompimento de seus limites com a
criação literária. A sedução que o texto crítico e o texto literário exercem não se
diferencia substancialmente, o que aproxima (perigosamente, para um e para outro,
enquanto gêneros textuais) a ficcionalidade de ambos. É uma opção que escolhi e
aceito os seus riscos, mesmo que estes impliquem numa dissolução da atividade
crítica como a entendemos normalmente. E sem saber aonde levará esta dissolução.

***

Tu: Outro ponto merecedor de atenção é o empenho do autor da dissertação


em fazer do seu trabalho também uma fuga dos dualismos convencionais. Como
exemplo, a contínua identificação dos traços “recorrentes” da poesia de Leminski. O
termo é menos rígido que “características”, sem dúvida, mas é de novo o caso de se
perguntar se não se trata da mesma coisa com outro rótulo. O mais apressado dos
leitores logo percebe a recorrência de alguns desses traços recorrentes (se me
relevam o pleonasmo): os anagramas, a liberdade sintática, a brevidade exemplar, a
ironia etc. Não será purismo de parte do autor da dissertação contornar a
categorização usual e deixar que tais traços sejam evidenciados aqui e ali, como se a
cada ocorrência se tratasse de algo absolutamente novo? Em determinados
momentos, o tom quase dubitativo expressa esse temor de que também a dissertação
incorra no pecado das categorizações “bem estabelecidas”.

Eu: A respeito do termo ‘traços recorrentes’, eu o prefiro a ‘características’,


porque, em Leminski, a repetição não parece resultar numa totalidade coerente, que
aspira ao fechamento sistêmico e à identidade, conceitos com os quais a palavra
‘características’ está por demais comprometida. Traços recorrentes, por sua vez,
abarca bem a idéia de repetição processual (ou até mesmo ritual), que pode implicar
numa busca da identidade — e aí se avizinha do sentido de ‘características’. Mas esta
repetição, como performance (ação), é também um convite ao desvio, de onde brota a
diferença, o erro, tão prezados por Leminski. É claro que o erro poderia ser apontado
como uma fuga deliberada das características, mas o termo traços recorrentes,
parece-me, liga-se melhor à dinâmica da poesia de Leminski.

Pelo que eu disse acima, realmente pode haver um pouco de purismo na


escolha dos termos, mas é sempre melhor encontrar ou construir um conceito que se
conecta melhor às máquinas com que se lida. De certa forma, este procedimento faz
parte do rigor do texto-morcego ou texto-rizoma, de sua exigência de precisão, sempre
em expansão: mais que desejo de precisão, trata-se de uma precisão desejante.

É verdade que, na dissertação, são raros os momentos de parada crítica para


sintetizar os traços recorrentes ou características da obra de Leminski, o que pode dar
a impressão de que estes traços são “evidenciados aqui e ali, como se a cada
ocorrência se tratasse de algo absolutamente novo”. Neste aspecto, assumo, na
dissertação, uma posição radical de tentar evitar ao máximo a sistematização, seja da
obra de Leminski, seja de meu próprio trabalho. Talvez sejam cuidados de iniciante
125
neste tipo de texto que se pretende enredar na multiplicidade: os excessos das
rupturas iniciais? Por outro lado, talvez seja, novamente, uma busca da melhor
maneira de se conectar à obra de Leminski que, sobre a camada de recorrências,
provoca sempre uma dissonância, uma variação repentina, procurando escapar dos
limites que as repetições pareciam querer impor. Invariância última de seus textos: a
variância inusitada. Não se trata, portanto, da predominância de um universal (e as
características remetem à unidade e à universalidade), mas do diferencial que foge à
gramática (prévia ou posterior) das características. Obras assim podem ser
apreendidas com textos críticos que buscam a estrutura (e as características são seus
pontos de apoio) da obra e que são, eles mesmos, bem estruturados — no sentido de
terem pontos de apoios, características, quase chego a dizer caráter, identidade.

Mas não seria mais fecundo um procedimento que desfizesse os pontos de


apoio em linhas a serem seguidas, a despeito do possível desnorteio que possa
causar no leitor? Mais fecundo ainda porque a obra de Leminski oferece-nos linhas a
seguir em sua recusa ao fechamento. Assim, poderíamos descrever as características
de sua obra e a leríamos como uma estrutura (talvez um tanto maquinal), mas ao lado
(ou em vez) desta produção totalizante, talvez seja interessante acompanhar (não
cronologicamente, mas quase que topologicamente) suas linhas de invariância e de
variação, as possibilidades de conexão e de emaranhamento em sua maquinaria
textual, lendo-a (produzindo-a) como rizoma. É claro que este procedimento exige um
texto crítico(?) também em fuga, não estruturado, pronto para novas conexões, outros
usos, apesar de seus ‘traços recorrentes’. Novamente, é uma opção que tomei em
favor de um texto-rizoma que foge, inclusive, de si mesmo. Sei dos riscos da
empreitada, de não consegui-lo na medida certa: ou não saindo de uma
estruturalidade disfarçada, ou saindo dela em demasia, espraiando-se no caos.
Apesar de nunca se saber com certeza qual é esta ‘medida certa’ (de resto, nunca
ideal, mas permanentemente circunstancial), ela estará sempre em negociação.

***

Tu: Na página 10 — simples exemplo —, diz-se que “‘verde’ contém ‘ver’ e


‘rede’ se invertermos as sílabas” (grifo meu — caso de “ocultação de palavras dentro
de outras, multiplicando o sentido do texto” — p. 8), do mesmo modo que na p. 43 diz-
se que “A palavra ‘falto’ (assim como ‘salto’) que se opõe a ‘encontro’ contém (de
novo, grifo meu) alto, que se opõe a abismo etc.”. Não é hipertrofiar o plano
morfológico, já que do ponto de vista semântico não há qualquer proximidade entre os
conjuntos de palavras (‘falto’, ‘salto’, ‘alto’; ‘verde’, ‘ver’, ‘rede’), mesmo admitindo-se o
princípio da projeção do nível paradigmático sobre o sintagmático (e aqui, também de
passagem, estranho não ser feita nenhuma menção a Greimas)? Pode-se defender a
idéia de que essas associações são previsíveis e intencionais, mas penso que permite
ao analista certa facilitação, a despeito da inegável competência demonstrada.

Eu: Minha insistência em explorar os anagramas decorre da recorrência deles


na obra de Leminski — digamos, cedendo a seu apelo, que seja uma característica
procedimental do poeta. E o anagrama trabalha, realmente, em disfunção com a

126
semântica: o seu efeito é de multiplicação do sentido, como a metáfora e a metonímia.
Só que, ao contrário destas figuras, a polissemia não decorre da construção de uma
proximidade semântica, mas de uma casualidade morfológica. Quase poderíamos
dizer que a insistência no anagrama desvela uma propensão trocadilhesca na poesia
de Leminski.

É aí que este pode ser visto como um poeta falho (assim como a crítica que
se contenta em evidenciar estes aspectos anagramáticos), pois este procedimento não
parte da desconstrução de uma sintaxe (no sentido de construção codificada) normal
para a reconstrução de outra, não usual — como a metáfora e a metonímia o fazem. O
anagrama faz, sem dúvida, proliferar os sentidos, mas de maneira um tanto casual,
sem construir outra sintaxe, mesmo que muito tênue, no lugar da usual. E aí, o poeta
cai no risco da gratuidade pura, aproximando-se dos dadaístas: entropia máxima da
linguagem. Mas esta recusa em não construir outra ordem não seria um risco coerente
com a proposta de poesia, entrópica, de Leminski? Assim, as casualidades fônicas e
morfológicas são muito exploradas em sua obra (traços recorrentes, característica,
invariância), mas a gratuidade destes procedimentos resulta, às vezes, em
aproximações imprevisíveis (desvio, variância), quase que grotescas, pela ausência de
sintaxe ordenadora: realmente há, aqui, uma certa facilitação, tanto ao poeta, quanto
ao analista que irá percorrer estas linhas a-sintáticas.

Já que você tocou no assunto, realmente, podemos afirmar que a


aproximação inusitada de signos ocorre pela projeção do eixo paradigmático sobre o
sintagmático. Assim como os termos que rimam, originariamente, não possam ter
nada em comum, a proximidade sonora e a situação (contexto poético) em que ocorre
a rima podem aproximar semanticamente os termos: é o caso de ‘salto’ e ‘falto’ que
rimam, e ‘alto’ que casualmente está contido em ambas. A partir desta semelhança
casual nos planos fonético (rima) e morfológico (anagrama), constrói-se uma
proximidade semântica também casual, que remete à ausência de gravidade (leis,
normas) e tendência de fuga da subjetividade codificada. A metáfora poderia até
aproximar termos tão díspares semanticamente, mas sempre construindo alguma
mediação (também semântica e não somente fonética ou morfológica) entre eles. Esta
aproximação gratuita sempre foi de uso corrente na poesia, embora sua função seja,
na maior parte dos casos, acessória e até mesmo embelezadora.

Em Leminski há uma hipertrofia destas gratuidades e, tentando percorrê-las,


talvez meu trabalho também as tenha hipertrofiado — e simplesmente percorrer os
procedimentos implica, realmente, em facilitação. É necessário, também, percorrer a
função dos procedimentos e creio que a função desta hipertrofia fonética e morfológica
(em conexão um tanto arbitrária com o plano semântico) seja a fuga das
profundidades que as figuras que trabalham no plano semântico tradicionalmente
evocam (embora elas também possam ser utilizadas de outra maneira). Esta
gratuidade de Leminski talvez seja parte de uma estratégia poética (não
necessariamente consciente em todos os seus meandros) de construção de um lirismo
de supersuperfície, que escapa das tradicionais densidades e profundezas literárias;
lirismo trocadillhesco, (de) moleque:

127
(por q tanta literatura ?

é preciso ser moleque


ser bem relaxado com o rigor
...........
q tal
...........
barbarizar
barbarbarizar
barbarbarbarizar !!!!!!!!
(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 78).

***

Tu: Parece-me insatisfatoriamente resolvida a questão de encontrar um lugar


contextual para Leminski. Sua divisão entre o rigor dos concretistas (poesia de
estruturação) e o relaxo da poesia de expressão talvez seja singelamente resolvida
com a noção de sincretismo — quem sabe, um Augusto dos Anjos dos anos 60/80?
Até porque o autor da dissertação reconhece que as duas poéticas “reivindicam para
si a liberdade e, de fato, ambas a têm, em seus termos” (p. 65), o que neutraliza a
oposição e permite que um poeta navegue nas “duas águas” – proposta instigante,
creio: aproximar Leminski de Cabral. A dissertação parece recusar tal possibilidade (p.
67), mas gostaria de ser convencido disso. Não creio também que fechar a poesia de
Leminski nos “códigos de apreensão modernistas” (p. 33) signifique, “fatalmente”, vê-lo
como um “poeta falho, cheio de trocadilhos e cacoetes, incapaz de engendrar poemas
longos ou investir em metáforas densas e profundas” (p. 33). Por que não ler os
“códigos de apreensão modernistas” em sua potencialidade de negação do seu
sentido manifesto?

Eu: Tanto a poesia de expressão, quanto a de estruturação, ou pelo menos a


teorização destas vertentes, implicam numa espécie de essencialidade que lhe impõe
leis e limites, e que é a medida dos rigores de cada uma: no caso da expressão, a
essência se constitui no sujeito; no caso da estruturação é a estrutura. Na verdade,
uma é contrária à outra, mas não são absolutamente excludentes. Diria até que são
complementares e que transitar pelas ‘duas águas’ seria, não só possível, mas, sem
dúvida, uma jogada de mestre, digna de Cabral e Drummond: pode-se argumentar que
ambos conseguiram tal façanha.

O problema é que, se leio Leminski fazendo-o transitar por estas ‘duas


águas’, pode parecer que sua poesia permanece no limite das essencialidades, sejam
elas estruturais ou subjetivas, por mais original que seja a mesclagem destas
essências. E me parece muito claro a sua intenção (creio que cumprida, em grande
parte) de fuga, tanto da expressão subjetiva quanto da estruturalidade poética,
justamente por estas modalidades do exercício poético lhe parecerem comprometidas
em excesso com o Ideal e o Metafísico, ou seja, com as essências universais:

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o classicismo implícito na coisa concreta q leva a eliminar o presente, as menções
explícitas ao atual, ao circunstancial, ao efêmero... uma poesia que já nasceu
universal, geral, genérica, nasceu morta... (Leminski e Bonvicino, 1999, p 117).

Destesto a poesia dita profunda. Estou cagando e andando para a psicologia.


(Leminski e Bonvicino, 1999, p. 194).

Procurei ler o poema “Ais ou menos” como a realização poética de uma fuga
das profundezas, no caso, do sujeito. Assim o “abismo onde me encontro”, tem toda
uma conotação de profundidade subjetiva que aprisiona os fluxos do desejo, com suas
leis (rigores), sua moral subjetiva (burguesa?), análogas à lei gravitacional que forma e
aprisiona a pedra. O esfalfamento da pedra e sua passagem à estrela implicam na
libertação dos rigores do sujeito, da poesia de expressão: é o “salto ao hiato onde me
falto”. Assim também em outros poemas, onde procurei ler uma fuga da
estruturalidade poética.

Não quero dizer que Leminski não se utilize dos procedimentos, tanto da
poesia da expressão quanto da estruturação. Na verdade, é do interior dos conflitos e
confluências de ambas que ele parte ou, em outros termos, é do interior deste
sistemas e de suas possibilidades que ele constrói sua poesia, utilizando-se dos
recursos de ambas. Assim, seria bem possível resolver o problema com o conceito de
sincretismo, ainda mais que esta noção costuma resultar em dissolução das oposições
rigidamente sistematizadas, criando, não raro, outros ambientes sistêmicos, talvez
mais abertos. Por outro lado, o procedimento sincrético parece deixar intactas as
ortodoxias da qual se separou, no sentido em que não há uma recusa a estas
ortodoxias, havendo, inclusive, uma convivência cordial com elas. O que não parece
ser o caso dos textos poéticos de Leminski que, apesar de partirem do sistema bipolar
poesia de expressão x poesia de estruturação e até utilizando-se de seus
procedimentos, não convivem bem nem com uma nem com outra, já que há, neles,
uma dupla recusa ao que existe de fundamental em ambos os pólos: a subjetividade
profunda e a estruturalidade universal. Mesmo que o sujeito se fragmente e a estrutura
esteja em permanente construção, podemos sempre desconfiar que, no horizonte, há
um sujeito ou uma estrutura ideais que “a poesia dita profunda” e “o classicismo
implícito na coisa concreta” desejam alcançar: platonismo, a perfeição que falta.

Os procedimentos poéticos de Leminski vão, desde sua obsessão pelos jogos


sonoros e anagramáticos, até a sua propensão para enlouquecer a lógica da (e com a)
linguagem: dança louca dos sons, dança louca das idéias. Parece-me que estes
enlouquecimentos todos da linguagem, ao lado da recusa de qualquer temática
universal (embora lide o tempo todo com a tradição ocidental) e da maneira não
essencialista de tratar os afetos, procuram realizar uma fuga das permanências,
mesmo as que se possam vislumbrar como horizontes perdidos (nostalgias) ou a
encontrar (utopias). Assim, o rigor concretista está presente, não para estruturar a
obra ou o mundo, mas para efeito de precisão circunstancial, de mapeamento em
meio à multiplicidade. Também os afetos são uma presença em sua obra, mas não
são expressões de um sujeito (individual ou coletivo) que chora ou ri, sofre ou se

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alegra, sente prazer ou dor, consistindo apenas em linhas de vida, abstratas mas
particulares, mescladas às dos poemas, como procurei mostrar (seguir).

Por tudo isto, prefiro referir-me à poética de Leminski como uma maquinaria
que escapa à estrutura e ao sujeito (ambos podem ser conceituados como estrutura,
como procurei mostrar anteriormente), ou como uma poesia verbificada, processual,
que foge à substantivação e suas substâncias que, mesmo fragmentárias, aspiram à
unidade e à permanência. Talvez sincretismo dê conta de todas estas fugas e
dissoluções, mas tenho a impressão de que implica muito mais em uma convivência
pacífica com as oposições que numa fuga entrópica e alucinada das codificações.
Fuga que faz vazar os sistemas, junto com suas lutas internas e suas possibilidades
de confluência.

Quanto ao modernismo, você tem razão: o que tento fazer é apenas levá-lo
cada vez mais longe em suas possibilidades críticas e autocríticas. Quando falo dos
códigos de apreensão modernistas e de sua incapacidade para ‘apreender’ Leminski,
refiro-me à sua cristalização canônica, à sua institucionalização que os engessa para
transformá-los em moldes críticos, que já trazem pré-codificadas as categorias, os
métodos de análise e até os juízos de valor. Assim como não creio em pós-
modernidade (no sentido de cultura) nem em pós-capitalismo (no sentido de regime
de produção), não creio também num pós-modernismo artístico. O modernismo e
parte do pensamento moderno (o marxismo entre eles) surgiram no seio do socius
capitalista e constituem os meios mais eficazes de sua crítica: talvez consistam na
única alternativa a ele, não utópica, mas entrópica, de fuga.

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