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Literatura Feminina Portuguesa

Análise do poema “Corpo” de Sophia de Mello Breyner Andresen

Corpo1

Corpo serenamente construído Cuerpo serenamente construido


Para uma vida que depois se perde Para una vida que después se pierde
Em fúria e em desencontro vivido En furia y en desencuentro vivido
Contra a pureza inteira dos teus ombros. Contra la entera pureza de tus hombros.

Pudesse eu reter-te no espelho Si pudiese retenerte en el espejo


Ausente e mudo a todo outro convívio Ausente y mudo a cualquier otro contacto.
Reter o claro nó dos teus joelhos Retener el claro nudo de tus rodillas
Que vão rasgando o vidro dos espelhos. Que van rasgando el vidrio de los espejos.

Pudesse eu reter-te nessas tardes Si yo pudiese retenerte en esas tardes


Que desenhavam a linha dos teus Que dibujaban la línea de tus
flancos lados
Rodeados pelo ar agradecido. Rodeados por el aire agradecido.

Corpo brilhante de nudez intensa Cuerpo brillante de desnudez intensa


Por sucessivas ondas construído Por sucesivas oleadas construído
Em colunas assente como um templo. En columnas asentado como un templo.

Escolhi para minha análise o poema “Corpo” de Sophia de Mello Breyner Andresen. Eu não
conhecia nenhuma das duas autoras, mas o poema chamou minha atenção por seu título.
Logo depois da primeira leitura, fiquei com mais curiosidade. Ao ler as primeiras estrofes, eu
pensei que o eu lírico estava falando de seu próprio corpo, mas quando cheguei à terceira
estrofe, duvidei. Fala realmente de seu próprio corpo ou está falando de alguém mais? Essa
dúvida pequena, mas importante, incitou-me a querer analisar o poema para tentar
esclarecer quem e para quem se fala nesses versos.

O sentimento predominante do poema é a nostalgia. É possível identificá-lo pelas palavras


como “ausente”, “mudo”, “desencontro” ou a imagem do espelho quebrado. Também está
presente em versos inteiros, por exemplo: “[...] Para uma vida que depois se perde / em
fúria e desencontro vivido [...]” e nas ideias de lembrança e o efêmero evocadas pela
condicionalidade: “Pudesse eu [...]”.

Essa mesma ideia de efemeridade identificada no uso de condicional pode se reconhecer


em outras imagens, como os ‘ombros puros’. Os ombros são o lugar do corpo onde se
sente mais a “carga” da vida adulta, a acumulação de responsabilidades endurece os
ombros e faz-os tensos. O uso do adjetivo ‘puros’ refere-se à juventude, enquanto se usa
essa palavra para contrariar a fúria e o desencontro que refere-se à idade adulta. Em
relação a essa saudade da infância que se apresenta na primeira estrofe, a imagem do
corpo ‘serenamente’ construído poderia aludir aos 9 meses de gravidez em que se gesta a
criança.

1
BREYNER ANDRESEN, Sophia de Mello. Coral e outros poemas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.
1
Lara Pettignano
Literatura Feminina Portuguesa

Encontramos também nessa estrofe a figura de cavalgamento entre o segundo e o terceiro


verso: “Para uma vida que depois se perde / Em fúria e em desencontro vivido”. O uso
dessa figura incita pensar em duas coisas. Por um lado, no fato de que a vida se perde pela
inevitabilidade da morte; mas por outro lado, tendo em conta o terceiro verso, refere-se
também ao tempo perdido ou não aproveitado para ser feliz.

Na segunda estrofe, as referências à infância continuam com as imagens dos joelhos, que
ainda não são marcados pelas quedas que acontecem ao longo da vida, escurecendo-os. O
espelho rasgado poderia significar que fala de sua própria infância indo embora, mas
também poderia estar falando de algum filho que está crescendo e afastando-se de seus
pais.

Já na terceira estrofe se evoca uma lembrança que convida a pensar que o eu lírico não
fala de si mesmo. A imagem que se descreve só pode ser uma lembrança de alguém mais,
já que não é possível uma pessoa ver-se as costas se não é através de um espelho.

A última estrofe muda essa primeira impressão de efemeridade que trazem as estrofes
anteriores. Pelo contrário, as palavras e imagens que evoca dão sensação de constância,
durabilidade e repetição, que também se acentua com a aliteração dos sonidos s/z. O
primeiro verso poderia estar fazendo referência ao nascimento: a nudez intensa, total, com
a que a pessoa vem ao mundo. O segundo verso refere-se ao crescimento, as sucessivas
ondas, os anos vividos ou as batidas que a vida tem dado a ela. O terceiro e último verso da
estrofe fecha o poema apontando de novo à serenidade e a constância a que refere-se o
primeiro verso, fazendo da leitura do poema uma leitura circular.

Enquanto à estrutura formal, na última estrofe se reduz a quantidade de versos. Se as


primeiras três tinham quatro versos cada uma, a última fecha com três, número associado,
no cristianismo, à criação e a divindade e, na filosofia, à divisão temporal em passado,
presente e futuro. A métrica dos versos é irregular, variando entre 10 e 13 sílabas. Apesar
de ter palavras com terminações semelhantes, não tem presença de rima nas estrofes.

O final do poema alude ao mar, um tema recorrente na obra poética de Sophia de Mello
Breyner Andresen. Neste caso, a imagem do mar, referida pela desnudez e as ondas, tem
ligação com a memória.

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Lara Pettignano

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