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No Arcadismo, deve-se lembrar dos nomes de Bocage, em É notável em tal soneto outra influência de Petrarca, que é a
Portugal, e Cláudio Manuel da Costa, no Brasil. Já no presença do neoplatonismo. No entanto, Camões
Romantismo, é vasta a lista dos literatos que se inspirarão no reinterpreta-o de sua própria maneira, o que permite
seu modelo, principalmente na teoria de que o amor é um identificar o que se chama da neoplatonismo camoniano.
sentimento que não pode ser devassado pela razão, como se Para perceber esse aspecto de forma mais nítida, analisemos
percebe tão bem no célebre soneto “Amor é fogo que arde o soneto a seguir.
sem se ver”.
Alma minha gentil, que te partiste
Aliás, essa forma poemática, consagrada pelo grande poeta tão cedo desta vida descontente,
português, tornou-se muito comum no Parnasianismo e no repousa lá no Céu eternamente,
Simbolismo, sendo mais para frente usada no Pré- e viva eu cá na terra sempre triste.
Modernismo, nas mãos de Augusto dos Anjos. Por fim, o
Modernismo, que ingenuamente é caracterizado como escola Se lá no assento etéreo, onde subiste,
que rejeita o passado, a tradição, também tem se inspirado memória desta vida se consente,
em Camões. É o caso de Vinicius de Moraes). não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
Essa forma poemática é bastante antiga e pode ser definida
como qualquer poema constituído por 14 versos. No entanto, E se vires que pode merecer-te
a configuração consagrada por Camões em nossa língua foi algua cousa a dor que me ficou
criada pelo renascentista italiano Francesco Petrarca e se da mágoa, sem remédio, de perder-te,
constitui de 14 versos decassílabos distribuídos em dois
quartetos e dois tercetos. roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver te,
No entanto, a força petrarquiana (deve-se lembrar de que, se quão cedo de meus olhos te levou.
Camões é influenciado por Petrarca, isso de maneira alguma
indica uma inferioridade daquele em relação a este. Muito
pelo contrário, há momentos em que o poeta português Esse texto trabalha com oposições entre “lá” e “cá”, “Céu” e
chega a superar o italiano, até mesmo quanto parafraseia os “terra”, “repousa (…) eternamente” e “viva (…) sempre triste”,
poemas deste, como é o caso do célebre “Alma minha gentil, que podem ser interpretadas como uma antinomia entre
que te partiste”) não se manifesta apenas nesse aspecto feminino e masculino: à amada cabem os primeiros termos;
formal. No campo temático tal também irá se realizar, como ao eu lírico, os segundos. Mas pode ser vista também uma
podemos perceber no texto abaixo: oposição entre céu/espírito (ela), com características
positivas, e terra/carne (ele), com características negativas.
Sonetos de Luís de Camões
Transforma-se o amador na cousa amada, Esse é o contraste básico do neoplatonismo, de acordo com
por virtude do muito imaginar; o qual a matéria, a carne, o corpóreo, é inferior ao ideal, ao
não tenho, logo, mais que desejar, espiritual. É dentro desse terreno que surge a expressão
pois em mim tenho a parte desejada. “amor platônico”, ou seja, aquele que se manifesta
plenamente sem a necessidade do carnal, do corpóreo, preso
Se nela está minha alma transformada, apenas à ideia, ao pensamento. É a tese presente nos
que mais deseja o corpo de alcançar? quartetos do outro soneto, “Transforma-se o amador na
Em si somente pode descansar, cousa amada”.
pois consigo tal alma está liada.
No entanto, os versos 7-8 de “Alma minha gentil, que te
Mas esta linda e pura semideia, partiste” demonstram como Camões reinterpreta essa teoria.
que, como um acidente em seu sujeito, Basta observar que o eu lírico pede que sua amada, um
assi co a alma minha se conforma, espírito, lembre-se do amor ardente (obviamente, de valor
carnal) que ele já mostrara tão puro nos próprios olhos
está no pensamento como ideia: (obviamente, um valor espiritual).
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma. Há, portanto, uma fusão entre carnal e espiritual, ou seja,
entre matéria e ideia – o espiritual tem elementos carnais e o
carnal tem elementos espirituais. Essa mesma fusão é
Note no texto acima que o poeta não apenas confessa seus percebida em “Transforma-se o amador na cousa amada”,
sentimentos. Há uma análise, um filosofar sobre eles, o que basicamente entre a ideia dos quartetos (primado do
possibilita caracterizar seu lirismo como reflexivo. Não é à espiritual) e os tercetos (primado do carnal). Sua conclusão é
toa, portanto, que predomina no poema um amplo jogo de a de que a ideia precisa da matéria para se realizar
raciocínio, revelado por conectivos ou articuladores que plenamente.
revelam um caminhar lógico de pensamento, como “por
virtude”, “logo”, “pois”, “se”. O soneto anteriormente exposto, ao opor masculino e
feminino, acaba derramando elementos carnais ao homem e
Tal estrutura filosófica é também percebida pela própria quase os eliminando por completo na mulher, que acaba se
engenharia do texto. Veja que o primeiro verso é uma tese, tornando uma figura etérea, divina. Eis outra clara influência
explicada no segundo. O terceiro verso é uma exemplificação petrarquista. É o que se percebe abaixo.
Sonetos de Luís de Camões Busque Amor novas artes, novo engenho,
Quando da bela vista e doce riso, para matar me, e novas esquivanças;
tomando estão meus olhos mantimento, que não pode tirar-me as esperanças,
tão enlevado sinto o pensamento que mal me tirará o que eu não tenho.
que me faz ver na terra o Paraíso
. Olhai de que esperanças me mantenho!
Tanto do bem humano estou diviso, Vede que perigosas seguranças!
que qualquer outro bem julgo por vento; Que não temo contrastes nem mudanças,
assi, que em caso tal, segundo sento, andando em bravo mar, perdido o lenho.
assaz de pouco faz quem perde o siso.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
Em vos louvar, Senhora, não me fundo, onde esperança falta, lá me esconde
porque quem vossas cousas claro sente, Amor um mal, que mata e não se vê.
sentirá que não pode merecê-las.
Que dias há que n’alma me tem posto
Que de tanta estranheza sois ao mundo, um não sei quê, que nasce não sei onde,
que não é de estranhar, Dama excelente, vem não sei como, e dói não sei porquê.
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.