Você está na página 1de 2

Sonetos de Luís de Camões do postulado do primeiro.

O quarto verso é uma


explicação/justificação do que está exposto no anterior.
Publicados a partir de 1595,  portanto, postumamente (seu
autor morrera então entre 1579 e 1580, provavelmente), os Outro aspecto importante e que será encontrado no conjunto
Sonetos de Luís de Camões têm desde então assumido um da obra, Sonetos de Luís de Camões, é o uso de uma
lugar de destaque em toda a literatura de língua portuguesa, primeira pessoa que não compromete o ideal de
tornando-se grande influenciador até da poesia atual (são universalismo tão cobrado em sua escola literária, o
vários os poetas que de uma forma ou de outra se mostraram Classicismo. Ou seja, o que é apresentado nos terceiro e
influenciados por Camões. No Barroco, encontramos quarto versos (o eu lírico não deseja a amada) é
Gregório de Matos Guerra. exemplificação da tese exposta no primeiro verso.

No Arcadismo, deve-se lembrar dos nomes de Bocage, em É notável em tal soneto outra influência de Petrarca, que é a
Portugal, e Cláudio Manuel da Costa, no Brasil. Já no presença do neoplatonismo. No entanto, Camões
Romantismo, é vasta a lista dos literatos que se inspirarão no reinterpreta-o de sua própria maneira, o que permite
seu modelo, principalmente na teoria de que o amor é um identificar o que se chama da neoplatonismo camoniano.
sentimento que não pode ser devassado pela razão, como se Para perceber esse aspecto de forma mais nítida, analisemos
percebe tão bem no célebre soneto “Amor é fogo que arde o soneto a seguir.
sem se ver”.
Alma minha gentil, que te partiste 
Aliás, essa forma poemática, consagrada pelo grande poeta tão cedo desta vida descontente, 
português, tornou-se muito comum no Parnasianismo e no repousa lá no Céu eternamente, 
Simbolismo, sendo mais para frente usada no Pré- e viva eu cá na terra sempre triste.
Modernismo, nas mãos de Augusto dos Anjos. Por fim, o
Modernismo, que ingenuamente é caracterizado como escola Se lá no assento etéreo, onde subiste, 
que rejeita o passado, a tradição, também tem se inspirado memória desta vida se consente, 
em Camões. É o caso de Vinicius de Moraes). não te esqueças daquele amor ardente 
que já nos olhos meus tão puro viste.
Essa forma poemática é bastante antiga e pode ser definida
como qualquer poema constituído por 14 versos. No entanto, E se vires que pode merecer-te 
a configuração consagrada por Camões em nossa língua foi algua cousa a dor que me ficou 
criada pelo renascentista italiano Francesco Petrarca e se da mágoa, sem remédio, de perder-te,
constitui de 14 versos decassílabos distribuídos em dois
quartetos e dois tercetos. roga a Deus, que teus anos encurtou, 
que tão cedo de cá me leve a ver te, 
No entanto, a força petrarquiana (deve-se lembrar de que, se quão cedo de meus olhos te levou.
Camões é influenciado por Petrarca, isso de maneira alguma
indica uma inferioridade daquele em relação a este. Muito
pelo contrário, há momentos em que o poeta português Esse texto trabalha com oposições entre “lá” e “cá”, “Céu” e
chega a superar o italiano, até mesmo quanto parafraseia os “terra”, “repousa (…) eternamente” e “viva (…) sempre triste”,
poemas deste, como é o caso do célebre “Alma minha gentil, que podem ser interpretadas como uma antinomia entre
que te partiste”) não se manifesta apenas nesse aspecto feminino e masculino: à amada cabem os primeiros termos;
formal. No campo temático tal também irá se realizar, como ao eu lírico, os segundos. Mas pode ser vista também uma
podemos perceber no texto abaixo: oposição entre céu/espírito (ela), com características
positivas, e terra/carne (ele), com características negativas.
Sonetos de Luís de Camões
Transforma-se o amador na cousa amada, Esse é o contraste básico do neoplatonismo, de acordo com
por virtude do muito imaginar; o qual a matéria, a carne, o corpóreo, é inferior ao ideal, ao
não tenho, logo, mais que desejar, espiritual. É dentro desse terreno que surge a expressão
pois em mim tenho a parte desejada. “amor platônico”, ou seja, aquele que se manifesta
plenamente sem a necessidade do carnal, do corpóreo, preso
Se nela está minha alma transformada, apenas à ideia, ao pensamento. É a tese presente nos
que mais deseja o corpo de alcançar? quartetos do outro soneto, “Transforma-se o amador na
Em si somente pode descansar, cousa amada”.
pois consigo tal alma está liada.
No entanto, os versos 7-8 de “Alma minha gentil, que te
Mas esta linda e pura semideia, partiste” demonstram como Camões reinterpreta essa teoria.
que, como um acidente em seu sujeito, Basta observar que o eu lírico pede que sua amada, um
assi co a alma minha se conforma, espírito, lembre-se do amor ardente (obviamente, de valor
carnal) que ele já mostrara tão puro nos próprios olhos
está no pensamento como ideia: (obviamente, um valor espiritual).
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma. Há, portanto, uma fusão entre carnal e espiritual, ou seja,
entre matéria e ideia – o espiritual tem elementos carnais e o
carnal tem elementos espirituais. Essa mesma fusão é
Note no texto acima que o poeta não apenas confessa seus percebida em “Transforma-se o amador na cousa amada”,
sentimentos. Há uma análise, um filosofar sobre eles, o que basicamente entre a ideia dos quartetos (primado do
possibilita caracterizar seu lirismo como reflexivo. Não é à espiritual) e os tercetos (primado do carnal). Sua conclusão é
toa, portanto, que predomina no poema um amplo jogo de a de que a ideia precisa da matéria para se realizar
raciocínio, revelado por conectivos ou articuladores que plenamente.
revelam um caminhar lógico de pensamento, como “por
virtude”, “logo”, “pois”, “se”. O soneto anteriormente exposto, ao opor masculino e
feminino, acaba derramando elementos carnais ao homem e
Tal estrutura filosófica é também percebida pela própria quase os eliminando por completo na mulher, que acaba se
engenharia do texto. Veja que o primeiro verso é uma tese, tornando uma figura etérea, divina. Eis outra clara influência
explicada no segundo. O terceiro verso é uma exemplificação petrarquista. É o que se percebe abaixo.
Sonetos de Luís de Camões Busque Amor novas artes, novo engenho, 
Quando da bela vista e doce riso,  para matar me, e novas esquivanças; 
tomando estão meus olhos mantimento,  que não pode tirar-me as esperanças, 
tão enlevado sinto o pensamento  que mal me tirará o que eu não tenho.
que me faz ver na terra o Paraíso
. Olhai de que esperanças me mantenho! 
Tanto do bem humano estou diviso,  Vede que perigosas seguranças! 
que qualquer outro bem julgo por vento;  Que não temo contrastes nem mudanças,
assi, que em caso tal, segundo sento,  andando em bravo mar, perdido o lenho.
assaz de pouco faz quem perde o siso.
Mas, conquanto não pode haver desgosto 
Em vos louvar, Senhora, não me fundo,  onde esperança falta, lá me esconde 
porque quem vossas cousas claro sente,  Amor um mal, que mata e não se vê.
sentirá que não pode merecê-las.
Que dias há que n’alma me tem posto 
Que de tanta estranheza sois ao mundo,  um não sei quê, que nasce não sei onde, 
que não é de estranhar, Dama excelente,  vem não sei como, e dói não sei porquê.
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.

A experiência amorosa, como se vê, nem sempre é


Note que as características da amada pertencem ao plano apresentada como positiva. Aliás, a lírica camoniana aborda
espiritual divino, o que faz o poeta ver o Paraíso e sentir-se as múltiplas facetas desse sentimento, desde o
distante do plano humano. A figura feminina é, portanto, encantamento graças ao contato com o objeto amado até a
extremamente valorizada, pois é ela quem permite voltar ao dor provocada pela frustração de expectativas ou pelo fim de
bem inicial, o Paraíso (do cristianismo) ou o Mundo das um relacionamento.
Ideias (do platonismo).
Mas o mais chamativo, como se disse, é este segundo
Mas boa parte dos textos analisados faz lembrar um aspecto, que faz o poeta encarar o conhecimento amoroso
elemento marcante da poesia camoniana: o Maneirismo. como produtor de dores e decepções. Ainda assim, é curioso
Trata-se de uma vertente que de um lado mantém afinidade notar que o poeta ainda consegue, por pior que seja a sua
com o Classicismo, principalmente em seu aspecto formal. situação, expressar, no quinto verso, uma ironia, amarga,
Mas, por outro lado, afasta-se, pois busca um rebuscamento mas que revela um caráter espirituoso.
da linguagem que se aproxima do estranho, do extravagante
do Barroco. É o que se identifica no mais célebre soneto No entanto, seu lirismo não se coloca restrito ao amor. Há
camoniano, transcrito a seguir. também em Camões uma abordagem filosófica que se
envereda pelos problemas que afetam a existência humana,
Amor é um fogo que arde sem se ver,  como se detecta no texto a seguir.
é ferida que dói, e não se sente; 
é um contentamento descontente,  Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 
é dor que desatina sem doer. muda-se o ser, muda-se a confiança; 
todo o mundo é composto de mudança, 
É um não querer mais que bem querer;  tomando sempre novas qualidades.
é um andar solitário entre a gente; 
é nunca contentar-se de contente;  Continuamente vemos novidades, 
é um cuidar que ganha em se perder. diferentes em tudo da esperança; 
do mal ficam as mágoas na lembrança, 
É querer estar preso por vontade;  e do bem (se algum houve), as saudades.
é servir a quem vence, o vencedor; 
é ter com quem nos mata, lealdade. O tempo cobre o chão de verde manto, 
que já coberto foi de neve fria, e, enfim, 
Mas como causar pode seu favor  converte em choro o doce canto.
nos corações humanos amizade, 
se tão contrário a si é o mesmo Amor? E, afora este mudar-se cada dia, 
outra mudança faz de mor espanto, 
que não se muda já como soía.
Observe que o mais interessante nesse texto é que ele utiliza
uma metodologia filosófico científica ao trabalhar com uma Enfrenta-se aqui um tema antiquíssimo, presente até no livro
definição: sujeito (amor), verbo de ligação (“é”) e predicado bíblico Eclesiastes  e na literatura das antigas Grécia e Roma,
que define o elemento estudado. No entanto, bastante que é a efemeridade, ou seja, o caráter passageiro dos bens
curioso é perceber que esse predicado, ao invés de precisar da vida.  Sua conclusão, no entanto, acaba por assumir, por
o objeto de análise, mais impreciso o torna, pois o faz por meio de sua ideia paradoxal, um tom típico do Maneirismo,
meio de antíteses, paradoxos e oximoros, figuras de lembrando o tom dos textos barrocos.
linguagem muito utilizadas no Maneirismo e Barroco. Portanto, entende-se por que a obra lírica de Camões,
principalmente os sonetos, acaba por se tornar um
No entanto, não se deve entender esse esquematismo monumento da língua portuguesa, não apenas por causa da
linguístico como uma mera brincadeira com as palavras. A maneira como sua linguagem é elaborada, com graça,
proposta é bem mais séria e se encaminha para a ideia de equilíbrio e maestria, mas também pelo denso conteúdo que
que o amor é um sentimento que não pode ser definido, ou expressa e toca fundo nas experiências humanas. Seus
seja, que não pode ser controlado pela razão – tese, aliás, sonetos, pois, assumem facilmente a posição de clássicos.
caríssima entre os românticos.

É também característica maneirista muito presente em


Camões a visão desencantada, pessimista em relação à vida.
Note como tal se observa no poema abaixo.

Você também pode gostar