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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

O Livro das Semelhanças


Autora: Ana Martins Marques (1977)
Publicação: 2015
Período: Literatura Contemporânea

SOBRE A AUTORA
Nascida em Belo Horizonte em 1977, a autora, doutora em Literatura Comparada pela
UFMG, tem se destacado como um dos principais nomes da poesia contemporânea brasileira.
Vencedora dos prêmios Biblioteca Nacional com o livro “Da Arte das Armadilhas” (2011) e
APCA e Oceanos com “O Livro das Semelhanças” (2015 e 2016, respectivamente), a escritora
mineira aborda temas como o cotidiano, os afetos, a linguagem e a própria criação literária
(metalinguagem).

SOBRE O LIVRO
Esta obra se caracteriza, em grande medida, pela autorreferencialidade, ou seja, o
livro refere-se a si mesmo em diversos momentos, como sugere o próprio título. Dividida em
quatro partes em que se desenvolvem núcleos temáticos diferentes, incluindo-se o cotidiano
e as relações afetivas, a obra coloca a linguagem em primeiro plano como objeto de reflexão.
Nesse sentido, fique atento ao conceito de metalinguagem: a linguagem sobre a própria
linguagem. Se um poema tem como assunto a própria escrita poética, estamos diante de um
metapoema.
Para além do livro ou do poema como matéria poética, a autora procura estabelecer
um diálogo com o leitor, colocando em análise as incertezas e desencontros no processo de
comunicação.

ESTRUTURA
Quanto à sua estrutura, a obra apresenta um poema de abertura (Ideias para um
livro), que pode ser lido como epígrafe*, seguido de quatro partes com núcleos temáticos
distintos:

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Livro: A seção mais evidentemente metalinguística da obra, explora o interesse pelo
objeto livro, por sua estrutura e pelo modo como esse objeto impacta as percepções da autora
e do leitor sobre si mesmos e sobre o mundo ao seu redor.

Dedicatória

Ainda que não te fossem dedicadas


todas as palavras nos livros
pareciam escritas para você

Cartografias: Esta parte pode ser lida a partir da temática amorosa, da tentativa do
encontro com o ser amado/desejado. Mas também podemos realizar uma leitura
metalinguística desta seção: a ideia do mapa é semelhante (!) à ideia do livro. Em ambos os
casos, temos tentativas de representar o mundo. Nessa perspectiva os sujeitos que se
procuram, que se aproximam pela imaginação sem que haja um encontro físico, podem
constituir uma metáfora da relação autor/leitor.

Viajo olhando pela janela do ônibus


em busca das linhas vermelhas das fronteiras
ou dos nomes luminosos das cidades
pairando sobre elas
como nos mapas
neles não ventava nem chovia

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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

e nunca era noite


e eu passava horas estudando
todos os caminhos que me levariam até você
mas nos mapas eu nunca te encontrava
[...]

Visitas ao lugar-comum: Conjunto de 14 poemas numerados que principiam por


clichês da língua portuguesa, como “perder a cabeça”, “pagar para ver”, “dobrar a língua”, etc.
Os lugares-comuns são revisitados e ressignificados por um olhar poético, portanto, incomum.

Cortar relações
e depois voltar-se
verificar se o que restou
suporta
remendo
demorar-se
sobre a cicatriz
do corte

O Livro das Semelhanças: A expressão que dá título à obra sinaliza que os temas
presentes ao longo do livro (de outras partes) serão retomados. O próprio livro, a linguagem
poética, as relações amorosas, os encontros e desencontros. O que confere unidade aos
poemas entre si é um aspecto peculiar da linguagem: os jogos de palavras, explorando
semelhanças sonoras ou ainda repetição de um mesmo termo, empregado em diferentes
sentidos.

Faca

Como chamar faca

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tanto aquela
enfiada na fruta
quanto aquela
enfiada no peito?
como chamar fruta
tanto o sol polpudo da laranja
quanto a lua doce da lichia?
como chamar peito
tanto o peso oco do meu coração
quanto o peso oco do seu coração?

Também chamam a atenção as relações de intertextualidade (referência a obras de


outros autores como Fernando Pessoa, Camões, Vinícius de Moraes) e de intratextualidade
(referências a obras da própria autora), como indica o poema denominado “O Livro das
Semelhanças”.

O que já se disse do amor

Prisão antiga
fábula somente
cogitação imoderada
contentamento descontente
viva morte

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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

deleitoso mal
o tirano
beijo tácito &
sede infinita
palavra inventada
para rimar com dor
coisa aprendida
nos poemas de amor

O TÍTULO
“O Livro das semelhanças” já expressa em seu título o teor metalinguístico da obra.
Além disso, destaca-se o jogo de correspondências (semelhanças) que se estabelecem:
- entre a linguagem e aquilo que ela representa;
- entre os poemas que se referem ao livro e o livro como objeto;
- entre os poemas uns em relação aos outros, devido à ligação temática proposta na
obra como um todo e nas partes em que o livro se divide;
- entre a autora e outros autores que ela cita ou parece emular (como Ana... Cristina
César, por exemplo);
- entre a autora e o leitor;

Vale destacar que a semelhança ou analogia é um processo inerente à Literatura como


representação da realidade, ressaltando-se que os semelhantes não são idênticos.
A respeito disso, vale destacar algo inusitado que ocorre no livro: na primeira parte da
obra, que emula os elementos que compõem um livro, temos a seguinte sequência de
poemas: “Capa”; “Nome do autor”; “Título”; “Dedicatória”; “Epígrafe”; “Primeiro poema”;
“Segundo poema”... Constatamos que o “Primeiro poema” é, na verdade, o sexto! E se
considerarmos que, antes da primeira parte, tempos um poema solto, chamado “Ideias para
um livro”, o “Primeiro poema” passa a ser, na verdade, o sétimo.

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IDEIAS PARA UM LIVRO
Na posição em que se encontra este poema, antes do início da primeira parte, ele se
afigura como um elemento pré-textual, mais precisamente, como uma epígrafe. Isso também
gera um efeito de estranhamento, no sentido de que o poema intitulado “Epígrafe” (o quinto
poema da primeira parte) não é, propriamente, uma epígrafe.

Ideias para um livro

I
Uma antologia de poemas escritos
por personagens de romance

II
Uma antologia de poemas-
-epitáfios

III
Uma antologia de poemas que citem
o nome dos poetas que os escreveram

IV
Uma antologia de poemas
que atendam às condições II e III

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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

V
Um livro de poemas
que sejam ideias para livros de poemas

VI
Este livro
de poemas

No jogo de semelhanças proposto pela autora, observe as seguintes correspondências:

a) Este poema que antecede a parte chamada “Livro” parece imitar o processo de
concepção da obra, uma espécie de brainstorm em que são elaboradas várias
hipóteses até que surja a ideia a ser efetivamente desenvolvida no como livro de
poemas;
b) Chama a atenção a autorreferência no item VI, promovida pelo pronome
demonstrativo: “este livro de poemas”.
c) Assim como a obra em sua integralidade, “Ideias para um livro” se divide em
partes que estabelecem diferentes núcleos temáticos;
d) Uma característica do livro é o estabelecimento de relações entre os textos que o
compõem. Este poema emula essa teia de intertextualidades, propondo livros de
poemas organizados por temas em comum. Além disso, a ideia IV propõe uma
intersecção entre as ideias II e III.
e) A ideia V volta-se sobre si mesma, como num jogo de espelhos: “Um livro de
poemas que sejam ideias para livros de poemas”.

PRIMEIRA PARTE: LIVRO

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Esta seção emula o objeto livro colocando, sequencialmente, poemas que
representam os elementos que compõem a forma e o conteúdo de um livro de
poemas.

ELEMENTOS ELEMENTOS
CONTEÚDO
PRÉ-TEXTUAIS PÓS-TEXTUAIS
Primeiro poema
Segundo poema
Acidente O
encontro Tradução
Capa
Papel de seda Não
Nome do autor Índice remissivo
sei fazer poemas
Título Colofão
sobre gatos Boa
Dedicatória Contracapa
ideia para um
Epígrafe
poema Esconderijo
Poema de verão
Poemas reunidos
Último poema

Vamos à análise de alguns poemas:

“CAPA” E “CONTRACAPA”

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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

Observe a relação de espelhamento entre os dois poemas, mais uma das


semelhanças contidas na obra:

Capa

Um biombo
entre o mundo
e o livro

Contracapa

Um biombo
entre o livro
e o mundo

Como já ficou evidenciado, os poemas acima simulam elementos físicos de um livro.


Curiosamente, atribui-se o título “capa” a algo que não o é. Trata-se de um poema. Esse
exercício de percepção sobre as falhas da linguagem verbal como representação é constante.
A palavra não estabelece uma relação de equivalência com a realidade, mas de semelhança.

Capa e contracapa são aqui representados como limites entre o livro, como universo
de palavras (semelhanças) e o mundo real. Nesse sentido, é interessante observar o poema
“Contracapa” como a passagem que se dá da primeira parte, “Livro”, para a segunda,
“Cartografias”, que trata de viagens, espaços. Uma passagem de um livro simulado para um
mundo real também simulado.

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TÍTULO

Título

Suspenso
sobre o livro
como um lustre
num teatro

Neste poema, a autora explora a posição do título, destacada no espaço do livro, e


estabelece a relação de semelhança com um lustre num teatro. Outro aspecto relevante nessa
comparação diz respeito à função do lustre: a iluminação do lugar, assim como o título de um
livro faz luz sobre o seu conteúdo, permitindo ao leitor enxergar melhor o sentido da obra.

DEDICATÓRIA

Dedicatória

Ainda que não te fossem dedicadas


todas as palavras nos livros
pareciam escritas para você

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No poema, o emprego do pronome “você” estabelece uma


ambiguidade, podendo-se interpretar esse interlocutor a quem se dirige o livro
como sendo:
a) alguém não nomeado com quem a autora tem uma relação afetiva;
b) o próprio leitor.
Esse procedimento ambíguo é repetido ao longo do livro e parece sugerir uma leitura
cumulativa dos dois significados, como se a autora vivesse uma relação amorosa com o leitor.
A dedicatória é um elemento pré-textual que oferece o livro a alguém. De fato, o leitor
de um livro coloca-se como receptor da mensagem, vivendo a momentânea ilusão de que
aquele discurso seja dirigido exclusivamente a ele próprio.

EPÍGRAFE

Toda a epígrafe promove uma relação de intertextualidade, estabeleendo o diálogo do


texto citado com o livro que virá a seguir. Nesse sentido, o assunto das duas citações abaixo,
pode ser considerado o tema fundamental de “O Livro das Semelhanças”: a relação imperfeita
de representação feita entre a palavra e a realidade:

Epígrafe

Octavio Paz escreveu:


“―A palavra pão, tocada pela palavra dia,
torna-se efetivamente um astro; e o sol,
por sua vez, torna-se alimento luminoso”

Paul de Man escreveu:


“―Ninguém em seu perfeito juízo ficará à espera
de que as uvas em sua videira amadureçam

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sob a luminosidade da palavra dia”

Se no primeiro trecho a relação entre as palavras produz uma nova realidade, o


segundo fragmento parece responder ao primeiro, rejeitando a ideia de que a palavra possa se
confundir com o mundo ao qual se refere.
Interessante observar novamente o jogo de espelhos. Se a epígrafe promove uma
relação dialógica com o livro, no interior da própria epígrafe dois textos conversam entre si.

PRIMEIRO POEMA / ÚLTIMO POEMA

Como já comentamos, o “Livro das Semelhanças” reflete sobre a imperfeita


correspondência entre a linguagem verbal e a realidade a que se refere. Nesse sentido, fica
flagrante a discrepância entre o título “Primeiro poema” e a posição que o texto ocupa no livro
(seria o sétimo poema).

Primeiro poema

O primeiro verso é o mais difícil


o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia
se se lança ao livro ou finalmente encara

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o dia

o dia: contas a pagar


correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas

aqui ao menos não encontrarás,


leitor,
xícaras sujas

Aqui, a metalinguagem evidencia o estabelecimento da relação autor/leitor. O eu-lírico


poeta preocupa-se com a adesão do leitor ao livro, depois de transposto o “biombo” da capa e
ultrapassados os elementos pré-textuais. Há uma dicotomia entre a realidade exterior e o livro
como uma realidade alternativa, que pode servir de escape às agruras da rotina. Mas essa
realidade alternativa, que é a literatura, encontra semelhanças com o mundo lá fora: quando
se afirma que o leitor, no livro, ao menos, não encontrará xícaras sujas, infere-se que os
demais elementos que compõem o dia (contas a pagar, correspondência atrasada,
congestionamentos) podem se fazer presentes.

Essa relação entre literatura e realidade se duplica no “Último poema”:

Último poema

Agora deixa o livro


volta os olhos
para a janela a cidade
a rua o chão o corpo mais próximo
tuas próprias mãos: aí também

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se lê

SEGUNDO POEMA

Segundo poema
para Paulo Henriques Britto

Agora supostamente é mais fácil


o pior já passou; já começamos
basta manter a máquina girando
pregar os olhos do leitor na página

como botões numa camisa ou um peixe


preso ao anzol, arrastando consigo
a embarcação que é este livro
torcendo pra que ele não o deixe

pra isso só contamos com palavras


estas mesmas que usamos todo dia
como uma mesa um prego uma bacia

escada que depois deitamos fora

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aqui elas são tudo o que nos resta


e só com elas contamos agora

A palavra “agora” indica que este texto dá continuidade ao esforço iniciado no


“Primeiro poema”, no sentido de “fisgar” o leitor, como sugere a metáfora do anzol (2º verso
da 2ª estrofe). Na combinação das expressões “supostamente mais fácil” e “torcendo para que
ele não o deixe”, temos a incerteza acerca da realização desse objetivo, pois os processos de
produção e recepção da obra são assíncronos, ou seja, acontecem em momentos diferentes,
não sendo possível ao autor um feedback desse leitor esperado.
Perceba que essa enorme importância dada ao leitor se deve ao fato de que é ele
quem dá sentido ao texto, como ilustra a imagem da “embarcação que é este livro”, arrastada
pelo peixe preso ao anzol.
Outro aspecto muito importante deste texto está na forma: trata-se de um soneto, o
que constitui uma tensão entre a tradição e a modernidade da linguagem adotada (pontuação
livre, coloquialismos como “pra isso”); entre a racionalidade da forma fixa e a
intuição/inspiração da poeta.

ACIDENTE

Como um “acidente de percurso”, este é o primeiro poema dentro da primeira seção


que não se refere explicitamente ao tema “Livro”.

Acidente

Escrevi este poema no último dia


depois disso não nos vimos mais
a princípio trocamos telefonemas
em que você sempre parecia estar prestes a perder o trem
enquanto eu sempre parecia ter acabado de perdê-lo

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escrevi este poema depois do primeiro telefonema
você falava sobre vistos e repartições
e sobre como para conseguir um documento sempre é necessário um outro
que no entanto só se pode obter de posse daquele
eu falava sobre as noites perdidas na companhia de alguém
que nunca era você
depois aos poucos você deixou de ligar
escrevi este poema no segundo domingo
em que você de novo não telefonou
ao redor do poema como em volta de um acidente
juntou-se muita gente
para ver o que era

O poema sugere o fim de um relacionamento amoroso. A distância entre o eu-lírico e o


“você” a quem se dirige vai gradualmente aumentando, o que se percebe a cada emprego da
expressão “Escrevi este poema”, que se repete três vezes.

1º: O distanciamento entre os dois já se percebe no início: não há um contato físico,


apenas uma simples troca de telefonemas em que ambos parecem apressados (versos 3 a 5);
2º: A falta de sintonia fica evidente após o primeiro telefonema: o assunto do
interlocutor é algo burocrático (repartições, documentos...) enquanto o eu-lírico lamenta as
noites perdidas na companhia de outra(s) pessoa(s).

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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

3º: A ruptura definitiva se dá a partir do momento em que não há


mais sequer um telefonema.

Durante todo o texto, expressão “Escrevi este poema” estabelece o tom


metalinguístico, mantendo a semelhança com os demais poemas da primeira parte. Deste
modo, o poema não é puramente metalinguístico, mas uma combinação entre os temas do
desencontro amoroso e da escrita poética. Nesse sentido Ao final, temos o deslocamento da
situação do relacionamento “acidentado” pela falta de comunicação para a imagem do poema
como objeto da curiosidade dos leitores que param “para ver o que era”.
Uma semelhança a ser observada: tanto no relacionamento amoroso, quanto no
poema, há uma tentativa de estabelecer-se uma comunicação com alguém que não está
presente.

O ENCONTRO

O Encontro

Combinamos de nos encontrar num livro


na página 20, linhas 12 e 13, ali onde se diz que
privar-se de alguma coisa
também tem seu perfume e sua energia

combinamos de nos encontrar num mapa


depois da terceira dobra
entre as manchas de umidade
e a cidade circulada de azul

combinamos de nos encontrar


na primeira carta

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entre a frase estúpida em que reclamo da falta de dinheiro
e a única palavra escrita à mão

combinamos de nos encontrar


no jornal do dia, em algum lugar
entre os acidentes de automóveis
e as taxas de câmbio

combinamos de nos encontrar


neste poema, na última palavra
da segunda linha
da segunda estrofe de baixo para cima

Após o poema “Acidente”, em que acontece um distanciamento até a separação, o


poema “Encontro” produz uma imagem invertida: duas pessoas que procuram se encontrar.
Assim como no poema anterior havia a repetição de uma frase que marcava o progressivo
afastamento em um determinado tempo (Escrevi este poema...), no presente poema há uma
estrutura paralelística com a reiteração da expressão “combinamos de nos encontrar” no início
de cada estrofe, estabelecendo um determinado espaço como ponto de encontro.
O inusitado é que esse espaço apontado pelo eu-lírico poeta para que se dê o contato
entre os dois é a própria linguagem! Os lugares combinados a cada estrofe são,
respectivamente: “num livro”, “num mapa”, “na primeira carta”, “no jornal do dia” e “neste

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poema”. O poema, acompanhado pelo pronome “neste” dá a sensação de


maior proximidade num jogo que culmina com instruções (na última palavra da
segunda linha da segunda estrofe de baixo para cima) que levam o leitor a procurar por uma
palavra no próprio texto.
Interessante observar que o leitor se coloca na busca proposta pelo eu-lírico poeta,
assumindo um papel de personagem da história. O encontro não se dá fisicamente, mas
acontece virtualmente através da palavra “lugar”.

OUTROS POEMAS PARA COMENTÁRIO

Em “Tradução”, Ana Martins Marques mais uma vez problematiza as limitações da


linguagem como representação, refletindo sobre a impossibilidade de uma total equivalência
na tradução de um poema: “Este poema / em outra língua / seria outro poema”

Em “Não sei fazer poemas sobre gatos”, a autora cita em epígrafe a poeta Ana Cristina
Cesar: “Não sei fazer gatografia”. “Gatografia” é um neologismo criado por Cesar para
designar a arte de escrever como um gatuno, ou seja, roubando de forma sorrateira outros
textos. Fazendo paráfrases e paródias sem deixar claro, muitas vezes, quem é o autor com
quem se estabelece a relação de intertextualidade. Ana Martins Marques revela essa
semelhança com Ana Cristina Cesar e deixa uma pista para o próximo texto do livro: “Boa ideia
para um poema”, em que uma citação anotada em um caderno vira um poema: “pensei : se eu
não tivesse me lembrado de que a/frase não era minha/ela seria minha?/pensei : se eu me
lembrasse onde li todas as frases/que escrevi/alguma seria minha?”. Logo em seguida, surge o
poema “Esconderijo”, no qual encontramos uma epígrafe explicativa: “Involuntariamente
plagiado do poema “Os vivos devem ultrapassar os mortos”, de Robert Bringhurst [...]”.

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SEGUNDA PARTE: CARTOGRAFIAS

Na segunda parte, denominada “Cartografias”, temos 10 poemas não nomeados. O


mapa surge como representação do espaço, assim como na seção anterior, o “Livro”
representa o próprio universo da linguagem literária.
Ao lermos o poema que antecede “Cartografias”, denominado “Contracapa”, temos a
passagem do mundo das palavras para um mundo que tomamos como “real”: “Contracapa /
Um biombo / entre o livro / e o mundo”. Viramos a página, no entanto, e adentramos
novamente um uma representação (semelhança).
Nesta nova seção, em que saímos do “Livro”, o eu-poético se refere a espaços e
deslocamentos, constantemente desejando o encontro:

Você fez questão


de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1720 km
fizessem subitamente
fronteira

Já no primeiro poema de “Cartografias”, temos a chegada desse “Você”:

E então você chegou


como quem deixa cair
sobre um mapa 1
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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

esquecido aberto sobre a mesa


um pouco de café uma gota de mel
cinzas de cigarro
preenchendo
por descuido
um qualquer lugar até então
deserto
De forma semelhante ao que acontecera no poema “Acidente”, na primeira seção do
livro, os poemas de “Cartografias” instauram uma ambiguidade sobre o interlocutor referido
como você. A sensação de intimidade sugerida pela chegada casual e pelo modo descuidado
como interfere no espaço leva à interpretação de que estamos diante de uma série de poemas
de temática amorosa, sentimental. Mas a ideia do mapa como linguagem pode ser percebida
no modo como o sujeito “preenche”... “um lugar até então deserto”. Nesse caso, temos a
metáfora do leitor chegando ao texto e atribuindo sentidos ao que foi lido.

Evidencia-se, portanto, que o caráter metalinguístico persiste nesta segunda parte,


assim como a problematização sobre os limites da linguagem como representação:

Viajo olhando pela janela do ônibus


em busca das linhas vermelhas das fronteiras
ou dos nomes luminosos das cidades
pairando sobre elas
como nos mapas
neles não ventava nem chovia
e nunca era noite
e eu passava horas estudando
todos os caminhos que me levariam até você

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mas nos mapas eu nunca te encontrava
[...]

TERCEIRA PARTE: VISITAS AO LUGAR-COMUM

O foco na linguagem persiste nesta terceira seção. Podemos lê-la como um único
poema que se fragmenta em estrofes numeradas, todas partindo de um lugar-comum da
linguagem. Interessante a transição dos lugares poéticos da seção “Cartografias” para a ideia
de lugar-comum.
A dinâmica ao longo das 14 estrofes é a mesma:
1- Inicia-se por um ditado popular ou por um expressão idiomática, usos cotidianos e
irrefletidos da linguagem metafórica
2- Desenvolve-se uma imagem poética surpreendente a partir de uma leitura literal
dessas metáforas gastas, ressignificando-as.

1
Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego

[...] 1
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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

14
Quebrar promessas
e ao recolher os cacos
discerni-los
entre aqueles
do silêncio
quebrado

Observe a relação de semelhança entre a primeira e a última estrofe, estabelecendo


um caráter cíclico para o poema. Isso remete à própria ideia da repetição que caracteriza os
lugares-comuns.

QUARTA PARTE: O LIVRO DAS SEMELHANÇAS

Por semelhança em relação à parte anterior, esta seção também se faz a partir de
jogos de palavras. O que confere unidade aos textos deste último segmento do livro é o
emprego de repetições, assim como o próprio título da seção repete o do livro. Observe:

Pintores que pintam apenas títulos de quadros


fotógrafos que só fotografam fotografias
atores com seus figurinos de palavras
com sua maquiagem de palavras
num cenário de palavras
viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades
enamorados de nomes de homens
enamorados de nomes de mulheres

CURSO DE LITERATURA – PROF. EDIR: ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS


pais de nomes de crianças
até que seus próprios nomes morrem nas campas

Além da repetição das palavras, há, também uma reiteração de temas já trabalhados,
como a metalinguagem, viagens e mapas e relacionamentos afetivos. No poema acima,
destaca-se, como no livro todo, a reflexão sobre a palavra como representação.

O jogo de intertextualidades de apropriações é retomado no poema a seguir:

É bom lembrar lembranças dos outros


como quem se oferece para carregar as compras de supermercado
de outra pessoa
é bom usar palavras que nunca usamos, palavras
que só conhecemos dos livros de botânica dos anúncios
de cruzeiros dos contratos de locação
é bom portanto usar palavras emprestadas
nem que seja para lembrar
que só temos palavras de segunda mão
[...]

Além da semelhança com os outros (poetas), é frequente na poesia de Ana Martins


Marques uma correspondência entre o sujeito e o espaço (como já vimos em “Cartografias).
No poema a seguir, se estabelece uma semelhança entre a poeta e a paisagem de Minas
Gerais (o que faz lembrar outro poeta mineiro: Drummond):
1
2
“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

Minas

Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia

Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais

Aqui a relação poética se faz pelo contraste. O interlocutor a quem se dirige o eu-lírico
carrega consigo, em seu peito, a agitação e o ruído do mar. Em oposição, o que se escuta no
peito do eu-poético é o silêncio elementar dos metais.
Como já vimos em outros poemas do livro, instaura-se uma ambiguidade acerca da
relação entre o eu-lírico e esse “você” a quem se refere. Seria uma relação amorosa? O convite

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a escutar em seu peito é carregado de sensualidade. Ou seria, mais uma vez, metalinguagem,
refletindo a relação escritor/leitor?
Confirmando a coerência da última hipótese, temos de observar a diferença nos
modos verbais empregados em cada estrofe. Na primeira, em que o eu lírico se refere ao
leitor, há o emprego do subjuntivo: “se eu encostasse”, o que revela a impossibilidade desse
contato de quem escreve com quem lê. Já na segunda estrofe, o modo imperativo: “vem /
escuta”, convida a um contato possível, ao menos no plano da linguagem para o leitor. Vale
destacar que a palavra escrita é silenciosa, cabendo a quem lê a construção do seu significado.

A ambiguidade da relação poético-amorosa também se afigura no poema “O Livro das


Semelhanças”. Num jogo de imagens que se multiplicam, o poema leva o título da seção que
tem o mesmo nome dado ao livro. É nesse labirinto de imagens, que o eu-poético vai
inventariando comparações (semelhanças) entre o “você” a quem se dirige e imagens poéticas
inusitadas.

O Livro das Semelhanças

O modo como o seu nome dito muito baixo pode ser confundido com a palavra xícara
e como ele esquenta de dentro para fora
o modo como a palma das suas mãos se parece com porcelana trincada

Ao referir-se aos gestos do interlocutor, o eu-lírico estabelece relações de oposição


(animal x máquina / de costas x de frente / sim x não):
1
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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

o modo como ao levantar-se você lembra um grande felino


mas ao caminhar já não se parece com um animal mas com uma
máquina rápida
e de costas sempre me lembra um navio partindo
embora de frente nunca pareça um navio chegando
o modo como dita por você a palavra “sim” parece uma palavra
que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas
o modo como dita por você a palavra “não” parece uma palavra
que você acabou de inventar

A seguir, os objetos não preenchidos como a camisa e o sapato, ganham novo sentido
aos olhos do enunciador.

[...]
a camisa branca que você acabou de despir sempre me lembra um livro aberto ao sol
seus sapatos deixados na sala sempre me parecem ensaiar os primeiros passos de
[dança
numa versão musical para o cinema do seu livro preferido

Na sequência, a relação entre o eu-lírico e “você” parece marcada pela dificuldade de


comunicação (você parece estar sempre de visita / nossas conversas parecem bihetes
interceptados).

o modo como no seu apartamento as coisas sempre parecem estar em casa


e você sempre parece estar de visita
e como você pede licença à penteadeira para chorar
o modo como as nossas conversas me lembram bilhetes interceptados cardápios de

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restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes documentos comidos nas bordas
por filhotes de cão

A seguir, as imagens aproximam sonhos, lembranças, projetos infantis, e contos de


fadas. Tudo isso são representações da realidade permeadas pela imaginação ou pela
nostalgia, assim como a própria poesia.

[...]
o modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram
a um desastre de avião
parecem as lembranças de um ex-boxeador apaixonado
parecem os projetos de futuro de crianças muito pequenas
parecem os contos de fadas preferidos de ditadores sanguinários

Os últimos versos deixam mais nítida a retomada de temas e objetos já vistos em


poemas anteriores, como relacionamentos afetivos em crise (guerras íntimas), jogos de
palavras (jogos de armar), viagens e mapas (que vimos em “Cartografias”).

os parentescos entre as guerras íntimas os jogos de armar as primeiras viagens sem


os pais os países coloridos de vermelho no mapa-múndi pessoas que sempre esquecem
as chaves as primeiras palavras ditas pela manhã e a disposição para usar a violência
o modo como apesar de tudo isso você não se parece com ninguém
a não ser talvez com certas coisas
similares a nada
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“O LIVRO DAS SEMELHANÇAS” - ANÁLISE

O “você” a quem se dirige o eu-lírico poeta é caracterizado pelos


parentescos entre os temas que vimos no ao longo de toda a obra e, ao mesmo
tempo, “não se parece com ninguém, a não ser com certas coisas similares a nada”. Deste
modo, se amplia a plurissignificação desse sujeito, que pode ser entendido como um ser
amado, como o leitor (um ser imaginado pelo autor, inespecífico), ou mesmo como o próprio
livro como um não- sujeito. Vale destacar que a autorreferência (o livro referindo-se a si
mesmo) se dá ao longo de toda a obra e é reforçada pelo título do poema (homônimo do
livro).

CURSO DE LITERATURA – PROF. EDIR: ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS

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