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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA

Raquel do Prado Sales/ Turma: 08h-10h


Nº USP: 13714143

O que é? O que é?
Leitura de “Prosa (I)”, de Ana Martins Marques

Trabalho apresentado à disciplina de


Introdução aos Estudos Literários I,
ministrada pelo professor Marcos
Natali, para obtenção da nota
semestral.

São Paulo
Junho de 2023
Prosa (I)

Ana Martins Marques

1. Num evento literário


2. a romancista conta
3. que tinha sido casada com um poeta
4. eu passava anos trabalhando num livro
5. ela diz
6. todo o tempo
7. muitas horas por dia
8. pensava nisso
9. o dia inteiro
10. falava nisso
11. quase o tempo todo
12. fizemos juntos uma viagem
13. curta
14. ela diz
15. ao final dela
16. ela diz
17. ele tinha um livro

18. Num ensaio sobre Marina Tsvetáieva


19. Joseph Brodsky diz
20. que ninguém sabe o que perde a poesia
21. quando um poeta se volta para a prosa
22. mas é certo que a prosa
23. ganha muito
24. afinal a poesia
25. – a imagem também é de Brodsky – é aviação
26. e a prosa, infantaria

27. Numa entrevista


28. João Cabral de Melo Neto diz
29. que a poesia tem alguma coisa de laboratório
30. – é como se a literatura fosse uma fábrica – ele diz
31. – que produz romances, contos, ensaios
32. mas tem um laboratório onde se faz pesquisa
33. para todas essas coisas – esse laboratório
34. é a poesia

35. Na livraria
36. quando pergunto
37. sobre a estante de poesia
38. o livreiro aponta
39. e diz
40. os livros de poemas ficam ali
41. perto do chão

42. Tudo isso foi dito


43. em prosa

(MARQUES, Ana Martins. “Prosa (I)”. Em: Risque esta palavra. São Paulo:

Companhia das Letras, 2021, pp.77-78).

Talvez, um dos maiores desafios dentro da literatura ocidental seja definir a

poesia.

Percebe-se, logo de início, um estranhamento com relação ao objeto, pelo

fato de o poema ser intitulado como “Prosa (I)”, o que, a priori, tende a direcionar o

leitor a indagar o que há de ser abordado no plano do conteúdo, em contraste com a

forma em verso que se apresentam os elementos estruturais (não semânticos) do

texto.

As convenções tradicionais que se propõem a caracterizar tanto o poema

quanto a prosa, pretendem distinguir, sem muita dificuldade, um gênero de outro –

enquanto o poema, para assim ser considerado, deve, ao menos, apresentar

enjambement, a prosa, por sua vez, se difere por ser um texto corrido, sem se

preocupar com elementos ligados ao ritmo e a musicalidade (AGAMBEN, 2002,

pp.142-148).

Valendo-se do estranhamento gerado pelo título, se estabelece uma tensão

entre o formato do poema em contraste com seu conteúdo, por conseguinte, uma

confusão ao tentar pontuar algum tipo de definição literária para o objeto da análise

faz-se presente: é um poema, pois, possui estrofes, versos e enjambement, ao


mesmo tempo em que se assemelha a uma prosa, porquanto seu processo de

criação parece ter sido feito – como exposto pelo poeta Manuel Bandeira -

distribuindo-se um texto em prosa em linhas irregulares, se disfarçando de poema

(BANDEIRA,1975, pp.27-39).

Diante dessa ambiguidade em “Prosa (I)”, pode-se perceber uma crise ao

estabelecer a sua identidade: O que o faz poema? O que o confunde com prosa? Se

é um poema, por que carrega “Prosa” em seu título? A dificuldade com que se

depara o leitor para identificar tanto os elementos que o constituem como poema

quanto os que o confundem, pode ser explicada pela visão dicotômica que permeia

a cultura ocidental ao definir a realidade (PAZ, 1972, pp.119-138.).

Entretanto, sob um olhar que transcende a oposição - “A” versus “B”, por

exemplo - e abre espaço para a dialética (GONZALEZ, 2020, pp. 248-250), esse

poema pode não se definir somente como um ou somente como outro, mas se

permitir parecer, simultaneamente, um poema e uma prosa (PAZ, 1972, pp.119-138).

Tal abstração se faz complexa de delinear imageticamente, se pensada a definição

das coisas pela oposição: o poema é o que a prosa não é, e vice-versa, mas, em

caso de simultaneidade, o poema se funde em prosa, impedindo sua delimitação

pela oposição de maneira a tornar incompreensível sua categorização para a

linguagem simbólica.

Um fenômeno semelhante ao que ocorre no poema de Ana Martins Marques

é observado em “Che cos la poesia?”, onde, através de um texto em prosa, Derrida

se propõe a explicar, poeticamente, o que seria a poesia, sem renunciar o formato

da prosa:

Não, uma marca a você dirigida, deixada, confiada, é acompanhada por


uma injunção, é na verdade instituída nessa mesma ordem que, por sua
vez, constitui você, estabelecendo sua origem ou dando-lhe lugar: destrua-
me, ou melhor, torne meu suporte invisível do lado de fora, no mundo (neste
ponto, já aparece o traço de todas as dissociações, a história das
transcendências), faça com que a proveniência da marca permaneça de
agora em diante inencontrável ou irreconhecível (DERRIDA, 1988, p. 114).

Além do texto apresentar-se confundido entre prosa e poesia, seu sentido

parece apontar para a instabilidade institucional desta última, estando em sintonia

com a tese central do poema de Ana Martins – o poema se faz irreconhecível – tal

abstração sugere que o objeto de análise “Prosa (I)” se opõe às concepções de

poema para a tradicionalidade, como a de Antônio Candido, uma vez que, este

último, concebe o poema e a sua leitura como sendo passíveis de uma síntese

analítica final (CANDIDO, 2006, pp. 27-36) - uma leitura última – e tornando,

portanto, consequente a delimitação do fazer e interpretar poético dentro de uma

instituição regrada (MORICONI, 2016, p. 48).

Migrando para uma análise das partes que constituem o todo, as estrofes do

poema estão divididas de acordo com o que seria a divisão dos parágrafos do texto

em prosa: as estrofes se relacionam entre si, como parágrafos de um texto que se

complementam. No primeiro verso das estrofes 1, 2, 3 e 4 (versos 1, 18, 27 e 35,

respectivamente) percebe-se a tensão entre a forma e o conteúdo: cada um deles

apresenta uso da contração de preposição como primeiro elemento constituinte do

verso, podendo ter relação - além do lugar que se refere o eu lírico (“num evento

literário”; “num ensaio”; “numa entrevista”; “na livraria”) - com a fusão do poema e da

prosa, representada pela união de “em” + “um (a)” = “num (a)” e “em” + “a” = “na”.

A disposição dos versos está, ainda em semelhança ao texto em prosa, divida

pelo ritmo psicológico – na prosa, seriam separadas as frases pela pontuação. No

poema, elas são divididas pela mudança de verso e cada mudança representa o que
seria uma pontuação (ponto final, travessão, vírgula, dois pontos) na prosa, como,

por exemplo, nos versos 3-7, onde a primeira passagem (do verso 3 para o 4) seria

marcada por dois pontos, após a palavra “poeta”, indicando abertura para a fala da

romancista, a segunda passagem (do verso 4 para o 5), por travessão, depois de

“livro”, a indicar interrupção da fala da romancista para a fala do eu lírico, a terceira

passagem (verso 5 para o 6), também marcada pelo travessão, posicionado após

“diz”, a quarta passagem (verso 6 para o 7), marcada pela vírgula, depois de

“tempo”, e assim por diante. A fim de ilustrar a análise descrita nesse parágrafo,

concebe-se o trecho citado do poema (verso 3-7) de acordo com esta hipótese:

[...]

3. que tinha sido casada com um poeta:


4. eu passava anos trabalhando num livro -
5. ela diz -
6. todo o tempo,
7. muitas horas por dia

[...]
Em se tratando da relação semântica, as estrofes 1, 2, 3 e 4 tentam descrever

algumas impressões que se podem ter do (s) poema (s) e da poesia em sua

totalidade. A primeira estrofe (versos 1-17) fala a respeito da capacidade dos

poemas de exprimir muitos sentidos com poucos signos, sendo esse conceito

ilustrado ao comparar a densidade e demanda de tempo que exigia o livro que

estava a trabalhar a romancista, com a rápida e ágil fluidez que seu ex-marido,

poeta, conseguiu escrever um livro: enquanto a romancista pensou nele, o tempo

inteiro, trabalhou nele, todos os dias, o poeta conseguiu, em uma viagem curta,

escrevê-lo – entende-se “livro”, nesse contexto (feito pelo poeta), no sentido

figurado, como quem conseguiu dizer muito, com poucas palavras.


Na segunda estrofe, tenta-se fazer evidente o não lugar da poesia diante de

sua instabilidade, cuja interpretação pode ser extraída dos versos 20 e 21, pois,

afinal, o que exatamente pode perder, algo que não sabe ao certo o que o constitui

essencialmente? Mostra-se, além do mais, como é vista a poesia pelos que buscam

regrá-la - a poesia talvez tenha algo de ordem desinstitucionalizante (DUBET, 1998,

p.27-33) -, sob o olhar da instituição, ela pode representar um elemento com

potencial para transformação das formas literárias já estabelecidas e, portanto, deve

ser cercada de limites, anulando seu caráter de multiplicidade, como exposto nos

versos 24, 25 e 26, quando o eu lírico relata a concepção de Brodsky.

A terceira estrofe tenta descrever a poesia como um lugar de possibilidades,

onde se faz experimentações – de forma metalinguística – tanto para si, quanto para

os demais gêneros literários (versos 28-34), o que, sob um viés sociológico

(DURKHEIM, 2007, p.p.13-28 ), pode significar que a poesia funciona como o

“atravessamento” que põe em movimento a instituição literária, ou seja, contribui

com a mudança das outras formas de literatura, seja positiva ou negativamente – a

poesia é o lugar onde se dá espaço para fazer o novo.

Em contrapartida, a estrofe quarta apresenta uma surpresa para o leitor, de

modo a se encontrar em oposição com as estrofes anteriores, pois lança, agora, um

olhar diferente sobre a poesia, mostrando que há lugar para esta dentro da literatura,

um lugar à margem e, ao mesmo tempo, um lugar de sustentação da instituição

(versos 35-41) – a livraria representa a instituição literária; as prateleiras, as

definições dos gêneros literários e; o lugar próximo ao chão, se compara ao lugar

mais baixo dentro de uma pirâmide de hierarquia da literatura, sendo esse lugar,

porém, uma base de apoio para os gêneros que se estabelecem no topo. Torna-se

evidente, dessa forma, uma crítica a desvalorização do poema na literatura, de


maneira contraditória a sua necessária inclusão na instituição literária, não mais

opondo a relação de sentido entre as 3 primeiras estrofes e a 4ª, mas mantendo-as

em tensão: pode-se depreender que a instituição propõe uma falsa integração das

formas do fazer literário que não atendem à tradicionalidade, mas, como destino, a

marginalização destas diante dos valores que a regem (PEREIRA, 2022, pp. 28-51).

A última estrofe, composta de 2 versos (42 e 43), retorna à indagação

provocada pela leitura do título – afinal, isto é um poema que se confunde em prosa

ou uma prosa que se confunde em poema? Na tentativa de compreender esta

estrofe, faz-se pertinente a reflexão de Agamben ao suscitar que existe o que ele

chama de “crise do último verso”, onde este se confunde em prosa:

Mas o que acontece no ponto em que o poema finda? Evidentemente, a


oposição entre um limite métrico e um limite semântico já não é possível,
aqui, de maneira nenhuma: o que se dá, sem discussão, pelo simples fato
de que no último verso de um poema o enjambement não é pensável.
Simples, decerto, mas que, não obstante, implica uma consequência não
menos embaraçosa do que necessária. Se o verso se define precisamente
através da possibilidade do enjambement, segue-se daí que o último verso
do poema não é um verso.
Quer dizer isto que o último verso se transfunde em prosa? (AGAMBEN,
2002, pp.144-145).

Logo, encerrando o poema, a quinta estrofe se faz essencial para manter a

tensão de ambiguidade que constitui o objeto, pois não o permite discernir,

finalmente, entre um e outro, mantém-se confundível, irreconhecível, não

identificável, ainda em sintonia com o que se percebe em “Che cos la poesia”:

- Mas o poema do qual você fala, você divaga, nunca foi nomeado assim,
nem tão arbitrariamente. - Você acaba de dizê-lo. Coisa que seria preciso
demonstrar. Lembre-se da questão: "O que é..." (ti esti; tias ist..., istoria,
episteme, phzlosophzá). "O que é ...?" chora o desaparecimento do poema -
uma outra catástrofe. Anunciando o que é tal como é, uma questão saúda o
nascimento da prosa (DERRIDA, 1988, 113-116).

Apesar de se ocupar de identificar e descrever as tensões e ambiguidades

que constituem o poema, a presente análise se vê impossibilitada de se encerrar


com uma análise última. Traçando um paralelo com a metalinguística de “Prosa (I)”,

diferentemente do que busca a tradicionalidade, a instabilidade da poesia, apesar de

apresentar riscos para a instituição, se faz necessária para caracterizar o que há de

mais absoluto no poema e, portanto, em sua análise: o aspecto inconclusivo, não

absoluto.

Bibliografia:

AGAMBEN, Giorgio. “O fim do poema”. Trad. Sérgio Alcides. In: Cacto, n.1. S. Paulo,

2002, pp.142-148

BANDEIRA, Manuel. “Poesia e verso”. In: Seleta em Prosa e Verso de Manuel

Bandeira. RJ: José Olympio, 1975, pp.27-39.

CANDIDO, Antonio. Estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial

Humanitas, 2006, pp. 27-36.

DERRIDA, Jacques. “Che cos’è la poesia?” (1988). Trad. Tatiana Rios e Marcos

Siscar. In: Inimigo Rumor, n.10 (maio de 2001), pp. 113-116.

DUBET, François. A formação dos indivíduos: a desinstitucionalização.

Contemporaneidade e Educação, ano 3, vol.3, 1998, p.27-33.

DURKHEIM, Emile. Que é fato social. In Fato Social e Divisão do Trabalho. PP.13-

28. (org. Ricardo Musse), São Paulo, Ed. Ática. 2007.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Organizado por Flávia

Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2020. 376 p. pp.248-250.

MARQUES, Ana Martins. “Prosa (I)”. Em: Risque esta palavra. São Paulo:

Companhia das Letras, 2021, pp.77-78.


MORICONI, Ítalo. Horizontes formativos, lugares de fala: Antônio Candido e a

pedagogia do poema. Gragoatá, v. 7, n. 12, 8 out. 2016, pp 47-62.

PAZ, Octavio. "A imagem". In: O arco e a lira. São Paulo: Perspectiva, 1972, pp.119-

138.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma

estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022, pp.

28-51.

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