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20/03/2016 Camilo Pessanha, Cruz e Sousa e as poéticas da modernidade1 | Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

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Camilo Pessanha, Cruz e Sousa e as poéticas da


modernidade1

Camilo Pessanha, Cruz e Sousa e as poéticas da modernidade1

Annie Gisele Fernandes2

Resumo: Esse ensaio objetiva analisar o modo como, na poesia de Camilo Pessanha e na de Cruz
e Sousa, o poder das palavras está, em grande parte, na força das imagens que elas suscitam e na
sonoridade que ou prolonga a carga semântica de cada vocábulo, ou estabelece tensão entre o
significante e o significado.

Palavras­chave: Lírica Moderna; constituição do sujeito; Camilo Pessanha; Cruz e Souza;


hipotipose.

Abstract: This paper propose a study about Camilo Pessanha’s poetry and Cruz e Sousa’s poetry
considering the plastic force of the words in their poems. This very use of the words thrives in
extracting them the force to evoke images and to make sounds powerful, extensive and long­lasting.
They are also resourceful to put meaning, significant and sound in tension.

Key­words: modern poem; self constitution; Camilo Pessanha; Cruz e Sousa; hypotyposis.

Como apontou Fernando Guimarães, o Simbolismo define­se pela estética da figuração que, ao pôr
em questão a estética da representação, cria nova concepção artística, estética, fundamentada no
princípio das relações analógicas, metafóricas. No Simbolismo e, a partir dele, nas vanguardas,
sobressaem as metáforas inusitadas, as analogias inesperadas, novas, e até experimentais, entre
sons, imagens, conceitos. O poder da palavra (dos verbos e especialmente dos nomes) é ampliado
de modo que todos os aspectos constitutivos de um vocábulo mantenham relação analógica com
outros vocábulos – não somente pela via do significado, mas também pela via dos sons e das
imagens que suscitam. Assim, concorrem, numa mesma composição, logopéia, fanopéia e
melopéia – para empregar os termos com que Ezra Pound pensou e caracterizou a poesia, antes da
modernidade e para definir a própria modernidade – com o propósito de ampliar ao máximo a
capacidade sugestiva de cada vocábulo, de cada verso, do poema em sua totalidade.
Por isso, ao tentar fixar a dimensão estética do Simbolismo, sobressai a constatação de que se
tratou da criação de uma poética cujo intento é ampliar ao máximo a capacidade de cada vocábulo,
isoladamente e em relação estreita com os demais, de produzir figuras, de produzir sons que
suscitam figuras, imagens, sensações, rememorações – e não se pode esquecer que todos esses
elementos e tudo aquilo que cada um representa deve ser evocado e esperado nesse
encadeamento assindético que não sobrepõe um ao outro, ao contrário, torna possível que figuras,
imagens, sensações, rememorações sejam suscitadas a um só tempo. Desse modo, cria­se

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intensa relação entre todos os elementos constitutivos do verso, do poema, da poesia, que passa a
ser vista como um todo orgânico em que tudo significa e/ou sugere algo.
Charles Baudelaire, em “A teoria das correspondências”, escreveu: “Entre os excelentes poetas não
há metáfora, comparação ou epíteto que não seja adaptação matematicamente exata na
circunstância atual, porque essas comparações, metáforas e epítetos são tomados das
inesgotáveis reservas da universal analogia, e porque não podem ser colhidos noutro lugar”
(BAUDELAIRE, 1951, p. 1077­1078). Significa, portanto, que um não pode existir sem o outro: o
mundo material, natural, não pode ser tido isoladamente, como conjuntura perfeita como na
representação mimética, nem o mundo espiritual pode ser considerado na sua perfeição plena,
absoluta, de modo isolado, visto que essa perfeição está em ligação contígua, recíproca,
conversível com o plano material, natural. A função do poeta é apreender “o eco misterioso das
coisas e sua secreta harmonia” e transpô­los para a criação artística a qual, pelas analogias que a
constituem, deve sugerir as correspondências universais. René Ghil, em “Instrumentação verbal”,
afirmou:

A linguagem é, ao mesmo tempo, som e signo: como signo, é a representação figurada da Idéia.
Como som, é passível de ser arranjada musicalmente, e, até certo ponto, é assimilável ao som
inarticulado. Mas sua qualidade de signo ou símbolo indica que é sobretudo idealmente que se pode
considerá­la como música e que ela não poderia dissolver­se, como som inarticulado, em uma
combinação de notas harmônicas que exprimem a emoção apenas pelos acordes vibratórios. (In:
MICHAUD, 1969, p. 787.).

Vê­se, aqui, o princípio simbolista, que antecipa em muitos anos o Círculo Lingüístico de Praga, de
que a linguagem deve ser considerada em sua dupla composição de significado e significante: o
primeiro, como reitera René Ghil, “é a representação figurada da Idéia”; o segundo, a materialidade,
o aspecto físico, dos signos. Quer da perspectiva do significado, quer da perspectiva do
significante, os vocábulos existem em intrincada relação analógica uns com os outros – relação que
tanto pode manter indissociáveis significado e significante (simbolismo universal e simbolismo
textual, para retomar Baudelaire e Fernando Guimarães) como pode gerar uma das tensões
possíveis na composição poética simbolista ao permitir leituras diferentes e às vezes conflitantes
entre significado e significante, entre textualidade e materialidade dos signos.
Esse processo é evidente, por exemplo, em um poema como “Foi um dia de inúteis agonias”, de
Camilo Pessanha, cujos primeiros versos seriam já significativos para o demonstrar:

Foi um dia de inuteis agonias


Dia de sol, inundado de sol
Fulgiam nuas as espadas frias
Dia de sol, inundado de sol.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
(PESSANHA, 1994, p. 109).

A sintaxe fragmentada sugere, metaforicamente, a maneira fragmentada com que o sujeito poético
apreende o mundo, o real circundante; as aliterações (/f/, /s/, /d/, /m/, /n/) e assonâncias (/i/ e /u/)
aproximam analogicamente, pela sonoridade, vocábulos de significado muito diferentes, como “dia”,
“inundado”, “fulgiam”, “frias”, e colaboram para a manutenção do estado de dor, de agonia – pelo
fechamento e agudização das vogais e pela sensação de prolongamento que as nasais e líqüidas
possibilitam. As rimas internas (dia e agonias, no v. 1; fulgiam e frias, no v. 3; inúteis, inundado,
nuas e inundado, v. 1 a 4) e as rimas externas (ABAB), bem como as repetições (os versos 2 e 4
são idênticos; o vocábulo “dia” é empregado nos versos 1, 2 e 4) efetivam a ligação material entre
versos, sons e imagens – ligação que coesiva e coerentemente muito pouco aparece na
composição. As imagens suscitadas por cada verso são tão estilhaçadas quanto cada verso – que,
sintaticamente e do ponto de vista da coerência argumentativa, se encerra em si mesmo – e
apenas pela figuração (que evoca e reúne os procedimentos estético­formais acima arrolados) é que
se estabelece nexo entre as imagens e alcança­se significado possível.
Veja­se outro exemplo: em “Violoncélo”, a disforia pela fragmentação do eu e da percepção de
mundo é acompanhada pela fragmentação sintática:

Chorae, arcadas
Do violoncélo,
Convulsionadas.
Pontes aladas

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De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos.
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio os barcos.
.........................
(PESSANHA, 1994, p. 130­131).

Note­se a economia dos versos e a economia dos elementos conectivos nessa primeira estrofe:
são dez versos de apenas 4 sílabas poéticas terminados, muito freqüentemente (são oito vezes nos
dez versos do excerto transcrito), por um sinal de pontuação que, sonora e visualmente, parece
limitar, fechar, cada verso em si mesmo. Do ponto de vista temático, há quatro pequenos
conjuntos: os versos 1 a 3; os versos 4 e 5; os versos 6 e 7 e os versos 8 a 10, que estão
relacionados entre si, seja porque os versos 1 a 3 e 6 e 7 podem, analogicamente, aludir ao
movimento do arco no instrumento de cordas e à idéia de pequenos vôos, seja porque os versos 4 e
5 e 8 a 10 podem evocar uma mesma paisagem: as “pontes aladas”, visto que suspensas, “por
baixo” da qual “passam [...] os barcos”. Numa perspectiva de que a analogia, segundo o senso
comum, são idéias afins e, segundo a filosofia grega, é a identidade de relação entre pares de
conceitos dessemelhantes, pode­se perceber ambas nos versos em tela. Da dessemelhança entre
“arcadas” e “pontes” consideradas pontualmente chega­se, pela proximidade sonora, pelo desespero
do sujeito poético, a tão possível relação entre as duas imagens que permite ao leitor fazer uma
derivar da outra – das cordas tensionadas do violoncelo tocadas pelo arco vê­se a ponte arcada que
liga uma corda à outra assim como das pontes em arcos, em seqüência, pode­se imaginar o
movimento das “arcadas / Do violoncélo”. Desse modo, não parecerá absurdo afirmar que as
imagens parecem “soltas” e solicitam ao leitor o estabelecimento das possíveis relações entre
“arcadas”, “pontes”, “arcos” e “barcos”. Naturalmente, favorecem essa relação e essa leitura
metafórica a insistência num campo sonoro em que sobressaem as aliterações em nasais (/m/, /n/)
e liquidas (/l/), em dentais (/t/, /d/), plosivas (/p/, /b/) e velares (/k/) e nas fricativas (/s/, /x/, /z/, /v/),
que se repetem ao longo dos dez versos transcritos e ao longo de todo o poema; favorecem­na,
também, algumas rimas, como “aladas” e “arcadas” (v. 1 e 4), “arcos” e “barcos” (v. 7 e 10), que
aproximam as “arcadas” e as “pontes”.
Nesses versos, do mesmo modo que a percepção do sujeito poético apresenta­se estilhaçada,
também o poema parece estilhaçado, uma vez que as imagens não são lógica e seqüencialmente
encadeadas; uma vez que tais imagens são breves momentos captados não sem a intervenção do
imaginário ou do inconsciente do sujeito poético – imaginário ou inconsciente que “se cola” às
percepções do real circundante de modo que uma imagem se funde à e se confunde com a outra;
imaginário que determina as relações e correlações entre o real circundante apreendido e o que vai
no interior do eu (revelando­o, portanto) ao constituir a seqüência inusitada de imagens.
Fernando Guimarães, em Poética do Simbolismo em Portugal, reitera que

a poética simbolista nunca deixou de oscilar entre dois extremos: a referencialidade da linguagem,
extremo esse que se punha em questão, e o isolacionismo fonético, o qual não deixava de exercer
especial fascínio sempre que havia empenho em se valorizar a música do poema (1990, p. 21).

Esse exercício estético parece evidente nos excertos da poesia de Pessanha estudados, nos quais
estão patentes as relações analógicas textuais e materiais. Entretanto, interessa citar um exemplo
em que avulta a ênfase no segundo “extremo” – o “isolacionismo fonético” com objetivo de ampliar
ao máximo a musicalidade dos versos. Nestes versos de Eugénio de Castro, destacam­se as
analogias que se pode estabelecer entre os sons afins, mais do que as analogias entre imagens e
sons e as analogias entre significado e significante:

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...


O sol, o celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...

As estrelas em seus halos


Brilham com brilhos sinistros...
Cornamusas e crotalos,
Cítolas, cítaras, sistros,

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Soam suaves, sonolentos,


Sonolentos e suaves,
Em suaves,
Suaves, lentos lamentos
De acentos
Graves,
Suaves...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
(CASTRO, 1967, p. 58).

Processo parecido parece patente também em “Antífona”, de Cruz e Sousa:

Ó formas alvas, brancas, Formas claras


De luares, de neves, de neblina!...
Ó formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,


De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolência de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,


Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte,


Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
(CRUZ E SOUSA, 2000, p. 63).

Nos versos transcritos, sobressai o aspecto significante dos vocábulos, que são postos em relação
de contigüidade sonora, seja pela via das assonâncias (por exemplo, /a/ e /e/, nos versos 1 e 2; /a/
e /i/ no verso 3), seja pela via das aliterações (especialmente, as nasais e as líquidas). O poeta
estabelece um jogo fonológico através do qual faz imperar a conjuntura fluida, vaga, levemente
ondulante que põe em destaque o que o plano do significado evoca: as “Indefiníveis músicas
supremas”. O envolvimento pela música, num exemplo muito bem acabado do que significa sugerir
/ despertar sensações através da música conforme institui a poética simbolista francesa, leva o
sujeito poético ao êxtase expresso na estrofe final, que se inicia pelo verso integrador, contundente,
sinestésico, polissindético: “Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte”. Desse êxtase eufórico, o poeta
leva o leitor para o aparentemente disfórico: “Nos turbilhões quiméricos do Sonho, / Passe,
cantando, ante o perfil medonho / E o tropel cabalístico da Morte...”. O “aparentemente disfórico”
parece pressuposto, talvez, no “perfil medonho” e no “tropel cabalístico da Morte”; entretanto, se o
“perfil medonho” pode ser o do sujeito poético que contempla o desfilar sinestésico de visões e sons
e o “tropel cabalístico da Morte”, é a música, presente como elemento de sugestão e de evocação
de sensações desde o primeiro até o último verso do poema, que pode pôr em relação de
contigüidade sujeito poético, sensações, realidade onírica e a Morte.
Se, como expôs Baudelaire, um dos propósitos da modernidade é produzir choque no leitor através
da quebra brusca de tom (BAUDELAIRE, 2002), pelo que se discutiu até aqui é patente que as
analogias têm importante papel no costurar o que parece desalinhavado demais; no associar, ligar,
segundo nova lógica – a da figuração – o que parece estanque. Recorra­se, novamente, à poesia de
Camilo Pessanha para tratar, agora, da analogia e de outro elemento estético­formal importante no
contexto da poesia finissecular, o metaforismo inusitado, sob a perspectiva da adjetivação e da
substantivação, associadas ao emprego de léxico pouco comum, inaudito e rebuscado. Leia­se o
poema:

Cristalisações salinas,
Myrrhae na areia o plasma vivaz,

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Não se desenvolvam as ptomainas.


Que adocicado! Que obcessão de cheiro!
Putrescina! – Flor de lilaz!
Cadaverina! – Branca flor do espinheiro!
(PESSANHA, 1994, p. 125).

Nos três primeiros versos cria­se, aparentemente, o cenário: as “cristalizações salinas” podem ser
os pequenos blocos de sal que se formam nas partes sólidas banhadas pela água do mar, que se
evapora pela ação do sol; tais cristalizações, brancas ou transparentes, se contrapõem, como a
“areia”, ao vermelho intenso do “plasma vivaz”, sinal, como a adjetivação indica, de vida. Se
biblicamente o sal é “o sal da vida”, é o “tempero”, o elemento necessário a ela, e se o plasma é
substância orgânica fundamental, vital, a partícula negativa que inicia o verso 3 pode reiterar isso,
uma vez que afirmar imperativamente: “Não se desenvolvam as ptomainas” significa, a princípio,
recusar a putrefação das matérias animais após a morte. Entretanto, os dois versos que finalizam
esse sexteto exclamam pela “putrescina” e pela “cadaverina”, aminas tóxicas que sucedem as
ptomainas e finalizam o processo de decomposição e putrefação, liberando gás carbônico e gerando
odor fétido que intoxica. Ao sujeito poético, porém, tais substâncias causam outro efeito, como
mostram as enfáticas exclamações: “Que adocicado! Que obcessão de cheiro!” e as exclamações
adjetivas que qualificam a “putrescina” e a “cadaverina” – “Flor de lilaz!” e “Branca flor do
espinheiro!”, respectivamente. Nessa perspectiva, as “cristalisações salinas” que iniciam o poema
adquirem outro sentido: não são os cristais de sal como hipoteticamente se propôs, mas são a
própria putrescina, que, isolada, apresenta­se como cristal sólido e solúvel em água. Em evidente
tensão vida­e­morte, o tom efusivo de um sujeito poético que se mostra nitidamente apenas na
locução das imperativas – versos 2 e 3 (os únicos que contém verbos; os demais são
[integralmente] nominais) – justifica­se porque a dor e o prazer estão muito bem amalgamados
(assim como as rimas, que seguem o esquema ABACBC) de modo que as imagens que gerariam
disforia, angústia, aversão, geram a euforia, a efusão, a enfática expressão de alegria diante da
possibilidade de decompor­se e dissolver­se (na água), de deixar de ser indivíduo e voltar a ser
todo, uno. É nessa leitura que a tensão parece se desfazer e avulta o reino da analogia, o “eco
misterioso das coisas e sua secreta harmonia”. Desse modo, talvez, se possa conjeturar que a
assonância em /a/ e a gradação de cores – do vermelho para o lilás e desse para o branco –
contribuam para reiterar, respectivamente, a abertura para a totalidade (a vogal /a/, tida como
aberta, também está presente nas rimas de quatro dos seis versos) e o franqueamento para a
eufórica luminosidade que abre e fecha o poema (“Cristalizações” e “Branca”) – é de notar que
aquilo que é da ordem do vermelho e do lilás permanecem contidos por essas duas imagens, como
o sujeito poético está nas imagens que apresenta do real circundante. A aparente impessoalidade
do poema de Pessanha decorre de um processo de deslocamento que se tornou cada vez mais
comum na lírica moderna: o real circundante é evocado de um ponto de vista deslocado, de um
ponto de vista que é o do próprio eu, que vê no “fora”, analogamente, aquilo que lhe vai dentro.
Assim, se se considera que nesses versos o sujeito poético “escondeu­se” e deu­se a conhecer
apenas nas imperativas e nas exclamativas, é patente que essas construções constituem recurso
estético que dá o tom à composição e que o que resta é a perspectiva impressionista do eu, que
lança para o exterior as sensações, impressões, que dominam o seu interior.
A modernidade se forma, portanto, numa conjuntura em que: as alterações estético­formais são
decisivas para a consolidação e desenvolvimento dos temas; os limites e as oposições simples são
minimizados diante da constante sensação de deslocamento, da constante tensão, do recorrente
sentir­se em suspenso; a consciência da linguagem começa a se estabelecer decisivamente no
sentido de ser o contexto em que o sujeito se procura, se mostra, se constitui, no sentido de se ter
a consciência plena de que a linguagem é a essência da poesia – não somente porque a forma,
mas sobretudo porque a realidade da linguagem torna­se equivalente à realidade do mundo. Ora, a
tensão e o descentramento são dos temas mais importantes da modernidade, assim como o é a
capacidade de evocar, presentificar as pessoas, nomear e adjetivar os objetos, as coisas – muito
menos na perspectiva de representação do real que na intenção de acumular pessoas, objetos e
coisas de infinito, de permanência pela palavra. Entrementes, o que se pretendeu destacar é como
a intenção de chocar o leitor pelo corte brusco de tom derivou de escolhas estético­formais que têm
as relações analógicas como base. Se se trata de decodificar o cifrado, decifrar o que é de natureza
hieroglífica, apreender o simbolismo universal, o passo fundamental é reconhecer os mistérios da
analogia, de que trata Baudelaire – analogia que o poeta, sendo um tradutor, um decifrador,
incorpora em seu texto como modo de sugerir e, ao mesmo tempo, atingir a correspondência
universal, quer pela imaginação apoiada na razão (evidente, por exemplo, na racionalidade lúdica de
opções estético­formais), quer pela imaginação que decorre da sensação (indissociáveis na poética

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simbolista).
Sobre a elaboração estética do simbolismo, pode­se afirmar que:

O poema simbolista é o poema animado não tanto pela voz que inspira vida a ele, mas pelo olho
móvel que vagueia incessante, para frente e para trás, por sobre a página, preso num instante
sempre recorrente e de importância vairável. A ausência de la direction personnelle enthousiaste de
la phrase (direção pessoal entusiástica da frase), como diz Mallarmé em Crise de vers (1886­92­96),
possibilita uma arte que deve mais às formas do que ao poeta. A forma multiplica os significados,
mesmo quando os articula; o poema se torna uma multiplicidade de expressões totais e unificadas.
A sintaxe excêntrica, mas extremamente meticulosa, de Mallarmé descentraliza a frase, mais
desafiando do que pronunciando uma solução. E muitas vezes esse grimoire altamente meticuloso
rompe­se de súbito com inopinadas intercalações de substantivos, gramaticalmente soltos,
irrequietos, maravilhosamente errantes [...] (Clive Scott, “Simbolismo, decadência e
impressionismo”, Apud BRADBURY & McFARLANE, 1999, 167).

É o que se quis demonstrar aqui, embora, nos textos analisados, isso pareça mais evidente em
Pessanha do que em Cruz e Sousa. Quis­se, também, reiterar o imperativo de estudar a poética
simbolista no Brasil e em Portugal como “lírica moderna”, proponente e antecipadora da intensa
ruptura estético­temático­formal geralmente atribuída à Geração de Orpheu e aos ícones da Semana
de 22. Compondo o poema como um jogo intrincado onde tudo se relaciona com tudo, ao mesmo
tempo em que, à primeira vista, tudo parece solto, e/ou desarticulado, e/ou fragmentado, Pessanha
e Cruz e Sousa fazem ver que em sua poesia o tratar de si e a constituição e o esvaimento do Eu
adquirem dimensões um tanto particulares pelo fato de que recursos clássicos como a ekphrasis, a
hipotipose ou a dispositio estão fundados num recurso simbolista por excelência: a ação dos
sentidos e a importância deles na percepção íntima do exterior e na relação que se estabelece entre
sujeito poético e mundo e desenvolvem­se, à moda parisiense, na esteira das transformações que
concretizam a renovação lírica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.


_____. Ouvres complètes. Paris: Gallimard, 1951.
BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James. Modernismo. Guia Geral. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
CASTRO, Eugénio. Obras poéticas de Eugénio de Castro. Vol. I. Lisboa: Parceira A. M. Pereira
Lda., 1967.
CRUZ E SOUSA. Obra Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 2000.
GUIMARÃES, Fernando. Poética do Simbolismo em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da
Moeda, 1990.
MICHAUD, Guy. Message poétique du symbolisme. Paris: Nizet, 1969.
PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Ed. crítica de Paulo Franchetti. Campinas: Editora da Unicamp,
1994.
POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Editora Cultrix, [s.d.].

1. Esse texto dialoga com o ensaio “As metáforas e as analogias inusitadas – breve estudo da
poesia portuguesa de fim­de­século XIX”, apresentado no colóquio “Expressões da Analogia”,
realizado em maio de 2008 na Universidade Nova de Lisboa, e publicado em Expressões da
analogia – Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri, 2008, pp. 241­248.

2. Professora doutora da Área de Literatura Portuguesa da FFLCH / USP.

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Créditos.

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