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O GÊNERO LÍRICO

Elaine Cristina Cintra

1 O QUE É A POESIA LÍRICA?

“Canção noturna do viandante”

Em todos os cumes:
sossego.
Em todas as copas
não sentes
um sopro, quase.
Os passarinhos calam-se na mata.
Paciência, logo
sossegarás também.

(Tradução: Rubens Torres Filho).

A poesia “Wanderers Nachtlied”, de autoria do poeta alemão romântico


Goethe, apresenta-se disposta em versos, e sua ambientação se dá com forte
impregnação intimista e uma composição imagética. Dificilmente um leitor teria
dúvidas que se trata de um texto poético e não de uma expressão realizada dentro
das tipologias dos discursos em prosa. E, neste sentido, a poesia é tratada aqui
como um substrato inerente ao gênero lírico. Se em uma vislumbrada de olhar
somos de imediato levados a crer que se trata de uma poesia lírica, cabe-nos agora
refletir quais foram os pré-conhecimentos que nos levaram a esta categorização.
Afinal, o que é mesmo a poesia lírica e como defini-la?

CUIDADO!
Prosa e poesia são tipologias independentes
do gênero literário.
Tanto a prosa quanto a poesia podem ser
lírica, dramática ou épica. Ou podem não
ser literárias
Nesta parte da apostila, trataremos do gênero lírico em seus aspectos
teóricos, críticos e suas especificidades, em geral. Também daremos um panorama
geral de alguns de seus subgêneros, como o soneto, a elegia, a ode, a canção. O
objetivo geral da discussão é que o aluno tenha recursos teóricos para as análises
que serão realizadas na próxima unidade, distinguindo o tipo de poema, as
características da lírica nos textos, e as complexidades do eu lírico durante os
períodos literários.

Lirismo, poema, poesia

Antes de qualquer coisa, no entanto, vamos diferenciar poesia, poema e


lírismo. Já assimilamos, pelo explicado no item I, que a lírica é um dos gêneros
literários, e corresponde à expressão de um sujeito particular, em uma linguagem
imagética e um ritmo específico.
Em geral, o gênero lírico é modulado a partir de um tipo de texto composto
por versos e estrofes, o poema. O poema foi usado, na tradição poética tanto para
os textos dramáticos como para os textos épicos, no entanto, hoje, temos como
convenção que este tipo de texto seja específico da lírica. Mas é preciso ter cuidado:
nem todo poema é lírico, ou mesmo, poético, e nem toda lírica aparece em versos,
como vimos acima no exemplo de Baudelaire. Na nossa literatura nacional há
vários trechos de prosadores que são extremamente líricos, mais líricos, inclusive,
que muitos poemas metrificados rigorosamente, com rimas e outros recursos do
poema. Guimarães Rosa, Clarice Lispector são bons exemplos de prosadores que
inundaram seus textos com o elemento poético.
A poesia, por sua vez, é uma essência abstrata que pode ser localizada tanto
em um texto disposto em versos (o poema) quanto em um texto em prosa ou
mesmo em um perfume, uma música, uma pessoa. Quantas vezes dizemos que um
filme é poético, que uma pessoa é poética, que um momento foi poético pela sua
beleza, sua densidade emocional ou mesmo sua perfeição estética? A poesia é isto:
etimologicamente presa a uma palavra grega, poiesis, que indicava uma criação
estética, a poesia pressupõe originalidade e beleza. E pode estar em tudo.
Onde chegamos? A lírica é sempre poética, mas, mesmo estando quase
sempre expressa em forma de poema, esta condição não é obrigatória. O poema
pode ser lírico, dramático ou até narrativo, como vimos no exemplo “Poema tirado
de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira. E a poesia pode estar no poema,
em todos os gêneros, em todas as artes, nas pessoas, nos elementos da natureza,
etc.
Dessa forma, já podemos adiantar que a definição de poesia, tal como a de
literatura, não é tão direta e simples. Vários autores tentaram em poucas palavras
defini-la:
 Nietzsche: No fundo, o fenômeno estético é simples: só é poeta o homem que possui
a faculdade de ver os seres espirituais que vivem e brincam em torno dele. (A origem
da tragédia, p.56).
 Octavio Paz: Palavra poética é a palavra que deixa de ser palavra para ser imagem.
 Pessoa: Poesia é a emoção trabalhada pela ideia.
 Mallarmé: Poesia é feita de palavras.
 Saint-John Perse: pura linguagem sem ofício.
 Roman Jakobson : mensagem voltada para a mensagem.
 Cecília Meirelles: palavras olhando apenas para si mesmas.
 Augusto de Campos: miragem que em mim mira.
 Coleridge: as melhores palavras na melhor ordem.
 Maiakovski: uma viagem ao desconhecido.
 Mário de Andrade: o que o meu inconsciente me grita.
 Ezra Pound: essências e medulas.
 Dante: palavras postas em música.
 Ricardo Reis: música que se faz com ideias.
 Shelley : a expressão da imaginação.
 Novallis: a religião original da humanidade.
 Schiller: uma força divina e misteriosa, que age de maneira incompreendida.
 Goethe : a fala do infalível.
 Paul Valéry: permanente hesitação entre som e sentido.
 Heidegger: fundação do ser mediante a palavra.
 Paulo Leminski : a liberdade da minha linguagem.
 Oswald de Andrade : a descoberta das coisas que eu nunca vi.
 Baudelaire: a ida ao fundo do desconhecido para encontrar o novo.

Como se vê, as afirmações acima apontam para vários caminhos de reflexão,


tais como: a poesia como arte da palavra (Coleridge, Jakobson, Cecília Meireles, ),
a poesia como linguagem religiosa (Schiller, Novallis), a poesia como revelação do
inconsciente e do desconhecido (Nietzsche, Maiakovski, Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Baudelaire), a poesia como música (Dante, Ricardo Reis), a
poesia como essência do homem (Pound, Heidegger), a poesia como palavra
essencial (Goethe), a poesia como liberdade (Leminski).
Será que uma definição exclui outra ou podemos considerar que a poesia é
um tipo de discurso que, durante a trajetória humana, foi se modulando a partir
das transformações históricas? No romantismo, por exemplo, momento estético
em que o sujeito centraliza o debate estético, tanto mais poético seria um texto
quanto mais subjetivo fosse. No simbolismo, o poema é visto como uma sinfonia e
as potencialidades rítmicas do texto lírico era seu mais importante fundamento.
No modernismo, a subjetividade expressiva perde campo, com a crise do sujeito
instaurada a partir do século XIX, para os exercícios metalinguísticos, pois cabia ao
poeta um extremo conhecimento de sua arte, e uma posição crítica diante dela.

Características do gênero lírico


Como podemos perceber, o gênero lírico está intrinsecamente ligado ao
elemento poético. O drama e a narrativa não precisam ser poéticos por si só, mas
a lírica tem que trazer em si a poesia. Assim, podemos afirmar, a esta altura, com
tranquilidade que o lirismo é sinônimo de poesia, apesar de poesia não ser
encontrada somente no texto lírico.
Voltemos à poesia de Goethe apresentada no início desta parte da apostila.
A “Canção noturna do viandante” é considerada por vários autores (inclusive eu
mesma) o poema mais lírico de todos os tempos. Como isto ocorre?
De maneira geral, é possível perceber no poema um tom intimista, de volta
para si mesmo, extremamente subjetivo. O ambiente é moldado segundo o mundo
interior do sujeito que está se expressando. Em outras palavras, a natureza,
elemento vital da poesia romântica, metaforiza o eu e seus sentimentos.
O som, que podemos notar pelas rimas e pelas assonâncias no poema
original, formam um importante procedimento para se conseguir este tom de
interioridade que o poema evoca. O ritmo reforça este silêncio no alto de uma
montanha, à noite.
Mais do que isto, o poema é formado por imagens, que, na concepção de
Octavio Paz, é o uso de uma palavra para evocar outros sentidos que não os seus
próprios. No caso deste poema, o silêncio daquela montanha metaforiza a morte,
reforçada pela imagem da noite, que em linguagem conotativa, ao contrário da
manhã que é metáfora da infância, significa o final da vida. Portanto, é da morte
que o poema trata:

Paciência, logo
sossegarás também.

Este poema, extremamente melancólico e que fala de uma das questões mais
importantes do ser humano, condensado ao máximo em poucos versos e poucas
palavras, mas modulado por um tom intimista e sentimental, consegue provocar
em seu leitor um recolhimento e uma reflexão que somente o gênero lírico pode
acionar. Nas várias vezes que li este poema em sala de aula, sempre, sem falha
alguma, a reação pós-poema foi um silêncio imenso, profundo.
Através de “Canção noturna do viandante”, podemos pensar a lírica através
dos seguintes postulados:

 SUBJETIVIDADE: a lírica é o mais subjetivo dos gêneros literários. Para


Hegel, o gênero lírico é a expressão de emoções e disposições psíquicas,
muitas vezes também de concepções, reflexões e visões enquanto
intensamente vividas e experimentadas. Por ser a expressão mais
imediata e plena de um sujeito, Jakobson afirma que a função
dominante na lírica é a emotiva, ou seja, centrada no emissor da
mensagem. Para Stalloni, esta é a marca diferenciadora da poesia e
outros discursos: “a maneira de dar à poesia uma consciência "genérica"
operou-se pelo viés da noção de "lirismo", que marca um modo de
enunciação (o poeta exprime-se em seu nome), uma temática (ele
exprime seus sentimentos pessoais) e uma pragmática (sua mensagem
é recebida como uma confidência).” (STALLONI, 2001, p. 137-138).
Intimismo, confidência, subjetividade – este é o tom do gênero lírico.

 A FUNÇÃO POÉTICA: por outro lado, a lírica é o laboratório da palavra.


Nela é que as novas configurações de sentido são moduladas. A lírica é
o momento de criação de novos sentidos à palavra, de novos efeitos. Por
isso, pode-se pensar que toda lírica é, por si só, pelo peso que remente
à palavra, metalinguística. As escolhas das palavras, a originalidade, a
busca de imagens, os arranjos rítmicos e sonoros em geral, tornam a
lírica um discurso com elevada performance linguística. São
componentes tradicionais (mas não obrigatórios) do discurso lírico: o
verso (nível métrico e rítmico); a imagem: "A poesia, como as outras
formas literárias, é uma arte mimética, cuja particularidade consiste em
representar a realidade por vias oblíquas, através de figuras que são
principalmente comparações, metáforas, metonímias.". (STALLONI,
2001, p. 142); a prosódia: parentesco com a música: Orfeu.

 RELATIVA BREVIDADE: ao contrário da prosa, que é um discurso com


continuidade, na lírica a palavra é circular, como Octavio Paz afirma.
Assim, a poesia lírica traz um eterno retorno, a repetição de sons (como
nas rimas, nas anáforas, etc.), de assunto, o que leva a uma condensação
que os outros gêneros, em geral, não apresentam.

 TEMPO LÍRICO: na lírica, a emoção e o sentimento se apresentam de


maneira imediata, no presente, ao contrário da narrativa, que sempre se
realiza no passado. Na lírica, a memória é re-apresentada,
presentificada, retornando ao momento pela ficção.

 MUSICALIDADE: A lírica usa da linguagem com um ritmo próprio,


dando ao texto uma musicalidade bastante ressonante. O ritmo da lírica
se faz pelas figuras de repetição, como rimas, aliterações, anáforas, etc.,
ou pela configuração das tônicas e átonas. Antes ligado ao metro, o ritmo
moderno depreende-se das sílabas e forma, juntamente com as imagens,
um elemento só. De qualquer forma, o gênero lírico é melódico.

 IMAGEM: as imagens, da mesma forma, marcam o gênero lírico, de


maneira diferente de outros gêneros. Na poesia lírica, as imagens
confluem para uma constituição pictórica do texto. Em outras palavras,
as imagens líricas são a essência do poético, diferentemente de outros
tipos de discurso.

 EU LÍRICO: a lírica não apresenta um narrador, ou personagens, mas a


persona (“O poeta é um fingidor”), máscara de um eu que conduz a fala,
e que já foi chamado de “eu lírico”, “eu poético”, “sujeito lírico” ou
mesmo “o poeta”. Esta categoria é um substrato ficcionalizado do sujeito
(evite dizer “o autor” ou “o narrador”), muito próximo do autor, sem ser
ele. Uma máscara. Assim, sem ser o eu empírico, isto é, o autor
propriamente dito, o sujeito lírico é uma invenção literária que acaba
por desvelar questões essenciais do autor e, em alguns casos, até mesmo
dados autobiográficos. Em nenhum outro texto, a ambiguidade e
“indecidibilidade” (termo que Paul De Man usa para estas fragilidades
de gênero na lírica) é tão evidente no texto literário.

LEIA ...
Para ampliar a discussão, leia o que alguns teóricos falaram a respeito da
poesia:

WILSON, Edmund. O castelo de Axel.


É tarefa do poeta descobrir, inventar, a linguagem especial que seja a única capaz
de exprimir-lhe a personalidade e as percepções. Essa linguagem deve lançar mão
de símbolos: o que é tão especial, tão fugidio e tão vago, não pode ser expresso por
exposição ou descrição direta, mas somente através de uma sucessão de palavras,
de imagens, que servirão para sugeri-lo ao leitor. (WILSON, 1967, p. 22).

HEGEL. Estética: poesia.


Efetivamente a principal missão da poesia consiste em evocar a consciência, a
potência da vida espiritual, e tudo aquilo que, nas paixões e sentimentos humanos,
nos estimula e nos comove ou desfila tranquilamente diante do nosso olhar
meditativo, quer dizer o reino ilimitado das representações, das ações, das
façanhas, dos destinos humanos, a marcha e as peripécias do mundo e a maneira
como ele é regido pelos deuses. É por isso que a poesia sempre foi, e continua a ser,
a fonte na qual o homem sacia a sua sede de conhecer, o seu desejo de se instruir.
Aprender e ensinar, é comunicar e assimilar-se o conhecimento do que existe. As
estrelas, as plantas, e os animais não conhecem ou não têm consciência das leis
que os regem; mas o homem não existe senão em virtude da lei da sua existência,
quando sabe de si e de quanto o rodeia; deve conhecer os poderes que o impelem
e o dirigem, e esse conhecimento é-lhe dado pela poesia sob uma forma
substancial. (HEGEL, 1964, p. 38).

Ao separar-se da objetividade, o espírito reclui-se em si mesmo, perscruta a sua


consciência e procura dar satisfação à necessidade que sente de exprimir, não a
realidade das coisas, mas o modo por que elas afetam a alma subjetiva e
enriquecem a experiência pessoal, o conteúdo e a atividade da vida interior. Por
outro lado, para que esta revelação da alma se não confunda com a expressão
acidental dos sentimentos e representações ordinária, e tome a forma poética, será
necessário que as ideias e impressões que o poeta descreve, sendo pessoais,
conservem todavia um valor geral, quer dizer, sejam autênticos sentimentos e
considerações capazes de despertar em outras pessoas sentimentos e
considerações latentes, despertar esse que só pode ser dado graças a uma expressão
poética viva. (HEGEL apud ACHCAR, 1994, p. 37).

PAZ, Octavio. Verso e prosa. In: Signos em rotação.


CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. In: Valise de Cronópio.
Argumente sobre as características líricas dos poemas abaixo:

(JOAQUIM CARDOZO)
(CECÍLIA MEIRELES)

(MANUEL BANDEIRA)
(AUGUSTO DOS ANJOS)

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