Você está na página 1de 59

Universidade Veiga de Almeida – Campus Tijuca

Apostila de Lírica Brasileira


(1ª parte)

Gregório de Matos Cláudio Manuel da Costa Tomás Antônio Gonzaga

Gonçalves Dias Álvares de Azevedo Castro Alves

CRISTINA PRATES

Universidade Veiga de Almeida


2º Semestre de 2017
2
INTRODUÇÃO

1. O gênero lírico

Como enfatizaremos, nesse período, o projeto lírico da poesia brasileira, convém mencionarmos a questão do
gênero e do discurso lírico.
De Platão à contemporaneidade, a problemática dos gêneros reflete o desejo do homem de classificar, de filiar
cada obra literária a uma classe ou espécie, o que fica claro se associarmos a palavra à sua origem (do latim genei-eris),
que significa tempo de nascimento, origem, classe, geração.
Em Platão (Atenas, cerca de 428 a.c – cerca de 347 a.c), filósofo grego, discípulo de Sócrates e mestre de
Aristóteles, encontramos a divisão tripartida dos gêneros, considerando-se se o grau de imitação (mímesis) que cada um
estabelece com a realidade, a partir do conceito sobre o ―mundo das ideias‖, onde estaria a essência.
A realidade humana é, para Platão, basicamente imitativa e distante da essência do ser – mundo das ideias –.
Nesse mundo imitativo, em primeiro lugar, estaria o artesão e só depois, de modo degradado, a imitação artística. Por sua
função menor, Platão expulsa os poetas da República.
Para Aristóteles (384-322 a.c), a mímesis recebe um novo sentido: ―imitar, representar, criar imagens é natural ao
ser humano, e, sendo a forma imanente ao objeto, a obra de arte é uma realidade própria, podendo ser mais importante
que a própria história‖ 1.
Ao relacionar a poesia como o mundo do possível e do impossível, o texto aristotélico continua sendo o texto
básico para o enfoque dos gêneros. Realizado a partir de um inventário de modelos com características precisas – ordem,
harmonia, lógica, equilíbrio, curiosamente, no entanto, sua obra Retórica e Poética, tratou, sobretudo da tragédia e
alguma coisa do poema épico, não fazendo referência explícita à poesia lírica, pelo menos no que tange ao que dela
restou.
Não nos cabe, nesse momento, traçar um estudo cronológico a propósito das diversas interpretações críticas sobre
os gêneros, mas vale ressaltar a necessidade de não reduzirmos ―uma obra literária a um mero catálogo de regras
apriorísticas‖, como nos alerta a professora Maria Lúcia Aragão2: (grifos nossos)

È de capital importância frisar que a obra literária, sendo um organismo formado por
múltiplos aspectos, onde se articulam elementos morfológicos, sintáticos, semânticos,
imagísticos, simbólicos, fônicos, rítmicos, etc., que articulados a outros aspectos particulares
aos gêneros dos quais participa mais intimamente, não pode ser reduzido a um mero catálogo
de regras apriorísticas.

No mesmo ensaio, a autora adverte-nos ainda a possibilidade de uma mesma obra conter elementos característicos
de vários gêneros, o que será melhor elucidado pela crítica do século XX, mais liberta no seu enfoque de análise, pois que
mais voltada para o conhecimento intrínseco da obra literária.
Da vasta apresentação sobre os diversos conceitos historiográficos sobre os gêneros, destacamos aqui a posição
do estudioso Emil Staiger que, em seus Conceitos fundamentais da poética3 propõe o estudo dos gêneros – lírico, épico,
dramático – acrescentando, porém, a diferença entre a conceituação substantiva e adjetiva, o que pode ser elucidado na
excelente apresentação do autor pela Professora Helena Parente Cunha, em seu ensaio ―Gêneros literários‖ 4:

Os substantivos Lírico, Épica e Drama referem-se ao ramo em que se classifica a obra de


acordo com determinadas características formais. Os poemas de breve extensão que expressam
a alma, enquadram-se na Lírica. O relato ou apresentação de uma ação pertence à Épica,
enquanto a representação, movido por um dinamismo de tensão, se situa no Drama. Os
adjetivos lírico, épico e dramático definem a essência, isto é, os traços característicos da obra,
manifestados por seus fenômenos estilísticos.

Dessa forma, a conceituação dos gêneros expande-se de maneira mais democrática, podendo a obra literária
participar de um gênero, mas também partilhar da essência dos demais: uma balada dialogada, por exemplo, coloca-se sob
o rótulo da Lírica, embora lhe possa ser acrescentado o adjetivo dramático, de cuja essência participe.
Associando a essência do homem nos domínios da criação poética, Staiger identifica o lírico com o passado
(recordação), o épico com o presente (apresentação) e o dramático com o futuro (tensão), e, ampliando essa
interpretação, relaciona os gêneros à trajetória existencial.

1
CARA, Salete de A. A poesia lírica. São Paulo, Ática, 1985, (Série Princípios), p.10.
2
ARAGÃO, Maria Lucia. ―Gêneros Literários‖. In: SAMUEL, R. (org.). Manual de teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1984, p.65.
3
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
4
CUNHA, Helena Parente. In: PORTELLA, Eduardo. (Org.,) Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.. 93-130.
3
Vale aqui transcrever as palavras do autor , no sentido de ressaltar a possibilidade de encontrarmos o lírico, o
épico e o dramático fora da literatura como também o fato de, dificilmente, encontrarem-se isolados5:

Quando chamo um drama de lírico, ou um romance de dramático (...) é porque sei o que quer
dizer lírico e dramático. Não passo a saber isso ao me recordar de todas as poesias líricas e de
todos os dramas que existem. Essa profusão enorme de obras viria apenas confundir-me. Antes
tenho em mim uma ideia do que seja lírico, épico e dramático. Ideia essa que me ocorreu a
partir de algum exemplo. O exemplo terá sido, provavelmente, uma obra literária. Mas nem
mesmo isso é imprescindível. Posso ter vindo a conhecer a significação ideal do lírico por meio
de uma paisagem, e do épico, talvez, por uma leva de imigrantes; uma discussão pode ter-me
incutido o sentido do dramático (...).
(...) Mas não vamos de antemão concluir que possa existir em parte alguma uma obra que seja
puramente lírica, épica ou dramática. Nossos estudos, ao contrário, levam-nos à conclusão de
qualquer obra autêntica participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários (...).

Apresentamos agora, de forma resumida, os conceitos de Staiger sobre o lírico:


O Gênero Lírico

 A essência lírica:
 Menor extensão; a voz de um EU, estado de alma;
 Subjetivismo;
 Afetividade, sentimento;
 Fluidez entre o sujeito e o objeto: ausência de distância entre o Eu e o Mundo;
 Fusão de sujeito e objeto; fusão dos tempos;
 Recordação: um-no-outro > integração.

 Fenômenos estilísticos líricos:


 Musicalidade
 Gregos; lira;
 Musicalidade da linguagem: ritmo, meios sonoros: rima, assonância, aliteração; paronomásia;
 Camada fônica: identidade entre o sentido das palavras e sua sonoridade;

 Repetição:
 Verso: retorno, volta;
 Paralelismo  Ritmo, metro, estrofação, recursos sonoros, refrão;
 Homofonia: semelhança de sons. Ex.: hora e agora;
 Fusão de todas as coisas; sintoma do não distanciamento do eu lírico.

 Desvio da norma:
 Repetição: contrária ao uso corrente;
 Antinorma; obscurecimento e o equívoco;
 Ambiguidade;
 Hipérbato  Exigências do ritmo, metro e rima;
 Mudanças de classe gramatical;
 Linguagem lírica: desestrutura linguística.

 Antidiscursividade:
 Discursividade: ideais enfileiradas;
 Significação não linear;
 Reação contra a sintaxe lógico-gramatical;
 Poética atual: abolir o discursivo;
 Supressão dos conectivos; eliminação da frase. (Ex.: Poesia Concreta);
 Associação fono-semântica.

 Alogicidade:
 Ruptura com a razão;
 Oximoros, paradoxos;
 Transbordamento do sentimento.

5
STAIGER, E, opus cit., p.. 14-15.
4

 Construção paratática:
 Coordenação  Diferente de subordinação (elaboração mental, raciocínio lógico);
 Corresponde ao fluxo da disposição afetiva.

 Conclusão:
 Recordação: fusão do mundo interior e do mundo exterior  Essência lírica;
 Não distanciamento;
 Dissolve-se o contorno do eu e do mundo e a estrutura da língua.

TEXTO COMPLEMENTAR

O GÊNERO LITERÁRIO, HELENA PARENTE CUNHA6


A essência lírica

A essência lírica se manifesta nos fenômenos estilísticos próprios. Quando a obra apresenta predomínio desses
traços sobre os demais, se situa no ramo da Lírica. Assim se pronuncia Rosenfeld:7 Pertencerá à Lírica todo poema de
extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central
— quase sempre um ―Eu‖ — nele exprimir seu próprio estado de alma.
De fato, no poema lírico há sempre um eu que se expressa, advindo daí o subjetivismo atribuído a este tipo de
composição. Não devemos, entretanto, confundir o eu lírico com o eu autobiográfico, já que o fato literário possui um
universo fictício, onde os elementos da realidade concreta entram em tensão com o imaginário, para criar uma nova
realidade, atrás da qual o autor desaparece. Portanto, o apregoado subjetivismo lírico independe do eu biográfico.
É indiscutível a afetividade e a emotividade do clima lírico, sempre ligado ao íntimo e ao sentimento, tornando
fluida e inconsistente a relação entre o sujeito e o objeto, isto é, entre o eu e o mundo. A emoção e o sentimento impedem
a configuração mais nítida das coisas e dos seres que não se fixam, mas fluem sem contornos definidos na torrente
poética. Quanto mais lírico o poema, menor será a distância entre o eu e o mundo, que se fundem e confundem. Quando
aparecem descrições, análises, diálogos ou reflexões no poema, instaura-se um distanciamento entre o sujeito e o objeto e
o clima lírico desvanece com a acentuação dos traços épicos ou dramáticos.
A atitude fundamental lírica é o não distanciamento, a fusão do sujeito e do objeto, pois o estado anímico envolve
tudo, mundo interior e exterior, passado, presente e futuro. Por isso Staiger denomina recordação a essência lírica,
levando em conta a etimologia da palavra, do latim cor-cordis. Recordação quer dizer ―de novo ao coração‖, isto é, aquele
um-no-outro, em que o eu está nas coisas e as coisas estão no eu. Tal integração só se admite numa obra lírica idealmente
pura, o que é inconcebível em termos rigorosos. O poema tende para esta fusão, que será maior ou menor em função do
estado afetivo.

Fenômenos estilísticos líricos

Musicalidade — O termo lírico originalmente liga-se a uma espécie de composição poética que os gregos
cantavam ao som da lira. Grande parte do que hoje se denomina composição lírica era musicada; conforme ainda atesta a
poesia trovadoresca medieval. Mesmo depois, quando se destinou apenas à leitura, conservou o remanescente dos seus
primórdios, bastando lembrar que uma das características do Simbolismo era a aproximação da música e da poesia.
Verlaine começa o poema intitulado ―Art poétique‖ com um verso que ficou famoso: ―De la musique avant toute chose‖
(música antes de tudo). Não é sem razão que tantas vezes se usa a palavra canto como sinônimo de poema.
Um dos fenômenos estilísticos mais típicos da composição lírica é a musicalidade da linguagem obtida através de
uma elaboração especial do ritmo e dos meios sonoros da língua, a rima, a assonância ou a aliteração. A urdidura da
camada fônica propicia uma tendência geral para a identidade entre o sentido das palavras e sua sonoridade, que podemos
constatar na ―Canção do vento e da minha vida‖, de Manuel Bandeira:

O vento varria as folhas,


O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...

E a minha vida ficava


Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

6
CUNHA, Helena Parente. ―Os gêneros literários‖. In: PORTELLA, Eduardo. (Org.). Gêneros Literários. Editora Tempo Brasileiro,
Rio de Janeiro, 1979. p. 93-106
7
ROSENDELD, Anatol. O teatro épico. S.P. Buriti, 1965, p.5.
5
A insistência dos fonemas fricativos /v/e /f/ induz a uma aproximação do som dos versos ao sentido de voragem
do vento varrendo as coisas num ímpeto destruidor. O significado metafórico do vento na imagem da devastação
desencadeada pelo tempo, amplia-se na recorrência aliterativa dos fonemas congêneres.

Diversa é a impressão do vento na ―Cantiga outonal‖ de Cecília Meireles:

Outono. As árvores pensando...


Tristezas mórbidas no mar....
O vento passa, brando... brando...
E sinto medo, susto, quando
Escuto o vento assim passar...

O acúmulo do fonema fricativo sibilante /s/ imprime aos versos, graças à sua fluidez, a suavidade de um vento
brando, na melancolia da paisagem outonal que a rede de fonemas nasais sombreia. A sensação difere do outro poema,
onde os fonemas labiais são as próprias chicotadas violentas do vento, que agora se faz apenas um sussurro de brisa.
O ritmo martelado dos primeiros versos de Bandeira reforça a impetuosidade da destruição, enquanto em Cecília
a lentidão rítmica se adapta ao estado de alma diluído molemente numa tristeza cansada.
Esta aproximação dos elementos sonoros e significativos provém da disposição afetiva lírica que envolve tudo na
ausência de distanciamento da recordação.

Repetição — Em correlação direta com a musicalidade surpreendemos a repetição, entre os traços


estilísticos do poema lírico. Aliás, Jakobson situa no paralelismo a principal característica da função poética da
linguagem, que se manifesta no ritmo, no metro, na estrofação ou nos recursos sonoros. Não esqueçamos que a palavra
verso significa etimologicamente retorno, volta.
Entre os processos mais comuns da repetição, citamos o refrão que exemplificaremos numa cantiga de amor de D. Dinis:

Quanto me custa, senhora,


tamanha dor suportar,
quando me ponho a lembrar
o que pensei desde a hora
em que formosa vos vi;
e todo este mal sofri
só por vos amar, senhora.

Desde o momento, senhora,


em que vos ouvi falar,
não tive senão pesar;
cada dia e cada hora
mais tristezas conheci;
e todo este mal sofri
só por vos amar, senhora.

Devíeis ter dó, senhora,


do meu profundo pesar,
da minha mágoa sem par,
porque já sabeis agora
o muito que padeci;
e todo este mal sofri
só por vos amar, senhora

Todo o campo semântico da cantiga é uma repetição do refrão das três estrofes, que se resume na equação amor =
mal, definição da atitude trovadoresca medieval:
6
Formas Verbais Substantivos Elementos Intensificadores
Adj. e Pron.adj. Adv. e loc.adv.

Custa dor Tamanha quanto


Suportar mal(3 vezes) todo(3 vezes)
Penei pesar( 2 vezes) Profundo só
sofri (3 vezes) tristezas Mais senão
Padeci dó Cada dia/ cada
hora
amar( 3 vezes) mágoas sem par muito

Os significados das formas verbais e dos substantivos giram em torno de sofrimento e amor, intensificados pelos
adjetivos, pronomes adjetivos, advérbios e locuções adverbiais.
Quanto ao paralelismo do ponto de vista da rima, notamos que a concordância de sons se repete nas três estrofes,
cumprindo assinalar que senhora se encontra no primeiro e último verso. De cada unidade.
Em geral, o poema explora os recursos da homofonia. Segundo Saussure, o mecanismo linguístico repousa sobre
identidades e diferenças (ou oposições) a fim de realizar um máximo de diferenciação. Por ser a tendência natural
aproximar pelo sentido as palavras de som igual ou semelhante, a linguagem corrente evita a indiferenciação, da qual a
linguagem poética tira partido nos efeitos que pretende.
Na cantiga de D. Dinis, hora e agora se embutem sonoramente em senhora, avizinhando seus sentidos. É como se
a senhora se fundisse nas horas do amante: amar a senhora = mal a toda hora. O tratamento fônico reitera o sentimento
fulcral da cantiga.
A inclusão da senhora no tempo se confirma na construção sintática, onde se repetem as orações temporais, que,
ao lado das causais, permitem uma variação da equação do refrão: tempo do amo r = causa do amor.
O recurso da repetição é sintomático do não distanciamento lírico, na medida em que intensifica a fusão de todas
as coisas no estado afetivo.

Desvio da norma gramatical — A repetição, contrária ao uso linguístico corrente, demonstra que a linguagem
poética provoca um desvio da norma gramatical. Jean Cohen afirma que a norma do discurso poético é a antinorma, e que
o poeta busca intencionalmente o obscurecimento e o equívoco, levando a língua a perder a firmeza. A ambiguidade,
característica inerente a toda obra poética, decorre muitas vezes da violação da norma.
O hipérbato, proveniente da inversão na ordem natural das palavras, é uma das infrações mais frequentes,
cometida para satisfazer às exigências do ritmo, do metro ou da rima, em prejuízo da clareza. Estes versos de ―O navio
negreiro‖ de Castro Alves ilustram o caso:

Era um sonho dantesco... o tombadilho


Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
...................................................

Negras mulheres, suspendendo às tetas


Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães

..................................................

E ri-se a orquestra irônica e estridente...

A língua perde a consistência, a consistência e faz as palavras deslizarem de uma classe para outra, assumindo
funções inusitadas. Fernando Pessoa usou esse recurso em várias passagens:

Passou, fora de Quando,


De Porquê e de Passando...

Entre os exemplos de desvio na regência verbal, citamos alguns versos esparsos de Mário de Sá-Carneiro:

Desço-me todo, em vão, sem nada achar


Assim me choro a mim mesmo
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim
7
De acordo com a sintaxe lógico-discursiva, o pensamento se organiza em sequência, mas a linguagem lírica, em
procedimento contrário, desestrutura as estruturas linguísticas. A ―Canción de invierno‖ do poeta espanhol Juan Ramón
Jiménez elucidará este fenômeno:

Cantan. Cantan.
¿ Dónde cantan los pájaros que cantan?
Ha llovido. Aún las ramas
están sin hojas nuevas. Cantan. Cantan
los pájaros. ¿ En onde cantan
los pájaros que cantan?
No tengo pájaros en jaulas.
No hay niños que los vendan. Cantan.
El valle está muy lejos. Nada...
Yo no sé onde cantan
los pájaros — cantan, cantan —,
los pájaros que cantan.

A repetição de cantan 13 vezes e pájaros 6 vezes comprova que o discurso, ao invés de se desenvolver
linearmente, retorna sempre ao mes-mo ponto. Na perspectiva lógica, ou a repetição esclarece a mensagem ou é
redundante, sem acrescentar informação nem originalidade. No contexto poético, dá-se um aumento de informação
porque o discurso não prossegue: recua e se obscurece, resultando imprevisível, original e ambíguo.

Antidiscursividade — Susana Langer denomina discursividade a propriedade de uma espécie de simbolismo, o


verbal, segundo o qual as ideia se enfileiram, como ocorre nas sequências frasais. Existem coisas que não se adaptam à
linearidade da forma gramatical discursiva, havendo outra espécie de simbolismo, o apresentativo, que funciona de modo
simultâneo e integral. O poema pertence ao simbolismo apresentativo, porquanto sua significação não é linear e sim
globalizante.
Embora a poesia utilize o discursivo, devido ao seu material verbal, sempre reagiu contra a sintaxe lógico-
gramatical, tentando romper suas imposições. Desde o período do Simbolismo, os poetas se rebelaram abertamente contra
os procedimentos sintáticos, numa antecipação à revolução empreendida pelos Ismos dos movimentos vanguardistas, que
fizeram desta questão uma das plataformas de suas reivindicações, em favor de uma literatura desatrelada das amarras
tradicionais. A poética atual se empenha cada vez mais em abolir o discursivo ao suprimir os elos conectivos sintáticos,
chegando mesmo, em muitos casos, a eliminar a frase, conforme se verifica na Poesia Concreta. Cassiano Ricardo
empregou este procedimento em várias composições, entre as quais ―Posições do corpo‖:

Sob o azul
sobre o azul

subazul
subsol
subsolo

O breve poema opera um desdobramento fono-semântico do sob e azul (metáfora de terra), na medida em que
estes dois termos se diluem nas demais variações e combinações. O conteúdo significativo espacial da preposição sob
ecoa no prefixo sub- que compõe as três últimas palavras. As duas preposições antitéticas indicam as ―posições do
corpo‖, abaixo da terra (enterrado), em cima (na superfície) ou acima (na estratosfer­a), resumindo a parábola do homem
no seu irrecorrível destino.
Mesmo sem atingir tais extremos compositivos, as vivências anímicas rejeitam a rigidez das construções
sintáticas, e repelem o discursivo, que instala o distanciamento reflexivo, incompatível com a essência lírica.

Alogicidade — A alogicidade caracteriza a poesia lírica, numa interrelação com os demais aspectos típicos, desde
que estrutura lógica do discurso expressa as formas da cogitação racional que não se concilia com a linguagem lírica.
Naturalmente esta propriedade diz respeito ao componente do imaginário que integra toda criação artística, entretanto, o
poema lírico parece romper com mais veemência os estatutos da realidade controlada pela razão. É o que verificamos na
definição do amor, através da série de oximoros no soneto de Camões, numa das mais belas manifestações do
petrarquismo renascentista:
8
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;


É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.

O oximoro e o paradoxo constituem um dos traços estilísticos mais notórios do Cancioneiro de Fernando Pessoa,
perfeitamente de acordo com o tema do conflito entre o ser e o não ser, eixo da obra. No mundo do não ser que, para
Pessoa, é o das aparências vãs, se insinuam as mais desconcertantes afirmações, que veremos em alguns versos, colhidos
da coletânea:

Porque me destes o sentimento de um rumo,


Se o rumo que busco não busco

Quando penso que vejo


Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?

Não compreendo compreender, nem sei


Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,


E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Por que, enganado,


Julguei ser meu o que era meu?

Todas essas contradições corroboram a impossibilidade de se captar o poema lírico através do raciocínio, pois o
transbordamento de sentimento ultrapassa a jurisdição da lógica, aprofundando outras camadas alheias ao regulamento
codificado.

Construção paratática — Nas composições mais líricas, predomina o uso da construção paratática (orações
coordenadas) sobre a hipotática (orações subordinadas). Uma vez que o período composto por subordinação requer maior
elaboração mental, as relações causais, condicionais, finais, concessivas pressupõem o raciocínio lógico e conectante.
Justamente onde comparecem tais conjunções, o clima lírico se desmancha. Na hipotaxe, a subordinação a uma oração
principal estabelece um nexo lógico de dependência, em oposição à liberdade da expansão das emoções.
As orações independentes e as coordenadas da parataxe correspondem melhor ao fluxo da disposição afetiva. As
orações valem por si, justapondo-se sem prioridade, como acontece na emoção lírica, em que fatos distantes no tempo e
no espaço se aproximam e se fundem nas vivências da alma. Em Meus oito anos de Casimiro de Abreu, a recordação da
infância une o passado e presente num reviver repleto de ternura. As breves orações coordenadas da estrofe que
transcrevemos refletem a justaposição dos fatos, arrastados pela torrente lírica:

Naqueles tempos ditosos


Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar!

Conclusão — Todos os fenômenos estilísticos examinados decorrem da essência lírica, a recordação, que funde
mundo interior e mundo exterior. Este não-distanciamento impossibilita a observação e a compreensão e cria um contexto
impreciso em que a expressão linguística deixa de ser construída logicamente, fazendo tudo dissolver-se: o contorno do
9
eu e do mundo e a estrutura da língua. Assim se justificam a musicalidade, as repetições, o desvio da norma gramatical,
a Antidiscursividade, a alogicidade, a construção paratática.
Esses fenômenos estilísticos podem apresentar-se em qualquer obra, no entanto, somente quando predominam,
esta se enquadrará no ramo da Lírica.

2. Níveis do poema

Sabemos que não há ―receitas‖ para analisar e interpretar textos, sendo necessárias muitas leituras teóricas e
trabalhos práticos para atingirmos um grau razoável de compreensão.
Mas, pensando o poema através dos seus elementos intrínsecos, poderíamos propor uma análise pautada no nível
rítmico, lexical, sintático e semântico e na composição gráfica.
 Por nível rítmico, compreende-se a observação da camada sonora: métrica, rima, ritmo, as repetições e paralelismos,
as figuras de sonoridade (aliteração, assonância, paronomásia, etc.).
 Quanto ao nível lexical, cumpre observar o léxico do texto: o nível da linguagem (culto ou coloquial), as classes
gramaticais predominantes, os verbos (de ação, indicando dinamismo; de estado, paralisia, estaticidade; os modos
verbais), os substantivos (abstratos, indicando generalização; os concretos, particularidade), etc.
 Em relação ao nível sintático, torna-se relevante o tipo de períodos do texto (curtos ou longos), a pontuação, as
combinações das palavras, os paralelismos, a ordem direta ou inversa (hipérbatos, anástrofes).
 Implícito em todos os níveis, o nível semântico implica a atenção às figuras relevantes que trazem importantes efeitos
de significação, como as figuras de pensamento (antítese, ironia, eufemismo, hipérbole, apóstrofe, oximoro, paradoxo,
gradação), as figuras de palavras (comparação, metáfora, metonímia, perífrase) e as figuras de construção (repetição,
anástrofe, elipse, zeugma, pleonasmo, hipérbato, polissíndeto, assíndeto, anáfora, anacoluto, anástrofe).
A esses níveis, podemos, ainda, acrescentar a composição gráfica, ou seja, a apresentação o espaço que o poema ocupa
no espaço em branco da página.

Análise de “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, segundo os Níveis do Poema:


 Canção do Exílio, Gonçalves Dias (Coimbra, 1843.)
Kennst du das Land, wo die Zitronen blühen,
Im dunklen Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möcht ich… ziehn. Goethe8

Minha terra tem palmeiras, Minha terra tem primores,


Onde canta o Sabiá; Que tais não encontro eu cá;
As aves, que aqui gorjeiam, Em cismar –sozinho, à noite–
Não gorjeiam como lá. Mais prazer eu encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Nosso céu tem mais estrelas, Onde canta o Sabiá.
Nossas várzeas têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida, Não permita Deus que eu morra,
Nossa vida mais amores. Sem que eu volte para lá;
Sem que eu desfrute os primores
Em cismar, sozinho, à noite, Que não encontro por cá;
Mais prazer eu encontro lá; Sem qu'inda aviste as palmeiras
Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.
Onde canta o Sabiá.

1) Nível Rítmico (Camada Sonora):


 Redondilhas Maiores: gosto popular, musicalidade.

 Ritmo: 18 primeiros versos: 3ª e 7ª sílabas Menos: nos versos 3; 14; 22 : 2ª e


7ª sílabas > A quebra do ritmo quando o poeta fala da terra do exílio. Para
a terra estranha, um ritmo estranho.

8
―Conheces o país onde florescem as laranjeiras?/Ardem na escura fronde os frutos de ouro.../ Conhecê-lo? Para lá, para
lá quisera eu ir!‖
(Tradução: Manuel Bandeira)
10
 Rimas oxitonas em ―a‖: ―sabor de vogal indígena (Cassiano Ricardo)‖;
 Técnica da repetição;
 Versos brancos, número de versos diferentes nas estrofes: liberdade formal.

2) Nível Lexical (Processo de seleção de palavras):


 Escolha de substantivo de origem Tupi: ―sabiá‖ = canto triste do poeta;
 Verbos no Indicativo: certeza; verbos no subjuntivo: desejo;
 Ausência de adjetivos e comparações para ―palmeiras‖ e ―sabiá‖, valor absoluto e emblemático desses
substantivos, atributos exclusivos do país;
 Repetição dos advérbios ―cá‖ e ―lá‖: oposição Portugal / Brasil;
 Vocabulário simples;
 Emprego dos possessivos, isolamento aliado à comunhão com a natureza: sentimento de nostalgia (―dor do
retorno‖ romântico).

3) Nível Sintático (Processo de combinação de palavras):


 Ordem direta: ausência de inversões.
 Paralelismos sintáticos

4) Nível Semântico (Nível do significado; combinação dos níveis; figuras de retórica):

Cá Lá
 Antítese

Espaço da realidade
Espaço idealizado 
(Natureza) Centro de significação

Exílio, saudade. X  do poema.
Marcado pelo: ―mais‖


Ausência, desequilíbrio
Equilíbrio, harmonia dos

elementos da natureza
Lusofobia

Nacionalismo Ufanista

 Relação entre a camada fônica e o nível de significado do poema: à redondilha maior, corresponde a
linguagem simples, com estrutura sintática na ordem direta  Ideal de simplicidade do Romantismo.
 Temática romântica: O nacionalismo, a valorização da natureza, o sentimento de melancolia, presença
de Deus, isolamento, presença da morte, anseio por algo melhor do que se está vivendo.
11
INTERTERTEXTUALIDADE

“Canto de Regresso à Pátria”, Oswald de Andrade.

Minha terra tem palmares


Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas


E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas


Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra


Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

 Elementos formais retomados: o metro (redondilha maior), a utilização de quadras, nas estrofes finais, alguns
versos integralmente recuperados (11,12 e 13).
 Oswald: Modernismo, Movimento Pau-Brasil.

Dialética da destruição/construção > Paródia.


Ocorre, aqui, um choque de interpretação, a voz do texto original é
retomada para transformar seu sentido. Provoca uma reflexão crítica de
verdades incontestadas anteriormente.

 Palmeiras/Palmares > Paronomásia > efeito linguístico causado pelo choque de palavras cujos sons são
semelhantes, mas os sentidos diferentes.

Estranhamento, quebra da previsibilidade.

 G. Dias: pátria/natureza ≠ Oswald: pátria/história.


 São Paulo  urbanismo: a ideia de pátria vai se afunilando: São Paulo> Centro de São Paulo (rua dos bancos) e
uma abstração > o progresso de São Paulo: ―Minha terra tem mais ouro‖.
Ouro: comércio; civilização industrial.
 Influência do Futurismo: cosmopolitano, progresso, máquina. + Primitivismo: elementos naturais > mar,
passarinhos, terra, amor, rosas. (―Poesia Pau-Brasil‖).
 Movimento Nativista Pau-Brasil: manifesto e livro de poesias (onde está incluído o poema), lançado na Europa
(1924) e publicado em 1925.
 ―onde gorjeia o mar‖: recuperação no plano sintático e métrico  quebra no nível semântico > mar repercute em
palmares
 ―onde gorjeia o mar‖  Transposição brusca, quebra da automatização.
 Passarinhos por aves; cantam por gorjeiam.
 ―E quase‖  Relativiza o dogmático e o solene do texto matriz; caráter realista.
 Desaparecem os signos emblemáticos e absolutos ―palmeira‖ e ―sabiá‖ que são substituídos por elementos plurais:
―rosas, amores, passarinhos‖ que generalizam e relativizam o poema romântico.
12

Modernismo

 Quebra da seriedade acadêmica; Irreverência; Oralidade;


Coloquialismo; Urbanismo; Nacionalismo crítico; Espírito
corrosivo; Humor; Liberdade formal e temática

 Linguagem comum, cotidiana. Aspectos prosaicos

 Poética da oralidade|―Pra‖  Coloquialismo

 Bom humor modernista ≠ a seriedade romântica.

TEXTO COMPLEMENTAR
VERSOS, SONS E RITMOS, NORMA GOLDSTEIN.9
CAPITULO 10: NÍVEIS DO POEMA
As partes do todo

Os capítulos anteriores tratam essencialmente do aspecto rítmico do poema, ou seja: construção métrica, tipo de
estrofes e de versos, acentuação dos versos, rimas, repetições. Além deste, devem ser analisados outros níveis ou aspectos
estruturais do poema, sempre tendo em vista que cada um -deles deve ser relacionado -aos demais a fim de se chegar à
Interpretação do poema em sua unidade.
Já ficou dito que não há "receitas" para analisar e interpretar textos, dado o caráter específico de cada obra
literária. Também já se comentou que certas técnicas podem ser úteis para a leitura mais aprofundada de textos. É nesse
sentido que segue um comentário sobre os outros aspectos do poema, isto é: como sugestão cuja utilização fica a critério
da sensibilidade de cada leitor.
Acho importante acrescentar que esta é só uma abordagem inicial. Será fundamental que outras leituras teóricas,
além do trabalho prático com textos poéticos, ampliem a bagagem do interessado em poesia.

Nível lexical

Trata-se de analisar o léxico do texto, verificando de quais palavras ele se compõe. O vocabulário do texto revela
um de nível de linguagem: culto ou coloquial, por exemplo. De modo geral, a linguagem coloquial é mais frequente nos
poemas modernos. Mas também há poemas modernos em linguagem culta, assim como poemas tradicionais compostos
em linguagem simples.
Em seguida, deve-se procurar quais as categorias gramaticais presentes no poema, qual delas predomina e como
são empregadas no texto. O predomínio de verbos de ação, conforme o sentido do texto, pode indicar dinamismo; o de
verbos de estado, também dependendo do sentido do poema, sugeriria estaticidade. Os substantivos, abstratos indicariam,
generalização; os concretos, particularização. Procede-se a um levantamento dos adjetivos, locuções adjetivas e orações
adjetivas, ou seja, dos caracterizadores em geral. Deve-se sempre relacionar o substantivo ao adjetivo que o acompanha.
Além do levantamento das categorias gramaticais, deve-se verificar como o autor as utiliza: é o emprego usual? é um
emprego novo? o que sugere cada termo isoladamente? e em conjunto? Quanto aos verbos, pesquisa-se tempo e modo
verbal. Conforme a significação dos versos, o tempo verbal pode apontar proximidade (presente) ou distanciamento
(passado/futuro); o modo representaria a realidade, (indicativo) ou a possibilidade, o desejo (subjuntivo).
Ao concluir sobre a escolha das palavras que compõem o poema, constata-se como elas contribuem para
interpretar o texto.

Retomo um poema que já apareceu ilustrando o verso de uma sílaba: "Serenata sintética" de Cassiano Ricardo:

9
GOLDSTEIN, Norma. Versos, Sons, Ritmos. Editora Ática: São Paulo, 1991, p. 59-67.
13
Rua
torta.

Lua morta.
Tua porta.

Neste poema, não há verbo nenhum. Como efeito, a hipótese de estaticidade que a análise do poema pode contar
ou não. Em cada estrofe, dois versos e duas palavras: um substantivo e um caracterizador: adjetivo ("torta", "morta") ou
pronome ("tua"). Numa primeira leitura, "rua torta" seria rua sinuosa. Num plano conotativo, pensa-se em "rua" como via,
caminho, passagem, destino; e em "torta" como difícil, sinuosa, misteriosa, duvidosa. No verso três, a "lua" não é apenas
o satélite da Terra, mas também o complemento romântico de uma serenata; no quatro, "morta" significa sem vida. O
conjunto "lua morta" refere-se à ausência de lua, noite sem luar, sem luz. Se a noite é escura, a obscuridade a torna
misteriosa. A estrofe final indica o destino da serenata: "tua porta". Tanto a porta da casa, quanto a do coração. Porta que
não se sabe se será aberta, ou não, para o "seresteiro", o poeta. No conjunto, o clima de expectativa e incerteza, resultante
tanto do sentido do texto, como da ausência verbal, percorre todo o texto.

Nível sintático
O leitor pode "ler" a organização sintática do texto; começando pela pontuação, isto é, o levantamento do tipo de
períodos do texto: curtos ou longos; frases ou orações isoladas. Às vezes aparece o paralelismo, ou seja, a mesma
construção sintática (mesmo tipo de verbo com mesmo tipo de complemento; combinação semelhante de substantivo e
adjetivo; locuções introduzidas pelo mesmo termo etc.), em versos diferentes. O relacionamento dos paralelismos é um
dos componentes que concorrem para o sentido do texto. Por vezes, certos termos são omitidos, podendo-se perceber
quais seriam e interpretar essa ausência. Interrogações, reticências, inversões sintáticas, podem apontar um caminho para
interpretar o poema.
Volto a uma estrofe do poema "José" de Carlos Drummond de Andrade, que já apareceu anteriormente. Observe
os paralelismos e as interrogações:

o dia não veio,


o bonde não veio,
o riso não velo,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou
e "agora, José"?

Nos três primeiros versos, há um tipo de paralelismo sintático ou repetição. Varia o sujeito, permanece o mesmo
predicado: "não veio". No quarto verso, a construção é a mesma, mas o efeito de impacto decorre, agora, não do
paralelismo, e, sim, da inversão, colocando em destaque a palavra "utopia". Na variação dos sujeitos, uma gradação: ―o
dia" (passar do tempo), "o bonde" (locomoção no espaço), a emoção contida no "riso", e, enfim, o projeto impossível da
"utopia". Nos versos seguintes, repete-se o sujeito, modifica-se o verbo que, paralelisticamente, está sempre no passado:
"acabou" (ideia de fim), "fugiu" (evasão, fuga) e "mofou" (estragou, tornando-se impróprio para o uso). Os verbos no
passado - constatação referente ao nível lexical - marcam o distanciamento entre o texto - ou suas enumerações - e o
presente. Após a negação e o fim de tudo, o efeito de perplexidade da interrogação dirigida ao José que pode ser cada um
de nós.

Encadeamento ou "enjambement"

Encadeamento, cavalgamento, ou, usando um termo francês, enjambement, é a construção sintática especial que
liga um verso ao seguinte, para completar o seu sentido. Explicando melhor ele é incompleto quanto ao sentido e quanto à
construção sintática apenas. Metricamente, ritmicamente, ele tem todas as sílabas poéticas, e, se for verso regular, poderá
ter rima. Surge, portanto, uma espécie de choque entre o som (completo), a organização sintática e o sentido (ambos
incompletos). Ou seja: tensão. Geralmente, o encadeamento produz uma relação bastante complexa entre esses níveis,
resultando em ambiguidade de sentido. Atente para os encadeamentos na estrofe inicial de "O aspecto mais lindo da
cidade", de Olegário Mariano:

Sob a chuva, a Cidade


Espelhante de casaria,
Tem a esquisita sensualidade
De gato que se lambe e que se acaricia...
Friorenta, lúbrica Cidade.
14
A sintaxe e pontuação ligam os versos 1 / 2 e os versos 3 / 4. No primeiro caso, destaca-se o termo ―Cidade":
em maiúscula e no final do verso; ao mesmo tempo, restringe-se o termo: a cidade "espelhante de casaria". No segundo
caso, ocorre o mesmo com "sensualidade" no final do verso 3, especificada a seguir como sensualidade "de gata que se
lambe e se acaricia". Nos dois casos, o termo colocado em final de verso sofre uma espécie de redução em seu sentido
pelo enjambement que o liga pela sintaxe e pelo sentido ao verso seguinte. No conjunto dos versos, esta ambiguidade vai
ser ampliada pelo contraste sugerido no verso final: "Friorenta, lúbrica Cidade". A antítese "friorenta" X "lúbrica" amplia
a tensão sugerida pelos dois encadeamentos, instaurando duplicidade de sentido, na medida em que se associam aspectos
contraditórios para descrever uma mesma paisagem.
O enjambement, ou encadeamento, é um recurso que deve ser analisado cuidadosamente, já que surge tensão
relativa a som, sintaxe e sentido. Geralmente, seu efeito pode ser associado ao de outros recursos empregados nos
mesmos versos ou em versos próximos.

Nível semântico
Ao tratar dos demais níveis do poema, o aspecto semântico nunca deixou de estar presente. As figuras sonoras, a
organização sintática, o vocabulário, o emprego das categorias gramaticais só podem ser analisados tendo-se em vista o
sentido global do texto.
Ao isolar, para fins didáticos, o "nível semântico", este trabalho visa apenas a comentar algumas figuras cuja
presença no poema pode implicar importantes efeitos semânticos.

Figuras de similaridade
Comparação: também chamada de símile, é uma figura que aproxima dois termos, através da locução conjuntiva
"como", "assim como", "tal", "qual", e outras do mesmo tipo. Como exemplo, dois versos do Canto 1 do "Poema do
Frade" de Álvares de Azevedo:

Sonhei-a em sua palidez marmórea,


Como a ninfa que volve-se na areia.

O poeta aproxima a amada da ninfa, através do "como" comparativo.

Metáfora: há muitos estudos sobre esta figura de grande efeito poético. De maneira simplificada, pode-se
compreender a metáfora como uma comparação abreviada, ou seja, da qual se retirou a expressão "como" ou similar.
Conforme o tipo de construção da metáfora, varia seu efeito poético. Um exemplo de Camões: "Amor é fogo que arde
sem se ver".

Alegoria: geralmente, é conceituada como uma sequência de metáforas, associando e aproximando elementos,
que, normalmente, não teriam nenhum parentesco. A "Dama Branca", que percorre o poema homônimo de Manuel
Bandeira, sorrindo-lhe nos "desenganos" e acompanhando-o por anos a fio, é a alegoria da morte, como esclarecem os
versos finais:

A Dama Branca que eu encontrei,


Há tentos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.
Esse constância de anos a fio,
Sutil, captara-me. Imaginai!
Por uma noite de muito frio,
A Dama Branca levou meu pai.

Ocorre ocultação de sentido apenas provisoriamente. Ao terminar a leitura do poema, o enigma se desfaz, a
alegoria ou metáfora continuada se esclarece e o leitor percebe qual é a identidade da "Dama Branca". *(Este exemplo de
alegoria foi retomado das anotações do curso ministrado pelo professor Antonio Candido, em 1963).

Sinestesia: é o recurso que sugere associação de diferentes impressões sensoriais, ou seja, sugestões ligadas aos
cinco sentidos: visão, tato, audição, olfato, paladar. O verso de "Anoitecer", de Cecília Meireles, associa impressões
visuais e tácteis: "As crianças fecham os olhos sedosos".
15
Figuras de contiguidade
Metonímia: é o emprego de um termo por outro, numa relação de ordem: causa pelo efeito; sinal pela coisa
significada; continente pelo conteúdo; possuidor pela coisa possuída. No poema "O espelho" Manuel Bandeira diz: "Tu
refletes as minhas rugas". As rugas seriam sinal da figura global do velho refletido no espelho.

Sinédoque: emprego de uma palavra por outra, numa relação de compreensão: parte pelo todo; singular pelo
plural; gênero pela espécie; abstrato pelo concreto. "Bilhete perdido", de Guilherme de Almeida, começa assim: "Duas
palavras só para dizer... o quê?" Não se trata de duas palavras, mas de um bilhete completo, como indica o título.

Figuras de oposição
Antítese: consiste na aproximação de ideias contrárias. Retomando o exemplo de Camões, a primeira parte do
verso "Amor é um fogo que arde" opõe-se à segunda: "sem se ver". É a principal figura de oposição, ao lado do oximoro,
da ironia e do paradoxo.

Paralelos

Ao empregar figuras na construção do poema, o poeta cria sugestões múltiplas de significação, tanto no plano
denotativo como no conotativo. A análise do nível semântico deve sempre ser associada à dos outros níveis. É importante
relacionar termos, em função de sua semelhança e de sua divergência. Podem-se aproximar termos, em um poema, pelas
mais diversas razões:

Em resumo: Gênero Lírico


1. Breve histórico da Lírica:

● Platão: expulsa os poetas da República;


● Aristóteles: Mimesis  imitar, representar, criar imagens;
● Emil Staiger: Conceitos fundamentais de poética, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975;
 Obra literária: não se reduz as regras, podendo participar de vários gêneros;
 Ramo: Lírica, Épica e Drama  Substantivos;
 Essência: lírica, épica, drama  Adjetivos  fenômenos estilísticos;
● É da Antiguidade Clássica a primeira classificação dos textos literários. Originalmente os textos eram acompanhados ao
som da Lira, acentuando as emoções e os sentimentos expressos nos textos. Daí a denominação de "líricos". A partir do
século XV, a música ganhou autonomia separando-se da poesia, mantendo, no entanto, os seus elementos fundamentais -
o ritmo, o timbre, a cadência, a sonoridade, ou seja, permaneceu a musicalidade que lhe dá características
próprias;
● O gênero lírico usa a função emotiva ou expressiva da linguagem (sentimentos e emoções), além de trabalhar também
com a poética, a metalinguística, e até mesmo com a referencial quando assume posturas sociais;
● A essência lírica: subjetivismo; afetividade; fusão sujeito/ objeto/, fusão dos tempos  Um-no-outro.
● Fenômenos estilísticos do gênero lírico são:
1- Subjetividade - dando um tom intimista, apresenta a visão de um mundo pessoal e particular - o "eu lírico". Em geral
se expressa na primeira pessoa;
2- Ilogismo - o gênero lírico não se sujeita às regras da razão; ele quebra a lógica das normas rígidas, deixando ao poeta
livre para criar, associar, se expressar. Transbordamento do sentimento;
Exemplos: Oximoros: ―Amor é fogo que arde sem se ver‖, Camões.
3- Musicalidade - um texto poético mantém as características da música mesmo separado dela. A métrica, a repetição, as
rimas (internas e externas), o ritmo, os cortes, pausas, os paralelismos, a aliteração, a assonância, a paronomásia, a
onomatopeia são recursos fundamentais neste gênero;
Isomorfia  Identidade entre o sentido das palavras e sua sonoridade;
4- Antidiscursidade - ou seja, rompe a ordem lógica da frase; supressão dos elos conectivos sintáticos;
5- Livre Associação de Ideias - este gênero literário é o que melhor permite o livre exercício da imaginação. O poeta tem
a seu dispor o recurso de associar livremente as ideias por mais extravagantes que possam parecer, dando inclusive forma
abstrata ao concreto sem forma. (ex. "Abrir vias na brisa");
6- Repetições: ritmo, metro, estrofe, refrão e recursos sonoros;
7- Desvio da norma gramatical: ambiguidade, hipérbato, derivação imprópria, repetição;
8- Construção paratática: a disposição lírica coordena;
9- Preocupação formal: exigências clássicas: poema metrificado, formas fixas, como o soneto, linguagem erudita;
10- Liberdade formal: versos livres e brancos; livre estrofação, linguagem coloquial, oralidade.
16
2. Níveis do poema:
a) Nível rítmico > camada sonora;
b) Nível lexical > seleção das palavras;
c) Nível sintático > combinação das palavras;
d) Nível semântico > seleção de imagens.

3. Poética do Nacionalismo

Para melhor compreendermos o processo de construção da literatura brasileira, torna-se fundamental termos em
mente o fato de ser o Brasil um país colonizado: através do olhar europeu, principalmente de Portugal, aprendemos a ver
e sentir o mundo à nossa volta.
Não foi a Carta de Caminha a D. Manuel a nossa autêntica certidão de nascimento? Para além das descrições
deslumbradas, das visões do paraíso, da percepção ingênua com a qual descreveu nossos índios, sobressai-se, na verdade,
―a transparente ideologia mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval‖ 10, como
podemos conferir nessa ―conclusão edificante‖ do missivista de Cabral:

De ponta a ponta é toda praia...muito chã é muito fremosa. (...) Nela até agora não pudemos
saber que haja ouro nem prata...porém a terra em si é de muitos bons ares assim frios e
temperados como os de Entre-Doiro-e-Minho. Águas são muitas e infindas. E em tal maneira é
graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem, porém o
melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente e esta deve ser a
principal semente que vossa alteza em ela deve lançar.

Explorar a terra, catequizar os nativos – eis o Brasil-colônia, o ―outro‖ em relação à metrópole: ―a terra a ser
ocupada, o pau-brasil a ser explorado, o ouro a ser extraído; numa palavra, a matéria prima a ser carreada para o mercado
externo‖11.
No século XX, os modernistas, numa revisão crítica de nossa história, irão negar essa falsa certidão de
nascimento: agora é o olhar do colonizado que satiriza o poder do colonizador e proclama a verdadeira alma brasileira,
antropófaga como queria Oswald ou macunaímica, como sonhava Mário.
Vale a pena, nesse sentido, revermos alguns tópicos do Manifesto oswaldiano12:

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer
na Bahia. Ou em Belém do Pará.
____________________

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. (...)
Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos.
____________________

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.


Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de
D. Antônio de Mariz.
____________________

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso
primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel
mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o
dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

Eis, pois, a diretriz que permeia o projeto chamado de literatura brasileira: trata-se do binômio
ruptura/integração – ruptura como a rejeição dos valores de importação, integração, como busca da autenticidade, ou seja,
de uma base original brasileira, como bem define o Professor Anazildo Vasconcelos da Silva·:

10
Bosi, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1975, p.17.
11
Bosi, A, op.cit., p.13.
12
Andrade, O. ―O Manifesto antropofágico‖. In: Vanguarda europeia e modernismo no Brasil. Gilberto Mendonça Teles, 1982. p.
226-232.
17
Articulada pelo processo de ruptura/integração, a poética do nacionalismo define duas
posições básicas: de um lado a rejeição da tradição transplantada; de outro, a busca de uma
linguagem e duma realidade literárias brasileiras, que identifiquem a nossa literatura como
expressão da nacionalidade e da cultura de um povo, distinguindo-a de toda e qualquer outra
literatura. Essa busca se processa na linguagem pela criação de uma dicção própria, mediante
a estilização da fala brasileira, aproximando a expressão literária da expressão oral, e na
realidade pela fixação da natureza na articulação da relação do homem com o meio. (grifos
nossos)13

A partir dessa perspectiva, ou seja, do reconhecimento de ser a poética do nacionalismo o fio condutor do
processo de formação da literatura brasileira, cabe-nos agora refletir de que forma se estabeleceu o vínculo entre essa
poética e a realidade nacional e, para isso, alguns pontos devem ser esclarecidos14:
● Embora aspire à universalidade, a literatura nasce no seio de uma cultura e é moldada por ela. Assim sendo,
descrever a formação e a evolução de uma literatura será acompanhar o curso instaurador do projeto nacionalista que a
realiza e nela se configura.
● Como não tivemos uma literatura nativa, foi a partir da literatura transplantada que construímos a nossa. Nesse
sentido, a brasilidade deve ser caracterizada em sua dupla condição: de elemento diferenciador, gerado pelo processo
de ruptura, e de elemento transformador, gerado pelo processo de integração.
● A brasilidade não pode ser, portanto, definida como fator excludente, mas sim como elemento diferenciador
que transforma a matriz europeia importada em matriz nacional, naturalizada brasileira.

13
Silva, Anazildo de Vasconcelos. A lírica brasileira do século XX. Rio de Janeiro: OPVS Editorial, 2002, p.16.
14
Pressupostos teóricos apresentados pelo Professor Anazildo Vasconcelos da Silva, no capítulo ―Percurso literário brasileiro‖, In: A
lírica brasileira do século XX. Rio de Janeiro: OPVS, 2002, p13-17.
18
4. A historiografia literária brasileira

Quadro-síntese: Movimentos da Literatura Brasileira

AUTORES E MOVIMENTOS CARACTERÍSTICAS

1º Documento escrito em terras brasileiras:  Literatura informativa


QUINHENTISMO

Carta a D. Manuel. Pero Vaz de Caminha.


 Literatura Jesuítica
José de Anchieta

Arte dos contrastes; antinomia homem-céu/homem-terra;


Bento Teixeira: publicação de visualização e plasticidade; fugacidade; não-racionalismo;
Prosopopeia; unidade e abertura (perspectivas múltiplas para o
BARROCO

observador); luta entre o profano e o sagrado; Culto a


Padre Antônio Vieira (oratória), elementos evanescentes (água/vento). Sentido de
transitoriedade da vida; carpe diem (aproveitar o dia);
Gregório de Matos (poesia). valorização do presente, movimento ligado ao espírito da
Contrarreforma; jogos de metáforas; riqueza de imagens;
gosto pelo pormenor; malabarismo verbal – uso de:
hipérbatos, hipérboles, metáforas e antíteses.
Arte do equilíbrio e harmonia; busca do racional, do
ARCADISMO

Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio verdadeiro e da natureza; retorno às concepções de beleza do
Gonzaga (poesia lírica). Renascimento; poesia objetiva e descritiva; aurea
mediocritas: o objetivo arcádico de uma vida serena e
Basílio da Gama e Santa Rita Durão bucólica; pastoralismo; valorização da mitologia; técnica da
(poesia épica). simplicidade. Literatura linear e regrada: inutilia truncat
(cortar o inútil).
1ª Geração: nacionalismo, ufanismo, natureza, religião,
Gonçalves de Magalhães. Publicação de indianismo e medievalismo;
Suspiros Poéticos e Saudades. 2ª Geração: mal do século, evasão, solidão, profundo
pessimismo e anseio da morte.
Poesia: Gonçalves Dias, Álvares de 3ª Geração: condoreirismo, liberdade, oratória
Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro reivindicatória, fase de transição para o Parnasianismo,
ROMANTISMO

Alves. literatura social e engajada.


Geral: imaginação, fantasia, sonho, idealização, sonoridade,
Prosa: 1. Romance urbano: José de simplicidade, subjetivismo, sintaxe emotiva, liberdade
Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, criadora.
Manuel Antônio de Almeida; 2. Romance
regionalista: José de Alencar, Bernardo
Guimarães, Visconde de Taunay; 3.
Romance indianista e histórico: José de
Alencar.
19
Realismo: preocupação com a verdade exata, observação e análise,
Machado de Assis. personagens tipificadas, preferência pelas camadas altas da sociedade.
Publicação de Memórias Objetividade. Descrições pormenorizadas. Linguagem correta, mais
Póstumas de Brás Cubas / próxima da natural, maior interesse pela caracterização que pela ação–
REALISMO / PARNASIANISMO

Realismo. tese documental.

Aluísio Azevedo. Naturalismo: visão determinista do homem (animal, presa de forças


NATURALISMO

Publicação de O Mulato / fatais e superiores – meio herança genética, fisiologia, momento).


Naturalismo. Tendência para análise dos deslizes de personalidade. Deturpações
psíquicas e físicas. Preferência por camadas menos privilegiadas.
Década de 80. Definição do Patologia social: miséria, adultério, criminalidade, etc. – tese
ideário parnasiano. experimental.

Prosa: Machado de Assis,


Aluísio Azevedo. Parnasianismo: arte pela arte, objetividade, poesia descritiva, versos
impassíveis e perfeitos, exatidão e economia de imagens e metáforas,
Poesia: Olavo Bilac, poesia técnica e formal, retomada de valores clássicos, apego à
Alberto de Oliveira, mitologia greco-romana.
Raimundo Correia, Vicente
de Carvalho.
Simbolismo: reação contra o Positivismo, o Naturalismo e o
Cruz e Sousa. Publicação de Parnasianismo; individualismo, subjetivismo, atitude irracional e
IMPRESSIONISMO

Missal (prosa poética) e mística, respeito pela música, cor, luz. Procura das possibilidades do
SIMBOLISMO

Broquéis (poesias). léxico.


Impressionismo: valorização dos estados de alma; percepção visual do
Poesia: Cruz e Sousa e instante: a cor, a atmosfera, o efeito dos tons. Tentativa de buscar o
Alphonsus de Guimaraens, tempo perdido através da impressão provocada pela realidade num dado
Pedro Kilkerry, Emiliano momento.
Perneta.

Prosa: Raul Pompéia,


Machado de Assis.
Tendências do fim do século XIX: Sincretismo.
PRÉ-MODERNISMO

Poesia: Augusto dos Anjos


Sentido mais crítico, fixando diferentes facetas da realidade social e
Prosa: Monteiro Lobato, política.
Euclides da Cunha, Lima
Barreto, Graça Aranha.
20
1922 – Semana da Arte Moderna. 1ª Fase-heróica/revolucionária: negação da tradição
1922/30 - 1ª fase: revolucionária. cultural, antipurista, antiacademicista, linguagem
Publicação de Paulicéia Desvairada, de coloquial, verso livre, nacionalismo crítico. Ironia,
Mário de Andrade. sarcasmo, irreverência. Poema-piada, liberdade de criação.
1930/45 - 2ª fase: estabilidade. Predomínio da poesia.
Publicação de A Bagaceira, de José Américo
de Almeida. 2ª Fase de consolidação/estabilidade: herança de 22,
1945/1956 - 3ª fase: reação. acrescentando aprimoramento da linguagem (inclusive
Publicação de Vestido de Noiva, de Nelson metalinguagem), busca da expressão universal,
Rodrigues. recuperação de valores tradicionais (Neo-simbolismo),
Publicação de Sagarana (1946), de engajamento religioso e social, literatura de denúncia das
Guimarães Rosa. condições humanas. Predomínio da prosa (romance) de
tendências neorrealistas.
1º Momento: Poesia: Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, 3ª Fase de reação: retomada de aspectos formais da
Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Guilherme de poesia. Culto à forma e à linguagem (geração de 45 e
MODERNISMO

Almeida, Menotti del Picchia. Prosa: poetas concretistas). Na prosa, o domínio do conto e da
Antônio de Alcântara Machado, Mário de crônica, voltando-se para a análise e a observação do
Andrade e Oswald de Andrade. cotidiano; repassando as linhas do fantástico,
apresentando análise das diferentes formas do
2º Momento: Poesia: Carlos Drummond de comportamento humano sob o signo da literatura
Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, psicológica (exposição do fluxo da consciência); ou,
Cecília Meireles, Augusto Frederico Schmidt, ainda, análise de crises de caráter existencial com
Vinícius de Moraes. Prosa: Graciliano tendências a reflexões metafísicas. No campo regional,
Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, investigação de novas possibilidades linguísticas e
Raquel de Queirós, Érico Veríssimo, Cyro preocupações de ordem filosófica tradicional, que se
dos Anjos, Dionélio Machado, Lúcio misturam com o meio retratado, permitindo abertura
Cardoso, Cornélio Pena. (universalidade). Desenvolvimento de novas técnicas
narrativas. Importante o desenvolvimento do teatro
3º Momento: Poesia: A Geração 45 (João psicológico e social.
Cabral de Melo Neto; Thiago de Mello, José
Paulo Paes, Manuel de Barros, etc.). Prosa:
João Guimarães Rosa, Clarice Lispector,
Lygia Fagundes Teles, José J. Veiga, Dalton
Trevisan, Fernando Sabino, Paulo Mendes
Campos, Rubem Braga, etc. Teatro: Nelson
Rodrigues, Jorge Andrade, Guarnieri, etc.
1956 até o momento atual;  Pop Arte: desestatização e desdefinição da arte;
1956 - Lançamento da Revista Noigrandres;  Pastiche, paródia;
1960 - Movimento Tropicalista.  Simulacro, hiper-realismo;
Poesia: Concretismo, poesia práxis, poesia de  O cotidiano, a violência urbana;
resistência, poesia marginal. Haroldo de  Desreferencialização;
PÓS-MODERNISMO

Campos, Augusto de Campos, Caetano  O happening e a performance;


Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque de  Narcisismo e desubstancialização.
Holanda, Paulo Leminski, Cacaso, Ana
Cristina César, Antônio Cícero, Alice Ruiz,
Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Carlito
Azevedo, etc.
Prosa: romance histórico, biográfico,
policial, ficção científica e ensaística. Patrícia
Melo, Bernardo Carvalho, João Gilberto Noll,
Sérgio Sant‘Anna, Raduan Nassar, Luiz
Ruffato, Marçal Aquino, Rubem Fonseca,
Ana Miranda, etc.
21
O PERCURSO LÍRICO BRASILEIRO

I. A lírica barroca (século XVII)

Anjo de duas faces


Anjo de duas faces Bigênito demônio
o sol e as trevas, eis solevando punhal,
E vós, Indecisão, deuses escarnecendo,
Serpente me venceis. sois o Bem? sois o Mal?

Sorriso de mulher Anjo de duas faces


Em pose invectiva duplo lago reflete
O choro da criança - o olhar de um condena
Não morta, semiviva o olhar de outra promete.

(Affonso Ávila – Código de Minas)

Como todo estilo de época, o Barroco não se esgota no século XVII, como podemos comprovar no poema
contemporâneo que nos serve de epígrafe, expressão do conflito manifestado através da anteposição de imagens e
sentimentos antagônicos, já tão marcante na arte dualista referente às imposições da Contrarreforma.

1. Etimologia do termo barroco


Suscitando várias interpretações, o termo barroco, acreditam uns, apresenta origem ibérica, espanhola (barrueco),
ou portuguesa (barroco), designando uma pérola de superfície irregular. Nos séculos XVI e XVII, o epíteto significava
um modo de raciocínio que confundia o falso e o verdadeiro, uma argumentação estranha e viciosa, evasiva e fugidia que
subvertia as regras do pensamento. Originalmente, portanto, é negativo, sinônimo de bizarro, extravagante, artificial,
visando a designar, de forma pejorativa, a arte seiscentista, interpretada como forma de decadência da arte renascentista
ou clássica.
Somente em 1929, através dos estudos de Wolfflin (1864-1945), a arte barroca foi revalidada, não mais se
concebendo como uma expressão degenerada, antes como forma peculiar de um período da história da cultura moderna
com valor estético e significados próprios15.

2. Características estilísticas e temáticas:


Segundo Alcmeno Bastos16:

 DUALISMO – apego simultâneo aos valores espirituais e mundanos;


 RELATIVISMO – não aceitação de verdades absolutas;
 FUSIONISMO – reconciliação de valores contrastantes;
 LUDISMO – ludicidade da forma como instrumento de afirmação;
 MISTICISMO/RELIGIOSIDADE – misticismo e espiritualidade como forma de salvação;
 SENSORIALISMO – apreensão das imagens antes pelos sentidos que pelo intelecto;
 CULTISMO – requinte formal levado aos extremos;
 CONCEPTISMO – requinte conteudístico levado aos extremos.

Segundo Domício Proença Filho17

15
COUTINHO, Afrânio (dir.). A literatura no Brasil. Vol.1. RJ, 1968: Ed. Sul Americana, p.132.
16
BASTOS, ALCMENO. Poesia brasileira & estilos de época. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
17
PROENÇA FILHO, DOMÍCIO. Estilos de época na literatura. São Paulo: Ática, 2002.
22
 Cosmovisão marcada pelo conflito entre pensamento cristão e pensamento secular;
 Culto do contraste;
 Oposição entre o homem voltado para o céu e o homem voltado para a terra;
 Humanização do sobrenatural. Céu e Terra misturam-se na visão do mundo;
 Preferência por aspectos dolorosos, cruéis, sangrentos e até repugnantes;
 Pessimismo;
 Fusionismo;
 Intensidade;
 Acumulação de elementos;
 Impulso pessoal;
 Niilismo temático;
 Tendência para a descrição;
 Culto da solidão;
 Linguagem trabalhada, adornada, cheia de figuras antíteses, hipérbatos, hipérboles, metáforas;
 Uso marcante de repetições e técnica do paralelismo;
 Preocupação com a linguagem culta;
 Cultismo;
 Conceptismo.

3. A linguagem barroca
A linguagem barroca contrasta fortemente com o equilíbrio, a clareza e a linearidade da linguagem
clássica. O rebuscamento barroco é uma tentativa de expressar a angústia e a incerteza do período. A
desarmonia e o desequilíbrio resultam num estilo exagerado, repleto de figuras de linguagem e de outros
recursos de expressão. Veja os principais:

Metáforas e comparações:

Para expressar sua percepção subjetiva da realidade difusa, os barrocos valeram-se de metáforas e
comparações, ora requintadas ora evidentes, como no exemplo a seguir:

As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. [...] Um e
outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia,
e não como quem ladrilha ou azuleja.
Padre Antonio Vieira
Antíteses e paradoxos:
A contradição em que vive o homem barroco é expressa, sobretudo por antíteses e paradoxos. Cabe
lembrar que a antítese é uma oposição simples de ideias e o paradoxo, uma oposição que gera um
contrassenso, um absurdo, como ocorre abaixo:

Ardor em firme coração nascido;


Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido.
(Gregório de Matos)
Essas oposições, em geral, são estruturadas a partir dos seguintes conflitos básicos: materialismo x
espiritualismo; razão x fé; céu x inferno; pecado x perdão; desejo x castidade.

Hipérbatos - Emprego da ordem inversa das palavras, o hipérbato reflete o labirinto do raciocínio barroco:
A minha bela ingrata
Cabelo de ouro tem, fronte de prata,
De bronze o coração, de aço o peito;
(Jerônimo Baía)

(Ordem direta: ―A minha bela ingrata / tem cabelo de ouro, fronte de prata / o coração de bronze / o peito
de aço‖).
23
Frases interrogativas - O escritor barroco expressa claramente as incertezas que vivencia; questiona
constantemente a efemeridade do mundo material e as dúvidas quanto ao mundo espiritual, recorrendo
constantemente a frases interrogativas:

Se tão formosa é a Luz, por que não dura?


Como a beleza assim se transfigura?
(Gregório de Matos)

Existem dois estilos barrocos: o cultismo e o conceptismo. É importante lembrar que raramente se vê um
texto em que haja exclusividade de um desses estilos, especialmente do cultista. O que ocorre, em geral, é a
predominância de um deles. Observe as diferenças a seguir:

Cultismo ou gongorismo:

Consiste na valorização da forma por meio de jogo de palavras - trocadilhos, abuso de comparações,
metáforas e hipérboles; de adjetivação excessiva e de apelo sensorial, centrado sobretudo no cromatismo
(uso de cores). Esse estilo, comum na poesia barroca, aproxima-se da descrição.

[...]
Não sei, quando caís precipitada,
Às flores que regais tão parecida,
Se sois neves por rosa derretida,
Ou se rosa por neve desfolhada.

Essa enchente gentil de prata fina,


Que de rubi por conchas se dilata,
Faz troca tão diversa e peregrina,

Que no objeto, que mostra, ou que retrata,


Mesclando a cor purpúrea, à cristalina,
Não sei quando é rubi, ou quando é prata.

(Gregório de Matos)

Conceptismo ou quevedismo:

Consiste na valorização do conteúdo por meio do jogo de ideias, de conceitos, do raciocínio lógico e
da argumentação com base antitética ou paradoxal. Esse estilo ocorre, sobretudo na prosa, visando apresentar
determinadas ideias a fim de convencer o leitor ou ouvinte da validade delas. Apresenta forte apelo racional
e aproxima-se da dissertação, forma que objetiva a defesa de um ponto de vista sobre determinado assunto.
Veja um exemplo:

O que se desedifica peixes de vós é que comei-vos uns aos outros. Grande escândalo é
esse. Mas a circunstância o faz ainda maior: não apenas comei-vos uns aos outros,
senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era menos mal, se os
pequenos comeram os grandes, bastava um só grande para muitos pequenos; mas como
os grandes comem os pequenos, não bastam nem cem nem mil pequenos para um só
grande.
(Padre Antônio Vieira)

4. O Barroco nas Artes Plásticas18


Na pintura, observam-se contrastes de cores e jogos de luz e sombra. As figuras são menos
centralizadas e mais dinâmicas do que as renascentistas. São frequentes os temas bíblicos, históricos e
mitológicos, as cenas cotidianas e figuras da nobreza e da burguesia. Na escultura, são retratadas cenas de
intensa dramaticidade; as estátuas revelam figuras com rostos contraídos pelo sofrimento; predominam as
linhas curvas, os detalhes em dourado.

18
PROENÇA, Graça. História da Arte. Rio de Janeiro, Ed. Ática, 2004. p.102-121.
24

► Na Itália:
▪ Michelangelo: ―O juízo final‖, Capela Sistina;
▪ Tintoretto: Vênus e Vulcano, Cristo em casa de Marta e Maria;
▪ Caravaggio: Amor vencedor;
▪ Bernini: Êxtase da Santa Tereza.

► Na Espanha:
▪ El Greco: O enterro do Conde de Orgaz;
▪ Velázquez: As meninas.

► Nos Países Baixos:


▪ Rubens: O jardim do amor;
▪ Rembrandt: A lição de anatomia do Doutor Tulp;
▪ Vermeer: Mulher lendo uma carta.

► No Brasil:
▪ Aleijadinho: Portada e interior da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto;
▪ Manuel da Costa Ataíde: Pintura para a igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Ouro Preto.

5. O Barroco na música:
Música instrumental, em que o cravo e o violino ocupam o papel principal; música de câmara,
destinada a publico seleto e restrito; novas formas vocais, dentre elas a ópera, peça teatral inteiramente
cantada com acompanhamento de orquestra. Destacavam-se os compositores Bach, Häendel, Vivaldi e
Albinoni.

6. O Barroco nas Literaturas:


►Italiana: Tasso, Marino;
►Espanhola: Góngora, Quevedo, Lopes de Veja, Cervantes;
►Alemã: Gryphius, Opitz, Silesius;
►Inglesa: John Donne, Bacon, Shakespeare;
►Francesa: Corneille, Racine, Pascal, Boileau, Montaigne;
►Portuguesa: Rodrigues Lobo, Frei Antônio de Chagas; estudos recentes incluem Camões na órbita barroca;
►Hispano-americana: Sóror Juana de la Cruz, Balbuena, Hojida;
►Brasileira: Gregório de Matos Guerra, Padre Antônio Vieira, Manuel Botelho de Oliveira.

7. O Barroco no Brasil:
● Quadro histórico de Portugal e do Brasil
▪ Economia mercantilista do Brasil colônia, com a produção voltada para a metrópole;
▪ Cana-de-açúcar no Nordeste (engenho em crise) e extração de minérios em Minas Gerais;
▪ Expulsão definitiva dos franceses (1615), invasões holandesas (1624 e 1630);
▪ Portugal da Restauração:
- mentalidade jesuítica; Contrarreforma.
- decadência do reino português: fracasso do comércio oriental, insuficiência do escravismo africano.
▪ Sociedade brasileira: surgimento de uma rica burguesia de negociantes que compete com a aristocracia rural e
que aspira à nobreza, dos mulatos ―metediços‖ aos olhos dos brancos, da sensualidade à solta relatada
copiosamente pelas Visitações do Santo Ofício.
25
● A lírica barroca brasileira:
Como nos adverte o Professor Afrânio Coutinho19, a literatura no Brasil é literatura barroca, e não
clássica, tendo nascido pela mão barroca dos jesuítas e foi pelo gênio plástico do Barroco que se deveu a
implantação do longo processo de mestiçagem, que constitui a principal característica da cultura brasileira,
adaptando as formas europeias ao novo ambiente, à custa da ―transculturação‖, conciliando dois mundos –
europeu e autóctone.
Com o Padre Antônio Vieira, a estética barroca atinge o seu ponto alto em prosa no Brasil: seus
sermões são exemplos incomparáveis do artifício retórico posto a serviço do pensamento crítico, como
podemos confirmar, neste passo do Sermão da Sexagésima, comentado por José Guilherme Merquior20:

Semen est Verbum Dei


O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de-Deus. Os
espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu são os diversos
corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com
riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações
duros e obstinados; e nestes seca a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os
caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas
do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e
nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a
te"a boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica
a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et
fructum fecit centuplum. Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo
hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao
púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos, tão pouco fruto
da palavra de Deus?

Apesar de sua pequena extensão, esse trecho nos revela perfeitamente as linhas básicas da arte
compositiva do sermionário de Vieira: a "decolagem" do texto bíblico; a ‗guirlanda‘ de metáforas,
desfraldadas em amplo movimento alegórico; o amor à antítese; a frase de ritmo rápido, sincopado, enérgico;
enfim, a indicação teatral do paradoxo (se o verbo de Deus frutifica com tanta fecundidade, como se vê tão
pouco fruto da palavra do Senhor, plataforma, por sua vez, de novas salvas metafóricas, e de novos arabescos
de figuras de pensamento e de dicção.).
Usando as sutilezas da argumentação escolástica e os recursos da retórica clássica, o sermão
vieiriano, constantemente alimentado por temas em conexão direta com a realidade brasileira (expulsão dos
holandeses, abusos dos colonos, costumes das capitanias), ligou indissoluvelmente ao Brasil uma das
construções mais perfeitas e mais complexas da prosa barroca.
Com o luso-baiano Vieira, o Brasil se insere no temário da alta literatura ocidental. E em seu estilo, a
magia transfiguratória do barroco obteve um dos maiores êxitos de sua propensão a sintetizar contrários: pois
o sermão de Vieira, cheio de jogos verbais e agudezas de ideia, converteu a meditação sobre o sentido
atemporal da mensagem cristã em focalização crítica de circunstâncias históricas.

19
COUTINHO, Afrânio. Opus cit., p.151-157.
20
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Rio de Janeiro, José Olympio. 1979. p. 18-19.
26
8. Autores barrocos brasileiros:

GREGÓRIO DE MATOS21 (1636-1696).

Na obra enorme de Gregório de Matos, desfigurada em parte pela sua má preservação, com
todos os seus desvãos, suas lacunas e seus descompassos, fica certamente um saldo de
problemas e de possibilidades que ultrapassa em muito os limites dos demais poetas do
Brasil colonial, e que o fazem, seguramente, um dos poetas mais instigantes da nossa
literatura. Pelo tipo de problemas com que se enfrentou, acabou criando novos registros
poéticos, "plectros" de convergência erudito-popular que ainda estão para ser devidamente
avaliados. Além disso, o seu itinerário desloca efetivamente os eixos da poesia acadêmica,
auto-satisfeita na sua própria retórica. E se essa auto-satisfação acadêmica tem hoje (como
não poderia deixar de ser) os seus exemplos de sempre, e chega a rondar ou instalar-se nas
próprias vanguardas, a mobilidade insatisfeita da poesia de Gregório de Matos acaba sendo
um sinal do seu melhor inconformismo22.

─ De família de posses, Gregório de Matos e Guerra foi o terceiro filho de um "fidalgo da série dos
escudeiros em Ponte de Lima, natural dos Arcos de Valdevez", estabelecido no Recôncavo baiano como
senhor de canavial, onde mantinha cerca de 130 "escravos de serviço" e dois engenhos;
─ 14 anos: seguiu para a metrópole com a ideia de estudar leis;
─ 16 anos: Universidade de Coimbra;
─ Formado em 1661: casou-se com Dona Michaella de Andrade;
─ Foi juiz no Atentejo e em Lisboa, atuando como juiz do Cível, de Crime e de órfãos, segundo as diversas
informações. Aí se enfronhou nas poéticas do tempo: o maneirismo camoniano que vinha do século anterior,
desembocando no barroco então vigente, matriculado em Gôngora e Quevedo;
─ 1678: fica viúvo;
─ 1681: volta ao Brasil para exercer um cargo na arquidiocese baiana, a convite do Arcebispo da Bahia,
aceitando os cargos de vigário-geral e tesoureiro-mor (que fazia questão de exercer sem pleno uso das
roupagens eclesiásticas, fato que começa a trazer-lhe problemas). "Aborrecido de uns, temido de outros",
"estes fingiam amizades, aqueles lhe maquinavam ódio", Gregório foi desligado de suas funções por ordem
do Arcebispo Frei João da Madre de Deus;
─ Casou-se com Maria dos Povos ―honesta, formosa e pobre‖, a quem dedicou famoso soneto, tradução livre
de dois sonetos de Gôngora ("Discreta, e formosíssima Maria"). Vendeu terras que recebera como dote,
jogando o dinheiro em um saco no canto da casa, e gastando-o ao acaso e fartamente;
─ Na Bahia, vida boêmia e indisciplinada;
─ A certa altura abandona, no entanto, casa e encargos e sai pelo Recôncavo "povoado de pessoas
generosas‖ como cantador itinerante, convivendo com todas as camadas da população, metendo-se no meio
das festas populares, banqueteando-se sempre que convidado. "Do gênio que já tinha, tirou a máscara para
manusear obscenas e petulantes obras", diz o licenciado Manuel Pereira Rabelo: nessa fase engrossa o
volume da sua poesia satírica, o barroco popular oposto ao acadêmico, e a poesia erótico-irônica oposta ao
lirismo cortês.
─ A virulência da sátira do "Boca do Inferno", motivada seja pela crítica da corrupção, dos desmandos
administrativos, dos arremedos da fidalguia local ou pelo puro e cortante prazer sádico, lhe valeu a
deportação para Angola. De lá, pôde retornar sob condições: desde que não à Bahia, mas a Pernambuco, e
calando a sátira num rigoroso "ponto em boca" (sempre a ponto de ser transgredido, no entanto);
─ 1694: banido para Angola;
─ 1695: volta para Recife, onde morre um ano depois;
─ Há quem insista em fixar alguns gestos como imagem da sua exorbitância: uma cabeleira postiça, um
colete de pelica, uma vontade de ficar em um escritório adornado com bananas.

a) Poesia Lírica;
b) Poesia Satírica;
c) Poesia Religiosa;

21
RAMALHO, Christina. Apostila de Literatura Brasileira I. 1º Semestre de 2006, mimeo. P.69-73.
22
WISNIK, José Miguel [org]. Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Cultrix, 1989.
27
d) Poemas graciosos e pornográficos;
e) A linguagem na poesia gregoriana:

─ Gregório põe em jogo a maquinaria das trocas poéticas, afiadas também nos seus truques, trocadilhos,
jogos paronomásticos, em suma, numa série de deslocamentos de significante e significado, além dos
recursos dos pares antitéticos (―Estás e estou do nosso antigo estado‖) das aliterações modulantes (ta / to / ti /
ta), correlações rítmicas e morfológicas, assonâncias (― A mim foi-me trocando, e tem trocado, / tanto
negócio e tanto negociante‖), a realização de uma antropofagia linguística parodística (usando toponímicos
tupis), etc... Num trabalho de confronto e fusão dos opostos, Gregório mostra-se hábil na espécie de alquimia
dos contrários com que Gerard Genette caracterizou a ―fórmula da ordem barroca‖, sua ―dialética
fulminante‖ 23.
─ É revelar falta de senso de perspectiva transferir os atuais padrões de julgamento criados à sombra de
diferente doutrina estética, para o estudo e aferição da literatura de uma época informada pela norma da
imitação, base da pedagogia literária ortodoxa. Nenhum gênio literário do Renascimento, do Barroco e do
Neoclassicismo, escapa ao tributo: Shakespeare, Montaigne, Cervantes, Gôngora, Quevedo. Há páginas
inteiras de Sêneca em Montaigne, e seria tempo perdido pretender rastrear os passos de Sêneca e Plutarco em
Shakespeare. (...) Por não se colocarem dentro da doutrina vigente na época, por não a relacionarem com a
teoria crítica do tempo, que é diversa, no particular, da que vigora depois do Romantismo, certas
interpretações da literatura seiscentista e setecentista têm incorrido em falha de julgamento. Naquele tempo
era motivo de superioridade e não de inferioridade artística (como se pensa hoje, após a supervalorização da
originalidade e do gênio individual que o romantismo infundiu na mentalidade literária ocidental) um
escritor mostrar que imitava um modelo da Antiguidade. E, nessa imitação, havia toda uma gama de tons,
desde a simples inspiração até a glosa, até mesmo a tradução24.
─ Vítima desse erro de perspectiva é Gregório Matos, acusado por uma linha de críticos brasileiros como um
simples copista de Gôngora e Quevedo, esquecendo-se do que estes dois mesmos gênios devem, através da
imitação, aos modelos antigos25.

f) Temas, situações e atitudes que definem Gregório de Matos:

 A consciência nítida do pecado;


 A associação do cômico ao sagrado;
 O prazer de impressionar;
 Humanização do sobrenatural;
 A sensação de instabilidade da fortuna, insignificância das vaidades humanas e fugacidade do tempo;
 O sentido dilemático da vida;
 A marginalidade em que viveu.

POEMA DE GREGÓRIO PARA ANÁLISE:

Selecionamos uma análise26 que pode servir de modelo para futuros trabalhos sobre a obra do poeta baiano.
E, no final desse capítulo, você encontrará um banco de poemas para realizar suas próprias análises.

23
WISNIK, José Miguel. Opus cit
24
COUTINHO, Afrânio. [org] A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Sul-Americano, 1972.
25
COUTINHO, Afrânio. Opus cit.
26
PLATÃO SAVIOLI, Francisco e FIORIM, José Luiz. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ed. Ática,
1998.
28
Desenganos da vida humana metaforicamente
É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa27 rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,


Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufanas, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,


Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, talentos preza:
Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa,
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa ?

Nesse texto, o poeta vai explicar a Fábio o que é a vaidade.

No primeiro quarteto, afirma que ela é rosa; no segundo, que é planta; no primeiro terceto, que é nau. Essas três
palavras significam, no soneto, vaidade. Para que o leitor entenda porque rosa, planta e nau
têm esse sentido no texto, o poeta vai explicar a relação que estabelece entre o significado de cada um desses
termos e o do vocábulo vaidade.
No primeiro quarteto, diz que a vaidade é rosa, mas não qualquer uma. É aquela lisonjeada pela manhã, ou seja, a
rosa recém-aberta e que, portanto, está em todo seu esplendor. O que o poeta quer dizer, então, é que a vaidade é a beleza
aparente, que se exibe, brilha e seduz (Púrpuras mil, com ambição dourada / Airosa rompe, arrasta presumida). No
segundo quarteto, o poeta afirma que a vaidade é planta, mas em pleno esplendor da primavera, já que é de abril
favorecida (abril é o mês em que, no hemisfério norte, a primavera está em seu apogeu). A vaidade é, então, esplendor
(planta de abril favorecida) e ornamentos (florida galeota empavesada) que se exibem pela vida (por mares de soberba
desatada) com orgulho (sulca ufana) e arrojo (navega destemida).
No primeiro terceto, ao dizer que a vaidade é nau, o poeta mostra que o ser humano vaidoso é aquele que, apesar
de ter a presunção da perpetuidade (Fênix é a ave que renascia das próprias cinzas), valoriza os brilhos exteriores
(galhardias apresta) e momentâneos (alentos preza). Podem-se perceber, agora, traços comuns de sentido entre as
palavras rosa, planta, nau e o termo vaidade. Existe uma relação de intersecção entre seus significados: o homem vaidoso
exibe suas belezas, como a rosa recém-aberta; mostra apenas seus esplendores, como a planta na primavera; valoriza o
que é exterior e passageiro, como a nau, embora tenha a presunção de perpetuidade.
No último terceto, utilizando o processo de disseminação e recolha, o termo penha significa o naufrágio do
navio. Como penha pode ter esse sentido? O penhasco é a causa do naufrágio, que é seu efeito. Dá-se à causa o
significado do efeito. Entre esses dois sentidos há uma relação de contiguidade (de união, proximidade, adjacência,
vizinhança e, por conseguinte, de coexistência, de interdependência, de implicação), isto é, um efeito aparece unido,
relacionado a uma causa. O vocábulo ferro significa o corte da planta. Aqui a alteração do significado se faz em duas
etapas. Ferro é o material de que é feito o machado; ferro quer, pois, dizer "machado". No caso, o material de que um
objeto é feito está designando o próprio objeto. Entre os dois significados há uma relação de contiguidade. Em seguida,
machado passa a significar corte: utiliza-se, portanto, o instrumento com que uma ação é feita para designar a ação. Entre
a ação e o instrumento, há também uma relação de contiguidade, pois o segundo está proximamente relacionado à

27
Glossário:
Airoso: esbelto, gracioso;
Soberba: orgulho, altivez;
Galeota: pequena embarcação a remo usada para o transporte do rei;
Empavesado: enfeitado, adornado, guarnecido de paveses (= proteção nas embarcações);
Ufano: que se orgulha de algo; vaidoso;
Galhardia: garbo, elegância;
Aprestar: preparar com prontidão;
Alento: sopro, bafejo;
Penha: penhasco, rochedo.
29
primeira. A palavra tarde significa o fenecer, o murchar da rosa. Usa-se, pois, o momento pelo evento que nele ocorre.
Entre os dois significados, há uma relação de contiguidade, pois o evento está intrinsecamente unido a um dado momento.
No entanto, como nau, planta e rosa não estão no soneto usadas no seu sentido próprio, mas significam o "homem
vaidoso", os significados "naufrágio", "corte" e "fenecimento", contaminados pelo valor semântico das três palavras
contíguas, ficam acrescidos do significado "morte‖: Entre os significados "naufrágio", "corte" e "fenecimento", de um
lado, e "morte", de outro, há uma relação de semelhança, ou de intersecção, já que todos contêm o traço semântico
/acabamento/, /fim/. O que o poeta pergunta, pois, no segundo terceto, é: de que vale ser vaidoso, se a morte é inexorável
(se aguarda sem defesa / Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa)? O soneto trata, então, de temas muito caros ao
barroco: o caráter passageiro da vida e a inevitabilidade da morte.

Gregório de Matos: Coletânea de poemas28

1. A POESIA LÍRICA

Dentro da poesia lírica de Gregório, há basicamente a temática de cunho amoroso, a de cunho


religioso e a vertente filosófica.

1.1. Na POESIA LÍRICO-AMOROSA, a dualidade barroca evidencia-se em dois planos: na ideia de amor,
que tanto pode ser uma fonte de prazer e elevação, como de dor e sofrimento; e na concepção da figura
feminina, que ora é elevada ao plano do idealismo neoplatônico ora é tida como um agente da perdição
espiritual, porque inspira o pecado, a licenciosidade, os pensamentos luxuriosos.

Leiamos o poema lírico ―PONDERA AGORA COM MAIS ATENÇÃO A FORMOSURA DE


D. ANGELA‖

Não vi em minha vida a formosura,


Ouvia falar nela cada dia,
E ouvida me incitava, e me movia
A querer ver tão bela arquitetura.

Ontem a vi por minha desventura


Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma Mulher, que em Anjo se mentia,
De um Sol, que se trajava em criatura.

Me matem (disse então vendo abrasar-me)


Se esta a cousa não é, que encarecer-me.
Sabia o mundo, e tanto exagerar-me.

Olhos meus (disse então por defender-me)


Se a beleza hei de ver para matar-me,
Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me.

Interpretação:

 Mulher: anjo (espiritual) + Sol (matéria);


 Choque entre o ascetismo e o sensualismo. A beleza exaltada na linguagem pode
levá-lo ao pecado. Reprime, na cegueira, os impulsos, acirra o desejo;
 A culpa vem dos prazeres do corpo, dos sentidos, levando-o a pecar, dominado que
é pelo espírito da contrarreforma.

28
Utilizaremos a seleção organizada e comentada de José Miguel Wisnik, em obra já citada anteriormente.
30
ROMPE O POETA COM A PRIMEYRA IMPACIENCIA QUERENDO DECLARAR-SE E TEMENDO PERDER
POR OUZADO.

Anjo no nome, Angélica na cara,


Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara


De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares,


Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,


Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

Interpretação:

Há um engenhoso trocadilho já a partir do nome da mulher a quem o poeta se dirige. Angélica pode
ser um adjetivo, um substantivo próprio (o nome dela era Ângela, cujo diminutivo era Angélica) e é
também o nome de uma flor que inspira sensualidade. Angélica deriva de angelus (anjo) do latim.
Na primeira estrofe o poeta procura fazer uma síntese entre flor (algo material, terreno e mesmo
sensual) e anjo (etéreo, divino, espiritual), que tomariam uma só forma (uniformara). O eu lírico vê na
amada a síntese do que há de belo e puro (positivo), mas também de tentador (negativo). Ou seja, na verdade
essa síntese parte da antítese existente entre o plano material (flor) e o espiritual (anjo). Tal antítese
acaba se tornando um paradoxo, explícito no final do poema, pois a mulher-anjo em vez de inspirar
aspirações espirituais acaba inspirando sentimentos pecaminosos.
A segunda estrofe ilustra o desejo que do poeta: quem, vendo uma flor tão bela, não tem ímpeto de
tê-la para si, arrancá-la, desfrutá-la? Quem não idolatraria um anjo tão reluzente, iluminado, em nome de
Deus?
No primeiro terceto o eu lírico já prenuncia o paradoxo que ele explicará no final do poema. Como
a sua amada representa a figura de um anjo, a quem ele constantemente adora (―Anjo sois dos meus altares‖)
o natural seria de guardá-lo das tentações, auxiliá-lo, livrá-lo de ―diabólicos azares‖.
A última estrofe começa com uma conjunção adversativa (Mas) continuando o raciocínio da
estrofe anterior deixando clara a contradição que há na condição da sua amada: Por ser tão formosa,
―galharda‖ (elegante), ela acaba sendo fonte de tentação para o eu lírico. A beleza dela o arrasta para o
precipício, por inspirar sentimentos pecaminosos, impuros.

SOLITARIO EM SEU MESMO QUARTO A VISTA DA LUZ DO CANDIEYRO PORFIA O


POETA PENSAMENTEAR EXEMPLOS DE SEU AMOR NA BARBOLETA.

Ó tu do meu amor fiel traslado


Mariposa entre as chamas consumida,
Pois se à força do ardor perdes a vida,
A violência do fogo me há prostrado.

Tu de amante o teu fim hás encontrado,


Essa flama girando apetecida;
Eu girando uma penha endurecida,
No fogo que exalou, morro abrasado.

Ambos de firmes anelando chamas,


Tu a vida deixas, eu a morte imploro
Nas constâncias iguais, iguais nas chamas.

Mas ai! que a diferença entre nós choro,


Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.
31

Interpretação:

Podemos incluir o soneto de Gregório de Matos na tendência conceptista do Barroco graças ao engenhoso
desenvolvimento de uma única imagem, a da mariposa atraída pela chama que deverá matá-la. O sujeito
lírico desdobra a comparação entre a sua situação e a da mariposa, explorando as semelhanças, para, na
última estrofe, ponto culminante do soneto, estabelecer grande diferença: seu sacrifício é mais terrível do que
o dela, porque inútil.

RATIFICA SUA FIDALGA RESOLUÇÃO TIRANDO DENTRE SALAMANDRA E


BARBOLETA O MAIS SEGURO DOCUMENTO PARA BEM AMAR.

Renasce Fênix quase amortecida.


Barboleta no incêndio desmaiada:
Porém se amando vives abrasada,
Ai como temo morras entendida!

Se te parece estar restituída,


No que te julgo já ressuscitada,
Quanto emprendes de vida renovada,
Te receio na morte envelhecida.

Mas se em fogo de amor ardendo nasces,


Barboleta, o contrário mal discorres,
Que para eterna pena redivives.

Reconcentra esse ardor, com que renasces,


Que se qual Borboleta em fogo morres,
É melhor, Salamandra, o de que vives.

AO RIO DE CAIPPE RECORRE QUEYXOSO O POETA DE QUE SUA SENHORA ADMITTE


POR ESPOSO OUTRO SUJEITO

Suspende o curso, ó Rio, retorcido,


Tu, que vens a morrer, adonde eu morro,
Enquanto contra amor me dá socorro
Algum divertimento, algum olvido.

Não corras lisonjeiro, e divertido.


Quando em fogo de amor a ti recorro
E quando o mesmo incêndio, em que me torro,
Teu vizinho cristal tem já vertido.

Pois já meu pranto inunda teus escolhos,


Não corras, não te alegres, não te rias,
Nem prateies verdores, cinge abrolhos.

Que não é bem, que tuas águas frias,


Sendo o pranto chorado dos meus olhos,
Tenham que rir em minhas agonias.

1.2. Na POESIA LÍRICO-RELIGIOSA Gregório mostra-se dividido entre o pecado e a virtude, entre a
culpa pelo pecado e a esperança de salvação. Mas nem sempre há submissão a Deus: frequentemente o eu
lírico olha com algum orgulho para Deus, e mesmo com certa prepotência, como se Ele tivesse a obrigação
de perdoar os homens por tê-los feito pecadores.
32
BUSCANDO A CRISTO

A vós correndo vou, braços sagrados,


Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados


De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,


A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,


A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

Interpretação:

O soneto é construído a partir de um sistema de metonímias que vão relacionando as partes de Cristo
("braços", "olhos", "pés", "sangue", "cabeça", "cravos"), substituindo todo o Cristo crucificado.
Os versos 5, 9, 10, 11, 12 e 13 constroem-se com a omissão do verbo, que aparecera no 1º verso - "correndo
vou‖. Em todos eles ocorre o procedimento estilístico denominado zeugma (= elipse de uma palavra ou
expressão próxima no contexto). Assim, nos versos mencionados, deve-se ler:

―A vós (correndo vou), divinos olhos (...)‖


―A vós (correndo vou), pregados pés (...)" etc.

Outro recurso empregado são as anáforas (repetição de palavra(s) no início de dois ou mais versos). Observe
a repetição de ―a vós‖ (v. 5, 9, 10, 11, 12, 13), e de "e por não" (v. 4 e 8). O aspecto cultista se evidencia
através do trabalho com as palavras, por meio das figuras de linguagem.

OS AFETOS E LÁGRIMAS, DERRAMADOS NA AUSÊNCIA DA DAMA A QUEM QUERIA.

Ardor em firme coração nascido;


Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que um peito abrasas escondido;


Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.

Se és fogo, como passas brandamente,


Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,


Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
33
O poema explora a alquimia dos contrários para expressar o dilema entre a paixão e o refreamento: os
elementos da antítese (fogo/ água; paixão/ pranto) evoluem para o oximoro, já que a essência e a aparência comportam
ambas as mesmas contradições, ou seja, confundem-se essência (neve ardente) com aparência (chama fria). Os versos
interrogativos demonstram o conflito, enquanto a revelação do sentimento é destacada com clareza quando o poeta usa
letra maiúscula no início da palavra. Mais uma vez, a lírica de Gregório aponta as contradições do amor, tentando, através
da temperança (―temperar a tirania‖) buscar compreender racionalmente as emoções, sem, entretanto, solucionar o engano
entre a realidade e o jogo amoroso, como vimos nos últimos versos do soneto. Mesmo assim, o poeta fixa-se na linha da
oposição para retratar o engano entre a realidade e o jogo amoroso.

TORNA A DEFINIR O POETA OS MAOS MODOS DE OBRAR NA GOVERNANÇA DA BAHIA,


PRINCIPALMENTE NAQUELA UNIVERSAL FOME, QUE PADECIA A CIDADE.

Que falta nesta cidade?.....................................Verdade


Que mais por sua desonra.................................Honra
Falta mais que se lhe ponha...............................Vergonha.

O demo a viver se exponha,


por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio?...............................Negócio


Quem causa tal perdição?..................................Ambição
E o maior desta loucura?....................................Usura.

Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Quais são os seus doces objetos?...................................Pretos
Tem outros bens mais maciços?..................................Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos? ..............................Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,


dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.

(...)
E que justiça a resguarda? ....................................Bastarda
É grátis distribuída?...............................................Vendida
Quem tem, que a todos assusta?.............................Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,


o que EL-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

(...)
E nos Frades há manqueiras?...................................Freiras
Em que ocupam os serões?......................................Sermões
Não se ocupam em disputas?....................................Putas.

Com palavras dissolutas


me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.

(...)
34
A Câmara não acode?.............................................Não pode
Pois não tem todo o poder?....................................Não quer
É que o governo convence?...................................Não vence.

Quem haverá que tal pense,


que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.

Emprego do processo de disseminação e recolha para ressaltar os problemas da Bahia: a crise do açúcar, a
debilitação das Câmaras, o crítica ao clero.
Neste poema, há uma crítica óbvia à promiscuidade, à incompetência e à desonestidade. Por meio de falsas
perguntas, para as quais o poeta oferece respostas, Gregório vai decompondo o interior da organização social. Neste tema,
o mundo presente é insatisfatório, corroído pela inversão de valores. O honesto é pobre; o ocioso triunfa; o incompetente
manda. Essa atitude idealiza o passado, tido como perfeito e harmônico, e recusa as contradições do presente. É uma
perspectiva conservadora. O racismo e a libertinagem são representados de maneira inversa; o racismo pela ascensão do
negro; e a libertinagem pelo declínio do clero. Na sátira de Gregório, os termos ―negros‖, ―mulata‖, ―puta‖ ―mestiços‖
etc., aplicam-se também como metáforas estereotipadas, como caracterização pejorativa e insulto.

DESCREVE O QUE ERA REALMENTE NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA


DE MAIS ENREDADA POR MENOS CONFUSA.

A cada canto um grande conselheiro,


Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,


Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,


Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,


Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.

Neste seu famoso soneto ―Descreve o que era realmente naquele tempo a cidade da Bahia‖, observa-se que a
escritura dá conta de traduzir a insatisfação com a desordem e o abuso de poder. Os maus costumes, desde os mais
comuns citadinos, já propiciam a experiência malograda, pois espreitando ―a vida do vizinho e da vizinha‖, instaura-se a
lógica do vigiar e punir oprimindo qualquer impulso de liberdade.
Na primeira estrofe, o poeta constata esse desconcerto do mundo, a sociedade absurda. Baiano, filho da
aristocracia latifundiária, formado em Direito por Coimbra, a figura de Gregório de Matos pode ser tomado como o
pioneiro perfil, tenso e dividido do intelectual brasileiro: filho da terra, mas culturalmente seduzido pela Metrópole, sua
obra reitera esse ambivalente convívio entre formação cosmopolita e circunstância brasileira: o filho do senhor de
engenho encontra o engenho em plena crise e o que ele vê são falsos e pretensos nobres, ─ os comerciantes portugueses e
o poeta culto se vê completamente deslocado num meio iletrado.
Enfim, parece-lhe que o mundo está condenado a ficar em poder dos homens errados, inclusive os mulatos,
como aproveitadores, que subjugam com esperteza os verdadeiros nobres. O que percebemos é esse profundo
ressentimento diante dessa sociedade absurda, feita de valores contrários: o homem correto é substituído pelo usurpador
que ganha prestígio e fortuna: os governadores, os comerciante, os mulatos, mas tudo isso visto, pelo olhar de nobreza
que o poeta reserva para si, ou seja, se, por um lado, ocorre, de fato, uma visão crítica dos desmandos portugueses e da
exploração, por outro lado, o poeta conserva uma postura tradicionalista e preconceituosa em relação àquela sociedade
―misturada‖ que se formava.
35
II. A lírica arcádica / neoclássica (século XVIII)

Vento no Litoral
(Renato Russo)

De tarde quero descansar Agora está tão longe


Ver se o vento ainda está forte Vê, a linha do horizonte me distrai
Sei que faço isso para esquecer Dos nossos planos é que tenho saudade
Eu deixo a onda me acertar Onde está você agora
E o vento vai levando tudo embora Além de aqui dentro de mim?

[...]

A natureza serve aqui de refúgio para o eu lírico, é o locus amoenus, onde ele se evade, procurando
símbolos que auxiliem o compreender a força de suas emoções: da mesma forma como o vento leva tudo embora,
também carregará a dor do amor não realizado, ajudando-o a esquecê-lo.
No século XVIII, como no Renascimento, o poeta retorna à Antiguidade Clássica, identificando-se com a
filosofia aristotélica, que vê a natureza como modelo de equilíbrio e harmonia a ser imitado. Trata-se, aqui, do
Neoclassicismo, que, tanto na Europa quanto no Brasil, caracterizou-se, em princípio, como uma declarada reação
contra os exageros do Cultismo e do Conceptismo.

1. Etimologia do termo arcadismo

A palavra arcádia (do grego arkadia), tem origem no nome de uma província grega liderada pelo deus Pan, onde
seres eleitos se dedicavam à poesia. Durante o século XVIII, Arcádia passou a designar os saraus literários, academias ou
associações de escritores, criadas para combater o estilo barroco.

2. Aspectos histórico-filosóficos do século XVIII


● Iluminismo ou Ilustração:
- Movimento que tinha como objetivo formar uma sociedade justa, igualitária e esclarecida. Em decorrência dessa
mentalidade patrocinada pela razão, o século XVIII é conhecido como o ―século das luzes‖;
- Teorias racionalistas de Descartes, Espinosa, Voltaire e Rousseau;
- Voltaire: condenou todas as formas de opressão, criticou severamente as práticas da Igreja Católica e promoveu
a ideia de se formar uma monarquia governada por um soberano esclarecido, que promovesse o progresso e a liberdade de
pensamento;
 Rousseau: defendeu a ideia de uma sociedade mais simples. Sua teoria do ―bom selvagem‖ prega a ideia de que
o homem nasce essencialmente bom, sendo corrompido, mais tarde, pelo meio social.

3. Características estilísticas
Os poetas árcades reagiram contra o Barroco por uma nova retórica, pois ansiavam evadir-se de seu tempo para
um mundo visionário, como se fosse possível transformarem-se em pastores. Daí o Arcadismo apresentar uma faceta de
artificialismo, de postiço, cujas obras são fruto mais do intelecto do que da sensibilidade, voltadas para o racional, para o
claro, o regular e o verossímil.
A poesia pastoral como tema vinculasse ao desenvolvimento da cultura urbana, que, por oposição, transforma o
campo num bem perdido, encarnando facilmente os sentimentos de frustração.
A partir do século XVIII, o binômio campo-cidade carrega-se de conotações ideológicas e afetivas, reforçadas
pelo mito do homem natural, cuja força extrema é a figura do bom selvagem, defendida pelo pré-romântico Rousseau, em
oposição às ideias do iluminista Voltaire. Entretanto, ambos negam a hierarquia do absolutismo na nobreza e no clero,
recorrendo à liberdade que a natureza e a razão teriam dado ao homem.

4. Dentre os preceitos árcades, destacam-se os clichês árcades, pequenas máximas latinas:

Fugere urbem ("fugir da cidade") - O "mito do bom selvagem", de Rousseau, aliado à expansão do meio urbano,
provocou o bucolismo - a evocação nostálgica do campo e da natureza. A cidade é vista como fonte de tormentos. Assim,
o cenário campestre é constantemente o pano de fundo; criou-se um "universo artificial" de caráter bucólico e pastoril. O
eu lírico integra-se ao campo, menosprezando os valores da cidade.
Inutilia truncat ("cortar o inútil") - Este clichê é uma reação aos excessos formais barrocos. Ao contrário do
rebuscamento da escola anterior, os árcades preferiram a clareza, a simplicidade e a ordem direta na linguagem.
36
Carpe diem ("aproveitar o dia") - Os árcades, da mesma forma que os barrocos, tinham consciência da
fugacidade do mundo material, mas utilizaram essa máxima por razões diferentes. Enquanto os barrocos procuravam
viver intensamente em função da angustiante certeza da morte, os árcades - por serem materialistas e racionais –
consideravam: se a vida é fugaz, melhor aproveitá-la; vale a pena.
Locus amoenus ("lugar ameno") - Os árcades viam a natureza como um lugar ameno, aprazível, onde o homem
poderia encontrar equilíbrio e paz interior - pregavam ainda um ideal de vida simples, sem miséria, nem riqueza, sempre
junto à natureza, que proporcionasse ao homem tempo para exercer a virtude e a arte.
Aurea mediocritas - A tradução literal dessa expressão não conduz à ideia que busca expressar. Seria algo como
"equilíbrio de ouro", baseado na máxima latina in media est virtus, ou seja, "a virtude está no meio". Os árcades pregavam
o ideal de vida simples, sem miséria, nem riqueza, em que a posse do essencial à manutenção física do homem
proporcionasse tempo para a virtude e a arte.

5. O Rococó
▪ Origina-se da palavra francesa rocaille (concha) cujas linhas associam-se aos elementos decorativos desse
estilo;
▪ Pode-se considerar o Rococó um desenvolvimento geral do Barroco, no sentido de abandonar os excessos de
linhas retorcidas e buscar formas mais leves e delicadas;
▪ Trata-se de uma arte que explora cenas graciosas e o encontro agradável com a natureza, como o quadro ―O
balanço‖, de Fragonard, enfatizando as ―festas campestres‖ e anunciando o Neoclassicismo, o que também pode ser visto
na arte de Watteau, no ―Embarque para Citera‖ (centro de um culto pagão a Vênus, deusa do amor);
▪ Época do minueto, do namoro, do prazer voluptuoso; emprego das máscaras e disfarces.

6. Neoclassicismo nas Artes Plásticas


Jacques Louis Davi: ―A morte de Marat‖, ―Bonaparte atravessando os Alpes‖.

7. Neoclassicismo na música
Mozart: ―A flauta mágica‖ e Beethoven.

8. Neoclassicismo na literatura
Francesa: Rousseau, Montesquieu, Diderot, Beaumarchais, Voltaire.
Portuguesa: Bocage, Tolentino, Antônio José da Silva.
Alemã: Goethe, Schiller, Herder.
Inglesa: Pope, Macpherson, William Blake, Richardson, Swift, Sterne.
Hispano-americana: Olmedo, Heredia.
Brasileira: Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Silva Alvarenga, Basílio da Gama.

9. Arcadismo e Neoclassicismo no Brasil (1768-1836)


● Realidade histórica brasileira:
- O ciclo da mineração provocou o divórcio entre a classe proprietária no Brasil e os grupos dominantes de
Portugal e o escasseamento do ouro, junto à avidez da metrópole, alimentaram o rancor das altas camadas coloniais contra
a exploração portuguesa, designando a área mineira como berço da sistematização do impulso nativista.
- A urbanização, o aumento da densidade demográfica, o volume do comércio, o aparecimento das profissões
liberais, de uma magistratura, criam um novo aspecto para Vila Rica, sintonizando-a com os movimentos liberais da
independência americana e da Revolução Francesa através dos conjurados, donos de bibliotecas atualizadíssimas.

10. A escola mineira


● É no Arcadismo que a literatura brasileira alcança o seu primeiro período ideologicamente articulado. Só com
as letras neoclássicas, de fundo nativista, da ―escola mineira‖ é que se concatena o nosso ―sistema literário‖ (Antônio
Cândido), baseado na interação de escritores animados pelo senso de dignidade profissional e da regularidade e
comunicabilidade do texto poético.
O nosso Neoclassicismo já é uma literatura brasileira consciente, mesmo que ainda não haja uma literatura
nacional consciente de sua brasilidade29.

● O Arcadismo – Neoclassicismo ressaltou a brasilidade nos seguintes aspectos30:


a) deu à nossa literatura alcance potencialmente universal;
b) conscientização literária como não havia antes, isto é, consciência do papel que os artistas deviam exercer na
sociedade, formando as bases de uma certa tradição;
c) alargamento de nossa geografia literária, com certa difusão da literatura no país, dando à vida intelectual
daquele tempo uma riqueza inexistente;

29
MERQUIOR, José Guilherme. Opus cit. P.24.
30
RAMALHO, Christina. Apostila de Literatura Brasileira I. 1º Semestre de 2006, mimeo.
37
d) valorização do nativismo e fundação de uma literatura brasileira.

─ O grande feito dos poetas arcádicos, maiores e menores, foi o esforço de trazer à pátria os temas e as técnicas
mentais e artísticas do Ocidente europeu, dando à nossa literatura um alcance potencialmente universal, antes mesmo que
ela tomasse consciência da sua individualidade nacional. Nesse sentido, foram civilizadores por excelência; daí a peculiar
importância do Arcadismo, que entre nós não foi apenas, como em Portugal, um renovador de técnicas e teorias literárias
ou um preparador de movimentos novos, mas contribuiu decisivamente para instituir a literatura brasileira. Ela se vinha
formando desde o primeiro século da colonização, e vimos que no período barroco produzira grandes escritores, dando
também início a uma articulação orgânica do movimento literário. Durante o Arcadismo, assistimos ao desenvolvimento
apreciável dessa tendência; à constituição de uma consciência literária como não havia antes; ao sentimento de que os
produtos intelectuais da Colônia representavam uma espécie de advento à civilização, de promoção do país à esfera
virtual dos centros inspiradores da nova vida mental e artística. Além disso, é então que se alarga a nossa geografia
literária, com o deslocamento do eixo político para o Sul, em virtude da descoberta das minas de ouro e diamantes, que,
ao lado de outros fatores, acarretou a transferência da Capital, da Bahia para o Rio de Janeiro. A Academia dos
Renascidos, fundada naquela cidade em 1759, já procura superar o âmbito local e congregar escritores de todo o pais,
numa primeira demonstração de solidariedade geral. Esta tendência aumentou difusamente a partir de então, e por isso o
legado dos árcades foi mais atuante que o dos cultistas, o principal dos quais, Gregório de Matos, ficou esquecido nos
seus manuscritos inéditos até o século XIX. Embora homens como Rocha Pita e Manuel Botelho de Oliveira hajam
lançado temas, maneiras de escrever e de ver o país que se incorporaram ao legado da tradição, pode-se dizer que os
árcades pouco receberam dos antecessores e que não os reputaram predecessores, modelos ou antepassados intelectuais.
(Antônio Soares Amora)

─ A articulação virtual dos escritores, a sua consciência intelectual e nacional, o esboço de uma vida cultural
regular foram favorecidos por várias circunstâncias. É o caso, antes de mais nada, do progresso geral do pais durante o
século XVIII; e mais ainda: a voga das teorias de missão da inteligência, o incremento do nativismo, o aparecimento de
condições um pouco melhores para a divulgação das obras, o prestígio crescente dos brasileiros no mundo português. Não
se esqueça, com efeito, que eles se foram tornando, cada vez mais, na Metrópole, cientistas, administradores,
funcionários, técnicos, dando aos seus patrícios um exemplo de eminência intelectual que por certo incrementou a
consciência dos escritores. Por tudo isso, quando o Romantismo se constituiu e os homens de letras procuraram
antecessores, foram, sobretudo, os poetas arcádicos, os intelectuais "ilustrados", os pregadores patrióticos que invocaram,
considerando-se seus herdeiros, vendo neles os fundadores duma literatura pátria, depois de esboços anteriores. E, apesar
das profundas divergências de concepção estética, tornaram-se, historicamente, os seus herdeiros diretos.

11. Autores e Obras


CLÁUDIO MANUEL DA COSTA (1729/1789)
─ Obras Poéticas
─ Vila Rica

Nasceu na cidade de Ribeirão do Carmo (hoje Mariana), em Minas Gerais, no ano de 1729. Aos vinte anos foi a Portugal
para estudar Direito na faculdade de Coimbra, dividindo as obrigações do curso com a produção literária. Depois de
terminada a faculdade, retorna ao Brasil onde exerce a função de advogado na então cidade de Vila Rica (hoje Ouro
Preto).
Em Minas Gerais ajudou a fundar a Arcádia Ultramarina com os poetas com Manuel Inácio da Silva, Silva Alvarenga e
Tomás Antônio Gonzaga entre outros poetas e intelectuais. Adotou, no ano de 1773, o pseudônimo de Glauceste Satúrnio,
sob o qual escreveu a maioria de suas poesias.
Inspirados pelo pensamento iluminista, os integrantes da Arcádia desenvolveram uma conspiração política contra o
governador da capitania, culminando na Conjuração Mineira. Por essa época, sua poesia adquire um tom político e o
poeta se mostra preocupado com diversas questões políticas e sociais. O movimento levou seus membros à prisão, sob
acusação de lesa-majestade, isto é, de traição ao rei de Portugal.
Por seu envolvimento na Conjuração Mineira, o poeta foi encontrado morto em sua cela no ano de 1789. A causa da sua
morte ainda não foi esclarecida e alguns historiadores acreditam que ele tenha sido morto a mando do Governador, outros,
que ele haveria cometido suicídio.
Anos mais tarde, ao final do século XIX, como homenagem, Claudio Manoel da Costa foi escolhido o Patrono da cadeira
de número oito da Academia Brasileira de Letras.
38
Obras

Claudio Manoel da Costa é considerado o primeiro poeta do movimento árcade brasileiro, embora ainda apresente
características barrocas em toda a sua obra, principalmente no que diz respeito ao estilo cultista e conceptista utilizados,
compondo poemas perfeitos na forma e na linguagem. Por isso, costuma-se dizer que Claudio Manoel da Costa é um
poeta de transição entre o barroco e o arcadismo. Além disso, seus poemas têm influência dos versos camonianos.
O início do movimento árcade na literatura brasileira tem como marco a publicação de sua coletânea de poemas intitulada
Obras (1768). Diferentemente da produção poética anterior, Claudio Manoel da Costa prioriza o retrato da natureza como
um local de refúgio dos problemas da vida urbana, onde o poeta/pastor pode desfrutar da vida rural.
Seus temas giram em torno de reflexões morais e das contradições da vida, além de ter escrito um poema épico, Vila
Rica, no qual exalta o bandeirantes, exploradores do interior do país além, é claro, da fundação da cidade de mesmo
nome.

TOMÁS ANTONIO GONZAGA (1744/1810)


─ Marília de Dirceu e Cartas Chilenas (sátira ao Governador Luiz da Cunha Meneses, que nelas aparece como o
Fanfarrão Minésio).
Marília de Dirceu:
Parte I - tom de completa felicidade;
Parte II - tom trágico, de desalento;
Parte III - mais lírica, embora os amantes jamais tivessem se reencontrado.

─ Lira: poema leve, por concepção, onde o "eu" está sempre na boca do personagem.
─ Na primeira parte das liras, encontram-se muitos poemas de expressão rococó; isto é, com uma estrutura
bem delineada e harmônica em que se movem e se entrelaçam detalhes (imagens) naturais desenhados em
arabesco. ─Menos do que sofisticação, é um tom açucarado que domina esses poemas. É a parte mais débil
do lirismo de Gonzaga; mas não deve ser recusada em bloco: um leitor atento irá encontrar boa música
verbal em várias estrofes ou versos. (Duda Machado)
─ A ênfase em aspectos de sua própria individualidade e a inclusão do detalhe preciso, realista, do vocábulo
concreto, constituem os elementos inovadores da obra de Gonzaga. (Duda Machado)
─ Os elementos de inovação poética acentuam-se ainda mais na segunda fase de sua poesia, determinada
pela experiência da prisão. O contraste dramático entre sua aspiração amorosa e a ausência de Marília marca
e enriquece a sua lírica.
─ Erguida a tema dominante, a exposição da desgraça pessoal rompe e transgride temas e valores básicos do
Arcadismo: o bucolismo, a harmonia idílica de sentimentos, a impessoalidade. Mas, ao mesmo tempo, a
revelação dos tormentos mantém-se dentro dos padrões clássicos de composição, e o autorretrato desenhado
pelos poemas, em que pesem alguns momentos patéticos, está em completo acordo – como se proclama
unanimemente – com os ideais burgueses e domésticos do período iluminista. Esses aspectos inovadores da
poesia de Gonzaga têm sido frequentemente vistos como uma antecipação do Romantismo. Mas há muito
mais diferenças do que semelhanças prefiguradoras; as caracterizações individuais dão-se dentro de limites e
valores da tradição clássica – como o estoicismo31, por exemplo – e nada pressupõem daquela hegemonia da
interioridade descoberta pelos românticos.

Cartas chilenas
─ Compostas em decassílabos brancos (sem rimas). Circularam por Vila Rica entre 1788 e 1789.
─ Uniu seu talento à indignação em relação aos atos do governador Cunha Meneses (que decretava medidas
ilegais, vendia cargos, desrespeitava sistematicamente as decisões da justiça sobre concessões de negócios e
questões administrativas, militarizou o governo e usou a força militar para a cobrança da taxa dos dízimos –
ano 1873) e escreveu um poema satírico, as Cartas chilenas, e, sem correr riscos desnecessários, fez com que
o poema ―anônimo‖ circulasse clandestinamente. Atribuiu o poema a um autor chileno também escondido
sob o pseudônimo de Critilo. Pode-se imaginar o escândalo provocado pelas Cartas, que, tudo indica,
começaram a ser divulgadas depois da notícia de substituição de Cunha Menezes – o ―Fanfarrão Minésio‖ do
poema –, mas com este ainda no poder. (Duda Machado)

31
1. Filos. Designação comum às doutrinas dos filósofos gregos Zenão de Cício (340-264) e seus seguidores Cleanto
(séc. III a.C.), Crisipo (280-208) e os romanos Epicteto (?-125) e Marco Aurélio (121-180), caracterizadas sobretudo
pela consideração do problema moral, constituindo a ataraxia o ideal do sábio.
2. Austeridade de caráter; rigidez moral.
3. Impassibilidade em face da dor ou do infortúnio.
39
─ Nada há nas Cartas que corresponda a um sentimento de nacionalismo e rebeldia contra o domínio português
ou contra o sistema de poder. Sua crítica dirige-se à violação da justiça constituída, ao abuso do poder, à
corrupção palaciana e aos desmandos apoiados na militarização do governo. (Duda Machado)

ALVARENGA PEIXOTO (1744/1792)


MANUEL INÁCIO DA SILVA ALVARENGA (1749/1814)
JOSÉ BASÍLIO DA GAMA (1741/1795)
─ Autor do poema épico O Uraguai.
JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO (1722/1784)
─ Ficou 20 anos fugido na Itália. Poema épico: Caramuru.

► No sentido de enriquecer o conhecimento sobre os poetas mineiros, reproduzimos o ensaio de


José Guilherme Merquior32 sobre a Escola Mineira:
Escola Mineira é o nome dado por Sílvio Romero aos representantes principais do nosso primeiro período
neoclássico, geralmente nascidos em Minas, entre as cercanias de 1730 e as de 1750, e cujas obras foram divulgadas,
basicamente, entre 1770 e 1800: Cláudio Manuel da Costa, Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto, Santa Rita Durão,
Gonzaga e Silva Alvarenga, para citá-los por ordem de aparecimento de suas obras mais importantes. Durão, o mais velho
deles, deixou o Brasil menino; Basílio e Silva Alvarenga passaram quase todos os seus anos adultos e criadores fora de
Minas; o trio restante, formado por Cláudio, Alvarenga Peixoto e Gonzaga, só teve em Vila Rica um curto convívio
(1782-89), cortado que foi pela repressão à conjuração de Tiradentes. Em consequência, a escola, como agrupamento,
praticamente inexistiu. O que une esses poetas é mesmo o espírito da Arcádia, o tema bucólico ou a épica primitivista
(Basílio, Durão). Sobretudo, os melhores dentre eles souberam extrair real substância poética da situação arcádica, talvez
porque a dualidade íntima do arcadismo - celebração da vida simples por uma consciência ciosa de suas virtudes
civilizadas - tenha constituído, para "esses filhos de um país ainda selvagem", uma inspiração genuína, mais autêntica do
que a simples adoção de uma "pose" literária.
O nosso primeiro árcade foi CLÁUDIO MANUEL DA COSTA (1729-89). Filho de português, minerador na
diocese de Mariana, neto, pelo lado materno, de família paulista, Cláudio teve a educação típica do Brasil setecentista:
estudos secundários com os jesuítas (no Rio), e depois, Coimbra. Aos vinte e cinco anos se fixa em Vila Rica, onde
passou o resto da vida como advogado e minerador, chegando a fazer fortuna e a exercer, na casa dos trinta, o elevado
cargo de secretário do governo da capitania. Quando envolvido na Inconfidência, na qual não parece ter tido nenhuma
participação além de vagas simpatias, era um notável da província, um solteirão dono de três fazendas e prestigiosas
relações. Encarcerado, amedrontado, denunciou amigos durante o seu interrogatório, caindo a seguir numa crise moral
que o levaria a suicidar-se na própria cela. A publicação, em 1768, em Coimbra, das Obras poéticas de Cláudio Manuel
(na Arcádia, Glauceste Satúmio) inaugura o arcadismo brasileiro. Embebidos num nativismo espontâneo, os versos de
Glauceste adicionam à invocação do Mondego coimbrão a lembrança regionalista do mineiríssimo Ribeirão do Carmo;
em nobre emulação, o poeta aspira a conquistar para a terra natal os símbolos dignificantes do Parnaso:

Cresçam do pátrio rio à margem fria


A imarcescível hera, o verde louro!/

Essa proeza, Cláudio, muito mais artista que os árcades portugueses seus contemporâneos, a realizou num
admirável diálogo com a tradição lírica do idioma. Como os outros neoclássicos, ele procurou reviver a pureza da poesia
renascentista, dando as costas às gratuitas acrobacias de palavra e pensamento em que degenerara o cultismo. Não
obstante, sua atitude em relação ao legado barroco não foi de repulsa, e sim de criteriosa seletividade; abandonado o
cultismo teatral, Cláudio guardou a técnica barroca no que ela possuía de plena funcionalidade estética. O pastor Fido, por
exemplo, tomado à pastoral italiana, ressurge, em seus sonetos, em postura antitética e paradoxal, ao gosto do melhor
seiscentismo:

Aqui, onde não geme, nem murmura


Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sobre o tosco de' um penedo
Chorava Fido a sua desventura.

As lágrimas a penha enternecida


Um rio fecundou, donde manava
D'ânsia mortal a cópia derretida:

A natureza em ambos se mudava;

32
MERQIOR, José Guilherme (Opus cit.), p.28-36.
40
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.

Vê-se como o conceito, a imagem rebuscada do barroco, em vez de espocar espalhafatosamente, amplia a
ressonância lírica do tema do pranto, musicalmente introduzido pela consumada repartição, de timbres e consonâncias do
quarteto: a variação das vogais tônicas nos quatro versos (i-õ-ê-u; é-ã-u-ê; a-ô-ô-ê; a-i-u-u), os efeitos de aliteração
apoiados nas consoantes que sublinhamos. Submetendo esses recursos linguísticos a um novo regime expressivo,
indiferente ao verso de ostentação, Cláudio soube preservar o poder da metáfora desenvolvida:

A cada instante, amor, a cada instante


No duvidoso mar de meu cuidado
Sinto de novo um mal, e desmaiado
Entrego aos' ventos a esperança errante.

Seu amor ao soneto é, aliás, um dos índices dessa intimidade com a herança poética enriquecida por renascentistas e
barrocos. No campo fechado dos quatorze versos, o árcade mineiro deu asas à sua "imaginação da pedra" (A. Cândido):
utilizou a rocha como nota peculiar à paisagem nativa (e tanto mais original quanto geralmente ausente do cenário do
bucolismo europeu), e, ao mesmo tempo, a investiu de função poética, na sua qualidade de elemento duro, negação da
ternura da voz lírica:

Destes penhascos fez a natureza


O berço em que nasci: oh quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

No soneto brasileiro, Cláudio não é um continuador das fecundas incursões realistas que encontramos em
Gregório de Matos; a esse rumo, que o decoro neoclássico lhe proibia, ele prefere, com tanto ou maior êxito, o do soneto
psicológico, na boa linha camoniana, às vezes, repassado de um belo frenesi passional, desfechado num metro de ritmos
obsessivos:

Nise? Nise? onde estas? Aonde espera


Achar-te uma alma, que por ti suspira;
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar-te desespera!
Ah se ao menos teu no1TJe ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.
Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai-me a sua formosura.
Nem ao menos o eco me responde!
Ah como é certa a minha desventura!
Nise? Nise? onde estas? aonde? aonde?

Outras vezes mais carregado de conotações secretas e sinistras, mais "noturno", num registro emotivo que supera
a psicologia superficial do poema neoclássico, e só confere maior intensidade à flama do pastor enamorado:

Aquela cinta azul, que o Céu estende


À nossa mão esquerda; aquele grito,
Com que está toda a noite o corvo aflito
Dizendo um não sei quê, que não se entende:
Levantar-me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
A tempo que o voraz lobo maldito
A minha ovelha mais mimosa ofende;
Encontrar a dormir tão preguiçoso'
Melampo, o meu fiel, que na manada
Sempre despeito' está, sempre ansioso;
Ah! queira. Deus que minta a sorte irada:
Mas de tão triste agouro cuidadoso
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
41

Cláudio não foi só um grande sonetista. Praticou eficazmente alguns outros gêneros líricos: a écloga, a epístola, o
epicédio. A poesia sentenciosa de pelo menos um dos seus epicédios em dísticos rimados - aquele dedicado a chorar a
morte do Vice-Rei Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadela, administrador "esclarecido" e amigo do Brasil, não
carece de nobre eloquência. A dicção enérgica é um veículo adequado para o altivo ideal iluminista do amor à justiça em
luta com o conformismo cortesão.

A idéia mais feliz de ser aceito


À vontade de um Rei é ter o peito
Sempre animado de um constante impulso
De amar o que for justo: este acredita
Ao servo, que obedece; felicita
Ao Rei, que manda; este assegura a fama;
Este extingue a calúnia, e apaga a chama
De um ânimo perverso, que atropela
O precioso ardor de uma alma bela.

O verso moral deste quilate, resgatando a poesia didática, aproxima alguns momentos do nosso neoclassicismo
dos couplets ágeis e concisos de Dryden, Pope ou Voltaire. Mas no poema épico de Cláudio, o Vila Rica, ditado pelo
desejo de rivalizar com o Uraguai de Basílio da Gama, esse mesmo metro se toma irremediavelmente prosaico. Foi um
erro, entretanto, mais do que desculpável: pois o poeta de meia-idade que o compôs, fora do seu leito natural de
expressão, já nos havia dado, com seus peregrinos sonetos, à primeira realização unitária e consciente da literatura
nacional, e um dos mais altos cimos do lirismo em língua portuguesa.
A contribuição de Inácio José de Alvarenga PEIXOTO (1744-93) é muito mais modesta. Carioca de
nascimento, diplomado em Coimbra, foi juiz em Portugal e ouvidor em São João del Rei, largando, porém, essas funções
para devotar-se à lavoura e à mineração no vale do Sapucaí, no sul de Minas, onde se instalou com sua mulher Bárbara
Heliodora da Silveira, em cujo louvor compôs, na prisão em que o malogro da Inconfidência o jogara, um soneto célebre.
Alvarenga Peixoto foi bacharel de muitas ideias, um homem de negócios imaginoso mas sem sorte, e o único árcade
realmente comprometido com o movimento de Tiradentes (o que, aliás, não o impediu de, como Cláudio, proceder mal
para com os companheiros durante o inquérito). Morreu, em seu desterro em Angola, sem deixar nenhum volume dos
quase trinta poemas que nos chegaram dele, praticamente todos são panegíricos, composições de elogio a figurões e
amigos. Nessas peças, em que o poeta se vale de comemorações ocasionais para versar, meio de contrabando, a crítica
moral e social, Alvarenga se mostra nativista convicto, além de adepto avançado do despotismo esclarecido ("Ode a
Pombal"), prestes a adotar o progressismo liberal que proliferaria entre vários neoclássicos do segundo período (1800-
1836).
Frente a Cláudio e Durão, nascidos na terceira década, Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto, Gonzaga e Silva
Alvarenga formam uma quase geração mais moça, cuja figura central é, sem dúvida, o portuense-mineiro TOMÁS
ANTÔNIO GONZAGA (1744-1810).
Gonzaga, filho do ouvidor-geral de Pernambuco, veio para o Brasil bem pequeno, estudando com os jesuítas na
Bahia até o fechamento de seu colégio, em consequência da expulsão da Ordem, determinada por Pombal. Formado em
Coimbra, exerceu a magistratura no Reino e, a partir de 1782, o cargo de ouvidor de Vila Rica, onde se tomaria amigo e
discípulo de Cláudio, voltaria a conviver com Alvarenga Peixoto, seu primo e contemporâneo de universidade, e se
enamoraria, quarentão de uma rica adolescente, Joaquina Dorotéia de Seixas - a Marília do árcade Dirceu. Gonzaga
sofreu a oposição da família de Dorotéia, que certamente divergia dos valores existenciais do magistrado:

Não foram, Vila Rica, os meus projetos


meter em férreo cofre c6pia de ouro,
que farte aos filhos e que chegue aos netos

E teve sua ouvidoria agitada por conflitos com o Governador Luís da Cunha Meneses, alvo de sua sátira nas
Cartas Chilenas (vide mais abaixo). Implicado na Inconfidência, embora provavelmente sem ter conspirado para valer,
acabou degredado em Moçambique, onde, casado com uma próspera viúva, gozou de vasto prestígio até a morte.
Em confronto com os poetas de transição como Cláudio, a geração de 1740 se caracteriza, por sua formação já
completamente neoclássica. A educação literária de Gonzaga atesta a influência, da Arcádia Lusitana e de Cláudio.
Todavia, sua imagem mais popular antes o dá como pré-romântico; a Marília de Dirceu (em três partes, publicadas de
1792 a 1812) virou um dos best-sellers do lirismo em português, tido pelo romantismo como protótipo da poesia
sentimental e do mito do amante infeliz e desgraçado. A circunstância de essas liras resumirem a produção metrificada do
autor (que terá inclusive adaptado poemas anteriores. Submetendo-os ao signo de Marília) confirma essa aparência. Vista
de perto, contudo, a lírica amorosa de Dirceu se mostra bem diversa do passionalismo romântico.
42
Principalmente na primeira parte do livro, abundam as convenções arcádicas. No verso anacreôntico, de medida curta,
Gonzaga entoa a graciosidade anedótica do rococó:

Junto a uma clara fonte


a mãe de Amor se sentou;
encostou na mão o rosto,
no leve sono pegou.
Cupido, que a' viu de longe,
contente ao lugar correu:
cuidando que era Marilia
na face um beijo lhe deu.

Marília é, aí, uma pastora impessoal, uma figurinha cujo encanto não nos deve fazer esquecer que o poeta a pinta com
cores - superiormente aplicadas - da paleta habitual do arcadismo ligeiro:

Marília, teus olhos


são réus e culpados
que sofra e que beije
os ferros pesados
de injusto senhor.
Marília, escuta
um triste pastor.
Mal vi o teu rosto,
o sangue gelou-se,
a língua prendeu-se,
tremi e mudou-se
das faces a cor.
Marília, escuta
um triste pastor

Tanto assim que, não poucas vezes, as odes se contentam em justapor um breve final sobre a amada a várias
estrofes puramente sentenciosas, didático bem neoclássico onde Marília prima pela ausência, a não ser na condição de
abstrato vocativo. É o caso da bela lira "Alexandre, Marília, qual o rio...‖, com seu preceito anti-heroico advogando
aquela reta e pacata existência inaventurosa que o iluminismo, ideologia burguesa, não se cansou de abençoar:

O ser herói, Marília, não consiste


em queimar os impérios: move a guerra,
espalha o sangue humano,
e despovoa a terra .
também o mau tirano.
Consiste o ser herói em viver justo:
e tanto pode ser herói o pobre:
como o maior Augusto.

O apego à felicidade do "lar, doce lar" - às beatitudes burguesas - conduzirá a lírica erótica de Gonzaga a um
realismo mitigado, minando de forma bastante reveladora o código da idealização petrarquista da mulher eleita. Como
petrarquista, Dirceu comete muitas inconveniências. Menciona a Marília os seus ―casos‖ passados; dá sinais de
atrevimentos lascivos; faz alusões demasiadas veristas à condição do amante:

Não vês aquele velho respeitável,


que, à muleta encostado,
apenas mal se move e mal se arrasta?
Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo,
o tempo arrebatado,
que o mesmo bronze gasta!
Enrugaram-se as faces e perderam
seus olhos a viveza;
voltou-se o seu cabelo em branca neve;
já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo,
43
nem tem uma beleza
das belezas que teve.
Assim também serei, minha Marilia,
daqui a poucos anos,
que o ímpio tempo para todos corre:
os dentes cairão e os meus cabelos.
Ah! sentirei os danos,
que evita só quem morre.

E se compraz sistematicamente com a sua pessoa e dignidade, em algumas de suas linhas mais felizes:

Eu, Marilia, não sou nenhum vaqueiro,


que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro
dos frios gelos e das sóis queimado.

Em conjunto, essas liberdades com o objeto de sua paixão equivalem a uma dessacralização do preito amoroso do
ponto de vista do petrarquismo ortodoxo, constituem traços iconoc1ásticos, que fazem de Marília uma Beatriz menos
excelsa e mais burguesa, menos cantada em função da dor do amante (como na maioria dos poemas na tradição do amor
cortês) do que evocada na qualidade de pivô das serenas alegrias do casamento e do lar. A motivação desse
aburguesamento ao petrarquismo é, sem dúvida, a tendência de
Gonzaga a concentrar-se no eu, em detrimento (ressalvadas as aparências pelo louvor ritual da bela) da sua musa
titular. Dois terços das liras da segunda parte da Marília têm por centro temático o próprio Dirceu. Graças a esse
deslocamento do enfoque poético, o verso gonzaguiano se abriu à "filmagem" da paisagem cotidiana da sociedade
mineira. A suave e flexível sucessão dos decassílabos e do metro curto, em parte rimados, sintetiza admiravelmente as
atividades essenciais do ciclo do ouro, que o juiz contrasta benevolamente com o seu próprio trabalho de gabinete:

Tu não verás, Marilia, cem cativos


Tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
ou da minada serra.

Não verás separar ao hábil negro


do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de oiro
no fundo da bateia.

Não verás derrubar os virgens matos,


queimar as capoeiras inda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
lançar os grãos nas covas.

Não verás enrolar negros pacotes


das secas folhas do cheiroso fumo;
nem espremer entre as dentadas rodas
da doce cana o sumo.

Verás em cima da espaçosa mesa


altos volumes de enredados feitos;
ver-me-ás folhear os grandes livros,
e decidir os pleitos.

Nem sempre, é sabido, a poesia de Tomás Antônio deflui desse ânimo sossegado, convertida em anelo iluminista
de felicidade caseira; as liras da segunda parte se celebrizam justamente pela pungência do amor contrariado pelo destino.
O Gonzaga prisioneiro é a primeira voz "romântica" da nossa literatura, o seu primeiro acento individualizado de
desgraça e patético.

Quando em meu mal pondero,


então mais vivamente te diviso:
vejo o teu rosto e escuto
a tua voz e riso.
Movo ligeiro para o vulto os passos:
eu beijo a tíbia luz em vez de face,
e aperto sobre o peito em vão os braços.
44
Ainda aí, porém, o pathos romântico não deve ser confundido com romantismo no estilo; basta atentar no
vocabulário seleto, no controle clássico da imagem e do ritmo para reconhecer que a pintura gonzaguiana das emoções
mais fortes não visa à desordem da confissão romântica, rendida ao atropelo dos sentimentos e sensações. Por isso,
inclusive, ele mantêm, em pleno élan emocional, aquele poder de simbolização lúcida, mais tarde minado pelo
espontaneísmo do versejar romântico. Como na organização simbólica desse belo assomo de indignação:

Esprema a vil calúnia, muito embora,


entre as mãos denegridas e insolentes,
os venenos das plantas
e das bravas serpentes;
Chovam raios e raios, no meu rosto
não hás de ver, Marília, o medo escrito,
o medo perturbado,
que infunde o vil delito.

Simplificando a linguagem lírica de Cláudio, mas evitando igualmente a diluição dos valores poéticos no
sentimentalismo, as liras mais densas de Dirceu ampliaram e modernizaram consideravelmente o registro poético
brasileiro, já consciente de sua personalidade; essa dupla distância faz de Gonzaga a figura central do nosso arcadismo.
Manuel Inácio da SILVA ALVARENGA (1749-1814) já se situa mais perto do estilo oitocentista. Mulato, filho de um
pobre músico de Vila Rica, Silva Alvarenga conseguiu ainda assim estudar no Rio e formar-se em Coimbra. No Reino,
tornou-se amigo de Basílio da Gama, que o introduziu nos meios partidários das reformas de Pombal. Voltando ao Brasil,
não demorou a ser nomeado lente de retórica e poética na capital da colônia, onde, paralelamente ao magistério e à
advocacia, animou uma "sociedade literária" em sentido bem progressista. Suas ideias avançadas o fizeram vítima da
devassa determinada pelo vice-rei, Conde de Resende, em 1794. Indultado três anos mais tarde, editou logo depois a
Glaura (1799).
Silva Alvarenga (na Arcádia, Alcindo Palmireno) praticou a princípio muita poesia didática, de acordo com o
espírito neoclássico; inclusive, satírica, conforme veremos. A reforma pombalina da universidade lhe mereceu uma ode
característica. No Brasil, contudo, dedicou-se à musa amorosa. Extremando a graça melódica dos versos de Basílio da
Gama, cuja obra o impressionou bastante, Alvarenga fez verdadeiras profissões de fé pré-românticas, instalando na nossa
lírica o elogio da sentimentalidade inefável.

Quem estuda o que diz, na pena não se iguala


Ao que de mágoa e dor geme, suspira e cala.

Afirma ele numa epístola a Termindo Sipilio, que outro não era senão Basílio. A Glaura é uma coleção de cerca
de sessenta rondós e outros tantos madrigais. Os rondós têm uma forma métrica e estrófica fixa, calcada em Metastásio. A
musicalidade, aliás, prevalece nitidamente nesses versos curtos, de ritmo idêntico; destinados a suscitar um deleite
auditivo capaz de negligenciar o conteúdo intelectual:

Glaura, as ninfas te chamaram


E buscaram doce abrigo:
Vem comigo, e nesta gruta
Branda escuta o meu amor.

A rima interna, reforçada nos estribilhos, sublinha o valor encantatório do ritmo, sempre veículo de imagens
sensuais, de paisagens lânguidas:

Ferve a areia desta praia,


Arde o musgo no rochedo,
Esmorece o arvoredo,
E desmaia a tenra flor.
Todo o campo se desgosta,
Tudo ... ah! tudo a calma sente:
Só a gélida serpente
Dorme exposta ao vivo ardor.

Em seu todo, a música dos rondós, conquanto semeada de pérolas líricas, pende para a monotonia, resgatável só
pelo canto. Sem serem menos cantabili, os madrigais em onze versos oferecem maior variedade rítmica e imagística:
45
No ramo da mangueira venturosa
Triste emblema de amor gravei um dia,
E às Dríades saudoso oferecia
Os brandos lírios e a purpúrea rosa.

Mas mesmo nesse contrapeso dado ao melodismo hipnótico dos seus rondós, Alvarenga perpetra um certo
emagrecimento da substância espiritual e humana da poesia, nisso mesmo prenunciando os românticos. Gonzaga
aburguesara o petrarquismo; Alvarenga desintelectualizou o lirismo amoroso. Com a Glaura se completa a curva que vai
do soneto psicológico e do arcadismo tardo-barroco de Cláudio à melopeia da canção romântica.

Coletânea de poemas árcades

1. Cláudio Manuel da Costa

Soneto II

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,


Em meus versos teu nome celebrado,
Por que vejas um hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,


Fresco assento de um álamo copado;
Não vês Ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do clamoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias


Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o Planeta louro,


Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.

Soneto XCVIII

Destes penhascos fez a natureza


O berço, em que nasci: oh quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os Tigres, por empresa


Tomou logo render-me; ele declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,


A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,


Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.
46
Soneto XXII

Neste álamo sombrio, aonde a escura


Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;

Aqui, onde não geme nem murmura


Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sobre o tosco de um penedo,
Chorava Fido a sua desventura.

Às lágrimas a penha enternecida


Um rio fecundou, donde manava
D'ânsia mortal a cópia derretida.

A natureza em ambos se mudava;


Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.

2. Tomás Antônio Gonzaga

MARÍLIA DE DIRCEU
Lira I, parte 1 (fragmento)

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,


Que viva de guardar alheio gado,
De tosco trato, de expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que visto.

Graças, Marília bela,


Graças à minha Estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte,


Dos anos inda não está cortado;
Os Pastores, que habitam este monte,
Respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste
Nem canto letra que não seja minha.

Graças, Marília bela,


Graças à minha Estrela! ...

MARÍLIA DE DIRCEU
Lira XII, parte 2 (fragmento)

... Quando levares, Marília,


Teu ledo rebanho ao prado,
Tu dirás: Aqui trazia
Dirceu também o seu gado.
Verás os sítios ditosos
Onde, Marília, te dava
Doces beijos amorosos
Nos dedos da branca mão.

Mandarás aos surdos Deuses


Novos suspiros em vão.
47
Quando à janela saíres,
Sem quereres, descuidada,
Tu verás, Marília, a minha
E minha pobre morada.
Tu dirás então contigo:
Ali Dirceu esperava
Para me levar consigo;
E ali sofreu a prisão.

Mandarás aos surdos Deuses


Novos suspiros em vão. ...

MARÍLIA DE DIRCEU
Lira XV, parte 2 (fragmento)

Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,


Fui honrado Pastor da tua Aldeia;
Vestia finas lãs e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado,
Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.

Para ter que te dar, é que eu queria


De mor rebanho ainda ser o dono;
Prezava o teu semblante, os teus cabelos
Ainda muito mais que um grande Trono.
Agora que te oferte já não vejo,
Além de um puro amor, de um são desejo. ...

3. Alvarenga Peixoto

A.D Bárbara Heliodora

Bárbara bela, do norte estrela,


Que o meu destino sabes guiar,
De ti ausente triste somente
As horas passo a suspirar.

Por entre as penhas de incultas brenhas


Cansa-me a vista de te buscar;
Porém não vejo mais que o desejo,
Sem esperança de te encontrar.

Eu bem queria a noite e o dia


Sempre contigo poder passar;
Mas orgulhosa sorte invejosa,
Desta fortuna me quer privar.

Tu, entre os braços, ternos abraços


Da filha amada podes gozar;
Priva-me a estrela de ti e dela,
Busca dous modos de me matar!

(Poema dedicado à sua esposa, remetido do cárcere da Ilha das Cobras).


48
III. A lírica romântica (século XIX)

―Casar assim o pensamento com o sentimento, a idéia com a paixão, colorir tudo isto com a imaginação, fundir
tudo isto com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia – A Poesia grande e santa – a Poesia como
eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem poder traduzir‖
Gonçalves Dias

1. Etimologia do termo romantismo33


O adjetivo romântico deriva do inglês romantic; esse, por sua vez, nasce do substantivo romaunt, de origem
francesa (romanz ou romant), que designa os romances medievais de aventuras. No século XVII é usada a palavra
Romantismo e seus derivados, na França e na Inglaterra, para designar certo tipo de criação poética ligado à tradição
medieval de Romances, narrativas de heroísmo, aventuras e amor, em verso ou prosa, cuja composição, temas e estrutura
– particularmente evidenciadas em Ariosto, Tasso e Spencer – eram sentidas em oposição aos padrões e regras da poética
clássica.

Um esclarecimento

Cumpre, desde logo, estabelecer uma diferença entre estado de alma romântico, que pode existir em qualquer
época, e o movimento literário chamado Romantismo, estilo de época, que configura um estilo de vida e de arte que
dominou a civilização ocidental durante o período compreendido entre a segunda metade do século XVII e a primeira
metade do século XIX.

Momento Histórico:

Na Europa:

 Revolução Francesa (1789) e Revolução Industrial;


 Primeiro estilo de época em que predominam os padrões da burguesia em ascensão. Corresponde, assim, ao
abandono dos padrões aristocrático da arte clássica, (Arcadismo) substituídos pelos ideais de simplicidade,
sinceridade e individualidade da arte burguesa;
 Caracterizou-se como uma visão de mundo contrária ao racionalismo e buscou um nacionalismo que viria a
consolidar os estados nacionais na Europa. Visão de mundo centrada no indivíduo;
 Os autores românticos voltaram-se cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano, amores
trágicos, ideais utópicos e desejos de escapismo;
 Novalis (1772-1801), o grande poeta do romantismo alemão, queria que a poesia fosse uma "arma de
defesa contra o cotidiano"; "Tudo é romântico desde que transportado para longe."
 O mal du siècle: denominador comum da literatura alemã, inglesa e francesa entre 1795 e 1815  Os
românticos são, antes de tudo, intérpretes do mal-estar que sucedeu ao "desencantamento do mundo"
— à despoeticização da vida, gerada pelo refluxo da experiência religiosa, dos ideais heroicos e do
espírito de aventura: os poetas Wordsworth e Coleridge e Byron, na Inglaterra; Goethe e Schiller,
irmãos Schlegel, Novalis, na Alemanha; Chateaubriand, Victor Hugo, Musset, Lamartine, na França.

No Brasil:

 Foi o estilo que prevaleceu, nas letras nacionais, do final da Regência até os primeiros anos subsequentes
à Guerra do Paraguai; logo, a configuração estilística que cobre o início e o apogeu do Segundo
Reinado, período em que a velha sociedade senhorial conhece o seu último grande surto de
desenvolvimento.
 Além de ser uma reação à tradição clássica, assume, em nossa literatura, a conotação de movimento
anticolionialista e antilusitanista, ou seja, de rejeição à literatura produzida na época colonial, em virtude,
do apego dessa produção aos modelos culturais portugueses.
 Poética do nacionalismo: indianismo, regionalismo, pesquisa histórica, linguística e folclórica, além de
crítica aos problemas nacionais ─ posturas comprometidas com o projeto de construção de uma identidade
brasileira.
 Marco inicial: Suspiros poéticos e saudade (1836), de Gonçalves de Magalhães: novidades teóricas do
prólogo em que anuncia a revolução literária romântica.

33
PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura. Rio de Janeiro: Ediex, 1967, p. 129.
49
Características gerais da linguagem romântica

 Maior liberdade formal: o Arcadismo havia sido uma arte revolucionária, do ponto de vista ideológico,
porque expressava os interesses da burguesia, classe social que iria promover a Revolução Francesa.
Porém, o mesmo não se pode dizer quanto ao aspecto estético, uma vez que o Arcadismo se limitou a
eliminar os exageros do Barroco e a retomar os modelos do classicismo renascentista. Coube ao
Romantismo criar uma linguagem nova, mais simples e direta, identificada com os padrões de vida da
classe média e da burguesia. O vocabulário e a sintaxe são mais simples e há um gosto pela irregularidade
estrófica.

 Imaginação criadora: os escritores românticos revelam no artista uma capacidade de criar mundos
imaginários e acreditar na realidade dos mesmos. Do choque do seu Eu com o mundo, o escritor romântico
se evade na aspiração por este outro mundo distinto; no passado ou no futuro, onde ele não encontra as
dificuldades que enfrenta na realidade imediata. Leia esses versos de ―A noite‖, de Gonçalves Dias:

Eu amo a noite taciturna e queda!


Amo a doce mudez que ela derrama,
E a fresca aragem pelas densas folhas
Do Bosque murmurando

Então, malgrado o véu que envolve a terra,


A vista, do que vela, enxerga mundos,
E apesar do silêncio, o ouvido escuta
Notas de etéreas harpas

 Subjetivismo: o artista romântico trata dos assuntos de uma forma pessoal, de acordo com o
que sente. Dizemos que, nesse caso, ele é subjetivo, porque retrata a realidade parcialmente. No
poema de Gonçalves Dias, ―Canção do exílio‖, por exemplo, por melhor que fosse o Brasil do século
XIX, certamente nem tudo era perfeito. O poeta não fala dos problemas políticos vividos pelo país
naquele momento, poucos anos depois da Independência; não fala da escravidão nem de outros
problemas sociais. Portanto, faz um recorte subjetivo e idealizado da realidade brasileira.

 Egocentrismo: a maior parte dos poetas românticos é voltada predominantemente para o próprio eu,
numa atitude tipicamente narcisista. Estes versos de Álvares de Azevedo ilustram essa atitude:

Era uma noite – eu dormia


E nos meus sonhos revia
As ilusões que sonhei!
E no meu lado senti...
Meu Deus por que não morri?
Por que no sono acordei?

 Evasão (escapismo, solidão): fuga para um mundo idealizado à base do sonho, das emoções pessoais. A
solução para o choque entre o mundo sonhado e o mundo real é evadir-se para o passado, para a solidão,
para o desespero e para a evasão das evasões: a morte, um dos temas preferidos dos românticos. Leia estes
versos de Junqueira Freire:

Não achei na terra amores


Que merecessem os meus.
Não tenho um ente no mundo
A quem diga o meu adeus
(...)
Por isso, ó morte, eu amo-te e não temo:
Por isso, ó morte, eu quero-te comigo.
Leva-me à região da paz horrenda,
Leva-me ao nada, leva-me contigo.
50
 Sentimentalismo: a relação entre o artista romântico e o mundo é sempre mediada pela emoção.
Diante de um tema amoroso, político, social ou indianista, o tratamento literário revela grande
envolvimento emocional do artista em relação ao assunto tratado. Certos sentimentos, como
saudade, tristeza e desilusão, são constantes nos textos românticos. Perceba com que
sentimentalismo Casimiro de Abreu trata de seu exílio:

Meu Deus! eu chorei tanto no exílio!


Tanta dor me cortou a voz sentida,
Que agora neste gozo de proscrito
Chora minh'alma e me sucumbe a vida!

 Idealização (da pátria, do passado, da mulher e do amor) : a extrema valorização da


subjetividade, como fez o Romantismo, leva muitas vezes à deformação. O artista
romântico, motivado pela fantasia e pela imaginação, tende a idealizar vários temas, isto é, trata-os
não da maneira como são, mas como deveriam ser segundo sua ótica pessoal. Assim, a pátria é
sempre perfeita; a mulher é vista como virgem delicada, frágil, submissa e inatingível; o amor, em
grande parte, é espiritual e inalcançável; o índio é tratado como herói nacional, cheio de boas
virtudes, e assim por diante. Para compor essa idealização, a linguagem faz uso de descrições
minuciosas, com constantes comparações e ampla metaforização. Observe, nestes versos de Álvares de
Azevedo, um exemplo da idealização da mulher:

O´ minha amante, minha doce virgem,


Eu não te profanei, e dormes pura:
No sono do mistério, qual na vida,
Podes sonhar apenas na ventura.

 Culto da natureza: na sua evasão, o poeta romântico encontra na natureza o lugar de tranquilidade, onde o
seu espírito pode encontrar a paz. A natureza é capaz de inspirá-lo, de cuidar dele. O mito do ―bom
selvagem‖ de Rousseau é uma das marcas do espírito romântico: o homem em estado de natureza, que
ainda não foi contaminado pela civilização. Cf. indianismo.

 Medievalismo: verifica-se o interesse dos românticos pelas origens de seu próprio país, de seu povo e de
sua língua. Na Europa, há uma busca do mundo medieval e de seus valores; no Brasil, o índio cumpre o
papel de nosso passado medieval vivo.

 Indianismo: o interesse pelo índio e sua idealização na literatura brasileira estão relacionados com o
projeto nacionalista do Romantismo. O índio, contrapondo-se ao português colonizador e à sua
cultura, representa o elemento nativo, as próprias origens do país. Ao mesmo tempo, encarna o
ideal do "bom selvagem" de Rousseau, que exerceu grande influência sobre o Romantismo brasileiro. O
indianismo teve sua maior expressão em nossa literatura entre os primeiros românticos, como
Gonçalves Dias e José de Alencar:

No meio das tabas de amenos verdores,


Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão

( I - Juca-Pirama, Gonçalves Dias)

 Religiosidade: mais comum entre os primeiros românticos, a tendência espiritualizante do Romantismo,


embasada no cristianismo, significa uma nítida reação ao racionalismo materialista do século
anterior. A vida espiritual é enfocada como ponto de apoio ou válvula de escape diante das frustrações
do mundo real. Por vezes os temas da vida clerical e do celibato são abordados pelo Romantismo,
que procura refletir sobre até que ponto as leis da Igreja (portanto dos homens) podem se contrapor
às leis do coração.
51
 Byronismo: essa atitude, relacionada ao poeta inglês Lord Byron, foi amplamente
cultivada entre os poetas românticos brasileiros da segunda geração, isto é, entre os anos 50 e 60 do
século passado. Traduz-se num estilo de vida e numa forma particular de ver o mundo; no caso, um
estilo de vida boêmia, noturna, voltada para o vício, para os prazeres da bebida, do fumo e do sexo.
Sua forma de ver o mundo é egocêntrica, narcisista, pessimista, angustiada e por vezes satânica.
Observe algumas dessas características nestes versos, de Álvares de Azevedo.

Oh! não maldigam o mancebo exausto


Que no vício embalou, a rir, os sonhos,
Que lhe manchou as perfumadas tranças
Nos travesseiros da mulher sem brio!

 Condoreirismo/reformismo: trata-se de uma corrente de poesia político-social, que ganhou


repercussão entre os poetas da terceira e última geração romântica no Brasil (anos 70 do
século passado). Influenciados pelo escritor francês Victor Hugo, os poetas condoreiros
defendem a justiça soci al e a liber dade. Na Europa, defendem a classe operár ia da
exploração; no Brasil, luta-se pelo fim da escravidão e pela república. Castro Alves, o maior
poeta social do Romantismo brasileiro, define nestes versos a missão do poeta:

Oh! bendito o que semeia


Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.

As gerações do Romantismo

 Primeira Geração: Indianista ou Nacionalista

• Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães

• CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL
O Romantismo brasileiro nasce das possibilidades que surgem com a Independência política e suas
consequências socioculturais: o novo público leitor, as instituições universitárias e, acima de tudo, o
nacionalismo ufanista que varre o país, após 1822, e do qual os escritores são os principais intérpretes.
Contribuir para a grandeza da nação através de uma literatura que fosse o espelho do novo mundo e de sua
paisagem física e humana, eis o projeto ideológico da primeira geração romântica. Há um sentimento de
missão: revelar todo o Brasil, criando uma literatura autônoma que nos expressasse.
O Romantismo se opunha à arte clássica, e o Classicismo aqui significava dominação portuguesa. O
Romantismo voltava-se para a natureza, para o exótico; e aqui havia uma natureza exuberante. Tudo se
ajustando para o desenvolvimento de uma literatura nacionalista.

 Segunda Geração: Ultra-Romantismo / Mal do século/Geração Byroniana

• Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Junqueira Freire.

Resumo das características desta geração:

• Insatisfação com a realidade: materialismo capitalista e insensibilidade burguesa; processo de reificação;


• Fuga da realidade/ Evasão/ Escapismo: os autores não encaravam a realidade, preferiam fugir dela
através do tempo, resgatando o passado, épocas remotas, medievalismo, ou a infância; através do espaço,
criando lugares inexistentes (exotismo, utopias); fugiam pelos sonhos ou devaneios, refugiando-se na
literatura, e, às vezes, de forma radical, na própria morte;
• Morbidez: temas que envolviam uma fixação por morte;
• Pessimismo exagerado;
• Visão espiritualizada da mulher, endeusada: a mulher era comparada a seres como anjos, ninfas, santas,
de maneira abstrata;
• Amor idealizado: sono, voyeurismo (observa a mulher à distância);
• Amor e medo: sexualidade contida; sublimação amorosa: jogo do disfarce;
• Transgressão: bebida, boemia, prostituição;
• Egocentrismo exagerado;
52
• Clima noturno, soturno, sombrio, por vezes satânico, lúgubre;
• Pessimismo;
• Angústia (spleen) inadequação à realidade;
• Liberdade formal: versos livres e brancos;
• Poética popular: preferência pelas redondilhas.

 3.º Geração romântica - Condoreira, abolicionista, hugoana

• Castro Alves, o poeta dos escravos; Sousândrade

• A Ideologia de Engajamento Social

O Condoreirismo foi um momento da literatura romântica em que os poetas passaram a se preocupar com
questões sociais, abolicionistas e republicanas. Foi uma poesia mais engajada e que propunha uma boa dose de
espírito libertário, Por isso, o símbolo do condor para a geração. Esta geração também pode ser chamada de
hugoana, devido à influência estética do escritor francês Victor Hugo.

As características principais são:

• Poesia de cunho social;


• Poesia de cunho libertário;
• Tematizava a questão abolicionista;
• Uso comum de hipérboles e visão grandiosa da vida;
• A mulher era vista de maneira carnal;
• Sensualismo no tratamento lírico-amoroso;
• Uso de palavras grandiloquentes em tom declamativo;
• Principais figuras: antítese, hipérbole, metáforas, sinestesias.

Análise de poemas românticos


Texto I - Leito de Folhas Verdes, Gonçalves Dias

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo Sejam vales ou montes, lago ou terra,
À voz do meu amor moves teus passos? Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Da noite a viração, movendo as folhas, Vai seguindo após ti meu pensamento;
Já nos cimos do bosque rumoreja. Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Eu sob a copa da mangueira altiva Meus olhos outros olhos nunca viram,
Nosso leito gentil cobri zelosa Não sentiram meus lábios outros lábios,
Com mimoso tapiz de folhas brandas, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
Onde o frouxo luar brinca entre flores. A arazóia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, Do tamarindo a flor jaz entreaberta,


Já solta o bogari mais doce aroma! Já solta o bogari mais doce aroma
Como prece de amor, como estas preces, Também meu coração, como estas flores,
No silêncio da noite o bosque exala. Melhor perfume ao pé da noite exala!

Brilha a lua no céu, brilham estrelas, Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
Correm perfumes no correr da brisa, À voz do meu amor, que em vão te chama!
A cujo influxo mágico respira-se Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
Um quebranto de amor, melhor que a vida A brisa da manhã sacuda as folhas!

A flor que desabrocha ao romper d'alva


Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.
53
Níveis do poema:

1) Nível Rítmico (camada sonora):


Métrica; Rima; Ritmo; Figuras de sonoridade; Paralelismos;
 9 estrofes de 4 versos  Preocupação formal.
 Versos decassílabos brancos  liberdade formal.
 Ausência de rimas: compensada pelas aliterações, pela regularidade rítmica (6ª e 10ª): Isorritmia, e pela
sonoridade dos vocábulos exóticos (Jatir; bogari; arasóia; Tupã), pelas repetições e paralelismos.

1º verso: (oclusivas) /t/, /d/, /q/  Travamento que expressa a


duração psicológica bloqueada.
2º, 3º e 4º versos: /s/, /m/, /v/  Sonoridade suave que se faz
antítese acústica em relação ao 1º verso.
Aliterações
↓ O efeito acústico do 1º verso entra em desarmonia com os outros três:
1ª estrofe a camada fônica insinua algo que não é dito explicitamente: a
desarmonia entre o elemento natural e o eu lírico opondo-se a Jatir.
1º e 2º versos  coincidência da silaba tônica que recai sobre Jatir
e Amor no meio do verso  coincidência fônico-semântica.

2) Nível Lexical (Processo de seleção das palavras):


Estudo das palavras que compõem o texto e o modo como sua escolha ocorreu.
Deve-se começar verificando o tipo de linguagem que o poeta empregou (culta, coloquial, regional...). Fazer o
levantamento das categorias gramaticais presentes no texto; observar os modos verbais, as relações temporais
ou a ausência de verbos.

 Presença do vocabulário tupi-guarani: a magia dos sons, a valorização do significante;


 Predominância dos verbos de movimento: mover; correr; ir  manter o deslizar sutil das horas e o doloroso
amadurecimento do eu lírico.

Esses versos contrastam com o sentimento inicial de permanência.

● Repetições:

―Brilha a lua no céu, brilham estrelas‖ Sintonia entre


 4ª estrofe: os elementos da
―Correm perfumes no correr da brisa‖ natureza

3ª = aroma da
 Bogari: expectativa.
8ª = aroma inútil.

Bogari e folha  marcadores temporais

 Folha: polissemia: Título: leito


1ª estrofe: hora noturna
2ª estrofe: foco da espera amorosa
Última estrofe: frustração
54
3) Nível Sintático (Combinação de palavras): Organização dos sintagmas, frases, períodos, os paralelismos,
gradação, inversão, encadeamentos das enjamberment (cavalgadura); pontuação expressiva, perguntas
retóricas.

Inversões  Anástrofes: Loc. Adjetiva antes ―Da noite a viração movendo as folhas‖
do substantivo 1ª estrofe

Hipérbato: Desarticulação
da ordem direta da frase ―Eu sob a copa da mangueira altiva‖
2ª estrofe

 Ruptura da concordância verbal  ―Eu sou aquela flor que espero ainda‖
espera

Clímax do poema: identidade flor/mulher

• Paralelismo: entre os dois primeiros versos da 3ª estrofes  Apelo amoroso da natureza. | Os dois primeiros
versos da 8ª estrofe  Frustração: Jatir não chega.
 Enjamberment: ligação sintática de dois versos diferentes  acentua a dramaticidade do eu lírico.

4) Nível Semântico (Nível do significado):

A composição gráfica, o ritmo e a construção lexical sintática trazem pistas para ampliar o significado
do texto, enriquecendo o aspecto semântico.

Metáfora: ―Eu sou aquela flor que espero ainda‖ (5ª estrofe). As
quatro primeiras estrofes preparam o clímax da metáfora: a
 Figuras 
identificação do eu lírico com a natureza, destacando a sensualidade
sutil da figura feminina, ao retomar a imagem das flores que exalam
perfumes na 3ª estrofe.
Personificação: ―Onde o frouxo luar brinca entre flores‖ (2ª
estrofe).

● Correspondências sensoriais: Impressões táteis: (viração, folhas brandas)


Exaltação dos sentidos  Olfativas: (flor do bogari)
Visuais: (brilha a lua / brilham estrelas)
Sonoras: (a brisa)

● Ambiguidade do título: verdes  esperança ou prematuridade.

● Técnica de composição: obedece a um duplo movimento que justapõe detalhes da natureza como
elementos da expressão psicológica do eu lírico e, por outro lado, a frustração do encanto amoroso. (projeção
do eu lírico na natureza).
55
 Divisão do poema em movimentos:

1º movimento 2º movimento 3º movimento


As quatro estrofes iniciais A 5ª e 8ª estrofe As duas últimas estrofes
Harmonia da natureza O desejo de amor A frustração
O quadro natural em que a natureza, em Eu lírico em sintonia Reintroduzem o quadro natural já alterado
harmonia, parece compactuar com a com a natureza pelo passar das horas que conduzem à
esperança do eu lírico. espera infrutífera da noite ao amanhecer.

 Desnível temporal e psíquico  Tudo se move, menos o eu lírico > a angústia da espera;
 Temática do Romantismo brasileiro: o poeta utiliza conscientemente uma forma medieval para realçar a
idealização do índio e da natureza do Brasil;
 Temática do Romantismo Universal: subjetividade; sentimentalismo; comunhão com a natureza; amor não
realizado; liberdade formal; musicalidade; exotismo.

II - Poetas da 2ª Geração

1) Casimiro de Abreu: Amor associado à vida e sensualidade (abordada de forma mais natural), ligada ao
medo de amar, forma disfarçada, fruto de insinuações e do jogo de mostrar e esconder. Variações métricas e
rítmicas, forte musicalidade e emprego da ―língua brasileira‖.
- Atração e medo, desejo e culpa.
- Idealização da mulher (anjo, virgem, santa, criança), receio de macular a virgem, de ferir sua pureza.

2) Álvares de Azevedo – A antítese personificada


a) Ariel imagem de um mundo visionário, idealização Álvares de Azevedo casto, adolescente,
sentimental e ingênuo (face do bem);
- Fobia ao sexo (prazer reprimido);
- Medo de amar (amor e dor amor e morte);
- Sonhos / devaneios;
- Voyeur;
- ―Tudo é romântico, desde que transportado para longe.‖ Novalis;
- Há o medo de amar (mulher virgem, assexuada, incorpórea  figura de anjo ou virgem);
- Poeta-voyeur;
- Melancolia; escapismo; religiosidade;
- Confiança na natureza;
- Importância da figura materna e fraterna; sublimação amorosa.

b) Caliban instintos, sexualidade, o terreno (face do mal);


- Mundo decadente, vícios, prostitutas, andarilhos; atração pela noite, pelo satânico e pelo gótico;
visão antiburguesa; pessimismo radical; transgressão; influência de Byron. Ex: ―Spleen e charutos‖ ―Ideias
íntimas‖; linha orgíaca e satânica.

c) Face irônica
- Quebra a noção de ordem e abala as convenções do mundo burguês;
- Ironiza a vida burguesa (repetitiva e sem emoções);
- Ironiza a pieguice amorosa, a idealização do amor e da mulher o cotidiano acaba com a idealização;
- ―Tudo é romântico, desde que transportado para longe‖ Novalis.

d) Face Metalinguística
- Utiliza o poema para falar de suas convicções artísticas; defesa da liberdade formal e críticas às regras
clássicas; ironiza a si próprio, por sua pieguice amorosa, sua melancolia;
―Frouxo o verso talvez, pálida a rima‖  liberdade formal.
56
Análise de poemas

Texto II - Álvares de Azevedo

Soneto

Pálida à luz da lâmpada sombria,


Sobre o leito de flores reclinada, Era mais bela! o seio palpitando
Como a lua por noite embalsamada, Negros olhos as pálpebras abrindo
Entre as nuvens do amor ela dormia! Formas nuas no leito resvalando

Era a virgem do mar, na escuma fria Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Pela maré das águas embalada! Por ti — as noites eu velei chorando,
Era um anjo entre nuvens d'alvorada Por ti — nos sonhos morrerei
Que em sonhos se banhava e se esquecia! sorrindo

Comentários:

• Palavras e ideias antitéticas: escuridão e claridade; a noite e o amanhecer; o ambiente onírico e o real; a
virgem pálida e distante e a mulher corporificada e sensual; o amor e a morte;
• Da primeira para a última estrofe, há um processo de materialização da mulher amada: no início, ela é a
―virgem do mar‖ ou um ―anjo‖; depois, torna-se uma mulher sensual e nua na cama. Essa gradação ocorre
paralelamente à gradação da luz, conforme o dia amanhece;
• O eu lírico, como um voyeur, observa a mulher amada de longe: trata-se do ―medo de amar‖, ligado à
insegurança e ao prazer reprimido, e cuja saída é a sublimação para a morte.

a) Face de Caliban:
Vagabundo
Eat, drink, and love; what can the rest avail us?
Byron
Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso,
Nas noites de verão namoro estrelas,
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso...
Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas...
E quem vive de amor não tem pobreza.

Comentário:
Ênfase nas transgressões (cigarro, irresponsabilidade do ócio) e crítica à moral burguesa e materialista;
valorização da natureza e da literatura.

b) Face irônica:

É ela! É ela! É ela! É ela!

"É ela! É ela! – murmurei tremendo, Esta noite eu ousei mais atrevido
E o eco ao longe murmurou – é ela! Nas telhas que estalavam nos meus passos
Eu a vi – minha fada aérea e pura – Ir espiar seu venturoso sono,
A minha lavadeira na janela! Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Dessas águas-furtadas onde eu moro Como dormia! que profundo sono!...


Eu a vejo estendendo no telhado Tinha na mão o ferro engomado...
Os vestidos de chita, as saias brancas; Como roncava maviosa e pura!...
Eu a vejo e suspiro enamorado! Quase caí na rua desmaiado!
57
Comentário: Ironiza a pieguice do amante, ao empregar elementos do cotidiano, esvaziados de lirismo; veio
anti-romântico, pela falta de idealização.

c) Face metalinguística:

Poema do frade (fragmento)

Frouxo o verso talvez, pálida a rima


Por estes meus delírios cambeteia,
Porém odeio o pó que deixa a lima
E o entedioso emendar que gela a veia!

Quanto a mim é o fogo quem me anima


De uma estância o calor: quando formei-a,
Se a estátua não saiu como pretendo,
Quebro-a – mas nunca seu metal emendo.

Comentário:

Consoante com o ideal libertário do romantismo, o poeta defende a liberdade formal e o dom da inspiração,
contrapondo-se à ―camisa de força‖ da estética clássica, com suas regras, que limitam a criatividade do fazer
artístico.

Texto III - Casimiro de Abreu

Segredos (Fragmento)

Eu tenho uns amores - quem é que os não tinha


Agora eu vos juro... Palavra!- Não minto!
Nos tempos antigos? - Amar não faz mal;
Ouvi a formosa também suspirar:
As almas que sentem paixão como a minha,
Os doces suspiros que os ecos ouviram
Que digam, que falem em regra geral.
Não quero, não posso, não devo contar!
Oh! Ontem no baile, com ela valsando
Trememos de medo... A boca emudece
Senti as delicias dos anjos do céu!
Mas sentem-se os pulos do meu coração
Na dança ligeira, qual silfo voando
Seu seio nevado de amor se entumece
Caiu-lhe do rosto o seu cândido véu!
E os lábios se tocam no ardor da paixão.
- Que noite e que baile! Seu hálito virgem
Depois... mas já vejo que vós, meus senhores,
Queimava-lhe as faces no louco valsar,
Com fina malícia quereis me enganar;
As falas sentidas que os olhos falavam,
Aqui faço ponto; - segredos de amores
Não quero, não posso, não devo contar
Não quero, não posso, não devo contar!

Comentário:
Popular poeta brasileiro, Casimiro criou uma poesia mais leve, em que o amor já aparece mais associado à
vida e mais sensual, apesar de ainda ser uma sensualidade que se conserva ligada ao medo de amar, sempre
disfarçada, fruto de insinuações e do jogo do mostrar e esconder, como vimos no refrão “Não quero, não
posso, não devo contar!‖

Castro Alves (1847-1871)

 Contemporâneo da crise do Brasil rural, do crescimento da cultura urbana e dos ideais democráticos;
 Cantor do negro, dos escravos, dos oprimidos;
 Representante da burguesia liberal: preocupação com o destino do homem em relação aos desajustamentos
sociais;
 Divisão da obra: lírica amorosa, lírica social, poesia abolicionista, poesia negra e poesia existencial;
 Deu ao escravo não só o brado da revolta, mas também uma atmosfera de dignidade lírica;
58
 Lírica amorosa: o amor como desejo e paixão, encantamento da alma e do corpo;
 Poeta dos amplos espaços: a natureza como imensidão, espaços abertos (os astros, o oceano, os Andes);
 Poética do dinamismo: movimento, cenários, diálogos;
 Captação plástica do ambiente;
 Poesia condoreira: oratória emocionada, dicção dramática, uso de apóstrofes, exclamações, excessiva
pontuação.

 Recursos estilísticos
- Metáforas, Antítese, Hipérboles, Comparações, Enumerações, Gradações, Aliterações, Sinestesias,
Personificação;
 Preferência pela ordem inversa.
- Hipérbatos, Anástrofes, Quiasmos, Hipálages.

 Poesia Lírico-Amorosa

1. Texto I: Adormecida
Uma noite, eu me lembro... ela dormia
Numa rede encostada molemente... Dir-se-ia que naquele doce instante
Quase aberto o roupão... solto o cabelo Brincavam duas cândidas crianças...
E o pé descalço do tapete rente. A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
‗Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina... E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
E o longe, num pedaço de horizonte, Mas quando a via despertada a meio,
Via-se a noite plácida e divina. Pra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala, Eu, fitando esta cena, repetia
E, de leve oscilando ao tom das auras, Naquela noite lânguida e sentida:
Iam na face trêmulos – beijá-la. ―Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
―Virgem! – tu és a flor da minha vida!...‖
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijá-la... a flor fugia...

Comentário:

1º Movimento: 1ª e 2ª estrofes.
O eu lírico apresenta os elementos ainda dissociados em seus contextos mediante o afastamento espacial
referenciado pela janela: o interior – a mulher; o exterior – o jasmineiro.
Contraste entre o espaço interior como campo visualizado (desvelamento) e o espaço exterior velado pela
noite.

2º Movimento: 3ª, 4ª, 5ª e 6ª estrofes.


O elemento exterior (galho do jasmineiro) penetra o espaço interior e dá-se o início do desvelamento que
permite aproximar o elemento flor à mulher: ―brincavam duas cândidas crianças‖.

3º Movimento: Última estrofe.


O eu lírico aproxima de forma equivalente os elementos mulher e flor, através do quiasmo: flor: virgem;
campinas: vida, identificando-se com a natureza.
59

 Observações:
a) Sentimentalização da natureza: projeção do eu lírico na natureza: ―galhos indiscretos.‖, ―trêmulos‖.
b) O desvelamento da natureza pode ser tomado como processo de sublimação do desejo do eu lírico: ―Naquela
noite lânguida e sentida‖  A noite como expressão subjetiva do Espaço Lírico.

Obs.: Quiasmo (a)


 Figura de linguagem da família das antíteses;
 Do grego Khiasmós = dispor em cruz, deriva da letra grega [x];
 Cruzamento de grupos sintáticos paralelos:
Ex: Cheguei. Chegaste
Tu vinhas fatigada e triste
e triste e fatigado eu vinha. (Olavo Bilac)

ABXBA

Você também pode gostar