Você está na página 1de 14

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da literatura. 8º ed. Livraria Almedina.

Porto,
1999.

4.6. Os géneros literários na poética romântica


● Certos princípios filosóficos e ideológicos que avultam na cultura europeia
setentista – a crença no progresso contínuo da civilização, da sociedade e das suas
instituições, das ciências e das letras, o espírito modernista antitradicional daí
decorrente, a admissão das letras, a admissão do relativismo de valores, etc. –
necessariamente haviam de afectar, na sua coerência global, a teoria clássica dos
gêneros. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 359)
● A estética do génio,ao conceber a criação poética como irrupção irreprimível da
interioridade profunda do poeta, como actividade alheia e refractária a modelos e a
regras, forçosamente havia de condenar a existência dos gêneros. (AGUIAR E
SILVA, 1999, p. 359-360)
● A teoria romântica dos géneros literários é multiforme e, não raro, revela-se
caracterizada por tensões e contradições que defluem das antinomias mais
profundas da filosofia idealista subjacente ao romantismo (sobretudo ao
romantismo alemão). Refira-se, por exemplo, a contradição entre sistema e história,
entre as exigências de uma definição e de uma classificação fundadas em elementos
puramente teoréticos e as injunções resultantes da consciência da historicidade da
literatura e do conhecimento histórico e dos factos literários. (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 360)
● A aura que envolvia aquela divisão triádica – aura a que não foram estranhas, como
também já anotámos, razões de natureza numerologia – foi singularmente
potenciada pela relevância conferida à triplicidade nas categorias da filosofia
kantiana e, sobretudo, na dialéctica hegeliana, segunda a qual o conhecimento
discursivo da verdade e a descoberta do Ser se operam progressivamente, num
ritmo triádico, pela superação (aufhebung), ou seja, pela síntese de sucessivos
conflitos, ou crises, entre uma tese e a contradição ou a negação desta (antítese).
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 361)
● Assim, na tripartição dos géneros literários estabelecida por Platão na República foi
retomada por Friedrich Schlegel, mas enquanto no filósofo grego ela se funda nos
caracteres técnico-formais do acto enunciativo, no crítico romântico baseia-se na
correlação ontológica com o factor subjectivo e com o factor objectivo manifestada
por cada um dos géneros [...]. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 361)
● Adoptando um esquema conceptual e terminológico explicitamente dialéctico,
August Wihelm Schlegel caracteriza a épica como a tese, a lírica como a antítese e
drama como a síntese das manifestações poéticas do espírito humano: a épica
identifica-se com a objectividade pura, a lírica com a subjectividade extrema e o
drama com a interpenetração da objectividade e da subjectividade. (AGUIAR E
SILVA, 1999, p. 362)
● Schelling, que concebe, ao contrário de August Wilhelm Schlegel, a lírica como o
género primigénio, também caracteriza e classifica os géneros literários em
conformidade com o tradicional esquema triádico e com a nova perspectiva
dialéctica, fundando-se na correlação e na tensão existentes e cada género entre o
particular e o universal, entre o finito e o infinito: a lírica, dominada pela
subjectividade do poeta, constitui o género mais particular, prevalecendo nela o
finito; a épica, género em que o poeta alcança a objectividade, subsume o finito no
infinito, o particular no universal; o drama concilia o particular e o universal, o
finito e o infinito. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 362)
● Embora os primeiros autores a admitirem a conexão dos géneros literários com as
dimensões do tempo tenham sido von Humboldt e Schelling, foi Jean Paul quem,
na segunda edição (1813) da sua obra Vorschule der Ästhetic, caracterizou
explicitamente a existência de cada um dos géneros da tríade tradicionalmente
estabelecida mediante a sua relação com o factor tempo: 《A Epopeia representa o
acontecimento que se desenvolve a partir do passado, o Drama a acção que se
estende em direcção ao futuro, a Lírica a sensação que se encerra no presente》
(KAYSER, 1968, p. 217 apud AGUIAR E SILVA, 1999, p. 363)
● A apologia romântica da simbiose dos géneros literários está relacionada com o
princípio, difundido sobretudo na estética do romantismo alemão, de que a verdade
e a beleza se constituem, ou se revelam, mediante a síntese dos contrários,
defluindo portanto, na sua matriz profunda, de uma concepção dialéctica do real e,
em particular, do real histórico. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 364-5)
8.3. O pré-romantismo
● Como o próprio vocábulo indica, o conceito de pré-romantismo abarca as
tendências estéticas e as manifestações de sensibilidade que no século XVIII,
sobretudo a partir da sua segunda metade, se afastam dos cânones neoclássicos,
anunciando já o romantismo. Isto não significa que o pré-romantismo constitua
apenas uma preparação do romantismo e que se apresente, por conseguinte, como
um movimento literário desprovido de feições próprias, motivo por que a expressão
《romantismo do século XVIII》, utilizada por alguns críticos para designar o
pré-romantismo (⁷), é inexacta e abre caminho a confusões. (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 534)
● Uma característica fundamental da literatura pré-romântica consiste na valorização
do sentimento. O coração triunfa do racionalismo neoclássico e iluminista,
transformando-se na fonte por excelência dos valores humanos. A sensibilidade
aparece como o mais legítimo título de nobreza das almas e a bondade e a virtude
são consideradas como atributos naturais das almas sensíveis. A vida moral passa a
ser regida pelo sentimento, sobrepondo-se aos direitos do coração às exigências da
lei […], em suma, às exigências das normas jurídicas ou éticas impostas do
exterior. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 534)
● A primeira geração europeia de egotistas, os pré-românticos criaram uma literatura
confessionalista que alcança por vezes uma audácia e uma profundidade ainda hoje
singulares (basta apontar Les confessions de Rosseau) e que provoca violentas
reacções afectivas em largo números de leitores no tempo (caso do Werther de
Goethe, que originou na juventude uma onda de suicídios). (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 534-5)
● A sensibilidade pré-romântica apresenta muitas vezes um carácter terno e tranquilo
[...]. Outras vezes, porém, esta terna melancolia dá lugar ao desespero e à angústia,
à tristeza irremediável e à agitação sombria, comprazendo-se então o poeta nas
visões lúgubres, nas paisagens nocturnas, agrestes e solitárias, nas tintas negras do
locus horrendus [...]. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 535)
● A meditação sobre a noite, os sepulcros e a morte inscreve-se na temática
pessimista atrás indicada e traduz a nostalgia do infinito e a funda insatisfação
espiritual que já angustiam os pré-românticos e que hão-de revelar-se mais
exacerbadamente nos românticos. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 535)
● O sentimento da natureza e da paisagem constitui outro traço relevante da literatura
pré-romântico. Não se trata apenas de uma maior capacidade descritiva do mundo
exterior, trata-se acima de tudo de uma nova visão da paisagem: entre a natureza e o
eu estabelecem-se relações afectivas, […] associam-se aos estados de alma e o
escritor estende sobre todas as coisas o véu da suas emoções e dos seus sonhos.
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 535-6)
● A literatura pré-romântica traduz já um forte declínio das influências greco-latinas e
um acentuado distanciamento dos cânones estéticos do classicismo, embora
algumas vezes os escritores pré-românticos se vejam obrigados a vazar uma
sensibilidade nova dentro das formas poéticas e estilísticas da tradição clássica.
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 536)

8.4. O termo e o conceito de romântico


● Do advérbio latino romanice, que significava 《à maneira dos romanos》, derivou em
francês o vocábulo romanz, escrito rommant depois do século XII e roman a partir
do século XVII. A palavra rommant designou primeiramente a língua vulgar, por
oposição ao latim, tendo vindo depois a designar também uma certa espécie de
composição literária escrita em língua vulgar, em verso ou em prosa, cujos temas
consistiam em complicadas aventuras heróicas ou corteses. (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 536-7)
● Neste texto de Rymer, o vocábulo “romântico” possui claramente um significado
literário, referindo-se ao carácter fantasioso e romanesco de alguns poemas que, por
isso mesmo, pareciam afastar-se das normas estritamente clássicas. (AGUIAR E
SILVA, 1999, p. 537)
● Tal como “gótico”, romântico designa, na época do iluminismo, tudo o que é
produzido pela imaginação desordenada, aquilo que é inacreditável e que reflete um
gosto artístico irregular e mal esclarecido. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 538)
● No entanto, a par deste significado, a palavra que vimos a analisar oferece no
século XVIII um outro sentido à medida que a imaginação adquire importância e à
medida que se desenvolvem formas novas de sensibilidade, romantic passa a
designar o que agrada à imaginação, o que desperta o sonho e a comoção da alma,
aplicando-se às montanhas, às florestas; (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 538)
● O vocábulo em inglês era vertido para francês ora por romanesque, ora por
pittoresque. [...] Através do francês, o vocábulo penetrou depois noutras línguas,
como o espanhol e o português. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 538)
● Friedrich Schlegel, embora num dos seus Fragmentos publicados no Athenaeum,
concebia a poesia romântica como aquela relacionada com o género literário do
Roman (¹⁴), advoga também uma noção altamente histórica de literatura romântica
[…]. Noutro fragmento do Anthenaeum, Friedrich Schlegel afirma que 《a
universalidade de Shakespeare é como que o ponto central da arte romântica》(¹⁶).
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 539)
● Goethe reivindicou a paternidade desta famigerada distinção, mas foi
indubitavelmente August Wilhelm Schlegel quem, inspirando-se em boa parte na
oposição estabelecida por Schiller entre poesia ingénua e poesia sentimental (¹⁷),
elaborou a mais sistemática e mais influente exposição sobre as diferenças
existentes entre a arte clássica e a arte romântica. A. W. Schlegel caracteriza a arte
clássica como uma arte que exclui todas as antinomias, ao contrário da arte
romântica, que se compraz da simbiose dos géneros e dos elementos heterogéneos:
natureza e arte, poesia e prosa, ideias abstractas e sensações concretas, terrestre e
divino, etc. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 540)
● A inspiração da arte clássica era simples e clara, diferentemente do génio romântico
que, 《apesar do seu aspecto fragmentário e da sua desordem apareute, está contudo
mais perto do mistério do universo, porque, se a inteligência jamais pode apreender
em cada coisa isolada senão uma parte da verdade, o sentimento, em contrapartida,
ao abranger todas as coisas, compreende tudo e em tudo penetra》. (AGUIAR E
SILVA, 1999, p. 540)
● [...] O drama romântico deve ser comparado com um quadro de pintura, 《onde não
somente aparecem figuras nas atitudes mais variadas e formando grupos com os
movimentos mais diversos e mais ricos, mas também objectos que se encontram à
volta das personagens e até a representação dos longes, de tal modo que o conjunto
se encontra banhado por uma luz mágica que, precisamente, determina e orienta o
seu efeito singular》(¹8). (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 540)
● A célebre afirmação de Goethe de que 《o clássico é a saúde, o romântico é a
doença》, exprime também uma concepção tipológica do romantismo e do
classicismo, opondo o equilíbrio e o desequilíbrio, a serenidade e a agitação, etc.
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 541)
● Tanto na Itália como na França, onde o romantismo é tardio em relação às
literaturas inglesas e alemã, existem grupos românticos, opondo-se
conscientemente a escritores clássicos, desde 1816 e 1820, respectivamente,
embora as manifestações mais significativas do romantismo francês ocorram alguns
anos mais tarde (publicação de Cromwell, 1827; representação e 《batalha》 de
Hermani, 1830) (²¹). (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 541-2)

8.5. Diversidade e unidade do romantismo europeu


● Os princípios mencionados por René Wellek – idêntica concepção da poesia, da
imaginação poética, da criação artística, etc. – são inquestionavelmente de primeira
importância, mas promanam de um outro princípio mais geral que constitui o
fundamento primário de toda a estética e de toda a psicologia romântica – uma
nova concepção do eu, uma forma nova de Weltanschauung, radicalmente
diferentes da concepção do eu da Weltanschauung típicas do racionalismo
iluminista. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 542-3)

8.6. O idealismo alemão e o romantismo


● Desenvolvendo, como ele próprio reconheceu, alguns conceitos do pensamento
kantiano, Fichte desviou de modo total a filosofia dos objetos exteriores, superando
assim a posição de Kant, que conservara os conceitos de 《coisa em si》 e de 《
númeno》. Para Fichte, o Eu constitui a realidade primordial e absoluta, tal como a
consciência de si representa 《o princípio absoluto de todo o saber》. O Eu fichtiano
afirma-se a si próprio, revelando-se como Eu absoluto, pois a sua 《essência
consiste unicamente no facto de ser afirmar ele próprio como sendo》, e como Eu
puro, pois o Eu é a uma actividade pura, isto é, uma actividade que não pressupõe
um objecto para se realizar, mas que cria esse objecto no próprio acto de ser realizar
[...]. Quer dizer, o Eu é simultaneamente agente e produto da acção, tendo Fichte
definido essa natureza dupla e ao mesmo tempo única do Eu com o vocábulo
Tathandlung. a atividade pura do Eu e o Eu puro são infinitos, definindo-se esta
actividade pura como a 《faculdade absoluta de produção dirigindo-se para o
ilimitado e o ilimitável》, isto é, definindo-se como a infinitude do Eu. Se, num
primeiro momento, o Eu se auto-afirma, a sua actividade não é possível sem uma
oposição: o Eu opõe-se a um não-Eu. Desta oposição, que obriga o Eu a reflectir-se
e a limitar-se, depende a consciência – que tem de ser consciência de alguma coisa
– e o desdobramento do ideal e do real, do conhecer e do ser. (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 543)
● A teoria fichtiana do Eu absoluto influenciou profundamente a concepção
romântica do eu e do universo, pois os românticos, interpretando erroneamente o
pensamento de Fichte (²⁴), identificaram o Eu puro como o eu do indivíduo, com o
génio individual, e transferiram para este a dinâmica daquele. O espírito humano,
para os românticos, constitui uma identidade dotada de uma actividade que tende
para o infinito, que aspira absoluto, embora este permaneça como um alvo
inatingível. Energia infinita do eu e anseio do absoluto, por um lado;
impossibilidade de transcender de modo total o finito e o contingente, por outra
banda – eis os grandes pólos entre os quais se desdobra a aventura do eu romântico.
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 544)
● O mundo romântico, diferentemente do mundo humanístico e do mundo iluminista,
está radicalmente aberto ao sobrenatural e ao mistério, pois representa apenas 《uma
aparição equivocada do espírito》. [...] Tudo o que é visível e palpável não
representa o real verdadeiro, pois que o autêntico real não é perceptível aos
sentidos. O verdadeiro conhecimento exige que o homem desvie o olhar de tudo
quanto o rodeia e desça dentro de si próprio, lá onde mora a verdade tão
ansiosamente procurada [...]. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 544)

8.7. A Sehnsucht romântica


● Com esta concepção do espírito e do real, relaciona-se intimamente o conceito de
Sehnsucht, palavra alemã dificilmente traduzível que significa a nostalgia de algo
distante, no tempo e no espaço, para que o espírito tende irresistivelmente, sabendo
todavia de antemão que lhe é impossível alcançar esse bem sonhado. (AGUIAR E
SILVA, 1999, p. 545)
● Friedrich Schlegel caracteriza a poesia romântica como 《uma poesia universal
progressiva》, afirmando que a sua essência reside na sua insatisfação perpétua
(Sehnsucht): o carácter específico da arte romântica consiste 《em jamais poder
atingir a perfeição, em ser sempre e em se tornar eternamente nova. Não pode ser
esgotada por qualquer teoria e só uma crítica divinatória poderia arriscar-se a
querer definir o seu ideal》. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 545)
8.8. O titanismo
● A aventura do eu romântico apresenta uma feição de declarado titanismo,
configurando-se o herói romântico como um rebelde que se ergue, altivo e
desdenhoso, contra leis e os limites que o oprimem, que desafia a sociedade e o
próprio Deus. Prometeu é a figura mítica que os românticos frequentemente
exaltam como símbolo e paradigma da condição titânica do homem, pois que, tal
como Prometeu, é o homem um ser em parte divino, 《um turvo rio nascido de uma
fonte pura》, cujo destino é urdido de miséria, solidão e rebeldia, mas que triunfa
deste destino pela revolta e transformando em vitória a própria morte, como
proclamou Byron [...]. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 545)
● Satã, tal como Milton o pinta em Paradise Lost — majestoso anjo caído em cujos
olhos belos moram a tristeza e a morte, animado de um heroísmo sombrio e
orgulhoso, proclamando corajosamente a glória e a grandeza do seu desafio ao
Criador –, tornou-se outro grande símbolo aos românticos, como personificação d
rebeldia e da aspiração de alcançar o Absoluto. Caim é igualmente interpretado
pelos românticos como um sublime rebelde que, torturado pela miséria e pela dor
do destino humano, ávido da eternidade e do infinito, se recusa a obedecer
docilmente Deus, chamando outros homens à revolta heróica, preferindo a morte à
vida efémera e escravizada [...]. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 546)
● Também D. João, o gozador impenitente e libertino do teatro seiscentista, se
transforma com o romantismo num peregrino do Absoluto, buscando reencontrar
através do amor, como Fausto através da ciência, o paraíso perdido, o segredo do
universo, a unidade primordial. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 546)
● Também no homem fatal do romantismo se reencontram muitos elementos
característicos de Satã, desde a fisionomia – face pálida, olhar sem piedade – até ao
temperamento e às feições psicológico-morais – melancolia irradicável, desespero,
revolta, pendor inelutável para a destruição e para o mal. (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 547)
● Outras vezes, são as figuras dos poetas geniais, desgraçados e perseguidos pela
sociedade, condenados à solidão, incompreendidos pelos outros homens,
desafiando o destino, que os românticos exaltam como símbolos da aventura
titânica do homem. Por isso o romantismo se deixou fascinar pela história e pela
lenda de poetas como Dante, exilado e foragido, Tasso, encarcerado e demente,
Camões, amante infeliz e desterrado, etc. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 547)

8.9. O mal du siècle


● Da falência desta aventura, da impossibilidade de realizar o absoluto a que se
aspira, nascem o pessimismo, a melancolia e o desespero, a volúpia do sofrimento,
a busca da solidão. O mal du siècle, a indefinível doença que alanceia os
românticos, que lhes enlanguesce a vontade, entedia a vida e faz desejar a morte, só
poderá ser correctamente entendido no contexto da odisseia do eu romântico, pois
que exprime o cansaço e a frustração. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 547)
● O mal du siècle não se pode entender, portanto, como a sintomatologia de almas
anémicas que, desprovidas de audácia para a aventura e isentas de fundos anseios,
se fecham receosas em si mesmas. A energia anímica super-abundante, geradora de
tensões insuportáveis, mãe dos infinitos desejos e dos sonhos sem limites, é que
explica essa estranha florescência dos tédios e agonias que devastou a sensibilidade
romântica. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 548)

8.10. A ironia
● 《A ironia》, afirma Friedrich Schlegel, o grande responsável pela introdução do
conceito de ironia na estética romântica, 《é a clara consciência da eterna agilidade
da plenitude infinita do Caos》, isto é, a ironia nasce da consciência do caráter
antinómico da realidade e constitui uma atitude de superação, por parte do eu, das
contradições incessantes da realidade, do conflito perpétuo entre o absoluto e o
relativo. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 548)
● A arte, segundo Friedrich Schlegel, exige do criador uma atitude de ironia, isto é,
de distanciamento, de superioridade em relação à obra criada, tal como Goethe
[…]. A ironia romântica, por conseguinte, ao exprimir a superação dialéctica dos
limites que se opõem ao espírito humano, vela-se também de perturbantes sombras:
é-lhe subjacente a consciência de que cada triunfo é apenas o prelúdio de um novo
combate, numa cadeia infindável de gestos e actos incessantemente recomeçados.
Destino de Sísifo, tentação do absurdo… (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 549)

8.11. O exotismo e o medievalismo


● Profundamente desgostado da realidade circunstante – encarnação do efémero, do
finito e do imperfeito –, em conflito latente ou declarado com a sociedade, lacerado
pelos seus demónios íntimos, o romântico procura ansiosamente a evasão: evasão
no sonho fantástico, na orgia e na dissipação, ou evasão no espaço e no tempo.
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 549)
● O exotismo revelara-se já na literatura pré-romântica, mas desenvolveu-se
grandemente com os românticos, satisfazendo ao mesmo tempo os seus anseios de
evasão e a exigência da verdade na pintura do homem e dos seus costumes. Por isso
mesmo a cor local, ou seja a reprodução fiel e pitoresca dos aspectos característicos
de um país [...]. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 549)
● A evasão no tempo conduziu à reabilitação e à glorificação da Idade Média, época
histórica particularmente denegrida pelo racionalismo iluminista […]. As primeiras
gerações românticas europeias apresentaram-se impregnadas, em larga medida, de
uma ideologia reaccionária, contraposta aos princípios revolucionários de 1789 e ao
racionalismo ateus do 《século das luzes》. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 550)

8.12. Concepção da criação poética


● O conceito de imaginação adquire no romantismo uma importância particular. O
século XVIII, e em especial a estética do empirismo inglês, considera a imaginação
como a faculdade que permite conjugar, segundo uma ordem inédita, as imagens ou
os fragmentos das imagens apresentados aos sentidos, de maneira a construir uma
nova totalidade. A imaginação, portanto, dissocia os elementos da experiência
sensível e agrega depois as diversas partes de um novo objeto. [...] A originalidade
da criação resulta, nesta perspectiva, do modo como os objectos são dissociados e
depois novamente associados, de forma a conseguir-se uma combinação invulgar
ou inédita. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 552)
● Ora, na estética romântica, a imaginação emancipa-se da memória, com a qual era
frequentemente confundida, deixa de ser uma faculdade serva dos elementos
fornecidos pelos sentidos e transforma-se em força autenticamente criadora, capaz
de libertar o homem dos limites do mundo sensível e de transportar até Deus.
(AGUIAR E SILVA, 1999, p. 552)
● Coleridge distingue a imaginação (《imagination》) e a fantasia (《fancy》). A
fantasia é uma faculdade 《acumuladora e associadora》, é 《uma forma de memória
emancipada da ordem do tempo e do espaço》e que, tal como a memória normal, 《
tem de receber todos os seus materiais já preparados pela lei da associação》. A
imaginação, por conseguinte, é o equivalente, no plano humano, da própria criadora
infinita que plasmou o universo, repetindo o poeta, na criação do poema, o divino
acto da criação absoluta. A imaginação secundária, faculdade própria do poeta, na
criação do poema, reelabora e confere expressão simbólica aos elementos
fornecidos pela imaginação primária e a sua genuína tensão criadora revela-se no
seu poder de síntese ou de conciliação dos contrários [...]. (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 553)
● Este modo de conceber a natureza da imaginação poética conexiona-se com uma
determinada visão cosmológica: o universo surge povoado de coisas e seres que,
para além das suas formas aparentes, representam simbolicamente uma realidade
invisível e divina, constituindo a imaginação o meio adequado de conhecimento
desta realidade. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 553)
● A criação poética, no romantismo, mergulha profundamente no domínio onírico e
esta irrupção do inconsciente na poesia assume não somente uma dimensão
psicológica, mas também uma dimensão mística, integrando-se na concepção da
poesia como uma revelação do invisível e na concepção do universo como um
vasto quadro hieroglífico onde se reflete uma realidade transcendente. Por outro
lado, o elemento onírico oferece um meio ideal de realizar a aspiração criadora, no
sentido mais profundo da palavra, do poeta, permitindo identificar poesia e
reinvenção da realidade. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 554)
● Foi o romantismo, porém, que conferiu um novo significado ao sonho, pondo em
relevo e explorando as suas secretas virtualidades e delineando uma estética do
sonho em que o fenómeno poético são estreitamente aproximados ou mesmo
identificados [...]. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 554)
● O sonho, para o romântico, é o estado ideal em que o homem pode comunicar com
a realidade profunda do universo, insusceptível de ser apreendida pelos sentidos e
pelo intelecto: através do inconsciente onírico, opera-se a inserção da alma humana
no ritmo cósmico e efectiva-se um contacto profundo e imediato do homem com a
alma que anima a natureza. A abolição das categorias do espaço e do tempo,
própria do sonho, é uma libertação das barreiras terrestres e uma abertura para o
infinito da alma romântica. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 554-5)
● Este infinito e este invisível situam-se no próprio eu e a descida ao abismo da sua
interioridade é a condição essencial para o poeta suscitar o seu canto: 《O poeta é
literalmente insensato – em contrapartida tudo se passa nele. Ele é literalmente
sujeito e objecto ao mesmo tempo, alma e universo》. Estas palavras de Novalis, o
mais alto representante da estética romântica do sonho, ao exprimirem a
identificação do sujeito e do objecto, exprimem igualmente a identificação da
poesia com a magia e explicam como através do sonho o poeta reinventa a
realidade. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 555)
● Os dramas, as visões e as vozes que nascem e se movem nos estados oníricos
aparecem assim como uma espécie de poesia involuntária, a cuja eclosão o poeta
assiste maravilhado. […] A criação poética, no romantismo, é sempre irmã do
sonho, porque em ambos os casos da beleza e o mistério revelados não se filiam
numa elaboração consciente, mas constituem algo que floresce no poeta e no
sonhador sem qualquer esforço voluntário por parte destes [...]. (AGUIAR E
SILVA, 1999, p. 556)
● Frequentemente, aliás, o romântico provoca artificialmente estes estados oníricos a
fim de colher, no êxtase que acompanha tais experiências, o segredo do acto
criador. […] Baudelaire analisa e exalta os estados de alma suscitados pelo ópio,
pelo 《hascisch》, pelos licores e pelos perfumes – estados de alma caracterizados
por uma embriaguez alucinatória que o tempo e o espaço adquirem um
desenvolvimento singular, em que a matéria vibra impoderalizada e em que uma
harmonia infinda envolve o homem. A inspiração poética enraíza-se nos paraísos
perdidos assim criados e, ante a plenitude das sensações, dos pensamentos, dos
prazeres, etc., experimentada nessas circunstâncias, quer o sonhador, quer o poeta
podem exclamar: 《tornei-me Deus!》(⁴⁵) (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 556-7)

8.13. As antinomias romântica


● [...] A literatura romântica foi frequentemente uma literatura de evasão, uma
literatura de combate, mas também é verdade que foi, não raras vezes, uma
literatura de combate, bem enraizada na história e procurando agir sobre a sobre a
história. Com efeito, se muitos românticos foram reaccionários e passadistas,
muitos outros românticos, perante o mundo em crise em que estavam situados,
procuraram ardentemente contribuir para o advento de uma sociedade nova, mais
justa, mais livre e mais esclarecida do que o ancien régime que se esboroava por
toda a Europa. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 557)
● O romantismo valorizou as forças instintivas e arracionais, glorificou o homem
natural, o seu primitivismo e a sua espontaneidade, mas apresenta muitas vezes
atitudes subtilmente intelectualistas – pense-se na ironia romântica – e exalta os
valores culturais. A arte romântica manifesta com frequência o gosto pelo
fantástico, pelo grotesco, por tudo o que é excessivo ou anormal deforma as
proporções e as relações verificáveis na realidade; mas revela-se também, com
frequência, como uma arte atenta ao real subjectivo e objectivo, procura pintar o
homem e o mundo com autenticidade, demonstra muitas vezes uma forte
capacidade descritiva da natureza física. Quer dizer, é uma arte visionária, mas é
também uma arte realista. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 558)

8.14. A religiosidade romântica


● Visceralmente individualista e egotista, o romântico dificilmente aceita uma
ortodoxia baseada num corpo de dogmas e garantida pela autoridade de uma
hierarquia. A sua religiosidade é preponderantemente de natureza sentimental e
intuitiva; [...] Na senda da 《Profession de foi du vicaire savoyard》de Jean-Jacques
Rosseau, os românticos descobriram e cultuaram Deus nos astros e nas águas do
mar, nas montanhas e nos prados, no vento das árvores e nos animais, em tudo o
que existe nas intérminas plagas do universo. O panteísmo representa, com efeito,
a forma de religiosidade mais frequente entre os românticos. (AGUIAR E SILVA,
1999, p. 559)

8.15. Formas e estilo


● Muitas formas literárias características do neoclassicismo, tais como a tragédia, as
odes pindáricas e sáficas, a égloga, etc., entraram em total decadência no período
romântico, ao passo que se desenvolveram singularmente formas literárias novas
como o drama, o romance histórico, o romance psicológico e de costumes, a poesia
intimista e poesia filosófica, o poema em prosa, etc. (AGUIAR E SILVA, 1999, p.
559)
● A língua e o estilo transformaram-se profundamente, enriquecendo-se em particular
no domínio do adjectivo e da metáfora. A linguagem literária abandonou os
artifícios expressivos de origem mitológica, verdadeiros tópicos da tradição literária
dos séculos anteriores, já surrados e desprovidos de qualquer capacidade poética,
ao mesmo tempo que se aproximava da realidade e da vida: 《Sem renunciar à
sintaxe e à disciplina poética, o romântico reagiu, em geral, contra a tirania da
gramática e combateu o estilo nobre e pomposo, que considerava incompatível com
o natural e o real, e defendeu o uso de uma língua libertada, simples, sem ênfase,
coloquial, mais rica》(⁴⁷). Igual tendência para a liberdade se verificou no domínio
da versificação. (AGUIAR E SILVA, 1999, p. 560)

Você também pode gostar