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O teatro épico by Anatol Rosenfeld - fichamento parte I, capítulo I: gêneros

e traços estilísticos

a) Observações gerais
A classificação de obras literárias segundo gêneros tem sua raiz na República de
Platão. No 3º livro, Sócrates explica que há três tipos de obras poéticas:
“O primeiro é inteiramente imitação”. O poeta desaparece e deixa os personagens
falarem em seu lugar. “Isso ocorre na tragédia e na comédia”.
O segundo tipo “é um simples relato do poeta, isso encontramos principalmente nos
ditirambos.” Nesse trecho, Platão parece referir-se, aproximadamente, ao que
chamamos hoje de gênero lírico.
O terceiro tipo, enfim, une ambas as coisas; tu o encontras nas epopéias…” Nas
epopéias manifestam-se o próprio poeta (nas descrições e apresentações dos
personagens) ou algum personagem, quando o poeta procura suscitar a impressão de
que ele não é quem fala e sim o próprio personagem (nos diálogos).

A definição de Aristóteles coincide até certo ponto com a de Platão. Para Aristóteles
há várias maneiras de imitar a natureza. É possível imitar os mesmos objetos nas
mesmas situações; ou introduzindo um terceiro (como faz Homero), insinuando a
própria pessoa sem que outro personagem intervenha; ou então apresentando a
imitação com a ajuda de personagens que agem e executam eles próprios.
Dizendo isso, Aristóteles parece referir-se essencialmente aos gêneros épicos (isto é,
narrativo) e dramático. Mas ele diferencia duas maneiras de narrar: em uma
introduz-se um terceiro (em que os próprios personagens se manifestam) e em outra
insinua-se a própria pessoa do autor, sem que ele intervenha outro personagem. Se
Aristóteles se referia, como Platão, ao ditirambos (cantos dionisíacos festivos em que
se exprimiam ora alegria transbordante, ora tristeza profunda), essa última maneira de
narrar então parece aproximar-se do que hoje chamamos de poesia lírica. Já a forma
dramática é definida como aquela em que a imitação ocorre com a ajuda dos
personagens, onde eles mesmos executam ações. Isto é, a imitação é executada “por
personagens em ação diante de nós” (3º capítulo).

Por mais que essa teoria dos três gêneros, categorias ou arquiformas literárias tenha
sido combatida, ela se mantém, em essência, inabalada. Ela é deliberadamente
artificial, até certo ponto, por conta de toda a conceituação científica. E
estabelece um esquema a que a realidade literária multiforme, na sua grande
variedade histórica, nem sempre corresponde. Mas essa teoria não deve ser entendida
como um sistema de normas para os autores seguir a fim de produzir obras líricas,
épicas ou dramáticas puras, uma vez que, na literatura, a pureza não é
necessariamente positiva. Além disso, não existe pureza de gêneros em sentido
absoluto.
Ainda assim, a classificação de obras literárias por gêneros parece indispensável, por
conta da necessidade de toda ciência de lidar ordenadamente com os fenômenos. Há
ainda razões mais profundas: o modo em que o mundo imaginário é comunicado
pressupõe certa atitude ao encarar esse mundo, ou, indo em contrariedade, a atitude é
expressa em certa maneira de comunicar. Nos gêneros há vários tipos de
imaginação e de atitudes em face do mundo.

b) Significado substantivo dos gêneros


A teoria dos gêneros é complicada pelo fato de os termos lírico, épico e
dramático serem empregados em dois sentidos diferentes. A primeira acepção,
associada a estrutura dos gêneros, poderia ser chamada de “substantiva” (“A Lírica”, A
Épica”, e O Dramático).

Na Lírica fica todo o poema de extensão menor, pois nele não se cristalizaram
personagens nítidos, ao invés disso, uma voz central (quase sempre um “Eu”)
exprime seu próprio estado de alma.

Fará parte da Épica toda obra (poema ou não) de extensão maior, em que
narrador apresenta personagens envolvidos em situações e eventos.

Pertencerá a Dramática toda obra dialogada em que atuarem os próprios


personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador.

Notamos que se trata de um poema lírico (Lírica) quando uma voz central sente um
estado de alma e o traduz por meio de um discurso mais ou menos rítmo. Fazem
parte desse gênero, por exemplo, o canto, a ode, o hino, a elegia.

Se nos é contado uma história em versos ou prosa, sabemos que se trata de


Épica. Fazem parte desse gênero a epopéia, o romance, a novela o conto.

Se o texto se constituir principalmente de diálogos e se destinar a ser levado à cena


por pessoas disfarçadas que atuam por meio de gestos e discursos no palco,
sabemos que estamos diante de uma obra dramática (a Dramática). Nesse gênero
há, por exemplo, a tragédia, a comédia, a tragicomédia, a farsa, etc.

Dúvidas diante de certos poemas, como as baladas, muitas vezes dialogadas e de


cunho narrativo, só servem para confirmar que todas as classificações são
artificiais.
c) Significado adjetivo dos gêneros
A segunda acepção dos termos lírico, épico e dramático, de cunho adjetivo,
refere-se a traços estilísticos que uma obra pode ser imbuída em maior ou menor
grau, independente de seu gênero (no sentido substantivo).
Assim, certas peças de Garcia Lorca, que, como peças, pertencem à Dramática,
possuem cunho acentuadamente lírico (traço estilístico).
Poderíamos falar, no caso, de um drama (substantivo) lírico (adjetivo). Um epigrama,
embora pertença à Lírica, raramente é lírico (traço estilístico), tendo geralmente certo
cunho dramático ou épico (traço estilístico).
Há inúmeras narrativas classificadas como Épica, mas que apresentam forte caráter
lírico (particularmente da fase romântica) e outras de forte caráter dramático (novelas
de Kleist).

Costuma-se haver uma aproximação entre gênero e traço estilístico: o drama


tenderá ao dramático, o poema lírico ao lírico e a Épica (epopéia, novela e
romance) ao épico, mas, no fundo, toda obra literária vai conter traços estilísticos
do gênero a que pertence e também de outros gêneros. Por exemplo, dificilmente
vai haver uma peça em que não contenha algum momento épico ou lírico.
Nessa segunda acepção os termos ganham grande amplitude, podendo ser aplicados
em situações extraliterárias. Pode-se falar de uma noite lírica, um banquete épico ou
um jogo de futebol dramático. Esses termos da teoria literária tornam-se nomes para
possibilidades fundamentais da existência humana.
O gênero revela certa tendência estilística, mostrando que a classificação por gêneros
implica maior significado do que se tende a admitir.

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