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Confluências entre a música e a poesia: Breve olhar sobre a arte de compor em

Angola

Hélder Simbad

A música e a poesia lírica parecem duas disciplinas artísticas afastadas, mas a


história das artes revela-nos que, no princípio, não havia separação entre elas. Em
Angola, por exemplo, em Roteiro da Literatura Angolana de Carlos Ervedosa lê-se que
“a poesia tradicional encontramo-la no cancioneiro dos vários agrupamentos étnicos que
das florestas do Maiombe às areias do Namibe povoam o vasto corpo Angola” e na
visão do referido autor os Cuanhamas são aqueles que melhor compõem os versos.

O presente artigo tem como objectivo relacionar a música e a literatura: duas


disciplinas artísticas que se concretizam por via da voz, sendo, portanto, ambas arte
verbal de expressão interior do sujeito, exigindo alma, talento e escola.

Seguindo a teoria aristotélica (exposta na Poética) citada por COELHO (1994),


havia três géneros de manifestação literária: o Lírico, o Épico e o Dramático,
correspondendo cada um deles à expressão de determinada experiência humana.
Entretanto, em nosso pequeno ensaio, situaremos a nossa abordagem apenas no género
lírico, por acreditarmos ser aquele que melhor casa com a música, embora seja possível
celebrar o mesmo casamento com os outros géneros. Além disso, o nome lírico
surge da música, de um instrumento musical de cordas designado lira, usado na
antiguidade para os recitais, o que reforça o facto de a poesia e música estarem sempre
juntas.

- O Lírico tinha como objecto o mundo interior do poeta; expressava sua


consciência em face das emoções, sentimentos, estados de espírito, gerados
pelo Amor, pelas Paixões ou pelo Mistério da Vida (Líricos gregos famosos:
Alceu, Safo, Píndaro...).

- O Lírico adotava as formas de ditirambo (poema lírico, breve, cantado no


culto a Dioniso); elegia (canto triste, de autocontemplação ou lamento); hino
(canto às divindades); canção (canto de bodas ou de enamoramento) etc.

- O poema lírico era cantado em versos pentâmetros ou elegíacos, sáficos,


alcaicos... para alcançar o rimo leve ou suave que seu "objecto" intimista
exigia. O fato de ser um canto acompanhado pela lira lhe valeu o "rótulo" de
lírico. (COELHO,1994)
As composições musicais geralmente seguem a forma plástica de um poema, ou
seja, visualmente, sem as partituras, elas tendem a ter a mesma configuração de um
poema: versos agrupados em estrofes, a partir dos quais se forjam os refrãos e os coros.
Por conseguinte, a confluência entre música e poesia resume-se neste extracto de
Coelho:

(...) A divisão de versos nos poemas modernos atende as mais das vezes a
uma intenção intelectual ou expressiva, passando a pausa a constituir
importante fator no complexo de significantes da forma literária. A nosso
ver, uma das grandes conquistas do verso livre foi a utilização do silêncio
como recurso expressivo. A pausa veio a ter, no verso, o papel funcional que
sempre teve na música. E assim como não se pode executar uma peça
musical sem a estrita observância das pausas, falseia-se o poema quando se
lêem os versos sem se respeitar os silêncios que os individualizam.

Por vezes ouve-se uma música em língua estrangeira e pela sua interpretação
conseguimos compreender a mensagem estética e nos sentimos afectados por tal
mensagem. Este fenómeno, conhecido por via de Aristóteles por catarse, pode-se dar de
igual modo nas nossas línguas de origem. Isto é poesia e, conforme em Coelho
(1994), chegar à sua definição absoluta e definitiva é impossível, pois

“Poesia é manifestação verbal da vida e este é fluído fenómeno em constante


mutação. Manifestando-se como uma forma verbal específica (amálgama de
palavras, sons, ritmos, atmosfera, vibrações sensoriais, emoções em variadas
escalas, a Poesia oferece ao seu leitor uma variadíssima gama de vivências:
do prazer intelectual mais profundo à alegria lúdica mais espontânea e
ingénua ou inconsciente de si mesma (tal como é natural nas crianças e no
sentir do povo) ”.

Entretanto, podendo contribuir para a mudança de quadro e sugerir uma arte


mais refinada, isto não significa que devemos olhar com neutralidade as composições
débeis que enfermam o mercado nacional.

Do lado dos poetas, nota-se que este desfasamento entre a poesia e a música não
existe. Dos eventos de literatura nos quais participamos a música esteve sempre
presente e privilegia-se os clássicos ou aquelas músicas cuja composição está mais
próxima da poesia. Ademais, a declamação de poemas são quase sempre acompanhados
de trova, ou seja, há quase sempre alguém com guitarra a acompanhar os declamadores
de poesia. Isto acontece porque a declamação de um poema tem maior impacto quando
é acompanhado de instrumentos musicais.

Ao analisar o estado da música produzida em Angola, em termos de


composição, comparando com outras realidades, nota-se alguma fragilidade em termos
de composição na maior parte dos artífices. Este facto dá-se pela falta da
interdisciplinaridade entre as artes, reforçado pelo tardio surgimento da Escola de Arte
em angola que levou a que muitos pautassem pelo autodidactismo. Em virtude disso,
contrariamente ao que era suposto, comparando com a geração saída da independência
nacional que produzia uma música historicamente engajada com o seu tempo, com fins
libertários, as gerações que se seguiram não conseguiram dar sequência a um legada tão
rico em termos de composição.

Quando ouvimos Bonga Kwenha, Paulo Flores, Kiaco Kyadafi, Matias Damásio,
entre outros, poucos, o que nos prende é sobretudo a qualidade do conteúdo que eles
apresentam em termos de composição. Canções como Embrião de Sabino Henda e
Astro da Minha Vida de Cristo entram na lista do repertório musical dos angolanos
muito mais pela qualidade das suas composições do que propriamente pela qualidade da
expressão musical.

O lado intelectual da composição musical está intrinsecamente relacionado com


a criação literária. Os grandes poetas geram as grandes composições musicais.

Não poderíamos terminar este artigo sem analisar uma das mais bem-
conseguidas composições musicais angolanas. Poder-se-lhe-ia chamar também poesia e
não ficaria aquém da sua classificação. Trata-se da música com o título Embrião da
autoria de Sano Henda, natural do Bié, com a mesma música, venceu o Top dos Mais
Queridos em 2004.

Embrião realça a beleza e a força de um amor puro capaz de transpor barreiras


impossíveis. Pelas pausas ou cadência é possível criteriosamente estabelecer-se a
metrificação do texto. E diga-se que é a estrutura formal privilegiada é certamente o
verso.

A expressividade lírica desta composição musical começa logo no coro que se


repete duas vezes. O sujeito de enunciação de forma declarativa insinua-se a amada
dizendo-lhe com toda a subjectividade que caracteriza a linguagem dos poetas que:
Esta noite eu venho-te buscar
Esta noite quero ser feliz
Toda noite quero-te afogar
Derreter no teu calor
(bis)

Os dois últimos versos (Toda noite quero-te afogar / Derreter no teu calor)
servem-se do disfemismo, uma figura de estilo que, ao contrário do eufemismo, visa
tornar rude uma mensagem pacífica, para se referir apenas ao acto de relação sexual
intensa que, por consequência disso, tornando o ambiente ardente, levará os corpos a
transpirar.
O primeiro refrão compõe-se de duas estrofes com versos que formam rima
branca permeada de alguma emparelhada na segunda estrofe. Na verdade, Sabino aqui
privilegia mais a força das metáforas do que da expressão fónica, facto que iria rever no
acto de cantar, optando por uma melodia até certo ponto, eufónica.

Refrão
por tanto eu te amar cometi muitos pecados
rebusquei quase meio mundo
para encontrar mil formas prá te conquistar
só por te amar eu li grandes histórias de amor
imiscuídas com melodias
e que venceram grandes reinos de Deus

o que é verdade, forças estranhas consomem o meu eu


tó esforçado a te amar e serei maltratado se não te amar
crucificado e enviado para loucura deixe eu te amar
te envolver em todos os planos que a vida nos trará
mergulhar no teu sangue o elemento que faz a união
o embrião crescerá e aí nos unimos para sempre
e ser feliz
mui feliz
feliz para sempre

No refrão acima, na primeira estrofe, o sujeito explica as atrocidades que teve de


cometer e os caminhos que teve de percorrer à favor desse amor, lendo romances de
amores impossíveis. Na segunda estrofe, sugere uma dimensão mística em que o
sobrenatural (forças estranhas consomem o meu eu) se apodera do seu interior e que o
amor que sente tem um terceiro dedo oculto, o tal sobrenatural, o amor de Pablo
Neruda, sem explicação, ama-se, simplesmente porque se ama.
Os versos mais expressivos são seguramente aqueles que dizem do acto de gerar
vida. O sujeito sonha em ter filhos com a sua amada e com perífrases insinua-lhe a,
mergulhar no teu sangue o elemento que faz a união
o embrião crescerá e aí nos unimos para sempre

Segue-se mais uma vez o coro e depois a estrofe que consideramos conclusivo,
pois, no segundo refrão repetem-se as duas estrofes que compõem o primeiro refrão:

Não consigo ver no fundo do mar


mas quero saber te dar tudo o que é seu
e que tenho está comigo
no meu peito
nunca te escondas de mim

divida comigo

tudo o que é teu e que está contigo no teu peito

Lendo a estrofe acima, nota-se claramente que o sujeito acredita num amor de
partilha, a soma de todas as verdades, um amor sem segredo em que os dois se doam em
favor desse amor. Quando este refere que não consegue “ver no fundo do mar” refere-se
ao passado da amada por isso suplica que esta divida consigo tudo o que for dela,
referindo-se aos segredos.

Referências bibliográficas

ERVERDOSA, Carlos. Roteiro da Literatura Angolana. Luanda, União dos Escritores


Angolanos, 1985.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura e Linguagem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994

RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio: Forense, 1974, págs. 37-
57

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