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APRESENTAÇÃO DA OBRA DE ESTREIA DE ISMAEL FARINHA

Prelúdio: Dito Interdito compõe-se de 40 poemas, cada um deles acompanhado


por um texto pictórico com o qual nem sempre estabelece um diálogo claro. Na verdade,
parece-nos que o propósito da combinação pictórico-linguístico recai mais no domínio
da sensação do que propriamente na interpretação inteligível do poema.

Por inerência do título da obra, Prelúdio, aquilo que anuncia o que há-de vir,
sugere-se que eventualmente existam outros projectos editoriais do autor e que este
pensa em construir uma obra e não apenas um agrupamento de livros. Por consequência,
entendendo o presente título como manifesto introdutório da produção de um conjunto
de livros que se pretendem organizar coerentemente para se constituírem em obra, o
subtítulo deste livro-prelúdio, Dito Interdito, tem força de título, na medida em que se
liga intrinsecamente com muitos dos elementos temáticos constantes no livro,
estabelecendo-se, assim, uma relação de macrotextualidade, não entre título e textos,
mas sim entre textos e subtítulo.

O presente livro surpreende-me pelo facto de conhecer o percurso do autor e os


contextos em que floresceu embrionariamente a sua poesia, lugares onde a maior
preocupação não era o cultivo da palavra poética, senão a manifestação de uma alma
inquieta, a expressão do sentimento sobre a forma. Entretanto, surpreendentemente,
agora vislumbro alguma tecnicidade por parte de Ismael Farinha e certas tendências
poéticas, as quais jamais imputaria ao autor sem uma prévia conversa e leitura do seu
primeiro rebento. Tudo isto para dizer que a poesia amadurece no tempo e Prelúdio é a
prova disso.

Ismael Farinha apresenta uma poesia experimentalista que defende a tese de que
a poesia é ritmo, som, e, consequentemente, faz do extracto sonoro o elemento
recreativo e criativo, criando circunstâncias acústicas nas quais a linguagem numérica,
de compreensão, aglutina-se a elementos grafemáticos como morfemas e grafemas:

10fazer de ti não dá
10ajeitado, 10agradado
100ti sua falta
(…)
10cartei propostas
10ta vez 100 você
(…)
20buscar no 10aforo
(p.14)

Outro recurso de que Ismael se socorre, e com alguma frequência,


consubstancia-se na co-ocorrência de palavras homófonas no mesmo verso, entre outros
recursos da mesma ordem linguístico-gramatical:

Bebo-te no profundo poço, posso?


(p.15)
Invento evento
(…)
Tanto tonto imérito emérito
(.p27)

Facto de fato é facto


(p.36)

Sugiro que prestemos atenção ao último verso que nos oferecemos à leitura,
Facto de fato é facto, que aponta para o aspecto sociocultural do fato, enquanto vestimenta
que sugere uma postura politicamente e condição social de privilégio. Quer-se dizer
com este verso que, ocorrendo um facto, a forma como te vestes pode determinar a
disseminação do facto, sugerindo-se de fato o facto torna-se ainda mais notório.
A obsessão pela exploração do extracto sonoro é tão evidente que para
impressionar através do movimento acústico, Farinha forja versos em que o processo de
homonímia é incomum e se constrói na leitura do sintagma, não se dando palavra com
palavra, mas palavra com as unidades sintácticas com as quais se relacionam
homonimicamente durante o acto de leitura.
Apesar a pensar pesar, senti sem ti
Depressão de pressão, consenso com senso
(p.15)

Masturba mais turba no subconsciente


(…)
Concerto com certo, luto com luto de meu pai
(p.37)
Recursos estilísticos fonológicos como as assonâncias, as aliterações, as anáforas
e as repetições são frequentes num livro, tal como dissemos, há uma aposta declarada de
investimento do extracto sonoro. Ismael Farinha não é um cultor do labor característico
da linguagem simbolista ou surrealista. O carácter poético deste poemário assenta na
exploração do ritmo e a ambiguidade característica da linguagem poética resulta em
alguns casos do jogo de palavras que o autor faz. Isto tem muito que ver com a génese
do poeta: o palco, também a razão da extensão de alguns poemas presentes neste livro.
Esta poesia, cronologicamente, foi produzida em quase uma década e,
politicamente, acompanha o subdesenvolvimento dos principais factos que se deram nas
duas últimas legislaturas. Ela tem o condão de ser subversiva e satiriza alguns destes
momentos. Tal é o caso do assunto dos cofres e outras incidências, resumidos
alegoricamente no prosaico poema de tendências jacintiana (Carta do contratado) com o
título irónico Brinde ao Amor:

Encontrei-te no vazio do teu estado


Degustei-me de ti
Não deixei os cofres do teu coração vazio

Ainda assim, me acusas de malandro


Malvado, intolerante
(p.20)

Circulam igualmente neste poemário outras temáticas não menos importantes.


Tal é o caso das relações socio-afectivas no seio da juventude marcado poer
dificuldades emocionais, discussões, entre outro fenómenos:
Se amar na beira
Mar, solta sua onda, enxota alguma emoção
O casal jovem?
Enxota palavras duras que magoam corações
Segredo do mar é amar, beijar a terra
(p.45)
Num por fim que se impõe, não sendo, portanto, minha pretensão de levar o
leitor a conhecer integralmente a obra, convido-vos a lerem-na e construírem os vossos
próprios juízos. Bem-haja ao autor, bem-haja a Literatura Angolana.

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