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COLÓQUIO/Letras

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[Recensão crítica a 'Quando não Estou por Perto', de Anita


Costa Malufe]
Renan Nuernberger

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Renan Nuernberger, "[Recensão crítica a 'Quando não Estou por Perto', de Anita Costa
Malufe]", Colóquio/Letras, n.º 184, Set. 2013, p. 281-283.

EDIÇÃO E PROPRIEDADE
a gente no alto, onde é melhor viver // de seguir errando por uma cidade, por exem-
onde é melhor cair» (p. 52). Ou seja, en- plo, o Rio de Janeiro — um Rio de Janei-
tre o lugar mais alto — onde dizer e fazer ro mais sentimental do que nunca. E, de
se equivalem e a língua é usada como se repente, no meio do caminho, topar com
pela primeira vez, dizendo a tudo, inclu- um cartaz onde se lê o seguinte: «fiado e
sive a si mesma — e o chão — espaço de amor só amanhã» (p. 18).
concretude e do impacto, onde as coisas
se quebram em palavras — está a queda. Leonardo Gandolfi
Como em Luiza Neto Jorge, o movimen-
to é vertical e vai na direção da linguagem
como coisa partida e estilhaçada. Annita Costa Malufe
O poema «Últimas Novidades» avisa Quando não estou por
o leitor dessa perda: «Houve o tempo em perto
que se acreditava / no poder da estampa: Rio de Janeiro, 7Letras / 2012
dizer um nome; / no dizê-lo por escrito o
dito era tinta / e espírito unidos a quem o Em seu quarto livro de poemas, Quando
dizia de modo // fisiológico, porque tudo não estou por perto, Annita Costa Malufe
lhe pertencia» (p. 62). A irónica novida- alçou voo e alcançou um novo patamar
de última já não é tão última assim: «Re- no projeto poético que desenvolve des-
cebemos um cartão. Onde andará? / Era de sua primeira publicação. Isso se deve
uma palavra que dizia exatamente / o que à ampliação de certos procedimentos de
eu pensava» (p. 63). E essa palavra pode sua escrita, como a falta de pontuação ou
ser traduzida por esse conjunto de outras o corte ambíguo dos versos, que geram
palavras, recortadas algumas páginas an- uma hesitação peculiar nos poemas cuja
tes: «procuro e não encontro a minha pretensão derradeira é multiplicar infini-
antiga alegria» (p. 24). tamente as possibilidades de leitura atra-
Leonard Cohen quando entoa o ver- vés de diferentes modulações de voz. Se
so «I’m sentimental, if you know what I essa hesitação — bastante explorada pela
mean» (Leonard Cohen, «Democracy», poesia moderna e assente, sobretudo, no
in The Future, CD, 1992) — a julgar por enjambement — já era constitutiva da po-
aquilo que ele já cantou e continua a can- ética da autora, na recente obra encontra-
tar — talvez esteja falando justamente -se a expansão deste princípio na própria
disso: dizer e não poder dizer; não poder cesura dos versos e na imprecisão plane-
dizer, mas continuar a dizer assim mes- jada das orações que soam, muitas vezes,
mo. Eucanaã o diz como a concordar com como sentenças descontínuas justapostas
Gagarin, o recém-chegado à Terra: «Só («desacelerar as sílabas as / junções entre
o ar nos vestia, de uma vida mais / leve / as sílabas alguém / escrevia há um buraco
que ele» (p. 72). E o mesmo Eucanaã vol- no meio / da frase uma fenda que cor-
ta a dizê-lo, no entanto, como a escrever rói», p. 58).
agora a sequência para o verso de Cohen De certa maneira, os poemas asse-
de linhas acima: «O mundo é um espi- melham-se a puzzles que o leitor pode
nho absurdo» (p. 22). De um lado, trans- preencher mentalmente — com pontos,
formar a dor sentida em dor fingida e vi- vírgulas, parênteses, etc. — ou vocalmen-
ce-versa a ponto de torná-las uma só sem te — pela entoação, cadência, respiração,
o espectro da outra. De outro, aprofundar etc. — para perscrutar os movimentos
o sulco que as identifica. Enquanto isso, linguísticos que os configuram, fazendo

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jus ao título do volume. Não à toa, na que a maioria dos poemas são descrições
orelha do livro, Donizete Galvão apre- de cenas — não a ação em si mesma —,
senta a obra como «uma partitura muito como se o enunciador encenasse seu es-
próxima da música contemporânea e de forço em fixar os instantes fugazes que, no
potencial performático». Neste sentido, entanto, dissolvem-se mais a cada novo
cabe ressaltar o uso ostensivo do espaço registro («este chapéu estou pensando
em branco, talvez o único elemento que em você / veja como escorre transborda
impõe uma coordenação ao andamento a linha vertical / o feltro preto estou pen-
da leitura, principalmente na sequência sando naquele dia a sala», p. 95).
de poemas curtos, como o início da se- O vocabulário enxuto, a permutação
ção V («ajeitar as páginas para uma orga- de versos com pequenas variações e, so-
nização possível», p. 107). De inspiração bretudo, a repetição exaustiva de signos
claramente mallarmaica, este procedi- («que acena e alonga os passos alonga a
mento, destacado pelas dimensões físicas voz / a voz ficando um pouco mais a voz
do livro, torna-se central não apenas por colada nos passos», p. 15) realçam for-
demarcar os limites entre os poemas — já malmente a dificuldade dessas vozes que,
que não há títulos ou sinais gráficos que na insistência de consolidar seu discurso,
os separem — mas por formalizar a difi- acabam expondo sua fragilidade — como
culdade de expressão encenada por todas se os poemas avisassem, retomando mais
as vozes que permeiam a obra. uma vez Mallarmé, que a carne ainda é
Quer dizer, se há uma espécie de esface- triste mas «não li suficientemente tudo
lamento do eu que regeria de modo omni- até aqui» (p. 13).
presente todos os poemas, determinando Não se trata, obviamente, de um proble-
inclusive certos caminhos para a leitura, ma estético: Annita Costa Malufe maneja
as diversas vozes que se apresentam — de sua linguagem de modo deliberadamen-
idades, sexos e lugares diferentes — pos- te refinado a fim de construir essa fragi-
suem ao menos esse traço em comum: lidade cuja existência real, ao menos no
elas constituem-se pela exposição de suas Brasil, é mais contundente fora do âmbi-
dificuldades expressivas no próprio ato to estrito da poesia. Em outras palavras,
da enunciação («o que falo nunca é o que embora se possa afirmar que a dificulda-
falo», p. 65) como se desconfiassem de de encenada pela poeta se constitui sob a
sua memória, de uma aproximação ime- égide de uma tradição avançada da poe-
diata com o real ou, de modo mais pre- sia moderna, seu discurso rarefeito acaba
ciso, da reelaboração fidedigna dos acon- reproduzindo — talvez à revelia — uma
tecimentos através da fala/escrita («girar fragilidade expressiva de outra ordem,
em falso / é o que as palavras fazem», encontrada nas relações diárias mais co-
p. 57). Uma poesia espectral, atenta a zo- mezinhas, quando a comunicação direta
nas de silêncio, que prefere «não dizer» com o outro resvala na incompreensão
a «mentir». Não há afirmações categó- mútua.
ricas, os poemas flutuam na dubiedade Neste sentido, percebe-se que os poe-
das vozes que se debatem na tentativa de mas de Quando não estou por perto con-
recuperar aquilo que evocam («foi aqui centram-se em cenas-limite do quotidia-
que cheguei era um dia mais ou menos / no que correspondem, ao mesmo tempo,
como este como assim como este / úmido a topoi da poesia moderna: a solidão dos
meio seco quente frio indeciso», p. 31). quartos de hospitais, a rememoração da
Por isso, é interessante constatar também infância na velha casa dos avós, a lem-

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brança confusa em antigas fotografias, a todas as vozes são humanas em sentido
liberdade da viagem na boleia do cami- estrito — a poesia, como se sabe, poderia
nhão, a justa palavra não pronunciada no dar voz aos animais e aos objetos inani-
instante da separação, etc. mados —, o que, todavia, se adequa ao
Contudo, a intertextualidade presente projeto poético desenvolvido pela poe-
nesses poemas parece problematizar ain- ta e parece realçar aquele problema de
da mais as dificuldades de expressão, uma linguagem mais amplo das relações quo-
vez que a recorrência de motivos literários tidianas.
não recalca a desconfiança do enunciador Deste modo, o livro estrutura-se a par-
quanto à precisão de suas palavras. Por tir da desconfiança da linguagem verbal,
isso mesmo, as epígrafes, astutamente esbarrando programaticamente em seus
dispostas no pé das páginas, tornam-se limites e operando um esvaziamento da
instigantes: sendo repetidas integral- expressão que reincide sobre as caracte-
mente no corpo dos poemas, deslocadas rísticas formais acima apontadas («você
de seus contextos iniciais, desvelam um está cheio de discurso / vejo as palavras
procedimento que é constitutivo de toda encherem o / vidro a garrafa gorda sobre
a obra — diálogo, aliás, com a poética de a mesa», p. 113). Entretanto, esta des-
Ana Cristina Cesar, da qual Annita Costa confiança encaminha a poética de Annita
Malufe é uma importante pesquisado- Costa Malufe para uma aporia, pois, con-
ra — feita de pedaços de múltiplos dis- quanto problematize a linguagem verbal
cursos deslocados e inconclusivos. e o eu que a constitui, precisa deles para
Esse aspecto é reforçado pela presença se configurar. No fundo, o próprio poema
de objetos — como máquinas de filmar, é um mediador que impede a integração
máquinas fotográficas ou gravadores — plena entre o enunciador e os aconteci-
que fazem a mediação entre o enunciador mentos («queria falar da minha dor mas
e aquilo que este pretende recuperar na o poema / plataforma lançada queria fa-
sua fala/escrita, culminando em uma es- lar mas ao mesmo / tempo lançar um ato
pécie de metalinguagem («gravação em um movimento falar», p. 36), embora a
fita cassete a voz mesmo acreditando que formalização deste impasse só se dê pelo
/ preencheria o espaço que completaria e no poema.
o espaço entre / o que fica e o que se vai Em Quando não estou por perto, a de-
o timbre as ondas a velocidade», p. 16). manda por uma poesia que transcenda
Esta mediação, que configura um simula- as palavras, aproximando-se da música e
cro problematizador dos acontecimentos principalmente do silêncio, desdobra-se
descritos nos textos, também encontra na impossibilidade de presentificação das
um momento de «parábase» quando, coisas («tudo já virou discurso preciso /
ecoando o título do livro, um dos poemas voltar aos objetos», p. 88), constituindo
anuncia: «eu preciso de uma tela que / uma linguagem que reitera consciente-
me proteja // mas a partir daqui tudo é mente sua própria insuficiência à medida
uma / cena paralela» (p. 118). Com isso, que a determina. Um nó-cego que, se a
é necessário destacar que, apesar do des- poesia não pode desatar, pode ao menos
locamento do eu, da pluralização de dis- tornar mais teso.
cursos e dos objetos de mediação, os poe-
mas não tomam o «partido das coisas»: Renan Nuernberger

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