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10º ANO

1.POESIA TROVADORESCA
Entre os séculos XII e XIV, os trovadores portugueses e galegos, mas não só, compõem cantigas destinadas a ser
musicadas e cantadas. As cerca de 1680 cantigas que hoje se conhecem distribuem-se, na grande maioria, por três
géneros maiores: as cantigas de amigo, as de amor e as de escárnio e maldizer.
1. Cantigas de amigo
 Nestas cantigas, o sujeito poético é uma donzela de origem popular, que, de forma aparentemente
simples e espontânea, fala sobre os incidentes da sua vida amorosa. (De notar que, na realidade, a
composição é elaborada por um trovador.)
 Assim, a jovem pode referir-se às suas tentativas de seduzir o amigo, por exemplo,  através da dança.
São também frequentes as alusões aos encontros com o amado. Em contrapartida, muitas vezes a figura
feminina mostra-se profundamente angustiada pela ausência do amigo (eventualmente por ter partido
para a guerra com o rei ou o senhor que servia) e pela falta de notícias. Noutros casos, exprime o seu
desalento pela indiferença do amigo ou mesmo a sua fúria pelas mentiras e traições.
 Estas donzelas viviam num ambiente rural, motivo por que, nestas cantigas, temos frequentemente
um cenário natural. Locais como a fonte e o rio, distantes de olhares indiscretos, são propícios aos
encontros amorosos. No entanto, a natureza tem, muitas vezes, um papel que ultrapassa largamente o de
mero cenário: ou é personificada, surgindo como confidente da donzela (o que implica não só  ouvi-la,
mas, também, por vezes, responder às suas interpelações), ou tem um  valor simbólico fundamental na
construção do sentido do poema (por exemplo, a referência ao cervo pode ser entendida como uma
representação/alusão velada ao elemento masculino — isto é, ao amigo).
 Em algumas destas cantigas, pode também ser feita referência a um espaço próximo da capela, aonde as
donzelas acompanham a mãe em romaria, na esperança de aí encontrarem o amigo.
 Além da natureza, a figura feminina pode também ter como confidentes as amigas ou então a
própria mãe, situação que é, no entanto, mais rara, dado que esta surge sobretudo no papel de protetora
da virtude da filha, tendo, consequentemente, a função de vigiá-la.

Estrutura formal

 Em termos formais, em geral, as cantigas de amigo têm um refrão — isto é, um verso que se repete no
fim das estrofes ao longo de toda a composição. No entanto, existem também cantigas de mestria, ou
seja, composições sem refrão.

 Tradicionalmente, as cantigas de amigo são também paralelísticas. Neste tipo de composição, a unidade
rítmica e de sentido não é a estrofe — um dístico com refrão —, mas o par de estrofes, como se pode
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ver no esquema aqui apresentado. Dentro deste par, ambos os dísticos revelam significados muito
próximos, tendo apenas pequenas variantes (assinaladas como a', b', c'). Na maioria das vezes,
variam apenas as palavras da rima, que são de vogal tónica «a» num dos dísticos de cada par e «i» ou
«ê» ou «ô» no outro. Neste tipo de estrutura, o último verso
do primeiro dístico (b) é retomado no primeiro verso do segundo par (estrofe 3); a este processo dá-se o nome
de leixa-pren. Nas composições com paralelismo, a progressão do pensamento verifica-se apenas no segundo verso
das estrofes ímpares (estrofe 3, c). (Cf. poemas «Ondas do mar de Vigo» e «Levad', amigo,  que dormides as manhanas
frias».)

2. Cantigas de amor
 Trata-se de um género das cantigas trovadorescas em que o tema central é o amor, e o sujeito poético,
um homem que expressa os seus sentimentos. Por outro lado, partilha com os outros dois grandes
géneros da poesia trovadoresca a característica de associar o poema ao canto e à música.
 As cantigas de amor remetem para o ambiente e a linguagem de corte. Este género tem origem no Sul de
França — na região da Provença, mas não só — e ganha características próprias quando chega à
Península Ibéria e é cultivado por compositores locais. (Recorde-se «Proençaes soem mui bem trobar»,
de D. Dinis.)
 Nestas cantigas cultiva-se o amor cortês (cf. Glossário, na página 61), um ideal amoroso marcado por
convenções e por algum artificialismo, em que o apaixonado diz servir a sua amada numa relação de
vassalagem amorosa.
 Mais do que situações ou episódios, as cantigas de amor procuram representar o estado emocional e a
vivência psicológica do amador bem como o discurso que os exprime. Esse sentimento pode ser
contraditório: o eu poético afirma nas suas composições que ama e sofre ardentemente («coita de
amor»); ora tem esperança ora desespera e queixa-se de não ter a atenção da amada; diz morrer de amor
ou enlouquecer. (Cf. «Se eu podesse desamar» e «A dona que eu am'e tenho por senhor».) No entanto,
espera sempre uma recompensa da dama, um sinal do seu afeto.
 A mulher é uma figura referida em termos abstratos e em poucos casos é descrita. A dimensão corpórea
da personagem feminina e a faceta carnal do amor estão grandemente arredadas deste género poético.
Frequentemente a dama é idealizada pelo poeta e as suas virtudes morais são elogiadas.

Estrutura formal
 No que diz respeito à forma, as cantigas de amor estão, geralmente, organizadas em três ou quatro
estrofes de sete versos, podendo estes versos ser de sete, oito ou dez sílabas. Dominam as cantigas de
mestria (cf. Glossário, na página 61), mas há também cantigas de amor de refrão.

PARA SABER MAIS


Em 1990, Harvey Sharrer, Professor da Universidade da Califórnia (EUA), descobriu na Torre do Tombo, em
Lisboa, um pergaminho com sete cantigas de amor de D. Dinis com notação musical. O documento recebeu o nome
de Pergaminho Sharrer.
3. Cantigas de escárnio e maldizer
 Diferentemente dos dois géneros anteriores, que elegem o amor como tema central, as cantigas de
escárnio e maldizer são composições satíricas que expressam uma crítica a comportamentos e vícios da
época. Trata-se de poemas que documentam de forma muito rica os costumes e a linguagem da
sociedade do Noroeste da Península Ibérica dos séculos finais da Idade Média.
do primeiro dístico (b) é retomado no primeiro verso do segundo par (estrofe 3); a este processo dá-se o nome
de leixa-pren. Nas composições com paralelismo, a progressão do pensamento verifica-se apenas no segundo verso
das estrofes ímpares (estrofe 3, c). (Cf. poemas «Ondas do mar de Vigo» e «Levad', amigo,  que dormides as manhanas
frias».)

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2. Cantigas de amor
 Trata-se de um género das cantigas trovadorescas em que o tema central é o amor, e o sujeito poético,
um homem que expressa os seus sentimentos. Por outro lado, partilha com os outros dois grandes
géneros da poesia trovadoresca a característica de associar o poema ao canto e à música.
 As cantigas de amor remetem para o ambiente e a linguagem de corte. Este género tem origem no Sul de
França — na região da Provença, mas não só — e ganha características próprias quando chega à
Península Ibéria e é cultivado por compositores locais. (Recorde-se «Proençaes soem mui bem trobar»,
de D. Dinis.)
 Nestas cantigas cultiva-se o amor cortês (cf. Glossário, na página 61), um ideal amoroso marcado por
convenções e por algum artificialismo, em que o apaixonado diz servir a sua amada numa relação de
vassalagem amorosa.
 Mais do que situações ou episódios, as cantigas de amor procuram representar o estado emocional e a
vivência psicológica do amador bem como o discurso que os exprime. Esse sentimento pode ser
contraditório: o eu poético afirma nas suas composições que ama e sofre ardentemente («coita de
amor»); ora tem esperança ora desespera e queixa-se de não ter a atenção da amada; diz morrer de amor
ou enlouquecer. (Cf. «Se eu podesse desamar» e «A dona que eu am'e tenho por senhor».) No entanto,
espera sempre uma recompensa da dama, um sinal do seu afeto.
 A mulher é uma figura referida em termos abstratos e em poucos casos é descrita. A dimensão corpórea
da personagem feminina e a faceta carnal do amor estão grandemente arredadas deste género poético.
Frequentemente a dama é idealizada pelo poeta e as suas virtudes morais são elogiadas.

Estrutura formal
 No que diz respeito à forma, as cantigas de amor estão, geralmente, organizadas em três ou quatro
estrofes de sete versos, podendo estes versos ser de sete, oito ou dez sílabas. Dominam as cantigas de
mestria (cf. Glossário, na página 61), mas há também cantigas de amor de refrão.

PARA SABER MAIS


Em 1990, Harvey Sharrer, Professor da Universidade da Califórnia (EUA), descobriu na Torre do Tombo, em
Lisboa, um pergaminho com sete cantigas de amor de D. Dinis com notação musical. O documento recebeu o nome
de Pergaminho Sharrer.
3. Cantigas de escárnio e maldizer
 Diferentemente dos dois géneros anteriores, que elegem o amor como tema central, as cantigas de
escárnio e maldizer são composições satíricas que expressam uma crítica a comportamentos e vícios da
época. Trata-se de poemas que documentam de forma muito rica os costumes e a linguagem da
sociedade do Noroeste da Península Ibérica dos séculos finais da Idade Média.

 Criticam-se sobretudo personagens e comportamentos da corte: os maus trovadores, os guerreiros


cobardes, os traidores, os incompetentes ou a fealdade de algumas damas. Mas a sátira atinge também
figuras exteriores à corte e, na prática, nenhum estrato social ou ofício deixa de ser fustigado.
 Encontramos vários temas no conjunto das cerca de 430 cantigas de escárnio e maldizer conhecidas,
segundo tratem acontecimentos históricos (ou histórico-militares), costumes sociais, hábitos pessoais,
polémicas entre trovadores e a paródia das cantigas de amigo e de amor.

 Assim, as próprias cantigas e os seus compositores são frequentemente assunto dos poemas deste
género. Como foi referido, os trovadores e jograis são postos a ridículo («Foi um dia Lopo jograr») e as
convenções do amor cortês são alvo de zombaria («Roi Queimado morreu com amor», «Ai, dona fea,
fostes-vos queixar»).

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 Segundo a Arte de Trovar (cf. Para saber mais, na página 57), nas cantigas de escárnio a sátira é
realizada através de «palavras cubertas» (palavras ou expressões com duplo sentido), enquanto nas
cantigas de maldizer a crítica é feita sem recurso a esse equívoco.

Estrutura formal
 Formalmente, as cantigas de escárnio e maldizer tendem a ser cantigas de mestria, mas quase um terço
do conjunto inclui refrão.

A LINGUAGEM DAS CANTIGAS TROVADORESCAS


Como já foi referido, as cantigas trovadorescas são compostas em galego- -português; daí a presença de termos e
expressões que hoje vemos como arcaica.
As cantigas de amigo exibem um vocabulário mais simples e familiar, associado a cenários campestres e
domésticos e às vivências quotidianas de personagens populares: as «madres», as filhas, o «amigo», as flores, a
«fontana», o mar, a ermida entre outros. Predomina a construção de frase simples ou a coordenação. Esta aparente
simplicidade não desvaloriza a grande beleza destes poemas nem significa que eles deixem de explorar símbolos com
forte significado (a água, as aves, as estações, os cervos) e a expressividade de recursos estilísticos como a apóstrofe, a
personificação, a aliteração e a assonância.
Em contraste com o género anterior, as cantigas de amor são poemas mais elaborados, que se socorrem de
construções de frase mais complexas. Recorrem frequentemente à subordinação e a vocábulos e expressões cultos,
alguns de origem provençal («sen», «drudo», «prez», «parlar», etc.). Nestas composições, o eu poético exprime
os seus sentimentos complexos, quando não contraditórios, ou apresenta argumentos sobre os motivos por que sofre.
A linguagem satírica das cantigas de escárnio e maldizer associa-se frequentemente ao sarcasmo e ao humor das
composições e recorre a trocadilhos (expressões com dois sentidos) e, não raro, a termos obscenos. Exploram-se
também os diminutivos e os aumentativos como forma de apoucar a figura ridicularizada.
Amor cortês — Relação amorosa representada nas cantigas de amor, na qual é reproduzida a relação feudal
vassalo/senhor da sociedade medieval. Trata-se de um sentimento amoroso medieval que se rege por convenções de
corte, por uma simbologia e por algum artificialismo. O homem, que regra geral é nobre, mantém com a sua amada
uma relação de vassalagem amorosa: ela é o senhor, e ele, o vassalo que lhe promete fidelidade, devoção e respeito. A
figura feminina é idealizada, sendo referida como «senhor». É sobretudo através dos seus poemas e de outras provas
que o amador se aproxima da sua dama, de forma convencional, discreta e dedicada. Dela diz esperar, na fase
derradeira desta aproximação, um beijo, um anel ou outro sinal da estima. Mas nem sempre esse amor é
correspondido.
Cantiga de mestria — Composição da poesia medieval que se caracteriza pela ausência de refrão.
Cantiga de refrão — Cantiga com refrão (ou estribilho), que está, regra geral, integrado no fim da estrofe.
Cobla — Nome dado à estrofe nas cantigas medievais. «Cobra» e «copla» são outros dois termos usados.
Códice — Livro manuscrito formado por cadernos de folhas e que veio superar a organização do texto em longos
rolos (o uolumen).
Coita de amor — Sofrimento amoroso associado ao amor cortês que é representado nas cantigas de amor.
O eu poético enamorado diz-se vassalo de uma dama (a «senhor»), que coloca num plano superior ao seu e a quem diz
prestar serviço. Por vezes, o eu lírico afirma que este sofrimento por amor se materializa em pranto e pode levar à
loucura ou à morte.
Jogral — Trata-se de um artista que não pertencia à nobreza e que cantava e executava as cantigas medievais.
Vários jograis não se limitaram a interpretar as composições dos outros e elaboraram as suas próprias cantigas. A
estes, que compunham e executavam, dava-se o nome de segrel. (Cf. «trovador».)
Trovador — Designação que se dá aos autores medievais que compõem cantigas dos diferentes géneros e que
são, sobretudo, oriundos do grupo social da nobreza. O trovador era o compositor da letra e da música das
cantigas. (Cf. «jogral».)

2. FERNÃO LOPES

CONCEÇÃO DA HISTÓRIA E MÉTODO HISTORIOGRÁFICO


 O carácter admirável da obra de Fernão Lopes deve-se, em grande parte, à originalidade da sua
conceção da História, tanto em relação à tradição historiográfica como aos autores contemporâneos.
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 Antes deste cronista, todos os textos que se reportassem a acontecimentos do passado —
independentemente de serem lendas, contos tradicionais, romances de cavalaria e narrativas de crónicas
e de livros de linhagens — eram aceites como relatos históricos sem que a sua veracidade fosse
averiguada.
 A experiência profissional de Fernão Lopes como notário e arquivista não só lhe incutiu a consciência
da necessidade de fundar a verdade histórica num documento escrito, como também lhe proporcionou o
acesso a documentos escritos e testemunhos orais que, caso contrário, lhe estariam vedados.
 No prólogo da Crónica de D. João I, o autor expõe o seu ponto de vista sobre o trabalho do historiador,
descrevendo o método utilizado para tentar manter a imparcialidade.
a) Recolher informação de numerosos testemunhos escritos, de modo a assegurar o rigor dos factos
históricos avançados;
b) Apesar de seguir a historiografia anterior no processo de elaboração do texto, procedendo ao corte e
montagem de textos de outros autores, sujeitou as fontes a uma análise criteriosa, procurando verificar
qual seria a mais verosímil ou a mais adequada à lógica interna dos factos; verificou também
a verdade destes testemunhos escritos através do seu confronto com documentos oficiaisCOLETIVOS
 Como afirma António José Saraiva (1965), a história que Fernão Lopes tinha de contar era bastante
complexa, pela diversidade da natureza de cenas que deveria incluir. No entanto, o cronista narra os
eventos históricos em causa com enorme mestria, alternando o fio da narrativa com instantâneos
intensamente dramáticos, momentos em que, ao desenvolver situações através do confronto
de personagens (como, por exemplo, no episódio do assassinato do conde Andeiro), mostra ter
características de um verdadeiro dramaturgo.
 Fernão Lopes foi um dos mais fecundos e poderosos criadores de caracteres tanto individuais como
coletivos, vindo, por este motivo, a influenciar poetas, romancistas e dramaturgos de épocas posteriores.

1. Atores individuais
 As personagens individuais criadas por Fernão Lopes são variadas e complexas, sendo devassadas na
sua intimidade por um olhar incisivo.
 Na Crónica de D. João I, três personagens se destacam pelo seu protagonismo: D. Leonor Teles,
o Mestre de Avis e D. Nuno Álvares Pereira.
a) A primeira é caracterizada de forma profundamente negativa, na medida em que é descrita como
objeto de um ódio profundo por parte do povo, sendo, além disso, alvo das acusações do partido que
queria a independência do trono português. Apesar disto, o cronista não oculta a sua grandeza e força,
que lhe permitem manipular figuras masculinas, como D. Fernando, D. João de Castro (filho ilegítimo
de D. Pedro e de Inês de Castro) e o próprio Mestre de Avis, e enfrentar, mesmo após a derrota, o rei de
Castela, recusando-se a ingressar num convento.
b) Quanto ao Mestre de Avis — e ao contrário do que seria de esperar — é caracterizado como um  homem
vulgar, hesitante e vulnerável às fraquezas, como é possível verificar, por exemplo, pelas oscilações no seu
comportamento aquando da conjura contra o conde Andeiro (depois de se mostrar indeciso, adere à conjura,
fugindo em seguida para o Alentejo, de onde regressa quando se apercebe de que a conspiração será
inevitavelmente descoberta). Apesar destes defeitos — que o tornam uma personagem
profundamente realista —, o Mestre de Avis mostra também ser capaz de atos espontâneos de solidariedade, o
que o converte numa figura cativante.
c) Finalmente, Nuno Álvares Pereira é caracterizado num outro registo, sendo convertido num herói
hagiográfico (isto é, com traços de santidade) e, ao mesmo tempo, num grande guerreiro.

2. Atores coletivos
 Nas crónicas de Fernão Lopes, as personagens coletivas (como, por exemplo, a população de Lisboa)
têm um papel ativo e decisivo, determinando o curso dos acontecimentos.
 Com efeito, sempre que é narrado um evento importante, o cronista faz questão de expor o que pensava
dele a opinião pública, como sucede aquando do cerco de Lisboa, momento em que a população da
cidade oscila entre a esperança de que a frota castelhana fosse derrotada e o receio de que os castelhanos
saíssem vitoriosos, exercendo uma vingança cruel sobre os sitiados.
 Esta expressão de sentimentos da coletividade é, por vezes, resumida através de um dito que sai de uma
multidão — como sucede com as cantigas entoadas durante o cerco de Lisboa, que mostram a profunda
determinação dos habitantes da cidade.
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 A importância conferida a uma entidade coletiva nos eventos históricos (como sucede aquando da
derrota dos castelhanos no cerco de Lisboa, cujo mérito é atribuído à população da cidade) torna Fernão
Lopes um cronista único entre os seus congéneres medievais.NSCIÊNCIA COLETIVA
 Na Crónica de D. João I emerge um sentimento coletivo do povo português que se traduz na consciência
de se pertencer a uma mesma nação. A consciência nacional dos portugueses advém, em grande medida,
de temerem a invasão estrangeira (castelhana) e de sentirem a independência do reino e a sua liberdade
ameaçadas durante a Crise de 1383-1385.
 O sentimento nacional afirma-se porque, nessa ameaça, se fortalece a noção de comunidade. O povo de
Lisboa manifesta-se contra a regente D. Leonor e contra a influência estrangeira (cap. 11) e sofre em
conjunto a dureza e as privações do cerco que João de Castela monta à capital (cap. 148). Contudo, são
também portugueses de várias terras e regiões que se mobilizam para preparar a resistência a essa
invasão e que enfrentam o exército castelhano nas batalhas de Atoleiros e de Aljubarrota.
 A ideia de ser português está enraizada na «arraia-miúda» (o povo); mas dela comungam também a
burguesia e a nobreza que se mantém fiel à causa patriótica. De facto, o povo ganha a consciência
coletiva de que tem um papel mais ativo e quer participar na vida política do reino e na condução dos
destinos da nação: intervém para «salvar» o Mestre, mobiliza-se para enfrentar os castelhanos e quer
decidir quem será o próximo rei de Portugal.
 Em termos narrativos, a consciência de grupo e o sentimento nacional são representados através da
noção de personagem coletiva (cf. p. 87), quando se trata da multidão de Lisboa, que revela uma
vontade comum (cap. 11), que se organiza em conjunto para defender a capital (cap. 115) e que sofre em
conjunto o cerco imposto (cap. 148). Mas a enumeração de grupos sociais e profissionais (soldados)
chama a atenção também para o facto de a unidade nacional se fazer a partir da motivação e do empenho
dos grupos que a compõem.
 No plano da escrita da história, a própria Crónica de D. João I contribui, ao mesmo tempo, para
representar o sentimento coletivo vivido durante a Crise de 1383-1385 e para afirmar essa consciência
nacional. A obra foi encomendada pelo rei D. Duarte, filho de D. João I. Um dos objetivos de Fernão
Lopes foi demonstrar o patriotismo dos portugueses e valorizar o papel do Mestre de Avis, fundador da
Casa de Avis, na defesa da independência do reino e na construção do novo  Portugal, que nasce na
segunda dinastia. Fernão Lopes ajuda a legitimar (justificar) o direito de D. João I ao trono do Reino
português. NARRATIVA DE FERNÃO LOPES
 As crónicas de Fernão Lopes testemunham um estádio da língua portuguesa que se costuma classificar
como português antigo e exibem construções sintáticas, expressões e vocabulário com marcas da língua
de um período de amadurecimento. Apesar dos arcaísmos («talente», «aadur», «açalmamento») e de
construções arcaicas («Ca nenhuu˜ por estonce podia outra cousa cuidar»), é claro que a língua
portuguesa já sofreu uma evolução que a distingue dos seus primórdios.
 No texto da Crónica de D. João I, a narração alterna com a descrição e com o diálogo para
incutir vivacidade e energia no relato dos episódios mais relevantes da Crise de 1383-1385. (Não
surpreende que os campos lexicais dominantes sejam o militar e o da realidade social.) Fernão Lopes
consegue criar ritmo e tensão na forma expressiva de narrar os acontecimentos e com a introdução de
discurso direto no relato («— U matom o Meestre?»).
 A vivacidade, o ritmo e a emoção das personagens são também conseguidos  através de características
do discurso como as marcas de oralidade e a simplicidade da linguagem (registo corrente e vocabulário
familiar), os verbos de movimento, os verbos introdutores do discurso («braadar»), as interjeições e as
apóstrofes («Ó Senhor!»). O dinamismo da ação resulta do uso de tempos, formas e aspetos verbais
como o imperfeito do indicativo, o gerúndio e o aspeto durativo. O uso de recursos expressivos é
relativamente parco e pouco vai além da comparação, da metáfora e da personificação.
 As descrições são pautadas pelo forte apelo visual. O narrador desempenha o papel da testemunha dos
acontecimentos; percorre os espaços e caracteriza os lugares, os ambientes e as figuras (indivíduos ou
grupos) que encontra. O uso de verbos associados ao olhar («oolhae», «veede») ajuda a salientar o
visualismo das situações descritas. Por vezes, as sensações visuais são associadas às auditivas (cap. 15).
 Numa técnica semelhante à do cinema ou da reportagem, o narrador percorre os espaços, detendo-se em
figuras individuais ou em grupos, como sucede na descrição do sofrimento do povo de Lisboa (cap.
148). Em colaboração com as outras técnicas anteriormente descritas, assim se consegue criar um
estilo expressivo que põe em destaque pormenores patéticos da situação descrita.

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 Crónica — Palavra derivada do vocábulo grego «chronos» (tempo), é usada na Idade Média e posteriormente
para se referir a uma narrativa histórica em que os acontecimentos são dispostos por ordem cronológica, ou
seja, obedecendo à ordem do tempo. Mais recentemente, o termo «crónica » passou a remeter para um género
de texto jornalístico de opinião sobre assuntos da atualidade.
 Historiografia — Arte de escrever a história; conjunto de obras ou estudos de carácter histórico; estudo crítico
sobre obras acerca da história ou sobre historiadores.
 Ideologia — Conjunto de valores e de crenças que determinam a forma como um indivíduo ou um grupo
veem o mundo. Em Fernão Lopes, vislumbra-se a ideologia nacional.

3. FARSA DE INÊS PEREIRAS E A SUA CARACTERIZAÇÃO


 Inês Pereira: no início da peça, mostra ser indolente, na medida em que não cumpre as tarefas
domésticas. É também sonhadora e romântica, visto que pretende casar não apenas para se libertar da
sua vida, que considera uma prisão sufocante, mas também para ter a seu lado o homem que idealizou.
Finalmente, revela-se rebelde e determinada, dado que não ouve os conselhos da mãe relativamente à
necessidade de se casar com um pretendente com posses, mantendo-se firme na decisão de apenas
desposar um homem que amasse. No entanto, depois de cumprir a sua vontade, casando-se com o
Escudeiro, apercebe-se de que este não passa de um tirano, que a trata cruelmente. Assim sendo,
promete que, se a oportunidade surgir, se há de vingar dos maus-tratos sofridos, escolhendo um marido
que se submeta à sua vontade. O desencanto em relação aos homens leva-a então a aceitar a proposta de
casamento do primeiro pretendente, Pero Marques, aproveitando a sua ingenuidade e ignorância das
regras sociais para lhe impor a sua autoridade e se tornar uma mulher adúltera. Apesar de não ter
conseguido concretizar o sonho de se casar com um homem que amasse, acaba por atingir a liberdade a
que aspirara.
 Mãe: representa a voz da experiência, procurando avisar a filha de que é impossível manter um
casamento sem meios de sustento. Apesar da recusa de Inês em seguir os seus conselhos, acaba por
respeitar a decisão da filha, aceitando o casamento desta com o Escudeiro. Com efeito, mostra-se
generosa ao ponto de oferecer a sua casa aos recém-casados. Pede apenas ao genro que trate
com carinho a filha, o que é revelador do seu amor por Inês.
 Lianor Vaz: é uma alcoviteira, que propõe a Inês casamento com Pero Marques. Após entrar em cena,
narra o encontro que terá tido com um clérigo que a assediara. Os pretextos que avança para explicar a
fraca resistência evidenciada face às investidas desta personagem mostram que é uma figura astuciosa.
Além disso, o seu comportamento em relação ao assédio do homem religioso pode ser visto como uma
forma de dar a entender que Lianor Vaz não era um modelo de virtudes.  Tal como a Mãe, é também a
voz da experiência, procurando persuadir Inês a casar com Pero Marques, dado que ele tinha meios para
se sustentar. Apesar de não ter tido sucesso, mostra a sua determinação, regressando após a morte
do Escudeiro, e acabando efetivamente por conseguir alcançar o objetivo de casar Inês com o
pretendente que lhe recomendara.
 Pero Marques: é um lavrador abastado e, no entanto, grosseiro, ingénuo e ignorante ou, pelo menos,
ignorante das regras sociais. Mostra também ser determinado, uma vez que, apesar da recusa de Inês,
lhe promete que esperará por ela para se casar — objetivo que acaba por atingir. Não passa de um meio
que a protagonista usa para concretizar um dos sonhos que exprimira no início da peça: alcançar a
liberdade.
 Escudeiro: trata-se de um homem fanfarrão e mentiroso, procurando fazer-se passar perante Inês por
alguém muito importante. Além disso, é interesseiro, dado que diz ao Moço que, quando se casar, terá
dinheiro para lhe pagar. O facto de, mesmo após o casamento, continuar a não lhe dar dinheiro denuncia
a sua sovinice. É ainda autoritário, despótico e cruel, como se pode verificar pela forma como trata o
Moço e, após o casamento, pelo modo como humilha e oprime Inês. Finalmente, a sua morte (às mãos
de um pastor, quando fugia da batalha) revela que não passa, no fundo, de um cobarde.
 Moço: tem a função de denunciar a pretensa importância que o Escudeiro se atribui ao apresentar-se a
Inês — deste modo, cria-se um efeito de cómico através do qual é evidenciada a condição miserável de
Brás da Mata, bem como a sua avareza.

 Judeus casamenteiros: têm uma função análoga à de Lianor Vaz, sendo, no entanto, bem-sucedidos na


sua missão de persuadir Inês das virtudes do Escudeiro. Mostram, deste modo, ser astuciosos.
 Ermitão: procura seduzir Inês e propõe-lhe um encontro amoroso; à semelhança do clérigo referido no
início da peça por Lianor Vaz, a personagem representa aqueles que dizem dedicar a vida a Deus e a

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abdicar dos prazeres terrenos, mas que não cumprem o voto de castidade e outras regras inerentes à
sua condição.RUTURA DA AÇÃO
Apesar de esta farsa não estar formalmente organizada em atos nem em cenas, podemos, segundo Paulo Quintela
(1953), dividir a ação do auto em três momentos.
 «Inês fantasiosa»: apresentam-se as ambições e os sonhos de Inês e a recusa do casamento com Pero
Marques, que a protagonista vê como desinteressante e desvantajoso.
 «Inês malmaridada»: Inês casa com o homem que idealizara, mas enfrenta as agruras e a desilusão de
um matrimónio que não corresponde em nada às suas expectativas.
 «Inês quite e desforrada»: Inês volta a casar e o segundo matrimónio traz-lhe a liberdade, o conforto e
até um amante. A jovem está vingada dos maus momentos que passou.
O tempo da ação segue uma linha cronológica mas cortada por elipses (saltos temporais) entre as sequências.
A ação decorre sobretudo em espaços interiores ou contíguos ao lar, o que representa o confinamento de Inês à
área doméstica. Só no segundo casamento a ação sai claramente para o espaço exterior, onde Inês pode gozar a sua
liberdade. A pequena peregrinação final a uma ermida tem fins bem pouco religiosos.MAS
A temática da Farsa de Inês Pereira relaciona-se sobretudo com questões sociais da época gil-vicentina, embora
alguns do temas tratados sejam intemporais.
 A duplicidade é, segundo Adrien Roig, o tema central do auto. A maioria das personagens pretende
aparentar ser algo que não é. De facto, a dissimulação e a hipocrisia caracterizam figuras que
representam diferentes grupos sociais. O Escudeiro quer passar-se por valente, «distinto» e galanteador,
mas acaba por se revelar cobarde, fraco, pelintra e autoritário com Inês. O Clérigo e o Ermitão,  que
deviam ser celibatários e viver uma existência contemplativa, revelam ser licenciosos. Lianor quer
fazer-se passar por honrada e virtuosa, mas a sua concupiscência vem à superfície no relato da tentativa
de sedução do clérigo.
 O tema anterior liga-se ao da dissolução dos costumes: a viragem da Idade Média para o Renascimento
traz consigo uma nova mentalidade, originada em circunstâncias como o enfraquecimento do domínio
da nobreza, a ascensão da burguesia e a questionação das doutrinas e das práticas da Igreja. Na farsa,
assistimos a consequências desta nova realidade: a ambição de ascender socialmente, a valorização
excessiva do dinheiro, o desrespeito pelas regras religiosas, a decadência dos modelos de
comportamento da corte e a perspetivação do casamento como um negócio.
 A condição feminina é outro tema da obra. A mulher da Idade Média e do início do Renascimento vê a
sua liberdade e os seus direitos limitados pela lei e pelas condições sociais. Inês Pereira protagoniza esse
problema, e a insatisfação da personagem ao longo de grande parte da peça advém das circunstâncias
em que se encontra e decorrem do estatuto social da mulher: vive submissa, sob a autoridade da mãe ou
do marido, com a liberdade limitada e direitos sociais cerceados. Mas o problema estende-se a outra
figura feminina, Lianor Vaz, que é alcoviteira por não ter outra forma de subsistência.
 O casamento é outra questão que marca presença na temática deste auto. Na perspetiva de Inês, o
casamento é a oportunidade para concretizar o seu projeto de vida: ter um marido «discreto», ascender
na escala social e libertar-se da condição em que vivia. No entanto, o primeiro matrimónio, contraído
com o Escudeiro sob o signo da ilusão e do embevecimento, coloca-a sob o domínio de um marido
autoritário e confina-a, de novo, ao espaço doméstico. O segundo casamento, com o ingénuo e abastado
Pero Marques, é contraído com um grande sentido prático: Inês encontra liberdade de atuação, poder de
decisão e conforto económico.
 Se a relação mãe-filha é um tema intemporal, neste auto ela é condicionada pelas regras sociais da
época. Inês vive na dependência e sob a autoridade da mãe e a perspetiva de um casamento que lhe
trouxesse algum estatuto e independência encontra vários obstáculos. A relação entre Inês e a Mãe é
pautada ora por momentos de conflito e tensão ora por gestos de apoio e afeto, como vemos
na preocupação da progenitora e nos conselhos que dá à filha sobre a escolha de um marido. NA
FARSA DE INÊS PEREIRA
Os autos de Gil Vicente têm uma função edificante, isto é, procuram reformar os costumes, corrigir os
comportamentos sociais e a atuação das instituições. Em toda a produção gil-vicentina, é nas farsas que a crítica social
é mais forte e acutilante. Podemos, pois, aplicar aos dramas deste autor o lema latino ridendo castigat mores: a rir se
corrigem os costumes.
Na Farsa de Inês Pereira, para empreender a sátira social, Gil Vicente recorre a diferentes processos, como a
caracterização direta e indireta, a ironia, o cómico, a caricatura. Os grupos sociais e os seus comportamentos
condenáveis são denunciados sobretudo a partir de personagens-tipo, que os representam:

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 Pero Marques é o rústico, o «vilão». A personagem representa à primeira vista a ingenuidade,
ignorância e a rudeza daqueles que então viviam em zonas rurais. No entanto, enquanto vítima de Inês,
Pero passa a veicular a denúncia da arrogância, da presunção urbana. Mas Pero é um «lavrador
abastado», que sabe gerir economicamente a sua vida. A personagem representa assim o mundo rural
face a um mundo citadino que se desenvolve com a burguesia, e que tem outras regras de convivência.
 O Escudeiro é membro de um grupo social que se relaciona com a nobreza e pode frequentar a corte.
Daí vêm a sua presunção e as aspirações sociais: os escudeiros copiavam os modos da nobreza e
concebiam-se acima dos membros do povo. Porém, como sucede com Brás da Mata, não eram
frequentemente pessoas com recursos financeiros. Acusa-se também os escudeiros de serem fanfarrões,
mas, no íntimo, cobardes e fracos.

Lianor Vaz e os Judeus casamenteiros pertencem ao grupo dos alcoviteiros, pessoas que serviam como intermediárias
em relações amorosas e matrimoniais. Denunciam-se nesta peça a hipocrisia com que encaram o amor e o casamento e
com que promovem casamentos de conveniência a troco de dinheiro. Lianor é, ela própria, uma mulher licenciosa; e
os Judeus casamenteiros, figuras típicas do drama medieval ibérico, são vistos da forma como se olhavam os
indivíduos do grupo étnico judaico: avaros e interesseiros.
 O Clérigo e o Ermitão são as duas figuras religiosas que surgem na peça. O primeiro procura seduzir à
força Lianor Vaz e o segundo conquista sentimentalmente Inês Pereira e leva-a a praticar o adultério.
Nenhum dos dois cumpre, portanto, os seus deveres celibatários. Podemos ver nestes dois tipos uma
condenação das práticas licenciosas dos membros do clero e dos que se diziam entregues à
vida espiritual e a Deus (o Ermitão).
 Inês Pereira é uma figura que, por ter alguma complexidade psicológica, não é personagem-tipo. Ainda
assim, os seus comportamentos representam aspirações e estereótipos da jovem do fim da Idade Média.
Inês sente-se aprisionada na sua condição de mulher, submetida ao domínio da Mãe ou do marido, mas
com sonhos de liberdade.NGUAGEM E ASPETOS FORMAIS
O português que encontramos na obra de Gil Vicente é uma língua em transição entre o português antigo e o
clássico. Daí a presença de arcaísmos medievais («samicas», «ieramá», «senhos») a par de inovações renascentistas
(«esgravatado», «sáfio», «gracejador»). A riqueza linguística dos autos deste dramaturgo reside no leque de variantes
sociais e de outros tipos de registos que neles encontramos. Segundo Paul Teyssier, na Farsa de Inês
Pereira sobressaem as linguagens dos rústicos (Pero corrompe a forma de algumas palavras e a estrutura frásica), dos
Judeus (com as suas fórmulas hebraicas) e das comadres (a Mãe e Lianor). Mas também marca presença na peça o
discurso «galante» e mais elaborado do Escudeiro, que copia as fórmulas que ouve na corte, e até a língua
castelhana, o idioma em que o Ermitão se exprime. Os diferentes registos linguísticos articulam-se bem com as várias
figuras e com o seu estatuto social e servem de modo de caracterização.
Outra característica do discurso das personagens é a sua coloquialidade, ou seja, a capacidade de representar a
linguagem oral. E se, aparentemente, esse deve ser um traço distintivo do teatro, muitos dramas (de linguagem mais
estilizada) não têm a pretensão de o fazer. Assim, na Farsa de Inês Pereira, destaca-se o papel que têm as expressões
populares, os provérbios, as interjeições e as réplicas para se obter o efeito de coloquialidade. A vivacidade e a fluidez
do discurso aumentam nos momentos de comicidade, para os quais contribuem a ironia e o sarcasmo.
Formalmente, a Farsa de Inês Pereira é um texto dramático escrito predominantemente em versos de sete sílabas
ou redondilha maior, uma métrica de cariz popular. Os versos tendem a agrupar-se em estrofes de nove linhas (nonas),
mas outras formas estróficas aparecem pontualmente ao longo do texto (quadras, sétimas, etc.). Se a regularidade não
é absoluta na estrofe, também não é, consequentemente, na rima. No caso das nonas, o esquema rimático dominante
é abbaccddc.Glossário
Adereço: objetos que, regra geral, um ator transporta ou enverga quando representa uma personagem, como,
por exemplo, uma espada, duas lousas, etc.
Aparte: fala de uma personagem que consiste geralmente num pensamento ou num comentário que é dirigido
ao público para as demais personagens em cena não o ouvirem.
Auto: designação abrangente dada a peças teatrais breves que se configuram como diferentes géneros dramáticos
de origem medieval: farsas, moralidades, milagres, autos de «devoção» e autos profanos.
Caricatura: representação de uma personagem ou de uma situação através de características e traços físicos e
psicológicos exagerados e deformadores; Pero Marques e os Judeus casamenteiros são caricaturas na forma
distorcida como retratam o seu grupo social.
Coloquial: tipo de discurso que pretende representar a linguagem oral.

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Cómico: qualidade estética que recorre a processos compositivos e estilísticos suscitadores do riso e da
comicidade. Podem distinguir-se vários tipos de cómico — de carácter (associado a uma personagem), de situação ou
de discurso —, que podem desencadear o riso e estão frequentemente ao serviço da função crítica.
Didascália: indicação cénica com informações sobre o cenário, o vestuário das personagens, o seu comportamento,
etc.
Drama: termo que, num sentido alargado, assume o significado de peça de teatro. Refere-se, regra geral, ao
conjunto de textos com características para serem encenados e que tem como enunciadores apenas as personagens que
dialogam entre elas; só em casos muito específicos têm narrador.
Farsa: cf. Para saber mais, da página 110.
Ironia: cf. Recursos expressivos, na ficha 15.
Personagem-tipo (ou tipo): personagem que representa um grupo social e as características atribuídas a esse grupo;
Lianor representa as alcoviteiras, Brás da Mata, os escudeiros, etc.
Sátira: tipo de texto literário em que se analisam e criticam costumes e comportamentos típicos de uma
sociedade, recorrendo a processos como o cómico, a ironia, etc.
Teatro pré-vicentino: conjunto de manifestações teatrais encenadas antes da obra de Gil Vicente e do qual
constavam géneros como os momos, as moralidade, os entremeses, etc. (cf. Para saber mais, na página 117).

4. CAMÕES LÍRICOMA DO AMOR


1. A representação da amada
Segundo António José Saraiva (1980), na lírica camoniana, temos dois tipos de mulher:
 a mulher petrarquista;
 o ideal de Vénus.
A mulher petrarquista
 O ideal da mulher como ser superior que é servido pelo amado numa relação em  que se reproduzem
as relações vassalo/suserano estava já presente na poesia provençal e nos romances de cavalaria.
 No entanto, no Renascimento, este ideal feminino será desenvolvido e investido de maior riqueza
psicológica por Petrarca, ao cantar Laura, expoente do amor «elevado». Apesar de fazer referência à
beleza inefável de Laura, bem como aos seus cabelos louros, a verdade é que Petrarca a caracteriza
como um ser sem corpo visível, no qual se destacam, acima de tudo, a gravidade, a harmonia e
a serenidade. Esta figura feminina existe assim numa dimensão etérea, sendo que a idealização das suas
qualidades psicológicas a coloca num plano inacessível ao amado.
 A mulher petrarquista permitiria ao amado elevar-se através de um sentimento amoroso de dimensão
exclusivamente espiritual.

O ideal de Vénus
 A figura feminina associada ao ideal de Vénus é corporizada na obra camoniana tanto por esta deusa,
como por Tétis e pelas diversas ninfas.
 Ao contrário de Laura, estas figuras femininas têm corpos de contornos definidos e palpáveis,
caracterizando-se por uma profunda sensualidade.
 Surgem muitas vezes em ambientes naturais de carácter luxuriante, cuja vitalidade está em sintonia com
o esplendor das suas formas corporais voluptuosas.
 O ideal de Vénus corresponde, assim, à exaltação da dimensão sensível e terrena do amor, na medida
em que a sua evocação permite ao Homem libertar-se das convenções sociais em que se encontra
encarcerado e deixar-se levar pela espontaneidade e harmonia da natureza.

Do que anteriormente foi exposto, é possível concluir que na lírica camoniana temos, frequentemente, uma
reflexão sobre a contradição entre a mulher petrarquista e o ideal de Vénus, algo que está associado aos sentimentos
contraditórios que perpassam a poesia de Camões no que toca ao sentimento amoroso.
2. A experiência amorosa e a reflexão sobre o amor
A reflexão sobre o amor
Segundo Maria Vitalina Leal de Matos (1980), a reflexão sobre o amor na lírica camoniana oscila entre dois polos:
a) conceito de amor fortemente marcado pela sensualidade;
b) conceito de amor depurado, reduzido a manifestações espirituais.
 No primeiro caso, o sujeito poético compraz-se em descrever a mulher e em fazer referência à sedução,
sem qualquer sentimento de pecado.

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 A sensualidade é, assim, associada à beleza, sendo a mulher objeto do desejo descrita com delicadeza e
cortesia — desta forma, a volúpia que esta desperta não exclui um sentimento de reverência
maravilhada («Naquele tempo brando»).
 No entanto, este conceito de amor é associado a figuras mitológicas e a locais utópicos, pelo que é
possível considerar que, na realidade, é visto como uma ficção cuja concretização é impossível.
 No segundo caso, o sujeito poético parece ter apenas olhos (o mais intelectual  dos sentidos). A figura
feminina é agora descrita sem traços de sensualidade, sendo investida de contornos angelicais, tal como
sucedia no petrarquismo.
 Influenciado pelo platonismo, o sujeito poético procura libertar-se da tirania dos sentidos, valorizando
a distância em relação à amada — na medida em que esta lhe permite sublimar o sentimento
amoroso («Pode um desejo imenso»).
 Desta forma, o amor é visto como uma forma de elevação a nível espiritual.
 No entanto, este conceito de amor tem também outra vantagem: segundo Maria Vitalina Leal de Matos
(1980), na realidade, a lírica camoniana é marcada não pelo desejo da amada mas pelo desejo do próprio
amor (o amor do amor, associado ao amor-paixão). Assim, a figura feminina passa a ser vista apenas
como um objeto secundário — um meio para o sujeito poético atingir o estado de exaltação amorosa a
que, acima de tudo, aspira. Neste sentido, todos os obstáculos que se interpusessem entre o amador e a
amada contribuiriam para manter a insatisfação e, consequentemente, para perpetuar o sentimento
amoroso.
A experiência amorosa
 A experiência amorosa na lírica camoniana entra em conflito com a reflexão sobre o amor anteriormente
exposta.
 Em primeiro lugar, a saudade — vista no platonismo como condição de aperfeiçoamento —, passa a ser
vivida como uma carência insuportável («Vinde cá, meu tão certo secretário»).
 Além disso, o sujeito poético distancia-se da exaltação da sublimação do desejo amoroso, não
conseguindo reprimir a sua insatisfação («Transforma-se o amador na cousa amada») nem o desejo, que
irrompe com violência («A instabilidade da fortuna»).
 O sofrimento deixa de ser encarado como uma forma de perpetuar o sentimento amoroso, passando a ser
visto como um mero suplício.
 Por último, a inquietação associada à experiência amorosa é adensada pelo sentimento de culpa,
associado à derrota da razão e da vontade perante a sedução do amor.

Concluindo, o amor na lírica camoniana configura-se como um círculo vicioso: ao ideal, sucede-se a experiência e
a inevitável desilusão. Apesar do desfecho negativo, o sujeito poético compraz-se continuamente na criação de
ilusões, pelo que este círculo se repete indefinidamente.

3. A representação da natureza
 A representação da natureza na lírica camoniana surge sobretudo associada às temáticas do amor e
da representação da mulher amada.
 Relativamente a estes temas, é de destacar a influência do «locus amoenus», topos que influenciou a
lírica camoniana não apenas através da poesia bucólica de Virgílio (século I a. C.).
 Esta expressão latina designa uma paisagem ideal, marcada pela fertilidade, pela variedade cromática,
pela suavidade dos odores e pelo carácter melodioso dos sons — paraíso terrestre no qual seria possível
ao Homem viver em plenitude.
 Temos assim um espaço propício ao amor, cuja vitalidade vem realçar a beleza das figuras
femininas que nele se enquadram — desde a donzela que se dirige à fonte («Descalça vai para a fonte»)
até à figura sensual que, recortada sob o molde de Vénus, exibe as suas formas voluptuosas («Naquele
tempo brando»).
 Por vezes — e tal como sucedia na poesia trovadoresca —, este espaço harmonioso assume a função
de confidente do eu («Verdes são os campos»).
 Contudo, em determinados poemas («Alegres campos, verdes arvoredos», «A fermosura desta fresca
serra»), a natureza idílica surge como contraponto ao estado de espírito do sujeito poético: a sua saudade
da amada é tão intensa e a sua melancolia tão profunda que nem esta paisagem paradisíaca lhe permite
recuperar a serenidade.
 A natureza pode também ser associada ao tema da mudança («Mudam--se os tempos, mudam-se as
vontades»). Neste caso, demonstra-se que a mudança no cenário natural está associada à passagem das

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estações, sendo, portanto, cíclica; em contrapartida, as alterações que se manifestam na vida do
sujeito poético são irreversíveis e configuram um percurso claramente negativo.ESCONCERTO
 Na lírica de Camões, a ideia de desconcerto refere-se à desordem do mundo e à falta de harmonia que se
instalou na relação entre os homens e até no interior de cada indivíduo.
 Esse desconcerto é, sobretudo, moral, social e existencial: a ordem dos valores e a lógica do mundo
estão invertidas. O mundo está «às avessas».
 Algumas manifestações desse desconcerto são: as incoerências entre os princípios que se defendem
(cristãos, éticos, políticos, etc.) e os comportamentos assumidos em sociedade; as injustiças da vida em
comunidade, em que o mérito e a virtude não são recompensados, mas a mediocridade e a desonestidade
são bem sucedidas («Esparsa sua ao desconcerto do mundo»); a aspiração ao amor e a infelicidade que
ele traz porque se revela irrealizável.
 O Poeta (figura que representa o conjunto dos sujeitos líricos da poesia de Camões) lamenta-se de ser
vítima deste desconcerto. A sua vida sofre com esta desarmonia, mas a desordem também é sentida
interiormente: o Poeta não é feliz no amor, enfrenta a miséria e outras dificuldades; os seus dias são
tumultuosos e a desorientação abate-se sobre ele.
 O Poeta vive em estado de conflito interior, angústia e desilusão e encontra dois responsáveis pela
desordem: ele próprio e o destino (o Fado, a Fortuna). Como os homens são corresponsáveis pela
desordem do mundo social, assim ele é pelas contrariedades da sua vida, porque errou, infringiu regras e
se entregou aos excessos, sobretudo do amor («Erros meus, má fortuna, amor ardente»). Mas, segundo o
Poeta, também o Destino o persegue, conspira contra ele e consegue trazer mais adversidade e
infelicidade à sua vida.
 Face a este problema, o Poeta assume atitudes marcadas pelo ceticismo: fica profundamente angustiado,
revolta-se e torna-se iracundo («O dia em que nasci moura e pereça»), embora tente compreender a
razão por que o Destino o persegue. Contudo, em muitos casos acaba por se conformar com a sua
situação («Esparsa sua ao desconcerto do mundo»)
 Na poesia de Camões, o tema da mudança associa-se ao do desconcerto e à questão do destino.
 A natureza e o mundo mudam de forma previsível: o mundo natural definha e regenera-se, as estações
sucedem-se, a vida parece funcionar por ciclos. Os períodos de enfraquecimento e decadência são
sempre superados pela renovação e pelo ressurgimento.
 Os homens e as suas vidas não funcionam do mesmo modo. A sua existência é instável e a condição
humana é frágil e vulnerável. Como a lírica de Camões demonstra, o tempo muda as vidas de forma
imprevisível e quase irracional.
 O tema da mudança centra-se na figura e na existência do Poeta. A mudança tem sempre consequências
negativas: nunca se muda para melhor. No passado o Poeta pode ter conhecido a harmonia e o
contentamento («Eu cantei já, e agora vou chorando»). Mas a satisfação e o equilíbrio perderam-se, e o
que era bom torna-se mau.
 A vida é, neste esquema, marcada pelo declínio, pelo infortúnio e pela adversidade: «Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades».
 Face a esta situação, o estado de espírito do Poeta é, de novo, de angústia e de revolta.
Consequentemente, acaba por assumir uma atitude de ceticismo e descrença porque sabe que não pode
alterar a ordem das coisas.

REFLEXÃO SOBRE A VIDA PESSOAL


 Pelo que foi anteriormente enunciado, podemos depreender que, na lírica camoniana, o sujeito poético
configura o seu percurso existencial como um trajeto marcado pelo sofrimento, pela angústia e
pela inquietação.
 No que diz respeito ao amor, como verificámos, não é possível ao sujeito poético viver na prática
nenhum dos seus ideais: o amor sensual apenas pode ser vivido em plenitude num plano utópico e
o amor de contornos petrarquistas não se coaduna com o desejo que domina o eu, impedindo-o de dar
primazia à razão e de sublimar os seus sentimentos.

 À permanente desilusão amorosa vem associar-se outro elemento que contribui decisivamente para a
desdita do sujeito poético: um destino cruel, entidade poderosa e malévola, que condena todas as suas
esperanças ao malogro. A sua omnipresença contamina todas as mudanças, atribuindo-lhes um sentido
negativo.
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 Deste modo, ao refletir sobre a sua vida pessoal, o sujeito poético vai mergulhando progressivamente
num profundo desencanto, que o leva a coibir-se de alimentar mais esperanças ou a mostrar a sua
perplexidade e revolta perante o profundo sofrimento que lhe é infligido pelo destino.
 Estas interrogações do sujeito poético em relação ao que está na origem da sua infelicidade levam-no
também a olhar em seu redor, questionando o próprio desconcerto do mundoUAGEM
1. Estrutura: formas poéticas e métrica
Camões cultiva estruturas poéticas provenientes de duas tradições: uma com origem na Península Ibérica e que
recorre a uma forma designada «medida velha»; e outra proveniente de Itália, que usa a «medida nova».
Medida velha
 A expressão «medida velha» refere-se às formas da poesia palaciana portuguesa e espanhola do século
xiv e início do xv, que se encontram bem representadas no «Cancioneiro Geral» de Garcia de Resende e
noutras coletâneas da época.
 As estruturas métricas de eleição desta tradição são a redondilha maior (versos  de sete sílabas métricas)
e a redondilha menor (cinco sílabas), que encontramos, respetivamente, nos poemas «Descalça vai para
a fonte» e «Se Helena apartar», de Camões.
 A estas métricas estão associadas formas poéticas da tradição peninsular como a cantiga, a trova, a
esparsa («Esparsa sua ao desconcerto do mundo»), as endechas («Endechas a Bárbara escrava»).
Camões usou estes tipos de poesia lírica glosando motes seus ou de outros (por exemplo, em «Perdigão
perdeu a pena, / não há mal que lhe não venha.»).
Medida nova
 A medida nova reúne os tipos de métrica de influência italiana do dolce stil nuovo importados para
Portugal no século xvi, sobretudo o metro de dez sílabas (decassílabo), mas também, embora menos
comum, o de seis (hexassílabo).
 À medida nova estão associadas formas poéticas de origem italiana ou inspiradas em géneros greco-
latinos, que Sá de Miranda e António Ferreira introduziram em Portugal: o soneto, a canção, a écloga, a
ode, a elegia são certamente as mais importantes.
 Camões cultiva com mestria e brilhantismo o soneto. Escreve mais de duzentos sonetos e sente que este
é o modelo lírico ideal para debater uma ideia ou desenvolver uma reflexão em registo lírico sobre os
temas centrais da sua obra («Amor é um fogo que arde sem se ver» ou «Mudam-se os tempos, mudam-
se as vontades »). Em alguns deles, Camões pode estar a representar artisticamente acontecimentos e
ânsias da sua vida pessoal.
 A canção revela-se uma forma mais intimista, também ela adequada à reflexão e ao ato confessional,
como se pode constatar, por exemplo, na Canção X.
 Outros géneros renascentistas em que Camões compõe, alguns recuperados das literaturas clássicas, são
as éclogas, as elegias, as odes («Pode um desejo imenso»).
2. Estilo e linguagem
 O estilo de Camões na poesia lírica alcança uma elevada elegância e um grande virtuosismo, que se
conseguem pela criação de um ritmo gracioso e vivo e pelo uso expressivo de recursos estilísticos.
 António José Saraiva (1980) identifica dois estilos distintos na lírica de Camões: o estilo engenhoso e o
estilo clássico.
 O virtuosismo verbal do Poeta é uma recuperação do estilo engenhoso da poesia tradicional
do Cancioneiro Geral. Camões joga brilhantemente com as palavas para assim jogar com as ideias.
Numa prática de malabarismo verbal, recorre ao trocadilho, à antítese e à metáfora para falar sobre o
amor mas também sobre o infortúnio («Perdigão perdeu a pena»).
 Ainda neste estilo engenhoso, cria imagens expressivas, muitas delas com grande apelo sensorial (ou
seja, dos sentidos): «Pretidão de amor», «despejo quieto». Noutros casos, substantiva, coisifica, alguns
atributos e qualidades: «mãos de prata», «cabelo de ouro» (e não cabelo louro).
 Muitas das imagens, metáforas e comparações deste estilo remetem para elementos naturais («Verdes
são os campos»). Aliás, a presença do campo lexical de natureza é muito forte na poesia de Camões.
 Encontramos na lírica camoniana um outro estilo: o estilo clássico. Este caracteriza-se por recorrer a
uma linguagem mais abstrata e por ser mais propício a debater ideias («Mudam-se os tempos, mudam-se
as vontades»). Trata-se de um discurso em que o Poeta parece «virar-se para dentro» e simula
representar o pensamento.

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 Como sucede com o estilo engenhoso, também no clássico se explora a alteração da ordem natural dos
constituintes da frase (hipérbato e anástrofe) e se recorre, quando necessário, a termos e a conceitos
latinos: «Fado», «Fortuna», «pena», «graça».
Do que foi exposto se depreende que, em ambos os estilos, Camões investe fortemente nos recursos retóricos e,
não raro, numa linguagem erudita. Mais ainda, o Poeta foi responsável pela introdução de novos vocábulos na língua
portuguesa, como «canoro», «etéreo», «fatídico», etc.
Cantiga: forma poética breve de medida velha constituída por um mote de quatro ou cinco versos e por uma glosa
que o desenvolve, uma estrofe de oito ou dez versos.
Desconcerto: ideia de desordem e de desacerto na sociedade (e no interior do Poeta) — os princípios não
correspondem ao comportamento, e a injustiça, a incongruência e o absurdo caracterizam o estado do mundo.
Endechas: formas poéticas de medida velha, que, na lírica camoniana, se organizam em cinco oitavas (estrofes de
oito versos) e com verso de redondilha menor, segundo o esquema rimático abbacbbc.
Esparsa: forma poética sem mote, constituída por uma estrofe única cuja extensão não é geralmente inferior a oito
nem superior a doze versos de redondilha.
Medida nova e medida velha: cf. Sistematização de conhecimentos, na página 171.
Redondilha: tipo de métrica de medida velha — redondilha menor designa versos de cinco sílabas métricas; e
redondilha maior, versos de sete sílabas.
Soneto: forma poética de medida nova composta por catorze versos decassilábicos (de dez sílabas). Não há um
esquema rimático fixo nos sonetos camonianos, mas a organização abbaabbacdecde é recorrente (as variantes
encontram-se sobretudo nos tercetos).
Vilancete: forma poética breve de medida velha, que se organiza em duas partes: um mote de dois ou três
versos, frequentemente de outrem, e glosas de estrofes de sete versos (sétimas, setilhas ou heptetos).
Petrarquismo: movimento literário italiano que surgiu no século xv e se prolongou até ao século xvii. Tinha por
base a poesia lírica de Petrarca (1304-1374), sobretudo Il Canzoniere (O Cancioneiro), consistindo na imitação da sua
forma de abordagem da temática amorosa (segundo a qual o amor deveria ser sublimado, levando à elevação a nível
espiritual) e da sua linguagem poética.

Página 14 de 215. OS LUSÍADAS, DE LUÍS DE CAMÕESIO ÉPICO


1. A matéria épica: feitos históricos e viagem
 Os Lusíadas (ou seja, os Portugueses) é o título do poema épico de 1572 que narra e comemora os
grandes momentos da história de uma nação. Os feitos realizados no passado revelam a excecionalidade
deste povo. Sendo todas as épocas da sua história admiráveis, o momento áureo foi o período dos
Descobrimentos marítimos.
 Por esse motivo, Camões decide fazer da emblemática viagem de Vasco da Gama à Índia o assunto da
ação principal da sua epopeia: o mar foi o lugar de provação dos marinheiros, que mostraram o seu valor
extraordinário enfrentando perigos imensos (no poema, até a oposição de alguns deuses) e realizando
uma proeza histórica. Mas esta expedição individual alude a toda a iniciativa das Descobertas.
 No entanto, antes das grandes navegações, o povo português já tinha provado a sua superioridade. Fê-lo
através das armas: sendo uma nação pequena derrotou adversários poderosos e conquistou um território
alargado. Mas mostrou-se também digno pela sua honra, pela grandeza de carácter e pelo serviço
prestado à fé, à Pátria e à cultura (por poetas e homens de saber). Como o poema é sobre os
Portugueses, Camões apresenta toda a história deste povo no longo relato de Vasco de Gama ao rei de
Melinde e noutros momentos do texto (cf. Os planos d'Os Lusíadas, na página 222).
 A História de Portugal e, dentro dela, as Descobertas marítimas são de tal forma extraordinárias e
gloriosas que dão matéria para o mais nobre dos géneros literários: a epopeia.
 Em contraste com as epopeias anteriores, clássicas e modernas (Ilíada, Odisseia, Eneida, Orlando
Furioso), cujas narrativas eram mitológicas ou lendárias, o conteúdo d'Os Lusíadas é verdadeiro. Com
algumas exceções, este poema épico é o primeiro a tratar os acontecimentos históricos, verídicos, do
passado de um povo. Tal facto salienta ainda mais a natureza singular dos Portugueses e da obra.

2. A sublimidade do canto
 Sendo um poema épico, que celebra a grandeza de um povo, Os Lusíadas recorre  a um estilo nobre e
sublime e a um tom elevado para elogiar a ação dos heróis.
 São as palavras da poesia a matéria usada para glorificar os feitos admiráveis dos Portugueses. Elas têm
o poder de os valorizar, mas também de os divulgar por todo o mundo e de os registar para a

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posteridade. O poema imortaliza os heróis portugueses e as suas proezas porque perpetuarão a sua fama
na memória da humanidade.
 Mas a epopeia enaltece outros aspetos admiráveis da História de Portugal e das Descobertas marítimas.
No quadro de ideias do Renascimento, o canto celebra o Homem, que vence os seus limites e se supera,
mas também celebra o saber e o encontro entre culturas que a expansão portuguesa proporciona.
Festeja-se ainda a própria poesia, que permite esta celebração, e o amor: conhecer, aperfeiçoar-
se, relacionar-se com o Outro (outros povos) e poetar são atos de amor.
 Se as vitórias militares e os triunfos no mar pedem um discurso épico para os narrar («tuba canora e
belicosa»), outros momentos, como o amor de Pedro e Inês de Castro ou a reflexão sobre a fragilidade
humana (Canto I, est. 105-106), são tratados em registo lírico, o registo adequado para tirar partido do
poder das palavras para exprimir sentimentos e ideias tão humanos.
 Camões crê que, se o canto e a palavra conseguem engrandecer o passado,  devem também poder
contribuir para melhorar o futuro. A época em que o Poeta vive já não é o período glorioso dos
Descobrimentos: Portugal está em decadência. Mas Camões crê que Os Lusíadas tem um valor
didático e propõe um conjunto de valores cívicos, éticos e culturais que servem de orientação para fazer
um país melhor (cf. Reflexões do Poeta, nas páginas 223-224). O Poeta chega a dar conselhos de
governação ao rei.

3. Mitificação do herói
 Segundo os códigos do género épico, o herói é uma figura de excelência. Oriundo de uma estirpe nobre,
distingue-se pelo mérito e pelos seus valores e realiza feitos extraordinários.
 Como o título Os Lusíadas sugere, o herói central da epopeia de Camões é coletivo: trata-se, como antes
vimos, do povo português, que, ao longo da sua história, realizou obras excecionais. Alguns autores
veem Vasco da Gama como o herói individual da epopeia: a personagem é certamente o protagonista do
plano narrativo da viagem; porém, podemos questionar se Gama tem o brilhantismo e o carácter de
exceção necessários para assumir este estatuto.
 Na verdade, mais do que identificar um herói, o poema de Camões define um modelo de heroísmo. O
herói corresponde a um ideal humano. Ascende a este estatuto aquele que, pelo mérito, pelas suas
virtudes e pelos atos realizados, ultrapassa a sua condição de homem e se eleva a um plano superior. (As
reflexões do Poeta ajudam a traçar o modelo de herói.)
 A noção de herói define-se nos domínios ético, cívico, intelectual e militar. Caracteriza-se pois também
pelas causas que serve. O herói está ao serviço do rei, de Deus e da sua comunidade. Bate-se por ideais
importantes e nobres e menospreza os valores mundanos do dinheiro e do poder.
 Na definição de heroísmo d'Os Lusíadas confluem ideais renascentistas e medievais. No quadro do
Humanismo, que crê nas capacidades e na liberdade do ser humano, o herói é aquele que se revela uma
figura de exceção pelo seu mérito e por defender valores cívicos, morais e culturais — os artistas, os
pensadores e os cientistas podem alcançar este estatuto. Na aceção medieval, intervêm a vertente
guerreira do herói, a sua genealogia, a coragem, o serviço ao rei, à pátria e à religião.
 Na epopeia de Camões, os heróis ultrapassam provações, em terra (em campanhas militares) e no mar, e
realizam atos admiráveis. Os portugueses rivalizam com os deuses e saem vencedores neste confronto.
A glória que alcançam traduz-se na imortalização do seu nome e da sua fama: o herói supera, pois, a
condição de homem comum. Por isso os navegadores são metaforicamente divinizados na sua união
com as ninfas na Ilha dos Amores — tornam-se, deste modo, iguais aos deuses.E EPOPEIA
 A epopeia é um poema narrativo extenso em que são, em geral, tratados acontecimentos mitológicos,
lendários ou históricos e ações heroicas, fundamentais para a constituição da identidade de um povo. A
narração dos eventos é feita de forma laudatória, de modo a causar admiração no leitor, não só pela
grandiosidade das ações realizadas como pela nobreza de espírito dos heróis.
 O protagonista da epopeia apresenta algumas afinidades com os deuses ou os heróis mitológicos, na
medida em que pretende elevar-se acima da sua condição humana e impor-se como um ser superior, de
qualidades excecionais, capaz de realizar feitos extraordinários. Assim, assume-se como um paradigma
de atuação para os leitores.
 Com base na Poética de Aristóteles, foram definidas as características da epopeia:
— A ação deve ser una e íntegra, devendo apenas incluir os factos e detalhes essenciais. No entanto,
considera-se como essencial o recurso ao maravilhoso, dado que este elemento confere grandeza à ação e
transpõe a verdade histórica para a dimensão do mito.

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— O poema deve ser dividido em Proposição, Invocação, Dedicatória — que, porém, não existia nas
epopeias mais antigas (até à latinidade tardia) — e Narração (cf. Estrutura interna, na página 219). A Narração
deve iniciar-se in medias res, isto é, a meio da ação, sendo os acontecimentos anteriores e posteriores narrados
através de analepses e prolepses, respetivamente.
— O estilo é sempre elevado, correspondendo à grandiosidade dos feitos narrados.
 Nas epopeias literárias, o Poeta apresenta-se como o fiel intérprete dos sentimentos coletivos. Na
generalidade, as epopeias literárias surgem em momentos de apogeu dos povos ou quando começam a
manifestar-se os primeiros indícios de declínio de um processo épico de grande importância histórica.
Neste caso, a obra é muitas vezes marcada pela insatisfação decorrente da corrupção dos costumes  e
pela necessidade imperiosa de se revalorizar o ideal heroico que conduziu aos momentos de glória
cantados.ESTRUTURA DA OBRA
1. Estrutura externa
 A epopeia Os Lusíadas é composta por dez cantos. O número de estrofes de cada canto não é regular
mas ronda a centena.
 Todas as estâncias são oitavas, isto é, têm oito versos.
 Os versos são decassilábicos (têm dez sílabas métricas), sendo, na sua maioria, heroicos (acentuados na
sexta e na décima sílabas).
 Todas as estâncias têm o mesmo esquema rimático: abababcc, sendo, portanto, a rima cruzada nos seis
primeiros versos e emparelhada nos dois últimos.

ESTRUTURA DA OBRA
2. Estrutura interna
Como é preconizado pelas regras da epopeia clássica, a obra divide-se em quatro partes:
 Proposição — o Poeta explicita aquilo que se propõe a cantar. N'Os Lusíadas, é constituída pelas
estâncias 1 a 3 do Canto I.
 Invocação — o Poeta pede inspiração para compor a sua epopeia. Na obra de Camões, temos vários
momentos de invocação:
— no Canto I (estâncias 4 e 5), o Poeta pede inspiração às Tágides para que a sua obra esteja à altura dos
feitos gloriosos que pretende cantar. É esta a principal invocação do Poema e a que dá nome a uma parte da sua
estrutura interna;
— no Canto III (estâncias 1 e 2), o Poeta invoca Calíope, na medida em que Vasco  da Gama vai iniciar a
narração da História de Portugal ao rei de Melinde;
— no Canto VII (estâncias 78-87), o Poeta dirige-se às ninfas do Tejo e do Mondego, pedindo-lhes
inspiração, lamentando a ingratidão de que era vítima e excluindo do seu canto aqueles que não merecem o
estatuto de heróis;
— no Canto X (estâncias 8 e 9), o Poeta suplica a Calíope que lhe conceda inspiração,  num momento em
que manifesta algum desencanto em relação à escrita, em consequência dos desgostos sofridos e do processo de
envelhecimento.
 Dedicatória — o Poeta dedica a obra a D. Sebastião (Canto I, estâncias 6 a 18), descrevendo-o como um
monarca destinado por Deus a feitos gloriosos e exortando-o a expandir o Império e a difundir a fé
cristã.
 Narração — como era determinado pelas regras do texto épico, inicia-se in medias res, isto é, quando a
armada de Vasco da Gama se encontrava já no Canal de Moçambique. Os acontecimentos que
marcaram a viagem, desde a partida até àquele ponto, são posteriormente narrados por Vasco da Gama
ao rei de Melinde, através da longa analepse em que se inclui também a História de Portugal. D'OS
LUSÍADAS
CANTO I
Seguindo os códigos das epopeias clássicas, o Poeta começa o seu poema apresentando o assunto que vai tratar,
pedindo às ninfas do Tejo que o inspirem e dedicando a obra ao rei D. Sebastião. Inicia-se depois a narração, com a
armada de Vasco da Gama já no oceano Índico. Nesta altura, no plano mitológico da ação, reúne-se o Consílio dos
Deuses no Monte Olimpo. Graças ao apoio de Vénus e de Marte, e apesar da oposição de Baco, as divindades pagãs
decidem ajudar os navegadores portugueses na sua viagem à Índia. No entanto, o Gama e os seus homens fundeiam
a armada na Ilha de Moçambique onde, devido às maquinações de Baco, o régulo local ataca os portugueses de forma
traiçoeira. Apesar de escaparem à ameaça, o risco mantém-se porque Vasco da Gama recruta um falso piloto que está
instruído por este deus a levar a armada a Quíloa para ser destruída. É Vénus que intervém, afastando do perigo os

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navios, que acabam por largar âncora mais adiante, em Mombaça. O canto termina com uma reflexão do Poeta sobre
as ameaças que assolam a frágil condição humana.
CANTO II
O rei de Mombaça, também ele influenciado por Baco, convida os navegadores portugueses a entrar nos seus
domínios com o plano de destruir os navios. Vénus volta a intervir, com o auxílio de outras divindades marítimas, e
afasta a armada para longe da cilada. Vasco da Gama apercebe-se da traição. Vénus pede então a Júpiter para
proteger os portugueses, como tinha sido decidido. O deus dos deuses instrui Mercúrio para, em sonho, indicar ao
capitão português o caminho até porto seguro. Os navegadores dirigem-se então para Melinde, onde o rei local os
recebe calorosamente.
CANTO III
A pedido do rei de Melinde, Vasco da Gama relata a História de Portugal. Após uma invocação do Poeta à musa
Calíope, o Gama assume a narração. Começa por localizar o território português na Europa para, logo de seguida,
passar a dar conta dos primórdios do povo português, falando de figuras como Luso e Viriato. Avança depois para a
formação da nacionalidade, destacando a ação de Afonso Henriques. Dá, por fim, destaque aos  feitos mais relevantes
dos reis da Primeira Dinastia, valorizando o esforço dos grandes guerreiros e detendo-se em episódios marcantes,
como o da morte de Inês de Castro.
CANTO IV
Vasco da Gama prossegue a narração da História de Portugal, avançando para a crise de 1383-1385 e para os
reinados da segunda dinastia. Após dar conta do combate militar e político travado por D. João, com o auxílio de
Nuno Álvares Pereira, pela manutenção da independência do reino, relata os principais episódios da governação dos
monarcas da Casa de Avis. Não esquece, obviamente, os Descobrimentos marítimos nem o papel fundamental
desempenhado por D. Manuel nessa empresa. O canto termina com a referência à partida das naus de Vasco da
Gama para a Índia e com o episódio do Velho do Restelo.
CANTO V
Continuando a sua longa retrospetiva, Vasco da Gama resume a sua viagem de Lisboa a Melinde. Detém-se nos
principais momentos do percurso e informa o rei de Melinde sobre as principais ameaças e maravilhas encontradas.
Descreve o fogo de Santelmo e a tromba marítima, fala da escaramuça com os nativos na Ilha de Santa Helena e narra
o encontro com o Gigante Adamastor, no cabo da Boa Esperança. O canto termina com uma reflexão do Poeta sobre a
grandeza da poesia e com uma censura a quem não a valoriza.
CANTO VI
Vasco da Gama termina a sua narração e, depois dos festejos de despedida, a armada portuguesa recebe um piloto
seguro que a levará até à Índia. No plano mitológico, Baco desce ao fundo do mar e pede ajuda a Neptuno para
impedir que os portugueses cheguem ao seu destino e lhe roubem a fama. Após um consílio, os deuses marinhos
decidem juntar-se à causa de Baco e dificultar a viagem dos homens do Gama. Éolo solta os ventos e desencadeia uma
tempestade enquanto os marinheiros, inadvertidos, escutavam a história dos Doze de Inglaterra. Vénus intercede pelos
portugueses após uma prece do capitão a Deus, e a tempestade cessa. Os navios chegam a Calecute, Índia. O canto
termina com reflexões do Poeta sobre a Fama, a Glória e o Heroísmo.
CANTO VII
As naus portuguesas soltam âncora ao largo de Calecute. O Poeta defende o espírito de cruzada contra os
muçulmanos e censura as nações que dele não comungam. Um emissário da armada vai a terra informar o Samorim
sobre a chegada dos portugueses e regressa a bordo com o mouro Moçaide. Vasco da Gama desembarca e é recebido
pelo Catual; mais tarde, vai ao palácio do Samorim, onde mantém com este uma longa conversa. O Catual visita a
armada portuguesa e pede a Paulo da Gama para lhe explicar o significado das figuras pintadas nas bandeiras dos
navios. O Poeta suspende o diálogo para, de novo, invocar as Musas e tecer considerações sobre os infortúnios da sua
vida.
CANTO VIII
Paulo da Gama fala das figuras representadas nas bandeiras das naus, referindo os feitos que algumas delas
realizaram. O Catual regressa a terra e consulta os arúspices (adivinhos), que anteveem que a Índia será subjugada
pelos portugueses. Baco volta a intervir e instiga os indianos contra os marinheiros lusos. Vasco da Gama obtém
permissão para regressar à armada, mas o Catual retém-no em sua casa. Mais tarde, liberta-o a troco de um resgate. O
Poeta termina o canto tecendo críticas sobre o poder do ouro.
CANTO IX
Dois feitores portugueses encarregados de vender mercadorias aos indianos são retidos em terra. O plano do Catual
é atrasar a partida da armada de Vasco da Gama até chegarem naus muçulmanas vindas de Meca para a destruir.
Estrategicamente, o capitão português faz refém o grupo de mercadores indianos que está a bordo dos seus navios e
prepara-se para deixar o porto. O Samorim liberta então os feitores portugueses e a armada zarpa em direção à Europa.

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No caminho de regresso, Vénus prepara uma ilha fabulosa, a Ilha dos Amores, onde os marinheiros portugueses
desembarcam e amam as ninfas que aí se encontram. O Poeta explica como se pode alcançar a Fama e a Imortalidade.
CANTO X
Após um banquete oferecido aos navegadores na Ilha, uma ninfa relata os futuros feitos que os
Portugueses realizarão no Oriente. Como ponto alto do prémio oferecido aos nautas, a ninfa Tétis mostra ao Gama o
funcionamento da Máquina do Mundo, ou seja, o modelo do funcionamento do Universo. Os marinheiros partem
e regressam a Lisboa após uma viagem tranquila. No fim do canto, o Poeta faz um diagnóstico da decadência do reino
e exorta D. Sebastião a fazer renascer Portugal e a realizar grandes feitos.S D'OS LUSÍADAS
Os Lusíadas desenrolam-se em quatro planos:
 Plano da viagem de Vasco da Gama
 Plano da História de Portugal
 Plano da mitologia
 Plano das reflexões do Poeta

1. Plano da viagem de Vasco da Gama


Esta é a linha de ação central da epopeia. Nele se incluem os principais eventos que tiveram lugar durante a viagem
de Vasco da Gama à Índia:
 Partida de Belém
 Paragem em Melinde (costa oriental africana)
 Chegada a Calecute (Índia)
 Regresso a Portugal

2. Plano da História de Portugal


O plano da História de Portugal surge encaixado no plano da viagem. É constituído por momentos em que é
narrada a História de Portugal ou é feita referência a figuras que se destacaram no nosso país, na maior parte dos casos
através de analepses (acontecimentos anteriores à viagem de Vasco da Gama) ou de prolepses
(acontecimentos posteriores à viagem da armada à Índia):
 No Canto II, encontramos uma prolepse, na qual Júpiter anuncia os feitos grandiosos dos portugueses no
Oriente.
 Nos Cantos III e IV, Vasco da Gama narra, através de uma analepse, os acontecimentos da História de
Portugal até ao reinado de D. Manuel I.
 No Canto IV, temos uma prolepse, na qual os rios Indo e Ganges anunciam em sonhos a D. Manuel que
os portugueses, apesar dos obstáculos, triunfarão no Oriente. Este sonho profético incentiva-o a lançar-
se nesta empresa.
 No Canto V, é apresentada uma prolepse: pela voz do Adamastor, os navegadores  são informados dos
naufrágios que outros portugueses virão a sofrer em consequência da sua ousadia.
 No Canto VIII, Paulo da Gama, em Calecute, descreve ao Catual as figuras históricas representadas nas
bandeiras da nau, explicando os motivos por que cada uma delas foi imortalizada.
 No Canto X, é novamente feita uma prolepse, através da qual uma ninfa, no banquete que é oferecido
por Tétis aos marinheiros na Ilha dos Amores, anuncia acontecimentos futuros associados ao domínio
dos Portugueses no Oriente. Também Tétis, ao mostrar a Máquina do Mundo a Vasco da Gama, se
refere aos futuros feitos de heróis portugueses no mundo.

3. Plano da mitologia
O plano da Mitologia encontra-se interligado, na maioria dos casos, com o plano da viagem e, pontualmente, com
o da História de Portugal. Engloba os momentos em que os deuses intervêm.
 No início do Canto I, tem lugar o Consílio dos deuses no Olimpo, que se reúne com o objetivo de
decidir o futuro dos Portugueses no Oriente. A reunião termina com a vitória da fação de Vénus e de
Marte (à qual se opõe Baco) e com a determinação de que os marinheiros portugueses sejam auxiliados
pelos deuses.USÍADAS
No fim deste canto, o deus que saiu derrotado, não satisfeito com a situação, assume a forma de um mouro e
instiga o régulo da Ilha de Moçambique a armar uma cilada à armada de Vasco da Gama. No entanto, Vénus mantém-
se atenta, afastando as naus da costa.
Baco faz nova investida em Mombaça, denegrindo, mais uma vez, a imagem dos marinheiros portugueses junto do
rei.

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 No Canto II, Baco faz-se passar por um sacerdote cristão, de modo a persuadir os homens enviados a
terra por Vasco da Gama de que este era um porto seguro. Mais uma vez, Vénus intervém: pede o
auxílio das Nereidas e, juntas, impedem as naus de aportarem, salvando-as do ataque iminente. Após
este ataque, a deusa do amor dirige-se a Júpiter, suplicando-lhe que auxilie os portugueses, como fora
estipulado no consílio. Este decide enviar Mercúrio para indicar a Vasco da Gama o caminho até um
local seguro, Melinde.
 No Canto V, a armada portuguesa depara com o gigante Adamastor, símbolo dos obstáculos e dos
medos que os navegadores tiveram de enfrentar ao longo dos Descobrimentos. Muito embora esta figura
esteja associada aos planos da viagem e da História de Portugal (pelos acontecimentos trágicos que
profetiza), a verdade é que também se enquadra no plano da mitologia, sobretudo pela história de amor
infeliz que evoca.
 No Canto VI, a conselho de Baco, Neptuno manda reunir o Consílio dos deuses marinhos, que decide
impedir os portugueses de terminarem a sua viagem, desencadeando uma tempestade. No entanto,
Vénus ordena às ninfas que acalmem a fúria dos ventos, salvando, mais uma vez, a armada.
 No Canto VIII, Baco assume a forma do profeta Maomé e aparece em sonhos a um sacerdote
muçulmano de Calecute, aconselhando os indianos a tomarem medidas contra o perigo representado
pelos portugueses.
 No Canto IX, os portugueses aportam à Ilha dos Amores, recompensa preparada por Vénus pelos seus
feitos gloriosos — e que representa simbolicamente a elevação dos nautas à condição de imortais.
 No Canto X, os portugueses desfrutam do faustoso banquete que lhes é oferecido por Tétis. A ninfa
mostra a Vasco da Gama a Máquina do Mundo e são profetizados diversos feitos dos portugueses (cf.
Plano da História de Portugal, na página 222).

4. Plano das reflexões do Poeta


Na maioria dos casos, este plano é ocasional e surge no fim dos cantos. Engloba  as considerações de carácter
didático e crítico que o Poeta vai apresentando ao longo da obra.
O Poeta faz intervenções nas quais reflete sobre a atuação dos portugueses — numa época em que o heroísmo e os
valores que marcaram os Descobrimentos haviam já sido substituídos pela ganância e pela corrupção suscitadas pelas
riquezas do Oriente, na segunda metade do século XVI. Propõe um ideal de herói, lamenta a ingratidão de que é alvo
por parte dos Portugueses, decorrente, em parte, da sua falta de cultura, ou exorta D. Sebastião a contribuir para o
engrandecimento da Pátria.
 No Canto I (est. 105-106), é feita referência à incerteza que marca a vida do Homem, sempre sujeita a
inúmeros perigos.
 No Canto V (est. 92-100), encontramos uma longa reflexão sobre o topos clássico das armas e das
Letras: o Poeta destaca o papel didático e cívico do canto, que, ao imortalizar os heróis, incentiva as
gerações seguintes a procurarem ultrapassar a grandeza dos seus feitos. Lamenta a falta de cultura dos
Portugueses, que, apesar de bravos e destemidos, são incultos (ao contrário do que sucedia com  os
guerreiros da Antiguidade). A falta de interesse pelas Letras poderá levar ao desaparecimento do canto
épico em Portugal, o que impedirá o aparecimento de novos heróis.
 No Canto VI (est. 95-99), o herói é definido como aquele que, vencendo a tentação de se apoiar nos
feitos dos antepassados e de viver de forma ociosa, procura alcançar a glória por mérito próprio, estando
disposto a sofrer e a enfrentar os perigos com coragem.
 No início do Canto VII (est. 2-14), o Poeta elogia os Portugueses, pelo facto de contribuírem para a
expansão da fé cristã, e critica os restantes povos europeus por se envolverem em lutas fratricidas, ao
invés de combaterem os muçulmanos. No fim deste canto (est. 78-87), a par de uma Invocação às ninfas
do Tejo e do Mondego, o Poeta apresenta-se a si próprio como um exemplo da concretização do ideal de
heroísmo definido no Canto V, na medida em que concilia os feitos guerreiros com a cultura. Lamenta
ainda a ingratidão de que tem sido alvo por parte dos Portugueses, que não reconhecem o seu mérito
pela elaboração de uma epopeia nacional. Finalmente, anuncia aqueles que excluirá do seu canto:  os que
antepõem os seus interesses aos do rei e do bem comum, os ambiciosos, os demagogos, os exploradores
do povo e os que praticam a injustiça. Com efeito, apenas cantará aqueles que arriscaram a vida pelo Rei
e pela Pátria.
 No Canto VIII (est. 96 a 99), é feita uma crítica à excessiva importância dada ao dinheiro, sendo
enunciados os seus efeitos negativos: incita à traição, à injustiça, ao perjúrio, à tirania e à hipocrisia e
corrompe as consciências.
 No Canto IX (est. 25-30), o Poeta enuncia a teoria do perfeito amor: ao narrar o modo como Vénus
prepara uma expedição de cupidos para corrigirem os erros cometidos no mundo a este nível, critica
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aqueles que não mostram interesse por este sentimento (o que é interpretado, por alguns estudiosos,
como uma crítica a D. Sebastião), bem como os que apenas governam em função dos seus
próprios interesses, os aduladores do jovem rei e os elementos do clero que se caracterizam  pela
ambição, pela hipocrisia, pela injustiça e pela tirania. No fim deste canto (est. 88--95), o Poeta explicita
o significado da Ilha dos Amores: esta recompensa representa a imortalidade que aguarda todos os que
se elevam à condição de heróis. Além disso, enumera as condições necessárias para que o
Homem alcance a glória — não se deixar dominar pelo ócio, nem ser ganancioso, ambicioso, tirano ou
injusto; lutar contra os muçulmanos, contribuindo para a expansão do Império português e servir o rei
tanto com conselhos sensatos, como com feitos guerreiros.
 No Canto X (est. 145-156), o Poeta expressa o seu desalento em relação à Pátria, que, como afirmara
anteriormente (cf. Cantos V e VII), não reconhece o valor da sua obra. Apesar desta crítica, incita D.
Sebastião a olhar para a excelência do seu povo e a continuar os feitos dos Portugueses. Além disso,
volta a apresentar-se como paradigma do herói que foi anteriormente descrito, na medida em
que conjuga o domínio das armas e das Letras.TILO
 Luís de Camões contribui para o enriquecimento da língua portuguesa, ao introduzir n'Os
Lusíadas vocábulos cultos (latinismos, na maioria, mas também helenismos) que não existiam no
português do século xvi ou que raramente se usavam: «belígero», «exício», «ebúrneo», «estelífero»,
«ingente», «níveo». Destaque-se ainda que o Poeta usa, por vezes, grafias vernáculas («abaxaram»,
«esprimentar », «dino»).
 A fim de obter efeitos poéticos e elevar o seu estilo, Camões substitui frequentemente termos vulgares
por palavras eruditas («arúspice» por adivinho, «cerúleo» por azul, «orbe» por esfera), por perífrases de
influência clássica («os berços onde nasce o dia» em vez de Oriente; «os que queima Apolo» em vez
de os africanos) ou por metonímias («lenho» por barco; «flores» por maçãs do rosto; «Tétis» por mar).
 Porém, como notou A. J. Saraiva (1980), se a linguagem d'Os Lusíadas revela uma tendência culta e
latinizante na construção de frase e no léxico, não deixa de lado a vertente popular e tradicional da
língua, que marca presença no uso de formas populares («esprito», «imigo»), de diminutivos
(«vaporzinho», «risinhos »), de aforismos ou frases com valor proverbial («Um fraco rei faz fraca  a
forte gente») ou até em concordâncias incorretas, próprias da oralidade.
 Os campos lexicais dominantes estão associados aos temas da epopeia: assim, inundam o poema termos
da marinharia, da guerra, da mitologia clássica.
 A nível da frase, assistimos a inúmeros desvios da ordem natural dos constituintes. Camões procura
esquivar-se à rígida construção frásica do português e aceitar a liberdade da sequência de palavras do
latim: «Ramos não conhecidos e ervas tinha» (tinha ramos e ervas não conhecidos) ou «Os muros
abaxaram de diamante» (os muros de diamante abaxaram). A alteração da ordem esperável das palavras,
que dá origem a figuras de estilo como a anástrofe e o hipérbato, decorre também das exigências
métricas e rimáticas do poema. A sintaxe colabora com o decassílabo heroico e com a rima para gerar a
melodia do verso e o ritmo ondulatório do discurso d'Os Lusíadas.
 O género literário da epopeia obedecia a um conjunto de imposições estilísticas e formais que
condicionam o discurso e a linguagem usada. Um poema que trate os grandes feitos de um povo exige
um estilo elevado e sublime, um tom majestoso e um discurso eloquente e retórico. Tal facto ajuda a
explicar a abundância de recursos expressivos, como a anáfora, a apóstrofe, a comparação, a
enumeração, a hipérbole, a interrogação retórica, a metáfora, a personificação, além dos
mencionados anteriormente.
 No interior do discurso épico, de «tuba canora e belicosa», surgem momentos de estilo lírico (de
«agreste avena») que conferem elegância e humanidade ao poema. Esses momentos emergem quando se
fala de amor, no episódio de Inês de Castro, ou em algumas reflexões do Poeta, como as considerações
sobre a fragilidade humana no fim do Canto I.
 Uma palavra final para a expressividade das descrições que encontramos n'Os Lusíadas. Camões
consegue que a sua linguagem tenha um forte apelo visual quando descreve lugares (a Ilha dos Amores),
fenómenos atmosféricos (a tromba-d'água ou a tempestade) ou batalhas. Noutros casos, a poesia
ambiciona tornar-se pintura quando procura representar objetos como a Máquina do Mundo ou os
portões do palácio do Samorim.

 Glossário
 Analepse: tipo de anacronia (não coincidência entre a ordem cronológica dos acontecimentos e a ordem pela
qual são narrados) que consiste na evocação de factos anteriores ao tempo presente da história narrada (cf.
Prolepse).
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 Prolepse: tipo de anacronia (cf. Analepse) que diz respeito à referência a factos posteriores ao tempo presente
da história narrada.
 Topos: motivo recorrente na história da literatura. O mar, a profecia, a viagem de regresso à pátria
são topoi (plural) porque são motivos com grande significado que surgem em várias obras literárias.

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