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Mantenedora
Faculdade Vitória em Cristo

Faculdade Vitória em Cristo

Diretor Geral
Prof. Me. Isaías Luis Araújo Júnior

Vice-diretor-Geral
Prof. Me. Ronaldo de Jesus Alves

Diretor Financeiro
Oldair Leal Santos

Diretor Administrativo
Josué de Souza Sobrinho

Diretor de Graduação e Pós-Graduação


Prof. Dr. Yohans de Oliveira Esteves

Diretor de Pesquisa, Extensão e Assuntos Comunitários


Prof. Dr. Anderson Luiz Bezerra da Silveira

Equipe Multidisciplinar

Gabriel Luis Oliveira Araújo


Paulo Victor de Oliveira Souza
Prof. Dr. Teresa Cristina dos S. Akil de Oliveira
Prof. Dr. Yohans de Oliveira Esteves
Romulo de Souza Santos Barbosa
Prof. Me. Isaías Luis Araújo Júnior

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Ficha catalográfica elaborada por __________________________________.

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APRESENTAÇÃO
Olá!

Você, estudante, é convidado(a) a uma espécie de viagem no tempo, para

investigar informações relevantes sobre os eventos, acontecimentos, personalidades e

ideias que constituíram as principais tradições cristãs. A Disciplina História do

Cristianismo, contabilizando carga horária total de 80 (oitenta) Horas de aulas e

atividades, oferece a você a oportunidade de aprender muito mais acerca dos itinerários

das Igrejas cristãs ao longo da História.

Nesta disciplina, você primeiramente irá aprender algumas noções gerais sobre

Teoria da História enquanto uma Ciência, para assimilar os esboços e comentários

abaixo, possibilitando-se, assim, uma compreensão básica das dimensões teológicas,

institucionais, sociopolíticas e litúrgicas de algumas conhecidas tradições cristãs

ocidentais. Consequentemente, sua visão sobre a História dessas tradições não será

mais a mesma!

Em cada Unidade de interação e aprendizagem, será realizada uma síntese

historiográfica acerca de determinada etapa ou período dos Cristianismos em foco.

Com referências às demarcações e fronteiras epocais pautadas em pesquisas de

credibilidade acadêmica, você, ao concluir os estudos da Unidade, estará em condições

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de apreciar e aprofundar seus componentes teóricos.

Iremos refletir juntos sobre as múltiplas faces do Cristianismo, sendo mais

interessante, na maioria dos comentários, a utilização do termo “Cristianismos”, no

plural, pois há inúmeras interpretações, ênfases e tradições eclesiais em torno da

mesma profissão de fé em Jesus Cristo. Estudaremos as situações e condições que

marcaram as Igrejas na Antiguidade, na era Medieval, na Modernidade e nos primórdios

da Contemporaneidade.

Os estudos seguintes estão divididos em seis Unidades: na primeira, você irá

aprender sobre as condições e discussões metodológicas em face da História enquanto

uma ciência e a História dos Cristianismos. Na segunda, algumas considerações

introdutórias às origens históricas da propagação da fé em Jesus e da formação dos

primeiros cristianismos, até Constantino I, no contexto do Império Romano. A terceira

Unidade estabelecerá um quadro geral das características mais importantes do período

dos Pais da Igreja, também conhecido como época patrística. Na quarta Unidade, a era

medieval, que compreende um vasto período de praticamente um milênio, do século

quinto ao XV. O ponto de partida dessa Unidade será o intervalo histórico entre o

período de Constantino e a queda de Roma. O desenvolvimento da Reforma ou

Revolução Protestante, a partir do século XVI, será o tema central da quinta Unidade,

com uma análise dos desdobramentos históricos que sucederam às Igrejas e teologias

na era moderna, e que concernem ainda à quinta Unidade. Por fim, na Unidade

conclusiva, uma discussão sobre a pluralidade cristã e as grandes modificações do

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campo religioso na modernidade e contemporaneidade, com base na Reforma

Protestante, incluindo acenos específicos a respeito das origens dos pentecostalismos

modernos.

Diante do panorama acima, pergunta-se: Como uma religião conseguiu

sobreviver por dois milênios, apesar de tantas divisões internas e acontecimentos

desfavoráveis em relação a seus projetos originais? Por que o Cristianismo não se

tornou mais uma “religião de museu” como tantas outras que atravessaram alguns

séculos? Que contribuições as tradições cristãs deixaram ao Ocidente? Essas e outras

perguntas você poderá responder a partir das reflexões que se seguem. A Teologia já

tem oferecido argumentos que visam responder essas questões, tendo a fé como base.

Por sua vez, a pesquisa em História também oferece material apreciável para nos

esclarecer e ainda sugerir outras perspectivas e novos diálogos. Esse é o objetivo central

desta disciplina.

Bons estudos!

Prof. Dr. Bruno Albuquerque

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Orientações Gerais para o Estudo

Bem-vindo mais uma vez! Sabemos que o estudo de uma disciplina de

graduação traz alguns afazeres, e estar preparado é fundamental para se chegar ao fim

desta jornada. Assim, antes de iniciarmos nossa disciplina, preparamos algumas dicas

para tornar seus estudos mais fáceis, práticos e agradáveis. Vamos lá?

Tenha Compromisso

O caminho para o sucesso da disciplina passa por você e por sua vontade e

determinação. Assuma um compromisso com você mesmo, seja constante e não

procrastine.

Seja você o agente do seu aprendizado, não fique esperando o professor/tutor,

ou algum colega te perguntar se fez ou não determinada tarefa, simplesmente faça!

Cada passo conta como uma vitória, o conhecimento adquirido é seu, somente

seu, e não esqueça que o nosso cérebro é o órgão do nosso corpo que, quanto mais

usamos, melhor fica!

Faça uma Agenda de Estudos

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Se organize, crie uma agenda própria para estudar, faça um compromisso com

você mesmo e evite ao máximo trocar seus estudos por outra atividade qualquer. O

maior beneficiado é você mesmo.

O ideal é estabelecer uma meta diária de horas de estudo e buscar todos os dias

atingir essa meta. Mas calma, se a semana ficou difícil e você não conseguiu, lembre

que pode reajustar a rota e recuperar o tempo perdido. Só não faça da exceção, a

regra.

Pontualidade é a chave do sucesso! Não deixe para a última hora, não perca

seus prazos e tarefas, elas são contribuições preciosas em seu processo de

aprendizagem.

Se prepare

Se prepare! Encontre um lugar adequado, separe tudo o que vai precisar, não

deixe nada e nem ninguém te atrapalhar e lembre, a tranquilidade e o conforto contam

muito nessa hora.

Fique calmo, você não está sozinho!

Toda dúvida precisa ser sanada, não deixe de pedir auxílio, o professor/tutor está

habilitado para te ajudar e aliás, essa é a função dele.

Crie uma lista de dúvidas e prioridades, não deixe que acumulem e peça sempre

orientação logo que elas aparecerem.

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Exercícios e Avaliações

Fique atento ao cronograma de atividades e avaliações e não deixe de realizá-

las, elas são importantes ferramentas para que você perceba como anda sua

aprendizagem durante o curso. Lembre-se, cada ponto conta!

Se concentre, procure um lugar tranquilo e que te permita ler e compreender

bem o que se pede. Após as correções, busque a melhoria contínua, aprenda com os

erros que cometeu, a aprendizagem é um processo contínuo.

Bom estudo e sucesso!

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Sumário

APRESENTAÇÃO 4

1 14

O que é a história do cristianismo? 14

1.1 A História é uma Ciência? 15


1.2 Qual o objeto da História? 19
1.3 Fontes Históricas 21
1.4 Para uma História do Cristianismo 22
1.5 Síntese da Unidade 28

2 31

Os Cristianismos antigos 31

2.1 As Fontes 32
2.2 Rumo ao seguimento de Jesus 33
2.3 Uma nova seita? 39
2.4 Caracterização das comunidades cristãs? 42
2.5 As perseguições contra os cristãos 45
2.6 Epílogo: Constantino e o fim às perseguições 51
2.7 Síntese da Unidade 52

3 55

Os Pais da Igreja: um Panorama 55


3.1 Introdução à Patrologia 58
3.2 Pais e Mães das Tradições 62

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3.3 Padres Latinos e Padres Gregos 64
3.4 Pais Apostólicos 66
3.5 Padres Apologistas 68
3.6 Alexandrinos 72
3.7 Os Capadócios 73
3.7 Agostinho de Hipona 74
3.7 Epílogo: Os Concílios Ecumênicos 75
3.7.1 Credo Niceno 77
3.7.2 Credo de Calcedônia 78
3.7 Síntese da Unidade 79

Unidade Revisional 1 82

Atividades de Aprendizagem 88

4 92

A ERA MEDIEVAL 92
4.1 Introdução à Primeira Idade Média (séculos V a X) 95
4.2 A Questão dos Bárbaros 98
4.3 A Alta Idade Média (séc. X a XIII) 101
4.4 Baixa Idade Média (séc. XIII a XV) 108
4.5 Síntese da Unidade 113

5 116

A REFORMA PROTESTANTE: INTRODUÇÃO HISTÓRICA E TEOLÓGICA 116


5.1 Preâmbulos 117
5.2 Martinho Lutero e o início da Reforma 122
5.3 Lutero, Karlstadt e Müntzer 128
5.4 Outros desdobramentos 135
5.4 Síntese da Unidade 140

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6 143

IGREJAS, TEOLOGIAS E MODERNIDADES 143


6.1 A contribuição protestante ao pensamento ocidental moderno 145
6.2 Consequências sociopolíticas e econômicas da Reforma 149
6.3 Movimentos na Igreja Católica 155
3.7.1 O Concílio Vaticano II 163
6.4 Finalizando 169
6.5 Síntese da Unidade 174

Unidade Revisional 2 176

Atividades de Aprendizagem 183

Gabarito 186

Referências Bibliográficas 188

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1

O que é a história do cristianismo?


As reflexões seguintes constituem uma introdução geral acerca dos aspectos que

caracterizam a História como uma área específica do conhecimento. Antes de responder

à questão “o que é História do Cristianismo?”, é necessário responder à pergunta “o

que é História?”. É importante refletir sobre o caráter científico da História e seus limites,

considerando as discussões metodológicas e as relações com outras disciplinas como

as Ciências Naturais e as Ciências Sociais. Em que sentido a História pode ser

considerada uma Ciência? Somente após essas primeiras discussões, poderemos refletir

mais detidamente sobre aquilo que caracteriza a História do Cristianismo propriamente

dita.

Nesta Unidade, você encontrará subsídios teóricos para fundamentar uma

compreensão básica sobre a disciplina da História como uma investigação científica

acerca do Cristianismo. Depois de elucidarmos brevemente sobre a noção de História

Geral, refletiremos sobre algumas distinções que deverão ser feitas no campo das

leituras sobre as tradições e instituições cristãs. Convém refletir a respeito da confusão

que pode ocorrer entre uma “História do Cristianismo” (de caráter predominantemente

científico) e uma “História Eclesiástica” (mais pautada em pontos de vista teológicos e

institucionais de cada tradição). Essa confusão, não raro, acontece em determinadas

abordagens do tema, e deve ser exposta com o intuito de estabelecer os critérios e

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limites das pesquisas propostas nas Unidades seguintes.

A postura adotada neste material didático é em favor da cientificidade da História

e da História do Cristianismo, levando-se em conta os limites de seus métodos, e o

diálogo com a Teologia sempre que for necessário, para um melhor entendimento em

questões dogmáticas e doutrinárias quando estas transparecerem na narrativa.

1.1 A História é uma Ciência?


Nos termos de uma teoria que busca correlações com as práticas de pesquisa,

o século XX testemunhou um grande debate tendo em vista a questão da cientificidade

da História. Especialmente entre o fim da década de 1920 e meados dos anos 1970,

apareceram diversas publicações buscando conceituar a História como ciência. Também

havia posturas que a qualificaram como não-ciência. Tanto umas como outras

problematizavam a área em questão desde determinadas tentativas de definição de

Ciência.

Cardoso (1981) distinguiu algumas dessas posturas ou tendências divergentes

sobre o conceito de História e sua relação com a Ciência:

● Tendência neopositivista: Em continuação com o positivismo do filósofo francês

Auguste Comte (1798-1857), alguns pesquisadores afirmam que a História não

se enquadra em critérios suficientemente científicos. Esse direcionamento

privilegia a Matemática e a Lógica em um campo de ciências formais, cujos

objetos de estudo são ideais, a partir dos quais uma teoria pode ser comprovada

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com absoluta certeza. As disciplinas ligadas à Biologia, apesar de seus limites e

incertezas sobre o passado e o futuro do cosmo, também possuiriam uma

vantagem por estarem mais próximas da Física do que a História, esta última

qualificada como não científica.

Figura 1: Auguste Comte (1798-1857)


Fonte da Imagem: Google Imagens

● Tendência marxista: Como uma clara oposição aos positivistas e neopositivistas,

para o horizonte de compreensão da realidade a partir de Karl Marx (1818-1883)

e Friedrich Engels (1820-1895), a História é estabelecida como plenamente

científica. Constata-se, no entanto, uma contradição nessa hipótese. Ao mesmo

tempo em que há um esforço dos marxistas clássicos em se localizar na História

um conjunto de fatos considerados invariáveis, repetíveis ou repetidos, entende-

se que cada fato é único e irrepetível, o que obriga a tendência marxista a se

manter cativa aos limites do materialismo histórico ou dialético.

● Tendência sociológica: Considera a História como intérprete de fatos singulares

e irrepetíveis, sem condições de analisar as regularidades sociais próprias do

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objeto e dos interesses científicos do sociólogo. Por isso, uma perspectiva assim

tende a criar uma grave oposição entre historiadores e sociólogos, como se

apenas os últimos praticassem ciência. Nesse sentido, a prática dos historiadores

estaria mais próxima de uma arte ou de uma técnica, mas não de uma ciência.

Claro que essa perspectiva começou a mudar, sobretudo, a partir da fundação

da Escola dos Annales, na França, pelos historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch

em 1929, por meio de colóquios realizados com especialistas de outras

disciplinas como a Sociologia, a Psicologia, a Geografia, a Economia, entre outras,

instituindo novos diálogos em torno da interdisciplinaridade (BRAUDEL, 1965).

Figura 2: Marc Bloch (1886-1944)


Fonte da Imagem: Google Imagens

● Tendências historiográficas: Existem, ao menos, três principais tendências para

a conceituação da História enquanto Ciência a partir dos próprios historiadores.

A primeira tendência revela que a História pode ser estabelecida de modo que

possa atingir, no máximo, algumas “zonas de cientificidade”, pois apenas alguns

acontecimentos poderiam ser considerados objetos de um conhecimento

científico, e porque a realidade que envolve os fatos humanos é caótica demais

em sua totalidade conjuntural. A segunda tendência nesse âmbito é bem mais


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otimista, por conceituar a História como “ciência dos homens no tempo” (BLOCH,

2001), de forma mais positiva, situando a História como Ciência de fato. Uma

terceira posição, mais ponderada, fortalece a ideia de História como Ciência, mas

uma Ciência em construção (CARDOSO, 1981).

Algumas tendências sobre a conceituação de História estabelecem, por um lado,

rupturas profundas entre História e Ciência. Outras, por sua vez, tecem vínculos que se

mostram precipitados ou exageradamente otimistas quanto à relação da História com

a metodologia científica. A concepção segundo a qual a História é vista como uma

Ciência em processo de construção demonstra maior cautela e atenção aos aspectos

obscuros, subjetivos e complexos dessa forma de conhecimento dos acontecimentos

que marcaram o passado de indivíduos, povos e nações. A ideia de “Ciência em

construção” aplica-se a todas as Ciências Sociais e, de acordo com Cardoso (1981, p.

43), “num certo sentido, (...) é verdade para qualquer ciência: vimos que os cientistas já

não buscam verdades absolutas e eternas”.

Em conjunto com a dimensão científica da prática dos historiadores, há também

uma dimensão social, como apontou Antoine Prost:

A história é uma prática tanto social, quanto científica; além disso,

a história que é o produto do trabalho dos historiadores, assim

como a teoria da história que lhes serve de orientação, depende

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da posição ocupada por eles nesse duplo conjunto, social e

profissional.

(PROST, 2019, p. 50)

Portanto, não se deve negligenciar, no mínimo, o duplo caráter prático das

funções da pessoa que pesquisa a História: sua dimensão profissional e sua posição

social. Essa duplicidade colabora na constituição da subjetividade, da identidade e das

perspectivas dos pesquisadores, fundamentando suas grandes inquietações, seus

enfoques e métodos de investigação científica de seu objeto.

1.2 Qual o objeto da História?

Toda ciência certamente possui um ou mais objetos de investigação. A Ciência

pode ser conceituada sem muitas ressalvas como um conhecimento racional, rigoroso,

sistemático, exato, verificável, e também falível, isto é, dela não se deve pressupor

resultados eternos e imutáveis. Ciências estabelecem uma ordem dos conhecimentos,

analisáveis através de métodos, sujeitos, enfoques, instrumentais adequados e objetos

da pesquisa.

Segundo Cardoso (1981), acrescenta-se que a Ciência se distingue claramente

de outros critérios do conhecimento. Não é conhecimento puramente subjetivo,

pautado em gostos e preferências individuais; não é conhecimento dogmático,

fundamentado na autoridade infalível ou revelada, da religião, dos filósofos, dos

programas revolucionários; não é conhecimento intuitivo, com sua imediata e elevada

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certeza do que parece ser verdadeiro; por fim, não é conhecimento pragmático, que

ressalta os saberes e práticas com base nos fins, na utilidade e na conveniência para

certo grupo de pessoas na sociedade.

Sendo assim, convém refletir sobre o objeto da História, não apenas sobre o

sujeito que pesquisa, o que já vimos anteriormente. Bloch (2001) descartou a ideia de

que História seja uma “Ciência do passado”, ideia absurda segundo o autor. Assim, ele

propôs que a História é a “Ciência dos homens no tempo”, isto é, uma ciência que

investiga as relações das ações humanas com o tempo considerado como tempo

histórico.

O tempo histórico deve ser distinto do tempo da natureza e do tempo

cronológico. O tempo da natureza é de certa forma aferido através das condições

astronômicas, físicas, das rotações dos astros e do cosmo de forma ampla. O tempo

cronológico é relativo à divisão dos dias, semanas, meses, anos, concepção ligada a

ciclos rituais e calendários, em cada cultura e civilização. O tempo histórico é a

percepção humana do tempo em um sentido que demarca os acontecimentos

relevantes na vida de um povo, grupo ou nação. O tempo histórico é conjunto de

relações que a espécie humana estabelece com suas percepções de tempo cronológico

e da natureza, afetando suas condições culturais, sociais, políticas, religiosas,

econômicas, etc.

O objeto da História, portanto, pode ser visto como sendo o próprio ser humano

na condição de preceptor e constituinte de um tempo histórico. A História investiga os


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fatos de acordo com interpretações diversas que se encontram e se articulam na

existência humana.

Historiadores constroem seu objeto de pesquisa de modo subjetivo, como

acontece em outras ciências. No entanto, de acordo com Bloch (2001), a escolha do

historiador provavelmente não segue as mesmas motivações de um biólogo, por

exemplo. Uma escolha de historiador realiza o recorte temporal com instrumentos e

ferramentas de certo modo condicionados pelas relações críticas ou de acomodação

que ele estabelece com a percepção do tempo em sua própria geração e em sua

própria cultura.

1.3 Fontes Históricas

Por certo, historiadores trabalham com seu objeto de investigação a partir de

fontes históricas. Essas fontes podem ser classificadas em geral entre Fontes primárias

e Fontes secundárias. As fontes primárias geralmente são divididas entre orais,

materiais/ escritas e materiais/ não-escritas. As Fontes secundárias formam um grupo

mais disperso e genérico de informações a serem coletadas na pesquisa histórica.

Segundo

Barros (2020), “as fontes históricas estão situadas no cerne da metodologia da

História”.

● As Fontes primárias orais podem ser exemplificadas em testemunhos de pessoas

vivas, lendas e tradições preservadas por diversas gerações.

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● As Fontes primárias materiais (escritas) são demonstráveis em obras literárias,

cartas, diários, revistas, anúncios, jornais, periódicos, decretos e leis, inscrições

mais antigas em pedras e outros materiais.

● Por sua vez, as Fontes primárias materiais (não-escritas) aparecem em

construções como monumentos e outros tipos de edificações, além de resquícios

arqueológicos (ossadas, fósseis, etc.), obras de arte, utensílios e objetos

significativos para as civilizações, e até paisagens naturais.

● As Fontes secundárias estão representadas nas investigações de outros

historiadores, bem como em contribuições de pesquisa em outras áreas

científicas como a arqueologia, as Ciências Sociais, as Ciências Biológicas, entre

outras.

Consideradas as questões teóricas elencadas acima, vale refletir mais

detidamente sobre o que é próprio da pesquisa histórica acerca do Cristianismo.

Convém analisar previamente algumas questões, ainda de ordem teórica, que se

impõem ao trabalho das pessoas que desejam conhecer melhor sobre a História da

religião cristã.

1.4 Para uma História do Cristianismo

É preciso uma clara percepção das condições científicas da História-Ciência, para

não confundirmos seu campo de atuação com o trabalho dos teólogos e sacerdotes. É

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bem comum encontrarmos no mercado editorial religioso pessoas com formações em

Teologia publicando trabalhos sob o título de “História da Igreja”. Mas, apesar dos

esforços empregados com honestidade por parte de seus autores, essas publicações

geralmente apresentam pressupostos doutrinários e dogmáticos que esses escritores

trazem em sua formação eclesiástica e que tornam sua leitura da História, em alguns

casos, um tanto parcial, e em outros casos nem tanto. Em virtude disso, faz-se

pertinente distinguir entre a abordagem tipicamente teológica e a abordagem da

ciência histórica sobre o itinerário das tradições cristãs ao longo do tempo histórico.

Com todos os méritos que podem ser identificados em obras de cunho mais

teológico, as quais dão certa ênfase ou até mesmo privilegiam determinadas tradições

cristãs em detrimento de outras, é importante também buscar a leitura de pesquisas

que consideram com máxima imparcialidade os fatos que marcaram o passado das

Igrejas. Apesar de não haver absoluta neutralidade no campo das ciências, o rigor

metodológico e a objetividade na construção dos enfoques devem ser considerados

em grande estima por quem quiser obter uma compreensão ampla e enriquecida da

História.

Nota-se, por primeiro, determinada tensão entre a abordagem da Ciência

Histórica e a leitura da Teologia confessional a qual constantemente tem sido

atravessada pelas questões da fé. Essa tensão não se resolve tão facilmente, mas o fato

é que a Teologia considera a Igreja em um duplo aspecto: ao passo que ela é uma

instituição historicamente construída e culturalmente situada, simultaneamente

também é considerada pela fé como o povo de Deus instaurado por Jesus Cristo e

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pelo Espírito Santo no mundo. A dualidade da Igreja (do grego ekklesía, do hebraico

qahal: assembleia, congregação), reside em sua dupla atribuição divina e humana,

sendo que somente o aspecto humano da Igreja pode ser captado pelos historiadores

e por seu método científico (PEÑA, 2014, p. 19). Por outro lado, a Igreja percebida por

fé, enquanto instituição divina, é enquadrada como objeto da Teologia, mais

concretamente pelo tratado sistemático da Eclesiologia (PEÑA, 2014, p. 18).

Convém diferenciar também entre a História eclesiástica e a História do

Cristianismo, esta última bem mais recente. As tradições cristãs, desde suas origens,

possuem grande interesse em relatar sua história, a partir de seu ponto de vista de fé

e da busca por unidade em meio às divergências constatadas entre elas. No entanto,

a inserção de um tratado específico de História eclesiástica na Teologia universitária é

recente, pois foi inaugurado oficialmente pelos protestantes apenas em 1650, na

Universidade de Helmstedt, na Alemanha, e instituído pela Igreja Católica cerca de sete

anos depois (CHAPPIN, 1999, p. 22).

Como já foi dito, apesar da elaboração dessa cátedra universitária ter sido uma

iniciativa moderna, a construção narrativa da História Eclesiástica é desde a

Antiguidade, a exemplo de algumas tradições do Novo Testamento ou dos Pais da

Igreja, especialmente em Eusébio de Cesareia. Assim afirma Chappin (1999, p. 23): “Se

o tratado de história da Igreja pode ser definido como uma criação relativamente

recente, o interesse da Igreja pela própria história é tão antigo quanto a própria Igreja”.

Mais recente ainda é a instituição de pesquisas em História do Cristianismo fora dos

domínios das Faculdades de Teologia, algo considerado em fase de desenvolvimento

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inicial no Brasil, mesmo no século XXI.

Figura 3: Eusébio de Cesareia (265-339)


Fonte da Imagem: Google Imagens

Tendo em vista as questões metodológicas ditas, resulta que a Igreja, mais do

que uma religião ou experiência religiosa destacada, e independente da tradição ou

local em que ela esteja situada, revela-se como “uma instituição de características

complexas que subsiste até nossos dias, ainda que com mudanças lógicas que foram

se operando ao longo do tempo” (PEÑA, 2014, p. 19). Mesmo com essa longa e

complexa história assumida, é possível dizer que Igreja ainda é um termo geralmente

preferido por pessoas de fé, por ser bíblico e abrangente, enquanto para o pesquisador

sem um comprometimento de fé, Cristianismo (ou seu plural) revela-se como expressão

mais adequada. Para outras pessoas, Igrejas e Cristianismos seriam termos

intercambiáveis sem confusão. Por outro lado, para alguns historiadores, a expressão

Igreja, por si, é ambivalente demais para encabeçar um olhar científico e disciplinar,

pois pode estar se referindo tanto à Igreja no nível institucional/ temporal (objeto da

ciência), como pode representar valores de fé, moral e religião que não

necessariamente favoreçam uma leitura investigativa e crítica dos fatos.

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De acordo com Hoornaert (2016, p. 13), nota-se, portanto, uma clara distinção

entre Teologia e História, sendo que a última se desenvolve a partir de dois princípios

práticos: em primeiro lugar, a Heurística em História, que compreende a busca por

documentos confiáveis, as fontes históricas. Em segundo, a Hermenêutica, isto é, trata-

se de se situar os fatos, acontecimentos e movimentos em seus devidos contextos, quer

dizer, interpretação. No plano heurístico, o trabalho de historiadores é o de recolher,

coletar, organizar, estabelecer as fontes históricas que servirão de base na pesquisa. Já

no plano hermenêutico, conta-se com o diálogo com disciplinas auxiliares como os

Estudos Literários, a Arqueologia, a Linguística, as Ciências Sociais (Antropologia,

Sociologia, Ciência Política), para o discernimento das dimensões que envolvem o

contexto em torno dos fatos investigados.

Com uma leitura mais atenta das pesquisas em História do Cristianismo, por

certo, há de se notar, desde as origens cristãs, uma diversidade de tradições que

constituem as identidades das primeiras comunidades de fé em Jesus Cristo. Por assim

dizer, o termo “Cristianismos” soa mais adequado para retratar historicamente a

formação plural das tradições orais e escritas em torno de Jesus de Nazaré, conforme

a reflexão a seguir.

Por cristianismos, afirma-se que uma dada experiência religiosa é

sempre plural, com a sua base formativa sendo ampla demais para

caber em categorias como certo e errado, ortodoxo e heterodoxo.

O reducionismo de uma experiência religiosa, seja ela qual for,

costuma produzir um tipo de análise “histórica” bastante previsível,


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com seus resultados parciais e militantes.

(CHEVITARESE, 2016, p. 9)

Por fim, vale ressaltar que, além da pluralidade estabelecida em relação aos

Cristianismos, há o problema da periodização histórica, tema de não poucos debates

no âmbito acadêmico, tanto entre historiadores profissionais quanto entre teólogos.

Isso se dá devido à forte dimensão de subjetividade presente continuamente no

trabalho historiográfico, inclusive nos recortes temporais a serem realizados. Dessa

forma, há diversas maneiras de dividir os períodos históricos de acordo com cada

perspectiva adotada. Mas é de suma importância esclarecer:

Por ser um produto humano, todo produto historiográfico baseia-

se necessariamente em toda uma série de escolhas e decisões

pessoais, que de alguma maneira são condicionadas. (...) Mas aqui

subjetividade não significa “invenção”, “distorção”, “fantasia”,

“emoção”. E tampouco um julgamento pessoal…

(CHAPPIN, 1999, p. 71)

Com a consciência de que é possível estabelecer diversos quadros e

possibilidades de periodização, a questão da definição da delimitação dos períodos

históricos é de suma importância para os próximos percursos desta disciplina. Aqui,

adotamos uma via mais consensual e tradicional entre as pesquisas de credibilidade

(PEÑA, 2014, p. 24), que considera o seguinte:

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● Idade Antiga: começa com o aparecimento da escrita em cerca de 6 mil a.C., e

termina com a queda do Império Romano Ocidental em 476 d.C. pela invasão

dos povos germânicos (bárbaros). O Cristianismo antigo (Unidade II) inicia com

os eventos pascais da morte e ressurreição de Jesus Cristo por volta de 30 d.C.,

até 476 d.C.

● Idade Média: desde o fim da Antiguidade até a queda do Império Romano do

Oriente (Constantinopla) pelo domínio dos turcos (1453) ou, segundo alguns

autores, até a chegada dos europeus ao continente americano (1492).

● Idade Moderna/ Modernidade: desde o fim da Idade Média até o começo da

Revolução Francesa (1789), tendo como ínterim bem conhecido a Reforma ou

Revolução Protestante, iniciada por Martinho Lutero em 1517.

● Idade Contemporânea: desde o fim da Idade Moderna, período não concluído

para alguns historiadores.

Figura 4: Martinho Lutero (1483-1546)


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1.5 Síntese da Unidade

Você pôde notar, através das primeiras reflexões esboçadas nesta Unidade, que

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a História do Cristianismo é uma área de pesquisa científica sobre a trajetória das

tradições, movimentos e instituições cristãs ao longo dos séculos. Não se deve

confundir essa área com a História Eclesiástica ou com a Eclesiologia, mais ligadas a

aspectos essencialmente teológicos de cada tradição das Igrejas.

Vimos (e ainda estudaremos mais) sobre o fato de que as comunidades cristãs

não eram uniformes, embora buscassem a unidade da fé, o que denota uma pluralidade

de tradições, melhor acolhidas sob a expressão “Cristianismos” (CHEVITARESE, 2016).

Assim, a História transparece em sua responsabilidade intelectual e social de investigar

cientificamente os fatos do passado, os acontecimentos que marcam os seres humanos

e que pelos humanos são constituídos e constantemente transformados. Nesse sentido

é que se concebe o método investigativo, em sua dimensão heurística de caracterização

e organização de fontes históricas, e em sua dimensão hermenêutica ou contextual,

para a construção de seu objeto, à luz de determinadas concepções de tempo (da

natureza, cronológico, histórico).

Na próxima Unidade, estudaremos sobre o período histórico em que surgiram

as primeiras tradições cristãs, isto é, os primeiros relatos e testemunhos acerca da vida

e da obra de Jesus de Nazaré a partir do contexto judeu palestinense.

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2

Os Cristianismos antigos

O objetivo principal da presente Unidade é apresentar e discutir as principais

circunstâncias históricas que caracterizaram os primeiros anos da pregação cristã, a

partir do período dos apóstolos (século I) até pouco antes da queda do Império

Romano ocidental. O recorte temporal vai até a ascensão do imperador romano

Constantino I. Nesse contexto que compreende cerca de três séculos de história,

realizaremos uma brevíssima síntese das situações concretas que correspondem aos

primeiros caminhos para o desenvolvimento das experiências de fé em Jesus Cristo que

foram gradativamente se espalhando por grande parte do Império.

Nas primeiras partes da Unidade, temos uma averiguação das fontes históricas

para uma compreensão básica do período em foco e as grandes tendências da pesquisa

em torno do movimento de Jesus entre os judeus na Palestina ou da “seita dos

nazarenos”. Nas seções intermediárias, um panorama acerca do período apostólico e

da transição para o século II. Nas reflexões seguintes, alguns apontamentos indicando

sumariamente como compreender as perseguições que alguns grupos e imperadores

empreenderam contra as comunidades de cristãos, tendo em vista também o acelerado

crescimento numérico dessas comunidades e o desenvolvimento de suas liturgias e

teologias. Por fim, um breve comentário sobre a figura do imperador Constantino e


31 |História do Cristianismo - FVC
seu significado para a História cristã ocidental.

2.1 As Fontes
Os escritos do Novo Testamento, produzidos por diversos indivíduos e

comunidades celebrantes da fé em Jesus Cristo, continuam a constituir fontes

privilegiadas e exemplares para as pesquisas contemporâneas sobre os cristianismos

nascentes. Esses livros, cujas tradições orais subjacentes refletem a época entre as

décadas de 30 e 100 d.C., revelam alguns aspectos da atividade de Jesus e da atividade

de algumas das primeiras comunidades cristãs. No entanto, há também outras fontes

materiais que oferecem testemunhos mais ou menos diretos acerca dos mesmos

contextos relatados na Bíblia, tanto em formas escritas, quanto em formas não escritas.

Figura 5: Artefato de origem cristã encontrado na região da Galileia


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Figura 6: Codex ou Códice Sinaiticus, século IV, uma das mais conhecidas versões manuscritas
da Bíblia na Antiguidade, com letras gregas em estilo de escrita uncial (todas as palavras em
maiúsculas e sem separação ou pontuação).
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2.2 Rumo ao seguimento de Jesus


Jesus de Nazaré, segundo os relatos dos Evangelhos canônicos, nasceu entre os

pobres e com eles permaneceu durante toda a sua vida terrena. Em sua proposta de

pregação entre os judeus, evocava-se o tema central do Reino de Deus (Marcos 1,14-

15). A mensagem de Jesus tinha por prioridade alcançar os conterrâneos judeus, em

cidades e vilas que constituíam a região da Galieia, ao norte da Palestina.

O camponês e Mestre galileu, apesar de sua origem humilde e sem recursos

destacados, era um judeu autêntico de singular liderança, nascido em um contexto

sociocultural demarcado por muita opressão social, desigualdades diversas, sob o

domínio do Império Romano. O centro de sua religião era a fé monoteísta judaica com

a constante referência ética à Torah, que reúne os livros sagrados que representam

33 |História do Cristianismo - FVC


autoridade em termos ritualísticos, morais e teológicos para os diversos judaísmos em

convívio naquelas regiões palestinas. Sua interpretação da Torah, entretanto, ficou

conhecida por divergir das principais autoridades teológicas de seu tempo.

O centro político e geográfico privilegiado para a prática religiosa judaica era

Jerusalém. Há muito tempo, houvera o povo dali construído uma ênfase na observância

dos mandamentos divinos, com diversas vertentes mais ou menos rígidas. O povo judeu

sulista era orientado pelas classes de fariseus e saduceus, e os ritos diários eram

executados pela classe sacerdotal que atuava no Templo em Jerusalém.

A Galileia, por outro lado, possuía a particularidade de ter sido uma das regiões

mais desprezadas pelos judeus da aristocracia de Jerusalém e por grande parte da

população do sul palestino, a qual rejeitava também as etnias e religiões de Samaria.

Observa-se também que, na época de Jesus, havia nas regiões galileias determinados

relatos e rumores messiânicos em torno de figuras carismáticas que alegavam possuir

poderes sobrenaturais de cura e exorcismo, o que parecia corresponder a uma fronteira

indefinida entre as esperanças, as superstições e as especulações de um povo em

sofrimento. Distante da religião “oficial” do Templo, havia todo um ambiente cultural e

religioso propício à aceitação do testemunho de Jesus através dos sinais miraculosos,

uma espécie de “religião popular” (VERMES, 2006, p. 272), cujo arquétipo poderia ser

encontrado na Bíblia Hebraica por meio das narrativas sobre os profetas Elias e Eliseu.

No entanto, essa religião popular em torno de magos e curandeiros se encontrava

presente “também no mais vasto mundo grego e romano” (BARBAGLIO, 2011, p. 221).

Nesse contexto religioso, surge João, o batista ou batizador, que representava

34 |História do Cristianismo - FVC


uma figura historicamente misteriosa, radical e carismática, cuja mensagem atraía

muitas pessoas com arrependimento pelos pecados diante de Deus, para serem

batizadas. Inclusive o próprio Jesus foi por ele batizado (Mateus 3,1-17). Este entrou

em cena pregando publicamente na época em que João encontrava-se preso (Marcos

1,14), por mandato de Herodes. Há indícios na literatura apócrifa judaica e no escritor

Flávio Josefo que apontam para uma ligação entre João e seitas judaicas que praticavam

o batismo como contraponto e crítica à ortodoxia dos sacerdotes do Templo. Segundo

Bultmann (2005), em hipótese, Jesus teria participado do grupo de João pouco antes

de ter iniciado sua própria atividade e organizado seu próprio grupo de discípulos.

Figura 7: Flávio Josefo, escritor da famosa “História dos Hebreus”, originalmente em vários
volumes.
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Vale mencionar que os messianismos judaicos, incluindo as expectativas sobre

João e Jesus, compreendiam um conjunto de esperanças contidas no antigo imaginário

popular judaico, com base em textos bíblicos emblemáticos como em alguns salmos e

nos últimos profetas das Escrituras Hebraicas. Havia possivelmente uma significativa

espera de natureza teológico-política segundo a qual o Messias haveria de restabelecer

35 |História do Cristianismo - FVC


a monarquia em Israel e expulsar os romanos do domínio daquelas terras. Porquanto,

a expressão Messias vem do hebraico mashiach e do grego christós, com significado

literal de ungido (RIBEIRO, 2009).

Embora com características em comum, os messianismos estavam divididos,

havia algumas tendências dominantes, sobretudo aquelas que apelavam a uma

prerrogativa mais imediatista ou apocalíptica, inclusive com emprego da violência para

a libertação do povo. Jesus de Nazaré, como é sabido, não demonstrou qualquer

pretensão de criar uma nova religião ou seita, bem como teve consciência de que não

atenderia às expectativas de um messianismo revolucionário em sentido violento ou de

revolta armada contra o Império Romano. Ele anunciou o Reino de Deus e sua salvação

através da doação de si, do serviço, da solidariedade junto às classes sociais menos

favorecidas. Por isso, a primeira bem-aventurança do Reino tem os pobres como

destinatário (Mateus 5,3; Lucas 6,20).

Segundo os Evangelhos canônicos, a consequente condenação e sentença de

morte por crucificação trouxe, portanto, um desfecho aparentemente desastroso à

missão de Jesus, abandonado à solidão em seus últimos momentos. Todavia, algumas

mulheres que o seguiam começaram a anunciar que ele havia ressuscitado,

especialmente como o fez Maria Madalena (Marcos 16,1-20). A partir de então, surge

o kerygma (proclamação), o primeiro anúncio e outros testemunhos que confirmariam

o acontecimento. A forte dimensão da fé do grupo de seguidores de Jesus tinha a

primazia nesse processo de compromisso antes e depois dos eventos da Paixão:

Dificilmente se pode descrever a forma como responderam a Jesus


36 |História do Cristianismo - FVC
senão com palavras como “fé”, “confiança” e “compromisso”. Jesus

pode ter causado diferentes impressões em diferentes pessoas,

impressões que não conseguimos mais recuperar. Mas, no caso

dos discípulos, essa impressão tornou-se um impacto que originou

neles a fé, e é desse impacto inicial de consolidação do discipulado

que decorre tudo o que veio a acontecer posteriormente.

(DUNN, 2013, p. 28)

Não demorou mais do que duas décadas de pregações, percursos e

consolidações das Igrejas, para que enfim aparecessem as primeiras tradições em torno

dessa fé, em material escrito, através das cartas de Paulo, por exemplo. Assim se

expressou o apóstolo considerado o primeiro escritor do Novo Testamento:

Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que

Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, E que

foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as

Escrituras. E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze. Depois

foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive

ainda a maior parte, mas alguns já dormem também. Depois foi

visto por Tiago, depois por todos os apóstolos. E por derradeiro

de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo.

(1 Coríntios 15,3-8, Versão Almeida Corrigida Fiel, ACF).

37 |História do Cristianismo - FVC


O seguimento de Jesus, iniciado na Galileia e confirmado com o evento pascal

em Jerusalém, ampliou seu alcance a partir da experiência de dezenas de discípulos e

discípulas que estabeleceram o primeiro anúncio-base da fé cristã. Anunciavam que

Jesus havia feito muitos milagres entre eles, pregando o Reino de Deus e a Boa

Mensagem (Evangelho), tendo sido executado por infringir leis judaicas e por perturbar

a ordem pública da Pax Romana em Jerusalém, o que ficou de certo modo atestado

pelo episódio da “purificação” do Templo (Mateus 21,12-13), quando Jesus expulsou

os vendilhões que ali comerciavam (LIMBECK, 2016). Considerado como charlatão e

bandido por alguns e louco por outros, Jesus de Nazaré despertou um movimento

espontâneo que de forma gradativa foi desestabilizando as relações sociais, políticas e

religiosas a partir de dentro da grande comunidade judaica.

Convém ressaltar que todos os primeiros discípulos e discípulas, também

conhecidos como apóstolos (mensageiros) de Jesus eram judeus assim como Jesus, ou

mantinham ligações com o judaísmo. Portanto, um fundamental ponto de partida para

uma compreensão histórica e teológica das origens do Cristianismo como um todo é

sua relação de continuidade e ruptura estabelecida com o judaísmo enquanto cultura

religiosa.

38 |História do Cristianismo - FVC


Mapa 1: A Palestina nos tempos de Jesus
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2.3 Uma nova seita?


A primeira comunidade reunida em torno da fé no Jesus pregado como Messias

e Senhor ressuscitado estabeleceu sua atividade missionária em Jerusalém, junto às

famílias de judeus na festa do Pentecostes (Festa das Semanas, Shavuot). De modo

semelhante ao período simbólico de sete semanas entre o êxodo do povo hebreu no

Egito e a entrega dos mandamentos a Moisés no Monte Sinai, assim a primeira

comunidade cristã concebeu em suas narrativas um ínterim de algumas semanas entre

a morte-ressurreição de Jesus e o derramamento do Espírito Santo sobre a Igreja (Atos

2). A partir desse momento, iniciou-se a missão da comunidade dos crentes em Jesus

39 |História do Cristianismo - FVC


Cristo entre os judeus. Nessa etapa da história, a Igreja cristã era vista pela população

de Jerusalém como mais uma seita judaica acrescentada às outras que já existiam

(fariseus, saduceus, essênios, mandeus, zelotes, etc.).

Essa comunidade de cristãos, por sua vez, pressupunha seu pertencimento à

comunidade israelita. Mas, se o Deus de Israel era celebrado também como Senhor de

todos os povos, a ressurreição de Jesus dizia respeito à salvação para o mundo inteiro,

não apenas para Israel. Daí a sua pretensão missionária desde Jerusalém (MUÑOZ,

1985, p. 77), passando também por Samaria, chegando à cidade de Antioquia na Síria.

Nessa cidade, desenvolveu-se uma Igreja em que congregavam Barnabé e Saulo, líderes

importantes e influentes, que iniciaram a missão em outras localidades nos limites do

Império Romano.

A grande dificuldade de entendimento entre alguns grupos de cristãos nas

cidades de Jerusalém e Antioquia começou quando da prática evangelizadora de Saulo

e Barnabé entre povos não-judeus (gentios), narrada a partir do capítulo 13 de Atos

dos Apóstolos. Em Antioquia, provavelmente a comunidade cristã não mais era

identificada como uma seita judaica, pois não havia imposição dos costumes dos judeus

sobre seus membros (MUÑOZ, 1985, p. 81). Assim sendo, pela primeira vez na história,

em Antioquia pôde-se perceber uma prática religiosa original, inconfundível e distinta

do judaísmo, e por ela seus adeptos ficaram conhecidos como cristãos: “e em Antioquia

foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos” (Atos 11,26 ACF). Em

Jerusalém, por outro lado, permaneceu um grupo mais conservador em torno dos

apóstolos Tiago (irmão de Jesus), Pedro e João. Esse grupo certamente estava convicto

40 |História do Cristianismo - FVC


das tradições judaicas, e assim não poderia aceitar a abertura que ocorreu em

Antioquia.

O embaraço entre as interpretações se tornou latente, acerca da recepção de

novos adeptos na Igreja em relação aos costumes judaicos e à observância da Torah.

Enquanto na comunidade de Jerusalém predominava uma opinião favorável à adesão

de uma moral restrita aos moldes tipicamente judaicos, já os mais próximos a Saulo e

Barnabé tinham uma interpretação mais flexível sobre o tema. A questão só se resolveu

após a intervenção do apóstolo Pedro diante do acalorado debate entre os dois grupos

que se reuniram numa espécie de concílio em Jerusalém (Atos 15,7), resultando, no fim,

em um acordo com bem poucas restrições aos cristãos gentios, isto é, a interpretação

antioquena prevaleceu (Atos 15,28-29).

Saulo de Tarso, mais conhecido como Paulo apóstolo, protagonizou a primeira

transição importante nos vinte anos iniciais do desenvolvimento da religião cristã no

Império Romano. Além dos eventos que culminaram no primeiro concílio da Igreja, em

Jerusalém (Atos 15, 1-29), Paulo representa grande parte dos esforços e iniciativas para

que o Cristianismo das origens se tornasse uma religião com identidade própria e

coesa, não desprezando suas origens judaicas. Judeu e cidadão romano, esteve ligado

à cidade de Tarso, grande centro intelectual no Império. Era assim um profundo

conhecedor das culturas e da literatura, empreendedor influente e extremamente zeloso

em questões morais e religiosas. Paulo pertencia à seita judaica dos fariseus em

Jerusalém, tutelado por Gamaliel. Viu a comunidade de Jerusalém como uma ameaça

à ordem e aos costumes judeus, especialmente diante da missão cristã dos helenistas

41 |História do Cristianismo - FVC


(habitantes de Jerusalém com fala e estilo de vida gregos), cujo líder era o diácono

Estêvão, linchado em praça pública por causa de sua pregação (Atos 7, 54-60).

A execução de Estêvão provavelmente transtornou Saulo, de tal modo que se

sentiu impelido a encabeçar uma perseguição local aos que se diziam seguidores de

Jesus Cristo, entre Jerusalém e Damasco, empreendimento que durou pouco tempo,

pois o fariseu teve uma experiência marcante com o próprio ressuscitado, segundo o

livro de Atos (capítulos 9, 22 e 26). A conversão de Saulo o transformou no mais

emblemático fundador e líder do Cristianismo, em diversas regiões. Sua maior

contribuição à Igreja, segundo Hoornaert (2016, p. 50) foi a inserção do universalismo

na concepção religiosa do mundo (Gálatas 3,28).

2.4 Caracterização das comunidades cristãs?


É necessário compreender que as práticas da religião cristã nunca foram

uniformes ou plenamente concordantes em nenhum período histórico. Sempre houve

discordâncias de diversas naturezas e por diversas causas que não cabe aqui discutir.

Fica, entretanto, a recomendação de um renomado historiador brasileiro:

Cabe aos cientistas sociais, e aí estão incluídos historiadores,

antropólogos, teólogos, filósofos, sociólogos e cientistas da

religião, o estabelecimento de hipóteses que contemplem um

cristianismo mais pluralizado, com suas fronteiras permeáveis, que

dialoga com inúmeros grupos religiosos circundantes, que rompe

com as certezas e borra as “origens”.

42 |História do Cristianismo - FVC


(CHEVITARESE, 2016, p. 98)

Por outro lado, é igualmente necessário indicar que, embora divergentes e plurais

em variados aspectos, as comunidades apostólicas em geral desenvolveram uma

preocupação em comum voltada à unidade da fé, nos quesitos que lhes pareciam mais

importantes. Por isso, é possível uma descrição geral das características particularmente

mais destacadas entre as comunidades palestinas e as comunidades paulinas do

primeiro século, o que sobressai também no início do século II, após a morte dos

primeiros apóstolos.

● Uma liturgia simples com traços judaicos: Havia reuniões domésticas e

públicas, ausência de templos tradicionais como aquele dos judeus, sequência

de ações rituais que tinham por culminância a ceia ou eucaristia, com acenos à

liturgia da sinagoga judaica. A palavra leitourgía vem do grego e designa o

serviço do povo ou obra pública. A liturgia cristã é a primeira teologia muito

antes dos grandes centros acadêmicos cristãos, pois concebe experiências de fé

na inclusão de um povo quase todo sem letramento formal. Diferentemente dos

antigos filósofos gregos, que menosprezavam as classes iletradas, as

comunidades cristãs valorizavam a cultura popular (HOORNAERT, 2016, p. 25),

com sermões que estimulavam à reflexão sem muitos recursos literários naquela

primeira etapa. Isso também incluía as mensagens anunciadas através das

imagens, ícones e gravuras registradas nos locais de reunião, designando as

43 |História do Cristianismo - FVC


bases da Teologia cristã. Consequentemente, as reuniões não possuíam uma

rígida hierarquia sacerdotal, mas havia por certo uma ordem contínua, com

orações, homilia (pregação em diálogo), cânticos espirituais e a eucaristia ao final

(1Coríntios 11,26).

● Forte apelo escatólógico: As primeiras gerações de cristãos foram entusiastas

no quesito esperança. Em resumo, trata-se de um imenso fervor acerca da

expectativa da segunda vinda de Jesus Cristo, a qual foi esfriando nas gerações

seguintes, na transição para o segundo século (2Pedro 3,3-4).

● Senso de comunhão e partilha: O individualismo e a ideia de salvação individual

não eram condições evidentes nos mais antigos relatos que descrevem as

primeiras comunidades cristãs. Ao contrário, os discípulos e discípulas de Jesus

faziam questão de procurarem se assemelhar ao seu mestre, especialmente no

tocante à prática social, à solidariedade e ao desapego aos bens materiais, afinal,

no iminente mundo vindouro eles não seriam mais necessários.

● Unidade na diversidade: Embora nunca tenha havido uma unidade ou

comunhão perfeita nas Igrejas dos apóstolos, e tampouco tenha existido

uniformidade em suas práticas e interpretações da tradição de Jesus, a busca

por unidade foi, gradativamente sendo exercitada entre elas. Enquanto grupos

pequenos, ainda sem visibilidade social, as comunidades cristãs, mesmo

espalhadas e dispersas em meio a perseguições, sobreviviam buscando diálogo

com as culturas locais, ressignificando aspectos de seus costumes, o que

fortalecia sua identidade profunda de fé e prática.

44 |História do Cristianismo - FVC


Diante do exposto acima, convém que não se idealizem épocas, eventos e

personagens da História, esta que é sempre um percurso contingente, inacabado e

imperfeito realizado por pessoas sujeitas às mesmas e repetidas falhas. Sobre esse

aspecto, comentou a historiadora argentina Gabriela Alejandra Peña:

Não é bom idealizar, como às vezes acontece, a vida dos cristãos

do século I. Ainda que vivessem o impacto próprio do encontro

com Cristo e da conversão para a nova fé, também havia entre

eles tensões, desacordos e pecados. Tal qual acontece aos homens

e mulheres de todos os tempos, também eles experimentaram a

contradição interna de não fazer o nem que se quer mas o mal

que não se quer, a fraqueza de não poder se manter firmes nos

ideais, o desgaste, a desconfiança, os ciúmes e tantas misérias

humanas.

(PEÑA, 2014, p. 57)

2.5 As perseguições contra os cristãos


Os primeiros séculos do Cristianismo foram caracterizados por muitas

resistências perante iniciativas de violência e perseguições por parte de alguns grupos

influentes no Império Romano e, em certos momentos, até mesmo com aval de

imperadores. As perseguições eram, em princípio, locais, em determinadas cidades e

regiões no interior do Império, por conta do impacto da presença cristã mediante

45 |História do Cristianismo - FVC


culturas e políticas estabelecidas, e a consequente incompreensão de algumas classes

dominantes.

A destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 certamente estabeleceu uma

cisão mais profunda entre cristãos e judeus, e ambos, desde então, passam a ter suas

características mais diferenciadas pelas pessoas que assistiram ao episódio das invasões

das tropas romanas. Se havia alguma vantagem restante para os judeus cristãos que

pregavam Jesus Cristo no Templo e nas sinagogas, a partir do ano 70, ela já não existiria

mais. Porém, vale lembrar que o governo romano, propriamente dito, já havia

hostilizado grupos cristãos em Roma sob o domínio do imperador Nero César em 64,

entre os quais inclui-se a condenação e execução dos principais apóstolos, Pedro e

Paulo, provavelmente (PEÑA, 2014, p. 58). Assim decorre o seguinte:

O governo de Roma considerava os seguidores de Cristo

pertencentes a uma das muitas correntes religiosas judaicas

palestinas (...). Aliás, Roma via o cristianismo sem muita expressão

política. Entretanto, essa “despreocupação” não garantiu a

aceitação do movimento. Ao longo do século II, o poder

eclesiástico foi grandemente perseguido e muitos mártires foram

feitos. Contudo, apesar de haver um precedente legal na lei

romana que podia ser usado contra os cristãos – a acusação de

superstitio illicita – o governo demorou algum tempo para

distinguir os cristãos dos judeus. Até o governo de Nero (54-68),

as autoridades não faziam qualquer separação entre eles. E,


46 |História do Cristianismo - FVC
mesmo posteriormente, alguns equívocos foram cometidos a esse

respeito. Deve-se frisar ainda que a maior hostilidade nos

primeiros séculos provinha, em grande parte, não das autoridades

romanas, mas da população local.

(CAMPOS, 2014, p. 16-17)

As motivações para as perseguições empreendidas contra cristãos entre os

séculos II e III foram condicionadas por acusações diversas, esparsas e sem uma

conexão necessária entre elas, dependendo da região. Havia acusações advindas de

boatos da população em geral, e também havia acusações produzidas especialmente

em círculos intelectuais. Entre as principais acusações do primeiro grupo, conforme a

pesquisa de Peña (2014, p. 61-65), temos:

● Os cristãos são ateus: Não participando do culto oficial imperial e das religiões

orientais tradicionais, os cristãos eram vistos como sem religião, algo inadmissível

à época, hipótese a que se atribuía a causa das calamidades naturais ou

provocadas, pela irreverência das comunidades que não cultuavam os deuses

populares.

● Os cristãos praticam incesto: Ao se reunirem em horários noturnos, sem um

limite fixo para o término dos cultos, por se chamarem sempre de “irmãos” e

praticarem liturgias privativas nas casas, especulava-se que os cristãos

praticassem incesto, ação repugnante para a grande maioria das civilizações.

47 |História do Cristianismo - FVC


● Cristãos são antropófagos/ canibais: Nesse caso, manifesta-se uma repulsa

comum ao canibalismo, prática de que os cristãos eram acusados por alegarem

comer a carne e beber o sangue de seu Senhor, por ocasião da ceia, não

compreendida como ato simbólico.

Também foram elencadas as críticas produzidas por círculos de intelectuais no

Império, especialmente entre filósofos:

● Os cristãos sofrem de ignorância e de superstição: Conforme essa hipótese,

concluía-se precipitadamente sobre uma suposta incapacidade intelectual dos

grupos cristãos, devido à presença marcante de representantes de classes

subalternas, como escravos, trabalhadores, párias, peregrinos, mulheres, entre

outros. Anunciavam um reino glorioso de paz e igualdade, a ser construído por

meio da justiça, relações fraternas, solidariedade e comunhão entre as pessoas

e o Criador. Tudo parecia um tanto utópico e irrealizável em se tratando de

classes sociais tão distantes da racionalidade dos filósofos. Essas posturas eram

inadmissíveis para as classes intelectuais no Império, segundo suas culturas sob

influxo da filosofia grega. Assim, trata-se de um aspecto que certamente gerava

outros preconceitos e tipos de exclusão das comunidades cristãs. No entanto,

sabe-se que entre as Igrejas havia não apenas grupos de iletrados e pobres, mas

pessoas de todos os estratos sociais, também funcionários do alto escalão do

Império e de condições econômicas destacadas.


48 |História do Cristianismo - FVC
● Cristãos não praticam a cidadania: Os grupos da fé em Jesus não eram

participantes das solenidades e ritos civis dos romanos, sem frequentar o culto

ao imperador. Também não veneravam seus bustos e monumentos sagrados,

desestimulando o alistamento no exército, e nem defendiam os ideais e

interesses políticos imperiais, alegando que o poder secular não lhes importava

como os bens celestiais. Essas atitudes frente à sociedade e à cultura político-

religiosa vigentes renderam críticas e acusações de serem os cristãos apátridas

e inimigos do imperador.

● Ser cristão, em suma, equivale a ser irracional: Os seguidores de Jesus

acreditam que ele ressuscitou dos mortos, acreditam que ele voltará em corpo

incorruptível e em glória, creem que existe céu e inferno, acreditam conciliar a

contradição entre o Deus punitivo do Antigo Testamento e o Deus amoroso do

Novo Testamento. Para os críticos dos cristãos, nenhuma dessas crenças se

explica racionalmente, o que abriu margem às mais diversas piadas e chacotas

dos mestres filósofos.

Assim sendo, ficaram enumeradas algumas das mais divulgadas acusações que

foram endereçadas aos cristianismos no Império Romano, entre os séculos II e III. Com

essas acusações, abriu-se um caminho para o investimento em forma de violências,

intolerância e exclusão das comunidades cristãs estabelecidas, sobretudo em algumas

metrópoles como em Roma e outras regiões na Itália, Palestina, Egito e outras partes

49 |História do Cristianismo - FVC


no norte da África (IRVIN; SUNQUIST, 2004, p. 116). Interessante notar que as

comunidades, embora intoleradas, buscavam e desenvolviam mais unidade,

organização interna, formulações teológicas em diálogo com as filosofias vigentes,

apesar das divisões e divergências internas de acordo com a região.

Diante das críticas externas, as teologias eram produzidas em formato

apologético (defesa da fé), como entre os conhecidos padres apologistas (Carta a

Diogneto, Aristides de Atenas, Taciano Sírio, entre outros) e antignósticos e polemistas

(Ireneu de Lyon, Tertuliano, Cipriano, por exemplo). Diante das divergências internas,

as teologias apareciam em reflexões mais pastorais, com orientações práticas, litúrgicas,

éticas, exortativas. Esse grupo inclui também os polemistas, mas com início desde os

padres apostólicos os quais teriam conhecido os primeiros apóstolos (Policarpo de

Esmirna, Clemente romano, Inácio de Antioquia, a Didaquê…), incluindo os padres

alexandrinos (Clemente alexandrino, Orígenes), Hipólito de Roma, entre outros.

Muitas pessoas reconhecidas pela historiografia ou não, canonizadas ou

anônimas, sofreram martírio por causa de sua profissão de fé no contexto do Império

Romano, como alguns dos teólogos citados acima. São conhecidos os testemunhos de

intolerância em nome de imperadores como Nero, Domiciano, Trajano, Adriano, Marco

Aurélio, a dinastia ambivalente dos “Severos” (Septímio, Caracala e Alexandre), Décio,

Valeriano, Diocleciano. Alguns mais brandos e tolerantes, outros mais implacáveis como

Décio e Diocleciano, nenhum deles deve ser responsabilizado de forma unilateral pelo

martírio de cristãos, judeus e membros de outras religiões de fora do escopo greco-

romano. Havia confluências que não surgiam apenas de cima ou do nada, mas se

50 |História do Cristianismo - FVC


estabeleciam também através de outros movimentos que construídos lentamente com

base em boatos, preconceitos e especulações de grupos e massas populares, como

vimos anteriormente no caso das acusações, como também se dá no exemplo das fake

news das redes sociais no ambiente virtual hodierno.

2.6 Epílogo: Constantino e o fim às perseguições


A transição para o século IV revelou uma reviravolta no cenário político e

religioso do Império Romano. Constantino I, o primeiro imperador romano a ter se

declarado cristão, estabeleceu o Édito de Milão em 313, que colocava um ponto final

às perseguições contra cristãos. O decreto também conferiu direitos e proteção aos

sacerdotes cristãos em toda a jurisprudência imperial. Desde então, a religião cristã se

aproximou da política do imperador de forma mais direta, rumo a uma posição de

destaque que seria alcançada em poucas décadas.

Sobre a disposição do imperador em se aliar aos cristãos, sugerimos uma leitura

não romantizada, sendo Constantino um chefe de Estado que assumiu um Império em

crise, diante das ameaças dos bárbaros ao redor de Roma. O imperador reedificou

Bizâncio, na parte oriental do Império, dando-lhe o nome de Constantinopla, eleita

nova sede única do Império durante seu domínio, preocupado com as investidas

bárbaras sobre a antiga sede. Uma observação: quão pouco sabemos sobre as tradições

cristãs asiáticas e africanas! A grande maioria dos livros de História do Cristianismo ou

da Igreja narra apenas os fatos que envolveram a parte ocidental da história. Necessário

é aprofundar a leitura desse outro lado da história, como em Irvin e Sunquist (2004) e

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em Paiva (2019).

Voltando ao raciocínio anterior sobre o Império, desde Diocleciano no século III,

o Império estava dividido em duas partes, ocidental e oriental, e esfacelado em outras

duas regiões administrativas, resultando numa tetrarquia (quatro governantes).

Constantino tinha como principal pretensão reunificar o Império e fortalecer seu

exército com apoio da sociedade civil, que contava já com uma quantidade enorme de

Igrejas. Isso foi alcançado em parte através de sua repentina “adesão” pública à fé

cristã, mas qual seria o preço a ser pago pelos cristianismos no Império e pelo povo

de modo geral? É o que estudaremos na próxima Unidade.

Figura 8: Constantino I, declarado oficialmente imperador romano a partir de 306


Fonte da Imagem: Google Imagens

2.7 Síntese da Unidade


O campo de discussão desta Unidade teve como objetivo central a exposição

dos eventos que marcaram a trajetória dos cristianismos, desde suas origens apostólicas

até a ascensão de Constantino. Tratamos das principais características da relação de fé

entre discípulos e discípulas de Jesus, a partir do horizonte histórico do mestre

nazareno. Observamos as relações dos seguidores de Jesus Cristo com sua cultura

religiosa originária, o judaísmo palestino, bem como os desdobramentos dessas

relações em outras regiões como Antioquia e na missão de Paulo apóstolo.


52 |História do Cristianismo - FVC
Situamos as questões em torno da caracterização básica das primeiras

comunidades cristãs, sem idealizações ou romantismo narrativo, sabendo-se que havia

um dinamismo e uma complexidade própria de um tempo que nem sempre é possível

mapear com muita precisão.

Na passagem aos séculos II e III, enfatizamos sobre as perseguições

empreendidas contra diversos grupos cristãos no âmbito do Império Romano. Fizemos

um breve comentário final sobre o fim das perseguições e o Édito de Constantino,

deixando reflexões a serem retomadas na próxima Unidade, que estudará os

Cristianismos no período medieval.

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3

Os Pais da Igreja: um Panorama


O período dos chamados Pais da Igreja ou Padres da Igreja compreende uma

fase de complexas transições na vida das comunidades cristãs situadas no Império

Romano. Essas transições, de modo geral, equivalem a uma passagem da Era Antiga

para a Era Medieval, ao que se acenou na Unidade anterior. As personalidades que

serão estudadas na presente Unidade viveram entre os séculos II e V. Pode esse período

dos Pais da Igreja ser considerado, em alguns historiadores, até os séculos VII e VIII,

de acordo com Luigi Padovese (2004, p. 21). Estiveram esses personagens situados em

vários pontos geográficos em torno do Mediterrâneo, a maioria dos quais estava ainda

sob domínio romano.

Figura 9: Luigi Padovese (1947-2010) foi um bispo católico italiano, professor de Teologia e
História na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e presidente da Conferência Episcopal Turca.
Padovese morreu aos 63 anos, assassinado a facadas no sul da Turquia quando ia se encontrar com o
papa em 2010.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

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Figura 10:Estudar o período patrístico é de fundamental importância para os percursos da
formação em Teologia.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

As Igrejas, nesse período, construíram também uma transição em sua

organização geral: da pluralidade de movimentos comunitários sem um único poder

central, rumo à institucionalização que, para a tradição ocidental, culmina com a

consolidação da hierarquia eclesiástica, com centralização administrativa em Roma. O

relato de Volney Berkenbrock nos auxilia nessa direção:

Os discípulos de Jesus, após a experiência da ressurreição e

ascensão, vão sair a pregar sua mensagem e formando

comunidades cristãs. Essas comunidades se chamavam Igrejas e

não havia inicialmente nenhuma unidade institucional. Todos se

entendiam como cristãos e unidos em Cristo, mas não a uma única

organização. Em menos de 100 anos, já havia comunidades cristãs

em praticamente todo o Império Romano. Mesmo tendo sofrido

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perseguição aqui e ali, no século IV o Cristianismo já representa

uma força importante dentro do império. Com a conversão do

imperador Constantino, pelo ano 312, o Cristianismo vai passar a

ser uma religião lícita e o próprio Império Romano passa a se

preocupar com uma maior unidade entre as Igrejas cristãs, dado

que tal unidade era importante para manter unido o próprio

império em decadência e dividido.

(BERKENBROCK, 2019, p. 123)

O contexto histórico, político e social dos chamados Pais da Igreja é justamente

um contexto atravessado pelas mudanças acima descritas. Segundo Campenhausen

(2005, p. 11), Pais da Igreja designa “o título utilizado para descrever os escritores

ortodoxos da Igreja Primitiva”. Logo, percebemos uma grande importância conferida

pela Tradição cristã a determinados nomes em detrimento de tantos outros nos

primeiros séculos de sua formação. Ortodoxos são aqueles considerados portadores de

ensinamentos corretos e adequados à experiência legada por Jesus de Nazaré à

comunidade de fé que se constituiu em Jerusalém no século I. A ideia de “Pai” (do

grego pater, da qual veio a expressão “padre”), atribuída a um grupo seleto de pessoas

na História do Cristianismo, reflete, entre outras questões, aspectos de uma reconhecida

autoridade espiritual ou “paternidade espiritual” (PADOVESE, 2004, p. 18).

Através das páginas que se seguem, você, estudante, poderá investigar e refletir

mais sobre alguns pensadores cristãos que, em diálogo com suas respectivas

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comunidades de fé, estabeleceram as bases das grandes tradições teológicas nos

últimos séculos da Antiguidade, formando um limiar aberto à formação da cristandade

medieval. Esse contexto sociorreligioso muito geral também é conhecido como

Patrística.

Nesta Unidade, refletiremos sobre a concepção de Patrologia, o contexto social

patriarcal do mundo antigo e a produção dos conhecimentos, as tipologias e divisões

em determinados grupos cristãos e, por fim, uma breve introdução aos primeiros

Concílios Ecumênicos do período em foco.

3.1 Introdução à Patrologia


Patrologia é um termo que tem como raiz o sentido da palavra “Pai” e sua

primeira ocorrência remete ao teólogo protestante alemão Johann Gerhard, falecido

em 1637. A Patrologia é literalmente a reflexão teológica sobre os Pais da Igreja. O

termo Patrologia surgiu em um contexto de conflitos teológicos entre católicos e

protestantes, e foi estabelecido no âmbito da investigação sobre as doutrinas em

tensão à época, com o constante apelo à antiguidade das tradições para provar sua

legitimidade (PADOVESE, 2004, p. 21). É possível dizer que essa necessidade de

demonstração da antiguidade das crenças fundamentais do Cristianismo era comum já

nos tempos da própria Patrística mediante as polêmicas e disputas teológicas e

filosóficas típicas daquela época.

Enquanto disciplina acadêmica, a Patrologia possui uma longa história de

aproximações e até mesmo equivalências em relação à Apologética (defesa da fé). Por

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conta dos critérios que definiram o que seria ortodoxia e o que seria heresia, a

Patrologia desenvolveu estudos muito mais no sentido de enaltecer o legado dos

autores que foram consagrados como ortodoxos, menosprezando todos aqueles tidos

como hereges. Destes últimos, pouquíssimos fragmentos de suas obras resistiram ao

tempo e aos confrontos político-teológicos, e na maioria das vezes, os hereges são

conhecidos através das citações combativas dos padres que eram seus opositores e

representavam o ideal de ortodoxia em seu tempo.

A disciplina Patrologia, portanto, para assumir um desenvolvimento de caráter

mais científico, deverá reconhecer os excessos cometidos historicamente em nome da

distinção entre hereges e ortodoxos estabelecida pela hierarquia da Igreja em favor das

interpretações dominantes. Assim, os gnósticos, por exemplo, contribuíram de modo

efetivo às adaptações dos Cristianismos em ambientes que não lhes eram simpáticos.

A pesquisa atual não tem razões para estudar o Gnosticismo com o mesmo espírito

apologético, entusiasta e truculento, que marginalizou esse movimento, mas sim

considerar, ao contrário, abertura às várias possibilidades de nuances e perspectivas

para avaliar o antigo movimento gnóstico.

A Igreja Católica Romana e as Igrejas Católicas Orientais abordam sobre os Pais

da Igreja e a Patrologia geralmente de modo amplo, desde os textos litúrgicos e

catequéticos do cotidiano eclesial até a formação acadêmica mais específica em

Seminários, Faculdades e Universidades. Já nos meios protestantes e principalmente

entre os pentecostalismos modernos, pode ser notada uma abordagem à Patrística não

tão ampla ou exaustiva sobre o tema, embora alguns nomes sejam pontualmente

59 |História do Cristianismo - FVC


destacados como Agostinho de Hipona ou conhecidos mártires que inspiram

pregações, a exemplo de Policarpo de Esmirna e Justino.

Figura 11: Policarpo de Esmirna (69-156)


Fonte da Imagem: Google Imagens

Figura 15: Justino Mártir (100-165)


Fonte da Imagem: Google Imagens

O teólogo protestante John Norman Davidson Kelly (1994) expôs alguns

antecedentes históricos, filosóficos e religiosos que formam uma espécie de pano de

fundo para uma boa imersão nos estudos patrísticos. Conhecer algumas dimensões

básicas dos contextos em que viveram os Padres da Igreja auxilia positivamente nas

reflexões e nos métodos de investigação de suas biografias, contradições e ideais.

Kelly (1994, p. 3) apresentou o Judaísmo como um aspecto prioritário no

tratamento da formação do pensamento cristão, devido à grande dívida do Cristianismo

para com as fontes judaicas. A evolução da Teologia e das principais reflexões cristãs

representa uma gradual ruptura com a sinagoga, incluindo diversas ressignificações das

60 |História do Cristianismo - FVC


doutrinas e da ética judaicas, contra outras apropriações e extrapolações do Judaísmo

em algumas partes do universo romano.

Figura 13: Reverendo John N. D. Kelly (1909-1997), pastor e teólogo protestante.


Fonte da Imagem: Google Imagens

Uma das principais fontes de controvérsias e debates nos Cristianismos entre a

Antiguidade e a Era Medieval era a filosofia de inspiração greco-romana. De acordo

com Kelly (1994, p. 11), a filosofia era uma espécie de “religião mais profunda da

maioria das pessoas de inteligência” e, consequentemente, servia a elas como “uma

estrutura intelectual para expressarem suas ideias”. Sabemos que filosofia e religião

são, em tese, concepções de mundo muito distintas, mas o que John Kelly propôs

refere-se ao platonismo e ao estoicismo, que, com suas teorias do conhecimento que

mesclam misticismo, especulação e reflexões éticas, tornaram-se tendências influentes

sobre culturas e civilizações no âmbito imperial e também sobre as comunidades cristãs,

especialmente a partir do século II. Dessas tendências decorre também o

desenvolvimento do neoplatonismo e do gnosticismo (KELLY, 1994, p. 15-20).

61 |História do Cristianismo - FVC


Todo o espectro de discussões em Patrologia, seja em caráter apologético ou

nível científico, deve levar em consideração esses antecedentes de ordem histórica,

social, cultural e religiosa. Sem eles, não fariam qualquer sentido à investigação as

muitas controvérsias teológicas e políticas do período patrístico, nem mesmo as

releituras cristãs posteriores que fizeram desses mesmos fatos.

3.2 Pais e Mães das Tradições


É muito importante ressaltar que, além dos Pais, também há as Mães das Igrejas,

desde Maria, mãe de Jesus e Maria Madalena até Tecla no século II, sobre quem

sabemos através de literatura cristã “apócrifa”. As mulheres realizaram não apenas uma

contribuição importante à evangelização cristã; a atividade delas constitui condição sine

qua non para todo o processo de desenvolvimento e expansão das Igrejas pelo mundo

romano. Os mesmos Pais da Igreja que batalharam por coerência entre sua comunhão,

seu culto e suas crenças elementares, também praticaram misoginia e estiveram em

sintonia com o espírito do patriarcado que regia as relações sociais dos povos antigos

e atuais. Exemplos dessa prática podem ser encontrados em Tertuliano, S. João

Crisóstomo e S. Jerônimo, conforme apontado por Fonseca (2018).

A maioria dos teólogos do período patrístico atribuía unilateralmente às

mulheres a culpa pelo pecado da humanidade (BRAGA, 2014). Isso representou um

horizonte de compreensão teológica que fundamentava regras, práticas e discussões

que visavam diminuir ou menosprezar o valor do feminino na constituição das Igrejas,

das normas, do Estado e das sociedades civis.

62 |História do Cristianismo - FVC


Sabemos, no entanto, que as figuras femininas, mesmo não tendo acesso à

escrita e à leitura ou à instrução formal na mesma medida que os homens, e, por isso,

não deixaram material autoral escrito, são personagens relevantes desde os primeiros

séculos cristãos, ao menos do ponto de vista da evangelização e do martírio.

Neste último aspecto, é bem conhecido o relato sobre a execução de Perpétua

e Felicidade, duas mulheres africanas advindas de uma classe social próspera em

Cartago (Tunísia), sendo que Felicidade era escrava. Acredita-se que Perpétua teria

escrito um diário sobre seus últimos dias antes do martírio, o qual foi divulgado

posteriormente, e cujo manuscrito mais antigo que se conserva no tempo presente

remete a não antes do século VI. Perpétua e Felicidade foram martirizadas, sob o

comando do imperador Septímio Severo, que reinou entre 193 e 211, investindo

coerções e violências contra comunidades cristãs em algumas jurisdições imperiais a

partir de 202 -203.

[Septímio] Severo ordenara que a violência fosse usada contra os

novos convertidos para dissuadir o povo de entrar no movimento

[cristão]. Perpétua estava entre tais novos fiéis, jovem mãe de um

bebê. Felicidade era sua escrava, ela mesma grávida de oito meses

quando foi presa. Vinham de uma família relativamente abastada,

o que tornou sua decisão de entrar na família cristã ainda mais

subversiva aos olhos das autoridades romanas, pois, desafiando a

autoridade do pai, Perpétua desafiava a sociedade romana no seu

próprio cerne. Depois de um julgamento perante o magistrado


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local, ambas as mulheres foram condenadas a enfrentar as feras

na arena no dia do aniversário do filho do imperador.

(IRVIN; SUNQUIST, 2004, p. 117)

Figura 12: Perpétua e Felicidade, duas jovens africanas martirizadas no século III, em virtude de
sua fé.
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Não há como refletir sobre a vida dos Pais da Igreja sem que se tome consciência

da existência de dezenas de milhares de mulheres que exerceram fundamentalmente a

evangelização, o testemunho e o anúncio da mensagem cristã com coragem e

determinação diante das ameaças políticas.

3.3 Padres Latinos e Padres Gregos


Durante quase toda a Idade Média, os escritos dos Padres da Igreja não foram

utilizados com a mesma intensidade do que nos séculos que lhe precederam, e,

sobretudo, do que nos tempos do Renascimento, da Reforma Protestante e dos

movimentos de renovação na Igreja Católica Romana a partir do século XIX.

O Renascimento, com seu retorno à Antiguidade clássica do Ocidente, produziu

novas traduções de coleções inteiras dos autores mais conhecidos da Patrística, como

64 |História do Cristianismo - FVC


Agostinho, Cipriano, Hilário, Ambrósio, Irineu, João Crisóstomo, como lembrou

Padovese (2004, p. 33).

A Reforma Protestante, juntamente com a criação da imprensa, possibilitou

novos debates para reafirmação de determinados estilos de Cristianismo com base na

recuperação das teologias protocristãs e patrísticas. A perspectiva anticatólica, ou

melhor, antirromana dos reformadores colocou em foco os estudos sobre os Pais da

Igreja, o que proporcionou, inclusive, novos projetos de pesquisa patrística para a

resposta apologética católica romana (Contrarreforma).

O debate com os protestantes entre os séculos XVI e XIX fez com que

aumentasse a demanda de produções teológicas e históricas sobre os Pais da Igreja na

perspectiva católica, o que demarcou a divisão patrística entre Pais Gregos e Pais

Latinos.

Os primeiros, de escrita grega, viveram em regiões como Turquia, Europa

oriental, Palestina, Síria e Egito. Nesse grupo, encontramos Irineu de Lyon, os padres

alexandrinos (Clemente, Orígenes, Atanásio, Cirilo), João Crisóstomo, Basílio de Cesareia,

entre outros.

O segundo grupo escreveu em latim e estava mais concentrado em regiões da

Europa ocidental e em grande parte do norte africano. Entre os mais conhecidos Pais

latinos, estão Clemente Romano, Tertuliano de Cartago, Cipriano de Cartago, Jerônimo,

Ambrósio e Agostinho de Hipona.

Devido à quantidade de textos produzidos, a divisão em Latinos e Gregos ajudou

na concepção final das imensas coleções produzidas por tradutores e editores católicos
65 |História do Cristianismo - FVC
durante o século XIX, cujo exemplo mais famoso é do padre francês Jacques Paul Migne

(1800-1875). Seu trabalho é reconhecido por ter reunido a Patrologia Latina (PL) em

221 volumes e também a Patrologia Grega (PG) em 162 volumes, edições de referência

até o presente momento.

Figura 14:Jacques Paul Migne (1800-1975)


Fonte da Imagem: Google Imagens

No mercado editorial brasileiro, a Paulus, editora católica administrada pela Pia

Sociedade de São Paulo, congregação religiosa católica fundada na Itália, tem em seu

acervo uma coleção de obras dos Pais gregos e latinos, sob o título “Patrística”,

contando atualmente com 51 volumes, revisada e editada a partir dos anos 1990

3.4 Pais Apostólicos


Importante ressaltar que há outras formas de classificação dos Padres da Igreja

que não estão ligadas apenas ao aspecto linguístico, geográfico e cultural, como na

representação acima. A aproximação histórica em relação à geração apostólica no

século I estabelece um critério que confere a alguns escritores e líderes cristãos do

século II o título de Padres Apostólicos. São assim chamados porque, em sua grande

maioria, foram batizados pelos apóstolos de Jesus Cristo ou por discípulos da primeira

66 |História do Cristianismo - FVC


geração do cristianismo. Conforme dissemos anteriormente, a antiguidade de

determinada tradição, texto ou ensino constituía quesito privilegiado para sua avaliação

como verdadeira ou falsa. A relação dos Padres Apostólicos conta com alguns autores

e escritos bem conhecidos, conforme a explicação que se segue:

Finalizando o século I e começando o seguinte, desenvolveram sua

atividade os membros da segunda geração cristã, a que sucedeu

a dos apóstolos. Os escritores dessa época são conhecidos como

Padres Apostólicos. Entre eles, destacam-se Inácio, da comunidade

de Antioquia, Aristides, da comunidade de Atenas, Papias, da

comunidade de Hierápolis, Clemente de Roma e Policarpo, da

Igreja de Esmirna. Também os autores anônimos da Didaché, a

epístola de Barnabé, e O Pastor (atribuído a um cristão de Roma

chamado Hermas). Mais que escritores, tratam-se de pastores que

escrevem para suas comunidades a fim de animá-las em sua fé,

transmitir-lhes o que eles mesmos receberam dos seguidores de

Jesus, aconselhá-los, explicar-lhes algumas questões essenciais e

chamá-los à reflexão. São textos que não se propõem a expor

sistematicamente conteúdos doutrinais, embora possuam também

certo valor nesse aspecto, mas dizem muito sobre a vida das

comunidades, suas dificuldades, inquietações e interrogações, seus

costumes, práticas e convicções

(PEÑA, 2014, p. 63-64)

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O teólogo sueco Bengt Hägglund (1920-2015) asseverou em sua História da

Teologia, publicada em 1956, que os escritos dos Pais Apostólicos, “em sua grande

maioria de natureza incidental (cartas, homilias), são de valor para nós porque, ao lado

do Novo Testamento, são as fontes mais antigas que possuímos como testemunho da

fé cristã” (HÄGGLUND, 2003, p. 13).

Temas básicos foram trabalhados nesses escritos de modo a contemplar, ainda

que sem uma organização sistemática, muito do que se entende por fé cristã. Aspectos

envolvendo a moral, a justiça, salvação, pecado, Escrituras, Deus, cristologia, o conceito

de Igreja e a escatologia fazem-se presentes nos Padres Apostólicos e constituem

orientações pastorais cuja natureza difere da ênfase da geração que os sucedeu: os

Apologistas.

3.5 Padres Apologistas


O segundo grupo a ser apresentado em nossa reflexão intitula-se Apologistas.

Esse título refere-se ao fato de terem sido representantes de um movimento

apologético, isto é, de defesa da fé mediante as críticas e ataques feitos por pensadores

e filósofos dos sistemas helenistas e greco-romanos, dirigidos às comunidades cristãs

que se desenvolviam em algumas metrópoles do Império. Não apenas isso, mas merece

destaque “uma intenção missionária e catequética”, segundo Peña (2014, p. 65).

Ademais, os escritos desse grupo de lideranças cristãs fornecem as primeiras

pistas para as relações entre fé e filosofias, e as primeiras concepções de ortodoxia

68 |História do Cristianismo - FVC


com elaboração de critérios, em contraposição ao que se estabelecia como heresia.

Tais debates se estenderam até, no mínimo, o século V, quando ficaram estabelecidos

os dogmas (decretos) que representavam a perspectiva da ortodoxia e das maiorias

episcopais que deliberaram nos grandes concílios ecumênicos que visavam resolver os

impasses e garantir maior unidade entre as dioceses.

Pertencem a esse quadro dos Apologistas os que acreditavam que o Cristianismo

é a verdadeira filosofia, e não aquela produzida por Sócrates ou Platão; aqueles que

entendiam que o Cristianismo é a verdadeira religião, ou, no mínimo, uma religião mais

aperfeiçoada do que aquela professada através das leis e ritos judaicos. Tanto os judeus

com seus sistemas rituais, quanto os gregos com a filosofia, eram considerados

incapazes de responderem as grandes questões feitas pela humanidade. Os apologistas

defendiam a fé cristã da crítica dos intelectuais e das massas da população, rebatendo

com argumentos que buscavam a reafirmação dos valores que julgavam permanentes

na revelação de Jesus Cristo. De acordo com Boehner e GIlson (2012), alguns dos

principais teólogos cristãos acreditavam na validade de uma verdadeira e real Filosofia

cristã.

1. Uma Filosofia Cristã consta exclusivamente de proposições suscetíveis a uma

demonstração natural (racional).

2. Uma Filosofia Cristã jamais irá de encontro às verdades de fé claramente

formuladas pela Igreja.

a) A fé preserva a Filosofia de muitos erros.


69 |História do Cristianismo - FVC
b) A fé propõe algumas metas ao conhecimento racional.

c) A fé condiciona a atitude de abertura do Filósofo cristão.

d) A fé determina o sentido do trabalho filosófico.

3. A Filosofia cristã guia-se mais por tradições coletivas (comunitárias), do que

por méritos e gênios individuais.

4. Uma Filosofia cristã tende a fazer maior seleção dos problemas discutidos.

5. A Filosofia cristã elaborou tendências à sistematização.

6. Principais temas da Filosofia cristã: Conceitos de Deus, Doutrina do Lógos,

Doutrina da Sabedoria Cristã.

Segundo Hägglund (2003, p. 21), o mais notável do grupo dos Apologistas

chamava-se Justino, cognominado “mártir”, cujas principais obras são de meados do

segundo século. A obra mais conhecida de Justino chama-se Diálogo com Trifão (ou

Trifo, um judeu crítico das ideias cristãs). A grande prerrogativa no pensamento de

Justino era a concepção segundo a qual a filosofia grega não era necessariamente um

produto da vaidade humana, mas as “sementes do Verbo” (lógos spermatikós), que

Deus havia plantado sobre os povos antigos, preparando a história para a chegada do

Messias. Conforme Hägglund (2003, p. 23), a chave de compreensão desse termo não

era a conhecida filosofia estoica de onde o extraíram, mas sim, tratava-se de uma chave

cristológica, pois, segundo as Escrituras, Jesus Cristo é o Lógos (Palavra, Verbo) de

Deus.

Outros autores também são reconhecidos pela Patrologia como Apologistas, por

70 |História do Cristianismo - FVC


exemplo: Aristides, Taciano, Atenágoras, que escreveram textos que datam entre 160 e

170. Além destes, incluem-se Teófilo de Antioquia e dois textos anônimos: Carta a

Diogneto e Cohoratatio ad Graecos, este último já pertencente ao terceiro século, de

acordo com Hägglund (2003, p. 21).

Desse grupo, houve uma ramificação mais específica, intitulada “Antignósticos”,

os quais teceram críticas ofensivas direcionadas contra os movimentos gnósticos nas

Igrejas antigas em algumas regiões como na Itália e na Turquia. Os mais ilustres

fomentadores da teologia antignóstica chamavam-se Irineu de Lyon, Tertuliano e

Hipólito de Roma. Destes, Tertuliano era o mais divergente quanto à utilização dos

recursos da filosofia pagã, para a argumentação teológica. Dele é a clássica frase, em

De praescriptione haereticorum, capítulo sétimo.

Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a

Igreja? Ou os hereges com os cristãos? A nossa doutrina vem do

pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na

simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um

cristianismo de tipo estoico, platônico e dialético! Quanto a nós,

não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo

Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a

fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para

além da fé nada existe que devamos crer.

71 |História do Cristianismo - FVC


Ainda são discutíveis na Historiografia as reais motivações e condições dessa

teologia que visava eliminar de cena grupos específicos geralmente interpretados como

uma ameaça à unidade das Igrejas e à coerência com os ensinos de Jesus. É comum

associar os grupos gnósticos com a heresia docetista, que apregoava que Jesus Cristo

não veio em carne de fato, possuía apenas aparência humana (do verbo grego dokeo,

parecer), como no caso de denúncias que foram feitas contra os gnósticos Marcião,

Valentim e seus seguidores. Trata-se de uma opinião atribuída a esses grupos, que em

tese acreditavam que Jesus não nasceu de Maria, mas através de Maria, não tendo

recebido qualquer coisa de corpóreo (PADOVESE, 2004, p. 47).

É necessário relembrar que conhecemos bem pouco sobre os escritos gnósticos,

muito sabemos do que seus delatores escreveram sobre eles, a exemplo do famoso

texto de Irineu de Lyon, Contra as Heresias (Adversus Haereses), provavelmente a mais

ampla refutação antignóstica já publicada. Apenas de forma muito incipiente e recente,

a investigação arqueológica e histórica tem reencontrado alguns textos gnósticos que

remetem aos primeiros séculos do Cristianismo, como os evangelhos achados no

vilarejo de Nag Hammadi, no Egito, em 1945.

3.6 Alexandrinos
Os Padres Alexandrinos formavam uma escola de pensamento cristão e

interpretação das Escrituras nas comunidades de Alexandria, no Egito. Seus mais

conhecidos representantes foram Clemente Alexandrino (150-215) e Orígenes (185-

253), um dos mais criativos teólogos do século III. A interpretação alegórica ou exegese

72 |História do Cristianismo - FVC


alegórica da Bíblia representou um dos principais diferenciais desse grupo de

pensadores.

É notável o fato de que a maioria dos teólogos alexandrinos não faz parte do

rol dos santos canonizados pela Igreja Católica, devido à heterodoxia de suas teses,

por suas críticas e dissonâncias face à visão das lideranças constituídas nas dioceses

maiores. Eles, no entanto, tiveram o mérito de manter o essencial da reflexão cristã em

fecundo diálogo com as filosofias de matriz grega, segundo Hägglund (2003, p. 49),

apesar dos mal-entendidos e debates sobre seus textos. Orígenes, por exemplo, é visto

como o primeiro precursor da sistematização da Teologia, ou Teologia sistemática.

3.7 Os Capadócios
Outro grupo a ser refletido brevemente neste parágrafo é o dos Padres

Capadócios, dos quais se destacam Basílio de Cesareia (ou Basílio Magno), Gregório de

Nissa e Gregório de Nazianzo. A região deles, a Capadócia, localiza-se na atual região

da Anatólia central, na Turquia. Basílio e Gregório de Nazianzo são reconhecidos entre

os oito grandes Padres da Igreja:

● Padres Latinos: Ambrósio de Milão (340-397), Jerônimo de Estridão (347-420),

Agostinho de Hipona (354-430) e Gregório Magno (540-604).

● Padres Gregos: Basílio de Cesareia (329-379), Atanásio de Alexandria (296-373),

Gregório de Nazianzo (329-389), e João Cristóstomo (347-407).

73 |História do Cristianismo - FVC


Os capadócios produziram suas reflexões no período que compreende um

ínterim entre dois importantes concílios ecumênicos da Antiguidade: o Concílio de

Niceia (325) e o I Concílio de Constantinopla (381). Suas preocupações e elaborações

teológicas contribuíram de modo efetivo ao tema da Santíssima Trindade e à

Pneumatologia, a teologia acerca do Espírito Santo. A obra intitulada Tratado sobre o

Espírito Santo, de Basílio Magno, é um dos principais textos já produzidos sobre o tema

na História do Cristianismo, comparável a algumas obras de Santo Agostinho de

Hipona, seu mais ilustre contemporâneo latino.

Figura 16: Os três Padres Capadócios, séc. IV..


Fonte da Imagem: Google Imagens

3.7 Agostinho de Hipona


Entre suas principais obras, encontramos “Confissões”, “Cidade de Deus” e “A

Trindade”, além de centenas de sermões escritos. O Bispo e teólogo africano Agostinho

de Hipona (354-430) é considerado uma espécie de “Platão da Igreja” no contexto do

catolicismo pré-medieval, ressoando por toda a Idade Média. Ele tem sido reconhecido

por sua capacidade de realizar sínteses entre o platonismo e o neoplatonismo, incluindo

outras vertentes filosóficas e as questões religiosas e teológicas.

74 |História do Cristianismo - FVC


Figura 17: Agostinho de Hipona, teólogo africano, considerado um dos oito grandes Padres da
Igreja.
Fonte da Imagem: Google Imagens

3.7 Epílogo: Os Concílios Ecumênicos


O período patrístico foi marcado por inúmeras disputas teológicas e debates que

mesclavam interesses pastorais, éticos, eclesiásticos e políticos, sobretudo a partir do

século IV. Alguns concílios foram realizados desde a época de Constantino, com o

objetivo de estabelecer concordâncias e eliminar as controvérsias que dividiam as

Igrejas, nesse momento institucionalizado. Um concílio pode ser conceituado

historicamente da mesma forma que um sínodo eclesiástico, conforme a seguinte

explicação:

Os concílios são assembleias, reuniões amplas, cujos participantes

são fundamentalmente os bispos, ainda que possa haver a

participação – sem direito a voto – de outros clérigos e também

de leigos. Durante os concílios podem ocorrer debates de cunho

teológico ou disciplinar, que geralmente resultam na deliberação

de uma norma, sentença ou esclarecimento doutrinal na forma de

75 |História do Cristianismo - FVC


um cânone. O cânone é o pronunciamento final de um concílio ou

sínodo e, muitas vezes, é introduzido pela expressão latina placuit

inter eos (concordou-se entre eles), a qual aponta para o caráter

de decisão colegiada, a qual suplanta, ou sobrepõe-se, ao nível do

individual, do local.

(CARVALHO JÚNIOR, 2013, p. 2)

Geralmente, os concílios são convocados para debates e resoluções em caráter

regional ou mais abrangente, mediante impasses de ordem teológica, moral ou

administrativa. Os quatro grandes concílios ecumênicos realizados em cidades

pertencentes à atual Turquia, entre os séculos IV e V, foram os seguintes

● Niceia (325): Concílio convocado pelo imperador Constantino, com o intuito de

resolver a controvérsia ariana. O líder Ário de Alexandria (256-336) ensinava uma

doutrina que ficou conhecida como arianismo, que buscava demonstrar que

Cristo não era consubstancial a Deus Pai. Dessa forma, o arianismo não concebia

o Filho como um ser divino na mesma condição do Pai, o que gerou muitas

discordâncias, divisões nas comunidades e debates. O Concílio de Niceia foi

presidido pelo imperador Constantino, o qual terminou por condenar o

arianismo como heresia, tendo Atanásio (296-373), arcebispo de Alexandria,

como grande vencedor do debate. Atanásio defendeu que o Filho é da mesma

substância do Pai, constituindo um passo importante na formação do dogma da

Santíssima Trindade.

76 |História do Cristianismo - FVC


● Constantinopla I (381): Concílio que condenou algumas heresias sobre o

Espírito Santo, como no caso dos macedônios que negavam sua divindade, além

da doutrina de Apolinário de Laodiceia (310-390) que negava a real humanidade

de Cristo (PEÑA, 2014, p. 99).

● Éfeso (431): Sínodo convocado para a condenação da doutrina de Nestório (386-

451), arcebispo de Constantinopla. O chamado nestorianismo negava a

maternidade divina de Maria, considerando que ela foi mãe apenas do homem

Jesus, não de Deus. O debate teológico em torno da dupla natureza de Cristo,

divino e humano, e as consequências na mariologia se estenderam até a segunda

metade do século V.

● Calcedônia (451): Concílio realizado entre 8 a 31 de outubro de 451, decisivo

para a consolidação da maior parte das doutrinas e dogmas cristãos ocidentais,

bem como para o encaminhamento das divisões mais antigas entre as tradições

cristãs instituídas. Em Calcedônia ficou definida a condenação das heresias que

negavam que Jesus Cristo tivesse duas naturezas inconfundíveis, por exemplo,

os monofisitas (mono = um; physis = natureza).

Seguem dois credos, que resumiam uma declaração de fé conclusiva, terminado

cada concílio.

3.7.1 Credo Niceno


Cremos em um Deus, Pai Todo-poderoso, criador do céu e da

77 |História do Cristianismo - FVC


terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus

Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos

os séculos, [Deus de Deus], Luz da Luz, verdadeiro Deus de

verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o

Pai; pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens

e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne pelo Espírito

Santo e da Virgem Maria, e tornou-se homem; e foi crucificado

por nós sob o poder de Pôncio Pilatos, e padeceu, e foi sepultado,

e ao terceiro dia ressuscitou conforme as Escrituras; e subiu ao céu

e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para

julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim. E no Espírito

Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai [e do Filho], que

com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que

falou através dos profetas. Creio na Igreja una, [santa], católica e

apostólica, confessamos um só batismo para remissão dos

pecados; esperamos a ressurreição dos mortos e da vida do

mundo vindouro.

(BETTENSON, 2011, p. 63-64). [Entre colchetes, interpolações posteriores ao texto original].

3.7.2 Credo de Calcedônia

Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes,

ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso

78 |História do Cristianismo - FVC


Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, perfeito quanto

à humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, constando

de alma racional e de corpo; consubstancial, segundo a divindade,

e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em todas as coisas

semelhante a nós, excetuando o pecado, gerado segundo a

divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade,

por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de

Deus; Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve

confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis,

inseparáveis e indivisíveis; a distinção das naturezas de modo

algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades

de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar

uma só pessoa e subsistência; não dividido ou separado em duas

pessoas. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus

Cristo Senhor; conforme os profetas outrora a seu respeito

testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo

dos pais nos transmitiu.

(extraído do site e-cristianismo.com.br)

3.8 Síntese da Unidade


Nesta Unidade, pudemos compreender de modo breve as linhas gerais de alguns

fatos, personagens e debates que marcaram o período patrístico na história dos

79 |História do Cristianismo - FVC


Cristianismos. Esse período foi fundamental para o desenvolvimento das teologias e

identidades institucionais das Igrejas antigas. Tratam-se de momentos que fazem parte

de uma transição para uma nova realidade, dentro da qual as Igrejas passaram da

condição de perseguidas para privilegiadas pelos favores dos imperadores.

Descrevemos sumariamente as classificações dos Pais da Igreja (Apostólicos,

Apologistas, Capadócios, Alexandrinos, Grandes), e dos concílios realizados entre os

séculos IV e V (Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia).

Consideramos as questões-chave para a leitura dessa etapa na História do

Cristianismo, marcada pelas crises políticas do Império Romano, institucionalização das

Igrejas, busca por unidade no Cristianismo ocidental, um novo tipo de relação entre

cristãos e império. O estreitamento e as consequências dessas interfaces constituem

tema da próxima Unidade.

80 |História do Cristianismo - FVC


81 |História do Cristianismo - FVC
Unidade Revisional 1

Vamos revisar os pontos essenciais que foram tratados nas três primeiras

Unidades deste Livro. Lembrando que esta revisão não exime cada estudante de ler

quantas vezes forem necessárias as Unidades completas. Aqui você terá apenas um

resumo, uma síntese, uma revisão muito breve. Esperamos que você consiga fixar

melhor os assuntos ministrados de forma clara, objetiva e bem fundamentada. Boa

revisão!

O que é História do Cristianismo?

● Relembre-se bem que a História é uma ciência. Logo, ela possui em sua estrutura

teórica tudo o que diz respeito ao conhecimento científico, que é bem diferente

dos conhecimentos de ordem filosófica ou religiosa, por exemplo.

● Não existe apenas uma concepção do conhecimento histórico. No entanto, vimos

que uma visão válida é aquela de Marc Bloch, que propõe a História como a

ciência dos homens no passado.

● Devemos distinguir claramente entre os diferentes tipos de tempo: o tempo da

natureza, o tempo cronológico e o tempo histórico. São três conceitos de tempo

que são elaborados a partir da subjetividade humana e do conhecimento

científico da História.

82 |História do Cristianismo - FVC


● Considerar a questão das fontes históricas para a investigação de um fato ou

acontecimento do passado. As fontes primárias podem ser divididas entre orais,

fontes materiais escritas e fontes materiais não escritas. Já as fontes secundárias

estão representadas nas investigações de outros historiadores, bem como em

contribuições de pesquisa em outras áreas científicas como a arqueologia, as

Ciências Sociais, as Ciências Biológicas, entre outras.

● Embora semelhantes, a História da Igreja e a História do Cristianismo são

abordagens diferentes sobre o desenvolvimento das tradições e instituições

cristãs ao longo dos últimos dois milênios. Enquanto a História da Igreja é de

cunho mais parcial e tendencioso do ponto de vista confessional e teológico, a

História do Cristianismo estabelece uma investigação pautada em critérios

científicos objetivos.

● Um dos exemplos claros de História Eclesiástica com referenciais teológicos e

pré-científicos é a obra de Eusébio de Cesareia (265-339), que, mesmo parcial e

com pontos de vista bem particulares do autor, não deixa de ser uma fonte

importante aos historiadores profissionais. É preciso que haja discernimento e

confrontação com outras fontes que abordam os mesmos assuntos.

● A pluralidade cristã é um tema recorrente entre os historiadores, por isso, é

comum falar em Cristianismos, no plural.

● A periodização histórica auxilia no processo de pesquisa histórica, levando em

conta que há várias formas de se dividir os tempos históricos. Consideramos

83 |História do Cristianismo - FVC


quatro épocas em foco: antiga, medieval, moderna e contemporânea, sendo que

as três primeiras são as mais enfatizadas em nosso estudo.

Os Cristianismos Antigos

● A Antiguidade cristã começou na década de 30 d.C. e encerrou em 476, com a

queda de Roma.

● No início desse período, o movimento cristão começou sua atividade religiosa e

sua pregação sendo considerado uma seita judaica marginalizada por romanos

e pela sinagoga, mas ao fim do mesmo período, tinham prestígio em todo o

Império Romano, como sua religião oficial.

● Lembre-se da atividade pública de Jesus de Nazaré, que suscitou certa

diversidade de interpretações posteriores, grande parte delas encontra-se no

Novo Testamento, e uma outra parte em outros textos considerados livros

apócrifos das Igrejas.

● O Novo Testamento, por assim dizer, representa uma fonte importante

importante aos historiadores dos cristianismos antigos, no entanto, é muito

pertinente que se observe suas tendências teológicas como relatos de fé e não

como jornalismo ou biografias.

● É preciso um trabalho de exegese para se apurar as fontes bíblicas,

compreendendo seu propósito central que não era científico, havendo uma

84 |História do Cristianismo - FVC


distância temporal, cultural e espacial entre os textos de fé e os fatos que eles

narram.

● Toda memória tem um caráter subjetivo e recuperativo que nunca é exato, por

isso, há várias versões sobre os mesmos personagens e suas atividades.

● Saulo ou Paulo de Tarso, ainda no século I, pode ser considerado o grande

responsável pela separação entre o movimento cristão e o judaísmo. Essa cisão

foi ratificada com a destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos em 70

d.C.

● Algumas características de grande parte das comunidades cristãs no primeiro

século: uma liturgia simples com traços judaicos; forte apelo escatológico; senso

de comunhão e partilha; unidade na diversidade.

● As perseguições aos cristãos constituíram cenas marcantes em nossa narrativa,

mas não se deve romantizar eventos como esse, como simplesmente vontade

de Deus e ou por meio de argumentação teológica.

● Veja que houve diversos fatores históricos e sociais relativos à perseguição aos

cristãos por alguns imperadores romanos. Sobre isso, tivemos acesso pela

pesquisa, e entre esses fatores podemos destacar alguns boatos levantados:

suposto ateísmo dos cristãos; supostas acusações de incesto entre cristãos;

acusação de canibalismo nas comunidades cristãs.

● Algumas acusações foram levantadas contra os cristãos da parte de filósofos e

ideólogos do império: cristãos seriam supersticiosos e ignorantes; cristãos não

85 |História do Cristianismo - FVC


praticam a cidadania dos romanos; cristianismo combinaria, em tese, com

irracionalidade.

● Diante do quadro social hostil às comunidades, elas ainda assim resistiram à

perseguição inclusive sob sentenças de morte. Também houve resistências no

nível apologético e teológico, a exemplo dos chamados Pais Apologistas do

século II, com suas divisões internas.

● Lembremos, por fim, a ascensão do imperador Constantino ao topo da hierarquia

imperial, o qual pôs fim às perseguições contra os cristãos em todo o território

do império, em 313, fato que significou uma grande reviravolta na História dos

cristianismos.

Os Pais da Igreja: Um Panorama

● O conceito de Padre ou Pai da Igreja tem uma conotação que deve ser referida

em relação a uma espécie de paternidade espiritual, uma liderança constituída e

reconhecida por critérios bíblicos, teológicos, pastorais.

● Entre os séculos II e V, ainda no período antigo, as Igrejas construíram também

uma transição em sua organização geral: da pluralidade de movimentos

comunitários sem um único poder central, rumo à institucionalização que, para

a tradição ocidental, culmina com a consolidação da hierarquia eclesiástica, com

centralização administrativa em Roma.

86 |História do Cristianismo - FVC


● O termo Patrologia designa estudos e pesquisas sobre os Pais da Igreja; ele

surgiu em um contexto de conflitos teológicos entre católicos e protestantes, e

foi estabelecido no âmbito da investigação sobre as doutrinas em tensão à

época, com o constante apelo à antiguidade das tradições para provar sua

legitimidade.

● Ou seja, a questão da antiguidade das doutrinas e tradições eram de

fundamental importância para se legitimar ou autenticar sua validade.

● Alguns estudiosos citados como especialistas contemporâneos na área da

Patrologia são os protestantes Hans von Campenhausen e John Norman

Davidson Kelly, bem como o padre Luigi Padovese.

● Consideram-se as relações entre Filosofia e Teologia no referido período, a partir

do qual não haverá mais como dissociar plenamente as duas áreas de

conhecimento, apesar de serem distintas em seu plano geral.

● Não se deve esquecer das Mães da Igreja, além das personagens bíblicas.

Citamos Tecla, Perpétua e Felicidade, como exemplos bem conhecidos.

● A divisão geral dos Pais da Igreja do ponto de vista biográfico e literário foi

consolidada pelo padre Jacques Paul Migne, no século XIX, que estabeleceu dois

grupos: Pais Gregos e Pais Latinos.

● Outra forma de dividir os grupos dos grandes teólogos da Igreja Antiga consiste

na seguinte distinção: Pais Apostólicos, ligados diretamente à vida e à obra de

algum apóstolo da primeira geração de cristãos; Pais Apologistas, os quais se

87 |História do Cristianismo - FVC


dedicaram à apologia da fé cristã diante das discórdias e críticas dos filósofos;

os Alexandrinos como Clemente e Orígenes; e os Capadócios Basílio Magno,

Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa.

● Destacamos Agostinho de Hipona (354-430) como um dos mais influentes

teólogos da história, além de ter sido um dos chamados oito grandes Padres da

Igreja, juntamente com Ambrósio de Milão, Ambrósio de Milão, Jerônimo de

Estridão e Gregório Magno, Basílio de Cesareia, Atanásio de Alexandria, Gregório

de Nazianzo e João Cristóstomo. Todos eles se destacaram por terem articulado

atividade intelectual filosófica e intelectual com atividade pastoral, de modo

profícuo e intenso.

● Lembre-se, por fim, da importância dos quatro grandes concílios ecumênicos

realizados entre os séculos VI e V: Niceia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431),

Calcedônia (451).

88 |História do Cristianismo - FVC


Atividades de Aprendizagem

1) 1) A História, segundo Marc Bloch, é a ciência dos homens no passado.

Certo Errado

2) Jesus de Nazaré iniciou seu ministério em Jerusalém em terminou na região

romana da Galileia.

Certo Errado

3) O Concílio de Niceia foi presidido pelo imperador Constantino em 325.

Certo Errado

4) Jacques Paul Migne criou uma divisão didática entre o grupo dos Pais da

Igreja, que se consolidou com a terminologia “Pais Gregos” e “Pais Latinos”.

Certo Errado

5) Agostinho de Hipona é considerado um dos Pais Capadócios.

Certo Errado

6) A Idade Média compreende um longo período entre a queda de Roma e a

queda de Constantinopla.

Certo Errado

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7) O canibalismo e o incesto constituíram temas de graves boatos e acusações

a respeito dos grupos cristãos e suas reuniões privadas diante da sociedade

imperial.

Certo Errado

8) Reflita com suas próprias palavras acerca do papel da Apologia/ Apologética

dos teólogos nos primeiros séculos do Cristianismo. Você considera que

ainda é válida essa prática em nossos dias? Numa sociedade já cristianizada

mediante um Estado que se apresenta como laico, quais as fronteiras entre

a exposição de uma visão de mundo e a prática de intolerância?

9) Comente com suas próprias palavras sobre as relações entre Filosofia e

Teologia entre os pensadores cristãos antigos.

10) Reaja ao seguinte parágrafo:

Cabe aos cientistas sociais, e aí estão incluídos historiadores, antropólogos,

teólogos, filósofos, sociólogos e cientistas da religião, o estabelecimento de

hipóteses que contemplem um cristianismo mais pluralizado, com suas fronteiras

permeáveis, que dialoga com inúmeros grupos religiosos circundantes, que rompe

com as certezas e borra as “origens” (CHEVITARESE, 2016, p. 98).

90 |História do Cristianismo - FVC


91 |História do Cristianismo - FVC
4

A ERA MEDIEVAL
O período medieval teve início no século V e cobre um período de cerca de mil

anos. Para a História apenas da religião cristã, parece um período muito longo,

praticamente a metade do tempo do Cristianismo na terra, considerando-se o tempo

presente. Quando observamos a História geral dos povos e da própria Terra, a extensão

temporal da Idade Média torna-se muito pequena.

O século IV foi uma espécie de divisor de águas para a Antiguidade cristã. Não

apenas pelo grande crescimento numérico das Igrejas, suas complexidades, a superação

das perseguições políticas enfrentadas, os debates teológicos e filosóficos, mas,

também porque suas primeiras divisões aconteceram nessa mesma época. Mal havia

se iniciado os primeiros movimentos de organização e institucionalização das Igrejas

em dioceses, prelados, episcopados, jurisdições, ritos, cânones e outros aparatos

teológico-jurídicos e administrativos, o Cristianismo passou por sua primeira grande

divisão. Segue uma explicação para elucidar o caso:

No ano 380 o Cristianismo passará a ser religião oficial do Império

Romano. Acontece que o Cristianismo também havia ultrapassado

os limites do Império Romano e se expandido ao Oriente para

dentro do Império Sassânida (séculos III-IV), que abrangia regiões


92 |História do Cristianismo - FVC
onde se localiza o Iraque, o Irã, o Afeganistão e regiões

circunvizinhas. Em guerra contra o Império Romano, os sassânidas

acusarão os cristãos de serem colaboradores dos romanos, por

conta da ligação de suas comunidades com as comunidades de

dentro daquele império. Assim, no contexto das tensões entre os

dois impérios e para livrar-se das acusações e das perseguições, a

Igreja cristã da Pérsia irá declarar no ano de 424 a sua

independência e separação das outras Igrejas cristãs, tornando-se

autônoma. Essa declaração marca o primeiro cisma institucional

dentro do Cristianismo, onde parte das Igrejas se declara separada

das outras

(BERKENBROCK, 2019, p. 123).

Figura 18: Provável limite geográfico máximo do Império Sassânida, último domínio
persa antes da ascensão do Islã na Idade Média.
Fonte da Imagem: Google Imagens

A primeira cisão institucional e deliberada na História do Cristianismo demonstra

que as divergências políticas e relacionadas a questões imperiais e territoriais já eram

93 |História do Cristianismo - FVC


uma realidade latente antes mesmo do período conhecido como Idade Média.

O milênio que compreende o tempo histórico medieval conheceu um processo

de estabilização das instituições cristãs no coração do Império Romano, no Ocidente e

no Oriente, em Roma e em Constantinopla, cidade que se tornaria epicentro político

após as invasões bárbaras na antiga capital do império.

A Idade Média, para grande parcela dos historiadores, iniciou-se com a queda

de Roma em 476 e teve fim por volta de 1453, com a queda de Constantinopla. Esse

período também é subdividido em Primeira Idade Média (476 até a primeira metade

do século X, que também é chamada de “Antiguidade Tardia”), Alta Idade Média

(segunda metade do século X até metade do século XIII), e Baixa Idade Média (meados

do século XIII ao XV). Essas divisões foram feitas em tempos mais recentes, e há

divergências em relação à própria visão de alguns medievais do século XIII que,

segundo Pierini (2006, p. 13), já se consideravam "modernos", isto é, rompiam de

alguma forma com os modos de vida e visões de mundo correntes em seu tempo.

Feitas essas considerações introdutórias, vejamos o que será exposto na presente

Unidade. Trataremos sobre alguns momentos decisivos na História do Cristianismo os

quais constituem e tipificam a Era Medieval e suas divisões gerais. Alguns eventos,

movimentos religiosos e personagens em destaque serão apresentados nos parágrafos

a seguir, a modo de brevíssima introdução e uma síntese muito limitada, que seria

ampliada através das indicações bibliográficas citadas. Merecem relevo a questão

hierárquica da Igreja Católica, os movimentos monásticos, as relações políticas, noções

sobre a vida social, as cruzadas, a Escolástica e o Renascimento. Vamos realizar uma

94 |História do Cristianismo - FVC


rápida viagem no tempo e perceber atentamente alguns temas que caracterizam o

estudo historiográfico das passagens que ocorreram, do Cristianismo rumo à

Cristandade.

4.1 Introdução à Primeira Idade Média (séculos V a X)


Foi nesse primeiro período medieval em que se consolidaram algumas condições

que fortaleceram o Cristianismo na Europa como não simplesmente uma religião mais

numerosa ou destacada, mas, além disso, um modelo de vida, dos padrões morais e

de dominação política em grande escala. Mediante as incertezas e instabilidade

sociopolítica que se elevaram com a tomada de Roma pelos povos germânicos na

década de 470, as grandes populações na Europa, sentindo-se ameaçadas e

desamparadas politicamente, viram nas instituições cristãs novas perspectivas de vida

social. Segundo Peña (2014, p. 130), o Cristianismo trazia uma sensação de segurança

em meio aos contextos de crise e dissoluções.

Além do mais, a crise do Império Romano ocidental teve de lidar com um

paradoxo interno: o encontro entre a universalidade da pregação cristã e a

universalidade territorial e administrativa dos romanos. Quando Constantino oficializou

o Cristianismo, com a pretensão de fortalecer novamente um império universal, este já

estava mergulhado na decadência social, bélica e política. O fato das invasões bárbaras,

segundo Barros (2009¹, p. 56), constituiu apenas um dos muitos fatores que indicavam

essa decadência, que culminou na posterior divisão definitiva do império em duas

partes, ocidental e oriental (ou Império Bizantino).

95 |História do Cristianismo - FVC


Especialmente a situação dos habitantes de Roma, antiga sede do Império,

tornou-se delicada e emblemática em termos políticos, com uma queda em etapas: o

saque de Roma pelos Visigodos sob comando de Alarico em 410, um segundo

saqueamento de Roma, promovido pelos Vândalos em 455, e, por fim, a invasão

derradeira por Odoacro, rei dos hérulos, que depôs o imperador romano Rômulo

Augusto em 476. Tudo isso já havia sido prenunciado pela derrota dos romanos diante

dos Godos na Batalha de Adrianópolis, em 378. De acordo com a pesquisa de Barros

(2009², p. 551-552), esses eventos não devem ser conferidos isoladamente, mas dentro

de um processo histórico mais amplo e complexo, por meio do qual se demarca a

passagem do mundo antigo à emergência de uma nova conjuntura social, política,

cultural, religiosa e filosófica no continente europeu. As migrações germânicas, a

insatisfação coletiva e gradualmente massificada e a decadência interna do Império

Romano concorreram para estabelecer condições para a irrupção do tempo que os

historiadores chamam de Idade Média.

Figura 19: Rômulo Augusto, último Cesar, deposto por Odoacro em 4 de Julho de 476, quando
tinha entre 14 e 17 anos de idade.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

Há de se ressaltar pelo menos três grandes ambientes geopolíticos e culturais

que devem ser destacados no desenvolvimento do Cristianismo através da Idade Média,

96 |História do Cristianismo - FVC


e no desenvolvimento da Idade Média através da religião cristã (Católica), de acordo

com a observação de Peña (2014, p. 119): “o mundo árabe-muçulmano, o Oriente

bizantino e o Ocidente cristão europeu”. Este último constituiu o âmbito privilegiado

para a análise das instituições cristãs na era medieval.

Para Paul Johnson (2001, p. 83), o Édito de Milão sancionado pelo imperador

Constantino em 313 estabeleceu um momento decisivo da história mundial. Revogando

todos os decretos anticristãos anteriores, e garantindo às comunidades cristãs

espalhadas por todo o império a condição de religião lícita e identificada no

testemunho do próprio imperador, abria-se um caminho totalmente novo para o

Cristianismo. O mesmo Johnson (2001, p. 81) chegou a indicar que esse caminho

constituía a passagem entre duas marcas muito distintas e extremas na história cristã,

“de mártires a inquisidores”.

Nos séculos que se seguiram a tal reviravolta, as Igrejas assumiram formas

jurídicas e institucionais, em parceria com alguns governos estabelecidos ou que

estavam se estabelecendo, por toda a Europa ocidental. Um dos exemplos clássicos do

período encontra-se nos reis carolíngios, que eram pertencentes ao reino bárbaro

franco consolidado dois séculos após a queda de Roma. O mais destacado desses

chamava-se Carlos Magno (742-814). A administração da Igreja estava demarcada na

atividade geral de cinco patriarcados que buscavam sintonia, sobretudo a partir do

século VIII: Roma, Constantinopla, Jerusalém, Alexandria e Antioquia. Esses patriarcados

serviam como sedes administrativas da Igreja em determinadas regiões do império. A

ecumenicidade de um concílio de bispos só poderia ser confirmada se houvesse

97 |História do Cristianismo - FVC


participação direta do bispo de Roma e a concordância dos bispos das outras regiões

citadas (PIERINI, 2006, p. 58)

Figura 20: Carlos Magno, líder franco, um dos principais agentes de articulação entre
Cristianismo e conjunturas políticas na Idade Média.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

4.2 A Questão dos Bárbaros


Na Idade Média precoce ou primeira, o mundo romano entrou em crise, mas o

Cristianismo de certo modo o manteve vivo através de uma nova ordenação

atravessada por relações com os povos bárbaros que subjugaram Roma e outras

metrópoles.

O papel do bispo de Roma se tornou cada vez mais proeminente desde o século

IV, e a partir dessa esfera de poder capitalizado, os valores e ideais cristãos, assim como

a estrutura organizacional do império, mantiveram-se, mesmo com os declives pelos

quais percorria diante da ascensão bárbara. Nesse sentido, foi de suma importância o

trabalho pastoral, missionário e político do papa Gregório I Magno, entre 590 e 604.

De acordo com Peña (2014, p. 123), Gregório I estabeleceu consideráveis

transformações na vida da Igreja e em suas relações políticas. Criando vínculos pacíficos

com os lombardos que invadiram Roma, administrou e reorganizou os bens materiais


98 |História do Cristianismo - FVC
da Igreja, buscou o combate à fome e à peste na cidade, procurou sustentar e renovar

o relacionamento com o patriarcado de Constantinopla, abalado desde a queda da

antiga capital do império. Assim, Gregório é considerado um líder que se dedicou à

escrita de grandes tratados teológicos e cartas, à fundamentação da disciplina na Igreja

e à atividade missionária que respeitava os usos e costumes dos povos. Gregório deu

passos iniciais no processo de formação de Estados Pontifícios, o que foi seguido

posteriormente também pelo rei dos francos, Pepino, o breve (714-768).

Figura 21:Papa Gregório I Magno.


Fonte da Imagem: Google Imagens.

Figura 22: Pepino, o breve.


Fonte da Imagem: Google Imagens.

Pode-se notar uma conexão muito estreita entre a evolução da concepção de

Igreja Católica Romana e a transição entre Império Romano e Império Carolíngio no

continente europeu, o que abriu espaço a outros reinos nesse contexto geográfico. A

assimilação de outros povos, conhecidos como bárbaros, a partir do território

concernente à Roma e às regiões circunvizinhas na Península Itálica, favoreceu uma

pluralização em reinos menores e submissos ao Império Oriental, uma vez que Odoacro,

99 |História do Cristianismo - FVC


ao invadir Roma e depor Rômulo Augusto, enviou a coroa ao Imperador romano do

Oriente, conforme observação de Barros (2009¹, p. 57).

Esse quadro enfraqueceu qualquer continuidade de um império ocidental

unificado, além de colocar a Igreja Romana em risco de divisão e enfraquecimento,

com as ameaças dos lombardos na Itália e com a ascensão da Igreja Cristã oriental

também vista como ameaça ao papado romano. Provavelmente, a solução encontrada

pelos papas foi a estratégia de aliança com os francos, já cristianizados e simpáticos à

fé. Nesse período (século VIII), aparecia a prática dos papas nomearem os imperadores.

O auge dessa relação entre papado e dinastia carolíngia se deu com a coroação de

Carlos Magno na Basílica de São Pedro, pelo papa Leão III, no ano 800. Na ocasião, o

rei franco foi declarado Imperator Romanorum, em um acontecimento inédito na

História do Cristianismo, até então (IRVIN; SUNQUIST, 2004, p. 419), face ao

fortalecimento dos lombardos, francos, entre outros povos que, em seu conjunto,

pareciam ameaçar a unidade pretendida pela Igreja. Conforme Coelho (2021), a

coroação de Carlos Magno equivale a uma afronta do papa contra o poder bizantino

oriental, pois havia conferido ao rei um título imperial até então exclusivo dos que

chefiavam a partir de Constantinopla. As relações entre os pólos a partir daí tornaram-

se mais tensas e desarticuladas do que em circunstâncias anteriores.

Em consequência, já se poderia falar em Sacro Império Romano-Germânico, que

se estabeleceu em parte da Europa central com um projeto de expansão da chamada

cristandade, mas se desorganizou, sucumbindo à fragmentação após a morte de Carlos

Magno em 814. Os territórios sob sua influência direta, gradativamente, iam se

100 |História do Cristianismo - FVC


transformando na atual França. Ocorreu desde então progressivo distanciamento entre

os blocos imperiais ocidental (Roma) e oriental (Constantinopla). Mais tarde, em 1054,

o chamado Cisma do Oriente estabeleceu o fim das relações e das alianças político-

religiosas entre os dois lados, com a excomunhão mútua entre os dois bispos, de Roma

e de Constantinopla. O legado do Sacro Império Romano permaneceu vivo, no entanto,

até o século XIX.

4.3 A Alta Idade Média (séc. X a XIII)


O período histórico que iniciou no século X, em meio às crises institucionais e

políticas entre os dois blocos do antigo império, ficou marcado pelo fim da dinastia

carolíngia em 911. A Europa ocidental já estava configurada dentro de um sistema

político e econômico conhecido como feudalismo. Nesse momento histórico, pode-se

dizer que grandes massas da população europeia optaram por viver no campo,

deixando as grandes cidades, o que também estabelece repercussões do ponto de vista

social, religioso, econômico, etc., como bem apontou Peña (2014, p. 122).

No sistema feudal europeu os camponeses viviam e trabalhavam em

propriedades ou domínios pertencentes à nobreza. Como paga pelos bens que a terra

produzia, os donos das propriedades ofereciam proteção e serviam como cortes

judiciárias. Esses senhores, por sua vez, relacionavam-se com outros membros da

nobreza mediante juramentos de fidelidade prestados em troca das terras que eles

dominavam. Os suseranos investiam seus vassalos com terras ou feudos por intermédio

de cerimônias que envolviam símbolos de poder político. Em câmbio, os vassalos

101 |História do Cristianismo - FVC


prestavam solenes juramentos de lealdade a seus suseranos com a promessa de

providenciar uma força militar na forma de cavaleiros montados, a unidade básica do

exército após os carolíngios (IRVIN; SUNQUIST, 2004, p. 426).

Nesse sentido, o sistema feudal, conjugado com a noção do direito divino da

Igreja e dos reis e imperadores aliados, sobre a terra e o povo, instaurou o processo

de criação da cristandade, do latim Christianitas, que representa o fato de que o antigo

mundo romano, desde as primeiras invasões bárbaras, estava se tornando um mundo

cristão (PIERINI, 1998, p. 212-214). A formação da cristandade é uma das principais

características da chamada Alta Idade Média.

A consolidação do poder papal após a era carolíngia, as mudanças na teologia

e na liturgia com ritualísticas sofisticadas, a complexidade da teologia sacramental com

novos apelos à penitência pública, ao mistério da Eucaristia e de toda missa, a

proeminência do latim e do Rito romano, o estabelecimento do ano litúrgico, as

relações políticas entre bispos e governantes: essas e outras transformações na vida da

Igreja repercutiram também na vida social em geral, de tal modo que, nas palavras de

Gabriela Peña (2014, p. 130), “Igreja e sociedade se identificavam”.

O surgimento da religião islâmica no século VII também acrescentou novos

desafios às condições de hegemonia cristã na passagem para a Alta Idade Média.

Mohammed ou Maomé alegou ter recebido a revelação divina para a humanidade,

acerca dos preceitos e da submissão necessários para se alcançar a salvação. Ele é

denominado o último profeta com a revelação derradeira do Deus único, Allah. Sua
102 |História do Cristianismo - FVC
proposta buscou revolucionar as formas de vida entre as tribos do Oriente Próximo, de

características politeístas e nômades, e que viviam em conflitos constantes entre si. Islã,

em árabe, significa submissão. Essa religião apresentou uma crescente adesão entre

beduínos com base nos ensinos de Mohammed e do livro (Corão), cuja proposta é de

cunho universalista, salvacionista, teocrático e conversionista, com emprego histórico

de métodos violentos de conquista de diversas regiões outrora anexadas ao domínio

romano.

Em poucos anos de pregação, territórios importantes foram sendo islamizados,

por exemplo, Síria e Palestina, incluindo Jerusalém (638), regiões persas (651), e Cartago

em 698, com praticamente todo o norte africano. Segundo a narrativa de Peña (2014,

p. 134-135) alcançaram as conquistas mais desafiadoras em 711, quando o Islã chegou

à Espanha, e em 732, no coração do reino franco, em Poitiers. Todo esse percurso

beligerante ia de encontro direto às pretensões dos papas, que tentavam administrar

a melhor relação possível com o patriarcado de Constantinopla e a aliança com os

francos diante da ascensão dos lombardos. De acordo com Johnson (2001, p. 214), em

700, o cristianismo já havia perdido mais da metade de seus territórios para

muçulmanos, inclusive os das igrejas patriarcais mais antigas - Alexandria, Antioquia e

Jerusalém. Assim, os conflitos entre Cristianismo e o Islã se tornaram emblemáticos no

período medieval, especialmente no que concerne aos tempos das Cruzadas, no afã

dos papas em estabelecer uma sociedade cristã total.

Em final de novembro de 1095, o papa Urbano II convocou um sínodo com um

grupo de bispos, em sua maioria franceses, na cidade de Clermont, e o concílio

103 |História do Cristianismo - FVC


estabeleceu a proibição de qualquer clérigo da Igreja Católica de fazer juramento de

lealdade a soberanos leigos, ou de receberem investidura por nobres seculares. Em

seguida, fez uma convocação oficial ao povo que estava aguardando seu

pronunciamento, para que toda a população ocidental, da Inglaterra até o Egito,

colaborasse com a Cruzada que pretendia libertar a Terra Santa dos governantes

islâmicos, assim exposto por Irvin e Sunquist (2004, p. 481). Esse chamado devolveu ao

papa certo prestígio entre populares e criou senso de união e uma causa em comum

em grande parte da Europa, em meio às crises instituídas.

Figura 23: Papa Urbano II (1042-1099)


Fonte da Imagem: Google Imagens.

Diz-se que entre os séculos XI e XIII, aconteceram oficialmente nove Cruzadas

ou expedições à Palestina, em caráter combativo contra as forças militares islâmicas

que ali ocupavam. Em contrapartida, houve expedições dos cruzados (soldados da

Igreja, com suas espadas em formato de cruz) que se tornaram um total fracasso

mediante a truculência e as estratégias militares avançadas dos seguidores do Islã. No

entanto, houve benefício à cristandade, que se tornou mais unida em boa parte da

Europa, em torno de um inimigo em comum: a ideologia islâmica.

Além dos conflituosos contextos políticos em que atravessavam as regiões

104 |História do Cristianismo - FVC


cristianizadas e as islamizadas, a Alta Idade Média também foi marcada pela nova

inserção da filosofia de Aristóteles (384-322 a.C.) na Europa, o que foi mediado pelos

pensadores islâmicos, os quais não possuíam qualquer relação com o cristianismo

ocidental. As obras de Aristóteles foram traduzidas para o árabe e o sírio no século IX,

tendo sido refletidas a partir do pensamento do iraquiano pioneiro Al-Kindi (aprox.

801-873).

Figura 24: Selo russo com imagem do filósofo iraquiano Al-Kindi.


Fonte da Imagem: Google Imagens.

Outros pensadores de gerações posteriores, de matriz islâmica, como Al-Farabi

(870-950), Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198) também representaram a inserção

da filosofia aristotélica entre os povos islamizados, incluindo a Península Ibérica e parte

da Europa central. Nesse sentido, os conflitos entre cristãos e islâmicos aconteceram

também no âmbito das disputas intelectuais (disputatio) pelas e recepções e

interpretações da obra de Aristóteles, e em outros aspectos mais específicos como a

matemática, o direito, e outros conhecimentos teóricos.

Também no período da Alta Idade Média surgiram as primeiras Universidades

europeias, em Paris, Bolonha, Cambridge e Oxford. As Universidades foram criadas por

clérigos, em parceria com nobres na segunda metade do século XII, como parte de

105 |História do Cristianismo - FVC


uma grande reação cristã diante do imenso fluxo de conhecimentos nas novas

metrópoles europeias, muitos deles trazidos pelos eruditos árabes através da Espanha.

Os conhecimentos clássicos ensinados nas Universidades poderiam conviver e criar

novas interfaces, a exemplo da medicina, do direito, da física, da astronomia, e,

sobretudo, da filosofia e da teologia, esta última considerada a rainha das ciências, à

época.

Nesse mesmo horizonte histórico, entre os séculos XII e XIII, apareceu um

movimento intelectual no interior do clero católico conhecido como Escolástica, que

priorizava temas como apologética anti-islâmica e exposição dogmática em diálogo

com Aristóteles. Alguns dos maiores expoentes desse movimento chamam-se João

Duns Scotus, Anselmo da Cantuária, Tomás de Aquino, Boaventura (Giovanni di

Fidanza), Alberto Magno e Guilherme de Ockham. O grande pressuposto dos

escolásticos era a busca constante por articulação entre Teologia e Filosofia, entre Fé

e Racionalidade, isto é, a intenção de apresentar a verdade cristã ao mundo por meio

de argumentos puramente racionais, conforme a expressão latina Ratio Fidei, que,

segundo Rocha (2010), representava a própria concepção de ciência na Escolástica.

106 |História do Cristianismo - FVC


Figura 25: Exemplos de artes sacras medievais, construídas por mosaicos.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

A produção intelectual e o desenvolvimento da arte sacra no período da Alta

Idade Média contrastavam com as ressonâncias violentas da manutenção da dominação

católica em vias de consolidação também fora da Europa. Considera-se, assim, a

emergência do período da Baixa Idade Média a partir do século XIII, que se caracterizou

pela crise do sistema feudal, o desenvolvimento da Santa Inquisição e do Tribunal do

Santo Ofício, cuja atividade gerou críticas e insatisfações quanto aos abusos de poder

e a constante arbitrariedade atribuída aos processos, interrogatórios e condenações

dos suspeitos por transgressão das normas instituídas pela Igreja Católica.

A figura do inquisidor, conforme Lima (1999), acumulava as funções de

investigador e de juiz, o que lhe garantia um enorme poder nos processos inquisitórios,

com intuito de chegar o quanto antes à confirmação de crimes, à culpabilização e

consequente condenação do réu. Esses processos geralmente estavam atravessados

por divergências e contradições em relação a outras formas de julgamento vigentes

fora das jurisdições da Igreja, e que tinham maior senso de imparcialidade, mais

próximo das bases do direito romano. O inquisidor, mesmo com a crescente

107 |História do Cristianismo - FVC


profissionalização e a ética que lhe foram sendo exigidas, permaneceu como mais do

que um funcionário do Tribunal, e sim um representante da justiça divina sobre

suspeitos, que terminavam quase sempre condenados sem direito à ampla defesa. O

que em tese deveria estabelecer um modelo de prudência e de justiça, na verdade, se

tornou uma rede de extrapolações do direito, e grande ciclo histórico de violências

contra a dignidade humana. Isso ficou atestado nas expectativas populares da chamada

caça às bruxas, da tortura, da condenação da heresia e dos espetáculos incendiários na

forma de tochas humanas nas praças públicas.

4.4 Baixa Idade Média (séc. XIII a XV)


A Baixa Idade Média representa, em geral, um período crítico para a cristandade,

o que posteriormente gerou os grandes colapsos que denotam a decadência final da

era medieval, o que se podia entrever por meio do movimento da Renascença e das

primeiras revoluções científicas. Antes disso, é preciso esclarecer que a Europa do

século XIII já não era mais a mesma dos séculos anteriores. A cristandade havia

sucumbido em novas tensões provocadas pelas divergências entre a Igreja e os novos

projetos expansionistas dos reinos de herança bárbara e interculturalidades em

ascensão, pelo menos desde o período das expedições das Cruzadas.

As novas configurações territoriais e as perdas geopolíticas da Igreja entraram

em choque com o antigo projeto católico de uma sociedade plenamente cristianizada.

Inicia-se no período em foco um processo de tentativas de reconquista das terras

dominadas pelo Islã no norte da África, como em todo o Oriente próximo, e novos

108 |História do Cristianismo - FVC


acordos são estabelecidos entre os pontífices e os reinos em expansão, o que

transparece nos planos da era das navegações no século XV.

Mapa 2: Note no mapa acima a Europa ao fim do século XIII, em que já se pode visualizar um esboço
da divisão posterior dos Estados-Nação ocidentais. Em lilás, o reino de Portugal; em verde o reino de
Castela, com os anexos de Navarra e o reino muçulmano de Granada (cinza escuro); em cinza claro o
reino de Aragão; em amarelo o reino da França; em vermelho o reino da Inglaterra, juntamente com
Irlanda e Escócia; o Sacro Império Germânico em roxo; na atual Itália, observam-se os Estados papais e
o reino da Sicília.
Fonte da Imagem: Google Imagens

Nesse sentido, o Sacro Império Romano-Germânico foi se tornando cada vez

mais alemão ou austríaco na primeira metade do século XV, conforme observação de

Pierini (2006, p. 150). Diversos concílios foram convocados pelos papas para ampliar as

estratégias da Igreja em meio aos novos desafios que precisavam enfrentar. Os mais

conhecidos na transição entre Alta e Baixa Idade Média foram: Latrão I (1123), Latrão

II (1139), Latrão III (1179), Latrão IV (1215), Concílio I de Lion (1245), Concílio II de Lion

109 |História do Cristianismo - FVC


(1274), Vienne (1311-1312), Pisa (1409), Constância (1414-1418), Basileia-Ferrara-

Florença (1431-1445).

Também merece destaque o enfoque evangelizador e social das ordens religiosas

monásticas como, por exemplo, a ordem dos franciscanos, conhecida como Ordem dos

Frades Menores (OFM), fundada por Francisco de Assis (1181-1226), bem como a

ordem dos dominicanos ou Ordem dos Pregadores (OP), fundada por Domingos de

Gusmão (1170-1221). Essas ordens são popularmente conhecidas como ordens

mendicantes, e foram fundadas no século XIII. Elas foram criadas com o intuito principal

de estabelecer novas representações sociorreligiosas da Igreja frente a outros

movimentos religiosos católicos considerados hereges, como os valdenses e cátaros.

Havia entre os mendicantes o voto de pobreza e o desapego aos bens materiais,

também como formas de protesto contra o acúmulo de riqueza dos altos setores da

Igreja em algumas regiões europeias.

Figura 26: São Domingos de Gusmão, fundador da Ordem dos Pregadores (Dominicanos).
Fonte da Imagem: Google Imagens.

Figura 27: Francisco de Assis, fundador da Ordem dos Frades Menores (Franciscanos).

110 |História do Cristianismo - FVC


Fonte da Imagem: Google Imagens.

Franciscanos e dominicanos desempenharam papel de ensinar aos noviços uma

piedade e uma espiritualidade alternativas aos movimentos heréticos, como uma

vanguarda de ortodoxia, em parte representativa da Cúria romana, em parte como uma

crítica velada nas práticas. Esses dois movimentos também buscaram enviar

missionários às regiões mais distantes da Europa com o intuito de anunciar o evangelho

aos povos, como na China, mesmo após concluída a evangelização de todo o

continente europeu no século XII, tendo os povos escandinavos e o nordeste da Europa

como últimos públicos-alvos, de acordo com Peña (2014, p. 148-152).

Acrescentamos a esses aspectos outros dois movimentos importantes no

contexto cristão europeu, os quais expressaram as inquietudes da etapa final do

medievo: a chamada Devotio moderna e o Renascimento.

A Devotio moderna é uma expressão que designa um movimento espiritual que

foi caracterizado pela inclusão de mais dimensões afetivas à oração e à prática de

meditação na Igreja. Além disso, buscou-se uma concepção de espiritualidade e mística

com base no autoexame e na relação individualizada com Deus, paralelamente à vida

comunitária. Geert Groote (1340-1384), Mestre Eckhart (1260-1328), Johann Tauler

(1300-1361) e Heinrich Suso (1295-1366) estão no rol dos seus grandes representantes.

No entanto, é na obra Imitação de Cristo, da autoria de Tomás de Kempis (1380-1471),

que esse movimento ganhou mais expressividade na Europa. Ainda assim, a Devotio se

111 |História do Cristianismo - FVC


tornou uma influência generalizada para além de pequenos grupos somente em

tempos bem mais recentes (PEÑA, 2014, p. 155).

Figura 28: Tomás de Kempis, autor da obra Imitação de Cristo, uma das mais vendidas obras
da História ocidental.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

A Renascença ou Renascimento Cultural, por sua vez, foi um movimento cultural,

artístico, filosófico e científico, que buscou uma renovação no pensamento italiano,

com base em pressupostos identificados como humanistas. Começando por volta do

ano de 1300, alguns intelectuais e expoentes das artes na Itália realizaram um

importante ciclo de produções e publicações que buscavam resgatar, enaltecer e

priorizar a humanidade no sentido de um novo antropocentrismo que evoluiu na época

moderna.

Além do antropocentrismo, em contraste com o teocentrismo típico de toda a

força sociocultural da cristandade medieval, o Renascimento teve por base, também,

traços precursores do racionalismo e do cientificismo modernos, bem como expressões

artísticas e filosóficas entusiastas que ressaltavam uma nova leitura da individualidade

e o resgate do espírito clássico ocidental, inclusive remetendo-se aos primórdios do

Cristianismo.

112 |História do Cristianismo - FVC


Expoentes são reconhecidos em diversas gerações entre os séculos XIV e XVI.

Assim, a primeira geração conta com GIovanni Boccaccio (1313-1375), a segunda

geração com Nicolau de Cusa (1401-1464) e Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494),

e as últimas gerações com os mais famosos, Leonardo da Vinci (1452-1529),

Michelangelo Simoni (1475-1564) e Giordano Bruno (1548-1600). A maioria desses teve

como inspiração os princípios da Devotio moderna, das ordens monásticas, do espírito

universitário, as mitologias antigas e relatos bíblicos, buscando a verdade além dos

dogmas religiosos na interpretação do catolicismo. Para os renascentistas, era preciso

conceber a autonomia da arte, da filosofia e da ciência, em relação aos desmandos dos

papas, e, em última instância, alcançar-se a autonomia de cada sujeito e grupo social.

4.5 Síntese da Unidade

Na presente Unidade, consideramos uma brevíssima introdução sobre a Idade

Média, com sua tríplice divisão descrita por grande parte dos historiadores no tempo

presente: Primeira Idade Média, entre os séculos V e X; Alta Idade Média, do século X

a XIII; e Baixa Idade Média, a partir do século XIII e seguindo até o século XV.

No primeiro período medieval, a Igreja atravessou incontáveis transformações

internas e também externamente nas relações com o Império Romano. Com a chamada

conversão de Constantino, o Cristianismo alcançou mais rapidamente povos e

territórios até então resistentes à pregação. Com a queda de Roma em 476, o império

se fragmentou no Ocidente, restando a força política e religiosa que ainda seguia

113 |História do Cristianismo - FVC


combativa no Oriente bizantino. Não faltaram casos de papas que, temendo por

perderem suas prerrogativas do poder, sujeitam-se aos acordos com reinos e nobres,

a ponto de nomear lideranças permanentes em nível de imperador.

Na Alta Idade Média, pode-se falar na formação de uma cristandade, uma

sociedade com padrões e configurações voltadas ao modelo cristão. Houve outras

transformações, de outras naturezas, muito importantes para a Igreja Católica, que

significaram, em contrapartida, uma politização da fé a serviço das relações entre

clérigos e nobreza. A consolidação do modelo feudal, da expansão islâmica, do rito

romano na liturgia, dos desenvolvimentos na teologia dos sacramentos e da teologia

filosófica de bases aristotélicas, sobretudo, a partir do século XI. Vale destacar as

cruzadas, a criação de universidades e os movimentos monásticos, como situações

emblemáticas que forneceriam novas leituras para a vida social e comunitária.

Por fim, refletimos sobre a Baixa Idade Média, a qual teve por característica

principal um considerável declive nas iniciativas papais mediante as políticas de

formação dos territórios nacionais dos europeus, as contradições e abusos da Santa

Inquisição, bem como a instituição da Devotio moderna, do Renascimento italiano,

entre outras movimentações de crítica, que já vinham a encaminhar a Europa para um

novo tempo, a chamada Modernidade. Mas antes de considerar esse novo, convém

considerar um dos eventos mais significativos para o início dos tempos modernos: a

Reforma ou Revolução Protestante, tema de nossa próxima Unidade.

114 |História do Cristianismo - FVC


115 |História do Cristianismo - FVC
5

A REFORMA PROTESTANTE: INTRODUÇÃO


HISTÓRICA E TEOLÓGICA
Nesta Unidade, somos convidados a estudar um dos aspectos mais importantes

na História do Cristianismo Ocidental. A Reforma Protestante representa uma

importante divisão que ocorreu na Igreja Católica enquanto instituição e também em

relação a alguns de seus grandes dogmas e verdades de fé. Algumas guerras foram

motivadas em grande parte do continente europeu em virtude da animosidade que se

instalou entre a Santa Sé e os seus críticos como Martinho Lutero, Thomas Müntzer e

João Calvino, por exemplo.

O fato é que a Reforma protestante oficialmente surgiu na Alemanha, mas nunca

foi um movimento unilateralmente alemão, e sim decorreu de uma proliferação muito

plural e mais ampla, com a qual se relacionam diversas críticas e teologias que se

desenvolveram a partir de uma iniciativa ousada de Lutero no século XVI. Há quem

compreenda a Reforma como um marco histórico que sugere alguns fundamentos à

ideia que temos de modernidade. Não haveria modernidade sem a contribuição

protestante, não apenas em matéria de religião e de fé, mas também em questões

políticas, pedagógicas, culturais, socioeconômicas e científicas.

Assim sendo, na primeira parte desta Unidade, discutiremos alguns aspectos

biográficos gerais situados em torno da vida e da obra de Martinho Lutero, bem como

116 |História do Cristianismo - FVC


o contexto em que ele viveu e os conflitos com a Igreja Católica Romana. Na segunda

parte, os desdobramentos teológicos a partir do pensamento desenvolvido por Lutero

e a difusão inicial do novo movimento dissidente na Alemanha. Na terceira parte,

algumas referências aos mais conhecidos personagens da Reforma em outros contextos

europeus, suas teologias e outras rupturas que caracterizam o Protestantismo, com sua

gradativa expansão entre os séculos XVI e XVII.

5.1 Preâmbulos
Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483 na região de Eisleben, na

Saxônia-Turíngia, Alemanha. Em sua época, já era, há muito, bem difundida a

publicação de biografias de importantes personagens, que inspiraram a muitos, como,

por exemplo, a autobiografia de Santo Agostinho de Hipona (354-430) intitulada

Confissões, uma das obras mais lidas e conhecidas do mundo ocidental. No entanto,

embora seja um gênero literário antigo, válido e influente que fomentou em grande

parte a cultura ocidental, a biografia enquanto escrita sobre a vida de alguém pode

suscitar debates intermináveis diante da busca moderna por uma cientificidade do

trabalho do historiador.

A biografia provoca um polêmico questionamento à absoluta distinção entre um

gênero verdadeiramente literário e uma dimensão puramente científica, na qual a

História é a representante desta cientificidade, uma vez que ela é a responsável por

tratar os fatos do passado com a metodologia necessária para conferir confiabilidade

e verificabilidade às informações que o texto evoca (VASCONCELLOS, 2018, p. 3).

117 |História do Cristianismo - FVC


Os aspectos biográficos buscam trazer à tona uma visão geral sobre a vida de

um sujeito histórico (vivo ou não) que existiu de forma marcante no passado. A

biografia é uma forma de escrita que esbarra em questões metodológicas da

Historiografia, por algumas razões:

Existe sempre mais de um ponto de vista sobre a vida e as obras de qualquer

sujeito, e diversas possibilidades de ênfases ou destaques positivos e negativos nesse

empreendimento. Isso inclui tanto as narrativas mais justas quanto as mais idealizadas

sobre o sujeito da biografia.

Sabe-se que nenhuma narrativa é isenta de interpretações subjetivas e contém

até mesmo fantasias e ficções que visam nem sempre distorcer intencionalmente os

fatos, mas tornar mais claros e sublinhados os elementos que conferem maior sentido

e dimensão estética para o narrador ou biógrafo e seus ouvintes/ leitores.

Dependendo dos acessos às fontes históricas e da qualidade das mesmas,

encontra-se uma dificuldade em se estabelecer o que é fato e o que são lendas,

principalmente quando se trata de uma personagem emblemática ou muito relevante

para a fundação de um grupo, organização ou instituição.

Além disso, não é possível isolar cientificamente qualquer ação do indivíduo de

que trata uma biografia, embora essa característica seja muito comum nesse gênero

histórico. Ao contrário, o método científico busca uma leitura totalizante do sujeito

biografado, pois todas as suas ações, das mais simples às mais complexas, estão

necessariamente atravessadas pelos fatores externos ou alheios à vontade do indivíduo,

o que envolve também outras relações com seu entorno, sejam de ordem política,
118 |História do Cristianismo - FVC
religiosa, ideológica, econômica, afetiva, psicossocial ou simplesmente incidental, sem

explicações claras a priori. Portanto, segundo critérios científicos, não se deveria

romantizar ou idealizar qualquer ação individual, pois, caso contrário, os fatos

permanecerão diluídos e encobertos pela subjetividade de quem os narra.

Assim sendo, voltemos à apresentação biográfica sobre Lutero, em face das obras

atribuídas ao seu nome, às pesquisas sobre seu gênio ao longo dos séculos, as de

caráter mais teológico e as que pertencem a outras disciplinas distintas da Teologia.

Lutero, em sua formação católica, foi testemunha de uma época em que a Igreja

Católica, especialmente no seu aspecto clerical, se encontrava em crises profundas no

âmbito moral, ministerial, litúrgico, político e social. Até mesmo as ordens monásticas

e grupos religiosos, outrora muito criteriosos e empenhados na qualidade da vida cristã,

também se encontravam em situação semelhante à da hierarquia clerical de forma

generalizada.

Segundo Lienhard (1998), a Alemanha de Lutero ainda era o Sacro Império

Romano da Nação Alemã, cujas raízes remetem às convergências entre os povos

bárbaros germânicos. Durante todo o século XV, tanto o Império quanto a Igreja

Católica, em suas correspondências políticas, necessitavam de reformas em suas

estruturas e expressões mais importantes diante da sociedade civil.

Reclamava-se assim por uma reforma no interior das estruturas da Igreja Católica,

em todos os setores, áreas de atuação, instituições e agrupamentos. Por reforma da

Igreja, então, compreende-se um termo que resume em si inúmeras expectativas por

iniciativas de mudanças da época em foco, e por elas batalharam algumas pessoas


119 |História do Cristianismo - FVC
inquietas bem conhecidas na História, como Erasmo de Roterdã (1466-1536) e Thomas

Morus (1478-1535). Certamente, esses intelectuais entre outros, antes mesmo de Lutero

vir a público com suas teses contra determinadas práticas da Igrejas, já haviam

produzido uma série de críticas, manifestos e reflexões que visavam uma renovação

permanente daquela instituição politicamente desgastada aos olhos da sociedade civil.

Figura 29: Erasmo de Roterdã.


Fonte da Imagem: Google Imagens.

Figura 30: Thomas Morus (ou Thomas More).


Fonte da Imagem: Google Imagens.

120 |História do Cristianismo - FVC


Os movimentos de tipo reformador em geral, no século XV, embora com

perspectivas e ênfases ético-teológicas mais ou menos diferentes, tinham algumas

reivindicações em comum, de acordo com Peña (2014), que seriam as seguintes:

● Tentativas de recuperação da atenção pastoral, na atividade e na espiritualidade

dos bispos da Igreja.

● Residência de cada pastor em sua própria jurisdição.

● Os prelados devem escolher cooperadores capacitados e mais dispostos à

atuação eclesiástica.

Temos considerado os contemporâneos de Lutero, o articulador de uma reforma

que se transformou numa verdadeira revolução que cindiu a Cristandade. Também

havia lideranças além das já existentes, que, por sua vez, representam outras espécies

de reformas paralelas, que não incidiram sobre a unidade da instituição católica.

Formavam-se, assim, novas congregações religiosas com viés em parte inovador e com

função reestruturante, dentre as quais se destacam:

● Teatinos, a partir de S. Caetano de Tiene em 1524.

● Barnabitas, desde S. Antônio Maria Zacarias em 1533.

● Ursulinas, com S. Ângela de Mérici (1535).

● Camilianos, com S. Camilo de Lelis em 1584.

● Jesuítas, a partir de S. Inácio de Loyola, no ano de 1540.

A Companhia de Jesus se tornou a organização mais conhecida como uma

resposta do catolicismo diante da Reforma iniciada por Lutero, mas também apresentou

121 |História do Cristianismo - FVC


um programa de atuação em vista da renovação da Igreja e de suas estratégias de

evangelização. A História da colonização brasileira e latino-americana demonstra desde

o início os focos da presença jesuíta e de suas ações nesses contextos. Os jesuítas

demarcam, por conseguinte, alguns aspectos da chamada Contra-Reforma na luta

contra o avanço protestante.

5.2 Martinho Lutero e o início da Reforma


Não há como falar em Reforma Protestante e Protestantismo sem se referir a

Martinho Lutero e suas teses contra a prática de indulgências na Igreja Católica. Nascido

em uma família da classe trabalhadora, foi criado em um ambiente espiritual repleto

de rigor moral e misticismo em torno de lendas sobre demônios e feitiços. A esfera

das crenças que então circulavam nos espaços que frequentou na juventude

estimularam em Lutero um profundo temor: a possibilidade de não alcançar a salvação,

apesar de todo o seu esforço moral e devoção religiosa.

Antes dos acontecimentos que iriam definir o futuro do Ocidente cristão, Lutero

chegou a estudar para uma promissora carreira em advocacia na Universidade de Erfurt,

pois, a princípio, não se imaginava um teólogo ou padre. Em 1505, no entanto, decidiu

abandonar a carreira secular e entrou para o Mosteiro Agostiniano de Erfurt, a partir

do qual foi ordenado sacerdote em 1507. Prosseguiu com estudos de doutoramento

em Teologia até 1512 na Universidade de Wittenberg. Um ano antes, o jovem sacerdote

Lutero havia visitado Roma, e tudo indica que essa experiência foi importante para que

visse de perto os luxos, práticas espúrias e incoerências da cúria romana.

122 |História do Cristianismo - FVC


Naquele período, entre 1511 e 1517, Lutero se dedicou ao aprofundamento de

questões teológicas, o que foi amadurecendo uma concepção de justificação pela fé, à

luz das Escrituras. O monge agostiniano, que também exercia uma função importante

em seu mosteiro e lecionava Sagrada Escritura na Universidade de Wittenberg, durante

aqueles anos percebeu decisivamente o que poderia representar um dos pontos

centrais em meio aos problemas institucionais e excessos do catolicismo naquele

momento.

Lendo a carta aos Romanos, encontrou um dia o que ele considerou resposta a

seus questionamentos: o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei (Rm 3,28).

Desse modo, Lutero compreendeu que Deus salva o homem pela única ação da sua

graça, independentemente de seus pecados, e encontrou paz e consolação. Ele mesmo

descreveu em sua autobiografia essa experiência de libertação como o fruto de uma

longa busca. Desde então se dedicou a aprofundar essa experiência e encontrou a

oportunidade de tornar conhecidas publicamente suas reflexões em 1517, quando se

pregava em sua cidade uma indulgência com o objetivo de ajudar a construir a Basílica

de São Pedro e a cobrir os gastos do bispo da Magúncia, que devia pagar um imposto

por acumular três cargos eclesiásticos (PEÑA, 2014, p. 175).

Unindo sua leitura da carta aos Romanos, sua experiência de anos de

questionamentos e reflexões ensaiadas em suas aulas universitárias e pregações, Lutero

sentia grande revolta contra a prática de indulgências levada a Wittenberg, revolta essa

que atinge seu ponto mais alto em 31 de outubro de 1517, quando, em Wittenberg,

expôs publicamente 95 teses contra a venda de indulgências, e solicitava diálogo com

123 |História do Cristianismo - FVC


o Papa para a eliminação dessa prática. As indulgências constituíam uma prática

estratégica do catolicismo em que se alegava que cada fiel na condição de pecador

necessitava do perdão ou remissão dos pecados, assim, eram exigidos determinados

pagamentos pelas benesses divinas nesse sentido. Havia, dependendo de cada região,

uma intensidade diferente dessa prática, e na cidade Wittenberg tornou-se algo muito

recorrente, despertando discordâncias entre clérigos e leigos nas paróquias.

Figura 31:Monumento dedicado à memória de Martinho Lutero na cidade de Worms,


Alemanha.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

Aos poucos, Lutero foi percebendo que sua inquietação pertencia também à

grande maioria do povo das cidades alemãs, cansado de pagar impostos à corte papal

e enfadado com a situação de dispêndio, luxos e acumulação de bens eclesiásticos.

Dessa forma, o episódio de 31 de outubro desencadeou nos anos seguintes diversos

focos de protesto contra as indulgências e outras práticas polêmicas da instituição

124 |História do Cristianismo - FVC


católica. Lutero iniciou o quanto antes um processo de tradução da Bíblia para o

alemão, e retirou alguns livros do Antigo Testamento, que chamou de apócrifos, bem

como excluiu os acréscimos gregos dos livros de Daniel e de Ester.

Os focos da insatisfação contra o Catolicismo não foram iniciados por Lutero,

pois já eram sentidos como potenciais revoltas temporariamente contidas, mas que a

partir desse contexto na Alemanha, ganharam força a ponto de se transformarem em

diversas rupturas religiosas e políticas em vários locais na Europa, especialmente na

parte do centro ao nordeste.

Figura 32:O mapa apresenta a difusão das tradições cristãs no século XVI, incluindo a católica e
as mais proeminentes do protestantismo, bem como as áreas islamizadas.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

O chamado “protestantismo” é o movimento do qual Lutero foi precursor e mais

notável representante. E o que é protestantismo?

125 |História do Cristianismo - FVC


O termo “protestantismo” engloba de forma geral um conjunto de

confissões cristãs surgidas a partir do processo de ruptura que

ocorreu na cristandade ocidental durante o século XVI.

Habitualmente se reconhece como seu momento inicial a crise

gerada a partir dos questionamentos de Martinho Lutero e da

publicação de suas teses.

(PEÑA, 2014, p. 174)

Todos os líderes e grupos que formaram as primeiras gerações do

protestantismo, ao se desenvolver continuamente e não mais acatarem a todos os

dogmas católicos, estabeleceram com os tempos, novas comunidades de fé, as

chamadas denominações protestantes. Em resposta a esse processo irreversível, a Igreja

Católica convocou o Concílio Trento, organizado pelo papa Paulo III. O Concílio, entre

os anos 1545 e 1563, estabeleceu diretrizes para conter o avanço protestante e ratificar

doutrinas católicas preservando a identidade institucional, por exemplo:

● Fortalecimento da autoridade do Papa.

● Indicação da relação entre salvação, graça e religião.

● Instituição do Missal Tridentino em latim, das especificações sobre a comunhão

e o culto dos santos.

● A oficialização da Contra-reforma, com mediação dos jesuítas.

126 |História do Cristianismo - FVC


● Ratificação da Tradição como norma de fé e fonte da Teologia, rejeitando-se o

primado e a exclusividade das Escrituras como regra de fé e moral.

De acordo com Johnson (2001), após produzir cerca de trinta escritos entre 1517

e 1520, Lutero, com o episódio das suas teses, não se retratou com a Igreja, manteve

firme sua postura crítica, o que resultou em excomunhão pelo Papa Leão X. Em 1520,

um ano antes da oficialização de sua excomunhão da Igreja Católica, Lutero publicou

suas três principais obras.

Os três mais importantes escritos foram todos publicados em

1520, um ano antes da excomunhão formal de Lutero e do

princípio do cisma protestante. O Da Servidão Babilônica da Igreja

continha a essência da crítica reformista à Igreja, além da proposta

positiva, bíblica. Em Da Liberdade de um Cristão, delineou a

doutrina da justificação pela fé, o cerne do luteranismo; e, por fim,

em À Nobreza Cristã da Nação Alemã, definiu os meios pelos quais

a nova religião poderia ser, e na verdade seria, estabelecida.

(JOHNSON, 2001, p. 339 - adaptado)

O legado de Lutero para a História vai além da tradição da Igreja Luterana e da

própria Reforma Protestante em seu conjunto. A insistência do agostiniano sobre o

lema Sola Scriptura (Somente a Escritura), de que decorrem outros “solas”, como Sola

Gratia e Sola Fides, que se referem à graça divina e à fé, respectivamente, provocou

127 |História do Cristianismo - FVC


um impacto que transcende os aspectos puramente religiosos ou teológicos. Por isso

mesmo, outras perspectivas foram desenvolvidas em cada região da Europa por onde

caminhassem líderes críticos inspirados pela mesma insatisfação e por uma

espiritualidade bíblica semelhante à de Lutero. A primeira convergência entre as

teologias de matriz protestante aconteceu com a Confissão de Augsburgo em 1530,

considerada a primeira formulação oficial da fé protestante.

Por assim dizer, Lutero não foi um homem sem defeitos e limitações, por isso

não vale romantizar ou idealizar sua imagem, todavia ele permanece historicamente

como um dos personagens mais emblemáticos da moderna História Ocidental,

sobretudo, para a nação alemã.

Figura 33: Martinho Lutero (1483-1546).


Fonte da Imagem: Google Imagens.

5.3 Lutero, Karlstadt e Müntzer


Na Alemanha de Lutero, outras figuras tiveram papel fundamental de

mobilização contra a dominação católica, também no âmbito das lutas de classes

trabalhadoras contra a opressão da Igreja no nível sociopolítico e econômico. Não se

tratava ainda do sistema econômico capitalista, tampouco do socialismo como ficou


128 |História do Cristianismo - FVC
conhecido a partir do século XIX. Mas, houve acontecimentos muito significativos que

serviram de inspiração a outros grupos, séculos mais tarde. Esse provavelmente foi o

caso de Tomás Müntzer (alguns redigem como Thomas Münzer).

Não eram unânimes as convicções sobre o que fazer no caminho que se abria à

parte do Catolicismo na Alemanha. Isso fica claro quando estudamos os conflitos

internos entre os defensores da Reforma nas primeiras décadas do século XVI na

referida região. Além de Lutero, é preciso relembrar a importância política e religiosa

de pelo menos outros dois líderes nesse contexto. Andreas Karlstadt e Tomás Müntzer.

O ano era 1517. Depois de ter visitado Roma e lido textos de

Agostinho sobre a graça e a depravação humana, o professor de

Bíblia da Universidade de Wittenberg publicou 151 teses

denunciando a corrupção do sistema litúrgico cristão. Além de

impactar o cristianismo na época, os reflexos de suas ideias são

vistos até hoje, visto que elas enfatizam que o pecador pode obter

a salvação sem a intervenção direta da instituição eclesiástica.

Apesar das semelhanças, não estamos falando de Lutero e suas 95

teses, mas sim de Andreas Bodenstein von Karlstadt, seu professor

de teologia.

(GALIZA, 2017)

129 |História do Cristianismo - FVC


Figura 34: Andreas Karlstadt, teólogo e professor na Universidade de Erfurt, Alemanha.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

Andreas Karlstadt (1486-1541) foi um teólogo alemão e professor de Lutero a

quem se uniu quando da cisão que primeiros reformadores realizaram na Igreja

Católica, considerado o primeiro a formular uma teologia tipicamente protestante do

batismo. Escreveu 151 teses contra a corrupção na Igreja, publicadas em período bem

próximo das teses de Lutero contra as indulgências. No primeiro semestre de 1521,

enquanto Lutero se escondia no Castelo de Wartburg sob ameaças do Papa e dos

líderes católicos locais, Karlstadt atuava em Wittenberg mantendo a divulgação das

críticas aos abusos, violências e arbitrariedades da Igreja na cidade, cooptando novos

adeptos ao movimento.

Em meio às cisões que se iniciaram, aparece um jovem líder com perspectiva

diferente de Lutero e Karlstadt. Tomás Müntzer (1489-1525) não manteve grandes

relações com o clero local e não produziu extensa obra teológica, muito embora tenha

se formado em Leipzig e em Frankfurt do Oder, onde provavelmente conheceu Lutero

em 1514. Tomás publicou os “Doze artigos”, em sintonia com a autoridade suprema da

Escritura, que proclamavam que:

130 |História do Cristianismo - FVC


Os camponeses nasceram livres e reivindicavam a livre escolha dos

líderes espirituais, a abolição da servidão, o fim dos tributos

religiosos, a diminuição dos impostos sobre a terra e a liberdade

para caçar nas florestas pertencentes à nobreza. Omnia sunt

communia –” tudo é de todos” era a síntese da pregação dos

camponeses.

(SANTOS, 2009, p. 129)

Embora tenha se posicionado inicialmente em favor dos trabalhadores do campo

que eram explorados pela Igreja, Lutero voltou atrás e não apoiou o empreendimento

de Müntzer em promover revoltas camponesas contra a nobreza. Lutero permaneceu

ao lado dos príncipes criticados pelo revolucionário. E além disso, desaprovou

duramente Müntzer e os anabatistas (rebatizadores) que o seguiam, como o professor

Karlstadt que também flertou com a proposta revolucionária mas mudou de direção

rapidamente. Karlstadt, de seguidor, também se tornou opositor de Müntzer, deixando-

o isolado na liderança de tais movimentos de revolta. Produziu-se um senso comum

segundo o qual a ideologia de Müntzer não passava de uma distorção da proposta de

Lutero levada ao extremo da guerra.

O fato é que Lutero não mobilizou expressamente qualquer tipo de guerra contra

a Igreja Católica, pois buscava diálogo e renovação do cristianismo mediante o debate

saudável de ideias com o Papa, debate que, conforme sabemos, não aconteceu. Lutero

não concebeu com bons olhos a produção de conflitos físicos contra a nobreza e a

Igreja na Alemanha, apesar de serem legítimas as críticas dos camponeses, que em


131 |História do Cristianismo - FVC
grande parte eram as mesmas de Lutero quanto aos abusos da Tradição católica e à

falta de reconhecimento das Escrituras como fundamento maior da vida cristã. No

fundo, Lutero deve ter se sentido dividido em algum momento, entre a autenticidade

da luta camponesa e a preservação do movimento que inaugurou, pensando-se na

possibilidade de matança generalizada de inocentes pelas tropas católicas e imperiais.

Então, optou pela sobrevivência daquilo que ele havia começado a desenvolver, como

uma nova Igreja. E rejeitou qualquer iniciativa que pusesse em risco o movimento.

Inclusive a Reforma Radical de Tomás Müntzer. Nos poucos anos de relação entre

Lutero e Müntzer, houve questões tensas, que podem ser resumidas a partir do relato

seguinte, sobre o reformador radical alemão.

Como pregador na paróquia de Zwickau, no leste do país, passou

a divulgar as teorias da Reforma, porém, acentuando-lhe o

radicalismo. Contrariamente a Lutero, Müntzer acreditava que as

pessoas simples entendiam muito melhor sua pregação quanto

aos nobres e ricos, e aos pobres passou a dedicar todo seu

trabalho de pastor e pregador. Sua conclusão de que a Igreja

sempre estava ao lado dos ricos e poderosos levou ao conflito

com Lutero e seus seguidores, sendo afastado da paróquia em

1521.
(SANTOS, 2009, p. 130)

A grande inspiração de Müntzer passou de Lutero a Jan Hus (1369-1415),

pregador da região de Praga, o qual foi condenado pelo Concílio de Constança (1414-

1415), martirizado e queimado vivo como herege. Após um período em que

132 |História do Cristianismo - FVC


permaneceu na região da Boêmia, onde Hus viveu, Müntzer tornou cada vez mais claras

as diferenças teológicas entre ele e Lutero, sobretudo com a publicação de outro texto

seu bem conhecido: o Manifesto de Praga. Nele, começou a proclamar suas

insatisfações, tanto com os católicos, quanto com os rumos iniciais da Reforma, também

contra os eruditos de ambos os lados, e, além disso, anunciou a perspectiva de uma

espécie de reforma dentro da reforma. O Sola Scriptura de Lutero acabou sendo

substituído pelo Sola Experientia, conforme registrou Carter Lindberg (2001). Isso ficou

atestado em uma carta que escreveu ao líder colaborador de Lutero, o famoso Filipe

Melanchton (1497-1560), com data de 29 de março de 1522.

Müntzer pregava a igualdade social, uma escatologia bíblica com fervor

milenarista, a politização humanista da espiritualidade e, como consequência de tudo

isso, a luta por apropriação forçosa dos grandes lotes de terra, antigos feudos

inutilizados. Com isso, o alemão passou a ser considerado real ameaça para os velhos

senhores feudais e para os nobres e clérigos. Entre esses opositores, mantinham-se

relações políticas e econômicas à época.

Assim sendo, com ampla divulgação de suas ideias por diversas cidades e aldeias,

Müntzer arrebanhou dezenas de famílias camponesas para lutar contra a nobreza que

apoiava o sistema feudal já em declínio. Pequenos levantes começaram a acontecer

pontualmente no ano de 1524, com algumas vitórias parciais contra as lideranças

políticas mais fracas. Nesse momento, os militantes já estavam em torno de mais de

quinhentos. Quando chegou à casa dos milhares de camponeses e outros profissionais,

133 |História do Cristianismo - FVC


o movimento de Müntzer avançou por toda parte sul do país, para o leste e o norte a

partir de fevereiro de 1525.

Sem experiência e treinamento especial diante de soldados e tropas oficiais

juntamente com grupos locais mercenários e delatores, o movimento começou a

amargar uma sequência de derrotas que se estenderam até maio de 1525, na região

de Frankenhausen, onde o teólogo e líder acabou preso, torturado e decapitado pelo

exército local, o que pôs um ponto final em seu projeto revolucionário. A cabeça de

Müntzer foi exposta nos portões da cidade como troféu pela vitória épica sobre a

legião de camponeses. Estes, vencidos, assumiram por fim a teologia de Lutero da

submissão passiva à autoridade constituída por Deus, segundo sua interpretação de

Romanos 13. Seria esse o começo do fortalecimento dos regimes autoritários entre os

alemães, desde o período imperial até o Nazismo do século XX?

Devido ao seu fracasso, Müntzer permaneceu visto como um pária da Reforma

alemã ou simplesmente omitido em grande parte das historiografias da Reforma e

biografias de Lutero. A exceção a essa regra veio somente com as reflexões de Karl

Marx e Friedrich Engels no século XIX, ao avaliar a história da luta de classes e dos

movimentos revolucionários na Alemanha, celebrando-se Müntzer como grande

inspiração ao socialismo, e, em contrapartida, com a respectiva crítica a Lutero como

arquétipo burguês, “pregador dos príncipes” (SANTOS, 2009).

134 |História do Cristianismo - FVC


Figura 35: Monumento à memória de Jan Hus, em Worms, Alemanha. Hus foi um dos
principais inspiradores da Reforma Radical de Tomás Müntzer.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

Figura 36: Estátua em referência a Tomás Müntzer.


Fonte da Imagem: Google Imagens.

5.4 Outros desdobramentos


O espaço textual é deveras muito curto para tratarmos de todos os

135 |História do Cristianismo - FVC


desdobramentos da Reforma entre os séculos XVI e XVII. Os marcos mais elementares,

entretanto, já foram oferecidos até aqui e são suficientes para um contato inicial com

o tema. Apenas a modo de síntese, iremos assinalar outros nomes e regiões

importantes que você precisa conhecer e que articularam outros desdobramentos da

Reforma Protestante no continente europeu, no século XVI.

Além de Wittenberg, Erfurt, Worms, Leipzig, Frankenhausen e outras cidades na

Alemanha, outro palco de notáveis cenas das fundações do Protestantismo na Europa

se deu em Zurique e em Genebra, cidades suíças que distam cerca de 280 Km uma da

outra. Zurique e Genebra constituem cenários históricos para a atividade pastoral dos

reformadores Zuínglio e João Calvino, respectivamente.

Antes, não poderíamos esquecer de mencionar o surgimento do Anglicanismo.

A grande maioria das obras que conhecemos sobre Reforma Protestante não menciona

a ruptura do rei Henrique VIII com o Papa, devido às permanentes questões que

buscam avaliar até que ponto a Igreja Anglicana rompeu com a Católica Romana e se

ela realmente teria algo em comum com os reformadores do século XVI. Henrique VIII

foi excomungado pelo Papa Clemente VII em 1534, devido às questões conjugais do

rei. Desde então, foram cortadas as relações entre a Igreja de Roma e a Igreja na

Inglaterra.

A história da Igreja da Inglaterra (Church of England) é marcada

por extremas oscilações pendulares em relação ao catolicismo

romano ou ao protestantismo. Quando Henrique VIII separou a

Igreja da Inglaterra do catolicismo romano (1534), todos


136 |História do Cristianismo - FVC
compreendiam que a mudança fora apenas de mandatário. De um

papa para um rei. Mas a liturgia e a estrutura hierárquica

continuavam as mesmas. Nos anos seguintes é que, através de

contatos com luteranos e calvinistas da Europa continental, a

liturgia anglicana foi reformulada (o primeiro Book of Common

Prayer é de 1549) e elaborou-se uma declaração doutrinária, os

“39 Artigos de Religião”. Desde o século XVI, o anglicanismo tenta

se equilibrar entre o peso de tradições pré-reformadas (sobretudo

na liturgia) e a influência de grupos protestantes às vezes bastante

radicais .

(CALVANI, 2005, p. 38)

O surgimento da Igreja Anglicana se deu como uma espécie de Reforma

independente da corrente luterana. Embora quase simultâneas, ambas as manifestações

de ruptura ocorreram por motivações bem diferentes. No caso anglicano, as questões

são mais de ordem política e pessoal do que propriamente acadêmica ou teológica.

Em outra parte do continente, na atual região da Suíça, rumores de ruptura

popular e de clérigos com a Santa Sé também aconteciam, gerando debates e reações

violentas entre as autoridades católicas e os adeptos do novo movimento.

Ulrico Zuínglio (1484-1531) foi sacerdote católico suíco, muito influenciado pelas

críticas humanistas de Erasmo de Roterdã. Inicialmente, foi contra determinados

costumes católicos e restrições da Quaresma, tendo a Bíblia como critério para o

137 |História do Cristianismo - FVC


discernimento moral e ritual da Igreja. Em 1523, uma segunda etapa do movimento

protestante se iniciou com Zuínglio em Zurique, após intensos debates públicos na

cidade. Em 1525, as autoridades locais adotaram cultos públicos em vez das missas, e

a cidade assumia uma tendência protestante, que conflitava com as tradicionais famílias

católicas que ali residiam que, ao que parece, estavam perdendo adeptos mais

rapidamente até do que na Alemanha.

A primeira grande guerra local entre católicos e protestantes na região foi a

Guerra Civil em Zurique que também ficou conhecida como Batalha de Kappel em

1529. Na continuidade dessa guerra, em 1531, o pioneiro da reforma suíça foi morto

prematuramente. A unificação dos opositores do Catolicismo se fazia necessária para a

implantação dos valores reformados na cidade. Mesmo com as tentativas de unificação

doutrinária entre luteranos e reformados de Zurique, com a Dieta de Spira e o Colóquio

de Marburg, permaneciam algumas divergências entre eles, sobretudo, na questão da

Ceia do Senhor.

Houve também uma passagem dos anabatistas por Zurique, entre 1522 e 1524,

com críticas à teologia de Zuínglio, desgastando sua imagem entre alguns discípulos.

O movimento anabatista, com diversas linhas de atuação, não conseguiu muito

prestígio, por suas divisões internas e pelo desastroso conflito em Münster, onde

tentaram implantar uma teocracia que substituísse o Sacro Império, entre 1532 e 1535.

Provavelmente o anabatista holandês Menno Simons (1496-1561), fundador do

movimento menonita, seria ainda o mais aclamado dessa geração, pela sua postura

mais cautelosa e atenta aos cenários políticos.

138 |História do Cristianismo - FVC


Por fim, o francês João Calvino (1509-1564) tornou-se um dos mais conhecidos

reformadores, cuja tradição remete à Genebra e suas ideias repercutiram em outros

continentes. Sua maior representação no Brasil é através da Igreja Presbiteriana do

Brasil (IPB) fundada em 12 de agosto de 1859, no Rio de Janeiro, por Ashbel Green

Simonton.

Calvino estudou em Paris, e assumiu-se adepto da fé protestante em 1533,

chegando a Genebra em 1536 devido aos rumores de guerra entre França e Alemanha.

A cidade suíça havia sido então recentemente tomada pelos ideais protestantes de

Guilherme Farel (1489-1565), expoente com quem Calvino manteve uma relação de

união e de liderança contra as resistências católicas na cidade. Sua luta intelectual e

política estabeleceu, em meio a diversas polêmicas teológicas, algumas influências

relevantes para a modernidade ocidental.

A proposta do reformador francês era tornar Genebra em uma cidade cristã que

servisse como modelo ao Ocidente, através da reorganização da Igreja, de um

ministério bem preparado, de leis que expressassem uma ética bíblica e de um sistema

educacional completo e gratuito. O resultado foi que Genebra tornou-se um grande

centro do Protestantismo, preparando líderes reformados para toda a Europa e

abrigando centenas de refugiados de diversas regiões em estado de guerra. O

calvinismo veio a ser um dos mais completos sistemas teológicos de tradição

protestante, tendo por princípios básicos a soberania de Deus, a predestinação do

cristão e suas implicações. Foi essa a origem das Igrejas reformadas (continente

europeu) ou presbiterianas (Ilhas Britânicas). Os principais países em que se difundiu o

139 |História do Cristianismo - FVC


movimento reformado foram, além da Suíça e da França, o sul da Alemanha, a Holanda,

a Hungria e a Escócia, esta última sob influência do pregador John Knox (1513-1572),

da segunda geração de reformadores de que Calvino fazia parte.

5.4 Síntese da Unidade


Nesta Unidade, você pôde conhecer um pouco mais sobre alguns dos principais

protagonistas da Reforma Protestante. Não cabe romantizar nenhum deles, pois todos

eram seres humanos, com suas falhas, desavenças, vaidades, anseios e esperanças, nem

sempre autênticas e legítimas.

No território alemão, em que predominava ainda uma lógica medieval imperial,

a trama protestante foi tecida, de modo que seus grandes protagonistas deixaram uma

contribuição importante em diversas áreas da cultura e dos conhecimentos. Lutero,

com suas iniciativas impulsionadas pelo fervor em relação à Bíblia, favoreceu a

divulgação das Escrituras e de uma tendência cada vez mais inclinada à autonomia do

sujeito que interpreta os textos sagrados. Assim também o teólogo e burocrata

universitário Andreas Karlstadt acompanhou Lutero, seu ex-aluno e agora líder,

divergindo-lhe em alguns pontos teológicos, convergindo no essencial, que era a

proteção ao movimento que mais crescia naquele momento histórico. Tomás Müntzer,

por outro lado, radicalizou as concepções de Lutero em campo de batalha, movido por

questões sociopolíticas, tendo sido derrotado pelos poderes vigentes. Müntzer ainda

está distante de ter um espaço justo na Historiografia da Reforma Protestante.

Uma segunda geração de reformadores foi representada em Calvino e John Knox,

140 |História do Cristianismo - FVC


os quais foram precedidos por Ulrico Zuínglio, Guilherme Farel, entre outros. A Reforma

calvinista em Genebra, antecedida pelos conflitos em Zurique constituiu-se em um

processo histórico de suma importância para a formação do pensamento moderno e

das novas configurações religiosas em forma de denominações protestantes e respostas

da Igreja Católica. O Concílio de Trento (1545-1563) simbolizou uma das principais

reações católicas para tentar conter o avanço protestante. Isso não foi suficiente,

porque, conforme veremos na próxima Unidade, o movimento protestante continuou

a se expandir e construir novas tradições em todo o Ocidente, apesar das guerras e

violências cometidas em nome de Deus e dos ideais religiosos dos líderes eclesiásticos.

Figura 35: O famoso Muro dos Reformadores, em Genebra, na Suíça, celebra os quatro
pioneiros do protestantismo naquela região do mundo: Guilherme Farel (1489-1565), João Calvino
(1509-1564), Teodoro de Beza (1513-1605) e João Knox (1513-1572).
Fonte da Imagem: Google Imagens.

141 |História do Cristianismo - FVC


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6

IGREJAS, TEOLOGIAS E MODERNIDADES


O período clássico e paradigmático da Reforma Protestante encerra-se em 1648,

com o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma das maiores guerras religiosas

da História ocidental. A essa altura, o protestantismo já estava consolidado em mais de

três quartos dos territórios da Europa Ocidental e fora desse continente também.

Apesar de associarmos o ano de 1517 à Reforma Protestante, esse

título veio em 1555. Em meio às lutas entre católicos e luteranos,

nesse ano o imperador Carlos V aceitou a existência das Igrejas

luteranas, assinando com os protestantes a Paz de Augsburgo,

concedendo a cada príncipe o direito de escolher a religião de seu

principado.

(VALENTIN, 2010, p. 62)

A modernidade não seria o que é, sem o protestantismo, mas nem todo o

protestantismo se considera moderno. Modernidade é um período geralmente

considerado entre a Queda de Constantinopla (1453) até a Revolução Francesa (1789).

Nesse período, enquanto a Igreja Católica lutou por séculos para conter a Revolução

Protestante, as novas Igrejas se tornaram cada vez mais indiferentes a qualquer forma

de retorno ao diálogo com os chamados romanistas. Sendo assim, além do

143 |História do Cristianismo - FVC


distanciamento em relação a Roma, destacamos, também, que a pluralidade, que desde

o início marca o movimento protestante, revelou-se sempre mais clara em cada nova

cisão que ocorria nessas comunidades. Por outro lado, convém lembrar que nas

matrizes luteranas, anabatistas, reformadas, não há espaço ao anglicanismo, que não é

católico romano, e nem tampouco ortodoxo. Sobre essa problemática, é importante,

então, considerar o seguinte:

O protestantismo é um dos três principais ramos do cristianismo

ao lado do catolicismo romano e das igrejas orientais ou

ortodoxas. Essa categorização, muito ampla e abrangente, é a

adotada por J. L. Dunstan (...). Justamente por sua amplitude, a

categorização desse autor deixa logo em aberto um problema:

onde colocar o anglicanismo, hoje estendido por todo o mundo

como uma comunidade que extrapola o Reino Unido? A Igreja da

Inglaterra resulta, sem dúvida, da Reforma Religiosa, mas, como se

diz com frequência, ficou a meio caminho entre Roma e as igrejas

protestantes, tanto luteranas como calvinistas. De fato, a ala

propriamente dita anglicana recusa o título de protestante. Desse

modo, seria melhor estabelecer quatro categorias de igrejas cristãs

mundiais: romana, ortodoxas ou orientais, anglicana e

protestantes.

(MENDONÇA, 2005, p. 50)

144 |História do Cristianismo - FVC


A Reforma Protestante estabeleceu um leque muito diversificado de

interpretações, teologias, liturgias, modelos de pastoral, de pesquisa, e inúmeras

inserções e influências de que emergem ideias como capitalismo, socialismo, laicidade,

república, democracia, esfera pública, entre outras. Apesar das dificuldades de

classificação e de categorização desse movimento tão difuso e plural, a era protestante

deixou marcas indeléveis no pensamento e na prática das sociedades modernas.

Algumas dessas marcas serão pontualmente apresentadas nesta Unidade, que

fornece três chaves de leitura que não pretendem esgotar um assunto tão rico como

esse: primeiro, a contribuição protestante ao pensar teológico, científico, intelectual;

segundo, os desdobramentos sociopolíticos e econômicos em torno do protestantismo;

por fim, em terceiro lugar, a pluralidade em nível denominacional e algumas reações

católicas, especialmente do século XIX até os pentecostalismos mais recentemente,

considerando-se contextos mais próximos do Brasil ou mesmo do próprio Brasil. Esta

é nossa última Unidade, portanto, aproveite bem este estudo, e absorva ao máximo o

presente conteúdo. Boa leitura!

6.1 A contribuição protestante ao pensamento ocidental moderno


Lutero rompeu com sua formação aristotélica na Igreja Católica e o seu lema

Sola Scriptura fomentou um maior senso de autonomia e liberdade dos fiéis em relação

à interpretação das Escrituras, sem mais a necessidade de um amparo normatizador da

hierarquia católica. Todas as suas elaborações teológicas se ligam a algum

embasamento bíblico, mais do que a elementos da Filosofia ou da Tradição.

145 |História do Cristianismo - FVC


A lógica luterana e de grande parte dos reformadores se guiava pelo horizonte

segundo o qual a justiça de Deus é concebida como um ato de pura graça, tendo a fé

como a resposta necessária. A participação nos sacramentos, a submissão ao magistério

e à Tradição católica, as catequeses, o culto dos santos, a devoção mariana, e,

sobretudo, o pagamento pelas indulgências, tudo isso passou ao nível do ultrapassado

e sem base bíblica, de acordo com os primeiros adeptos da Reforma de Lutero. Os

parâmetros da prática cristã protestante desde então foram se tornando influentes

também em diversas áreas sociais, que, aos poucos, foram deixando de ter

características pretensamente religiosas ou dogmáticas.

Embora concordassem em alguns pontos essenciais, envolvendo os “solas” da fé

protestante e a argumentação bíblica contra as indulgências e outras práticas católicas

tidas como autoritárias e intransigentes, havia muitas discordâncias entre os

reformadores. Entre essas divergências, incluem-se o debate sobre a Ceia cristã, sobre

o batismo, a quantidade exata de sacramentos, questões pontuais em política e

modelos de sociedade, abrangendo-se ainda os próprios métodos para a implantação

das crenças e teologias em ascensão nas cidades e vilarejos.

Mendonça (2008, p. 29), entretanto, enfatizou que em meio às pluralidades

típicas e querelas teológicas, o protestantismo em seu conjunto de propostas

fundamentais conseguiu manter traços bem demarcados que comumente não

favorecem qualquer forma de fuga do mundo: “A Igreja protestante recusa tudo o que

possa diminuir o peso da situação-limite (ameaça suprema do não-ser). Evita situações

de escape”.

146 |História do Cristianismo - FVC


Rejeitava-se o sacramento quando este era tomado como ação mágica do

sacerdote, bem como qualquer outra ação sua, que não terá prestígio caso se, por ela,

se tente garantir soluções fáceis para qualquer demanda apresentada pelos fiéis.

Repudia-se também o misticismo quando prometido como resolução imediatista dos

problemas. A autoridade eclesiástica é relativizada, pois ela não é infalível ou isenta de

errar. O culto deve ressaltar a condição humana pecadora e a graça do único Deus a

ser adorado, e os apelos ao extraordinário na liturgia são vistos com desconfiança. A

Eucaristia, da segunda geração de reformadores em diante, não terá mais, nem de

longe, a mesma centralidade na vida cristã e nos cultos das comunidades. Isso se

mantém na Igreja Católica.

Um ponto teológico merece atenção especial. A Eclesiologia do sacerdócio

universal ou comum de todos os fiéis (relativa à communio sanctorum) também

representou uma linha teológica muito importante para o desenvolvimento dos

protestantismos no Ocidente. Através desse tema, Lutero e Calvino relembram o dado

bíblico que apresenta todos os cristãos como constituintes de um reino de sacerdotes

(1 Pedro 2,5). Essa forma de estruturação da Igreja foi influente para a construção de

novas autonomias e subjetividades, um pouco mais abertas ao diálogo. A autoridade

do ministro ordenado está implicada na constituição do povo sacerdotal na Igreja.

Conforme essa teologia, a função central do sacerdote ordenado é garantir que o

sacerdócio seja efetivamente de todos os sacerdotes (fiéis) na congregação e não

somente de alguns ou do próprio ministro ordenado. Um novo senso democrático,

eclesial e social, portanto, foi se colocando paralelamente ao modelo teocrático de

147 |História do Cristianismo - FVC


governo da Igreja.

Do ponto de vista filosófico, uma palavra pertinente. O Protestantismo não é

tradicionalmente uma religião de filósofos como em diversas fases do Catolicismo ou

mesmo no período patrístico. Mas há exceções à quase ausência de protestantes que

praticam sua fé e se assumem filósofos. Mais comum é encontrarmos filósofos com

marcas protestantes mas não assumidas diretamente na linguagem da fé ou no

pertencimento ecleisal. Esse provavelmente é o caso de Immanuel Kant (1724-1804),

Gottfried Leibniz (1646-1716) e Samuel Pufendorf (1632-1694).

Figura 36:Immanuel Kant.


Fonte da Imagem: Google Imagens.

Uma das heranças mais importantes para a História moderna da Filosofia

encontra-se na tradição filosófica empirista, especialmente em John Locke, George

Berkeley e David Hume. Essa tradição, embora nascida em solo anglicano inglês, surgiu

dentro de um contexto de aversão ao catolicismo e ao método cartesiano, do

matemático católico René Descartes. O racionalismo cartesiano também, por sua vez,

encontrou eco no pensamento do luterano Gottfried Leibniz.

148 |História do Cristianismo - FVC


Figura 37:John Locke, o mais conhecido empirista inglês.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

Figura 37:Gottfried Wilhelm Leibniz, expoente alemão do racionalismo.


Fonte da Imagem: Google Imagens.

6.2 Consequências sociopolíticas e econômicas da Reforma


A Reforma Protestante não representou apenas uma série de transformações e

alterações em matéria de religião, dogmas, teologia e liturgias. De fato, houve diversas

influências diretas e indiretas dos ideais protestantes sobre o modo de vida e a

organização das sociedades por eles penetradas. O protestantismo, por assim dizer,

reflete uma nova ordem social, configurada entre os séculos XVI e XVIII. Segundo

Kolakowski (1973, p. 118, tradução nossa), “a abolição das ordens religiosas, da

quaresma ou das indulgências, assim como outras reformas (...) foram, do ponto de

vista social, mais importantes do que as fórmulas puramente teológicas". O mesmo

autor chega a indicar que, mesmo com a criativa produção filosófica e humanista do

Renascimento italiano dos anos 1400 (quattrocento), o protestantismo seria o

149 |História do Cristianismo - FVC


movimento que representa realmente o verdadeiro renascimento, com um impacto

sociocultural e político permanente na Europa e em todo o Ocidente.

Nesse sentido, é relevante demonstrar que a fundamentação teológica dos

protestantes das duas ou três primeiras gerações que nasceram entre o fim do século

XV e a primeira metade do século XVI refletiu categoricamente sobre as concepções

sociopolíticas vigentes. De acordo com Mendonça (2008), as raízes da secularização

europeia podem ser encontradas nessas elaborações, que, apesar das distorções

posteriores, inicialmente buscavam força em determinadas articulações, que contrastam

com a cosmovisão católica.

● No protestantismo, o elemento religioso se relaciona com o secular a ponto de

se deixar questionar por ele.

● Em cada forma protestante, o aspecto de eternidade é posto em relação com o

tempo presente ou o “presente século”.

● Para um protestante, a realidade da graça deve ser expressa com toda a ousadia

e riscos.

● Na perspectiva protestante, a fé é transmitida com máximo realismo.

Feitos esses apontamentos iniciais, vale então mencionar no plano sociopolítico

e econômico algumas consequências do desenvolvimento da Reforma Protestante no

Ocidente. Seguem enumeradas, em destaque:

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1. Estado laico: Os protestantes foram os primeiros a reivindicar e lutar

efetivamente por uma natureza laica do Estado, em que pese sua autonomia

jurídica em relação às religiões e vice-versa, garantindo liberdade religiosa, maior

respeito e responsabilidade diante da pluralidade e fomentando valores que

concebem a religião como opção de foro íntimo de cada sujeito na sociedade.

Traços dessa concepção jurídica do Estado transparecem desde documentos

importantes do século XVIII: a Declaração de Independência dos Estados Unidos

da América (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789),

na França. Segundo Brown (2007), no primeiro documento, Deus é chamado tão-

somente de Criador, e no segundo, Deus é intitulado como Ser supremo. Essa

ocultação do nome de Deus reflete já a tendência laica desses dois modelos de

Estado.

2. Educação pública. Especialmente em Lutero e mais tarde em Calvino e seus

discípulos, visava-se a implementação de escolas públicas com ensino gratuito e

de qualidade.

Em decorrência dos princípios da Reforma, há uma ênfase na

obrigação à leitura, compreensão e a interpretação da Bíblia.

Assim, era fundamental oferecer instrução às pessoas. Com essa

ideia tomando espaço, começa a surgir a necessidade de uma

educação geral e mais abrangente, já que todos deveriam ler as

Sagradas Escrituras, sem distinção e discriminação, para poderem

buscar a Deus em suas palavras. Lutero não somente atinge a

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Igreja Católica com suas críticas, mas influencia a educação

quando produz uma reestruturação no sistema de ensino alemão,

inaugurando uma escola moderna. A ideia da escola pública e para

todos, organizada em três grandes ciclos (fundamental, médio e

superior) e voltada para o saber útil nasce do projeto educacional

de Lutero.

(VALENTIN, 2010, p. 65)

3. Revolução industrial/ Capitalismo: Segundo Max Weber (2020), o Capitalismo

moderno é protestante por natureza, uma vez que o trabalho foi expresso por

algumas tradições e teologias nesse contexto como algo positivo, proveitoso, à

luz da experiência bíblica. Trabalho, para Lutero, é Beruf, termo alemão que

designa vocação divina atribuída a todo ser humano, em vista de sua edificação

moral e espiritual. Assim, foram estimulados empreendimentos e investimentos

nos processos de industrialização moderna, entre as comunidades luteranas,

calvinistas e também anglicanas, algo que seria impensável como iniciativa da

Igreja Católica.

4. Socialismo: Tanto o capitalismo quanto o socialismo possuem inspirações

protestantes. O socialismo ensejou uma revisão do exemplo de Tomás Müntzer

que, em nome de um projeto de revolução armada camponesa, foi capturado

em campo de batalha contra os poderes instituídos. Marxistas da primeira à

terceira geração, de Friedrich Engels (1820-1895) a Ernst Bloch (1885-1977),

admiravam o teólogo e pregador alemão do século XVI. Mesmo assim,

152 |História do Cristianismo - FVC


predomina nesse segmento uma ênfase na ideia de religião como “ópio do

povo”.

Engels não esconde sua admiração pelo profeta quiliasta alemão,

cujas ideias ele descreve como “quase comunistas” e

“revolucionárias religiosas”; a seu ver, essas ideias eram menos que

uma síntese das reivindicações plebeias da época que uma

“antecipação brilhante” dos objetivos emancipatórios futuros do

proletariado. Essa dimensão antecipatória e utópica da religião (...)

não é mais explorada por Engels mas é elaborada intensa e

detalhadamente (...) por Ernst Bloch.

(LÖWY, 2000, p. 19-20)

5. Colonização protestante: Fica um questionamento: será que os países

colonizados por protestantes são mais desenvolvidos em algumas áreas do que

as ex-colônias católicas? Embora com muitos problemas sociais, os modelos de

colonização protestante poderiam ser considerados mais avançados (ou menos

violentos) do que o modelo católico? Os países de matriz protestante, em sua

maioria, apresentam, sem dúvida, altos índices de desenvolvimento humano

geral, enquanto a maioria dos países com menores taxas de desenvolvimentos

apresentam relações históricas com o catolicismo. No entanto, isso pode não ser

tão facilmente explicável pelo argumento religioso. Provavelmente, muitos outros

fatores entram em jogo na história de cada nação, independentemente da

filiação religiosa da maioria de sua população. Note que, entre os países com

153 |História do Cristianismo - FVC


maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) nas últimas décadas, há de fato

alguns com maioria protestante, como Noruega, Islândia, Suécia, Estados Unidos,

Finlândia, Dinamarca e Alemanha. Todavia, deve-se admitir que também os

países com ínfima taxa de protestantes e de maioria católica também se fazem

presentes nessa lista, por exemplo, Irlanda, França, Áustria e Itália. Esse é o

mesmo caso de países com menor diferença entre as quantidades de

protestantes e católicos, como Canadá, Suíça e Holanda.

Analisando sob aspectos estatísticos, as análises empíricas nos

indicaram que, a renda per capita dos países ainda possuem

mudanças em função das diferenças religiosas que possuem.

Mesmo que representando apenas 22% das variações na renda

per capita, o valor é alto, se levarmos em conta, que o grande

salto de desenvolvimento que inúmeras nações tiveram no século

XX, foi em virtude de corretas políticas macroeconômicas,

programas sociais consistentes, investimento maciço em educação

e melhoria das instituições públicas. Sem falar do grande

investimento do setor privado nas áreas da indústria, serviços e

infra-estrutura. Os resultados desse teste nos indicam a tendência

de que, os países protestantes ainda colhem bons frutos da

Reforma Protestante, mas que as demais áreas de influência da

religião dão-se apenas de forma indireta.

(SOUZA, 2007, p. 77)

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6.3 Movimentos na Igreja Católica
“Ecclesia semper reformanda”. Esse lema de inspiração protestante também teve

de ser assumido pela Igreja Católica diante do ininterrupto fortalecimento protestante,

mas ainda assim sempre mais conservadora de seus valores tradicionais, do que aberta

a transformações e adaptações. O Concílio Vaticano I, realizado entre 1869 e 1870,

consagrou a Igreja Católica como “societas perfecta”, uma sociedade perfeita

juridicamente. No entanto, essa visão não tinha em vista um horizonte de diálogo, pois

ainda estava atravessada pelo clericalismo e pelo dogmatismo em suas posições. Esse

quadro foi sendo gradualmente transformado durante todo o século que sucedeu o

Concílio do século XIX.

Colocaremos em pauta os principais movimentos que prepararam o caminho da

Igreja Católica para o Concílio Vaticano II (1962-1965), isto é, um panorama sobre os

movimentos litúrgico, bíblico, ecumênico e dos leigos, ao longo da primeira metade do

século XX.

Um dos movimentos teológicos e pastorais mais revolucionários no seio da Igreja

Católica ficou conhecido como Movimento Litúrgico. É importante notarmos que a

renovação litúrgica do Vaticano II tem um início bem anterior ao século XX, pois

podemos perceber um incipiente desejo dessa renovação desde o Concílio de Trento,

passando pelos pontificados de Bento XIV, Pio X, Pio XII e João XXIII, estes três últimos

no contexto do movimento litúrgico.

Esse movimento veio ganhando forças no final do século XIX e início do século

XX, possibilitando um caminho de renovação e mudanças nas práticas litúrgicas, pois

155 |História do Cristianismo - FVC


muitos católicos exigiam uma liturgia mais simples que se adequasse ao anseio do

povo.

Com o movimento litúrgico do século XX, a integração, adesão e a participação

de todos os fiéis foi um assunto bastante discutido e enfatizado nesse contexto

histórico, pois a participação efetiva dos membros da Igreja nos processos litúrgicos

não acontecia, tudo estava de certa forma centralizado no Clero, sendo os ministros

ordenados os únicos possuidores destas prerrogativas e direitos na execução do

sacerdócio. Assim, os leigos eram apenas meros expectadores, não entendiam muito

do que acontecia na liturgia da Igreja, havia muitos analfabetos e não podiam

compreender a fala do sacerdote, porque era realizada em latim.

Antes do Concílio Vaticano II, a liturgia cristã foi desenvolvida atendendo

enfaticamente as necessidades e compreensões teológicas dos ministros ordenados

(bispos, padres). A assembleia (povo) era um participante quase inativo, assistente, sem

participação e muito menos compreensão do que ouvia e via, visto que o celebrante

rezava em latim, de costas para o povo. Esta forma de celebrar era ritualista, e não

buscava a ação conjunta de prestar louvor a Deus.

No final do século XIX, a liturgia era objeto de reflexão de suma importância,

tratando-se o referido assunto com uma especial atenção para as mudanças que

estavam começando a acontecer, pois o objetivo deste movimento era trazer o povo

cristão à participação ativa no ministério e na celebração da liturgia, tendo como

finalidade a inclusão dos leigos na participação da prática litúrgica da Igreja. Diversos

autores, sobretudo beneditinos europeus, como os destacados Romano Guardini e Odo

156 |História do Cristianismo - FVC


Casel, realizaram trabalhos teológicos de fundamental relevância para o movimento

litúrgico como uma perspectiva de melhorias e reformas nas práticas do culto católico

(HOPING, 2015).

A reforma litúrgica enquanto transformação efetiva não iniciou imediatamente,

mas se deu como processo instaurado pelo Movimento Litúrgico e pelas propostas de

alguns papas nesse âmbito, conforme Hoping (2015). Esse movimento teve grande

influência do líder que foi S. Pio X (1904-1914). Esse papa apresentava a participação

dos fiéis nos mistérios como a fonte primária e indispensável do espírito

verdadeiramente cristão, palavra que o Concílio Vaticano II fez sua e introduziu na

constituição sobre a sagrada liturgia (Constituição dogmática Sacrossanctum Concilium

- SC 14). Outra figura importantíssima nesse contexto de transformação das práticas

litúrgicas, foi o papa S. Pio XII (1938-1958), que foi quem de fato começou a reforma

da liturgia em nível magisterial.

Mencionaremos algumas mudanças nas práticas litúrgicas: A admissão da língua

vernácula (rituais bilíngues e missal bilíngue), a reforma da vigília Pascal (1951), seguida

de toda a Semana Santa (1955), a simplificação do jejum eucarístico, as missas

vespertinas (quotidianas), uma nova tradução do saltério admitida na liturgia, a encíclica

musicae sacrae (1955), o primeiro congresso internacional de liturgia (1956), a

instituição de música sacra em “De musica sacra et sacra liturgia" (1958). O movimento

litúrgico foi um dos maiores, senão o maior propulsor, para a realização do Concílio

Vaticano II.

O século XX é uma fase muito significativa do movimento litúrgico, pois

157 |História do Cristianismo - FVC


possibilitou uma mudança na forma de pensar e de viver a dinâmica de ser Igreja, povo

de Deus, e daí se entende que a atuação do Espírito Santo foi fundamental para

convencer os líderes religiosos a vivenciar uma unidade na Igreja, em que todos podem

participar de forma justa na celebração do culto a Deus. Logo, com a ação

transformadora do Espírito, a Igreja percebe a necessidade de se realizar uma reforma

litúrgica, em que todos os fiéis fossem acolhidos e integrados efetivamente na

celebração do culto prestado ao santo Deus.

Além da operação do Espírito Santo, as transformações de ordem cultural e

eclesial fizeram repensar as estratégias de sua ação evangelizadora no mundo

contemporâneo, tendo em vista uma melhor atuação, análise e enfrentamento do

mundo moderno, para que a Igreja pudesse ser mais dinâmica e relevante em sua

missão. Isso a tal ponto que, segundo Lafont (2000), o movimento litúrgico teria sido

capaz de recuperar grandes perspectivas da então esquecida categoria do símbolo para

a vida da Igreja, especialmente no que tange às noções de estética e da verdade do

culto.

Então, observando esse breve contexto histórico da Igreja, podemos concluir que

o ponto fundamental do movimento consistiu em desenvolver uma vida espiritual

comunitária, ressaltando a força das celebrações e das práticas litúrgicas em contraste

com o modelo religioso individualista e jurídico-institucional que predominava na Igreja

e nas devoções particulares dos sacerdotes.

Outro movimento que julgamos importante mencionar brevemente no contexto

de preparação para o Vaticano II é conhecido como Movimento Bíblico, também com

158 |História do Cristianismo - FVC


o apoio do magistério da Igreja, apesar de muitas reservas, que aos poucos foram

sendo esclarecidas na reflexão teológica sobre a palavra de Deus. Cabe ressaltar que o

papa Pio XII protagonizou essa iniciativa, tomando providências no campo social e

abriu a Igreja para dois movimentos significativos: bíblico e o litúrgico, sendo este

último mencionado nos parágrafos anteriores.

Os protestantes, com muito mais liberdade de pesquisa e sem algum tipo de

interferência magisterial/dogmática, avançaram e cresceram em suas pesquisas na área

bíblica. Na exegese, nos estudos críticos, Alemanha, Holanda e Reino Unido reuniram

grandes exemplos de pólos de pesquisa bíblica no âmbito protestante e anglicano. A

Igreja Católica não poderia se manter por muito tempo em atitude de mera apologética

e vanguarda em questões bíblicas e sem oferecer o devido acesso à formação

adequada do povo em assuntos da Bíblia. Assim, o século XX presenciou em suas

primeiras décadas o chamado movimento bíblico no interior da Igreja Católica.

Através desse movimento bíblico iniciado, os exegetas católicos começaram a se

motivar tratando com muita seriedade as suas pesquisas, assumiram as suas

descobertas referentes às sagradas escrituras, eles começam a se abrir ao entendimento

de que existem diversos gêneros literários e métodos de interpretação. Vão aos poucos

ressignificando a atitude de salvaguarda da fé católica que se dava através da velha

apologética da oralidade pastoral avessa aos impressos da era protestante, como

relembrou Lafont (2000). Sendo assim, eles deixam de fazer uma leitura tradicional e

literal da Bíblia, adotando o uso de método histórico-crítico criado na esfera

protestante, constatação essa a exemplo do papa Pio XII:

159 |História do Cristianismo - FVC


Na encíclica Divino afflante spiritu (1943), ele valoriza as conquistas

das ciências modernas: arqueologia bíblica, papirologia,

descobertas de novos manuscritos, conhecimento e interpretação

dos gêneros literários antigos. Aponta para a importância de

captar o sentido literal e seu alcance teológico. Incentiva o estudo

das fontes, dos estilos dos hagiógrafos. Sem renunciar à inerrância

da escritura e à doutrina da igreja, deixa espaço à maior liberdade

do exegeta. Sem dúvida, com essa encíclica, Pio XII abre nova era

para o estudo da escritura.

(LIB NIO, 2002, p. 49.)

Podemos verificar quão importante foi Pio XII em incentivar e legitimar os

estudos das Sagradas Escrituras com maior profundidade científica, abrindo-se uma

nova era para as pesquisas e investigações dos textos sagrados. O Concílio Vaticano II

se beneficiou dos trabalhos iniciados décadas antes através de cada movimento de

renovação da vida cristã, e a pesquisa bíblica foi um dos grandes avanços e contributos

que puseram o Concílio em movimento.

Cabe ainda uma palavra sobre ecumenismo. Devido às grandes rupturas das

Igrejas do Oriente e do Ocidente, e às mais variadas divergências teológicas, os

cristianismos estavam se dividindo e se desvinculando da Igreja de Roma. A cisão das

igrejas do Ocidente é mais recente, tendo em vista a Reforma Protestante caracterizada

pelo conflito com Roma a partir de uma experiência profunda em tensão com o

160 |História do Cristianismo - FVC


ensinamento dogmático católico das indulgências.

Com essas separações, um grupo de missionários protestantes, em 1910, em

Edimburgo na Escócia, tentou de algumas formas a possibilidade e os meios de união,

com o objetivo de uma única evangelização cristã. Nesse momento, ficou conhecido o

marco da origem do chamado movimento ecumênico institucional, que não começou

efetivamente por iniciativa católica. Esse congresso deve ser visto apenas como marco

institucional do ecumenismo desde o campo missionário, embora o pensamento

ecumênico seja uma realidade bem anterior, no mundo protestante (MENDONÇA,

2008).

A Igreja Católica em princípio não se abre para esse Movimento Ecumênico que

os protestantes iniciaram, mas aos poucos a Igreja foi se despertando para a ideia.

Inicialmente, para os bispos, a Igreja católica seria a única verdadeira igreja de Cristo.

Logo, o movimento ecumênico católico teve por primeira finalidade receber de volta

os irmãos separados da Igreja, incentivando a reunião na "Igreja mãe", mas com o

tempo também surge o desejo de dialogar com as várias religiões cristãs e não-cristãs,

respeitando-se a verdade do outro e a pluralidade de pensamentos e ideias, neste

processo de mudanças causadas pela modernidade. Cabe mencionar uma referência

ao Espírito Santo em relação ao movimento ecumênico através de um documento

especial:

O Santo Ofício, em documento especial, em 1949, reconhece que

o movimento ecumênico deriva da inspiração do Espírito Santo e

é uma fonte de santa alegria no Senhor para os católicos. Estes

161 |História do Cristianismo - FVC


devem participar dos esforços de outros cristãos seriamente, em

caridade e oração e, em condições restritas, especialistas católicos

podem participar em discussões sobre fé e moral com outros

cristãos. No entanto, os católicos devem evitar o indiferentismo

religioso e permanecer firmes na visão de que as outras igrejas

devem voltar à Igreja Católica romana.

(LIB NIO, 2000, p. 58)

Então, durante esse período, foi possível para os católicos entender que o

movimento ecumênico teve a inspiração do Santo Espírito, atuando na vida das pessoas

para trazer as transformações necessárias para que se possa olhar para os outros com

caridade e cuidado. Em termos mais horizontais, e ainda em consonância à abertura da

Igreja ao mundo moderno, temos também o Movimento dos Leigos como último

exemplo em nosso itinerário rumo ao Vaticano II.

O Movimento dos Leigos foi algo fundamental para a atuação da Igreja na esfera

pública, pois colocou o povo para trabalhar em prol de certo entendimento do reino

de Deus em dimensões sociais outrora não tanto priorizadas. Os leigos foram

gradualmente inseridos no movimento de evangelização do mundo sendo ensinados

com a necessidade de se comprometerem com os problemas locais existentes, ou seja,

com o ambiente que os cerca, envolvendo-se nas questões sociais e políticas, na prática

e na formação intelectual. Portanto, podemos perceber a atuação dos leigos no mundo

moderno, especialmente sob a leitura da chamada Ação Católica, que teve o cardeal

162 |História do Cristianismo - FVC


dom Sebastião Leme no Rio de Janeiro como um de seus articuladores no Brasil.

A Ação Católica esteve associada a ideia de uma neocristandade como estratégia

de poder da Igreja nos países por ela colonizados, no entendimento de Dussel (1999).

No entanto, mesmo com as prováveis dissimulações de manutenção da hegemonia

cristã no Brasil, a Ação Católica no em nosso país, representada por diversos segmentos

(Juventude Estudantil Católica/JEC, Juventude Operária Católica/JOC, Juventude

Universitária Católica/ JUC), caminhou, gradativamente, de uma iniciativa conservadora

rumo a uma posição mais à esquerda (LÖWY, 2000).

6.3.1 O Concílio Vaticano II

Com os movimentos citados acima, o mundo católico foi sendo preparado e

modificado para aquele que seria seu evento mais marcante no século XX. O Concílio

Vaticano II consistiu em uma série de reuniões e conferências realizadas entre 1962 e

1965 consideradas como um evento catalisador das principais transformações já em

andamento no campo religioso ocidental. Com o objetivo de modernizar a Igreja e

atrair os cristãos afastados da religião, o papa João XXIII convida bispos de todo o

mundo para diversos encontros, debates e votações no Vaticano. Foi o concílio

ecumênico de maior representação mundial da história, com 2540 padres conciliares

de diversas etnias, e diversas nacionalidades representadas.

Após os movimentos realizados e mencionados acima, comentaremos um pouco

mais sobre o Concílio Vaticano II. Quando a Igreja Católica no dia 9 de outubro de

1958, chorava a morte de Pio XII, um dos mais importantes pontífices do século, foi

escolhido para papa o cardeal Roncalli, um homem de idade avançada e que era visto

163 |História do Cristianismo - FVC


como uma pessoa simples, que vinha de uma família camponesa pobre e talvez sem

as aptidões intelectuais de seu antecessor. Cabe mencionar que o cardeal Roncalli foi

o papa de transição chamado de João XXIII que teve a coragem e a firmeza de convocar

o concílio, surpreendendo a todos, e deu início a uma grande transformação no âmbito

da Igreja. O pontificado de João XXIII foi breve, mas intenso, colocando a Igreja, por

assim dizer, no coração do povo.

Devido a algumas mudanças sociais, culturais, políticas e religiosas, o papa

percebe a necessidade de uma renovação e adaptação da Igreja Católica às chamadas

questões da modernidade. Ficou conhecido o termo latino aggiornamento como

representação dessa leitura de renovação no contexto da Tradição católica, segundo

Grohe (2015).

O papa através de pequenos gestos trouxe em seu pontificado as características

de um contato ecumênico, dando a abertura ao diálogo com outros irmãos, havendo

a abertura à pluralidade de pensamento e opiniões. Abre-se também o diálogo com

religiões não-cristãs. João XXIII nomeou novos cardeais, entre eles pela primeira vez

um negro, um filipino, um japonês, internacionalizando o fechado círculo do colégio

cardionalício, fortemente italiano e europeu.

José Maria Pires, arcebispo que foi um padre conciliar, considera o testemunho

do Concílio Vaticano II dizendo:

Foi o Concílio Vaticano II que inverteu a antiga imagem de igreja,

imagem vertical que apresentava a igreja em forma de uma

pirâmide em cujo vértice estava a hierarquia e os fiéis formando a


164 |História do Cristianismo - FVC
extensa base, igreja definida como sendo a sociedade dos

batizados que têm a mesma fé, recebem os mesmos sacramentos

e obedecem às mesmas legítimas autoridades, o papa e os bispos.

O concílio recordando que igreja é povo de Deus, mudou esse

enfoque e mostrou que também a hierarquia faz parte do povo

de Deus com uma missão específica: a de supervisionar a

caminhada, apontando sempre para Cristo-cabeça. A imagem

deixa de ser a pirâmide e se aproxima do círculo: todos formam o

povo de Deus. Por isso o concílio reconhece o direito que os leigos

têm de se constituírem em associações e o código do direito

canônico, reformulado e atualizado após o referido concílio,

expressa esse direito nas palavras do Cânon 215, que reza: "Os

fiéis podem livremente fundar e dirigir associações para fins de

caridade ou de piedade, ou para fomentar a vocação cristã no

mundo, e reunir-se para prosseguirem em comum esses mesmos

fins”.

(PIRES, 2012, p. 19)

Percebemos que, para o espírito que permeou o Concílio, todos fazem parte do

povo de Deus e todos estão no mesmo nível perante Deus, sendo Cristo o cabeça da

Igreja e não o clero. Essa é uma constatação resultante dos anos de reflexão e atenção

dos padres conciliares às questões limítrofes do mundo ocidental moderno e às novas

sensibilidades teológicas no interior da Igreja.

165 |História do Cristianismo - FVC


No dia 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo, extramuros, após a solene

celebração o papa João XXIII anuncia sua decisão de convocar um concílio ecumênico,

o que trouxe a possibilidade de reflexão de toda a Igreja a viver a unidade cristã (CNBB,

2017). Em 25 de dezembro de 1961, o papa assina a bula de indicação do Concílio

Ecumênico Vaticano II:

Depois de ouvir o parecer de nossos irmãos, os Cardeais da Santa

Igreja Romana, com a autoridade de nosso senhor Jesus Cristo,

dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e com a nossa, anunciamos,

indicamos e convocamos para o próximo ano de 1962, o

Ecumênico e Geral Concílio que se celebrará na Basílica vaticana,

nos dias que serão fixados segundo a oportunidade que a boa

providência quiser nos oferecer. Queremos, em conseqüência, e

ordenamos que, a este Concílio Ecumênico, por nós indicado,

venham de toda parte todos os nossos Diletos Filhos Cardeais, os

veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos tanto

residenciais como apenas titulares, e, ademais, todos os que têm

direito e dever de intervir no Concílio.

(JOÃO XXIII apud PIRES, 2012, p. 20).

Bula Humanae Salutis é o documento que o papa assina, convocando o Concílio

Vaticano II ao qual se apontam algumas finalidades: “participação da Igreja na busca

de uma humanidade melhor; um aggiornamento ou atualização tanto das estruturas

166 |História do Cristianismo - FVC


como da apresentação da mensagem da Igreja; e uma preparação dos caminhos da

unidade” (PIRES, 2012, p. 23).

No dia 11 de outubro de 1962, o papa João XXIII faz o pronunciamento da

abertura do Concílio Ecumênico com um belo discurso, em que o seu pensamento

principal era o de “abrir a doutrina tradicional ao pensamento moderno e promover a

unidade da família cristã e humana. Sendo resumida a natureza do concílio de cunho

pastoral e ecumênico” (LIB NIO, 2000, p. 70).

Cabe ressaltar que o papa se mostrou preocupado com os problemas sociais e

indicou alguns sinais para superar esses graves dilemas. Para exemplificar essa sua

preocupação com as questões sociais, o papa em suas duas encíclicas sociais Mater et

magistra (1961) e Pacem in terris (1963), modifica o pensamento político da Igreja.

Nota-se que no pontificado sob a liderança de João XXIII, a Igreja Católica se aproxima

cada vez mais de um mundo laico e abre um caminho para um futuro, onde a Igreja

fica mais sensível e preocupada com a justiça social.

Logo, através de uma nova perspectiva teológica que a Igreja Católica está se

envolvendo, o Concílio Vaticano II faz uma revisão ou uma atualização de um modo

mais profundo na vida interna da Igreja e de sua relação com a modernidade e com

as igrejas orientais, com as diferentes leituras e denominações cristãs e não-cristãs.

Segundo as palavras de Libânio, o evento em foco pode ser assim definido:

O Concílio Vaticano II foi um terremoto original. Ao mesmo tempo

que destruiu velhos edifícios religiosos, construídos durante

séculos, colocou em febril trabalho de reconstrução os mais


167 |História do Cristianismo - FVC
diversos setores da Igreja Católica. Em pouco tempo, a face da

igreja se transformara. Os juízos sobre tal mudança variam

segundo o ponto de vista.

(LIB NIO, 2000, p. 77)

Nessa perspectiva, o concílio foi um grande estimulante para a nova forma de

se fazer teologia, sendo vencidos aos poucos alguns paradigmas e estruturas de um

aparelho religioso fechado aos novos horizontes teológicos, havendo uma evolução

enquanto processo de uma nova evangelização.

O Concílio Vaticano II, produziu uma série de documentos de grande relevância

para a valorização do espírito ecumênico, entre eles, constituições, decretos e

declarações. Os Documentos Conciliares produzidos pelo concílio Vaticano II são ao

todo 10 decretos, 4 constituições e 2 declarações.

Temos as quatros principais constituições conciliares: Constituição Dogmática

sobre a Sagrada Liturgia (Sacrosanctum Concilium); Constituição Dogmática sobre a

Igreja (Lumen Gentium); Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina (Dei verbum);

Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje (Gaudium et Spes).

Assim também temos: Inter Mirifica – Decreto sobre os meios de comunicação

social; Perfectae Caritatis – Decreto sobre a renovação da vida religiosa; Optatam Totius

– Decreto sobre a formação sacerdotal; Apostolicam Actuositatem – Decreto sobre o

apostolado dos leigos; Christus Dominus – Decreto sobre o múnus pastoral dos bispos

na Igreja; Presbyterorum Ordinis – Decreto sobre o ministério e a vida dos sacerdotes;

168 |História do Cristianismo - FVC


Ad Gentes – Decreto sobre a atividade missionária da igreja; Nostra Aetate – Decreto

sobre a igreja e as religiões não-cristãs; Unitatis Redintegratio – Decreto sobre o

ecumenismo; Orientalium Ecclesiarum – Decreto sobre as igrejas orientais católicas;

Gravissimum Educationis – Declaração sobre a educação da juventude; Dignitatis

Humanae – Declaração sobre a liberdade religiosa.

Em consonância com teólogos de outras tradições cristãs como o suíço e pastor

protestante Karl Barth (1886-1968), que participou do Concílio, e ouvintes ortodoxos,

todas as principais colaborações centrais das conferências e debates realizados foram

publicadas nos documentos. Nos anos seguintes que sucederam 1965, houve o esforço

por parte das conferências episcopais católicas para traduzir e adaptar as resoluções

conciliares às realidades sociais e eclesiais de seus respectivos continentes. Esse tem

sido um trabalho contínuo e ininterrupto até os dias dessa pesquisa.

Figura 38 e 39: Karl Barth, considerado um dos maiores teólogos reformados do século XX, e
um dos fundadores da teologia neo-ortodoxa, representou os protestantes no Concílio Vaticano II,
com grande respeito do papa João XXIII e de grande parte do episcopado católico na Europa.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

6.4 Finalizando
A pluralidade religiosa é uma realidade social dificilmente eliminável, para não

169 |História do Cristianismo - FVC


se dizer impossível de ser desfeita em nosso tempo. Com ela, a secularização nas

sociedades industriais, e o crescente grupo dos sem religião, tudo isso colabora para

tornar mais complexas as investigações sobre as Igrejas no Brasil e no mundo.

A História dos Cristianismos, do século XIX a XXI, apresenta uma fragmentação

como nunca vista antes. Enquanto a Igreja Católica, com suas pequenas divisões

internas, não deixa de ser apenas UMA Igreja, temos uma pulverização protestante,

reformada, evangélica, pentecostal e neopentecostal irrestrita em alguns aspectos, que

não caberão nessas páginas. A tipologia desses movimentos no contexto brasileiro é

uma amostra dessa complexidade.

Propomos a seguinte periodização: de 1824 a 1916, período de

implantação do protestantismo no Brasil; de 1916 a 1952,

desenvolvimento do projeto de cooperação ou pan-

protestantismo e a chegada de “um bando de teologias novas”;

de 1952 a 1962, crise política e religiosa, ensaio de politização do

protestantismo e impacto do pentecostalismo; de 1962 a 1983,

período de repressão no interior do protestantismo, da revolução

neopentecostal, fortalecimento do denominacionismo e o

isolacionismo das igrejas.

(MENDONÇA, 2005, p. 52)

Entre 1816 e 1822, os anglicanos estabeleceram a primeira capela no Brasil,

direcionada exclusivamente a ingleses. Somente no fim do século XIX seria fundada a

170 |História do Cristianismo - FVC


primeira Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, com lideranças e membros brasileiros.

Também as tradições tipicamente protestantes se inserem na mesma época, com a

abertura dos portos do império brasileiro.

Entre as Igrejas Protestantes históricas, temos no Brasil (1824) a Luterana, dividida

em quatro vertentes institucionais, das quais a mais conhecida é a Igreja Evangélica de

Confissão Luterana no Brasil (IECLB); mescla-se nesse grupo histórico o protestantismo

de missão como as tradições presbiterianas, cuja representação mais tradicional em

relação ao calvinismo está presente na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), desde 1859.

A Igreja Metodista, cuja teologia remete a John Wesley, também se faz presente desde

sua primeira missão no Brasil (1835). Em 1855, chega ao nosso país o casal Robert

Kalley e Sarah Kalley, que fundaram em 1858 a primeira Igreja criada em solo brasileiro,

que não seria reprodução de uma denominação já existente em outros países. Esse foi

o caso da Igreja Evangélica Congregacional iniciada em Petrópolis (RJ), em 11 de julho

de 1858.

Um grupo de missionários batistas fundou as primeiras Igrejas Batistas no Brasil,

entre 1871 em Santa Bárbara d’Oeste (SP) e 1882 em Salvador (BA). Oriundos da

tradição batista e do movimento pentecostal de Azusa Street em Los Angeles, com o

pastor William Seymour (1870-1922), o movimento pentecostal iniciou sua maior

vertente e a maior representação evangélica no Brasil, estatisticamente: as Assembleias

de Deus, fundadas originalmente como Missão da Fé Apostólica em Belém do Pará, no

ano de 1911, pelos missionários suecos Adolph Gunnar Vingren (1879-1933) e Gustaf

Daniel Högberg ou Daniel Berg (1884-1963).

171 |História do Cristianismo - FVC


Em 1910, já se havia iniciado, todavia, outro movimento pentecostal no Brasil,

através do pregador italiano e calvinista Luigi Francescon (1866-1964), sob o nome de

Congregação Cristã no Brasil, no estado de São Paulo. As Assembleias e a Congregação

Cristã constituem a primeira etapa da formação dos pentecostalismos no Brasil,

conhecida como pentecostalismo clássico (MARIANO, 1999).

Francescon fundou Igrejas também na Argentina e na Itália, e era conhecido

como influente missionário e rígido em suas concepções teológicas, disciplinares e

litúrgicas. O italiano também tinha passado por Chicago conhecendo outro grupo de

pentecostais em torno do pastor William Howard Durham (1873-1912), líder que foi

mentor de outros conhecidos fundadores de Igrejas como o mencionado Daniel Berg

e Aimee Semple McPherson, que criou a Igreja do Evangelho Quadrangular.

Dessa geração, seguiram-se outras fundações de Igrejas, conhecidas como

neopentecostais, iniciadas no Brasil a partir dos anos 1970, como a Igreja Universal do

Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo desde 1977.

Figura 40: William Joseph Seymour, pregador e um dos pioneiros do pentecostalismo em


Chicago.
Fonte da Imagem: Google Imagens.

172 |História do Cristianismo - FVC


Figura 41: Luigi Francescon, fundador da Congregação Cristã no Brasil.
Fonte da Imagem: Google Imagens

Figura 42:Frida Maria Strandberg e Gunnar VIngren, casal sueco pioneiro das Assembleias de
Deus no Brasil.
Fonte da Imagem: Google Imagens

Figura 43: Daniel Berg, missionário sueco e um dos pioneiros do assembleianismo no Brasil.
Fonte da Imagem: Google Imagens

Figura 40: William Howard Durham, líder pentecostal norte-americano.


Fonte da Imagem: Google Imagens

173 |História do Cristianismo - FVC


6.5 Síntese da Unidade
Estudamos nas últimas páginas sobre alguns eventos, condições e personagens

que foram relevantes para as Igrejas na modernidade. São inegáveis as heranças

protestantes que permanecem para os ocidentais. Evidentemente, não teríamos como

esgotar uma riqueza tão grande de temas e situações narradas. Indicamos que se atente

bem para a bibliografia fornecida, em vista de outras leituras complementares, para

uma melhor assimilação não apenas desta Unidade, mas de todo este Material Didático.

Destacamos as diversidades e pluralidades teológicas e eclesiais trazidas pelo

conflito entre protestantes e católicos, tendo em vista que as Igrejas ortodoxas são

minoritárias no Ocidente. Observamos algumas contribuições protestantes à cultura, ao

pensamento, à dimensão sociopolítica, incluindo temas como Estado e educação.

Consideramos de forma panorâmica os principais movimentos de renovação na Igreja

Católica no século XX, que prepararam os caminhos para o Concílio Vaticano II (1962-

1965). Por fim, revisamos sucintamente o desenvolvimento dos protestantismos no

Brasil, do século XIX até o início do neopentecostalismo.

174 |História do Cristianismo - FVC


175 |História do Cristianismo - FVC
Unidade Revisional 2

Agora, vamos revisar os pontos essenciais que foram tratados nas três últimas

Unidades deste Livro. Lembrando que esta revisão não exime cada estudante de ler

quantas vezes forem necessárias as Unidades completas. Aqui você terá apenas um

resumo, uma síntese, uma revisão muito breve. Esperamos que você consiga fixar

melhor os assuntos ministrados de forma clara, objetiva e bem fundamentada. Boa

revisão!

A era medieval

● O período medieval teve início no século V e cobre um período de cerca de mil

anos. Para a História apenas da religião cristã, parece um período muito longo,

praticamente a metade do tempo do Cristianismo na terra, considerando-se o

tempo presente. Quando observamos a História geral dos povos e da própria

Terra, a extensão temporal da Idade Média torna-se muito pequena.

● Mal havia se iniciado os primeiros movimentos de organização e

institucionalização das Igrejas em dioceses, prelados, episcopados, jurisdições,

ritos, cânones e outros aparatos teológico-jurídicos e administrativos, o

Cristianismo passava por sua primeira grande divisão (Igreja Cristã da Pérsia).

● Em 380, o Cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano.

176 |História do Cristianismo - FVC


● O período medieval é subdividido em Primeira Idade Média (476 até a primeira

metade do século X, que também é chamada de “Antiguidade Tardia”), Alta

Idade Média (segunda metade do século X até metade do século XIII), e Baixa

Idade Média (meados do século XIII ao XV).

● A Primeira Idade Média foi marcada pela crise que se abateu sobre o Império

Romano ocidental, devido às invasões dos povos bárbaros, incluindo a queda de

Roma (476) como marco original.

● As Igrejas na Idade Média assumiram formas jurídicas e institucionais, em

parceria com alguns governos estabelecidos ou que estavam se estabelecendo,

por toda a Europa ocidental. Um dos exemplos clássicos do período encontra-

se nos reis carolíngios, que eram pertencentes ao reino bárbaro franco

consolidado dois séculos após a queda de Roma. O mais destacado desses

chamava-se Carlos Magno (742-814).

● O papel do bispo de Roma se tornou cada vez mais proeminente desde o século

IV, e a partir dessa esfera de poder capitalizado, os valores e ideais cristãos,

assim como a estrutura organizacional do império, mantiveram-se, mesmo com

os declives pelos quais percorria diante da ascensão bárbara. Nesse sentido, foi

de suma importância o trabalho pastoral, missionário e político do papa Gregório

I Magno, entre 590 e 604.

● O Sacro Império Romano-Germânico se estabeleceu em parte da Europa central

com um projeto de expansão da chamada cristandade, mas se desorganizou,

sucumbindo à fragmentação após a morte de Carlos Magno em 814.


177 |História do Cristianismo - FVC
● Outros Impérios e reinos derivaram da crise da dinastia carolíngia.

● Sobre a relação entre Igreja e sistema feudal, este, conjugado com a noção do

direito divino da Igreja e dos reis e imperadores aliados, sobre a terra e o povo,

instaurou o processo de criação da cristandade, do latim Christianitas, que

representa o fato de que o antigo mundo romano, desde as primeiras invasões

bárbaras, estava se tornando um mundo cristão. A formação da cristandade é

uma das principais características da chamada Alta Idade Média.

● O surgimento da religião islâmica no século VII também acrescentou novos

desafios às condições de hegemonia cristã na passagem para a Alta Idade Média,

sobretudo na região ibérica norte da África e Oriente Próximo.

● Diz-se que entre os séculos XI e XIII, aconteceram oficialmente nove Cruzadas

ou expedições à Palestina, em caráter combativo contra as forças militares

islâmicas que ali ocupavam. As cruzadas representaram prejuízos diversos e

alguns benefícios para o Catolicismo

● No período da Alta Idade Média surgiram as primeiras Universidades europeias,

em Paris, Bolonha, Cambridge e Oxford, ao que se seguiu o período de produção

cultural conhecido como escolástica.

● A Baixa Idade Média representa, em geral, um período crítico para a cristandade,

o que posteriormente gerou os grandes colapsos que denotam a decadência

final da era medieval, o que se podia entrever por meio do movimento da

Renascença e das primeiras revoluções científicas.

178 |História do Cristianismo - FVC


● Os mais conhecidos concílios na transição entre Alta e Baixa Idade Média foram:

Latrão I (1123), Latrão II (1139), Latrão III (1179), Latrão IV (1215), Concílio I de

Lion (1245), Concílio II de Lion (1274), Vienne (1311-1312), Pisa (1409), Constança

(1414-1418), Basileia-Ferrara-Florença (1431-1445).

● Também merece destaque o enfoque evangelizador e social das ordens

religiosas monásticas (franciscanos, dominicanos, entre outras).

● A Renascença ou Renascimento Cultural, por sua vez, foi um movimento cultural,

artístico, filosófico e científico, que buscou uma renovação no pensamento

italiano, com base em pressupostos identificados como humanistas.

A Reforma Protestante: Introdução histórica e teológica

● Novamente, que não se romantize nenhuma biografia, nenhum relato sobre os

reformadores e outros personagens importantes da História.

● A Reforma Protestante constitui um evento que não deve ser tomado

isoladamente, pois é parte integrante de movimentos críticos da Igreja Católica,

que vinham se desenvolvendo desde a Alta Idade Média.

● O fato emblemático que demarca a origem do protestantismo consiste na

ocasião em o monge agostiniano Martinho Lutero publicou 95 teses contra as

práticas de indulgências da Igreja Católica, em Wittenberg, na Alemanha. A data

desse ato oficialmente é 31 de outubro de 1517.

179 |História do Cristianismo - FVC


● Outros reformadores críticos vinham desenvolvendo um contraponto aos

dogmas da Igreja, como Erasmo de Roterdã e Thomas Morus.

● Lutero teve como contemporâneos diretos na Alemanha como o professor da

mesma Universidade de Erfurt, onde estudou e lecionou, Andreas Karlstadt, além

de Filipe Melanchton, e do revolucionário Tomás Müntzer, cujas campanhas em

favor dos camponeses no sul da Alemanha fracassaram por fim em 27 de maio

de 1525, quando Müntzer foi morto pelas tropas que chefiavam Frankenhausen.

● A Carta de Paulo aos Romanos representou texto-chave para grande parte da

Teologia de Lutero e do movimento que ele liderou, por conta de uma renovada

interpretação sobre o tema da justificação pela fé.

● Notar a reação católica por meio das exigências do Papa Leão X, para que Lutero

se retratasse. Como não houve retratação, Lutero e outros seguidores foram

excomungados, e se instituiu o movimento de Contra-reforma católica,

encabeçada pela organização jesuíta em muitos locais do mundo.

● O Concílio de Trento (1545-1563) fortaleceu os grandes dogmas católicos que

conhecemos atualmente, como os sete sacramentos, a relação entre Tradição e

Escrituras e a autoridade do Papa.

● As principais obras de Lutero são de 1520: Da Servidão Babilônica da Igreja, Da

Liberdade de um Cristão e À Nobreza Cristã da Nação Alemã. Poucos anos

depois, produziu uma tradução vernácula alemã de parte significativa das

Escrituras.

180 |História do Cristianismo - FVC


● Sola Scriptura (Somente as Escrituras) - um lema dos mais importantes do

movimento protestante, bem como outros que foram elaborados

posteriormente, como acrescentamos: Sola Fides, Sola Gratia, Solus Christus, Soli

Deo Gloria.

● A Reforma na Suíça foi iniciada basicamente em duas cidades importantes: na

cidade de Zurique com Ulrico Zuínglio e em Genebra com Guilherme Farel e

João Calvino.

Igrejas, Teologias e Modernidades

● Note a importância da Reforma Protestante para a Modernidade: cultura

religiosa, aspectos sociais, políticos e religiosos.

● A Reforma Protestante estabeleceu um leque muito diversificado de

interpretações, teologias, liturgias, modelos de pastoral, de pesquisa, e inúmeras

inserções e influências de que emergem ideias como capitalismo, socialismo,

laicidade, república, democracia, esfera pública, entre outras.

● Apesar das dificuldades de classificação e de categorização desse movimento

tão difuso e plural, a era protestante deixou marcas indeléveis no pensamento e

na prática das sociedades modernas.

● Veja bem a articulação notável que os protestantismos enfatizam entre

realidades religiosas e as ditas seculares.

181 |História do Cristianismo - FVC


● A ideia teológica de Sacerdócio Universal de todos os fiéis é uma marca

protestante no sentido de garantir maior protagonismo dos crentes na Igreja e

na sociedade como um todo, diminuindo-se, a princípio, os abismos entre clero

e leigos.

● Destacamos cinco fundamentos, entre muitos, da contribuição protestante ao

moderno mundo europeu: Estado Laico, Educação pública, o capitalismo, o

socialismo, o modelo protestante de colonização.

● Diante dos avanços protestantes em todo o contexto ocidental, o catolicismo

promoveu reformas internas muito importantes entre os séculos XIX e XX, entre

o reacionário Concílio Vaticano I (1869-1870) e o progressista Vaticano II (1962-

1965).

● Essas reformas católicas foram empreendidas a partir de movimentos de

renovação como o Movimento Litúrgico, Movimento Bíblico, Movimento

Ecumênico e Movimento dos Leigos.

Por fim, destacamos a importância do Concílio Vaticano II e seus diversos

documentos que abrem novos caminhos para o catolicismo em crise no século XX. Um

dos motivos de tal crise encontra-se na diluição e pulverização dos protestantismos em

tantas denominações que no Brasil possuem dezenas e dezenas de representações

institucionais muito distintas. O protestantismo se tornou destacado no Brasil a partir

da época imperial na primeira metade do século XIX, mas foi o pentecostalismo em

suas várias vertentes que alcançou maior crescimento no último século em nosso país.

182 |História do Cristianismo - FVC


Atividades de Aprendizagem

1) As Assembleias de Deus no Brasil foram fundadas em Belém do Pará, no ano

de 1911, pelos missionários suecos de origem batista Gunnar Vingren e

Daniel Berg.

Certo Errado

2) A tentativa revolucionária de Tomás Müntzer também é conhecida como

Reforma Radical.

Certo Errado

3) O Estado laico pode ser considerado uma contribuição muito mais católica

do que protestante à modernidade.

Certo Errado

4) A Alta Idade Média veio cronologicamente antes da Baixa Idade Média.

Certo Errado

5) Os iniciadores do protestantismo na Alemanha e na Suíça chamavam-se

Erasmo de Roterdã e Martinho Lutero, respectivamente.

Certo Errado

183 |História do Cristianismo - FVC


6) Jan Hus foi um pregador crítico do Catolicismo na região da Boêmia, e um

dos principais opositores de João Calvino.

Certo Errado

7) Francisco de Assis e Domingos de Gusmão fundaram importantes ordens

religiosas no contexto do Catolicismo medieval.

Certo Errado

8) Considerando-se atentamente a História do Brasil, desde o período colonial,

é possível responsabilizar a Igreja Católica pelos atrasos socioeconômicos e

políticos de nosso Estado? Até que ponto se pode atribuir ao Catolicismo tal

responsabilidade? Problematize a questão com suas próprias palavras.

9) As relações das Assembleias de Deus com a doutrina arminiana (de Jacobus

Arminius), a qual enfatiza o livre arbítrio humano e a necessidade da

evangelização dos povos contrastam com a teologia de matriz calvinista da

Congregação Cristã no Brasil. Como você articula essas questões teológicas

com o maior crescimento numérico das Assembleias e o número bem menor

de adeptos da Congregação Cristã? Há outros fatores que podem explicar

essa diferença estatística, à luz da História? Comente.

184 |História do Cristianismo - FVC


10) Correlacione com base em dados históricos Filosofia e Reforma Protestante.

185 |História do Cristianismo - FVC


Gabarito

Unidade Revisional 1

1. Certo
2. Errado

3. Certo
4. Certo
5. Errado
6. Certo
7. Certo
8. Resposta:Sugere-se que o(a) estudante exercite a capacidade de refletir

criticamente sobre o tema proposto, considerando-se o perigo do


anacronismo, quando se busca avaliar o passado com pressupostos do
presente e vice-versa.

9. Resposta: Cada estudante deverá considerar as opiniões favoráveis e as


opiniões contrárias ao contato entre Teologia e Filosofia, realizando-se uma
síntese geral sobre os potenciais construtivos e limites dessa relação.

10. Resposta: Deve-se estabelecer uma conexão reflexiva entre as diversas


disciplinas para a investigação sobre o desenvolvimento dos Cristianismos,
desde o movimento às instituições.

Unidade Revisional 2

1. Certo
2. Certo

3. Errado
4. Certo

186 |História do Cristianismo - FVC


5. Errado

6. Errado
7. Certo
8. Resposta: A sugestão é que o(a) estudante consiga questionar sobre as

condições e contextos que caracterizam a Teologia Católica conforme o que foi


estudado em relação ao século XVI, sobretudo no embate com a Reforma de
Lutero, e se esses fatos repercutiram do outro lado do Atlântico.

9. Resposta: Pede-se uma argumentação que favoreça o desenvolvimento de uma


discussão sobre a complexidade dos dados estatísticos, que muitas vezes
encobrem além das questões teológicas, também as dimensões geográficas,

socioeconômicas, culturais, étnicas e políticas da pertença religiosa em nosso


país, de acordo com o perfil de cada igreja ou instituição.
10. Resposta: Convém nessa questão relembrar a relação pouco difusa entre as

duas esferas, o conhecimento filosófico e a religião protestante. Houve muitas


rejeições dos protestantes à filosofia clássica, mas isso não impediu que muitos
intelectuais de destaque na Europa pudessem acenar direta ou indiretamente

às suas formações em Igrejas protestantes e reformadas. Veja os exemplos de


Kant, Leibniz, Pufendorf e Hegel.

187 |História do Cristianismo - FVC


Referências Bibliográficas
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Paulinas, 2011.

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