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g03273-fev-2024-grad-ead/)

1. Introdução
Seja bem-vindo ao estudo da obra
!

Nesta parte do material didático, você encontrará o referencial teórico das sete
unidades em que se divide a presente obra.

Neste estudo, você terá a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos so-


bre cada um dos estados de vida na Igreja: vida laical, vida consagrada e vida
sacerdotal.

A abordagem bíblica e histórica, relacionada à re�exão teológica sistemática,


proporcionará a você uma visão ampla de cada uma das formas de vida, ao
mesmo tempo percebendo que em cada uma delas se expressa o seguimento
de Cristo e o serviço ao Reino de Deus.

Enquanto cada qual possui sua própria identidade e maneira de seguir Jesus
Cristo, todas participam da única missão con�ada pelo Pai a toda a Igreja: ser
sacramento universal de salvação.

Essas três formas de vida representam a liberalidade com que o Espírito con-
cede os seus dons, para que eles se transformem em ministérios a serviço da
Igreja e de toda a humanidade.

Esperamos que você goste, aprenda e aproveite muito.

Bom estudo!
2. Informações da disciplina
Ementa
Fundamentos e história da espiritualidade cristã. A experiência de Deus na
Bíblia e a espiritualidade de Jesus de Nazaré. Fundamentos teológicos e pasto-
rais do presbiterato, do laicato e da vida religiosa da nova aliança. Lugar da es-
piritualidade no quefazer teológico e pastoral. Mística e espiritualidade na
atualidade. Espiritualidade e ecologia.

Objetivo geral
Investigar os fundamentos básicos da espiritualidade cristã e dos estados de
vida no discurso bíblico-teológico e na história da Igreja, visando a práxis
eclesial-libertadora.
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Unidades de estudo

Unidade 1 – Teologia da Espiritualidade


(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-
g03273-fev-2024-grad-ead/2022/01/13
/unidade-1-teologia-da-espiritualidade/)
Objetivos Estudar a espiritualidade como disciplina cientí�ca. Compreender a
espiritualidade como experiência que envolve todos os aspectos da vida hu-
mana. Ter uma noção dos principais elementos que compõem a espiritualida-
de cristã. Analisar a experiência espiritual no contexto humano e social.
Conhecer os principais desa�os do desenvolvimento e maturidade espiritual.
Conteúdos Conceito e estudo da espiritualidade.…

Unidade 2 – O Leigo na Igreja: um Esboço


Histórico (https://md.claretiano.edu.br
/teoespestvid-g03273-fev-2024-grad-ead/2023
/10/05/unidade-2-o-leigo-na-igreja-um-
esboco-historico/)
Objetivos Compreender o termo “leigo”. Interpretar a História do leigo na
Igreja. Entender a visão teológico-eclesiológica de forma decisiva na vida do
leigo na Igreja. Estabelecer pontos de referências para a identidade do leigo
hoje. Conteúdos O termo “leigo”. Conotações atuais do termo. Etimologia da pa-
lavra. O termo “leigo” na Bíblia. O leigo nos primeiros…

Unidade 3 – Os Leigos na Igreja: Abordagem


Teológica (https://md.claretiano.edu.br
/teoespestvid-g03273-fev-2024-grad-ead/2023
/10/05/unidade-3-os-leigos-na-igreja-
abordagem-teologica/)
Objetivos Compreender o termo “leigo”. Interpretar a história do leigo na Igreja.
Conteúdos Teologia do laicato. Consagrados e inseridos em Cristo. Leigo, Igreja
e missão. Espiritualidade e santidade de vida. Orientações para o estudo Antes
de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a
seguir: Recomendamos a leitura diária da…

Unidade 4 – A Vida Consagrada: Esboço


Histórico (https://md.claretiano.edu.br
/teoespestvid-g03273-fev-2024-grad-ead/2023
/10/05/unidade-4-a-vida-consagrada-esboco-
historico/)
Objetivos Compreender um panorama histórico da vida consagrada. Conhecer
as diversas expressões de vida consagrada. Interpretar como as inovações na
vida consagrada estão intimamente ligadas com a situação sociocultural em
que surgem. Conteúdos Das origens até o século. Dos séculos 16 ao 19: Os
Clérigos Regulares, as Sociedades Apostólicas e Missionárias, as congrega-
ções. A Revolução…
Unidade 5 – Vida Consagrada: um Carisma na
Igreja (https://md.claretiano.edu.br
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/10/05/unidade-5-vida-consagrada-um-
carisma-na-igreja/)
Objetivos Entender a relação entre a vida cristã e a consagrada. Interpretar a
vida consagrada como uma das expressões carismáticas na Igreja.
Compreender a experiência espiritual do fundador como uma experiência do
Espírito por meio da qual se elabora a identidade de uma nova família de con-
sagrados. Analisar a dinâmica da �delidade e renovação na…

Unidade 6 – O sacerdócio na Sagrada Escritura


(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-
g03273-fev-2024-grad-ead/2023/10/05
/unidade-6-o-sacerdocio-na-sagrada-
escritura/)
Objetivos Conhecer a identidade e as funções do sacerdote no Antigo
Testamento. Compreender a importância do sacerdócio no Antigo
Testamento. Analisar o sacerdócio a partir do Novo Testamento. Interpretar a
postura dos autores dos livros neotestamentários em relação ao sacerdócio
antigo. Compreender a nova visão do sacerdócio a partir do Novo Testamento.
Analisar as novidades…

Unidade 7 – Teologia do Sacerdócio


(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-
g03273-fev-2024-grad-ead/2023/10/05
/unidade-7-teologia-do-sacerdocio/)
Objetivos Compreender as diversas abordagens teológicas atuais sobre o sa-
cerdócio. Interpretar essas abordagens segundo o Novo Testamento. Analisar
a diaconia como elemento característico e distintivo do sacerdócio cristão.
Compreender a caridade pastoral como elemento uni�cador da espiritualidade
sacerdotal. Conteúdos Abordagens teológicas do sacerdócio. Um confronto
com o Novo Testamento. Dimensão pneumatológico-eclesiológica da diaco-
nia. Espiritualidade sacerdotal.…
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g03273-fev-2024-grad-ead/)

Unidade 1 – Teologia da Espiritualidade

Objetivos
• Estudar a espiritualidade como disciplina cientí�ca.
• Compreender a espiritualidade como experiência que envolve todos os
aspectos da vida humana.
• Ter uma noção dos principais elementos que compõem a espiritualidade
cristã.
• Analisar a experiência espiritual no contexto humano e social.
• Conhecer os principais desa�os do desenvolvimento e maturidade espiri-
tual.

Conteúdos
• Conceito e estudo da espiritualidade.
• A experiência espiritual e seus novos lugares e estados.
• Breves acenos da espiritualidade na Bíblia.
• As grandes escolas de espiritualidade na história.
• A Trindade como fonte de toda espiritualidade.
• A vida segundo o espírito.
• A espiritualidade e o “ethos” social.
• As instituições e normas como meios para o desenvolvimento espiritual.
• Ascese e discernimento espiritual.
• Crescimento e maturidade espiritual.

Orientações para o estudo


Algumas orientações que ajudarão no estudo desta unidade:
1. Ler o texto com bastante atenção e, se necessário, mais de uma vez, pro-
curando destacar as ideias principais de cada item. É bom, também, ler os
textos bíblicos indicados em alguns tópicos que ajudam a fundamentar o
que foi dito.
2. Procurar em um dicionário de espiritualidade, os possíveis termos ou ex-
pressões que não são conhecidos. Isto é muito importante para uma boa
compreensão do texto.
3. Os temas estão trabalhados de forma bem resumida. Para um aprofunda-
mento maior, consulte a obra: B. SECONDIN e T. GOFFI: Curso de espiritua-
lidade: experiência, sistemática, projeções. São Paulo: Paulinas, 1994. Nela
você encontrará todos os temas de forma mais completa e explicada.
Bom estudo!

1. Introdução
Nesta unidade iremos ver mais de perto como a Teologia da Espiritualidade
foi se tornando uma disciplina teológica e a experiência espiritual vai sendo
estudada de uma forma mais sistemática, sem perder a sua dimensão trans-
cendental, mas também analisando a sua manifestação histórica, concreta.

Iremos analisar nesta unidade, de forma bastante sintética, os principais ele-


mentos de re�exão que compõem o que hoje chamamos de uma Teologia da
Espiritualidade, levando em consideração sua cienti�cidade, sua história, fun-
damentos e desenvolvimento.

2. Conceito e estudo da espiritualidade


A Teologia da Espiritualidade, como um estudo cientí�co, é um tema de nos-
sos dias. Embora a espiritualidade estivesse sempre presente na história da
Igreja, a cienti�cidade do seu estudo é algo contemporâneo.

Falava-se muito de contemplação e mística e da possibilidade do conheci-


mento de Deus através delas, mas não se concentrava no conjunto do desen-
volvimento de uma vida espiritual: sua experiência, seu lugar, suas caracterís-
ticas, sua teologia. Deixava-se apenas que os místicos indicassem os cami-
nhos a percorrer na vida espiritual e as atitudes necessárias para isso.

Hoje, diante de tantas confusões em relação ao que realmente é espiritualida-


de e, principalmente, quais sejam os elementos fundamentais de uma espiritu-
alidade cristã, percebe-se a necessidade de se ter uma re�exão mais sistemá-
tica do tema, orientada pela compreensão da vida espiritual em geral. Neste
sentido, torna-se também muito importante a sua interação com outras ciên-
cias, como a psicologia, �loso�a e teologia. Elas também podem contribuir
muito para um maduro processo de espiritualidade, visto que a vida espiritual
acontece e se manifesta na vida concreta do ser humano.

A literatura sobre espiritualidade na vida da Igreja é muito grande. Ela sempre


teve a preocupação de convidar e orientar os cristãos a viverem a sua fé de
forma mais consciente, coerente e plena. Muitos escritos dos ,
dos místicos, de tantos que viveram uma experiência espiritual profunda,
compartilham não uma teoria, mas sim uma experiência de Deus que realiza-
ram em seu quotidiano. Estas �guras tornaram-se testemunhos, modelos e
exemplos para outras pessoas, ainda que não fosse esta a intenção primeira
dos seus escritos. Porém, diante destas experiências vitais e concretas, pode-
se questionar: é possível re�etir cienti�camente sobre a vida espiritual?

Ao pensar nas (como a matemática e a física), que possuem


uma certeza objetiva, universal, que pode ser veri�cada e comprovada racio-
nalmente e demonstrada empiricamente, seria estranho enquadrar nela uma
experiência espiritual. Mas, ao considerar as (como a psi-
cologia, sociologia, história), que tem como objeto o ser humano e suas condi-
ções de vida, nas quais muitas vezes não se pode encontrar a mesma precisão
que as ciências exatas, aqui pode-se pensar num estudo cientí�co da espiritu-
alidade. As ciências humanas estão abertas a critérios que não podem des-
considerar as pré-compreensões subjetivas, levando em conta a experiência
do sujeito, por exemplo, como o uso da sua liberdade.

A teologia, porém, depara-se com uma di�culdade muito particular ao ser es-
tudada cienti�camente: as bases de toda re�exão está fundamentada por
, em uma livre . Esta Revelação se
manifesta na história humana ao eleger um povo e propor a eles o signi�cado
último de tudo o que foi criado. Desta forma, só se pode falar em uma "certeza
teológica" pelo fato de que esta fé na Revelação de Deus é, também, investiga-
da racionalmente, por teólogos que procuram encontrar a inteligência das pro-
posições fundamentais da fé confrontando-as com outros dados da vida do
ser humano, como aqueles das ciências exatas e humanas (cf. BERNARD, 2011,
p. 11).

É por isso que os princípios de uma teologia espiritual estarão sempre em re-
lação com a doutrina da Igreja universal, não podendo desprezar o aprofunda-
mento teológico nos seus vários níveis de re�exão, quer da teologia dogmáti-
ca, quer da teologia moral. Esta relação com Deus, que possibilita ao ser huma-
no o conhecimento mais profundo de sua vida sobrenatural e �m último de
sua existência, terá uma in�uência direta no seu conhecimento de Deus. Isto
in�uenciará o ambiente social, cultural e histórico de sua vida concreta, à me-
dida que cresce na sua vida sobrenatural.

A vida espiritual é sempre vida de um ser humano concreto, com sua história,
suas capacidades e limites, que dependem de muitos fatores da sua formação.
Deste modo, o conhecimento do ser humano ajudará para que a teologia espi-
ritual se identi�que como uma disciplina teológica própria e verdadeira.
Mesmo que as ciências humanas não possam ser consideradas o primeiro
princípio de uma teologia espiritual (pois o dom de Deus precede dando a pos-
sibilidade da participação na vida divina), elas também não são secundárias,
pois esse dom é recebido sempre por um sujeito determinado.

Como são pessoas concretas que fazem a experiência da vida divina, as ciên-
cias humanas são um fundamento irrenunciável da teologia espiritual. Pode-
se falar de uma , ou seja, o ser humano concreto que
se conhece a partir da sua relação com Deus (cf. BERNARD, 2011, p. 12-13).

Teologia da Espiritualidade como disciplina teológica


Mais do que uma ciência compreendida como uma construção doutrinal que
se impõe universalmente, a teologia espiritual é uma "disciplina teológica", ou
seja, é um estudo cientí�co que exige rigor de método e informações objetivas.
Seu estudo compromete toda a pessoa na sua atividade moral, no seu esforço
para corresponder à ação divina em sua vida, testemunhando o dom da graça,
pois a espiritualidade só pode ser percebida mediante uma experiência pesso-
al. E é teológica porque seu objeto principal é o próprio Deus como protagonis-
ta da vida espiritual e do seu crescimento, através do contato constate com a
sua Palavra.

Mesmo que alguns tratados sistemáticos sobre espiritualidade tenham surgi-


do já no século 17, somente em 1917 é que se criou uma cátedra universitária
de espiritualidade em Roma. Os primeiros a assumi-la como disciplina foram
os dominicanos, logo seguidos pelos jesuítas e, depois, pelos franciscanos e
carmelitas. No início se chamava de e , ou so-
mente . Era um desejo de resgatar a santidade e da
doutrina dos místicos para o discurso geral.

Segundo Secondin (1994, p. 17), como disciplina ela pode ser de�nida pelos se-
guintes elementos:

• : não limitar-se somente ao universo interior da pessoa e à sua


experiência transcendente e inefável do divino, mas re�etir a
. Isto inclui a sua realização eclesial e atuação concreta
na história do ser humano, levando-o a uma maturidade da vivência cris-
tã.
• : a fonte primordial é a ; mas também a vivência e
testemunho de muitos cristãos, com suas experiências interiores, às ve-
zes extraordinárias. Outras fontes: a Liturgia e a piedade popular; a re�e-
xão antropológica sobre a origem e sentido da vida humana; e ainda as
contribuições da Psicologia, da Linguística, das tradições culturais e reli-
giosas.
• : a tendência hoje é se tornar menos , ou seja, antes de
aplicar os grandes princípios do mistério cristão e da ética para construir
a re�exão, acolher mais as provocações da experiência, das vivências
atuais em constante mudança pelas transformações que vai sofrendo o
ser humano. Assim, o estudo da espiritualidade atual busca mais se con-
centrar na r que o relacionamento com Deus
traz na vida humana.

Desta forma, pode-se de�nir a teologia espiritual como:


Disciplina teológica que explora sistematicamente a presença e a ação do mistério
revelado, na vida e na consciência da Igreja e do �el, descrevendo a sua estrutura e
as leis do seu desenvolvimento até o vértice, isto é, à santidade, enquanto perfeição
da caridade (SECONDIN, 1994, p. 17).

Porém, sabemos que a teologia espiritual também não pode limitar-se a um


estudo cientí�co da vida cristã, somente descrevendo estruturas sobrenatu-
rais, perdendo o seu caráter dinâmico. Ela trabalha na transformação do indi-
víduo que, ao desenvolver sua vida sobrenatural, in�uencia concretamente os
rumos de sua história. Todo esse processo corresponde ao desejo de cada um
em encontrar a plenitude da vida, de participar da comunhão divina, como
resposta ao chamado da vocação universal à santidade que todo batizado re-
cebe (cf. LG 39).

Conceito de espiritualidade
Não foi simples de�nir um conceito de espiritualidade, pois este recebeu mui-
tas in�uências históricas, doutrinais, devocionistas, �losó�cas e antropológi-
cas. A própria Bíblia, embora esteja impermeada de espiritualidade, não traz
um conceito teórico sobre o tema. Paulo fala de um "homem espiritual" (cf.
1Cor 2,13; Gl 6,1; Rm 8,9) que vive na experiência do Ressuscitado, assumindo
uma vida eclesial, e que vai crescendo em todas às suas dimensões –
(1Ts 5,23) – a espera de uma plenitude futura (cf. Rm 8).

O problema surge quando nos séculos 2º e 3º as correntes gnósticas acentuam


a , desvinculan-
do o que é material e psíquico. Uma errônea leitura da espiritualidade paulina
(separação entre os valores da carne e do espírito – cf. Gl 5, 16-23; Rm 8, 5-11,
por exemplo) alimentou tal "separatismo", trazendo grandes problemas ao
sentido da espiritualidade. Os padres da Igreja irão re�etir que é
(corpo e alma) que é convidado à vida nova no Espírito, sendo
à vida de Cristo, sobretudo pela prática da caridade, e não tanto
de uma pura especulação teórica a respeito de Deus, como fazia o movimento
gnóstico.

O conceito de espiritualidade vai se de�nindo a partir do momento em que se


aprofunda a sua , diferenciando-se da re�exão
(referência direta aos dogmas como princípios objetivos da salvação),
(preocupada com o fundamento das normas do agir cristão) ou ainda
(orienta e organiza a vida em comunidade). O especí�co da espiritualidade é a
, de for-
ma existencial, concreta e dinâmica.

O termo espiritualidade vai surgir na modernidade, em torno do século 17, na


escola espiritual francesa, dentro de todo um movimento de combate às
que colocava o ser humano como centro do mundo. Embora, de
uma forma genérica, já era utilizada desde os primeiros séculos com os padres
da Igreja ao se referirem a uma vida . Era comum também
entre eles usarem o termo latino spiritualitas para designar a
.

Já entre os séculos 9º a 11, o termo spiritualitas enfatizava uma realidade ou


atividade no ser humano que provêm do Espírito Santo e não da natureza hu-
mana, o que nos dias de hoje chamamos de uma . No século
12, ganha dois signi�cados diferentes: por um lado, o de
uma vida baseada na fé, opondo-se aos que vivem sem a graça; por outro, algo
que se , constituindo-se
numa realidade imaterial. Consolida-se, na Idade Média, essa ideia de uma
, in�uenciado pelas ideias da �loso�a gre-
ga.

No século 17, o termo será usado para expressar um relacionamento afetivo


com Deus, até chegar, a partir do século 19, a uma de�nição mais atual: "a vida
espiritual enquanto experiência vivida – a qual implica os múltiplos estágios
interiores, como a ascese, a mística, o desenvolvimento dos dons do Espírito, a
direção espiritual, etc. – e também a disciplina acadêmica do setor"
(SECONDIN, 1994, p. 13).

3. A experiência espiritual e seus novos luga-


res espiritual e seus novos lugares
O conceito de experiência está muito presente quando se fala de espiritualida-
de, pois sabemos que esta se expressa numa atitude prática que resulta da re-
lação com Deus. Em outras palavras, dizemos que a espiritualidade se mani-
festa na vida concreta das pessoas. Por isso, é importante também compreen-
dermos o conceito de experiência.

Num sentido mais amplo, a experiência se constitui em duas perspectivas:


num contato objetivo com uma realidade externa ao ser humano; e no sujeito
que estabelece uma relação de conhecimento com esta realidade, a qual irá in-
�uenciar na sua formação. Esta relação é ao mesmo tempo de recepção (ou
passividade diante da realidade concreta) e de reação da consciência (deve in-
terpretar a impressão deixada por aquela realidade).

No processo de experimentar nos deparamos com alguns elementos. Um de-


les é o da realidade externa ao eu. Aquilo que está fora de nós parece nos pre-
ceder, não depender de nós para existir. Esta realidade externa nos provoca
antes mesmo da nossa consciência, embora depois podemos, mesmo incons-
cientemente, manipulá-la criando uma falsa imagem que condicionará nossa
experiência. Isso pode ter consequências sérias na experiência espiritual, por
exemplo, quando criamos uma falsa imagem de Deus.

O outro elemento é o sujeito, que tem uma grande capacidade criadora na rela-
ção com a realidade, até mesmo podendo modi�cá-la. Ele faz a experiência
com a totalidade de seu ser: com a sua história (forma concreta de sua exis-
tência), seu corpo (sem separá-lo de sua alma), sua razão (faz parte da sua na-
tureza humana).

Por �m, temos o próprio fazer a experiência, que é algo realizado, concretizado,
não apenas fruto de especulações teóricas, mas algo que envolve toda a pes-
soa e traz a ela consequências concretas.
Assim, pode-se a�rmar que:
Na experiência existe um elemento ou um componente extrapessoal (objeto) e um
outro intrapessoal (sujeito). Ambos são relacionáveis. De fato, estão em recíproca
dialética. É desta relação que emerge e que se a�rma a unidade da pessoa. Em se-
melhante unidade pessoal e dialética, a pessoa é movida, criada e recriada – na al-
ma e no corpo – de maneira imprevisível, com uma ponta de fatalismo. Ora, mais
ou menos, vai-se lenta e progressivamente criando aquele fundo que denominamos
experiência, e que por caminhos não sempre conhecidos – ao contrário, muitas ve-
zes ignorados – guia a pessoa, indicando-lhe uma estrada a ser palmilhada e
escondendo-lhe outras. O homem é "animal de experiências" (GUERRA, 1994, p. 40).

A questão é que na experiência espiritual o objeto a que somos remetidos é a


Revelação (a fé), na qual buscamos uma inteligência de vida cristã vivida no
concreto da realidade. Aqui temos uma noção mais ampla de experiência, ou
seja, uma experiência religiosa, uma relação viva, concreta, com uma realida-
de que é transcendente, que se manifesta na história, mas não se limita a ela,
vai além.

O tema da transcendência, porém, nos remete a alguns questionamentos, co-


mo a possibilidade do contato com o absoluto, ou ainda os condicionamentos
do sujeito que podem interferir nessa experiência. O fato é que a experiência
religiosa nos possibilita um contato com o ser divino, que vai além de simples
aquisição de valores morais ou éticos, mas nos leva a uma relação com o sen-
tido mais profundo do existir humano.

Os novos lugares da experiência espiritual


Abordando o tema da experiência espiritual logo se pensa nos lugares ou esta-
dos onde esta relação entre o Espírito e a pessoa acontece. Quando falamos de
espiritualidade, é muito comum pensarmos em lugares que se tornam quase
que normativos (automáticos) para tal experiência, como: a Igreja, o convento,
o sacrário; ou ainda alguns momentos especí�cos, como: o culto, as preces, o
silêncio, os exercícios espirituais, etc. São os chamados lugares e estados clás-
sicos da experiência espiritual, que tem como in�uência uma visão de uma
espiritualidade monástica e medieval que se tornou modelo para toda espiri-
tualidade. Porém, tal visão privilegia uma espiritualidade de momentos e aca-
ba por excluir a maioria dos cristãos que possuem um estilo ou rotina de vida
muito diferente.
Sem negar os lugares clássicos, é preciso também acolher hoje os novos luga-
res e estados da experiência espiritual, muitas vezes esquecidos na história da
espiritualidade, nos quais é possível fazer a experiência espiritual a partir da
vida quotidiana. Segundo Guerra (1994, p. 42-44), pelo menos três lugares, que
não pertencem aos clássicos, podem ser hoje recuperados, ajudando a com-
preender ainda outros:

1. : entendida como tudo aquilo que está relacionado com a origem


do ser humano e constitui sua dimensão terrena e carnal. Tal elemento
foi resgatado após o forte dualismo neoplatônico (também presente na
espiritualidade) que separou a matéria do espírito, vendo-a como algo in-
ferior. A superação vem quando se reivindicam certos direitos elementa-
res para o corpo. Mas ainda �caram marcas muito fortes dessa separa-
ção, criando-se obstáculos para se falar de uma experiência espiritual na
e da matéria. Era bem mais comum falar em teologia de corpos gloriosos,
do que do corpo humano, família, amor humano, sexualidade, prazer, dor,
etc. E se essa temática era estranha ao teólogo, ainda muito mais ao autor
espiritual.
2. : as realidades temporais também estavam muito au-
sentes da re�exão teológica. As grandes transformações do mundo dian-
te da técnica, das novas estruturas sociais, os valores do mundo moderno,
pareciam ser elementos que afastam as pessoas de uma experiência espi-
ritual. Estas só poderiam ter momentos de espiritualidade quando afasta-
das dessa realidade, quando estivessem fora do seu envolvimento com o
mundo, sua ocupação ou vocação temporal. Parecia que temas como: tra-
balho, economia, técnica, política, direitos humanos, cultura, pobreza, não
faziam parte da espiritualidade. As teologias modernas superaram esse
abismo, e as questões sociais tornam-se até mesmo motivações para uma
madura experiência espiritual.
3. : outro lugar para se fazer a experiência espiritual é o
mundo dos marginalizados, dos excluídos, os que se encontram em situa-
ções precárias de vida, pela falta de dignidade e condições mínimas de
sobrevivência. Recuperando uma leitura bíblica a partir dos empobreci-
dos, percebeu-se o quanto tal realidade deve ser lugar de uma experiência
espiritual forte e marcante. O tema da libertação integral do ser humano
(espírito e corpo) e sua íntima relação com o Evangelho impulsionam a
assumir uma experiência de Deus ligada à vida comum e ao compromis-
so da fé.

Estes novos lugares, portanto, querem orientar para a consciência do valor


profundo de tais realidades, mostrando que Deus é o sentido último de todas
as coisas. O Espírito pode ser encontrado em qualquer lugar, pois é ele que ani-
ma todo o sentido do ser, do existir. Por isso, as pessoas podem encontrar o
Espírito em qualquer lugar, e ainda mais, é o próprio Espírito que vem ao en-
contro das pessoas através das várias realidades em que vivem, possibilitando
uma experiência espiritual.

Guerra (1994, p. 47-51) ainda propõe alguns critérios que ajudam na veri�cação
desta experiência espiritual:

1. : se refere não somente ao senso comum das pessoas toma-


das em conjunto, mas também um senso da humanidade, da História. O
senso comum, a importância do , deve ser valorizado
no discernimento a ser feito sobre as experiências internas e externas de
espiritualidade.
2. : embora não sendo muito defendida pelos mestres de es-
piritualidade, estes também não se colocam sistematicamente contrários
a ela. Ela é sempre aquela que guia o ser humano, pois este é um
. Deve-se levar em conta não somente uma razão (a
que considera várias etapas sucessivas do conhecimento de um objeto
até compreendê-lo), mas também uma razão , ou seja, um conhe-
cimento direto e imediato do objeto. Esta última também capta e penetra
a verdade, distinguindo-a da falsidade, com a mesma probabilidade da
razão discursiva. Tal critério é muito importante, pois hoje são muitos os
que, em nome de uma certa restauração da fé e do sagrado, não desenvol-
vem a consciência viva de uma fé crítica, que pensa e permite ser pensa-
da.
3. : a verdadeira experiência espiritual ,
e necessariamente o seguimento de Cristo. Tal segui-
mento, porém, possuem alguns , como: a relação
e com Deus e o próximo;
que mostram a objetividade do projeto cristão (não mudam, mesmo
com o passar do tempo e visões diferentes de Jesus), como: o resgate da
e sua relação com a realidade concreta da vida; a
, no seu relacionamento com o Pai e
com o povo.
4. : toda experiência espiritual deve produzir os
, de acordo com a intensidade e qualidade da mesma. E todos es-
ses frutos (“...amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade �-
delidade, mansidão, autodomínio”. Gl 5,22) se resume no amor, que é um
valor central no cristianismo: um amor , isto é, ligado à fé e espe-
rança, ligado à vida; , que vai à raiz dos problemas humanos
para resolvê-los; como realização do amor a Deus.

4. Breves acenos da espiritualidade na bíblia


A Bíblia é toda repleta de experiências espirituais, ao ponto de que comentar
sobre a experiência espiritual bíblica seria comentar sobre todo o texto sagra-
do. A Palavra de Deus é em si mesma geradora de espiritualidade, de existên-
cia, de vida interior. Não se faz apenas uma “leitura espiritual” da Bíblia, mas
ela é e oferece .

Assim, dentro da espiritualidade bíblica temos uma simbologia da qual emer-


gem alguns �os condutores que vão mapeando todo o espaço ocupado pela ex-
periência espiritual na Bíblia. Dentro deste aspecto, a
presente na bíblia nos remete à experiência de Deus como criador (Gn 1-2), que
dá a vida ao ser humano (sopro, espírito, respiração); que possui um Reino
(sintetizado na mensagem de Jesus); que atua na história e liberta o ser hu-
mano de toda opressão (o êxodo é um grande exemplo disso); etc.

Enquanto uma nos remete ao encontro do ser hu-


mano com Deus por meio de sua experiência de fé (estabilidade, segurança,
con�ança); que leva a uma práxis de vida (cumprimento da Lei, dos manda-
mentos, da aliança, do comportamento ético); que anima uma vida de culto
(louvor, adoração e contemplação diante do reconhecimento da revelação divi-
na).

Uma das �guras que representam na bíblia o ser humano espiritual é o ,


compreendido tanto no seu aspecto existencial-social quanto espiritual. Ele é
a �gura daquele que tem sua vida ameaçada pelo poder dos poderosos, dos
quais não tem mais como resistir, sendo vítima de um sistema que oprime.
Mas é também a �gura daquele que se abandona em Deus, sinal de um total
despojamento (como Abraão ou Jó, por exemplo). A comunhão destas duas di-
mensões no pobre bíblico mostra que a espiritualidade autêntica não é �lan-
trópica, intimista ou pietista, mas fundamentada nas virtudes da fé e da espe-
rança, que transformam as duas realidades presentes no ser humano, na total
con�ança e abandono em Deus.

Exemplos de espiritualidade bíblica


Embora a Bíblia não tenha um tratado sobre espiritualidade, pode-se perceber
nela claramente um processo evolutivo que vai alimentando a vida espiritual
do Povo de Deus nos vários momentos da sua história. Tal espiritualidade vai
acontecendo numa clara dialética entre o , história e
escatologia, política e religião, sociedade e espiritualidade, etc.

Em linhas bem gerais, vejamos alguns exemplos de espiritualidade bíblica e


suas principais características (cf. RAVASI, 1994, p. 66-91):

1. (Gêneses, Êxodo, Levítico e Números): tem como


base a revelação de Deus através da sua com o ser humano, rela-
tada nos primeiros livros da Bíblia. É uma espiritualidade bastante
, pois inclui a promessa, o empenho e o juramento realizado entre du-
as partes: Deus e seu povo. A iniciativa é sempre divina, mas requer uma
resposta do ser humano, respeitando sempre a sua liberdade.
2. (livros proféticos) – fundamentada na
, resgata o projeto divino nas várias reali-
dades na qual o profeta está presente. Por isso, leva muito em considera-
ção fatos de injustiça e de distanciamento da aliança com Deus, denunci-
ando um culto separado da vida, unindo intimamente a dimensão trans-
cendental e imanente, a fé e a vida, a mística e a justiça social.
3. (Provérbios, Jó, Eclesiastes, Sabedoria e
Eclesiástico) – não tanto preocupada com os grandes eventos salví�cos,
mas com as presentes no e na ,
através das relações de Deus com o ser humano, das pessoas entre si, e
destas com o mundo. O pecado, contrário à sabedoria, destrói essa har-
monia. O sábio é aquele que valoriza a realidade humana e terrestre, assu-
mindo , compromissos sociais
(política, família, sociedade...) e espirituais (culto, �delidade religiosa, sa-
bedoria divina).
4. (Salmos) – coração da espiritualidade bíblica, os
salmos fazem uma leitura orante da história da salvação, enfatizando um
Deus (meu/nosso Deus, seu povo, seu rebanho...), que dá seguran-
ça para seu povo (c ...), fazendo desvelar a
, na contemplação e na escuta de sua revelação.
5. (Mateus, Marcos e Lucas) – traz
presente a proposta espiritual apresentada por Jesus histórico e a sua re-
leitura pascal através dos Evangelhos sinóticos. Nesta espiritualidade há
uma exigida por Jesus, que se expressa no amor a Deus e ao
próximo como síntese de toda a Lei. Há também uma
no que se refere à conversão ao Reino anunciado por Cristo; e ainda nas
palavras de Jesus, uma perspectiva do cotidiano ligando sua fala à vida,
com parábolas e símbolos da realidade do seu povo. Estarão muito pre-
sentes temas como: Reino de Deus, evento pascal, oração de Jesus e da
Igreja.
6. (Atos dos Apóstolos) – o programa
espiritual da pode ser sintetizado em At 2,42, com as qua-
tro colunas que a sustentava: a) o ensinamento dos Apóstolos, ou a
Didaché, isto é, a catequese, com discursos querigmáticos (primeiro
anúncio), fundamentados no depósito da fé e na experiência bíblica do
Antigo Testamento; b) a comunhão fraterna, ou Koinonia, vivendo como
"um só coração e uma só alma" (At 4,32), no compromisso da partilha pa-
ra que não haja necessitados entre eles; c) a fração do pão, comunhão
com Cristo que fundamenta e sustenta toda comunhão com os irmãos; d)
as orações, inspiradas nas raízes espirituais judaicas, que aparece em vá-
rios momentos da comunidade, como nos de perseguição.
7. (Cartas de Paulo) – fundamentada numa busca
das razões da fé e da . Para isso, Paulo irá trabalhar al-
guns temas como: a justi�cação (reconciliação com Deus); a adoção �lial;
o "novo ser humano" em oposição ao "velho"; a materialidade e corporei-
dade da salvação; a dimensão comunitária e eclesial da fé. No fundo, faz-
se uma síntese de todas as dimensões do ser humano na sua experiência
com o .
8. (Evangelho e cartas de João; e Apocalipse) – ba-
seada na (Jo 1,14), possui uma mística muito inten-
sa e especí�ca. Alguns verbos marcam esta espiritualidade, como o “ver”,
“amar”, “permanecer”. Resgata a dimensão pneumatológica da proposta
cristã, sendo o Espírito muito atuante na vida da Igreja pascal, e na parti-
cipação do ser humano na vida divina.

5. As grandes escolas de espiritualidade na


história
O estudo mais sistemático da espiritualidade no último século resgatou tam-
bém uma das experiências espirituais presentes na co-
munidade cristã. O resgate da experiência religiosa de grandes místicos e san-
tos que foram se tornando modelos e testemunhos de vida espiritual, muitos
deles fundadores das Ordens Religiosas, �zeram vir à tona as
, quase sempre ligadas às instituições religiosas.
Preocupadas em oferecer meios para se chegar à perfeição cristã, oferecem di-
ferentes modos da alma se relacionar com Deus, inspirados na experiência
dos fundadores e seus seguidores.

Assim, as escolas espirituais não nascem de uma teoria, mas da experiência


de alguém que, confrontado com determinados desa�os do seu momento his-
tórico, responde a estes com uma forte intuição cristã, propondo um caminho
e transformando-se num modelo para aqueles que virão depois.

De acordo com Zovatto (1994, pp. 115-192), podemos elencar as grandes escolas
de espiritualidade e suas principais características, apresentadas aqui de for-
ma bem panorâmica:

1. – os primeiros cristãos se �rma-


ram no conceito de e , que transforma as
relações entre as pessoas através de valores que vão para além deste
mundo. Tais relações estavam fundamentadas no
que os levavam a uma prática concreta de .A
era solidi�cada na concepção de que todos, pelo Batismo, se tor-
nam �lhos e �lhas de Deus. O era o ápice da perfeição cristã, pois
era a expressão máxima de quem assumiu a cruz de Cristo não como fa-
talidade, mas como dom aceito na liberdade e na con�guração com o
Ressuscitado, vencedor da morte e do pecado.
2. – Santo Agostinho (354-430) é considerado o grande mestre
da espiritualidade e do monaquismo ocidental. Defendeu que a alma hu-
mana vive numa constante tensão para um , cujo centro
é Deus, mas que se dirige na sua essência tanto para Deus quanto para o
próximo. A vida de oração (que é o constante desejo de Deus) e a humilda-
de (caminho que conduz à caridade) são valores fundamentais nesta es-
piritualidade.O ideal monástico nasce do desejo de contemplar os “tesou-
ros divinos”, tendo como base os valores da Igreja primitiva, marcado por
uma vida de caridade e ascetismo, onde o ea
serão as principais tarefas a serem realizadas pelos monges. A es-
cola agostiniana também enfatiza uma , sendo uma es-
piritualidade , e . E não se pode dei-
xar de mencionar o seu , pois não separa Jesus Cristo de
sua Igreja. Tal corrente espiritual exercerá grande in�uência sobre toda a
Idade Média e chegará até nossos dias.
3. – São Bento (480-547), retomando a tradição do monaquismo
oriental (Pacômio e Basílio), superou certo radicalismo muitas vezes pre-
sente naquela tradição, buscando integrar os
com os da . Propõe, com grande sabedoria e iluminação,
um estilo de vida original. Consolidou, assim, a vida
. Com a presença do (pai espiritual que representa Cristo e
orienta os monges no seu caminho espiritual), o mosteiro torna-se uma
"escola do serviço divino", que direciona as pessoas a Deus através da
e da (virtudes mestras que efetivam o retorno a
Deus).
A vida do monge é pautada pela e pelo (tanto intelectual
quanto físico). A Regra de vida traz esta harmonia entre trabalho e ora-
ção, envolvendo todos na , ou seja, numa vida contínua de
disposição a Deus e aos irmãos. A oração, de modo especial a liturgia, é
essencial para uma vida dedicada ao culto a Deus e premissa de todo seu
trabalho. Diferente da tradição oriental, onde a oração é essencial e o tra-
balho possível, para Bento o trabalho é um dever cotidiano que vem junto
com a oração, prescrito pela Regra. É uma entre o e divi-
no.
4. (1090-1153) – in�uenciou toda a mística da Idade Média, re-
presentando o renascimento da literatura espiritual iniciada no século 11.
Profundamente inserido na espiritualidade de seu tempo, conseguiu con-
ciliar uma intensa com a de um mosteiro.
Retoma o ser humano como , o qual pela vaidade e von-
tade própria acaba negando tal realidade. Somente com a ao
pecador é que o ser humano pode passar para a vivência
da caridade.Distingue o amor em quatro fases: (amor a si mesmo),
(amor a Deus, mas egoisticamente), �lial (Deus amado por si
mesmo), e (uma só realidade, gratuito e superior ao �lial). Este
último é o ponto mais alto almejado pela alma humana, quando as vonta-
des se unem num consenso de amor. O resulto se dá numa assimilação
do Verbo que se exprime nos mistérios da humanidade de Cristo.
Portanto, o itinerário espiritual proposto vai do conhecimento de si até a
plena comunhão divina, abordando a espiritualidade de forma sistemáti-
ca no contexto do matrimônio místico com o Deus.
5. – tem como característica uma espiritualidade do
clero organizada numa forma de vida em comunidade. Presente, inicial-
mente, no século 4º, se consolidou no século 12 por algumas congrega-
ções, como a dos (1125, norte da França) que adotaram
a Regra de Santo Agostinho. Tem como objetivo a
através da ea
, sem deixar de exercer – como o clero secular – o exercício da pasto-
ral da cura das almas. Dois grandes místicos desta linha foram Hugo
(1096-1141) e Ricardo (1110-1173) de São Vitor (mais famoso mosteiro desta
instituição, em Paris).
6. – surge com São Domingos (1170-1221) ao fundar a
Ordem dos , assumindo a Regra Agostiniana, para favorecer a
santi�cação e preparação de pessoas que defendessem as
frente às heresias dos (maior heresia da Idade Média). Mantém
elementos da vida contemplativa, pois a pregação deveria ser justamente
fruto da , o que impede de cair num puro intelectualismo.
Possuem grande amor pelo estudo, assumindo a teologia como a ciência
da fé que se expressa através dos dons do Espírito Santo. Não dão tanta
ênfase às Horas Canônicas (estas devem ser “breves e sucintas”), porém, o
ofício deve ser rezado com afeto, humildade e alegria; a meditação deve
ajudar para a formação do homem interior e as orações pessoais ligadas
às realidades da vida. Um grande expoente desta espiritualidade será
Tomás de Aquino.Outro representante desta corrente foi Francisco de
Assis (1182-1226) e seus companheiros que vivem concretamente a radi-
calidade do Evangelho como testemunho para uma Igreja. Esta precisava
ser renovada diante da grande crise moral por qual passava e falta de tes-
temunho da pobreza evangélica. Diferente dos dominicanos, os francisca-
nos viviam uma espiritualidade bastante afetiva, sem se preocupar tanto
com conceitos intelectuais. Não elaboram uma doutrina orgânica de es-
piritualidade, mas vive um , marcado pela pobreza, hu-
mildade, e obediência à autoridade eclesial (diferente de outros movi-
mentos pauperísticos da época). Traz o ideal de uma
, e propõe uma vida ascética não pelo acento à austeridade, mas sim
pelo alegre abandono de tudo o que escraviza o ser humano. Grande ex-
poente do franciscanismo será o teólogo São Boaventura.
7. – representa todo um movimento espiritual que pro-
curou recuperar a tradição do passado com um olhar mais crítico e resga-
tar a pureza do Evangelho, abrindo-se para uma maior participação dos
movimentos laicais. Por exemplo: no século 12, na Holanda, França e
Alemanha tem-se a presença de e , que são pessoas
que viviam em penitência, na oração e pobreza, sem entrar numa Ordem
religiosa. Dos séculos 12 a 15, surge na Alemanha os “Amigos de Deus”,
que formavam vários sodalícios (pessoas que vivem em comum e condi-
videm os mesmos ideais). Surgem neste período grandes obras literárias
de mística valorizando o conhecimento experimental para investigar os
mistérios da intimidade com Deus, valorizando aspectos práticos e devo-
cionais da vida espiritual.
8. – fundamentada nos "Exercícios espirituais" e
nas "Constituições", num contexto de Contra- (resposta à refor-
ma protestante), a espiritualidade da Ordem da Companhia de Jesus
(1540) ofereceu um caminho metódico para a busca e o discernimento da
vontade de Deus, para assim atingir seu objetivo com e�cácia e determi-
nação. Propõe um que faz com que o ser humano, cuja alma
é dotada de , e , esteja diante de Deus e de
toda a criação, elevando-se à graça de sua presença e o reconhecimento
de sua glória. Parte ainda de um no qual indica o segui-
mento de Cristo e , identi�cando com o mistério de sua
cruz e ressurreição. Desta forma, a humanidade participa da salvação em
Cristo ao unir-se ao Verbo de Deus encarnado. Em relação à oração, não
dá ênfase ao aspecto material do tempo, mas no espírito que transforma
as potências e sentimentos humanos, e se manifesta na vida de intenso
apostolado.
9. – mesmo que os carmelitas surgem no iní-
cio do século 13, sua espiritualidade se manifesta como escola no século
16 com Santa Teresa d'Ávila (1515-1582) e São João da Cruz (1542-1591).
Tendo como horizonte a através de uma
marcada pela eo , busca-se um estado
de perfeição que é a união da alma com Deus até que esta chegue em uma
transformação em Deus (estado mais alto que o ser humano pode che-
gar). Intensi�ca-se a que é realizada no interior da alma,
não presa a fórmulas, mas que permanece durante o dia todo como exer-
cício contínuo da presença de Deus, que converte e faz praticar o amor.
Não se perde de vista a humanidade de Cristo que leva viver a contempla-
ção como exercício ascético das virtudes da fé, esperança e caridade. Faz-
se uma crítica rigorosa às graças extraordinárias e fenômenos místicos,
vendo-os como periféricos à intimidade com o Senhor.
10. tem como um dos seus representantes São
Felipe Néri (1515-1595). É marcada por uma a to-
das as pessoas, onde a busca da santidade não é vista como algo difícil,
árduo e penoso, mas como caminho agradável e possível a todos. Exclui,
assim, os rigores e austeridades penitenciais externas, buscando a humil-
dade e a somente daquilo que é realmente necessário. Uma
característica desta espiritualidade é o amor a Cristo na vivência da cari-
dade, dando assim uma dimensão social que pleni�ca tal amor.
11. – marcado por um estado místico/contemplativo
mais prático que especulativo, com uma visão mais otimista do ser hu-
mano e das realidades do mundo, tal corrente fazia frente ao
(ênfase no primado da razão), experiências espirituais
(passividade do ser humano na relação com Deus) e
(total corrupção da natureza humana pelo pecado original). Um expoente
desse movimento foi São Francisco de Sales (1567-1622). Ele propõe um
sadio e religioso humanismo, sendo piedoso, mas com uma devoção mo-
derada. Sua espiritualidade propõe remover da vida o que impede a per-
feição cristã, buscando uma retidão humana que leve à vivência do amor
e a santi�cação do ser humano em Deus. O reconhecimento das limita-
ções humanas leva à maior con�ança em Deus. E a oração não pode ser
separada da vida, pois são uma só e mesma coisa.
12. – presente no século 17, afasta-se do humanismo devoto
ao propor um caminho espiritual determinado mais pela , pelo
esforço e . Tendo um ascetismo muito elevado,
torna-se um caminho espiritual mais reservado para alguns espíritos
eleitos, tendo ainda uma tendência especulativa e teológica, e também
psicológica, na busca do íntimo conhecimento do coração humano.
13. – com a condenação do no século anterior,
passa-se a um grande controle da Igreja sobre a literatura espiritual. Isto
também acaba contendo o surgimento de novas linhas de espiritualidade,
sendo considerado um período desfavorável para a mística.
14. – a espiritualidade nos últimos séculos estará mar-
cada pelo surgimento das novas Congregações Religiosas que respondem
a grandes apelos tanto na questão social (assistência aos mais pobres),
quanto na intelectual, na evangelização e instrução sobre a fé cristã. Na
Itália do século 19 retoma-se sobretudo a espiritualidade inaciana. Mas
ainda é um período mais marcado pela e ,
que a busca de uma vivência de um caminho espiritual mais místico. As
grandes escolas (como a beneditina, carmelita, francesa) não mantêm
uma maior in�uência na espiritualidade católica, sendo o último século
mais marcado pelas devoções e pelos santos, o que vemos ainda muito
presente até hoje. Mas não se deixa de perceber também um estilo de pie-
dade mais otimista, mais popular e humana, com a necessidade de expri-
mir os sentimentos, exteriorizando-os em exercícios de piedade, como
procissões e devoções marianas, e também na maior frequência aos sa-
cramentos.

6. A trindade como fonte de toda espiritualida-


de
Hoje vivemos uma realidade bastante singular: por um lado uma
que di�culta muitas pessoas a terem contato imediato com os valores da
fé que nos são transmitidos; por outro, uma busca de Deus que nem sempre
vem acompanhada de uma que faz assumir uma espiritu-
alidade verdadeiramente responsável, sem ignorar os novos acessos à grande
tradição espiritual que a cada tempo vai surgindo.
Um grande desa�o para a espiritualidade hoje é não se fundamentar num dis-
curso abstrato sobre “Deus em si e para si”, de modo distante, neutral, do exte-
rior, mas sim no movimento com o qual ele vem até nós: na nossa história, en-
volvendo e orientando todo nosso ser. Também devemos evitar outra abstra-
ção que é partir do (algo supe-
rado na tradição teológica), sendo que Deus se revela a nós saindo deste misté-
rio vital, mostrando-se como Pai, que envia o Filho para salvar e o Espírito pa-
ra nos reunir na vida e no amor recíproco (cf. WIEDERKEHR, 1994, p. 261).

Portanto, a Trindade, que é a fonte de toda espiritualidade, é o mistério de um


Deus que se dirige a nós na e na , não renunciando nenhu-
ma das duas dimensões, pelo contrário, em Cristo e no Espírito mostra-nos a
comunhão de ambas. Tal revelação de Deus foi acontecendo em diversos
graus de intensidade, desde a experiência da Aliança no Antigo Testamento
(que vai revelando um rosto de Deus que propõe um projeto de vida pautado
nas exigências do amor e �delidade), até sua plenitude em Jesus Cristo, que
consolidou a total aproximação de Deus com a humanidade.

Jesus na sua relação com Deus-Pai


Ao falar de uma Teologia da Espiritualidade, a cristologia aí presente, parte da
relação de Cristo e o �el que faz uma experiência de fé. O testemunho bíblico e
a Tradição só podem ser compreendidos à luz da fé e em vista dela, a qual in-
�uencia nossa existência e nossa prática. A relação de Deus com a humanida-
de se concretiza em Jesus, na sua história, na sua pessoa, sendo impossível
falar de Deus sem se referir ao Cristo. É esta experiência que chega até nós. E a
centralidade desta experiência de Jesus, porém, não tira o caráter
ou da espiritualidade, pois ela direciona sempre uma constante
relação que une Deus-Pai ao ser humano, o Criador com a criatura.

O Deus que Jesus revela é o Deus de seus pais, o Deus que foi se revelando na
fé hebraica da qual Jesus também fez parte. A novidade é que o Reino espera-
do pelos judeus somente nos últimos tempos torna-se já concreto e presente
em Jesus, mostrando o rosto de um Pai amoroso e misericordioso, que vai res-
gatando a vida do seu povo, criando novas relações mais fraternas e solidári-
as. Para que isso aconteça, convida à obediência da Lei com um novo sentido
e desa�a a um processo de conversão que vai concretizando o Reino já no pre-
sente, rumo ao Reino de�nitivo. Toda a vida e anúncio de Jesus é a partir de
Deus e em vista de Deus.

Para a tradição espiritual e teológica, os acontecimentos da salvação são mui-


tas vezes identi�cados mais no início da vida de Jesus (encarnação do Verbo)
e no �nal de sua vida (cruz e ressurreição), do que no itinerário de toda a sua
vida, do seu viver e agir. A tradição da Igreja oriental enfatiza a
como momento decisivo da salvação, pois aí a natureza mortal do ser humano
recebe a eternidade do Verbo de Deus, sendo o mistério pascal a a�rmação e
cumprimento �nal desta unidade.

Já para os ocidentais, destaca-se a entrega total de Cristo na cruz como ato de-
cisivo de "satisfação", ou seja, que restitui, responde às exigências do mérito
in�nito do amor de Deus violado pelo pecado da humanidade. Considera-se,
assim, a encarnação como necessária para se cumprir esse ato �nal de resti-
tuir a humanidade para a glória de Deus.

Ambos os modelos podem ser limitados para manifestar corretamente o mo-


vimento da vida histórica de Jesus, a sua humanidade, a sua relação com
Deus. Muitas vezes, não se dá o devido valor ao tempo de sua pregação e seu
agir em público, ou isso é reduzido a mero exercício preparatório em vista da
sua morte. Tudo já estaria resumido na Encarnação, sem a necessidade de
uma vida ou atividade contínua; ou a morte e sacrifício na cruz se explicaria
por si mesmo, sem uma história de vida e atividades que o preceda. A cruz �-
ca desligada da vida e ação de Jesus, separando o sofrimento da atividade que
transforma o mundo, sem uma comunhão entre as duas realidades. O que nos
termos de hoje poderia ser chamado de uma separação entre fé e vida (cf.
WIEDERKEHR, 1994, p. 269-271).

Não se pode compreender a redenção da humanidade polarizada somente


nesses dois aspectos da vida de Jesus (encarnação e morte na cruz), e sim em
toda a sua atividade salví�ca ligada ao anúncio do Reino de Deus. O agir salví-
�co de Deus se manifesta em toda ação de Jesus para curar os doentes, dar
vista aos cegos, libertar os cativos (cf. Lc 4,18s), ou seja, transformar a realida-
de. Reduzir a atividade salví�ca de Jesus somente à passividade do sofrimen-
to da cruz parece alimentar uma espiritualidade cristã desconectada do mun-
do real, alheia às realidades físicas e materiais do ser humano, limitando-se a
uma salvação somente espiritual e religiosa, e não integral. Isto tem grande
in�uência no sentido da espiritualidade cristã.

O nascimento, a vida e a morte de Jesus só podem ser compreendidos como


um todo, identi�cadas à vontade de Deus Pai de revelar à humanidade seu
amor misericordioso que salva e realiza o Reino. A cruz é o resultado de sua
prática libertadora, na con�ança e obediência, que gera a esperança do Reino
de�nitivo. O que o faz suportar a cruz é a consciência da vontade divina. A
ressurreição é a reposta do Pai à obediência e entrega total do Filho, sua �deli-
dade em amar até às últimas consequências. Pode-se dizer que é a síntese de
toda a sua vida. Aqui se fundamenta a verdadeira espiritualidade cristã.

Ação do Espírito Santo na história da salvação


A ação do Espírito na história da salvação e da revelação nos possibilita parti-
cipar na vida do Deus Trindade fazendo com Ele experiência de comunhão. É
o Espírito que dá a vida ao ser humano com seu sopro vital, desde a criação
(cf. Gn 2,7), permanecendo em todo ser criado como condição de sua existên-
cia (cf. Is 11,2). É esse poder de Deus que age constantemente na história, não
somente como o Verbo encarnado, mas também como Espírito.

Toda a vida de Jesus, sua história, seu agir são obras do Espírito Santo que se
revela desde sua concepção, sem ser suplantado pela sua união com a condi-
ção humana. Durante toda a sua vida pública, a manifestação deste Espírito é
atualizada e rea�rmada, sendo que na ressurreição, possuindo-o juntamente
com o Pai, Ele será comunicado a toda a humanidade para que esta dê conti-
nuidade à missão iniciada por Cristo.

Esta espiritualidade (do Espírito) é que reúne as pessoas em


uma experiência eclesial, para ser Igreja, na qual o Espírito continuará agindo
na história para vivi�cá-la e transformá-la constantemente. Faz com que a vi-
da de Cristo continue presente em todos os lugares e épocas, não �cando sim-
plesmente num passado histórico, mas realizando a promessa de salvação
deixada por ele em todos os momentos da história.
Por isso mesmo, toda espiritualidade cristã é vivida dentro de um âmbito ecle-
sial ao qual o Espírito nos envia. Toda tradição da fé chega até nós mediante
uma experiência eclesial de �eis que aceitaram uma proposta de vida. Os des-
tinatários da revelação de Deus foi sempre um povo. Mesmo quando Deus es-
colhe individualmente algumas pessoas, é para reunir e guiar seu povo. Desta
forma, a do ser humano (criado para se relacionar com seu
próximo) é assumida numa dimensão teológica: o , que forma a
Igreja de comunhão resgatada pelo Concílio Vaticano II. Todos participam
com seus dons e carismas colocados a serviço do bem comum.

Espiritualidade trinitária
Portanto, falar de espiritualidade é falar de participação na Trindade. Porém, o
ser humano não sendo criatura divina como Deus não pode participar da vida
trinitária do mesmo modo em que Deus se relaciona com o Verbo encarnado.
Mas na sua e ao ser humano através da his-
tória, conhecemos Deus como Pai que nos torna todos e
, por conseguinte, e , recebendo em nossa vida o seu
Espírito que nos leva a chamá-lo de Pai, Abbá (cf. Gl 4,6).

Desta forma, não se pode mais retroceder à busca de uma Trindade intradivi-
na , a qual seria acessível somente por meio de conceitos, teorias.
Participamos da vida de Deus Trindade da mesma maneira como o conhece-
mos: através de seu modo histórico de se revelar, que se torna a única maneira
pela qual podemos falar deste mistério trinitário.

E mesmo que Deus Trindade não se dissolva completamente na história, pois


continua sempre a nos transcender, a ser maior de tudo aquilo que possamos
conhecer, devemos encher de história concreta as imagens abstratas que po-
dem ser usadas para falar do mistério trinitário e assim poder conhecê-lo pre-
sente e atuando na história humana.

A espiritualidade cristã, aberta ao mistério trinitário de Deus, conserva, portanto,


todo o seu signi�cado, legitimidade e necessidade. Somente assim Deus continua
sendo um Deus livre em sua autocomunicação (WIEDERKEHR, 1994, p. 285).
7. A vida segundo o espírito
Toda espiritualidade deve estar fundamentada sobre as fontes da vida evangé-
lica, sobre a Palavra de Deus revelada na história como convite a um caminho
de Aliança e comunhão divina, no seu Espírito. Um grande desa�o hoje é não
centralizar a espiritualidade na pessoa e sua subjetividade, muito menos nu-
ma da Sagrada Escritura ou descomprometida com toda a
história da Salvação. Para isso, temos uma experiência de fé que revela a pro-
posta de Deus ao seu povo, já antes mesmo do cristianismo.

A Palavra de Deus como proposta de vida espiritual


A revelação de Deus na história está presente desde Abraão, em toda experiên-
cia de fé do povo de Israel, convidados a assumir uma proposta de vida, de �-
delidade e con�ança na promessa feita. Sabemos que a plenitude de tal mani-
festação se dará somente em Jesus Cristo. Ele é a concretização da totalidade
que une a experiência de Israel à fé cristã e manifesta, assim, a Trindade que
age na história desde sempre. Em Jesus, temos uma catolicidade (universali-
dade) que faz com que a promessa e desígnios de Deus, desde sua origem, este-
jam presentes em todos aqueles que assumem sua Palavra e seu Espírito.
Desta forma, a Palavra une a fé de Israel à comunidade cristã como única pro-
posta de vida.

A Palavra é a ação de Deus na história, pois foi desta forma que Ele se fez co-
nhecer pelo povo de Israel, através das alegrias e dores vividas por esse povo.
Mais tarde, com a ressurreição de Cristo, chega-se à plenitude desta revelação,
sendo �el à promessa uma vez feita e agora totalmente realizada.

A Palavra não pode ser compreendida sem a dimensão da fé, pois requer o
daqueles que con�am num Deus que é digno de con�ança.
Também não pode renunciar à , pois estará sempre ligada ao Espírito
Santo (Ruah, no Antigo Testamento, e Pneuma, no Novo) que recorda tudo o
que Deus é e fez na história de seu povo. O Espírito sustenta toda ação e obra
de Jesus, ensina e relembra, faz compreender sua mensagem e as consequên-
cias concretas do seu seguimento.
Todo sacramento celebrado que invoca o Espírito é um acontecimento tanto
da Palavra como do Espírito, pois não se recebe uma , e sim a
através de sua Palavra que concretiza o projeto
de Deus nela revelado. É uma memória que remete ao que Deus fez, ao que a
Palavra transmite. Aqui vem toda dimensão do compromisso com a Palavra,
pois o que é celebrado na memória deve se tornar novamente
de quem celebra, atualizando a obra de Deus, participando na missão de
seu Filho.

Portanto, a Palavra não leva a pessoa a fechar-se em si mesma, mas a perce-


ber uma realidade que vai além de si, um projeto de vida que é dirigido a um
povo. Não se refere ao destino pessoal de cada um, a não ser perpassando pela
promessa feita a todo ser humano. Com o da tradição ocidental (so-
bretudo após os séculos 16 e 17, esta Palavra foi , reduzindo-a a um
efeito de ou ainda somente para regulamentar um
dos cristãos.

Até mesmo algumas técnicas de meditação (algo bem diferente da proposta


da “lectio divina”) foram alimentando um estilo de leitura como “palavra-
para-mim”, ou ainda um “guia para minha vida”, ao invés de ser a Memória do
propósito de Deus para toda a humanidade em toda a sua amplitude e comu-
nhão. Antes de a Palavra ser um meio apenas para utilidade ou consolação,
ela é Revelação e convite a assumir uma proposta de vida que não é direciona-
da simplesmente para mim, mas para todo o povo de Deus (cf. TILLARD, 1994,
p. 301-302).

Um grande desa�o na espiritualidade não é buscar o que é útil ao "meu pro-


gresso espiritual", e sim uma comunhão com toda a História da Salvação, com
toda a humanidade que faz a experiência de Deus, através de toda a Igreja pela
qual a Palavra nos é transmitida. Assim, a Palavra não é dirigida somente pa-
ra mim, para minhas escolhas, mas para uma comunidade na qual ela me
conduz para viver em comunhão. É este despertar da fé pela Palavra que ori-
enta a uma vida no Espírito, que abre cada um à ação salví�ca de Deus, impli-
cada numa vida de comunhão com o Senhor e com o próximo.

A oração que brota da Palavra


Há uma ligação estreita entre a Palavra e a oração. Esta, muitas vezes, nasce
de uma comunidade �el que reconhece a presença de Deus e o cultua nas li-
turgias, hinos, salmos presentes nas Escrituras, pois é a oração que alimenta a
fé. E a oração bíblica tem um aspecto de anamnese, ou seja, de , de re-
cordação, que traz presente o passado e dá a força necessária a todos aqueles
que fazem memória da ação de Deus na história. "Recorda-te, ó Deus..." é um
refrão constante na oração bíblica, que evoca sempre a promessa, a Aliança
que Deus fez com seu povo (cf. Ez 16,60; Lv 26,45; Gn 9,15.29; Ex 2,24; Lc 1,54.72;
Hb 2,5-8; 10,17; At 3,25; Rm 11,2; etc.).

A oração do povo de Israel surge da certeza de um Deus que ouve o grito de sú-
plica de seu povo, pois, pela sua própria natureza e revelação na história, é um
Deus �el, verdadeiro, que não abandona a sua gente. Por isso mesmo, a memó-
ria é feita não pra recordar-se somente de um sujeito, mas de um povo. A re-
cordação se torna oração, assumida depois pela Igreja nascente. E a oração
por excelência que faz memória da ação de Deus será a : ela atualiza
a ação de Cristo na comunidade e a concretização do seu Reino na vida daque-
les que celebram e se comprometem com seu projeto, que é a vontade perma-
nente do Pai.

A oração cristã normalmente é dirigida ao Pai, como no Novo Testamento e na


liturgia, pois Ele é revelado através do Filho. Por sua vez, o Filho vive para fa-
zer a vontade do Pai, tornando todos os batizados, �lhos e �lhas de Deus; no
seu Espírito, todos irmãos e irmãs. Assim, ao formar o corpo vivo de Cristo, os
cristãos rezam como Ele ao Pai, fazendo da sua oração a oração de toda a
Igreja.

A relação dos cristãos com o Pai na comunidade primitiva só se dava por


meio da obra de Cristo e dela é totalmente dependente. O cristão, ainda que
possua o Espírito, só pode rezar por meio de Cristo, fazendo a memória do
Filho. Desta forma, toda oração é necessariamente trinitária: se chega ao Pai,
através do Filho, no seu Espírito.

A oração ao Pai deve ser amplamente "católica", ou seja, que abrange toda a
, desde a fé de Abraão. Ela reúne todos, judeus e gentios
(cf. Ef 2,11-22), num só povo, na comunhão de uma mesma história, da mesma
Aliança feita com Deus. Esta faz com que toda a oração dirigida ao Pai não se-
ja uma oração a si próprio, mas a súplica dos membros de Cristo por todo o seu
povo, do qual faço parte como cristão.

Para isso, é preciso ainda criar consciência da própria pobreza e colocar-se


simplesmente em silêncio con�ante diante daquele que nunca abandona seu
povo. A é a forma mais plena de oração por colocar em comunhão a
humanidade inteira, prevalecendo o "nós" e não o "eu". Nenhuma forma de
oração individual tem a intensidade de um momento litúrgico celebrado com
todo o Povo de Deus.

O mistério pascal
O mistério da Páscoa é a resposta de�nitiva de Deus à oração do povo. É o
cumprimento da promessa messiânica, ligando a Páscoa de Cristo à Páscoa
judaica, o presente e o passado numa mesma história de vida e salvação. É
ainda a manifestação plena do Espírito que acompanhou Jesus e que agora é
entregue a toda a humanidade, formando a Igreja, já pré-�gurada desde as ori-
gens na Aliança de Deus com seu povo. É o mistério que reconcilia o ser hu-
mano com o Pai, reunindo todos num mundo (cf. Jo
11,51-52).

Os frutos de tal unidade será uma com atitudes novas de


comunhão, partilha, perdão, solidariedade, serviço... No fundo, é o ideal pro-
posto por Deus desde a origem da humanidade, retomado constantemente na
Aliança. O é o dom de Cristo doado para que isso aconteça. A
é plenitude da Palavra e da oração, a comunhão de todos os que de-
la participam (Deus e a humanidade). Faz a comunidade assumir-se verdadei-
ramente como corpo de Cristo, a caminho, na certeza da busca do Reino de�-
nitivo.

8. A espiritualidade e o “ethos” cultural


Com a ressurreição de Cristo, todo ser humano tornou-se capaz de receber o
Espírito do Ressuscitado e participar da do Verbo encarna-
do. Consequentemente, vai-se regenerando a humanidade segunda a forma �-
lial divina.

O Espírito, que faz chamar a Deus de Pai, convoca todos a constituir-se Povo de
Deus, o corpo místico de Cristo, convite estendido a toda a humanidade. Para
isso, Deus escolheu um povo na história para com ele viver uma experiência
de vida que se tornasse consciência para outros povos, para que outros tam-
bém estivessem abertos e disponíveis à ação do Espírito, à experiência pascal.

No Novo Testamento percebemos que, aquilo que na comunidade cristã pare-


cia ser somente relacionamentos espirituais interpessoais, no fundo são
que vão criando um novo estilo de vida. Vão trans-
formando o convívio social e, de certa forma, interferindo numa cultura, num
"ethos", ou seja, no conjunto de hábitos e crenças de um povo, no seu modo de
pensar e viver.

Deste modo, vai-se integrando os valores do Reino na estrutura de uma vida


em comunidade. Tais valores devem ser encarnados, vividos dentro de uma
cultura que é própria de cada época, de cada ambiente. Ainda que esses valo-
res encarnados também preservem seu caráter transcendente, o que levará a
história a caminhar rumo ao horizonte do Reino de�nitivo.

Diante disto, pode-se assumir duas atitudes espirituais diferentes: viver so-
mente numa perspectiva (da plenitude dos tempos), desconside-
rando ou desprezando os aspectos culturais terrenos; ou , e
a cultura presente, dialogando com ela. Esta segunda atitude foi
assumida pelo Concílio Vaticano II quando reconhece que os cristãos devem
se na vida cultural e social de cada tempo, pois nas diversas cultu-
ras existem também as "sementes do Verbo" (Decreto Ad Gentes, n. 11).

Diante disto, pode-se assumir duas atitudes espirituais diferentes: viver so-
mente numa perspectiva (da plenitude dos tempos), desconside-
rando ou desprezando os aspectos culturais terrenos; ou , e
a cultura presente, dialogando com ela. Esta segunda atitude foi
assumida pelo Concílio Vaticano II quando reconhece que os cristãos devem
se na vida cultural e social de cada tempo, pois nas diversas cultu-
ras existem também as " " (Decreto Ad Gentes, n. 11).
O papel do corpo, da psique e do tempo na espiritualidade
cristã
Mais do que o simples que expressa uma estrutura do ser hu-
mano (corpo e alma), a manifesta a (integral) da
pessoa toda, seu modo de ser, de viver, de realizar a sua história. A corporeida-
de não é um limite, mas uma forma da pessoa ser, de existir.

Os e também fazem parte da corporeidade, pois


eles não podem existir fora de um corpo, de uma pessoa concreta. Por isso que
na espiritualidade a corporeidade também é de suma importância, ainda que
em determinado momento da história do ocidente houve um repúdio de tudo
aquilo que pertencesse ao corpo, à matéria, esquecendo-se que o Espírito de
Deus só pode se manifestar em todo o ser da pessoa.

A in�uência da �loso�a grega ainda deixa o seu rastro em nossos tempos.


Muitas vezes a matéria, o corpo são vistos como algo que atrapalha a experi-
ência da espiritualidade. No , era preciso se libertar da
matéria para contemplar a verdade. Nesta linha encontra-se a
de muitos monges e místicos que enfatizavam o desprezo pelo corpo.

A teologia contemporânea procura resgatar ambos, o corpo e o espírito, como


expressões da imagem de Deus, con�rmadas pelo acontecimento da
e na de Cristo. O mistério pascal transfor-
ma todo o ser da pessoa. O Espírito de Deus espiritualiza o ser humano inte-
gral, no seu corpo e alma.

Como compreender, então, a oração como encontro íntimo com Deus que vai
além ou supera a dimensão corpórea? Nesse sentido é preciso lembrar que a
, a experiência de intimidade com Deus, não signi�ca
abandonar a própria corporeidade, mas deixar que o Espírito pascal impregne
toda a dimensão do ser da pessoa. É preciso permitir que o estado corpóreo
carnal seja espiritualizado, abrindo-se ao contato imediato com o divino.
Assim, o corpóreo é símbolo de oração ou vivência sacramental na sua união
com o Espírito, o que o diferencia de qualquer outra matéria: é a pessoa inteira
que reza, que se puri�ca, que se alimenta da Eucaristia (cf. GOFFI, 1994, p.
372-373).

É importante também lembrar que a personalidade humana é formada pelo


controle tanto de (manifestam as emoções da pessoa), quanto
(governam o corpo a partir de ideias e desejos). Esta unidade
é que permite o ser humano de se relacionar com a realidade exterior
que o cerca. É neste sentido que a terá o importante papel de sensibili-
zar a pessoa para realizar experiências espirituais que vai delineando a sua
vida, suas escolhas, seu comportamento, numa conversão espiritual que en-
volve todo o seu ser.

Como são nas relações afetivas com as pessoas que se dá o verdadeiro conhe-
cimento do outro, não é diferente com Deus. O ser humano o conhece na medi-
da em que, acolhendo a experiência de fé, vive uma relação de amor que o
Espírito comunica. Assim, assume-se a vontade divina não como uma teoria,
mas como experiência concreta, fundamentada no testemunho de amor que
temos por Deus.

É a experiência espiritual de fé-caridade que vai transformando a própria al-


ma. Esta deve ser (espiritualizada) pela ação imediata do
Espírito Santo que transforma todo o ser da pessoa (corpo e psique) em espíri-
to ressuscitado, atingindo toda sua vida, seus desejos e vontades. Torna-a ca-
paz de participar da vida divina trinitária.

Toda essa experiência espiritual se dá numa visão de tempo, presente tam-


bém na Bíblia quando esta descreve a criação, a Promessa, os eventos da
Aliança e das ações de Jesus, que vai conduzindo toda a história para uma
plenitude, um �m escatológico. Para isso, deve-se estar atento ao Kairós de
Deus, ou seja, ao tempo favorável à graça que se oferece e se renova constante-
mente. O ser humano não permanece numa passividade, mas é desa�ado à
abertura e acolhimento dessa manifestação de Deus no tempo, na história.

Quando a pessoa faz um caminho espiritual deixando ser "pneumatizado" pe-


lo Espírito de Deus, tem mais possibilidade de reconhecer esse Kairós. Ela as-
sume a vontade divina, deixando que o Espírito a conduza e oriente na busca
de Deus, transformando o tempo na manifestação progressiva de sua experi-
ência salví�ca. A liturgia é a manifestação desse tempo da história introduzi-
do no absoluto transcendental de Deus.

9. Desenvolvimento espiritual: o papel das ins-


tituições e normas
Quando se fala de desenvolvimento da vida interior não se pode esquecer que
nele também estão implicados aspectos estruturais e institucionais da vida
espiritual. O desenvolvimento acontece dentro de uma comunidade ou insti-
tuição social que dá as formas iniciais, que orienta um caminho a percorrer
com regras de comportamento e com exemplos vivos, os quais se tornam tes-
temunhas e modelos. São as estruturas vitais e instituições que representam
uma tradição e contribuem para o amadurecimento de novas experiências que
vão surgindo. Assim, elas preservam um caminho de fé com seus ideais que
vai guiando uma comunidade humana.

A vida interior de cada pessoa é expressa necessariamente em e


sociais que as fazem crescer e identi�car-se com uma comunida-
de que assume e faz o mesmo processo de vida. A é que estrutura es-
ses gestos simbólicos e ritos que manifestam ideais absolutos provindos da fé
e que vai atuar nas diferentes fases do crescimento do sujeito. Uma vez que se
descobre e assume Deus como princípio originário e fundamento da vida, da
existência, o comportamento humano vai se estruturando dentro de uma
na qual os valores e carismas pessoais são vividos na perspecti-
va do crescimento e do bem comum.

Neste sentido é que as instituições eclesiais são aquelas que estruturam a vida
cristã e permite a aos valores evangélicos, vividos em comunhão.
As normas vão estabelecendo as atividades a serem realizadas para atingir tal
�m. As instituições, portanto, concretizam as dinâmicas espirituais. Deste
modo, a espiritualidade não é somente algo pessoal, vivido na sua individuali-
dade, mas se alimenta de uma tensão vital com a comunidade na qual perten-
ce, na busca da vontade de Deus, renunciando aos ídolos e assumindo a práti-
ca do amor (cf. MOLARI, 1994, p. 423).

Nas orientadas pela Instituição cristã, temos um


, ou seja, baseados nas virtudes teologais da ,
e . Tais virtudes, por sua vez, se expressam concretamente na vivên-
cia dos conselhos evangélicos, a saber: a pessoal e comunitária à
vontade de Deus; a como desapego e abandono na providência divina;
ea como vivência de um amor oblativo que é expressão do amor
misericordioso de Deus. São para uma vida es-
piritual autêntica, e são indispensáveis para todo cristão, em todas as formas
de vida assumidas na Igreja (cf. Lumen Gentium, n. 42).

Benefícios e riscos das Instituições


Uma grande contribuição das Instituições é um ideal no tempo,
sendo �el a ele e garantindo que o mesmo chegue às novas gerações. Quando
os valores são , é muito importante a de uma geração pa-
ra que tais valores continuem dando um sentido à vida, mesmo diante das
mudanças históricas. Eles expressam também a �delidade do cumprimento
das promessas de Deus, das esperanças antigas que são atualizadas.

Muitas vezes não se tem consciência da importância do alcance histórico da


�delidade, para que outros possam continuar vivendo os valores que são pro-
fessados e encarnados numa instituição religiosa. Isso não signi�ca que se de-
ve ignorar o “novo”, pelo contrário, este deve ser integrado, pois pode ser uma
nova expressão da emergência dos valores cristãos numa nova realidade. A
novidade pode signi�car a surpresa do amor de Deus que propõe novos desa�-
os. As Instituições religiosas precisam estar , pois elas vivem
em função da revelação de Deus que acontece na história humana.

Entretanto, não se pode também acolher o novo sem uma atenta �delidade à
progressiva ação de Deus na história humana, aos valores irrenunciáveis do
Reino que introduzem dimensões eternas nas experiências da existência tem-
poral onde a vontade divina se manifesta. Por isso, a deve
estar atenta: à do presente (o que vivemos hoje como resposta atual
ao compromisso uma vez assumido); à do passado (experiência que
fundamenta os valores a serem vividos no presente); e à do futuro
(tensão trazida pelo presente que nos faz projetar o futuro diante da leitura dos
sinais dos tempos).
O teólogo italiano MOLARI (1994, p. 437-440) lembra-nos que há também ris-
cos e ambiguidades nas Instituições, pois estas podem ea
reprimindo a criatividade ou a valorização do novo. Podem ainda ali-
mentar certo desejo de e ao querer levar vantagens de
estruturas de poder para se autopromover ou se destacar entre os outros, es-
quecendo o sentido de serviço e humildade nas estruturas religiosas. Outro
risco é o de querer se manter a partir de um (doutrinação), não
respeitando a liberdade humana, forçando as pessoas a assumirem os valores
religiosos.

Pode-se ainda cair numa que gera uma posição integrista, ou


seja, achar que somos os únicos por possuir todos os elementos que dão signi-
�cado à vida humana, fechando-se a qualquer diálogo e confronto com os ou-
tros, com o diferente. Por �m, pode-se viver um e
que nega a contribuição do presente, ou se �xa nos escritos e normas
que são assumidas como absolutas ou imutáveis.

10. Ascese e discernimento espiritual


Faz parte da vida humana o crescimento em suas várias dimensões até atin-
gir a sua maturidade. Da mesma forma, a vida espiritual é também composta
de um processo que orienta o caminho em direção a um horizonte ao qual se
propõe chegar, a uma plenitude.

Neste aspecto, as instituições e comunidades de vida têm um papel muito im-


portante em oferecer espaço e meios para o desenvolvimento e crescimento da
vida espiritual, tanto pessoal quanto comunitária. Para que isso aconteça, é
necessário ter decisões conscientes que envolvem o e
da pessoa. Todo esse processo no sentido religioso se chama de ascese.

A palavra ascese (que vem do grego “áskesis”, do verbo "askéo", que signi�ca:
esforçar-se, exercitar-se) justamente se refere a todo o exercício realizado, todo
esforço intenso e metódico feitos para se alcançar um resultado, quer físico ou
espiritual. No sentido Teológico, a ascese são os exercícios que proporcionam
a possibilidade de perceber a ação de Deus, os apelos de sua Palavra, a força do
seu Espírito que se manifesta na história humana; são exercícios que possibi-
litam que os valores divinos se expressem na vida humana, guiando a história
da pessoa.

Por isso mesmo, a ascese está condicionada pelo e , pois ela se


faz presente nas situações concretas da vida, da história. A
da vida ascética é que forma o conjunto de práticas e exercícios espiritu-
ais de uma certa religião (cf. MOLARI, 1994, p. 443-444).

A ascese cristã, porém, não é para levar as pessoas à busca de uma perfeição
no sentido moral, muito menos para amenizar ou esconder as limitações hu-
manas que cada um possui. Pelo contrário, é para abrir toda essa realidade da
pessoa à revelação de Deus que vai se manifestando por meio dos atos huma-
nos. É neste sentido que a ascese irá levar à busca da santidade não como “es-
tado de perfeição”, mas como abertura a Deus, para que ele aja e transforme as
realidades humanas de acordo com sua vontade.

O caminho ascético não está preocupado em eliminar os limites humanos, os


defeitos pessoais, mas sim os obstáculos que estes podem causar para a reve-
lação de Deus na vida da pessoa. Quer-se eliminar não os defeitos, mas as in-
�uências que estes podem ter sobre as decisões, opções e atividades que im-
pedem a compreensão e acolhida de Deus que vai se revelando na história, na
vida humana.

Isso não signi�ca dizer que a pessoa continue sempre imatura, pois a imaturi-
dade sim deve ser superada para que haja um verdadeiro crescimento espiri-
tual. A ascese abre a pessoa para acolher a ação divina, acolhendo o dom da
vida nova, superando aquilo que impede este dom se manifestar, ainda que
convivendo com as limitações humanas.

A ascese, portanto, ao invés de eliminar os defeitos e tornar as pessoas perfei-


tas, vem mostrar que que faz o ser humano capaz de experi-
mentar a ação salví�ca de Deus, mas sim uma no con-
fronto com a perfeição de Deus. Ele sim é perfeito e somente Ele pode nos tor-
nar pessoas melhores em busca de um sentido de vida que está além do con-
ceito de felicidade e bem-estar que o mundo atual hoje prega.
Este caminho ascético, que nos leva à de vida permitindo a re-
velação de Deus, não acontece do dia para a noite, ou num só dia ou meses,
mas é um processo e , que requer um grande percurso, a vida
toda. São várias as etapas de e nesse sentido, que es-
tão também relacionadas com as idades e momentos da história. Por isso, não
são simples para serem identi�cadas. A compreensão, discernimento e acolhi-
da da grandeza do projeto de Deus na vida humana envolve a vida inteira para
ser interiorizado e assumido. Durante esse percurso são necessárias algumas
etapas de , de da pessoa ao longo do caminho per-
corrido.

Segundo Molari (1994, p. 449-453), ao invés de falarmos em etapas de uma as-


cese pessoal, pode-se falar de algumas "conversões" que são colocadas no ca-
minho ascético, diante dos desa�os contemporâneos de testemunhar a salva-
ção no mundo e favorecer meios para uma espiritualidade verdadeira. Uma
delas é o , não pautado em cima de um
progresso que gera o consumismo, acúmulo, cobiça, etc. É preciso ainda
converter-se ao , não apenas explorando-a sem medir as
consequências e sua importância para a sobrevivência da própria vida huma-
na.

Fala-se ainda de uma conversão ao , numa


, em busca de uma comunhão cada vez mais universal, acolhedora, res-
peitosa. E ainda uma conversão à realidade dos empobrecidos, marginaliza-
dos, que é o sinal de que o Reino continua sendo um desa�o, pois eles são fru-
tos de uma sociedade injusta e egoísta.

A necessidade de discernir
No caminho da espiritualidade, o é muito importante
pelo fato de lidar com eventos salví�cos que, embora aconteçam na história,
seu signi�cado vão além de sua realização, daquilo que podemos ver e con-
templar. Muitas vezes, essa dimensão transcendental da história pode nos re-
meter a interpretações ambíguas ou não tão claras. Por isso que a vida espiri-
tual necessita de um discernimento dos diferentes que a
pessoa pode viver e ainda pode ser desa�ada a acolher em diversos momentos
de sua vida.
O discernimento é feito, através da fé, pelas circunstâncias, situações, impul-
sos interiores que a pessoa recebe em relação à vontade de Deus ou aos valo-
res do Evangelho. O desa�o é sempre de discernir, nos sinais dos tempos, os
apelos da vontade de Deus em determinadas situações ou circunstâncias.

No contexto bíblico, usa-se muito o discernimento como maneira de


para descobrir a vontade de Deus (cf. Mt 16-2; Lc 12,56s; 1Ts
5,19-22; Rm 12,2; Fl 1,9s). O discernimento estava presente em vários momen-
tos da vida das primeiras comunidades cristãs: para eleger Matias como subs-
tituto de Judas (cf. At 1,15-26); no primeiro Concílio da Igreja nascente (cf. At
15); no batismo de Cornélio (cf. At 10); etc. Paulo vai falar ainda do
que é citado como um dos dons do Espírito Santo (cf. 1Cor
12,10).

Todo discernimento espiritual, porém, se esbarra no objeto especí�co do seu


discernimento: . Por mais que Deus se revele e se comuni-
que na realidade, nos fatos da vida, nenhum evento histórico pode abarcar a
plenitude da manifestação de sua salvação e sua vontade.

Os limites humanos, como o pecado, interferem na compreensão de tais even-


tos que acabam sendo ambíguos ou imprecisos aos olhos humanos. Neste ca-
so, o discernimento será descobrir a vontade de Deus nas situações históricas,
mesmo sendo elas inadequadas ou imperfeitas, pois a vontade de Deus vai
além delas. Esta vontade se manifesta na acolhida dos valores evangélicos da
, , perdão, , etc.

Portanto, a vida e seu crescimento, os frutos que dela vão surgindo, será um
critério fundamental para o discernimento espiritual, pois a salvação vai sen-
do realizada em tudo aquilo que faz a pessoa crescer até a plenitude eterna. Se
ainda não há frutos, os critérios de avaliação, mesmo que provisórios, deverão
ser a lei ou a tradição que mostram o caminho, o confronto ou o diálogo com
os outros, para se comparar com os frutos vitais do crescimento espiritual.

Por sua vez, o consiste em julgar, pela fé, os aconteci-


mentos da própria existência que revelam o dom de Deus, para o crescimento
da pessoa e a concretização do Reino. Para isso, alguns elementos serão ne-
cessários para ajudar nesse discernimento: a ,a ,a
sobre experiências passadas e as que deverão ser tomadas.

Mas há também o que envolve a posição de um


grupo em relação às novas situações que se apresentam. Em tal discernimen-
to, faz-se necessário a partilha de ideias e opiniões, procurando discernir o
que convém fazer ou o modo de agir, inspirados pela presença do Espírito.
Nesse processo será de suma importância alguns elementos, como a
, ea .

Para o diálogo, deverá haver uma abertura para o sadio pluralismo, acolhendo
outras opiniões ou formas de ver as coisas. Nesse sentido é que a oração em
comum também será imprescindível para criar comunhão, clarear as motiva-
ções, amenizar as tensões, etc. E uma vez tomada a decisão, é importante o
envolvimento e compromisso de todos, mesmo daqueles que foram contrários
a elas ou de opinião diversa.

11. Crescimento e maturidade espiritual


Como vimos anteriormente, do mesmo modo que o ser humano cresce e busca
a maturidade nas várias dimensões de sua vida, não é diferente no seu cami-
nho espiritual: vários elementos o ajudam a buscar o e
. A própria fé nos desa�a e necessita de crescimento. Para isso,
Jesus propõe a total adesão ao fato de que todos somos “�lhos e �lhas do mes-
mo Pai” (cf. Jo 20,17; Hb 2,17; Gl 3,26-27), o que dá um sentido profundo à vida.
Cristo se torna o modelo que in�uencia todas as nossas opções pessoais e dá o
fundamento da nossa própria existência.

Para haver um caminho de crescimento e maturidade temos que ter claro o


aonde queremos chegar e um que nos ajude a caminhar, se
confrontar, se identi�car. No caso da espiritualidade cristã, é claro que o
(cf. Gaudium et Spes, n. 22), o
sentido mais intenso da vida, que orienta toda a humanidade nos seus anseios
mais profundos. A do modelo como processo de identi�-
cação com o Cristo, cujo motor propulsor é o Espírito Santo, será determinante
no crescimento e maturidade espiritual da pessoa. O desa�o é transformar as
motivações e .

Desta forma é que a vida vai sendo pautada por aquilo que se chama de
, as quais vão fundamentando o comportamento da pessoa. Para aqueles
que querem "viver em Cristo", terá que dar uma atenção especial às chamadas
, as quais constituíram o modelo do seu comportamento:
uma absoluta no Pai; uma inabalável na realização do Reino; a
prática da que norteou toda a sua vida.

São valores centrais que devem conduzir a vida de todo cristão, não somente
em teoria, mas na prática. Pois o centro de todas as virtudes, segundo Paulo, é
o que supera tudo, que espera tudo, que desculpa tudo, etc. (cf. 1Cor
13,4-13), inserindo totalmente o ser humano na identi�cação com o Cristo.

Segundo a psicóloga Anna Riva (1994, p. 501-502), a


é a manifestação maior da maturidade. O ser humano é convidado a
crescer de um amor egocêntrico, interesseiro (que é próprio da criança), para
um amor que aos poucos vai sentindo a necessidade de não só receber, mas
também de se dar (o que vai aparecendo na adolescência).

Depois se chega a um amor mais oblativo, desinteressado, gratuito, próprio de


quem se aproxima de uma maturidade humana. Este é o símbolo do amor
conjugal, que será também usado para falar da relação de Deus com seu povo.
É esta experiência que gera o mistério da vida, que estará sempre mais pre-
sente à medida que a pessoa vai amadurecendo.

As virtudes possuem, ainda, uma , pois levam a uma


vida de comunhão pautada pela fé e a caridade, fundamentada no princípio de
que em Cristo todos são irmãos e irmãs. Tal testemunho comunitário será im-
portante como modelo e inspiração para outros que buscarão esta experiência,
para que possam também crescer e amadurecer na vivência da sua fé enquan-
to comunidade.

Ter consciência e viver essa experiência comunitária das virtudes também


ajuda a evitar a e religioso que não leva a assumir
os verdadeiros valores cristãos que formam o Reino.
Por �m, quando se fala de maturidade espiritual não se pode confundir com
uma necessária presença de fenômenos extraordinários. É importante lem-
brar que na experiência mística, ou seja, na experiência de contato com o mis-
tério de Deus que se revela, que é compreendido ainda que não totalmente pela
razão humana, podem aparecer os tais “fenômenos místicos” (estases, "arreba-
tamentos", visões, emoções extraordinárias, etc.). Mas, é necessário frisar que
estes , mas são casos esporádicos que muitos
místicos viveram mais como um peso, como sofrimento, do que como um pri-
vilégio, satisfação.

Às vezes, podem ser uma perca temporária de um equilíbrio emotivo ou inte-


lectual, do controle racional do sistema nervoso, que pode causar até mesmo a
dúvida da própria experiência realizada. Embora reconhecidos como fenôme-
nos, a questão é que os não têm a necessidade de manifesta-
ções excepcionais para que sejam realmente comprovados na sua autenticida-
de ou para que a pessoa chegue a uma maturidade espiritual (cf. RIVA, 1994, p.
510).

A maturidade na experiência mística, portanto, acontece quanto mais se inse-


re na vida de Cristo, na com Ele. Deste modo, o extraordinário na
experiência mística não será a busca de fatos excepcionais, fora do comum,
mas a que se dá na normalidade do quotidia-
no e desa�a o místico a uma entrega de todo o seu ser.

Muitos místicos hoje vivem uma experiência profunda de unidade com Cristo
sem grandes manifestações externas particulares, mas nas
suas relações com o próximo a mesma caridade que experimenta na vida de
intimidade com Deus.

É preciso que as pessoas também cresçam na sua dimensão humana para se


livrar dos infantilismos e egocentrismos que as impedem de caminhar para
uma maturidade na compreensão da revelação de Deus que se dá na sua his-
tória. O certo é que sem uma pessoal, será difícil ama-
durecer também na fé e na caridade.

O caminho ascético deve ajudar nesse sentido: superar o entre a


mente e o corpo, entre o transcendente e sua manifestação na história huma-
na, fazendo com que o ser humano, como um todo, possa crescer na sua expe-
riência de Deus. Assim, estará sempre buscando a sua meta que é a ,
vocação comum à qual é chamado todo cristão (cf. Lumen Gentium, cap. V).

12. Considerações
Vimos, de uma forma muito geral, alguns elementos essenciais que compõe a
Teologia da Espiritualidade. É claro que o tema é bem mais amplo e abrangen-
te. Porém, de uma forma sintética, abordamos os princípios básicos que nos
ajudam a re�etir sobre a experiência espiritual e os componentes nos quais se
fundamenta a espiritualidade cristã.

É importante ainda lembrar que existem várias espiritualidades, com caracte-


rísticas diferentes, que não foram aqui abordadas, como a das
, e também das . De todas elas temos também
muito que aprender e compartilhar.

A , por exemplo, fundamentada nos primeiros padres


da Igreja e no movimento monacal que surge no século 4º, tem um modelo as-
cético de uma . Este age na Igreja para tornar
os cristãos "cristiforme" (semelhantes a Cristo), a �m de levá-los ao diálogo e
unidade com Deus-Pai. Tal espiritualidade mantém a ênfase na como
meio de diálogo com a Trindade, defendendo a do mundo e a
na Igreja. Buscam ainda superar certo intelectualismo, defendendo
que o contato com Deus se dá mais pelo que pela razão, confrontando
assim o racionalismo ocidental.

Nas espiritualidades das grandes (Judaísmo, Hinduísmo,


Budismo, Islamismo) também se encontram elementos comuns como a busca
da paz, da fraternidade, do amor, que são vias de e . As diferen-
tes formas de orientar as pessoas para a experiência do divino, do Absoluto,
nas diversas maneiras de rezar, meditar, relacionar o corpo e a alma, construir
um mundo mais justo e fraterno, podem ser muito enriquecedoras para todos.
Sem negar a própria identidade, podemos nos abrir para acolher e aprender
com o outro.
Por �m, não podemos esquecer algo muito importante: mesmo se a espirituali-
dade está ligada diretamente à de Deus, ela é sempre ali-
mentada e estimulada por uma . Por isso, mesmo se o sujeito
da vida espiritual é a pessoa, a base de tal experiência é um projeto comum,
uma comunidade que vive e partilha a mesma fé. Isto ajuda a
na vida espiritual, fechando-se em experiências individualistas, egoístas,
sem abertura e compromisso com o comunitário.

En�m, o assunto é amplo e instigante. Aqui tivemos somente um aperitivo.


Que todos nós possamos continuar a aprofundar o tema da espiritualidade que
é central na vivência de nossa fé.
(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-

g03273-fev-2024-grad-ead/)

Unidade 2 – O Leigo na Igreja: um Esboço Histórico

Objetivos
• Compreender o termo "leigo".
• Interpretar a História do leigo na Igreja.
• Entender a visão teológico-eclesiológica de forma decisiva na vida do lei-
go na Igreja.
• Estabelecer pontos de referências para a identidade do leigo hoje.

Conteúdos
• O termo "leigo".
• Conotações atuais do termo.
• Etimologia da palavra.
• O termo "leigo" na Bíblia.
• O leigo nos primeiros séculos do cristianismo.
• A reviravolta do século 4º.
• Os leigos na Idade Média.
• Os leigos na Idade Moderna.

Orientações para o estudo


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orienta-
ções a seguir:

1. Leia os livros da bibliogra�a indicada, para que você amplie e aprofunde


seus horizontes teóricos. Esteja sempre com o material didático em mãos
e discuta a unidade com seus colegas e com o tutor.
2. Recomendamos que a leitura dos textos deste material seja feita mais de
uma vez para �xar seus conteúdos, como também que você realize pe-
quenos apontamentos com a �nalidade de comparar e aprofundar pontos
de destaque, utilizando-se das fontes aqui elencadas e que já indicamos
como indispensáveis para o estudo deste tema.

1. Introdução
Nesta unidade, a partir do ponto de vista da re�exão teológica contemporânea,
buscamos lançar um olhar panorâmico sobre o modo como o leigo foi visto
pela Igreja Católica nos seus vinte séculos de História, abordagem essa que
nos ajuda a entender melhor os diversos pontos de vista existentes.

Por que olhar para o passado, se o mais interessante e produtivo seria �xar
nossa atenção na realidade pastoral e na re�exão teológica que temos hoje?

Para entendermos a importância desse percurso histórico, é necessário que


tenhamos consciência de alguns fatos:

• o que a Igreja viveu;


• os primeiros dois milênios que marcam a sua história;
• a morosidade nas mudanças culturais;
• práticas e concepções do passado ainda impregnadas no presente podem
in�uenciar o futuro.

Se não tomarmos consciência de tal processo, ele continuará e até mesmo de-
terminará opções presentes em nossos comportamentos. Seria praticamente
impossível entender certas concepções que ainda carregam o imaginário
eclesial sem conhecer as principais visões e posturas que incidiram no modo
como o leigo foi visto e considerado ao longo da História.

Por outro lado, na medida em que conhecemos nossa história, com seus valo-
res e condicionamentos, nos tornamos mais livres para escolher o rumo que
queremos dar à nossa existência. Não esqueçamos que a consciência, a liber-
dade e a responsabilidade caracterizam o modo de ser humano.
Na proporção em que conhecemos a trajetória do laicato católico na Igreja – e
no mundo –, descortina-se diante de nossos olhos o horizonte de liberdade,
fruto da consciência, que nos permite apropriar os valores da tradição e, ao
mesmo tempo, exercer a criatividade, de forma consciente e responsável, para
que a riqueza de carismas e ministérios suscitados pelo Espírito, em nossos
dias, tornem-se e�cazes na promoção dos valores do Reino de Deus.

2. O termo "leigo"
Antes de iniciarmos nosso percurso histórico, vamos dedicar um pouco de
tempo para entender melhor o signi�cado do termo "leigo". Conhecer a etimo-
logia da palavra é um passo fundamental para aprofundar o tema que estamos
estudando.

O termo "leigo" é, hoje, amplamente utilizado com conotações bem diversi�ca-


das, abrangendo acepções positivas (indicam valorização) e negativas (veicu-
lam signi�cações com herança de menosprezo). Valorização e depreciação,
portanto, fazem parte dessa história.

3. Conotações atuais do termo


Uma conotação na qual o termo é, hoje, muito utilizado compreende o "leigo"
como aquele que não é iniciado em um determinado âmbito do saber. Nesse
sentido, a palavra indica aquele que não tem uma formação especí�ca e, por-
tanto, desconhece um determinado assunto. Assim, para dizer que não se tem
conhecimento sobre alguma coisa, seguidamente usa-se a expressão: "sou lei-
go no assunto". , nesse caso,
e, por consequência, estabelece uma relação de dependência com aqueles
que sabem. Como você pode notar, o termo, aqui, apresenta uma
.

É importante, porém, tomar consciência da existência e do uso de um outro


termo, com uma conotação um tanto diversa, mas que ao longo da História foi
tratado praticamente como sinônimo de leigo. Trata-se do termo "laico". Hoje,
tem-se maior clareza e, portanto, maior capacidade de tratar os dois termos de
forma diferenciada, segundo as conotações de cada um. Ao longo da História,
nem sempre foi clara a distinção entre um e outro, o que gerou uma série de
di�culdades tanto no âmbito teológico quanto no pastoral. Pelo termo,
entende-se, hoje, como aquilo que não é confessional, isto é, como
. Dentro dessa compreen-
são, a título de exemplo, fala-se de escola confessional, quando ela está ligada
a um credo e a uma instituição religiosa, por meio da qual de�ne a sua �loso-
�a de trabalho; por outro lado, fala-se de escola laica quando ela deduz seus
princípios pedagógicos de fontes não religiosas e proclama sua autonomia di-
ante de qualquer credo. De forma análoga, podemos falar de um pensamento
laico, de uma cultura laica ou de um estado laico.

No século passado, a Igreja utilizou abundantemente o termo "laicista" para


indicar pessoas ou grupos que não apenas tinham uma postura laica, mas
que, além disso, assumiam uma atitude antagônica em relação ao religioso e
eclesial. O termo tem, portanto, uma .

4. Etimologia da palavra
Como dissemos anteriormente, para entender bem uma palavra, além das co-
notações que ela assume nos dias de hoje, é importante conhecer, também, a
sua origem. provém da palavra grega laikós, por sua vez derivada do ter-
mo laós, que signi�ca "povo". O su�xo ikós designa uma categoria que se dife-
rencia de outra no interior do mesmo povo (laós). Em alguns papiros antigos, a
palavra laikós é usada para indicar a população enquanto distinta daqueles
que a administram. Nesse caso, laikós são as pessoas que fazem parte de um
grupo social, mas que não tem dentro dele uma função de administração, isto
é, de autoridade.

Em algumas versões gregas do Antigo Testamento, o termo, nas poucas vezes


em que é usado, indica realidades não consagradas a Deus. , nesse senti-
do, se coloca no âmbito do . Nos escritos cristãos dos dois pri-
meiros séculos, nas raras vezes em que o termo aparece, indica o povo en-
quanto distinto dos sacerdotes o�ciais do culto. A partir do século 3º, o termo
laikós passa a indicar o cristão que não pertence ao clero.

A história do termo, portanto, evidencia uma dupla conotação:


• alguém que pertence ao povo;
• alguém que pertence a uma categoria distinta de outra dentro desse mes-
mo povo.

Se pertence ao povo numa perspectiva, na outra é alguém que não faz parte do
polo ministerial ou hierárquico. Com muita perspicácia, o teólogo italiano
Bruno Forte a�rma que a História do laicato católico se inscreve justamente
entre as várias articulações desses dois polos (cf. FORTE, 1987, p. 22).

5. O termo "leigo" na Bíblia


A consciência de ser o povo eleito e de ter estabelecido com Deus uma aliança
faz com que o povo de Israel se autocompreenda como povo de Deus, separado,
por Ele congregado e, portanto, o povo santo. Israel concebe-se como proprie-
dade de Deus, seu rebanho, sua vinha, seu �lho, sua esposa, um reino de sacer-
dotes. Dessa realidade, participam todos os membros do povo. Tal concepção
de ser o povo escolhido, separado e consagrado, é expressa na língua grega
com a palavra laós, a que se contrapõe o ta etné. Laós indica, então, o povo es-
colhido e consagrado, enquanto o são os outros povos,
.

Em relação ao termo laikós, nas poucas vezes em que é usado no Antigo


Testamento, indica as realidades não consagradas a Deus que existem no seio
do seu povo. Percebe-se a existência, aqui, de dois conceitos que precisam ser
considerados: o termo indica uma realidade não consagrada; porém, quando
os laikós forem membros do laós (povo consagrado), são consagrados, santos,
propriedade do Senhor.

Sem usar o termo laikós, o Novo Testamento retorna à concepção do Antigo


Testamento. Os que foram regenerados em Cristo, pela ação do Espírito Santo,
constituem:

A raça eleita, o sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular proprie-
dade, a �m de que proclame as excelências daquele que vos chamou das trevas pa-
ra a sua luz maravilhosa, vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o Povo de
Deus (1Pd 2, 9-10).
Em outras palavras, aqueles que antes eram o ta etné, agora são o laós.

Nos primeiros séculos, a Igreja aplica a si as categorias com as quais o povo de


Deus de�nia a própria identidade. Por ter sido convocada pelo Pai, por meio do
Filho e consagrada pelo Espírito por meio do batismo, a comunidade cristã
tem consciência de ser o corpo de Cristo; a diversidade dos membros corres-
ponde a convicção de formar um só corpo (1Cor 12,13). Do mesmo modo, como
Cristo foi ungido pelo Espírito em vista de sua missão, a unção do Espírito que
o Cristão recebe no batismo o torna Igreja e o consagra, considerando sua mis-
são no mundo. É central, no Novo Testamento, a ideia de que os cristãos for-
mam o povo consagrado a Deus pela ação do Espírito que os incorpora a
Cristo. Essa é a novidade cristã, na qual todos participam por meio do batismo.
O fato de ser membro do povo signi�ca ser uma pessoa consagrada.

Em primeiro lugar, está, portanto, a consciência da unidade:

Indo às origens, o cristão logo percebe que de leigo nada se fala no Novo
Testamento: não há nenhum indício do termo! Nem traço algum de qualquer reali-
dade que se pudesse transpor e fazer corresponder ao fato leigo contemporâneo!
Pelo contrário, os elementos com que de�nimos atualmente os leigos como uma
categoria especí�ca na maior parte estão ausentes dos escritos neotestamentários,
quando não são neles explicitamente contestados (FAIVRE, 1992, p. 17).

Como base de tudo está a consciência de formar um só corpo, no sentido de


comunhão. Embora esse seja o elemento fundamental da autocompreensão
eclesial, o Novo Testamento testemunha uma rica variedade de carismas e
ministérios. A unidade na consagração e a partilha de uma mesma dignidade
não anulam a rica e variada articulação realizada pelo Espírito no âmbito do
Corpo de Cristo, que é a Igreja:

Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas


o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo
em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos
(1Cor 12,4-7).
Essa realidade nos permite concluir que no Novo Testamento aparece clara a
compreensão de que o mesmo Espírito que, pela consagração, forma o novo
povo de Deus suscita, no interior dele, uma variedade de carismas e ministéri-
os em vista da edi�cação do Corpo de Cristo.

6. O leigo nos primeiros séculos do cristianis-


mo
A autocompreensão da Igreja dos primeiros séculos põe em evidência, de mo-
do particular, a dimensão comunitária. Antes de pensar em qualquer distin-
ção, a comunidade dos discípulos de Jesus sente-se um só corpo. Enquanto do
ponto de vista teológico começa-se a elaborar uma teoria sobre a distinção de
funções e responsabilidades, do ponto de vista organizativo, a hierarquia
a�rma-se gradualmente, assim, permanece na Igreja uma grande diversidade
de ministérios.

De modo particular, dois fatores levam a evidenciar a unidade das diferenças


internas. O primeiro refere-se ao fato de os cristãos viverem em contexto de
perseguição e sentirem-se hostilizados pelos demais. A perseguição foi um fa-
tor praticamente constante até a segunda década do século 4º. O polo de dis-
tinção por excelência se coloca, portanto, na relação Igreja × Mundo. O segun-
do fator refere-se à necessidade que as primeiras comunidades sentiam de
evidenciar a novidade cristã e, por consequência, a�rmar a sua identidade, em
contraposição ao mundo circunstante. Em relação aos primeiros séculos do
cristianismo, pode-se, portanto, a�rmar que a separação entre clero e leigo não
se manifestava nem mesmo em nível da linguagem: "todos os cristãos eram
irmãos, discípulos de Cristo, santos" (ANTONIAZZI, 1994, p. 17).

Nesse período, apesar de ser clara a consciência da diversidade de ministéri-


os, a ênfase era colocada no polo da unidade. A tensão está no exterior, no per-
seguidor que ameaça e no gentio que deve ser evangelizado.

Esse sentido de unidade era favorecido, também, pelo fato de que as grandes
expressões de vida cristã estão tanto para os leigos como para os sacerdotes.
Muitos leigos se destacam no campo teológico e, também, no do ensinamento
e do testemunho de fé. Os leigos Justino, Clemente de Alexandria, Panteno e
Tertuliano estão entre os maiores teólogos dos primeiros séculos. Assim, tam-
bém, Orígenes era reconhecido como grande teólogo e pregador, bem antes de
ser ordenado presbítero. Entre os mártires, que é a expressão por excelência
da vida cristã, encontram-se tanto ministros ordenados quanto leigos. A signi-
�cativa representatividade do leigo no campo teológico e no testemunho da fé
faz com que o leigo conte com um alto nível de apreço por parte de toda a
Igreja nos primeiros séculos do cristianismo.

7. A reviravolta do século 4º
A partir do século 4º, começa-se a desenhar um novo cenário na História do
cristianismo, e grandes mudanças não tardam a chegar. Em 313, Constantino,
provavelmente, já convertido ao cristianismo, assina o Édito de Milão, pelo
qual concede liberdade religiosa a todo o território do Império Romano. Por
obra de Teodósio, em 389, o cristianismo torna-se a religião o�cial do Império
e, a partir de 391, qualquer outra forma de culto passa a ser proibida.

É fácil perceber a grande mudança que ocorre. A ameaça do martírio exigia,


do cristão, consciência e convicção na fé, pois ninguém coloca a vida em risco
sem motivos signi�cativos. Porém, no momento em que o cristianismo passa
a ser a religião do Império, torna-se cômodo e até vantajoso ser cristão. A con-
sequência disso é que a grande massa pede e recebe o batismo sem a prepara-
ção devida e sem viver um real processo de conversão. O batismo é buscado
simplesmente por conveniência. Dessa maneira, as coisas mudam. Se até o
início do século 4º receber o batismo comporta um gesto heroico, a partir de
então, para a grande maioria, torna-se um rito vazio, recebido por pura conve-
niência.

Essas mudanças sociais trazem imediatamente consequências dentro da pró-


pria Igreja, na qual começam a surgir distinções marcantes. Enquanto alguns
– os cristãos mais conscientes – buscam manter o alto nível de vida cristã re-
cebido dos Apóstolos, os demais – a maioria – são cristãos apenas de nome.
Desloca-se, assim, a área dos con�itos. A relação entre Igreja e mundo deixa
de ser con�itiva, pois, com a liberdade religiosa no Império, cessam as perse-
guições, e o mundo deixa de ser percebido como hostil.
A dialética desloca-se, então, para o interior da própria comunidade eclesial,
no fato de que a maioria das pessoas busca o batismo por conveniência, e não
por convicção, sem assumir a novidade de vida que é própria do cristianismo.
Desse modo, há uma marca negativa que incide de modo particular sobre os
leigos. Passa-se a ver a própria Igreja de forma fundamentalmente dualista: de
um lado, estão os monges e os sacerdotes, que são considerados os espirituais,
e de outro, os leigos, denominados carnais. Os primeiros são vistos como os
realizadores dos ideais evangélicos, enquanto que os segundos, os comprome-
tidos com a realidade mundana. É fácil perceber aqui a ótica negativa a partir
da qual se passa a olhar para o leigo, considerado um cristão de segunda clas-
se.

Infelizmente, a distinção entre essas duas categorias de cristãos crescerá cada


vez mais nos séculos seguintes, fortalecida por alguns fatores:

• a cultura passa a ser privilégio quase exclusivo dos sacerdotes e monges,


que são letrados; ao passo que os leigos são tratados como ignorantes;
• a liturgia, cada vez mais, evidencia o papel do presidente da celebração,
enquanto os leigos, por não conhecerem o latim – língua na qual a litur-
gia era celebrada –, tornam-se meros expectadores;
• o hábito, usado pelo clero a partir do século 5º, diferencia esses letrados
ainda mais dos leigos;
• os privilégios do clero, obtidos desde os tempos de Constantino.

Cada um a seu modo, esses fatores intensi�caram a distância entre o clero e


os leigos.

Nesse contexto, alguns teólogos se esforçam por manter viva a consciência da


dignidade e da importância do apostolado laical. Almeida (2006) mostra que
esse é, por exemplo, o caso de João Crisóstomo (350-407):
Segundo o grande pregador, tanto o monge como o cristão que vive no mundo têm
a mesma obrigação de tender à perfeição, de praticar o jejum e a esmola (solidarie-
dade). Crisóstomo é quem percebe com maior clareza e enfatiza com mais vigor a
necessidade do apostolado laical, de�nindo sua natureza e ilustrando seus aspec-
tos: a vida exemplar de cada dia, que converte mais do que o discurso douto; a ação
capilar junto aos distantes e aos transviados para conquistá-los à fé; a ajuda e o
conforto oferecidos aos irmãos e irmãs em di�culdade; a colaboração com o clero,
que tem necessidade da oração, do conselho, não menos que da crítica dos leigos e
leigas. De fato eles são os conselheiros dos bispos e os guardiões da disciplina ecle-
siástica. (2006, p. 62)

Apesar dessa clareza teológica em alguns, a tendência que se a�rma gradual-


mente até tornar-se dominante é a de valorizar sobremaneira a vida sacerdo-
tal e monacal em detrimento da dignidade laical.

8. Os leigos na Idade Média


A decadência cultural
Com a decadência do Império Romano, ocorrem as grandes invasões, e a cul-
tura greco-romana desmorona. Os romanos desprezam os invasores,
chamando-os de bárbaros; estes, por sua vez, não conseguem entender a cul-
tura romana e mantêm diante dela uma postura hostil. A convivência torna-
se con�itiva. Essa realidade de caos ameaça arrastar tudo, inclusive os valo-
res espirituais e morais que a Igreja transmitira à sociedade romana (cf.
MATOS, 2005, p. 137). Para se ter uma ideia da magnitude da mudança, basta
pensar no fato de que a sociedade se encontra diante do desmoronamento da
instituição que, por quase um milênio, foi a referência fundamental, do ponto
de vista político, social e cultural.

Nesse contexto de decadência, sente-se a necessidade de fortalecer a dimen-


são institucional para evitar que tudo desabe. A �gura do bispo é fortalecida
cada vez mais:
Como líder da população cristã, o bispo tinha de combater a violência dos domina-
dores bárbaros em busca de um modus vivendi [...]. Todos buscamos o bispo com
sua miséria, sua fome e pobreza, sua angústia e desespero (MATOS, 2005, p. 137).

A população coloca suas esperanças sob o báculo do bispo. O cristianismo já


não é mais o mesmo. Nesse período, os leigos dividem-se, fundamentalmente,
em dois grupos:

Um grupo mais fervoroso, que vive à sombra dos mosteiros e das igrejas, em um es-
tado de "conversão" ou "penitência", e a massa do povo, que apenas recebe alguma
instrução religiosa por ocasião da recepção de um sacramento (ALMEIDA, 2006, p.
80).

Em nenhum desses dois grupos encontramos uma expressão signi�cativa da


vida laical.

Com a decadência do Império Romano, entra-se em um período de enorme de-


clínio cultural, sentido de modo particular entre os leigos. Sua formação é tão
ín�ma que eles passam a ser comparados ao jumento e ao boi. O analfabetis-
mo espalha-se de tal forma que os clérigos e monges passam a ser os únicos
letrados. Os leigos são, então, colocados em uma condição de inferioridade e
passam a ser denominados com a expressão idiotoi, que signi�ca "iletrados",
ou seja, analfabetos. A língua latina, considerada, naquele período, a língua
dos doutos, é ignorada pelos leigos, os quais se tornam meros expectadores da
liturgia, celebrada em latim. Em decorrência disso, a partir do século 8º, os lei-
gos são rebaixados ao nível de ouvintes silenciosos.

Os dois gêneros de cristãos


Essa crescente distância entre monges de um lado e leigos de outro levará o
canonista Graciano, no século 12, a falar de dois gêneros de cristãos: um deles,
ligado ao serviço divino e dedicado à contemplação e à oração, abstém-se de
todo o barulho das realidades temporais, representado pelo clero e pelos mon-
ges; o outro, ao qual pertencem os leigos, é consentido possuir bens temporais,
casar, cultivar a terra, funcionar como juízes nas questões e defender as pró-
prias causas. O segundo gênero de cristão poderá salvar-se se evitar os vícios
e �zer o bem.

Graciano foi professor de leis canônicas da Universidade de Bolonha, Itália, a sua obra,
Concordia discordantium canonum, publicada entre 1140 e 1150, sob o título Decretum
Gratiani, tornou-se o livro canônico mais estudado, até a publicação do código de direito
canônico. Grande canonista, Graciano foi o primeiro sistematizador do direito eclesiástico.

Como você pode notar, na concepção de Graciano, os leigos são excluídos de


qualquer participação ativa na ordem do sagrado. A eles não cabe o ideal da
santidade; a meta mais alta à qual podem aspirar é a salvação da própria al-
ma, se evitarem os vícios e �zerem o bem, como descrito anteriormente. Os ca-
rismas e ministérios presentes de forma abundante na Igreja dos mártires são
agora institucionalizados e absorvidos pelos monges e pelo clero.

No século 12, surgem diversos movimentos laicais que reivindicam:

• uma espiritualidade adequada para os leigos;


• a possibilidade de viver de forma radical o Evangelho;
• o direito de almejar a santidade, permanecendo leigos.

Na realidade, é a reivindicação pelo direito de serem leigos e, como tais, aspi-


rarem e viverem a vida cristã na sua plenitude.

É desse "húmus" que nasce o grande servo dos pobres, São Francisco de Assis.
Recusando-se a escrever uma regra para os seus discípulos, ele demonstra
participar da sensibilidade do seu tempo, que clama por uma vida cristã au-
têntica e plena, como faziam os monges.

Os leigos na re�exão teológica


Entre os principais fatores que impossibilitaram a Igreja de aproveitar de for-
ma positiva esse momento realmente carismático de busca de autêntica vida
cristã por parte dos leigos, estão:

• uma visão negativa do mundo;


• a perda do conceito, muito claro entre os , de que a santi-
dade consiste na vivência da caridade;
• o pouco conhecimento teológico;
• a falta de zelo pastoral por parte do clero.

Nesse contexto, São Tomás de Aquino dá uma contribuição signi�cativa, ao


recuperar a compreensão teológica da santidade cristã e dizer que ela consis-
te, essencialmente, na vivência da caridade e, instrumentalmente, só na vi-
vência dos conselhos evangélicos (CONGAR, 1976, p. 80).

Dizer que a santidade consiste na vivência da caridade implica o reconheci-


mento de que é possível vivê-la em qualquer lugar e, sobretudo, em qualquer
estado de vida. Esse princípio teológico abre espaço para a plena recuperação
da dignidade laical, mas, infelizmente, logo é esquecido. Prevalece a ideia de
que a vida cristã se expressa por excelência na fuga mundi e, por consequên-
cia, exalta-se sobremaneira a vida monacal e sacerdotal em detrimento da vi-
da laical. Em decorrência disso, os leigos continuam a ser tratados como cris-
tãos de segunda classe. Dessa maneira, o máximo que podem aspirar é a sal-
vação pessoal.

Novas perspectivas para os leigos


Do ponto de vista religioso, a Idade Média é, fundamentalmente, marcada pela
subordinação do leigo ao clero, com normas rigorosas e costumes constantes.
Alguns fatores, porém, abrem espaços para novas perspectivas. Do ponto de
vista social, a criação das universidades nos séculos 11 e 12 oferece ao leigo
um espaço mais amplo para a sua formação cultural, o que lhe favorece uma
maior participação, seja no campo do direito, seja nas discussões ideológicas.

Do ponto de vista religioso, as ordens mendicantes apresentam um novo olhar


e uma nova postura, despertando o sentimento de que os leigos são cristãos
como os clérigos e os religiosos. Francisco de Assis (1181-1226), juntamente
com seus companheiros, deseja viver o Evangelho e não aspira funções orde-
nadas na Igreja. Para poder pregar sem embaraço, o pobre de Assis deixa-se
ordenar diácono (cf. ALMEIDA, 2006, p. 106). São, também, inúmeras as con-
frarias e movimentos nascentes, reunindo milhares de leigos em busca da
santidade.
Com um maior acesso à instrução, abre-se para os leigos a possibilidade de ler
o Evangelho. O contato direto com a Boa Nova os leva a perceber a distância
entre o que a Igreja, enquanto instituição, apresenta e o ideal de vida transmi-
tido e vivido pelas comunidades apostólicas. Esse contato direto com as fon-
tes da vida cristã leva a uma grande efervescência laical. Povoados inteiros
desejam recuperar o alto nível de vida de fé manifestado pelas primeiras co-
munidades.

Esses movimentos conhecerão desfechos que os levarão para caminhos dife-


rentes: os que tiveram acompanhamento pastoral e apoio teológico permane-
ceram em comunhão com a Igreja e manifestaram expressões signi�cativas
de vida cristã; os que não tiveram suporte pastoral e teológico, na sua maioria,
acabaram distanciando-se da Igreja e caindo na heresia (cf. ALMEIDA, 2006, p.
117).

Outro destaque dado aos leigos aparece com o surgimento das grandes cate-
drais:

Arquitetos e mestres-de-obras, escultores e artistas, pintores e mosaicistas, vitralis-


tas e artesãos, operários e peões forasteiros, que levantaram esses monumentos de
fé e de piedade que são as igrejas e os batistérios medievais, provêm de um povo
animado pela fé (ALMEIDA, 2006, p. 117).

As grandes catedrais são verdadeiras manifestações de fé, alimentadas, em


seguida, pelo surgimento de uma piedade popular baseada no devocionismo.

Essas diversas manifestações mostram como os cristãos da Idade Média, ape-


sar do menosprezo que lhes é tributado, não deixam de buscar um ideal de
santidade por motivos diversos, suscitado:

• pelas devoções a Cristo Cruci�cado;


• pelo temor provocado pelas imagens de inferno e consequente medo da
perdição eterna ou do castigo divino;
• pelo desejo de viver determinados valores do Evangelho que estavam es-
quecidos naquele momento histórico, como é o caso da pobreza, da sim-
plicidade, da fraternidade e da paz.
O fruto de tudo isso será a crescente consciência da possibilidade de viver o
Evangelho estando no mundo sem ser do mundo (cf. Jo 17,15), que se desenvol-
ve, de modo particular, no século Os leigos buscam e reivindicam uma espiri-
tualidade laical por meio do retorno às origens evangélicas. Esse desejo de
santidade faz com que os leigos também voltem a ser admitidos às honras do
altar. Entre os anos 1400 e 1520, somente na Itália, dos noventa santos canoni-
zados, 27 são leigos e leigas. Almeida nota que, se há um número tão expressi-
vo de leigos canonizados, maior ainda deve ser o número dos santos e santas
anônimos, cujos nomes estão escritos no céu (2006, p. 153).

9. Os leigos na Idade Moderna


Uma nova visão de mundo
A Idade Moderna se apresenta com novidades profundas, que gradualmente
terão sua repercussão no interior da Igreja.

O eo desencadeiam um processo de volta à cultu-


ra clássica e de uma progressiva valorização do mundo, da História e do hu-
mano enquanto tal. Fica para trás a ideia dominante na Idade Média, que con-
cebia a vida presente apenas em função da vida eterna. Essas ideias serão for-
talecidas pelo , que defende a plena autonomia do mundo em rela-
ção a Deus e à religião:

1. : possibilidade de estudar e explicar cienti�camente


a realidade, sem a dependência da Igreja ou de qualquer expressão religi-
osa.
2. : para a mentalidade iluminista, a ordem social não é
divina, mas construída pelos próprios homens, portanto, sujeita a mudan-
ças e alterações substanciais; como sujeito da História, o homem constrói
e modi�ca a sociedade em que vive.
3. : o poder político não vem do mundo divino, mas
do próprio povo que elege seus representantes para governar em seu no-
me; admite-se apenas um governo legitimado constitucionalmente, sub-
metido ao controle do povo por meio de eleições periódicas.
4. : o fundamento da ética, para os iluministas, não deve
mais ser buscado nas leis divinas, mas na própria racionalidade humana.
Por trás dessa reivindicação de autonomia, está o princípio estabelecido por
René Descartes: a razão é o único critério da verdade. Em outras palavras, so-
mente pode ser tido como verdadeiro o que pode ser provado ou demonstrado
pela razão.

Como você mesmo pode notar, estamos diante de uma mudança de paradig-
ma. Na Idade Média, Deus é a verdade, e a sua vontade, interpretada e ensina-
da pela autoridade; a razão tem seu espaço de importância, mas ela está, fun-
damentalmente, a serviço da fé, daí a concepção de que a Filoso�a é a serva da
Teologia.

O mundo moderno parte de outro princípio: nem Deus, nem a autoridade; a ra-
zão é o critério e fundamento de toda a verdade.

Desejo de reforma na Igreja


Na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, de todos os lados, a ex-
pectativa de uma reforma na Igreja une os �éis leigos, o clero e os religiosos,
bem como os escritos ilustres e professores universitários. O V Concílio de
Latrão (1512-1517) fez algumas tentativas de reforma, mas estas permanece-
ram, em grande parte, irrealizadas.

A reforma que começa a a�orar nas primeiras décadas do Século 16 não parte
do centro, mas da periferia, de nações que não toleram mais as imposições de
Roma. A reforma é um profundo desejo de um retorno à pureza originária da
Igreja primitiva. Mais que uma reforma doutrinal ou teológica, busca-se uma
renovação da prática eclesial. Não há na mente dos reformadores a intenção
de dividir a Igreja; o que buscam é uma renovação dentro dela, à luz do grande
ideal de vida cristã vivido pelas primeiras comunidades, assim como são
apresentadas pelos Atos dos Apóstolos (cf. ALMEIDA, 2006, 168).

Você mesmo pode perceber que o ideal de retorno ao passado, expresso pelo
Renascimento e Humanismo como um retorno à cultura clássica, aparece no
interior da Igreja em manifestações diversas, retorno esse ao ideal cristão vi-
vido pelas primeiras comunidades cristãs tanto pela Sagrada Escritura quanto
pelos Padres da Igreja.
A Reforma Protestante
Entre os reformadores, aparece a �gura do alemão Martinho Lutero
(1483-1546). Acentuando de forma exacerbada a dimensão invisível da Igreja
em contraposição aos que, de forma unilateral, privilegiam a dimensão social
e visível dela, contesta qualquer forma de fundamentação divina na autorida-
de do papado de Roma. Somente Cristo é a cabeça da Igreja, não havendo ou-
tro. Em outras palavras, ninguém pode ser vigário de Cristo nem pedra ou fun-
damento da Igreja espiritual. No seu entendimento, o papado tem origem hu-
mana, e sua função se restringe à Igreja de Roma, que, pela forma como vive,
não é a verdadeira Igreja. Entre os sinais que edi�cam a Igreja – o batismo, a
eucaristia e, principalmente, o Evangelho –, não está o papado romano (cf.
ALMEIDA, 2006, p. 173).

Outro aspecto contestado por Lutero se refere ao sacerdócio. Numa atitude de


certa forma polêmica, privilegia o sacerdócio universal dos �éis e defende a
ideia de que entre leigos e ministros ordenados não existe nenhuma diferença
essencial. Na visão do autor, a ideia de hierarquia sacerdotal é invenção hu-
mana, motivada pela sede de poder. O reformador não reconhece, no ministé-
rio eclesiástico, um caráter estritamente sacerdotal, menos ainda permanente.

Negando o sacramento da ordem, a�rma que o ministério eclesiástico é ape-


nas um ofício público, sendo alguém encarregado pela comunidade, dentro da
qual todos são igualmente sacerdotes. O ministério eclesiástico é apenas um
serviço à Palavra e ao sacramento que a pessoa eleita pela comunidade exerce
em nome e em prol de seus membros, os quais, graças ao batismo, participam
do sacerdócio de Cristo e constituem o povo sacerdotal. O que habilita a pes-
soa a ser escolhida pela comunidade é o batismo. Não há, na opinião do autor,
portanto, nada de hierárquico no ministério eclesiástico, pois vige absoluta
igualdade entre todos os membros do povo de Deus. Segundo o reformador, o
título de sacerdotes deve ser atribuído a todos os �éis, enquanto que, para os
investidos das funções ministeriais, é mais adequado usar os títulos neotesta-
mentários de ministros, servos, administradores e pastores (cf. ALMEIDA,
2006, 176s).

A Contrarreforma
Mesmo que Lutero não tivesse intenção de fundar uma nova Igreja, a cisão
acontece e provoca fortes consequências dentro da Igreja Católica. De um lado,
há uma reação positiva que buscará uma progressiva renovação eclesial, na
qual é incluída uma maior preocupação pela formação de todos na vivência
da fé; de outro, percebe-se que a Protestante gerou traumas que ne-
cessitarão de séculos para serem amenizados. A mesma Igreja que no segun-
do milênio viu romper-se sua unidade no Oriente, na primeira parte do século
16 vê rompida, também, sua unidade no Ocidente. A autoridade eclesial, con-
testada de fora pelo mundo moderno, passa a ser contestada também no inte-
rior da Igreja pelos protagonistas da Reforma Protestante.

No âmbito externo, a Igreja sente-se hostilizada pelo mundo moderno, que


a�rma a sua autonomia, de certa forma, em contraposição à autoridade eclesi-
al; a partir do seu interior, sente-se ameaçada pela divisão interna provocada
pela Reforma Protestante, que nega a legitimidade da autoridade pontifícia,
bem como a dimensão hierárquica do sacerdócio ministerial. Asim, a Igreja
viverá alguns séculos marcada por uma atitude fundamentalmente defensiva
e a�rmativa. Defesa e a�rmação serão um binômio que trará sérias implica-
ções à vida da Igreja. Defesa em relação ao mundo moderno devido a suas
posturas autônomas e adversas à própria Igreja, também aos protestantes que
contestam a autoridade eclesial juntamente com princípios teológicos, litúrgi-
cos e práticas pastorais; a�rmação, sobretudo, da própria autoridade e da sua
capacidade de interpretar e ensinar as verdades divinas.

Com horizontes muito limitados, nesse período, a teologia católica pratica-


mente se limita a expor, de�nir e defender as verdades propostas pelo
Magistério. Como você mesmo pode notar, isso implica a perda das dimensões
crítica e investigativa, as quais devem sempre acompanhar a re�exão teológi-
ca.

A Reforma Tridentina, também denominada Contrarreforma, iniciada no sé-


culo 16, constitui-se numa mobilização geral da comunidade eclesial com o
objetivo de tornar a massa dos �éis mais conscientes da própria fé, a �m de
defendê-la dos erros e formá-la na riqueza do mistério cristão. É nesse contex-
to que surge o .
Do ponto de vista pastoral, o século 17 apresenta uma religião exigente, marca-
da pela abnegação de si mesmo e pela morti�cação. A Teologia, no seu todo,
está, fundamentalmente, preocupada com a ordem e a obediência dentro e fo-
ra da comunidade eclesial. Para agravar a situação, o jansenismo, com seu po-
sicionamento altamente pessimista em relação ao mundo e à própria natureza
humana e rígida do ponto de vista moral, acentua a di�culdade da salvação
para quem vive no mundo. Essa situação da Teologia, fortalecida pelas in-
�uências jansenistas, suscitam, nos leigos, atitudes de fechamento diante do
mundo moderno e, ao mesmo tempo, uma excessiva preocupação com a sal-
vação individual em detrimento da dimensão comunitária e social da fé. Esse
clima de preocupação em relação à ordem e à obediência atinge, também, os
manuais de espiritualidade, que acentuam fortemente a dimensão ascética
em detrimento da dimensão mística da vivência cristã.

Formados nesse contexto, os leigos, até o �nal do século 18, na sua maioria,
mostram-se empenhados em viver a fé cristã no âmbito privado. Buscam vi-
ver de forma coerente a própria fé, mas ela tem uma conotação fundamental-
mente individualista e, por consequência, não se sentem, ainda, envolvidos
nas grandes questões da sociedade. A Igreja busca, com relativo sucesso, pro-
teger os seus �éis da nova mentalidade proposta pela cultura moderna e pela
Reforma. A sociedade moderna e a Igreja trilham caminhos independentes,
num clima de mútua hostilidade, caracterizado por, de um lado, desprezo e, de
outro, condenações. A Igreja Católica e as Igrejas reformadas ocupam-se em
evidenciar as diferenças e limites entre umas e outras, numa atitude altamen-
te defensiva. No interior da Igreja Católica, os leigos mantêm uma atitude de
submissão diante de uma hierarquia eclesiástica que a�rma cada vez com
mais força a sua autoridade.

A efervescência laical a partir do século 19


A mentalidade e a atitude dos leigos mudam durante o século Um dos aconte-
cimentos, externo à realidade eclesial, mas com forte repercussão dentro dela,
é a Revolução Francesa. Iniciada em 1789, constitui-se num dos ícones mais
signi�cativos da Filoso�a Iluminista. Seu lema – e
– espelha a nova cultura da sociedade moderna: pelo princípio da
igualdade, combate a dominação da nobreza e qualquer forma de privilégio
baseado em critérios de casta, determinados pelo nascimento; pelo princípio
da fraternidade, defende a igualdade de direitos e a dignidade de todos os que
levarão à condenação da tortura e da escravidão; pelo princípio da liberdade,
defende o direito de cada cidadão a expressar suas crenças, ideias e convic-
ções. A sociedade laica �rma suas raízes de forma progressiva.

No interior da Igreja, no século 19, assiste-se a um grande �orescimento de or-


ganizações leigas, que buscam responder aos desa�os da sociedade do seu
tempo. Um número signi�cativo de leigos conscientes de sua fé, bem prepara-
dos intelectualmente e com experiência de participação ativa na vida social
percebe a necessidade de se organizar e formar tanto associações quanto mo-
vimentos para ter mais força diante das di�culdades apresentadas pela socie-
dade.

A partir da nova consciência de participação política, favorecida pelos Estados


modernos, os leigos começam a propor soluções e a tomar iniciativas diante
dos problemas religiosos que emergem no campo sociopolítico. São eles que
buscam defender a Igreja diante da mentalidade hostil que se a�rma no mun-
do moderno e conservar uma estrutura cristã na sociedade, favorecendo a for-
mação e educação da consciência dos �éis. Essas organizações se colocam
em três âmbitos fundamentais: caritativo, político e apostólico.

Os leigos do século 19 contestam a mentalidade tradicionalista, ainda domi-


nante no mundo eclesial, que via sua �gura apenas como um destinatário da
ação pastoral, destinado a obedecer às orientações do clero. Cresce entre eles a
consciência de serem plenamente membros da Igreja e de sua consequente
corresponsabilidade diante dos desa�os que ela enfrenta no contexto da socie-
dade moderna.

A pobreza generalizada na Teologia, porém, traz como uma de suas con-


sequências a pouca valorização do batismo. Em resposta à postura luterana,
acentua-se de forma exacerbada a dignidade do ministério ordenado em detri-
mento da consagração batismal. Uma das consequências disso é que o aposto-
lado não é visto como uma missão da Igreja em sua totalidade e, por con-
sequência, de todos os batizados, mas como missão da hierarquia. É o momen-
to em que se confunde eclesial com eclesiástico, isto é, quando se fala da
Igreja e, na verdade, refere-se apenas ao clero. A debilidade da teologia do ba-
tismo, neste momento histórico, leva à perda da consciência de que todo cris-
tão é membro do Corpo Místico de Cristo e dele participa plenamente tanto em
nível de dignidade quanto de corresponsabilidade. A metáfora dominante com
que se fala da Igreja – Sociedade Perfeita – deixa no esquecimento o fato de
que ela é, antes de tudo, comunidade de fé, Povo de Deus.

Dentro dessa compreensão teológica, a participação no apostolado se dava pe-


la ordenação sacerdotal e não pelo batismo. Aos leigos restava a possibilidade
de participar no apostolado da hierarquia. Tal participação, porém, era consi-
derada como uma concessão e não como algo próprio, decorrente do próprio
batismo.

Os leigos do século 19 se encontram diante de uma situação particular. De um


lado, pela consciência que possuem da importância da participação ativa nos
rumos da sociedade – experiência essa que ocorre nas sociedades mais de-
mocráticas após a Revolução Francesa –, desejam participar de forma igual-
mente ativa da vida e do apostolado da Igreja. Mas a pobreza teológica de boa
parte do período moderno, que leva a a�rmar que o apostolado é prerrogativa
do clero, leva a hierarquia a posturas adversas para com os leigos.
Esse contexto faz com que o entusiasmo que leva os leigos a baterem à porta
da Igreja, reivindicando um espaço para participar de forma ativa do apostola-
do por certo tempo não seja bem acolhido. É emblemática a expressão do
Núncio Apostólico da Bélgica, monsenhor Fornari, ao escrever à secretaria de
Estado, em 1839: "Estamos, infelizmente, numa época em que todos se crêem
chamados ao apostolado" (TESSAROLO, 2011).
Agrava ainda mais a situação o fato de que, na visão eclesiológica do tempo, o
poder de decisão está completamente centralizado no clero. É emblemática,
nesse sentido, a frase de Gregório XVI:

Ninguém pode ignorar que a Igreja é uma sociedade desigual na qual Deus desti-
nou alguns para comandar, outros para obedecer. Estes são os leigos, aqueles os
clérigos (ALMEIDA, 2006, p. 79).

Na mesma linha, como �el represente da mentalidade eclesial do seu tempo,


pronuncia-se também o Papa Pio X:
A Igreja, por força de sua própria natureza, é uma sociedade desigual. Compreende
duas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho, os que estão colocados nos vá-
rios degraus da hierarquia, e a multidão dos �éis. E estas categorias são tão distin-
tas entre si, que somente na hierarquia residem o direito e a autoridade necessários
para promover e dirigir todos os membros de acordo com os �ns da sociedade.
Quanto à multidão, não tem outro direito se não o de deixar-se conduzir e guiar do-
cilmente pelos seus pastores (1906, n. 22).

Essa é, também, a postura fundamental dos demais papas do século 19, bem
como da primeira parte do século 10: Pio IX, Leão XIII, Bento XV e Pio XI (cf.
SCOPINHO, 2011, p. 582-586).

É preciso reconhecer que a hierarquia eclesial tem uma postura contraditória.


Ao mesmo tempo em que exige dos leigos uma postura crítica e independente
diante da cultura e sociedade moderna, demanda uma atitude de submissão e
passividade no interior da Igreja, relegando-os a simples executores da pala-
vra pontifícia.

Além da limitação teológica, a hierarquia da Igreja necessitou de um bom


tempo para aprender a distinguir os leigos dos laicistas, isto é, entre os que por
estarem conscientes de sua fé buscam participar de forma efetiva na missão
da Igreja e os que, tendo uma postura adversa, buscam construir uma socieda-
de laica, deixando a Igreja à margem dela. Esse grupo manifesta uma postura
fundamentalmente hostil em relação à religião, com uma conotação marcada-
mente anticlerical.

Independentemente da de�ciência da re�exão teológica, até mesmo da carên-


cia de um efetivo apoio por parte da hierarquia, os leigos foram conquistando
seu espaço de participação autônoma na vida e na missão da Igreja.
"Autônoma" indica aqui o direito e a possibilidade de pensar tanto quanto es-
truturar o apostolado com método e espiritualidade próprios.

Leigos e Ação Católica


Os leigos, a partir do �nal do século 18 e, sobretudo, ao longo do século 19, pas-
sam a se organizar em associações e movimentos autônomos que, no seu con-
junto, formarão a , a qual nasce como resposta às novas exigên-
cias pastorais diante de uma sociedade marcada pelo avanço do secularismo
e anticlericalismo. Para contrapor-se a tais tendências, por iniciativa dos lei-
gos e, muitas vezes, com a colaboração de sacerdotes, nascem uma in�nidade
de associações que tinham como objetivo comum o crescimento pessoal na fé
e no apostolado. Como você pode notar, são dois objetivos muito importantes:
de um lado, favorecer o fortalecimento e amadurecimento na vivência da fé;
de outro, participar ativamente na missão da Igreja.

É importante perceber que, ao falarmos de , no contexto do sécu-


lo 19, não entendemos um movimento em particular, mas um conjunto de as-
sociações e movimentos. Nesse sentido, podemos de�nir a Ação Católica co-
mo os vários movimentos e associações que os leigos católicos promoveram
de modo particular, a partir da segunda metade do século 19, com �nalidade
de formação e animação pastoral.

Como mencionamos anteriormente, seu início e amplo desenvolvimento esti-


veram conexos à emergência de uma maior consciência da participação do
leigo na vida e missão da Igreja, fruto da sua nova postura diante da socieda-
de, oferecida pelo Estado moderno. Esse fenômeno, que foi comum à maioria
dos países europeus, encontrou na Itália seus precursores nas
, iniciadas em Turim, em 1779, numa iniciativa de Pio Bruno Lanteri,
apoiada pelo jesuíta Nikolaus Von Diessbach. Os seus membros, além de bus-
carem a própria santi�cação, empenham-se na difusão da boa imprensa para
combater os inimigos da Igreja. Esses grupos, formados por seis homens e seis
mulheres, rami�cam-se em Milão, Florença, Paris e Viena (cf. TETTAMANZI,
1981, p. 383).

O programa da Ação Católica é iniciado no Brasil pelo apoio de Dom Sebastião


Leme, durante o papado de Pio XI (1922-1939), com o objetivo de incrementar a
participação dos leigos na missão da Igreja. Inicialmente, a estrutura da Ação
Católica Brasileira (ACB), criada em 1920 e o�cializada em 1935, assemelha-se
à italiana, com movimentos de juventude e de adultos, feminino e masculino:
Homens da Ação Católica (HAC), Liga Feminina de Ação Católica (LFAC),
Juventude Católica Brasileira (JCB) e Juventude Feminina Católica (JFC). No
setor da juventude, surgem as primeiras subdivisões, que já indicam uma es-
pecialização: a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Operária
Católica (JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC).

Na década de 1940 (século 20), a Ação Católica especializada é reorganizada,


inspirando-se nos modelos belga e francês, a partir dos diferentes grupos so-
ciais que constituem a sociedade brasileira, reunindo os jovens em núcleos
segundo a condição social: os operários, na Juventude Católica Operária –
JOC; os trabalhadores do campo, na Juventude Agrária Católica – JAC; os uni-
versitários, na Juventude Universitária Católica – JUC; os estudantes, na
Juventude Estudantil Católica – JEC; e os que não se enquadravam nas outras
situações, na Juventude Independente Católica – JIC.
Dentro da Ação Católica, manifestam-se duas tendências bastante distintas:

1. : movimento amplo que tenta restabelecer o


espírito cristão na sociedade. Essa formulação já nos leva a entender sua
postura de recusa da sociedade moderna. Fundamentalmente, luta para
restaurar o regime da . As principais características
que podemos identi�car nesta tendência são:
• a �delidade ao papa;
• a dependência à hierarquia eclesiástica;
• o esforço de defesa da religião diante do estado liberal.
Apesar da tendência mais tradicionalista de tais associações, é preciso
reconhecer diversos valores signi�cativos:
• consciência da necessidade de organismos intermediários entre o indi-
víduo e o Estado;
• interesse pela imprensa católica;
• preocupação em opor à economia liberal uma sociologia católica atenta
aos valores éticos;
• real aprofundamento religioso;
• tomada de consciência do laicato de sua responsabilidade social;
• colaboração entre sacerdotes e leigos;
• realizações úteis no campo social.
2. : buscava um maior diálogo com a sociedade mo-
derna e propunha:
• uma liturgia compreensível e participativa;
• um clero instruído e livre de intromissões políticas;
• superação das reivindicações temporais da Santa Sé.
A forjou, progressivamente, uma espiritualidade,
desafeiçoando-se da ascese das ordens religiosas e da religiosidade popular,
subjetivamente devocional. Apresentando-se como uma vivência espiritual
permeada de anseio apostólico moderno em benefício dos outros e tendo co-
mo referência a pessoa de Jesus Cristo, ela exercia certa in�uência sobre a hi-
erarquia, enquanto a induzia a passar de uma posição fundamentalmente de-
fensiva em relação à sociedade para uma atitude positiva de animação evan-
gélica da vida cotidiana.

O ideal da santidade passa a ser visto não mais a partir da perspectiva apre-
sentada pela antiga hagiogra�a, mas segundo novos modelos que surgiam no
interior do associacionismo e, sobretudo, uma santidade não mais vista como
prerrogativa de alguns, mas como vocação de todos.

Leigos e re�exão teológica


No campo teológico, uma voz inovadora aparece na pessoa de Antonio
Rosmini. Em sua obra As cinco chagas da Santa Igreja (1846), Rosmini propõe:

• uma maior colaboração entre o clero e os leigos;


• reivindica a revalorização do sacerdócio dos �éis e sua participação mais
ativa na liturgia por meio do uso da língua dos �éis;
• reclama para o laicato uma participação ativa na nomeação dos bispos.

Antes de continuarmos nossa re�exão, sugerimos a leitura do texto a seguir,


para que você tenha algumas informações sobre o teólogo Antonio Rosmini.

Antonio Rosmini nasceu em Rovereto no dia 24 de março de 1797 e faleceu em ju-


lho de 18 Ao concluir seus estudos jurídicos e teológicos, foi ordenado sacerdote
em 18 Dada sua propensão para o mundo acadêmico, o Papa Pio VIII lhe con�ou
uma missão: conduzir os homens à religião por meio da razão. Pela sua sensibili-
dade aos problemas humanos, culturais, pastorais e eclesiais de seu tempo e, tam-
bém, pela lucidez teológica com que propôs determinadas mudanças, o Papa
Paulo VI o de�niu, na audiência de 1972, como profeta. Suas ideias anteciparam de
um século as discussões realizadas pelo Concílio Vaticano II. O desgosto que sen-
tia, vendo a separação entre os �éis e o clero nas celebrações litúrgicas, pela im-
possibilidade de os primeiros entenderem as orações feitas em latim, sugeriu o
uso das línguas próprias de cada povo, proposta essa que foi acolhida por esse
Concílio cem anos mais tarde. Pela novidade de algumas ideias teológicas sobre a
reforma da Igreja não compreendidas naquele momento, sua obra foi colocada no
Índex – lista de obras proibidas pela Igreja – em 1849, pela Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé. O Papa João Paulo II, porém, em sua Carta Encíclica Fides
et ratio, colocou-o entre os pensadores que conseguiram realizar uma fecunda
síntese entre o saber �losó�co e a palavra de Deus. A importância desse autor, in-
felizmente esquecido em nosso tempo, pode ser percebida pela própria relação que
tiveram com ele os últimos papas do século 20: João XXIII assumiu suas
como própria regra de comportamento; Paulo VI elo-
giou a intuição rosminiana pela importância que dava à missão caritativa da con-
gregação por ele fundada (Instituto da Caridade); Albino Luciani, eleito papa, assu-
miu o nome de João Paulo I, concluiu seu Doutorado em Teologia pela
Universidade Gregoriana de Roma com a tese: A origem da alma humana segundo
Antonio Rosmini. No dia 9 de novembro de 2007, foi beati�cado pelo Papa Bento
XVI. Sua principal obra pode ser lida também na versão espanhola: ROSMINI, A.
Las cinco llagas de la Santa Iglesia. Barcelona: Península, 19

Essas informações podem lhe ajudar a compreender melhor a importância


desse autor em seu momento histórico e, também, nos dias atuais.

Em relação ao Magistério, algumas novidades signi�cativas começam a apa-


recer no ponti�cado de Pio XII. A primeira delas é a nova visão eclesiológica
apresentada pela Carta Encíclica Mystici Corporis (1943), na qual a Igreja co-
meça a ser apresentada como Corpo Místico de Cristo; a segunda refere-se à
sua postura, em relação à Ação Católica, expressa na Constituição Apostólica
Bis Saeculari Die (1948), na qual reconhece uma pluralidade de estruturas e
métodos que devem ser respeitados.

Certamente, você percebeu a novidade: enquanto os papas anteriores continu-


aram falando da submissão do apostolado laical à hierarquia eclesiástica, Pio
XII começa a reconhecer a positividade da autonomia laical, que gerou ex-
pressões diversas de associações e de apostolado.

No campo teológico, o século 20 assiste a uma verdadeira renovação, guiada


por dois movimentos fundamentais:

• um, podendo ser chamado , possui três expressões prin-


cipais: a Sagrada Escritura, a e a Escolástica;
• e o outro é caracterizado pela com o mundo moderno.

Dessa renovação, nascem uma série de inovações – na Eclesiologia, na


Pneumatologia, na Cristologia e na Sacramentaria – que serão fundamentais
para uma nova teologia do laicato. Essa re�exão será acolhida e desenvolvida
pelo Concílio Vaticano II, pelos sucessivos documentos do Magistério e pela
re�exão teológica pós-conciliar.

Em relação especí�ca ao leigo, uma série de teólogos oferecem contribuições


signi�cativas. O teólogo belga Edward Schillebeeckx (1965), por exemplo,
apresenta uma visão positiva. Como membro da Igreja, ele participa ativamen-
te de sua missão, juntamente com os demais. Nessa colocação, �ca para trás a
ideia de que a missão é algo que pertence ao clero e com a qual os leigos po-
dem apenas colaborar. Assim, a participação na missão se torna inerente ao
seu próprio ser.

Karl Rahner (1956), certamente o maior teólogo do século 20, apresenta a rela-
ção com o mundo como elemento distintivo do leigo. Seu apostolado mais es-
pecí�co não se realiza no ambiente eclesial, mas no mundo, partindo do papel
e das responsabilidades que ele ocupa na sociedade. Se o leigo se dedica uni-
camente ao apostolado dentro da Igreja, ele abandona o seu campo especí�co
de trabalho, deixando, na realidade, de ser leigo.

Merece, porém, particular destaque a obra escrita pelo teólogo Yves Congar,
publicada em 1953, traduzida e publicada no Brasil 13 anos depois, Os leigos na
Igreja (1966). O autor destaca alguns elementos que contribuíram signi�cativa-
mente para a redescoberta do leigo ao longo do século 20, reconhecendo:

• a contribuição dos grandes líderes que deram início e vigor à Ação


Católica;
• papel fundamental ao duplo movimento litúrgico e apostólico, ou missio-
nário.

A partir da volta às fontes litúrgicas, desenvolve-se o sentimento de que os lei-


gos são verdadeiramente Igreja, o povo consagrado de que fala o Cânon da
Missa, e reconhece-se sua parte ativa nesse ato central da vida da Igreja, que é
a liturgia. O movimento litúrgico favoreceu a tomada de consciência do misté-
rio da Igreja e do caráter eclesial do laicato (CONGAR, 1966, p. 2).

O movimento missionário levou os cristãos a redescobrir a grandeza e as exi-


gências da responsabilidade apostólica de anunciar Cristo ao mundo tanto
quanto a necessidade de cooperar na obra de Cristo e da Igreja (CONGAR, 1966,
p. 2).

A solidez e a abrangência com que o autor aborda a vocação laical colocam as


bases para uma re�exão teológica mais fundamentada, de horizontes mais
amplos, que terá repercussões decisivas na compreensão da vida laical, no
Concílio Vaticano II. Esse é o primeiro concílio a tratar de forma ampla a reali-
dade dos leigos, na perspectiva de uma nova eclesiologia. Esse Concílio assu-
me, embora ainda com certa resistência, a renovação que ocorria, fosse no
campo teológico ou no pastoral, de modo particular, por meio da Ação Católica,
e dá novo impulso à promoção e descoberta dos carismas dos leigos a partir
de uma nova re�exão teológica que apresenta a Igreja como inteiramente mi-
nisterial.

A partir dessa nova re�exão teológica, o laicato passa a ser apresentado não
tanto na sua dependência do clero, mas num horizonte mais amplo, no aspec-
to mais cristológico que eclesiológico. Pelo batismo, a pessoa é incorporada a
Cristo e participa do Seu múnus sacerdotal-profético e régio. Como con-
sequência, torna-se membro da Igreja, entendida como Mistério, Comunhão,
Povo de Deus, que é, essencialmente, missionária (AG, 2). Pelo simples fato de
pertencer a ela, o leigo participa do seu apostolado, exercido por todos os seus
membros em modos e ministérios diversos (AA, 2; em, 73; LG, 31; AG, 35). A �-
gura do �el leigo passa a ser vista, a partir da nova visão eclesiológica do
Concílio Vaticano II, na sua realidade de comunhão e missão (cf. L, 18-44). Na
Igreja do Brasil, é o documento da CNBB, de 1999: "Missão e Ministérios dos
cristãos leigos e leigas".

10. Considerações
A re�exão que realizamos nesta Unidade 1 mostra como o leigo foi considera-
do de forma bem diversi�cada ao longo da História do cristianismo. O modo
como o leigo é visto em cada momento histórico depende de uma série de fa-
tores, que envolvem a vivência da fé, o nível cultural do laicato, a visão eclesi-
ológica predominante, bem como a visão da Igreja em relação ao mundo.
A Unidade 2 tem como foco a teologia do laicato, buscando apresentar de for-
ma mais ampla e positiva a identidade e a missão do leigo.
Até lá!
(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-

g03273-fev-2024-grad-ead/)

Unidade 3 – Os Leigos na Igreja: Abordagem Teológica

Objetivos
• Compreender o termo "leigo".
• Interpretar a história do leigo na Igreja.

Conteúdos
• Teologia do laicato.
• Consagrados e inseridos em Cristo.
• Leigo, Igreja e missão.
• Espiritualidade e santidade de vida.

Orientações para o estudo


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orienta-
ções a seguir:

1. Recomendamos a leitura diária da Bíblia; leitura gratuita, orante, contem-


plativa. O teólogo é uma pessoa que tem fé e que descobre, a cada passo
de sua pesquisa, que, no �nal das contas, é possuído por Aquele que pensa
possuir.
2. Para poder estudar bem, sugerimos, inicialmente, uma rápida leitura do
texto desta unidade. Mesmo que você não entenda tudo neste primeiro
contato, não desanime. Procure rever o conteúdo das unidades anteriores,
de suas leituras, de seus trabalhos e de suas discussões com os colegas
de curso e com o tutor. Tudo o que você aprendeu voltará nesta unidade
em uma nova perspectiva.
1. Introdução
Anteriormente, buscamos apresentar um panorama histórico sobre o leigo.
Agora, nesta unidade, você será convidado a estudar alguns conteúdos relaci-
onados à re�exão teológica. A nova visão eclesiológica que se a�rma na se-
gunda parte do século 20 e, sobretudo, no Concílio Vaticano II, juntamente com
um aprofundamento da teologia do batismo formam o suporte teológico para
uma nova visão do leigo na Igreja.

Pelo batismo, o cristão torna-se membro pleno da Igreja e participa inteira-


mente de sua vida e missão. Unido a Cristo pelo batismo, é chamado à plenitu-
de da vida cristã com uma espiritualidade própria.

Desejamos um bom desenvolvimento no estudo desta unidade!

2. Teologia do Laicato
O esboço histórico sobre o leigo na vida da Igreja mostrou-nos que o leigo foi
considerado de forma diversi�cada ao longo da História do cristianismo. Se
quisermos que o leigo realmente tenha o seu lugar reconhecido na Igreja, é
fundamental que tenhamos clareza do ponto de vista teológico sobre sua iden-
tidade e dignidade. Esse é o foco desta unidade, que iniciamos agora.

3. Consagrados e inseridos em Cristo


Para traçar de forma adequada as linhas fundamentais da identidade do cris-
tão leigo, bem como os contornos de seu campo de atuação, é fundamental
identi�car a fonte da qual emerge o seu ser e agir. Tal fonte é encontrada nos
Sacramentos da Iniciação Cristã, pela qual a pessoa é inserida em Cristo, ungi-
da pelo Espírito e, por isso, constituída Povo de Deus.

Essa condição do leigo não é prerrogativa, enquanto os leigos e os sacerdotes


partilham da mesma condição. O que acontece, porém, é que, no passado, a vi-
são predominantemente negativa que se tinha do leigo, juntamente com o
destaque que era dado à vida religiosa e sacerdotal, havia obscurecido a rique-
za que é comum a todos os batizados e marca não apenas a comum dignidade,
mas também o sentido primeiro de pertença plena da comunidade eclesial, do
discipulado e do compromisso apostólico.

O Concílio Vaticano II evidencia-se pela própria estrutura da Constituição


Apostólica Lumen Gentium. O primeiro capítulo, dedicado ao Mistério da
Igreja, chama a atenção para a relação primeira da comunidade eclesial, a
qual não pode ser entendida apenas como realidade humana, pois sua origem
e relação estão no mistério da Trindade. É para Ele que a comunidade eclesial
precisa olhar, a �m de entender não apenas sua origem e identidade, mas o
seu ideal e o seu dinamismo, isto é, sua fonte de energia para a contínua reno-
vação.

O segundo capítulo é dedicado ao Povo de Deus. Forte (1987, p. 40) nota que an-
tepor esse capítulo ao da hierarquia e ao do laicato representa uma verdadeira
revolução copernicana, pois, dessa forma, a Igreja restitui o primado à ontolo-
gia da graça. Isso signi�ca que esse Concílio, em primeiro lugar, olhou para a
Igreja na sua totalidade, isto é, toma como ponto de partida o que é comum a
todos os seus membros. Na base de tudo está a consagração batismal, que é a
consagração primeira, a qual torna todos os membros da Igreja santos, eleitos,
comunidade sacerdotal.

Dessa forma, o tema do leigo foi colocado na perspectiva certa, na medida em


que seu âmbito natural é justamente o da "eclesiologia total, onde a unidade,
procedente do Pai por Cristo no Espírito, aparece antes da distinção" (cf.
FORTE, 1987, p. 40). Essa colocação não desconhece a riqueza da pluralidade
que existe na comunidade, mas, pelo contrário, vivi�ca-a, enquanto a coloca
na dinâmica da comunhão e do serviço. Dentro dessa concepção, todos os ba-
tizados são Igreja e participam tanto das riquezas quanto responsabilidades
que a consagração primeira comporta, na variedade de carismas e ministéri-
os.

Nessa nova perspectiva da primazia da consagração – ontologia da graça –


pela qual se põe em evidência que todos os membros da Igreja partilham de
igual dignidade e de uma comum vocação à plenitude da vida cristã na santi-
dade de vida, o já não é mais su�cientemente ade-
quado para referir-se à realidade eclesial, pois não evidencia su�cientemente
a unidade e a riqueza, que é comum a todos os membros da Igreja. Na verdade,
esse binômio destaca, em primeiro lugar, a distinção, sem dar à unidade pri-
meira o destaque que merece. Em seu lugar, Forte (1987, p. 42) propõe o
. Este, antes de mais nada, apresenta a unidade e,
só num segundo momento, a diversidade. Há uma realidade primeira, que é a
unidade da comunidade, que procede da comum consagração e, em decorrên-
cia disso, da comum dignidade e vocação à santidade. A palavra "ministério"
vem em segundo lugar, não por ser menos importante, mas por causa da di-
versidade de funções e serviços que pressupõe a realidade da comunhão.

Dentro dessa perspectiva, a relação entre os ministérios ordenados ou não, hi-


erárquicos ou laicais, não é marcada pela dialética da superioridade e inferio-
ridade, mas pela complementaridade na diversidade. Esse binômio apresenta
uma Igreja toda ministerial, a serviço do Reino na pluralidade de formas.

Se ao binômio hierarquia-laicato acrescentarmos a palavra , formare-


mos um que nos ajuda a melhor compreender outras realidades da
comunidade eclesial. A palavra "carisma" chama a atenção para a forma livre
(cf. Jo 3,8) e plural (cf. 1Cor 12,4-11) com que o Espírito continuamente enrique-
ce, dinamiza e renova a sua Igreja. Esse trinômio mantém clara a unidade da
consagração batismal e, ao mesmo tempo, evidencia a livre iniciativa do
Espírito, que concede uma pluralidade de dons com vistas ao bem comum. A
vida consagrada é uma expressão eminente dessa ação do Espírito, que, pelos
seus dons, suscita expressões diversas de vida cristã capazes de renovar a
Igreja e adequá-la às necessidades especí�cas de sua missão.

Partícipes do sacerdócio de Cristo


O Novo Testamento aplica o título de sacerdote e o substantivo "sacerdócio"
tanto a Cristo quanto aos cristãos:
Chegai-vos a ele, a pedra viva, rejeitada, é verdade pelos homens, mas diante de
Deus eleita e preciosa. Do mesmo modo, também voos, como pedras vivas,
constituí-vos em um edifício espiritual, dedicai-vos a um sacerdócio santo, a �m de
oferecerdes sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo [...] Mas vós
sois a raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular
propriedade, a �m de que proclameis as excelências daquele que vos chamou das
trevas para a sua luz maravilhosa, vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o
Povo de Deus (1Pd 2,4-5.9-10).

Há uma série de outros textos neotestamentários que atribuem ao povo o título


de sacerdote ou o substantivo "sacerdote" (cf. Ap 1,5b-6; 5,9-10; 20,6). A esses
textos, pode-se acrescentar uma série de outros que usam uma linguagem ex-
plicitamente sacerdotal (cf. Ef 2,18-22; Fl 2,3; Tm 12,1; 4,13; Hb 13,15-16). A partir
dos textos bíblicos e também da re�exão teológica realizada, buscaremos, ago-
ra, entender o sentido do sacerdócio laical nos seus : ,
e .

A participação dos �éis leigos no tríplice múnus de Cristo Sacerdote, Profeta e


Rei encontra a sua raiz primeira na unção do batismo, o seu desenvolvimento
na con�rmação e a sua perfeição e sustento dinâmico na eucaristia. É uma
participação que se oferece a cada um dos �éis leigos, mas enquanto forma-
rem o único corpo do Senhor. Com efeito, é a Igreja que Jesus enriquece com
os Seus dons, qual Seu Corpo e Sua Esposa. Assim, os indivíduos participam
no tríplice múnus de Cristo enquanto membros da Igreja, como claramente en-
sina o Apóstolo Pedro, que de�ne os batizados como "raça eleita, sacerdócio
real, nação santa, povo que Deus adquiriu" (1 Pd 2, 9). Precisamente, por deri-
var da comunhão eclesial, a participação dos �éis leigos no tríplice múnus de
Cristo exige ser vivida e atuada na comunhão e para o crescimento da mesma
comunhão. Escrevia Santo Agostinho: "Como chamamos a todos cristãos em
virtude do místico crisma, assim a todos chamamos sacerdotes porque são
membros do único Sacerdote" (JOÃO PAULO II, 1988, nº 14).

Em Cristo, sacerdotes
O Novo Testamento, bem como os escritos dos padres apostólicos e subapostó-
licos utilizam as palavras "sacerdote" e "sumo sacerdote" para indicar os sa-
cerdotes levíticos, bem como para indicar os sacerdotes pagãos. Quando, po-
rém, referem-se ao âmbito cristão, utilizam unicamente em relação a Cristo ou
à comunidade dos �éis. O Novo Testamento, bem como os escritos dos primei-
ros dois séculos, não usa o termo em relação aos que hoje nós chamamos de
sacerdotes, designados pelo nome para o qual foram ordenados: diáconos,
presbíteros e epíscopos.

O fato de que o título sacerdote, aplicado a Cristo, seja aplicado também à co-
munidade dos �éis indica que algo que pertence a Cristo, pelo batismo, é co-
municado a todos os membros do seu corpo (cf. Hb 10,22). Esse é um traço ca-
racterístico da economia divina: o que é dado a um só, em seguida é estendido
a todos. Cristo é Filho, mas pelo batismo, nele, também nós fomos feitos �lhos;
Cristo é o único templo, mas nele também os �éis são templos; Cristo é o único
sacerdote, mas pela união com ele também os �éis são sacerdotes (CONGAR,
1966, p. 177).

Seguindo esse raciocínio, é a Teologia a qual encontramos na "Carta aos


Hebreus". Se pelas normas do Antigo Testamento, apenas ao sumo sacerdote
era permitido entrar no Santo dos Santos, separado por um véu – onde estava
a Arca da Aliança, lugar por excelência da presença de Deus –, uma realidade
nova se faz presente pelo Mistério Pascal. Pela sua morte, Cristo rompeu o véu
e não apenas entrou no verdadeiro Santo dos Santos, o templo que não é feito
por mãos humanas, mas nos abriu o caminho e, pelo batismo, nos deixou livre
acesso. Como a�rma Congar: "não se pode dizer com maior clareza que somos
todos sacerdotes no único sumo-sacerdote, Jesus Cristo" (1966, p. 178). A per-
gunta que cabe aqui é justamente a que coisas se refere esse sacerdócio? Os
textos bíblicos falam de culto e sacrifício espirituais, agradáveis a Deus, de
hóstias vivas e santas (cf. Rm 12,1; Fl 3,3; 1Pd 2,5). Trata-se do louvor dos lábios,
da con�ssão de fé e das obras de misericórdia, assim como a entendiam os
profetas de Israel: a caridade, a partilha, a esmola e a obra de misericórdia, por
excelência, o ensino, isto é, o anúncio da Boa Nova. O verdadeiro serviço passa
assim da oferta de sacrifícios no templo – oferta de coisas ou animais – para a
construção na fé dos �éis de um templo no qual o próprio �el vivo se oferece
livremente a Deus.

Podemos, então, dizer que, do ponto de vista bíblico, a vivência do sacerdócio


(estamos falando aqui do sacerdócio dos �éis) realiza-se por meio de uma vida
santa, marcada pelo louvor dos lábios e da vida que se expressa nas obras de
misericórdia e na comunicação da fé. Diante desse contexto, podemos salien-
tar que o sacerdócio se concretiza na própria vida vivida na fé, na esperança e
na caridade; é a vida cristã consagrada a Deus e oferecida aos irmãos
(ALMEIDA, 2005, p. 205).

O verdadeiro sacrifício na época patrística consiste no ordenar-se para Deus,


isto é, viver a vida de tal forma que ela seja uma contínua oferta a Deus. É den-
tro dessa perspectiva que o martírio, oferta suprema da vida, tenha sido apre-
sentado, nos primeiros séculos do cristianismo, como ato sacerdotal (CONGAR,
1966, p. 182ss.).

Re�etir sobre esse conceito nos permite a�rmar que o sacerdócio comum dos
�éis não se confunde com o ministerial: "É de outra natureza. É de outra or-
dem. Situa-se na ordem da existência, não da função. É existencial, não mi-
nisterial" (ALMEIDA, 2005, p. 205). As duas palavras, "função" e "ministerial",
apontam para os aspectos distintivos entre um e outro.

O louvor a Deus que brota da vida se torna liturgia, assim como ela precisa
sempre estender-se pela vida. Falando do sacerdócio dos �éis, o Concílio
Vaticano II harmoniza adequadamente essas duas realidades:

[...] consagrados a Cristo e ungidos pelo Espírito Santo, os leigos são admiravelmen-
te chamados e munidos para que neles se produzam sempre mais abundantes os
frutos do Espírito. Assim todas as suas obras, preces e iniciativas apostólicas, vida
conjugal e familiar, trabalho cotidiano, descanso do corpo e da alma, se praticados
no Espírito, e mesmo os incômodos da vida pacientemente suportados, tornam-se
"hóstias espirituais agradáveis a Deus, por Jesus Cristo" (1Pdr 2,5), hóstias que são
piedosamente oferecidas ao Pai com a oblação do Senhor na celebração da
Eucaristia. Assim também os leigos, como adoradores agindo santamente em toda
parte, consagram a Deus o próprio mundo (PAULO VI, 1964, n. 34).

Em Cristo, profetas
Em relação ao conhecimento da fé, encontramos na Sagrada Escritura uma
série de textos que apontam para duas realidades, distintas entre si, mas com-
plementares do ponto de vista eclesial: todos são esclarecidos e ativos, dentre
eles, alguns têm um Magistério:
Eis que virão dias – oráculo de Iahweh – em que selarei com a casa de Israel (e
com a casa de Judá) uma aliança nova [...] Eu porei a minha lei no seu seio e a es-
creverei em seu coração. Então eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Eles
não terão mais que instruir seu próximo ou seu irmão, dizendo: "Conhecei a
Iahweh!" Porque todos me conhecerão, dos menores aos maiores (Jr 31,31-34).
Não terás mais o sol como luz do dia, nem o clarão da lua te iluminará, porque
Iahweh será a tua luz para sempre e o teu Deus será a o teu esplendor (Is 60,19).
Depois disto, derramarei o meu espírito sobre todos. Vossos �lhos e vossas �lhas
profetizarão, vossos anciãos terão sonhos e vossos jovens terão visões (Jl 3,1; cf. At
2,17ss).

Diversos outros textos, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, falam da


ação de Deus, que intervém no coração humano, pela ação do seu Espírito, pa-
ra instruir e iluminar. Quem segue a Jesus tem a sua luz (cf. Jo 8,12; 12,35-36);
quem recebe a unção do Espírito recebe também a ciência (cf. 1Jo 2,27); todos
são ensinados por Deus (1Ts 4,9; Jo 6,45); todos receberam em abundância os
dons da inteligência e da sabedoria (1Cor 2,10-16; 1,4-5; Ef 1,8). Algumas expres-
sões são particularmente incisivas:

Quanto a vós, a unção que recebestes dele permanece em vós, e não tendes neces-
sidade de que alguém vos ensine; mas como sua unção vos ensina tudo, e ela é ver-
dadeira e não mentirosa, assim como ela vos ensinou, permanecei nele (1Jo 2,27).

Os �éis conhecem a voz de seu Pastor (Jo 10,4), possuem a capacidade de dis-
cernimento (1Jo 2,18-27) e a faculdade de julgar (1Cor 10-16).

A comunhão eclesial, porém, é orgânica e, como ocorre com o corpo, embora


os membros partilhem todos da mesma dignidade, suas funções são diferen-
tes. Assim, no Corpo de Cristo, enquanto todos são instruídos por Deus, por
meio do seu Espírito, alguns são constituídos de autoridade (Magistério; Jesus
Cristo, o Verbo – Palavra de Deus), associando a si um grupo de seguidores que
são denominados Apóstolos, os quais participam de sua missão e recebem a
incumbência de estendê-la, vencendo as fronteiras do espaço e tempo tanto
quanto anunciando a Boa Nova, aquela que consolida a comunidade dos discí-
pulos, con�rmados na fé (cf. Mt 16,19; 18,18; Mc 16,15-16). É ao redor deles que a
Igreja se organiza depois de Pentecostes (cf. At 2,42; 4,37; 5,12-15; 8,14-19). Os
mesmos Apóstolos instituem outros, os quais darão continuidade à missão de
ensinar com autoridade (At 20,28-31; Tt 1,5-9; 2,15; 3,10-11). Em casos de neces-
sidade, os mesmos Apóstolos reivindicam o respeito pela sua autoridade (cf.
2Cor 11,4; Gl 1,9; Ap 22,18-19; Cl 1,3b-10).

Na busca em compreender melhor, podemos salientar o modo como os leigos


e os que recebem a missão da sucessão apostólica participam do múnus pro-
fético de Cristo. Os bispos e os sacerdotes, enquanto seus colaboradores, têm a
missão e, também, a responsabilidade de ensinar com autoridade, de discernir
e con�rmar os irmãos na fé. Os leigos, por sua vez, ensinam não pelo título da
autoridade instituída e o�cializada, mas pelo título da fé interiorizada e vivida.
Em outras palavras, ensinam uma vida e uma atividade de fé que expressam
as riquezas da Boa Nova criativamente vivida, interpretada e aprofundada ao
longo do tempo, sob a contínua ação do Espírito. Não podemos esquecer que,
entre os doutores da Igreja – título reservado a quem deu uma contribuição
original na compreensão do mistério de Deus, o�cialmente reconhecida pela
Igreja –, estão pessoas que não fazem parte do magistério hierárquico; basta
lembrar as três representantes femininas:

1. Teresa de Ávila.
2. Catarina de Siena.
3. Teresa de Lisieux.

Pela função profética da Igreja, compreende-se toda "atividade nela suscitada


pelo Espírito Santo, pela qual ela conhece e faz conhecer Deus e seu propósito
de graça" (CONGAR, 1966, p. 384). Na linguagem bíblica, profeta signi�ca pes-
soa que fala em nome de Deus e anuncia o seu projeto.

A Igreja participa da função profética de Cristo e a exerce mediante o anúncio,


o ensinamento e o testemunho de vida. O Concílio Vaticano II diz que a missão
profética de Cristo não se encerra na vida terrena, mas se estende até a plena
manifestação da glória (PAULO VI, 1964, n. 35). O Verbo realiza esse ministério
por meio do testemunho de todo o povo de Deus, e de cada um dos �éis, os
quais, pelos sacramentos da Iniciação Cristã, são unidos a Cristo e feitos partí-
cipes do seu sacerdócio. Pode-se, portanto, dizer que os �éis, além de recebe-
rem, pela participação no mistério de Cristo, uma dignidade particular, partici-
pam de sua missão.
A participação no múnus profético de Cristo, "que, pelo testemunho da vida e pela
força da palavra, proclamou o Reino do Pai", (PAULO VI, 1964, n. 35) habilita e empe-
nha os �éis leigos a aceitar, na fé, o Evangelho e a anunciá-lo com a palavra e com
as obras, sem medo de denunciar corajosamente o mal. Unidos a Cristo, o "grande
profeta" (Lc 7, 16), e constituídos no Espírito "testemunhas" de Cristo Ressuscitado,
os �éis leigos tornam-se participantes quer do sentido de fé sobrenatural da Igreja
que "não pode errar no crer" (PAULO VI, 1964, n. 12), quer da graça da palavra (cf.
Act 2, 17-18; Ap 19,10); eles são igualmente chamados a fazer brilhar a novidade e a
força do Evangelho na sua vida quotidiana, familiar e social, e a manifestar, com
paciência e coragem, nas contradições da época presente, a sua esperança na gló-
ria também por meio das estruturas da vida secular (JOÃO PAULO II, 1988, nº 14).

Participar da dignidade profética de Cristo exige do �el leigo um processo con-


tínuo de conformação a Cristo, de modo que possa testemunhar na sua vida a
Boa Nova na qual crê e deseja anunciar (cf. MALNATI, 2005, p. 36ss.). O múnus
profético dos leigos "adquire características especí�cas e e�cácia particular
pelo fato de se realizar nas condições comuns do século" (PAULO VI, 1964, n.
35).

Em Cristo, pastores
O Reino de Deus está no centro da vida e da pregação de Jesus. Durante sua vi-
da pública, fala dele de forma abundante. Aponta sinais para que os seus con-
temporâneos possam reconhecer sua presença entre eles (Mt 12,28); diz da di-
�culdade de certos grupos sociais entrarem nele (cf. Mt 19,24; 21,31), enquanto
reconhece a proximidade de alguns (cf. Mc 12,34) e, ao mesmo tempo, uma
certa conaturalidade por parte de outros (cf. Mc 10,14); compara-se a um ho-
mem que lança sementes à terra (cf. Mc 2,26), ao grão de mostarda que, quan-
do semeado, é a menor de todas as sementes, mas, ao crescer, torna-se a maior
das hortaliças (cf. Mc 4,31s); declara ser o Reino o verdadeiro motivo de sua
vinda (cf. Lc 4,43). Interrogado por Pilatos, a�rma que seu Reino não é desse
mundo (cf. Jo 18,36). Como se não bastasse ter falado constantemente do
Reino durante sua vida pública, nas palavras de Lucas, depois de sua ressur-
reição, "durante quarenta dias apareceu-lhes e lhes falou do que concerne ao
Reino de Deus" (At 1,3). Nas palavras do Apóstolo das Nações, Paulo de Tarso, o
Reino estará �nalmente realizado quando tudo estiver submetido a Cristo e,
então, Deus será tudo em todos (cf. 1Cor 15,27s).
O Reino coloca-se na dinâmica do "já" e "não ainda": já presente, mas ainda
não plenamente realizado. Aqui se coloca a missão da Igreja e, consequente-
mente, de todos os seus membros. Como Rei do Universo, Cristo torna todos os
que a Ele são unidos pelo Espírito partícipes da sua realeza.

Ao pertencerem a Cristo Senhor e Rei do Universo, os �éis leigos participam no Seu


múnus real e por Ele são chamados para o serviço do Reino de Deus e para a sua di-
fusão na história. Vivem a realeza cristã, sobretudo no combate espiritual para ven-
cerem dentro de si o reino do pecado (cf. Rom 6,12), e depois, mediante o dom de si,
para servirem, na caridade e na justiça, o próprio Jesus presente em todos os seus
irmãos, sobretudo nos mais pequeninos (cf. Mt 25,40).

Partindo desse texto da Exortação Apostólica Christi�deles Laici, �ca claro


que o leigo realiza sua missão régia em dois âmbitos diversos, mas comple-
mentares e convergentes.

O primeiro deles é de âmbito pessoal: o leigo é chamado a vencer dentro de si o


reino do pecado, como ensina o Apóstolo Paulo:

Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às
suas paixões; nem entregueis vossos membros, como armas de injustiça, ao peca-
do; pelo contrário, oferecei-vos a Deus como vivos provindos dos mortos e oferecei
vossos membros como armas de justiça a serviço de Deus. O pecado não vos domi-
nará, porque não estais debaixo da lei, mas sob a graça (Rm 6,12-14).

É o convite ao empenho para viver a novidade de vida em busca da santidade.


Na medida em que a pessoa vence em si a desordem causada pelo pecado, es-
tá mais livre para empenhar-se, positivamente, no serviço de Deus.

O segundo âmbito é comunitário. Tendo vencido o mal e a desordem dentro de


si, ele é agora chamado a colocar toda a riqueza e pontencialidades do seu ser
a serviço da humanidade. Pela sua característica, inclusão no mundo, os lei-
gos vivem o seu no empenho concreto pela transformação da so-
ciedade. Por sua competência no âmbito secular, o Concílio Vaticano II os con-
vida a empenharem-se e�cazmente para que os bens da Criação sejam aper-
feiçoados pelo trabalho humano, pela cultura e técnica de modo que sejam co-
locados a serviço de todos. Dessa forma, Cristo, por meio dos membros da
Igreja, mais e mais iluminará toda a sociedade humana com Sua luz salvadora
(PAULO VI, 1964, n. 36).

Mas, porque o bem-estar do ser humano está profundamente interligado ao de


toda a Criação, os �éis leigos são chamados a restituir à Criação toda a sua be-
leza e harmonia originárias, ordenando-a para o verdadeiro bem do homem.
Pela sua ação, animada pela vida da graça, "os �éis leigos participam no exer-
cício do poder com que Jesus Ressuscitado atrai a Si todas as coisas e as sub-
mete, com Ele mesmo, ao Pai, para que Deus seja tudo em todos" (cf. 1Cor 15, 28;
Jo 12, 32; cf. JOÃO PAULO II, 1988, nº 14).

4. Leigo, Igreja e missão


Origem trinitária da missão
A missão da Igreja afunda suas raízes no mistério da Trindade. O Deus Pai,
Criador do Universo e de tudo o que nele existe, comunica a vida ao ser huma-
no, pelo sopro de sua boca (cf. Gn 2,7). A dimensão simbólica desta narrativa é
extremamente signi�cativa: o ser humano traz as marcas de uma relação. Ele
não possui a vida, mas a experimenta com o dom de Deus. Há uma relação que
está na origem e que precisa permanecer para que o sopro vital permaneça e o
homem viva.

De sua parte, Deus testemunha sua �delidade ao longo da História e não lhe
esconde o rosto. A mesma atitude ele espera do homem e da mulher, convida-
dos a caminharem na sua presença (cf. Gn 9,9). Na relação com sua criatura,
feita à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,27), como fruto de seu amor, Deus
quer torná-lo partícipe de sua vida divina. Diante da queda humana, que pare-
ce comprometer o projeto, Deus envia o seu que, pelo Mistério Pascal, re-
dime a humanidade e deixa na eucaristia um memorial reconciliador; envia o
, para santi�car continuamente a Igreja e conduzir os homens ao .
A Trindade se apresenta, assim, como uma comunidade em missão.

Dessas missões divinas, brota a Igreja, por sua natureza missionária (cf. AG, n.
2), enquanto é chamada a dar continuidade ao grande plano de salvação que
brota da Trindade. À imagem de Maria, que, coberta pela sombra do Espírito
Santo, acolheu Cristo em seu ventre e o doou ao mundo, a Igreja, continuamen-
te gerada pelo mesmo espírito, tem a missão de sempre doá-lo à humanidade
para que, caminhando na sua presença, realize sua vida na dignidade, vivendo
em plenitude como partícipe da vida divina.

A ação do Espírito que cria a comunhão eclesial: nas palavras de Paulo, "fo-
mos todos batizados num só Espírito para formarmos um só corpo" (1Cor
12,13); sob sua ação, a diversidade cultural e linguística não impede a comu-
nhão (cf. At 2,1-12), mas, pelo contrário, suscita o desejo de viver numa tal uni-
dade que se possa falar de um só coração e uma só alma (cf. At 2,42-47; Fl
1,27).

A ação do Espírito, que constitui a Igreja em comunhão, porém, não é privilé-


gio, mas obrigação; não é posse, mas missão (cf. FORTE, 1987, p. 77ss.). O mes-
mo Espírito que cria comunhão impele a Igreja para a missão. Fazendo memó-
ria da missão que recebeu do Pai, Jesus sopra sobre os discípulos, conferindo-
lhes o Espírito e enviando-os em missão (cf. Jo 20,21). Em Jerusalém, a vinda
do Espírito sobre a comunidade reunida abre as portas da Igreja e inaugura a
sua ação missionária (cf. At 2,1-4).

Da mesma forma como essa comunhão é experimentada e vivida, na sua for-


ma mais concreta, na , pois é nela que se experimenta a comunhão
da Palavra e do Pão na mesa da eucaristia, existe um:

Primado da Igreja local no plano da comunhão, assim também existe uma priorida-
de da igreja local no plano da missão [...] Toda a igreja local é enviada, o que signi�-
ca que, por virtude do batismo e da eucaristia, não existe ninguém na comunidade
eclesial que possa se sentir isento do compromisso missionário (FORTE, 1987, p.
78).

Assim, todo batizado é chamado a colocar a serviço da missão eclesial os


dons recebidos do Espírito. Na comunhão e, ao mesmo tempo, na correspon-
sabilidade, todos são chamados a participar da missão da Igreja. Nas palavras
de Jesus: "Nisso reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes
amor uns pelos outros" (Jo 13,35), demonstra-se que a missão não é obra de
aventureiros solitários, mas da comunidade eclesial, a ser vivida na comu-
nhão de vida e de ação, na pluralidade de carismas e ministérios.

A partir dessa concepção, �ca completamente superada a visão teológica e


pastoral que existia sobre o caráter hierárquico da missão, reduzindo os leigos
a simples colaboradores da hierarquia. Fica claro que a origem da missão está
na própria Trindade, con�ada à Igreja para que, como comunidade de fé, coor-
denada pelos seus pastores e enriquecida pela ação contínua do Espírito, o
qual concede uma pluralidade de carismas em vista de uma diversidade de
ministérios, estenda-a para além das fronteiras do espaço e do tempo para a
glória de Deus, que é a vida plena dos seus �lhos.

Os leigos e a laicidade da Igreja


A laicidade pode ser de�nida como a a�rmação da autonomia e consistência
do mundo em relação ao sagrado ou religioso. O conceito compreende a valo-
rização do saeculum – mundo – no conjunto das suas realidades, que consti-
tui a existência cotidiana de todo homem. As relações entre a Igreja e o mundo
se diversi�caram ao longo dos séculos diante das experiências concretas e
aos conceitos – ou preconceitos – que se a�rmaram em ambas as partes.

Na Idade Moderna, por longos séculos, a relação foi marcada fundamental-


mente pela hostilidade. Os representantes do pensamento moderno viam na
Igreja e nas expressões religiosas a continuidade da Idade das Trevas e da mi-
noridade do homem; a Igreja, por sua vez, via nos pensadores modernos os
fautores de uma cultura e de uma sociedade sem Deus, as quais não poderia
aceitar. Assim, de um lado, estava o desprezo e, de outro, os anátemas. Nessa
situação, por parte da Igreja, podemos dizer que houve uma recusa da laicida-
de, caracterizando uma atitude de "eclesiocentrismo", pelo qual a Igreja, auto-
de�nida como sociedade perfeita, sentia-se como um organismo autossu�ci-
ente para suas necessidades e alimentava, em relação ao mundo, uma postura
de ensinamento e juízo. Não reconhecia os valores terrenos em si, mas sim-
plesmente os avaliava partindo das verdades eternas recebidas por meio da
revelação. Autodenominando-se Domina et Magistra (Senhora e Mestra), ela
extraía das verdades reveladas respostas a todas as interrogações possíveis,
segundo uma lógica integrista que pensa possuir antecipadamente as respos-
tas para todos os problemas (FORTE, 1987, p. 57).
Essa atitude não apenas levou ao isolamento da Igreja em relação ao mundo
moderno, mas também favoreceu o processo de secularização impulsionado
pela razão emancipante do . Como a�rma Kasper, "a realidade de
um mundo sem Deus, diante da qual nos encontramos, é em parte apenas a re-
ação de um Deus sem mundo" (1975, p. 160).

O desprezo do mundo e a exacerbada valorização do sagrado trouxeram con-


sequências no interior da própria Igreja, desencadeando a supervalorização da
hierarquia – aquela que detém o poder do sagrado – e o menosprezo daqueles
que dentro dela representavam o mundo: os leigos. Isso mostra como uma
Igreja fechada para a laicidade na sua relação com o mundo torna-se Igreja
clerical no seu interior (FORTE, 1987, p. 58).

O Concílio Vaticano II assume uma postura diversa, propondo uma Igreja pre-
sente no mundo, numa metáfora, como fermento na massa, reconhecendo a
positividade de suas realidades. Assume, assim, uma atitude dialogal, saben-
do que pode ensinar, mas que tem, também, muito a aprender com o mundo.
Nessa nova postura está uma nova visão do mundo, a qual reconhece a di-
mensão crística do Universo: "em Cristo foram criadas todas as coisas e em
vista dele [...] tudo foi criado por ele e para ele" (Cl 1,16). Na Encarnação, o
Verbo assume e salva toda a realidade criada.

A Igreja se redescobre, assim, em relação ao mundo: ela é para o mundo – en-


quanto tem a missão de ser sacramento universal de salvação –, desse modo,
como o mundo, o lugar reconhecido do Evangelho. O mundo deixa, então, de
ser o rival e torna-se companheiro no diálogo da salvação.

Essa nova postura em relação ao mundo trouxe mudanças internas. Com base
em um novo conceito de Igreja, que considera todos os seus membros a partir
de sua consagração batismal – eclesiologia total –, reconhecem-se a dignida-
de e a autonomia própria de cada batizado e, por consequência, a responsabili-
dade e missão própria dos leigos. Vejamos o que nos diz a Constituição
Dogmática Lumen Gentium:
A índole secular caracteriza especialmente os leigos. Pois os que receberam a or-
dem sacra, embora algumas vezes possam ocupar-se em assuntos seculares, exer-
cendo até pro�ssão secular, em razão de sua vocação particular, destinam-se prin-
cipalmente e ex-professo ao sagrado ministério. E os religiosos por seu estado dão
brilhante e exímio testemunho de que não é possível trans�gurar o mundo e
oferecê-lo a Deus sem o espírito das bem-aventuranças. (PAULO VI, 1964, n. 31)

Nesse texto, é preciso dar o peso que merece à palavra "especialmente", pois a
relação com o mundo é própria de todos os batizados, mesmo que o seja na va-
riedade de modos e de intensidade, dependendo dos carismas pessoais e do
estado de vida de cada um.

A Igreja como um todo é chamada a assumir sua índole secular nos seus três
diferentes níveis:

1. No plano dos relacionamentos intraeclesiais: .


Forte (1987) salienta como a laicidade na Igreja implica o respeito pela au-
tonomia laical: os leigos são pessoas nas quais a dignidade e as responsa-
bilidades próprias devem ser reconhecidas e promovidas. Os direitos fun-
damentais da pessoa humana, vistos com muito apreço pelo mundo con-
temporâneo, são valores inalienáveis, e nenhuma autoridade, nem mes-
mo a mais sagrada, tem o direito de menosprezá-los. Assim, o direito à li-
berdade de crença, de expressão, de pesquisa, de opções históricas e polí-
ticas não pode ser sacri�cado em nome de uma disciplina eclesiástica
uniforme. Assumir a laicidade na Igreja implica o reconhecimento da au-
tonomia de cada pessoa, do primado da consciência e da motivação inte-
rior em relação à observância formal das regras e do reconhecimento da
responsabilidade de cada um, visando o crescimento da comunidade na
busca da verdade plena:
"A contraposição esquemática entre igreja docente e igreja discente, entre
componente ativo e componente passivo da comunidade, em todos os ní-
veis, tem que ser necessariamente superada: todos, por força da dignida-
de batismal, conforme o carisma próprio de cada um, são ao mesmo tem-
po igreja que ensina e igreja que aprende, igreja que recebe e que doa o
Espírito (FORTE, 1987, p. 64)".
2. No plano da comum responsabilidade de todos os batizados em relação
ao mundo secular: . A laicidade da Igreja indica a res-
ponsabilidade de todos os batizados e, portanto, não apenas dos leigos na
realização da missão da Igreja em relação ao mundo. Cada batizado, se-
gundo os carismas que recebeu, é chamado a dar a sua contribuição na
evangelização da comunidade humana. Todos são convocados a colocar
a serviço os dons recebidos do Espírito, num entrelaçamento criativo de
carismas e ministérios que marca a corresponsabilidade de todos os bati-
zados, até que a salvação trazida por Cristo alcance todas as realidades
humanas.
3. No plano do reconhecimento do valor próprio e autônomo das realidades
temporais: .
A visão eclesiocêntrica leva a uma inadequada compreensão da própria
identidade da Igreja e, portanto, precisa ser deixada à parte em favor de
uma eclesiologia dialógica e ministerial: Igreja em diálogo e a serviço de
toda a humanidade, não se sentindo dona da verdade, mas capaz de reco-
nhecer os valores presentes no mundo e, também, aprender com ele. Em
outras palavras, uma Igreja disposta a falar, mas também a escutar; ensi-
nar, mas também aprender. Assegurar o primado da Palavra implica uma
atitude dialogal com o mundo e a História, sem o qual o anúncio nega a
sua origem, tornando-se desencarnado, vazio e insigni�cante. Somente
na atitude de discernimento e de atenção em relação peculiaridades pró-
prias de cada momento da História humana torna-se possível um anún-
cio capaz de permear, até as suas profundezas, os usos e costumes de um
povo. Seguindo esse raciocínio, pode-se concluir que a recepção da laici-
dade do mundo é fator indispensável para uma Igreja que queira viver a
sua missão de ser sacramento universal da salvação.

Leigos: carismas e ministérios


Ao falar de carismas, estamos nos referindo a um tema que passou por vicissi-
tudes diversas ao longo dos séculos. Passa-se do apreço nos primeiros dois sé-
culos de cristianismo à sua marginalização até meados do século 20, retoman-
do o tema a partir de então.

O longo silêncio sobre os carismas

A monte dessa realidade estão situações que marcaram a História. Em mea-


dos do século 2º, a Igreja defronta-se com o montanismo. Esse movimento, ca-
racterizado por uma ascética rígida, que levava ao pleno desprezo das realida-
des do mundo em favor de uma atitude espiritualista, apresenta-se na Igreja
com a pretensão de ser a verdadeira Igreja e de se realizar nele o verdadeiro
Pentecostes. Nele estaria começando a era do Espírito Santo, deixando para
trás a era da Igreja puramente institucional, que traíra a verdadeira Igreja
(FRANGIOTTI, 1995, p. 55-59). Esse movimento teve uma in�uência tão grande
que conseguiu atrair personagens importantes, como, por exemplo, Tertuliano
(BOUYER, 1986, p. 192-194). Os problemas causados pelo montanismo não se
devem à a�rmação da realidade carismática da Igreja, e sim à negação da ins-
tituição, isto é, da sua dimensão hierárquica. Na sua visão eclesiológica, o
Espírito se contrapõe à letra e autoridade, ao institucional.

A partir da experiência que teve com o montanismo e outros movimentos es-


piritualistas ou reformadores que contestaram a autoridade, fortalece-se, na
Igreja, uma atitude de descon�ança, reserva e controle em relação a tudo o que
pode parecer uma livre manifestação do Espírito. A consequência disso são
séculos de fortalecimento da dimensão institucional em detrimento da caris-
mática. Esse processo chega ao cume no século 19, quando o eclesial é con-
fundido com o eclesiástico, o que signi�ca a Igreja se autode�nir como reali-
dade hierárquica e sociedade perfeita, que se basta a si mesmo (ALBERIGO,
1984, p. 56). A�rmar a autoridade do Magistério era outra preocupação domi-
nante no Concílio Vaticano I (PHILIPS, 1982, p. 160s), o qual reconhece que o
Espírito guia a Igreja, mas o faz por meio dos seus pastores, isto é, dos bispos
(ACERBI, 1975, p. 25). Como você pode notar, nessa visão, empobrece-se, dema-
siadamente, a relação com o Mistério Trinitário e �ca completamente esqueci-
da a realidade primeira da comunidade eclesial – ser Povo de Deus e comuni-
dade de fé.

A retomada da dimensão carismática


Tempos novos começam a se manifestar pela metade do século Pio XII, na
Carta Encíclica Mystici Corporis (1943), a�rma alguns conceitos fundamen-
tais:

• a Igreja é o Corpo Místico de Cristo;


• o Espírito Santo, além de guiar a Igreja por meio de seus pastores, guia-a,
também, por meio de todos os seus membros, agindo diretamente no co-
ração de cada um, suscitando homens e mulheres que se destacam pela
sua santidade e se tornam exemplo para outros �éis em vista do cresci-
mento do Corpo Místico.

Dessa forma, o papa a�rma a dupla estrutura da Igreja: hierárquica e carismá-


tica (PIO XII, 1943).

Essa re�exão foi aprofundada e ampliada por diversos grandes teólogos do sé-
culo 20, entre eles: Rahner, por meio de um artigo escrito em 1956, traduzido
mais tarde para o italiano (1970); De Lubac (1955) e Congar (1966). O Concílio
Vaticano II, por sua vez, fazendo referência à diversidade de dons descrita pelo
Apóstolo Paulo (Ef 4,11-12; 1Cor 12,4; Gl 5,22), a�rma que o Espírito uni�ca, ins-
trui e dirige a Igreja com diversos dons hierárquicos e carismáticos (cf. PAULO
VI, 1964, n. 4).

Nesse sentido, é muito pertinente o comentário que faz Ghirlanda, professor de


Direito Canônico da Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG): dado que a es-
trutura hierárquica tem na sua origem um dom carismático, pode-se dizer que
"a estrutura fundamental da Igreja seja uma estrutura carismática, isto é, dons
do Espírito, que por si mesmos geram uma instituição" (GHIRLANDA, 1983, p.
166).

Nas discussões conciliares, os padres a�rmaram a necessidade dos carismas


para a vitalidade da Igreja e, sem negar a possibilidade de dons extraordinári-
os, ao falar deles, referiram-se, preferencialmente, aos dons ordinários, conce-
didos pelo Espírito aos �éis para a sua ação no campo da catequese, evangeli-
zação e nas mais variadas formas da ação social e caritativa (cf. GRASSO,
1982, p.13s).

Os documentos pós-conciliares, repetidas vezes, evidenciam a riqueza que os


carismas representam para toda a comunidade eclesial (JOÃO PAULO II, 1988,
n. 24; 31; RMi, n. 18), convidam a valorizar essa diversidade concedida pelo
Espírito (JOÃO PAULO II, 1988, n. 64) e advertem que eles devem ser acolhidos
com gratidão, não somente pela pessoa que os recebe, mas por toda a Igreja
(JOÃO PAULO II, 1988, n. 24). Eles levam os cristãos a assumir, de forma ativa e
corresponsável, a sua participação no corpo de Cristo (EN, n. 73; JOÃO PAULO
II, 1988, n. 55) e a oferecer a sua insubstituível contribuição em pastorais espe-
cí�cas (FC, n. 5). Essa pluralidade de carismas leva a uma pluralidade de fun-
ções a serem respeitadas na Igreja, no reconhecimento da mesma dignidade
(LibL, n. 20).

Diante dessa rica manifestação, tornam-se sempre necessários um acurado


discernimento e uma adequada compreensão da ação do Espírito Santo na vi-
da da Igreja e de cada cristão, para reconhecer os carismas que provêm real-
mente do Espírito e que são exercidos em conformidade com os seus impulsos
(JOÃO PAULO II, 1988, n. 24). Se a tarefa do discernimento dos carismas, em úl-
tima instância, pertence aos pastores, é necessário sua realização por todos,
seja em relação aos próprios dons e seu exercício, seja aos carismas dos de-
mais membros da comunidade (JOÃO PAULO II, 1992, n. 31). Além disso, todos
os cristãos são chamados a viver o discernimento, diante das contínuas trans-
formações socioculturais, partindo dos próprios dons e contribuindo, e�caz-
mente, para uma adequada leitura dos sinais dos tempos (FC, n. 5).

Os carismas são dados às pessoas em benefício de toda a comunidade e, por-


tanto, é necessário cautela diante de grupos ou comunidades que se apresen-
tem como carismáticas em oposição à Igreja institucional, pois nessa linha
sua inspiração principal rapidamente se converte em ideologia (EN, n. 58).
Diante de grupos particularmente sensíveis às manifestações extraordinárias,
é importante recordar que a renovação no Espírito efetivamente:

[...] será autêntica e terá na Igreja uma verdadeira fecundidade, não tanto na medi-
da em que suscitar carismas extraordinários, mas sim na medida em que levar o
maior número possível de �éis, pelos caminhos da vida de todos os dias, ao esforço
humilde, paciente e perseverante por conhecerem cada vez melhor o mistério de
Cristo e por darem testemunho dele (CT, nº 73).

A nova re�exão teológica, assumida pelo Magistério, que apresenta a Igreja


como realidade toda carismática e toda ministerial (cf. FORTE, 1987, p. 86),
juntamente com a maior valorização do batismo – consagração primeira pela
qual somos con�gurados a Cristo sacerdote, profeta e rei, feitos membros da
Igreja, que é seu corpo –, cria a necessária fundamentação pneumatológica,
eclesiológica e cristológica para falar do apostolado e ministérios laicais.
"Todos na Igreja recebem o Espírito e todos devem dá-lo conforme o dom que
lhes foi conferido, no serviço correspondente a esse dom" (FORTE, 1987, p. 85).
O desenvolvimento da re�exão teológica pós-conciliar sobre a Igreja plena-
mente carismática e ministerial ocasionou a distinção assim classi�cada pela
CNBB:

• ordenados;
• instituídos;
• reconhecidos;
• con�ados.

O ordenado refere-se aos três graus do sacramento da ordem:

1. Diaconato.
2. Presbiterado.
3. Episcopado.

Os ministérios instituídos referem-se ao leitorado e acolitado que podem ser


conferidos aos leigos, obrigatórios aos candidatos ao diaconato ou presbitera-
do. Dioceses brasileiras desenvolvem um trabalho orgânico com o �m de de-
senvolver outros ministérios, a partir das necessidades da Igreja particular e
dos carismas dos membros sob sua responsabilidade. Essa prática é vista com
bons olhos pela CNBB:

A instituição o�cial de ministros leigos numa comunidade, seguindo um ritual li-


túrgico próprio [...] pode assumir um signi�cado muito grande para o fortalecimen-
to da dimensão eclesial dos ministérios leigos, contanto que faça parte de um proje-
to diocesano e seja a culminância de um processo de valorização dos leigos nas co-
munidades (CNBB, 1999, n. 88).

Os ministérios reconhecidos são os ligados a um serviço signi�cativo para a


comunidade, mas considerados não tão permanentes, podendo ser suprimi-
dos quando de mudanças nas circunstâncias. Os ministérios con�ados
referem-se aos que são conferidos ao seu portador por algum gesto litúrgico
simples ou forma canônica (CNBB, 1999, n. 87).

Esses ministérios são pessoais e indicam a riqueza de dons que o Espírito in-
funde em cada um para que sejam colocados a serviço da comunidade,
tornando-se ministérios. É, porém, possível estender a ministerialidade da
Igreja também aos grupos que, de maneira orgânica e estável, desenvolvem
um serviço para o crescimento da comunidade. Esse é o caso de movimentos
e associações eclesiais (cf. FORTE, 1987, p. 86).

Reconhecendo todo o valor da riqueza de ministérios desenvolvidos pelos lei-


gos no interior da própria Igreja, seja de forma pessoal, seja de forma associa-
da, é preciso, porém, reconhecer o âmbito que lhes é mais próprio e de índole
secular, ou seja, o empenho no mundo. A secularidade é algo intrínseco à
Igreja enquanto tal, pois sua missão está voltada para o mundo e essa dimen-
são deve ser vivida por todos os seus membros; mas os leigos, por viverem no
século – mundo –, empenhados nas mais diversas ocupações e nas condições
ordinária da vida familiar e social, com as quais é tecida sua existência, são
chamados para que aí, a partir de dentro, como a metáfora do fermento:

[...] "manifestem Cristo aos outros [...] pelo testemunho da própria vida, pela irradia-
ção da sua fé, esperança e caridade" (PAULO VI, 1964, n. 31). Dessa forma, o estar e o
agir no mundo são para os �éis leigos uma realidade, não só antropológica e socio-
lógica, mas também, e especi�camente, teológica e eclesial, pois, é na sua situação
intra-mundana que Deus manifesta o Seu plano e comunica a especial vocação de
"procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as se-
gundo Deus" (PAULO VI, 1964, n. 31).
[...]
As imagens evangélicas do sal, da luz e do fermento, embora se re�ram indistinta-
mente a todos os discípulos de Jesus, têm uma especí�ca aplicação nos �éis leigos.
São imagens maravilhosamente signi�cativas, porque falam, não só da inserção
profunda e da participação plena dos �éis leigos na terra, no mundo, na comunida-
de humana, mas também, e sobretudo, da novidade e da originalidade de uma in-
serção e de uma participação destinadas à difusão do Evangelho que salva (JOÃO
PAULO II, 1988, nº 15).

5. Espiritualidade e santidade de vida


Conceito de espiritualidade
Ao abordar esse tema, o primeiro conceito que precisa ser esclarecido é justa-
mente o da espiritualidade, pois ele se serve a interpretações diversas e, não
raro, extremamente parciais. São comuns as expressões em que espiritualida-
de e vida interior – vida de oração – são entendidas como sinônimas.
É comum, no Brasil inteiro, a expressão: "vamos fazer um momento de espiri-
tualidade" e, na verdade, trata-se do convite para "um momento de oração".
Não há dúvidas de que a oração, nas suas diversas expressões – seja ela vocal,
individual, mental (meditação e contemplação) ou litúrgica – e do ponto de
vista cristão, é essencial para a espiritualidade, mas esta não se reduz àquela:
a oração é elemento essencial da espiritualidade, mas as duas não são sinôni-
mas.

O entendimento da espiritualidade simplesmente como vida interior é uma


herança da Idade Média, quando, a partir do século 12, Teologia e espirituali-
dade seguem caminhos distintos. Esta, sem o apoio da Teologia, acabou se re-
fugiando na experiência pessoal, afetiva, interior. Reducionismos desse tipo �-
zeram com que a espiritualidade fosse vista com suspeita nos ambientes
latino-americanos (GALILEA, 1985, p. 5).

A palavra "espiritualidade" vem de Espírito. Ao convidar os cristãos a viverem


como homens espirituais (cf. 1Cor 2,13; Gl 6,1; Rm 8,9), o Apóstolo Paulo os mo-
tiva a viver sua vida no novo espírito que receberam, isto é, no Espírito do
Senhor ressuscitado. Irineu de Lião, certamente o maior teólogo do século 3º,
em detrimento do gnosticismo, o qual contrapunha a matéria ao espírito, o
corpo à alma, insiste no fato de que o homem espiritual não é aquele que de-
senvolve a alma em desfavor do corpo, que se dedica ao espírito em detrimen-
to da matéria, mas sim aquele que, sob a ação do Espírito, estabelece uma rela-
ção harmoniosa entre alma e corpo. O Espírito que continuamente age na vida
de cada um é o mesmo Espírito com que Deus criou o ser humano. Sua ação,
portanto, não vem para negar nada do que é humano, mas potencializar, isto é,
conduzir à plenitude, sua maior expressão (IRINEU, 1995, p. 530ss.).

Esses mesmos conceitos foram retomados pelo Papa Bento XVI em sua Carta
Encíclica Deus Caritas Est:
O homem torna-se, realmente, ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em
íntima unidade. [...] Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a car-
ne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dig-
nidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a
matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente sua grandeza (BENTO
XVI, 2005, n. 5).

O homem torna-se, realmente, ele mesmo, quando corpo e alma se encontram


em íntima unidade. [...] Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejei-
tar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo per-
dem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequente-
mente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igual-
mente sua grandeza (BENTO XVI, 2005, n. 5).

Seguindo tal raciocínio, podemos dizer que espiritualidade não se refere a


uma parte, mas ao todo. Noutras palavras, espiritualidade não é apenas vida
interior, mas a totalidade da nossa vida e, portanto, nossas relações – com o
outro, nós mesmos, o mundo e com Deus – vividas na força e na grandeza do
Espírito Santo. É dentro dessa concepção que Dom Pedro Casaldáliga (cf. 2003,
p. 8-19) a�rma que a nossa espiritualidade é a nossa vida, isto é, o espírito, as
atitudes e motivações com que vivemos o todo da nossa existência.

Dado que, na perspectiva cristã, as motivações fundamentais da existência


procedem da relação com Deus, marcada pelo amor e fé, podemos de�nir espi-
ritualidade como a relação pessoal com o Deus de Jesus Cristo, que transfor-
ma gradualmente a pessoa na totalidade de seu ser e suas relações. A pessoa
realmente espiritual é aquela em quem a presença do Espírito transparece em
sua vida, seu modo de ser e agir.

Essa é a compreensão que encontramos no Documento de Aparecida (CELAM,


2007), o qual propõe, para o discípulo missionário, uma espiritualidade que se
baseie na docilidade ao impulso do Espírito, à sua potência de vida, que mobi-
liza e trans�gura todas as dimensões da existência. Não é uma experiência
que se limita aos espaços privados da devoção, mas que procura penetrá-los
completamente com seu fogo e sua vida. O discípulo missionário, movido pelo
estímulo e ardor que provêm do Espírito, aprende a expressá-lo no trabalho, no
diálogo, no serviço e na missão cotidiana (CELAM, 2007, n. 284).

Segundo São Basílio de Cesareia (1999, 89ss.) – Padre da Igreja que viveu no
século 4º –, em seu famoso Tratado sobre o Espírito Santo, o verdadeiro espiri-
tual não é o que exercita a inteligência para especular sobre Deus, mas o guia-
do pelo Espírito e que conforma a sua vida aos seus movimentos, além do mo-
vimento principal do Espírito, a caridade. A espiritualidade cristã, portanto,
quando bem entendida, consiste na vida segundo o Espírito (cf. JOÃO PAULO
II, 1988, n. 17).

Espiritualidade laical e santidade de vida


A santidade é a meta de vida de todo cristão. A�rmando a vocação universal à
santidade, o Concílio Vaticano II diz que todos os �éis, de qualquer estado de
vida, "são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição na caridade"
(PAULO VI, 1964, n. 40). Certamente, é mais feliz a expressão da Exortação
Apostólica Christi�deles Laici (1988), que apresenta a plenitude da vida cristã,
isto é, a santidade como perfeição na caridade (JOÃO PAULO II, 1988, n. 16).
Santidade e perfeição na caridade não são duas realidades diversas ou parale-
las. Ser santo consiste na vivência plena do amor derramado em nossos cora-
ções pelo Espírito Santo (cf. Rm 5,5), assim como ele nos é descrito de forma
excelente pelo Apóstolo Paulo (cf. 1Cor 13).

A Exortação Apostólica Christi�deles Laici, seguindo a linha traçada pelo


Concílio Vaticano II, em primeiro lugar, a�rma a vocação universal à santida-
de, que provém da própria consagração batismal (JOÃO PAULO II, 1988). Pela
consagração batismal, Deus nos torna santos e, por consequência, a vocação à
santidade nada mais é do que um convite para que vivamos de acordo com o
que somos. Noutras palavras, a santidade ontológica, que nos é dada gratuita-
mente na consagração batismal, deve corresponder a santidade existencial de
nossa vida. A exortação é seguida de um signi�cativo reconhecimento:
Um cenário maravilhoso se abre aos olhos iluminados pela fé: o de inúmeros �éis
leigos, homens e mulheres, que, precisamente na vida e nas ocupações do dia a dia,
muitas vezes inobservados ou até incompreendidos e ignorados pelos grandes da
terra, mas vistos com amor pelo Pai, são obreiros incansáveis que trabalham na vi-
nha do Senhor, artí�ces humildes e grandes – certamente pelo poder da graça de
Deus – do crescimento do Reino de Deus na história (JOÃO PAULO II, 1988, n. 17).

Em segundo lugar, essa mesma Exortação tece a relação entre a santidade dos
membros e a missão da Igreja, de ser sacramento de salvação para toda a hu-
manidade, a�rmando que a primeira é condição imprescindível para que a se-
gunda se realize, enquanto o dinamismo e operosidade missionários são pro-
porcionais à santidade da Igreja. Para fundamentar a a�rmação, o Papa João
Paulo II recorre a duas analogias: a relação esponsal e a parábola da vinha,
descrita no Capítulo 15 do Evangelho segundo São João:

Só na medida em que a Igreja, Esposa de Cristo, se deixa amar por Ele e O ama, é
que ela se torna Mãe fecunda no Espírito.
[...]
"Como a vide não pode dar fruto por si mesma se não estiver na videira, assim
acontecerá convosco se não estiverdes em Mim. Eu sou a videira, vós as vides.
Quem permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada
podeis fazer" (Jo 15, 4-5) (JOÃO PAULO II, 1988, n. 17).

Ao mesmo tempo em que o Magistério conciliar e pós-conciliar a�rma a voca-


ção universal à santidade, diz também que os caminhos que conduzem a ela
são especí�cos em cada uma das formas de vida. Isso signi�ca dizer que a es-
piritualidade cristã se exprime de maneira diferente em cada uma delas:

• os religiosos encontram o núcleo central de sua vida cristã nas bem-


aventuranças;
• os sacerdotes trilham seu caminho de santidade por meio da caridade
pastoral, que se torna efetiva no exercício do seu ministério;
os leigos são chamados a buscar a santidade na sua forma própria de in-
serção nas realidades temporais.

Sua dedicação à família e inserção nas mais diversas formas tornam-se ele-
mentos fundamentais de sua espiritualidade, ou seja, seu modo especí�co de
viver a vida segundo o Espírito. É a partir da inserção nessas realidades que
lhe são próprias que o leigo poderá encontrar sua unidade existencial.

A unidade de vida dos �éis leigos é de enorme importância, pois, eles têm que se
santi�car na normal vida pro�ssional e social. Assim, para que possam responder
à sua vocação, os �éis leigos devem olhar para as atividades da vida quotidiana co-
mo uma ocasião de união com Deus e de cumprimento da Sua vontade, e também
como serviço aos demais homens, levando-os à comunhão com Deus em Cristo
(Propositio 5 – João Paulo II, Homilia da solene Concelebração Eucarística no en-
cerramento da VII Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos (30 de Outubro de
1987): AAS 80 (1988), 598) (JOÃO PAULO II, 1988, n. 17).

Para que os leigos possam trilhar com mais segurança seu caminho para a
santidade, é importante que tenham diante de si modelos de santidade reco-
nhecidos pela própria Igreja. Disso decorre o convite da mesma Exortação
Apostólica, para que as Igrejas locais e, de modo particular, as Igrejas mais jo-
vens busquem identi�car, entre os seus membros, aqueles homens e mulheres
que deram testemunho de santidade na vida laical.

6. Considerações
A re�exão desenvolvida mostra como a visão que se teve na Igreja do leigo va-
riou muito nos períodos de sua história. A Teologia desenvolvida de modo par-
ticular a partir do século 20 nos permite falar de uma igual dignidade de todos
os batizados, na diversidade de ministérios e estados de vida.

Na próxima unidade, você será convidado a analisar uma abordagem históri-


ca, ao passo que, na posteriormente, veremos uma re�exão, buscando enten-
der com mais profundidade esse estado de vida.

Até lá!
(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-

g03273-fev-2024-grad-ead/)

Unidade 4 – A Vida Consagrada: Esboço Histórico

Objetivos
• Compreender um panorama histórico da vida consagrada.
• Conhecer as diversas expressões de vida consagrada.
• Interpretar como as inovações na vida consagrada estão intimamente li-
gadas com a situação sociocultural em que surgem.

Conteúdos
• Das origens até o século.
• Dos séculos 16 ao 19: Os Clérigos Regulares, as Sociedades Apostólicas e
Missionárias, as congregações.
• A Revolução Francesa e as novas fundações.

Orientações para o estudo


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orienta-
ções a seguir:

1. Amplie seu conhecimento da vida consagrada por meio da leitura da bi-


bliogra�a indicada.
2. Leia atentamente o texto desta unidade e, a partir da leitura, faça suas
anotações e elabore esquemas. Esta forma ativa de estudar facilita a assi-
milação do conteúdo.
3. É interessante retomar rapidamente o estudo das obras de História da
Igreja para melhor contextualizar as diversas expressões da vida consa-
grada apresentadas no texto que se segue.
1. Introdução
Vamos iniciar nosso estudo da vida consagrada com uma visão histórica. Não
temos aqui a pretensão de fazer uma abordagem ampla da história da vida
consagrada, pois não seria possível nas páginas de que dispomos.
Pretendemos apenas traçar um esboço, em grandes linhas, dessa história, pro-
curando evidenciar suas principais características, as quais nos ajudarão a
entender melhor a identidade desse estado de vida.

Como você pode notar, a vida consagrada foi assumindo expressões bem di-
versi�cadas ao longo da História e isso nos diz coisas bem importantes sobre
ela. A primeira é que a vida consagrada não se apresenta como algo já de�ni-
do e pronto. O Concílio Vaticano II a�rma que a Igreja possui duas estruturas:
hierárquica e carismática (cf. PAULO VI, 1964, n. 4).

Na próxima unidade, você vai compreender que a vida consagrada é uma das expressões
desta estrutura carismática.

Isso signi�ca que seu dinamismo e inspiração primeiro se colocam na ação do


Espírito Santo, ou ainda melhor, na forma livre em que o Espírito distribui os
seus dons para o enriquecimento da Igreja e de sua missão. Em segundo lugar,
o fato de que a vida consagrada assumiu características bem diversi�cadas ao
longo da História, também sendo uma expressão de vida cristã encarnada.

Pela Encarnação, o Filho de Deus assumiu a realidade humana na sua integra-


lidade. De forma análoga, a vida cristã modi�cou-se com o tempo,
posicionando-se de forma profética e criativa diante das diversas conjunturas
históricas em que se tem vivido o cristianismo nestes dois primeiros milêni-
os. Partindo desse princípio, abrimos o caminho para a terceira consideração:
se a vida consagrada sempre assumiu novas formas, é assim que podemos es-
perar sua manifestação daqui para frente. Essa consideração nos permite, por-
tanto, a�rmar, quanto à pergunta "O que é a vida consagrada?", que somente
poderá ser respondida pela sua própria história. Ao nos dedicarmos a este es-
boço histórico, pretendemos colher elementos para dizer o que foi – e o que é –
a vida consagrada até o momento em que estamos vivendo, na certeza de que
o Espírito ainda reserva muitas novidades para suas manifestações no futuro.

Vamos, então, olhar mais de perto as principais manifestações da vida consa-


grada nos dois primeiros milênios do cristianismo, para, em seguida, apontar-
mos algumas perspectivas para este terceiro milênio.

Bom estudo!

2. Das origens até o século 12


As virgens e o ascetismo doméstico
Podemos dizer que a vida consagrada conhece suas primeiras manifestações
nas expressões de virgindade e continência, testemunhadas desde as origens
do cristianismo. Essa escolha era feita por homens e mulheres que se sentiam
chamados a imitar Jesus de forma mais perfeita. Outra motivação importante
se caracterizava como atitude de protesto diante da forte imoralidade presente
na sociedade. Tais pessoas continuavam a viver uma vida normal como os
demais cristãos e, nos primeiros quatro séculos, não era previsto nenhum ritu-
al que tornasse pública essa opção de vida. A partir do século 4º, desenvolve-
se o ritual de consagração das virgens, realizado por ocasião das grandes fes-
tas litúrgicas na presença da comunidade.

Essa forma de vida é amplamente testemunhada pelos escritos dos primeiros


séculos. O Apóstolo Paulo (1Cor 7,25-34) fala de pessoas que vivem a virginda-
de e enaltece tal forma de vida por possibilitar uma maior liberdade para o
serviço do Senhor. Nos Atos dos Apóstolos, por sua vez, são mencionadas as
quatro �lhas de Felipe, que eram virgens e profetizavam. A , escrito da
segunda parte do século 1º, fala com apreço de ascetas itinerantes que se dedi-
cam ao ministério da pregação e oferece alguns critérios de discernimento (cf.
n. 11-13). Um número muito expressivo de , entre os séculos 3º
e 5º, exalta a virgindade, vivida por muitos cristãos, e contrapõe o seu modo
de vida com a corrupção que cresce no mundo pagão (cf. CIARDI, 1994, 40s).

Com o passar dos anos, as virgens começaram a se organizar em grupos mais


ou menos estáveis, até formarem autênticas comunidades sob os cuidados de
um bispo. O mesmo ocorre com os homens ascetas: de um ascetismo domésti-
co passam a formas mais organizadas, seja de tipo anacorético ou cenobítico.

Esses ascetas, pode-se dizer, constituem a primeira expressão da vida consa-


grada na Igreja cristã. Ao redor do celibato, que constituía a renúncia mais ra-
dical, começa a aparecer a pobreza voluntária, o jejum, abstinências, orações
frequentes, salmodia cotidiana, en�m, quase todas as observâncias que depois
serão absorvidas pelos monges. Por sua vez, o monaquismo acentuará a fuga
mundi, no sentido local, não somente no espiritual.

O monaquismo
Em primeiro lugar, é importante dizer que o monaquismo não é algo próprio
do cristianismo. Pelo contrário, pode-se a�rmar que é um fenômeno universal
por se encontrar presente na maior parte das grandes religiões, ainda que não
receba tal nome. Alguns elementos são comuns às diversas expressões:

1. : o monaquismo se apresenta com o desejo de for-


mar um grupo separado dos demais. Por isso, normalmente há um rito de
iniciação que marca justamente a passagem da vida secular para a vida
monacal; um modo próprio de vestir, de tratar os cabelos, a existência de
uma clausura e o estilo pobre e celibatário marcam ainda mais a separa-
ção do mundo.
2. : tendência a reduzir o sono e a alimentação para favo-
recer a vigilância espiritual.
3. : aguda sensibilidade pelo Absoluto e desejo de uma
maior comunhão com ele.

No âmbito cristão, algumas motivações são fundamentais para o surgimento


da vida monástica.

1. : no encontro com
o jovem rico, Jesus diz: "se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e
dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me" (Mt
19,21). Quando ouviu essa passagem da Escritura, Santo Antão, considera-
do o pai do monaquismo, por volta dos 20 anos de idade, encontrou o que
há tempo buscava. Vendeu os seus bens, distribuiu-os aos pobres e inici-
ou seu caminho de vida solitária em busca de uma vida de maior perfei-
ção e de comunhão com Deus. Antão foi atraído pelo desejo de imitar os
Apóstolos, os quais tinham deixado tudo para seguir o Senhor, como tam-
bém pelo exemplo dos primeiros cristãos, que vendiam os seus bens e en-
tregavam o ganho aos Apóstolos, a �m de que fosse distribuído aos po-
bres.
2. : num momento em que o cristianismo
começa a perder sua vitalidade, o monaquismo aparece com o objetivo de
recuperar o grande ideal de vida transmitido pelos Apóstolos, assumindo
a radicalidade da vida cristã, apresentada pelo Evangelho. É por isso que
João Cassiano, monge que viveu na Palestina, Egito e Constantinopla
(360-435), a�rma que o monaquismo teve sua origem no tempo dos
Apóstolos (cf. MURRAY, 1989, p. 115).
3. : expressa pelos monges como luta contra o demônio
(PADRES DO DESERTO, 2014, n. 13). Os monges iam ao deserto para vencê-
lo, à imagem de Cristo. No deserto, a pessoa se encontra com Deus, mas
também consigo mesma e, portanto, com suas misérias (fragilidades, pai-
xões, divisões internas, inclinações ao pecado). O deserto torna-se, por-
tanto, lugar de crise e de fortalecimento espiritual (Galilea, 1988, p. 47).
4. : o monaquismo tem como uma de suas motivações funda-
mentais a dimensão mística, o desejo do encontro e da comunhão com
Deus.

O monaquismo eremita
A experiência de Santo Antão foi partilhada por um número crescente de ho-
mens e mulheres que, por iniciativa própria, deixaram o convívio social para
retirarem-se no deserto motivados pelo desejo de uma vida inteiramente dedi-
cada à busca de Deus. O monaquismo eremita desenvolve-se de modo particu-
lar no Egito, Síria, Palestina e Ásia Menor. Mais presente nos séculos 3º e 4º, o
monaquismo eremita esteve presente ao longo de toda a História do cristianis-
mo com manifestações diversas.

Inicialmente motivado pelo desejo de uma maior comunhão com Deus e uma
imitação mais perfeita de Cristo, o monaquismo teve forte impulso na metade
do século 3º, quando muitos cristãos buscaram o deserto para fugirem das
perseguições. Vivendo na solidão, eles descobrem a beleza dessa forma de vi-
ver sua fé cristã e, passadas as perseguições, não retornam ao convívio social.

O monaquismo teve novo impulso a partir da liberdade religiosa concedia pelo


imperador Constantino por meio do Édito de Milão, em 3 No �nal do século 4º,
por obra do Imperador Teodósio, o cristianismo passa a ser a única expressão
religiosa permitida no Império Romano. Estamos diante de uma mudança co-
pernicana. Em menos de um século, passa-se da situação em que ser cristão
exigia uma atitude heroica pelo contínuo risco do martírio à situação em que é
cômodo denominar-se cristão. Muita gente pede o batismo sem fazer nenhum
processo de conversão. Surge o fenômeno que hoje denominamos com a ex-
pressão "cristãos de nome".

Diante dessa situação socioeclesial, muitos cristãos buscam o deserto, consci-


entes de sua fé e com o desejo de salvar a grandeza da vida cristã, assim como
foi transmitida pelos Apóstolos.

A maior parte dessas pessoas vivia de forma isolada, encontrando-se com ou-
tros monges apenas para a celebração da liturgia e para orientação espiritual.
Grande expoente de tal forma de vida é Santo Antonio do Egito, também cha-
mado Santo Antão, o qual in�uenciou muitos outros por meio de sua orienta-
ção espiritual.

A vida cenobítica no Oriente


Fica claro que, praticamente contemporâneo à experiência anacorética,
desenvolve-se outro tipo de monaquismo, caracterizado pela forma comunitá-
ria: o . Além da comunhão de bens materiais e experiências espi-
rituais, ele se caracteriza por uma iniciativa de abertura ao apostolado.

São Pacômio, nascido em Alta Tebaida, no Egito, no ano de 288, é considerado


o iniciador dessa nova experiência cristã. Como prisioneiro, tem seu primeiro
contato com os cristãos, que servem os militares com amor desinteressado. O
Deus cristão se revela como um Deus que é amor, capaz de inspirar amor e ser-
viço. Dispensado do exército, recebe o batismo, provavelmente, na noite de
Páscoa de 3 Em seguida, abraça a vida monástica. Depois de sete anos de vida
solitária, desloca-se para Tabennisi, no Alto Egito, onde descobre a vocação à
vida comum. Seja no encontro com os cristãos, que lhe haviam revelado um
Deus de amor, seja no episódio de vocação, percebem-se os traços que caracte-
rizavam a sua experiência espiritual. Na narração de sua vocação, é dito que,
em seu empenho em encontrar e fazer a vontade de Deus, ele descobre que
consiste no serviço aos homens. Respondendo a tal descoberta, São Pacômio
constrói uma casa para acolher os irmãos, dando, assim, início à vida cenobí-
tica.

Depois de um primeiro fracasso na vida comunitária, novos discípulos se reú-


nem ao seu redor. Dado que o número cresce sempre mais, decide construir
um segundo mosteiro numa localidade desértica próxima, denominada Bow.
São Pacômio convida a sua irmã Maria, que veio visitá-lo, a imitar o seu estilo
de viver; ela dá vida a um cenóbio de mulheres que adotará a regra do mostei-
ro masculino. A federação pacomiana chegou a nove mosteiros, sete masculi-
nos e dois femininos.

A nova experiência se distingue da eremita. Ela se organiza no mosteiro, que,


gradualmente, adquire a característica de uma pequena cidade, na qual che-
gam a viver cinco mil pessoas, sob uma regra e um superior ao redor do qual
se organiza a fraternidade. Entrando no mosteiro, não se busca mais um pai
espiritual que orienta a vida comunitária, mas uma comunidade de irmãos –
koinonia –, onde possam viver juntos o amor mútuo. Os discípulos de São
Pacômio se reconhecem como homens que vivem a fraternidade e fazem das
relações fraternas a sua estrutura de vida. A palavra "monge" é substituída pe-
la palavra "irmão". Os textos bíblicos que inspiram essa forma de vida são: o
Salmo 132, os textos de São João que realçam o amor mútuo, dos Atos e os pau-
linos sobre a caridade. A vida cenobítica começa a encontrar os seus funda-
mentos teológicos:

• a origem sobrenatural da koinonia;


• a caridade como seu fundamento;
• a dimensão eclesial que permite aplicar à comunidade as imagens da
Igreja (corpo, vinha, rebanho, família de Deus, povo de Deus).

A comunidade pacomiana deixa, aos poucos, as práticas ascéticas dos anaco-


retas – longas orações, jejuns, asceses estranhas –, substituindo-as pelo servi-
ço fraterno, caminho ideal para os pequenos e fracos. A ascese na koinonia se
exprime, principalmente, na renúncia em vista da comunhão, a �m de tornar-
se uma coisa só com todos, na obediência, misericórdia, ajuda, edi�cação e no
cuidado de uns para com os outros. A pobreza radical acontece com vistas à
comunhão de bens. Daqui para frente, a proclamação da superioridade da vida
cenobítica sobre a anacorética será um dos temas clássicos da literatura mo-
nástica. Esse estilo monacal cresce incentivado também por outras pessoas
carismáticas, como Macário, o Velho.

Esse ideal de vida cenobítica é partilhado também pelas mulheres. As comu-


nidades se tornam numerosas no Egito e na Palestina. Setenta virgens vivem
juntas em Alexandria, 300 em Athribè, 440 em Tabennise, e assim por diante.
Também na Palestina surgem novas fundações monásticas femininas por
obra dos Ocidentais, que se caracterizam pelo intenso estudo teológico e escri-
turístico. Tais mosteiros latinos, guiados por Melânia e Paula, com a ajuda de
São Gerônimo, por seu prestígio inspiram a constituição de análogas comuni-
dades masculinas (cf. CIARDI, 1994, p. 43-45).

A experiência cenobítica mais signi�cativa do Oriente, depois da koinonia de


São Pacômio, é, sem dúvida, a fraternidade basiliana, fundada na Ásia Menor,
por São Basílio, nascido em Cesareia, na atual Turquia, no ano de 3 Foi a que
mais in�uenciou a posteridade monástica. Diferencia-se da comunidade pa-
comiana em diversos aspectos:

• colocação geográ�ca – não mais no deserto, mas próximo às cidades;


• não mais protegida por muros de cinta (como a pacomiana), nem uma
grande vila, mas pequenas comunidades;
• o superior não mais é visto como o chefe da comunidade, mas como a
pessoa atenta, discreta e prestativa.

A nova comunidade se apoia sobre relações fraternas interpessoais mais do


que em um complexo ordenamento legislativo. Não nasce da comum submis-
são a uma regra nem a uma pessoa carismática. Predominam, em vez disso,
relações horizontais entre os membros, na busca do amor, edi�cação mútua e
correção fraterna. Por isso, a comunidade é chamada .

Inspirada na comunidade de Jerusalém, a comunidade basiliana caracteriza-


se por uma forte dimensão eclesial. O objetivo principal era o de atuar o mais
perfeitamente possível na fraternidade cristã segundo os modelos evangéli-
cos. As comunidades basilianas buscavam ser as células da Igreja que recupe-
ram o vigor da disciplina evangélica, quase um fermento dentro da comunida-
de eclesial mais ampla, de modo que esta pudesse crescer sempre mais na pu-
reza das suas origens.

A vontade de viver uma vida cristã típica para devolver à Igreja o seu rosto
inicial imprime uma marca na comunidade basiliana que se aproxima da ci-
dade e assume responsabilidades assistenciais e caritativas. O amor ao próxi-
mo se dilata além da comunidade dos irmãos e se expande entre o povo por
meio da pregação da Palavra e do serviço de caridade aos pobres. Já se entre-
veem caminhos novos para o futuro monaquismo, destinado a abrir-se sem-
pre mais a uma dimensão de ministerialidade e de evangelização (cf. CIARDI,
1994, p. 45-47).

O monaquismo no Ocidente
O monaquismo ocidental teve origem autônoma. No século 4º, conhece-se a
existência de mosteiros masculinos e femininos em Roma, assim como no
resto da Itália, Gália e na Península Ibérica. Foi fortemente in�uenciado pelo
Oriente por meio de escritos e viagens realizadas pelos próprios monges.

Santo Agostinho
Santo Agostinho, nascido em Tagaste, norte da África, no ano de 350, oferece à
vida cenobítica uma incontestável contribuição pela grandeza de sua perso-
nalidade espiritual, riqueza de sua re�exão teológica e grande empenho pela
unidade da Igreja. Ele integra os valores da experiência monástica precedente,
mas também transcende em uma síntese nova, além de superar a visão ere-
mítica de Santo Antão, a comunitário-ascética de São Pacômio e o ascetismo
temperado de São Basílio.

Sua conversão, em 387, já tinha uma conotação monástica, signi�cativamente


in�uenciada pela vida de Santo Antonio do Egito. Em Roma, Santo Agostinho
faz contato com alguns mosteiros da cidade, para mais tarde iniciar, em
Tagaste, com um grupo de amigos, uma experiência cenobítica na casa pater-
na. Depois de três anos, vai para Hipona, onde é ordenado sacerdote. Ali, dá vi-
da a um mosteiro para leigos. Consagrado bispo em 395, funda um novo mos-
teiro na sua sede episcopal, formado por clérigos, promovendo a pobreza, a vi-
da comum e a vida apostólica do clero. Contemporaneamente, desenvolve e
organiza a vida monástica feminina, dando às mulheres a mesma regra escri-
ta para os monges.

A caridade, a comunhão fraterna e a unidade se tornam os fatores centrais,


constitutivos e caracterizantes da sua comunidade, ao redor dos quais se har-
monizam os demais aspectos do projeto religioso. Santo Agostinho, desde as
primeiras linhas de sua regra, propõe com clareza o objetivo do mosteiro: "vi-
vam unânimes em casa e tenham uma só alma e um só coração orientados
para Deus" (ALIANÇA NORBERTINA, 2010, n. 3). O ícone no qual Santo
Agostinho se inspira é, portanto, a comunidade de Jerusalém. Assim, como
São Basílio concebe a sua comunidade inserida na Igreja, Santo Agostinho a
vê inserida diretamente no mistério trinitário. Um só coração e uma só alma
em Deus, fruto do amor mútuo da comunidade, é a forma concreta de partici-
par do amor de Deus. A caridade aparece, assim, como a imagem mais expres-
siva e a analogia mais aderente da Trindade.

São Bento
São Bento coloca o último pilar da vida monástica. Nascido em Núrsia no ano
de 480, ainda jovem vai a Roma para estudar. Desiludido pela imoralidade da
cidade eterna, ele retira-se para Subiaco – localidade situada a, aproximada-
mente, 200 km ao sul de Roma –, onde vive de forma solitária. Logo é reco-
nhecido pela sua sabedoria espiritual, e começam a chegar os primeiros discí-
pulos. O número cresce e, ao longo dos anos, São Bento funda, em Subiaco, do-
ze mosteiros. Dada a oposição, porém, de um presbítero de uma Igreja próxima,
São Bento se transfere para o Monte Cassino, onde, em 529, erige um novo
mosteiro, próximo do qual surgirá um mosteiro feminino sob a direção de sua
irmã, Santa Escolástica.

A sua regra, sempre mais conhecida, chega a se impor em quase todo o


Ocidente. A comunidade monástica beneditina inspira-se seja no modelo de
vida eremítica do Egito, seja na modalidade comunitária de São Basílio e de
Santo Agostinho. São Bento sintetiza, portanto, as duas grandes correntes pre-
sentes desde a origem do monaquismo.

Graças ao profundo equilíbrio entre os diversos componentes das experiênci-


as monásticas, a inspirará os séculos futuros e, ao lado das
e , suscitará, ao longo de toda a Idade Média, for-
mas novas de comunidades monásticas.

A obra de São Bento tem uma in�uência positiva, não apenas no interior da
Igreja, mas na sociedade como um todo. Com as invasões dos povos do Norte e
do Leste, povos esses de cultura nômade, cria-se na Europa Ocidental um esta-
do de constante mobilidade com notáveis repercussões até mesmo na vida da
Igreja. Nesse contexto, os mosteiros beneditinos, caracterizados pela estabili-
dade, tornam-se pontos de referência, ao redor dos quais se reunirão represen-
tantes das diversas culturas e povos, dando assim início à construção de uma
nova civilização.

O deslocamento de povos aproxima pessoas de culturas diferentes. Estamos


diante de uma das maiores crises da cultura antiga. Nessa crise epocal, o mos-
teiro se revela centro de fusão das múltiplas culturas que, animadas pelo fogo
da fraternidade e do amor evangélico ensinado por São Bento, darão vida a ex-
pressões culturais e sociais originais. O mosteiro salva todo o patrimônio da
antiga cultura greco-romana que o cristianismo soube assimilar, preservar e
transformar, abrindo-se a novas correntes de pensamento trazidas pelos po-
vos eslavos, celtas e saxões, oferecendo a experiência cristã como base co-
mum de diálogo e de confronto. A pax beneditina, que nasce na profundidade
do espírito, tem a capacidade de se expandir do mosteiro para a sociedade in-
teira, transformando-se em pax social. A nova síntese cultural e política da
qual nasceu a Europa Ocidental foi realizada, de certa forma, ao redor do mos-
teiro beneditino.

À luz do princípio paulino de que Deus não faz distinção de pessoas (cf. Rm
2,11), no interior do monaquismo beneditino é eliminada qualquer distinção
entre escravos e livres, nobres e plebeus, romanos e não romanos. No mostei-
ro, ensina-se a todos, inclusive aos povos novos, a dignidade do trabalho. Essa
concepção, aliada à estabilidade, possibilita o desenvolvimento da cultura
agrícola, criando as condições para a recuperação da agricultura, base da eco-
nomia europeia medieval. No equilíbrio do Ora et Labora ("Reza e Trabalha",
lema desta ordem), o ser humano recupera a sua profunda dimensão humano-
divina e entende que o serviço a Deus e ao próximo se unem em perfeita har-
monia na liturgia e no trabalho. O trabalho intelectual faz dos mosteiros os
grandes centros de produção e conservação da cultura na Idade Média, crian-
do as bases para o esplendor cultural nos séculos 12 e 13 e o desenvolvimento
cientí�co dos séculos posteriores.

As reformas monásticas dos séculos 10 ao 12


O monaquismo beneditino teve grande in�uência em toda a vida da Igreja do
Ocidente. Os momentos de esplendor, porém, foram alternados em momentos
de crises, que exigiram reformas profundas, das quais mencionamos, a seguir,
três.

Reforma de Bento de Aniano

No ano de 750 nasce Bento de Aniano, aos 24 anos de idade ele entra para a vi-
da monástica. No seu estilo pessoal de vida, recupera o rigor do monaquismo
oriental, mas sua radicalidade cria di�culdades de convivência. Abandona,
então, o mosteiro e parte para a vida eremita à beira do Rio Aniano. Procurado
por um número crescente de discípulos, ele funda um mosteiro e adota a
Regra de São Bento (Regula Benedicti), pois está convencido de que não há ou-
tra melhor. A reforma que propõe é um retorno às origens, à autenticidade da
vida a partir de tal Regra. O Mosteiro de Aniano chega a trezentos monges e,
pela credibilidade que tem diante de todos, especialmente dos bispos e do pró-
prio Imperador Carlos Magno, torna-se ponto de referência para o monaquis-
mo do Ocidente. A partir dele, são reformados todos os mosteiros do reino
franco-germânico. Muitos mosteiros alcançam um esplendor nunca visto an-
tes.

Os cluniacenses

Com a morte de Bento de Aniano, no ano de 821, e a fragmentação do império


carolíngio, o monaquismo decai novamente. Um grande problema assola o
monaquismo a partir do século 9º: a falta de autonomia. Reis e imperadores
interferem na vida dos mosteiros: para recompensar seus vassalos por servi-
ços prestados, entregam-lhes um mosteiro; estes, motivados simplesmente
por interesses econômicos, nomeiam abade qualquer pessoa (em muitos ca-
sos, o abade era um leigo analfabeto, casado e com �lhos), sem condição de as-
sumir as grandes responsabilidades que compete ao abade no monaquismo
beneditino. A decadência é inevitável.

Em 909, o duque de Aquitânia, Guilherme III, doa suas terras de Cluny. O prín-
cipe está convencido de que a liberdade é condição fundamental para que um
mosteiro possa viver seu verdadeiro espírito. O Mosteiro de Cluny é, então,
con�ado ao papa para garantir que nenhuma interferência externa possa atra-
palhar sua vida. Guiado por abades santos e doutos, Cluny lidera uma reforma
gigantesca no Ocidente. Assumindo a Regra de São Bento, con�a menor im-
portância ao trabalho e enfatiza sobremaneira a liturgia. Todos os dias:

• rezam 138 salmos;


• celebram uma ou duas missas solenes;
• recitam-se outras orações, especialmente pelos defuntos;
• os sacerdotes celebram diariamente a missa em privado.

Graças a Cluny, a vida monástica do Ocidente se renova por inteiro durante os


séculos 10 e Embora nem todos os mosteiros se �liem a ele, todos são afetados
pelo grande exemplo de piedade e observância monástica. Cluny desencadeia
como que uma onda de reforma, que chega, praticamente, a todos os mosteiros
do mundo ocidental. A liberdade vivida por Cluny torna-se um ícone que moti-
va e torna possível a .

A basílica de Cluny, que �ca pronta em 1130, marca o seu apogeu, mas também
o princípio de sua decadência. Na sociedade, respiram-se novos ares, que an-
seiam por uma vida pobre e simples, à imagem da vida de Jesus e dos seus
discípulos. Não percebendo essa mudança socioeclesial, o monaquismo cluni-
acense entra em forte decadência.

Uma terceira corrente renovadora

Ao lado da pro�ssão monástica, que se orienta sempre mais para a Regra be-
neditina, surge um novo modelo de vida religiosa, aquela que dá maior consis-
tência aos grupos de canônicos regulares: a professio canonica, organizada a
partir da Regra agostiniana. O ordo canonicus se distingue do ordo regularis.
Por volta de 754, São Cordgnano de Metz redige uma regra para reorganizar a
vida comum dos eclesiásticos, a qual teve uma grande difusão, sinal de que se
sentia a necessidade de regras �xas para as comunidades sacerdotais. Bispos
e papas sempre con�arão mais nestas comunidades para a renovação do cle-
ro. Os membros das novas instituições – os cônegos – se diferenciam dos
monges, sobretudo pelo seu estado e ofício clerical: reúnem-se, habitualmente,
nas Igrejas e catedrais, dedicando-se à vida litúrgica e ao apostolado. Embora
tenham vida comum, eles conservam o usufruto do seu patrimônio privado,
mas, à luz da Igreja primitiva, devem ajudar os pobres. Há comunidades femi-
ninas que vivem uma forma análoga de vida consagrada, dedicando-se, de
forma predominante, à contemplação e vida litúrgica e ministerial.

O movimento canonical desenvolve-se muito nos séculos 11- Dessa experiên-


cia, surgem diversas congregações, como os cônegos regulares:

• Lateranenses na Itália (1073).


• Vitorinos em Paris (1108).
• Premonstratenses de São Norberto (1120), que se desenvolvem de modo
particular na Alemanha.

A escola de São Vitor torna-se uma das maiores expressões da espiritualidade


canônica. Sob a inspiração de Santo Agostinho e Pseudo-Dionísio, o
Areopagita, ela conduz aos graus mais altos do amor e da contemplação
(FABRI, 1994, p. 56s).

Novo contexto socioeclesial do século 12 e 13 e as novas


expressões de vida consagrada
O crescimento do comércio, a partir do século 1, polariza diversas mudanças
relevantes do ponto de vista social. O comércio, apresentando-se como fonte
de renda alternativa à agricultura – fator dominante no período feudal –, ofe-
rece a possibilidade de a�rmação de uma nova classe social. Se até então a so-
ciedade era dirigida pelos nobres – aristocracia –, o incremento do comércio
possibilita a a�rmação de uma nova classe social – os burgueses –, que pas-
sam a disputar o poder com os nobres. A possibilidade do enriquecimento a
partir da atividade comercial e também o poder ligado ao crescimento econô-
mico geram, na sociedade, uma busca desenfreada de riqueza. Pedro
Bernardone, pai de São Francisco, é um típico representante dessa nova men-
talidade. O comércio, oferecendo uma alternativa ao mundo agrícola, possibili-
ta o surgimento das cidades.

Se de um lado, porém, há certo otimismo e entusiasmo diante das novas pos-


sibilidades oferecidas pela atividade comercial, em geral, pode-se dizer que o
clima é de forte pessimismo, nascido de fatores diversos:

• crise generalizada das instituições, incluindo as eclesiais;


• as pestes, carestias e guerras que se alternam, trazendo sofrimento e
morte à boa parte da população.

Do ponto de vista cultural, o evento mais signi�cativo do século 12 é o surgi-


mento das universidades, formadas pelas faculdades de Teologia, Filoso�a,
Direito e Medicina. Isso trará fortes mudanças para a Teologia, até então vista,
sobretudo, como comentário da Sagrada Escritura, com intuito de alimentar a
vida cristã dos �éis. Transferindo-se para a universidade, a Teologia buscará
responder aos mesmos critérios de cienti�cidade das outras faculdades. Com
isso, a Teologia crescerá, signi�cativamente, em nível de rigor e precisão; por
outro lado, fará um progressivo caminho de distanciamento da vida concreta
das pessoas, desembocando no chamado "divórcio entre Teologia e espiritua-
lidade". Permanecendo no âmbito da universidade, torna-se praticamente ina-
cessível aos �éis, que passam a viver sua vida cristã sem o auxílio da re�exão
teológica, caindo no devocionismo e, não raro, sendo vítimas de heresias.

Do ponto de vista eclesial, os fenômenos se diversi�cam. De um lado, está o


clero, que se deixa levar pelo clima social e partilha a cobiça por riquezas ex-
perimentadas pela burguesia. Além disso, boa parte do clero vive na mediocri-
dade, caracterizada por uma precária preparação intelectual e por um baixo
nível de interesse pastoral. Além disso, muitos do clero estão envolvidos na si-
monia e no concobinato. Do outro lado, uma parte bem signi�cativa da popu-
lação vive um forte idealismo evangélico. Tendo acesso ao Evangelho, muitos
leigos vivem uma experiência dialética: vibram com a proposta de vida cristã
apresentada e vivida por Jesus e seus discípulos, porém, experimentam forte
decepção quando confrontam esse ideal com a realidade concreta da Igreja do
seu tempo. As consequências disso serão, fundamentalmente, duas:
• esses leigos – que representam grande parte da população – se sentem
fascinados pela simplicidade evangélica e desejam assumir com radicali-
dade a pobreza, assim como é apresentada pelo Evangelho, e com plena
dedicação a pregação. Os grupos que contam com a orientação pastoral
trazem nova vitalidade para a Igreja;
• os demais, vítimas de heresias, serão combatidos por ela. Nesse sentido, é
emblemático o caso dos .

A atitude generalizada entre os leigos é de crítica:

• ao clero, por seu pouco zelo pastoral e sua incoerência de vida;


• ao monaquismo, por ter perdido a sua austeridade e pretensão em
apresentar-se como único caminho para a santidade;
• às instituições como um todo, por se manterem ortodoxas, mas terem
traído o Evangelho.

Os cistercienses
O esplendor litúrgico dos cluniacenses, que entusiasmou multidões nos sécu-
los 10 e 11, garantindo um grande número de vocações, não diz mais nada ao
homem do século 12, que busca, ansiosamente, a simplicidade evangélica e
uma piedade mais intimista, isto é, a espiritualidade cluniacense não corres-
pondia aos homens do seu tempo. Cluny permanece como uma ilha em um
mundo que está mudando, mas sem acompanhar as transformações culturais
e religiosas que ocorreram à sua volta, a decadência sendo inevitável.

A nova sensibilidade, que valoriza sobremaneira a simplicidade e a pobreza


evangélicas, leva sérias críticas a quem vive com outro espírito. Os cluniacen-
ses são acusados de levar uma vida de senhores, de excessiva intromissão na
política e de um excessivo acúmulo de riquezas.

A nova sensibilidade é partilhada por pessoas carismáticas que, inspiradas


pelo Espírito, darão respostas novas. Esse é o caso do monge São Roberto de
Molesme, que, insatisfeito com o estilo de vida que leva, em 1070 deixa o mos-
teiro cluniacense e inicia um longo itinerário, sobre o qual nem mesmo ele sa-
be onde vai dar. Faz experiências alternadas de vida comunitária e eremita até
os 28 anos. Mais tarde, com um grupo que aspira um estilo de vida mais estri-
tamente beneditino, funda o Mosteiro de Citeaux, dando assim origem aos
monges cistercienses. Impedido pela Santa Sé de permanecer à frente desse
mosteiro, ele retorna ao Mosteiro de Molesme.

Na ausência de Roberto, o mosteiro permanece com poucas vocações, até que,


em 1113, chega ao mosteiro Bernardo de Claraval com um grupo de 30 compa-
nheiros, inaugurando um tempo de grande expansão. No ano de sua morte,
1153, a ordem contava com 343 abadias e, no ano de 1200, chegou a 5.

Situados longe das cidades, os cistercienses propõem retornar à estrita obser-


vância da Regra de São Bento. Retomando o valor do trabalho, próprio da espi-
ritualidade beneditina, os cistercienses desejam viver unicamente do seu tra-
balho: cultivo da terra e criação de animais.

Como ensinava São Bento, o mosteiro cisterciense quer ser uma escola de ser-
viço a Deus, nas suas duas expressões fundamentais: na liturgia e no trabalho.
Desejam ser pobres com Cristo, buscando não apenas uma pobreza material,
mas o pleno despojamento, assim como Cristo o viveu. Essa atitude evangéli-
ca leva à simplicidade e sobriedade em todos os âmbitos: na liturgia, constru-
ções, alimentação, no estilo de vida. O Cristo da Encarnação, despojado de tu-
do, ocupa lugar central na sua espiritualidade. É Ele o modelo, o homem per-
feito, que o monge deverá imitar para restaurar a semelhança original com
Deus. A autenticidade do seguimento de Jesus é medida pela caridade frater-
na e serviço recíproco, essencial na vida monástica. Seu grande objetivo é rea-
lizar o ideal da vida apostólica: a unanimidade de coração e alma da comuni-
dade primitiva de Jerusalém em torno dos Apóstolos.

A grande expansão cisterciense traz o germe de sua decadência:

• com grande aceitação pela população, para eles a�uem as doações antes
direcionadas aos cluniacenses, o que fará com que gradualmente os cis-
terciences percam o estilo sóbrio e pobre que os caracterizava;
• a ideia de solidão e deserto se rompeu pelo afã de in�uir, bene�camente,
com sua presença na sociedade.

O fato de ter dado à Igreja cinco papas é uma amostra signi�cativa da impor-
tância que almejou.
São Domingos e a ordem dos pregadores
Nascido em Caleruega – Diocese de Osma na Espanha – por volta de 1170, São
Domingos de Gusmão manifesta, desde a sua juventude, um profundo amor à
Sagrada Escritura e aguda sensibilidade diante dos problemas humanos. O
Cristo que contempla é o Cristo da Encarnação, que, movido pela misericórdia,
participa profundamente da dor e do sofrimento da humanidade.

Como sacerdote e cônego da Diocese de Osma nos anos 1201 e 1206, acompa-
nha seu bispo em duas viagens para a Dinamarca. De modo particular, no Sul
da França, ele percebe a situação trágica em que se encontra a Igreja. A falta
de cuidado pastoral e a consequente ignorância religiosa expõem os cristãos,
animados por um ideal autenticamente evangélico de seguimento de Jesus na
pobreza e simplicidade de vida, ao risco de heresias. São Domingos testemu-
nha com os seus olhos o abandono pastoral do povo, que adere aos movimen-
tos heréticos, de modo particular os cátaros e valdenses.

Neste momento, a Igreja se encontra fragilizada, sem forças para responder


adequadamente à situação. O Papa Honório II pede auxílio aos monges cister-
cienses, encarregando-os da pregação e orientação pastoral do povo; eles, po-
rém, depois de certo tempo, desanimados pelos poucos resultados obtidos e
com consciência de ser de estilo de vida contemplativa, abandonam a causa.

São Domingos se dá conta que tanto os cátaros quanto os valdenses reconhe-


ciam como pregadores autênticos do Evangelho somente aqueles que viviam
segundo a norma evangélica: ir a pé, de dois em dois, sem levar nada consigo,
vivendo da caridade do povo, pregando o Evangelho. São Domingos intui, en-
tão, que a resposta está numa vida pobre, inteiramente dedicada à pregação.

De 1206 a 1215, ele dedica-se integralmente à pregação evangélica, baseada na


pobreza absoluta. Em 1206, reúne um grupo de mulheres convertidas numa
comunidade em Prouilhe, grupo das futuras irmãs contemplativas dominica-
nas. Com uma equipe reduzida de sacerdotes, atraídos pelo seu ideal evangéli-
co, São Domingos põe as bases de uma nova ordem religiosa, consagrada inte-
gralmente à pregação: Ordem dos Pregadores ou Dominicanos. A aprovação
de�nitiva acontece em dezembro de 1216 pelo Papa Honório III. De 1217 a 1286,
essa Ordem se estrutura em três ramos:
1. sacerdotes;
2. irmãs contemplativas;
3. leigos.

A originalidade de São Domingos consiste em apresentar, por meio da Ordem


dos Pregadores, uma nova concepção da vida religiosa inspirada na vida mo-
nástica. Dela, São Domingos mantém os principais elementos, mas os modi�-
ca ou simpli�ca:

• substitui o trabalho manual pelo estudo, pois os pregadores, que deveriam


orientar e combater as heresias precisavam ser bem instruídos;
• abole o voto de estabilidade, porque seus pregadores precisavam viver
numa contínua itinerância;
• as práticas monásticas conservadas foram simpli�cadas e podiam ser
dispensadas sempre que o estudo ou a pregação o exigissem.

A espiritualidade dominicana baseia-se em cinco pilares fundamentais:

1. : vivida à imitação de Cristo pobre, torna-se um protesto aos abu-


sos da Igreja do seu tempo e um meio para ser reconhecido como autênti-
co pregador do Evangelho;
2. : a Ordem nasce para responder aos desa�os pastorais de seu
tempo por meio do discurso religioso;
3. : sobretudo da Sagrada Escritura, é fundamental para uma prega-
ção e�caz;
4. : apesar de toda a importância que reconhece ao estudo,
São Domingos tem claro que uma intelectualidade que não contemple se
torna intelectualismo; ele quer, em vez disso, uma intelectualidade con-
templante; o frade, na pregação, transmite aos outros os frutos da própria
contemplação;
5. : as práticas comunitárias da vida monástica, incluído o
Ofício Divino, foram mantidas, mas simpli�cadas em vista da pregação e
do estudo.

O ícone evangélico no qual se inspira essa nova ordem não é mais aquele da
comunidade de Jerusalém, e sim a vida apostólica entendida como um seguir
as pegadas de Cristo, na imitação dos Apóstolos, que partilharam em tudo a
vida do seu mestre e Senhor. À luz dos discípulos de Jesus (cf. Lc 10), São
Domingos esboça o estilo de vida que quer para os seus frades:

Quando partem para exercitar o ministério da pregação, ou viajam por outros moti-
vos, não devem aceitar nem levar ouro nem prata, dinheiro ou outros dons, exceto o
alimento, o vestuário, outros meios de estrita necessidade e os livros (Const. 31).

São Francisco e os Frades Menores

São Francisco nasceu em Assis – Itália –, entre o �nal de 1181 e início de 1182,
falecendo no ano de 12 Seus pais: Pedro Bernardone e Giovana. De família bur-
guesa e bem-sucedida no comércio, São Francisco experimenta, na pessoa do
seu pai, o desejo ávido de riquezas, próprio da sociedade do seu tempo. Pedro
sonha o mesmo caminho também para seu �lho, mas a ação do Espírito o en-
caminhará por outros caminhos.

A partir de 1204, ele vive algumas experiências que marcarão a sua vida e,
gradualmente, iluminarão o Projeto que Deus tem para ele. Um sonho lhe indi-
ca o grande amor de sua vida: a pobreza. Depois de beijar um leproso, sente-se
impelido pelo Senhor a ir ao encontro dos leprosos e prestar-lhes serviço. Em
oração, na Igreja de São Damião, São Francisco recebe do cruci�xo uma mis-
são: reconstruir a Igreja. Aos 26 anos, despe-se diante do bispo e entrega suas
roupas ao seu pai. O gesto simbólico marca para São Francisco o rompimento
com a sociedade dos negócios, do prestígio e lucro. Nu, quer seguir o Cristo nu
da Encarnação e Cruci�cação. De agora em diante, São Francisco terá um úni-
co Pai, aquele que está nos céus.

Em fevereiro de 1208, durante a missa, na capela restaurada de Santa Maria


degli Angeli – hoje denominada Porciúncula –, ouve o Evangelho:

Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem alforje para o cami-
nho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, pois o operário é digno do seu
sustento. Quando entrares numa cidade ou num povoado, procurai saber de alguém
que seja digno e permanecei ali até vos retirardes do lugar (Mt 10,11).

O horizonte se abre diante dos olhos de São Francisco. Apaixonado por Cristo
pobre, despojado de tudo, ele quer imitá-lo na forma mais perfeita possível; à
imagem do Cristo nu do presépio e da paixão, quer uma vida completamente
despojada: sem propriedade, dinheiro ou qualquer forma de segurança, para
con�ar unicamente no Pai, que está nos céus. Seguindo Cristo, São Francisco
se sentirá motivado, como os Apóstolos, a levar a todos o Evangelho que vive,
mais com o testemunho do que palavras.

São Francisco partilha de forma eminente do desejo de tantos homens e mu-


lheres do seu tempo que desejam viver o Evangelho assim como ele é. A po-
breza e a simplicidade enchem os seus olhos e coração. Quando começam a
chegar os discípulos, reluta em oferecer uma regra, pois está convencido que o
Evangelho é a regra por excelência, não precisa de outra.

A novidade da inspiração evangélica comporta uma mudança no modo de en-


tender a comunidade. Diferentemente do mosteiro beneditino, as comunida-
des franciscanas são pequenas, de modo a favorecer as relações interpessoais.
Os membros se chamam , porque a fraternidade caracteriza o novo esti-
lo de vida. Essa fraternidade, porém, não se limita aos muros do convento,
mas se estende a todo o mundo, povos e seres: o sol será o "irmão sol", e a lua,
a "irmã lua". A fraternidade vivida no convento precisa estender-se quase ao
in�nito, até se tornar fraternidade universal.

O ideal não é mais o de constituir uma fraternidade particular, mas estender a


todos os homens esse ideal evangélico, deixando os lugares desertos e aparta-
dos para misturar-se com o povo nas cidades. Esse é um dos elementos deter-
minantes para a popularidade franciscana e para o envolvimento dos leigos.

A estabilidade beneditina já não responde mais à sensibilidade dos homens e


mulheres de seu tempo, em contínuo movimento, seja por motivos militares,
comerciais ou religiosos. Para responder a essa nova realidade, a comunidade
franciscana será uma comunidade itinerante.

Os frades são enviados de dois em dois como os discípulos de Cristo no


Evangelho, para os quatro cantos do mundo para anunciar o Reino de Deus,
testemunhar a fraternidade até abraçar a inteira criação. Colocam-se, assim,
mais uma vez, as bases para uma nova liberdade e unidade dos povos.
Tudo isso cria a necessidade de uma nova forma de governo. A comunidade
franciscana é formada pelas tantas comunidades espalhadas pelo mundo. É
preciso pensar em um superior geral que coordene toda a fraternidade. Os la-
ços pessoais e a relação de obediência para com o superior constituía o verda-
deiro convento da Ordem dos Frades Menores (Ordo Fratrum Minorum).
Citamos ainda outros instrumentos para garantir a unidade da ordem: "a par-
ticipação de todos nos capítulos gerais periódicos, a divisão em províncias, a
visita dos superiores e a possibilidade de recorrer a eles em caso de necessi-
dade" (FABRI, 1994, p. 62s).

Com as Ordens Mendicantes, a comunidade religiosa teve uma mudança que


marcará qualquer expressão de vida religiosa do segundo milênio cristão. A
comunidade abriu-se, decididamente, para a Igreja e para o mundo inteiro, a
�m de contribuir na construção da grande família dos Filhos de Deus.

3. Dos séculos 16 ao 19: os clérigos regulares, as


sociedades apostólicas e missionárias, as con-
gregações
Os séculos 16 a 19, por motivo da decadência da Igreja, que culminou com o
Grande Cisma do Ocidente, conheceram um constante desejo de reforma. Se
no período medieval a palavra de ordem era voltar à pureza da Igreja primiti-
va, a expressão que agora se expande por toda a Europa é: reforma geral da
Igreja, da cabeça aos membros.

É nesse contexto, entretanto, que se inserem as experiências carismáticas de


uma série de fundadores que inauguram novas formas de vida consagrada em
resposta aos desa�os socioeclesiais do seu tempo. Os Teatinos (1524), os
Barnabitas (1530), os Jesuítas (1534) e os Clérigos Regulares da Mãe de Deus
(1574) nascem do desejo de uma reforma da Igreja, partindo de dentro, sobretu-
do, a melhor quali�cação do ministério sacerdotal. Outras comunidades, como
os Somascos (1534), os Camilianos (1584) e os Escolápios (1602), surgem da
identi�cação de necessidades particulares, como órfãos, enfermos, jovens sem
instrução.
Buscando adaptar-se aos tempos modernos, essas comunidades se destacam
dos modelos antigos e apresentam uma nova forma de vida consagrada, enfa-
tizando a dimensão apostólica.

Pode-se dizer que a vida consagrada nunca deixou de lado o apostolado e o


serviço aos necessitados – as comunidades de acolhida criadas por São
Basílio, as obras sociais eminentes dos mosteiros beneditinos e o apostolado
das ordens mendicantes são exemplo disso –, mas até então as práticas co-
munitárias ocupam grande parte do tempo e da energia dos consagrados.

Os Clérigos Regulares começam a apresentar novidades signi�cativas em re-


lação às expressões de vida religiosa precedentes. Seus membros são sacerdo-
tes unidos pelo vínculo da caridade com o objetivo de viver com autenticidade
a sua vida sacerdotal, para tornar mais e�caz o seu ministério. Seu hábito é
aquele comum dos sacerdotes. O ofício coral, quando conservado, é simpli�ca-
do. A sua habitação não é mais nem um mosteiro ou convento, e sim uma
simples casa de moradia. O termo "regra" é substituído por "constituições".
Essas pequenas modi�cações indicam um distanciamento dos modelos mo-
násticos e conventuais precedentes em vista da criação de um novo tipo de
comunidade.

Santo Inácio de Loyola e a Companhia de Jesus (1534)


Nascido em Loyola, no ano de 1491, Santo Inácio vive sua juventude no ambi-
ente da Corte de Castilha. Ferido numa batalha em Pamplona, ele tem um lon-
go período de convalescência, durante o qual, pela leitura da vida dos santos,
entusiasma-se, particularmente, por Cristo, São Francisco e São Domingos.

Depois de deixar a vida de soldado e retirar-se à vida eremítica em Manresa,


no ano de 1622, Santo Inácio teve, à beira do Rio Cardoner, uma experiência
mística que mudou a sua vida (LOYOLA, 1991, n. 30). A partir daquele dia, ele
teve certeza de que Deus lhe reservava uma missão, mas foram necessários
quinze anos de discernimento para entendê-la.

Hugo Rahner assim comenta a experiência de Inácio:


À força luminosa, inesquecível, da graça do Cardoner se une a obscuridade da igno-
rância sobre a forma concreta da execução, que o guia na direção da meta por quin-
ze anos a passos breves, lentos, incertos (1959, p. 125S).

Durante o período em que vive em Paris para os estudos de Filoso�a e


Teologia, reúne um grupo de companheiros, os quais serão os primeiros mem-
bros da Companhia de Jesus. Em 1940, recebe a aprovação do papa para a no-
va ordem e, juntamente com seus companheiros, colocam-se à sua disposição,
pois entendem que o seguimento de Cristo implica a plena comunhão com a
Igreja.

Com a Companhia de Jesus, ele inicia propriamente a vida religiosa apostóli-


ca, enquanto todos os aspectos da vida do jesuíta estão orientados para a mis-
são. Santo Inácio desvincula, de�nitivamente, a vida religiosa de todas as ob-
servâncias monásticas.

Podemos destacar aqui o ponto de partida, sua experiência de Cristo como


Filho enviado pelo Pai para a salvação do mundo, que chama a si aqueles que
quer e os envia a realizar no mundo inteiro a sua missão. Seguir Jesus, para
Santo Inácio, signi�ca con�gurar-se a Ele e agir como Ele, dando continuidade
à missão con�ada pelo Pai (LOYOLA, 1991, n. 96). Essa é a proposta de vida que
apresenta a todos aqueles que desejam se tornar membros da Companhia de
Jesus: servir à Igreja mediante uma atividade intensa, variada, e�ciente.

A dimensão apostólica e o envio missionário caracterizam a comunidade je-


suítica não mais como ponto de referência à experiência dos Doze com Jesus,
nem mesmo o envio dos Setenta e Dois discípulos, de dois em dois, como nas
Ordens Mendicantes. O ícone bíblico que ilumina sua vida é a dispersão da
Igreja enviada por Cristo no Espírito Santo a todo mundo.

Em vista da realização da missão universal, a importância das comunidades


locais é relativizada em favor da única comunidade, que é a Companhia. A
disponibilidade, universalidade e mobilidade são características dessa comu-
nidade, com foco na realização da missão universal. Da mesma forma como
Cristo enviou os Apóstolos a todo o mundo, pelo voto de especial obediência ao
papa em questão de missão, deseja-se que o vigário de Cristo continue envian-
do os membros da Companhia de Jesus.

A �nalidade claramente apostólica, extrema mobilidade da Companhia, adap-


tabilidade aos diversos ambientes e situações, centralização do governo, o
quarto voto de especial obediência ao Papa, bem como a liberdade em relação
a formas de vida consideradas até então essenciais para a vida religiosa leva-
ram a um novo tipo de estrutura e formação, adaptados à sociedade moderna,
iniciada com o e com o .

Esse tipo de comunidade, de agora em diante, será o ponto de referência para


as novas instituições religiosas. As constituições redigidas por Santo Inácio
in�uenciarão a maior parte das congregações religiosas que surgiram depois
do século Ele soube adaptar a vida religiosa às novas necessidades apostóli-
cas.

Busca de uma identidade feminina para a vida consagrada


As mulheres estiveram presentes desde as primeiras manifestações da vida
religiosa. Porém, as condições sociais e culturais não lhes permitiram
exprimir-se de maneira autônoma como ocorreu com o ramo masculino. Não
faltaram �guras de grande valor, como Santa Macrina, a Jovem, irmã de São
Basílio; Santa Paula de Roma; Santa Melânia, a Jovem; Santa Escolástica e,
mais tarde, Santa Clara de Assis. Permanece, porém, o fato de certa dependên-
cia em relação à experiência masculina, devido à posição da mulher na socie-
dade daquele tempo.

O contexto cultural do Humanismo oferece a possibilidade à vida religiosa fe-


minina de que ela inicie um caminho próprio, apesar de qualquer tentativa de
experiência de consagração fora do convento ser, no começo da Idade
Moderna, ainda fortemente impedida e, não raro, a pessoa reconduzida à clau-
sura.

Angela Mérici: um primeiro esboço de instituto secular


(1535)
A vida consagrada secular empenha a pessoa a viver os conselhos evangéli-
cos de obediência, pobreza e castidade sem abandonar família, casa e pro�s-
são. Sem deixar o estado laical pela pro�ssão dos conselhos evangélicos, a
pessoa consagrada assume, publicamente, o compromisso de viver e testemu-
nhar sua fé no meio do mundo, buscando impregnar e transformar as realida-
des terrenas a partir do Evangelho (OBERTI, 1981, p. 377ss.).

A primeira expressão de vida consagrada secular são as Irmãs Ursulinas, fun-


dadas por Angela de Mérici (1474-1540), na primeira parte do século Num tem-
po em que as guerras franco-itálicas provocavam a degradação dos costumes,
Mérici criou uma instituição que, sem tirar as jovens da sua família, garantia
uma contínua assistência, promovendo o ideal da castidade. A nova fundação
orienta seus esforços de formação a mulheres viúvas e virgens que têm inten-
ção de dedicar-se a obras de caridade, mas permanecendo no seu ambiente fa-
miliar. Essas mulheres estariam unidas entre si, enquanto dispersas na vida
cotidiana normal. Angela as quer separadas das trevas deste mundo, porém,
inseridas nele, sem votos nem hábito distintivo. Somente o voto de castidade
era recomendado, o qual era feito em privado. No entendimento de Mérici,
aquele momento histórico exigia a presença de pessoas consagradas entre o
povo simples – não mais retiradas em clausuras –, de modo a ser uma pro-
posta viva do ideal da castidade e da vivência da caridade com os pobres e do-
entes.

A fundação apresenta-se demasiadamente inovadora para a mentalidade


eclesial do seu tempo. Por essa razão, infelizmente foi reconduzida, aos pou-
cos, ao estilo de vida religiosa dos séculos anteriores. Aos vários grupos da
companhia de Santa Úrsula, foram impostos, em primeiro lugar, um sinal dis-
tintivo, em seguida, a vida comum e, por �m, a clausura. Para a mentalidade
do tempo, era incompreensível a vida religiosa feminina fora dos mosteiros;
para a mulher, cabiam apenas duas possibilidades: ou casar-se ou entrar no
convento. Dessa forma, tal tentativa — de uma vida consagrada secular – não
conseguiu a�rmar-se.

Luísa de Marillac e as �lhas da caridade


Em 1633, reúne-se ao redor de São Vicente de Paulo o primeiro grupo de mu-
lheres que desejam dedicar a sua vida ao serviço das pessoas mais necessita-
das. São Vicente con�a a formação desse grupo a Luísa de Marillac. Nascem,
assim, as Filhas da Caridade: uma companhia de mulheres vestidas com hábi-
to secular, sem convento nem clausura.

Trata-se de uma nova forma de comunidade, caracterizada pela proximidade


e dedicação ao atendimento dos mais necessitados. Neste momento histórico,
para poder servir os pobres e doentes em suas casas, elas renunciam à preten-
são de serem religiosas. A compreensão clara de que se trata de uma nova for-
ma de vida consagrada leva São Vicente a a�rmar que as Filhas da Caridade
não poderão e nunca deverão ser religiosas. É importante ter presente que, na-
quele tempo, a vida religiosa implicava na clausura.

Na intenção de São Vicente e Luísa de Marillac, porém, nada no tipo de casa –


vestido, modo de falar – deveria relacionar-se à clausura. O seu mosteiro é a
casa dos doentes, aquela na qual reside a superiora: para cela, um quarto em
aluguel; para capela, a Igreja paroquial; para claustro, as vias da cidade; para
clausura, a obediência; por grade, o temor de Deus; por véu, a santa modéstia.
São Vicente não quer que elas acabem na clausura como as Irmãs da
Visitação, fundadas por São Francisco de Sales (CIARDI, 1994, p. 71ss.).

4. As primeiras congregações e as primeiras


sociedades apostólicas (Séculos 17-18)
O século 16 assistiu ao nascimento das Ordens dos Clérigos Regulares, para as
quais os membros se empenhavam com votos solenes. No século 17, às véspe-
ras do Concílio de Trento, surge uma nova série de fundações na busca de res-
ponder às necessidades concretas da Igreja e sociedade, particularmente, à de
educação religiosa do povo. Para uma maior liberdade de movimento, essas
fundações renunciam ao título de ordem para serem congregações de votos
simples – aceitando não serem consideradas como religiosas – ou, então,
simples sociedade de vida comum apostólica, com os votos privados ou sem
votos, primeiras formas das atuais sociedades de vida apostólica.

Na Itália e França, surgem sociedades de presbíteros muito originais. Em 1564,


São Filipe Néri funda, em Roma, a Congregação dos Oratorianos: associação de
padres e leigos de vida comum sem votos, que provêm da própria formação
cultural e espiritual para dedicar-se, em seguida, com empenho ao serviço de
várias formas de apostolado, especialmente entre estudantes e jovens. Sob sua
in�uência, Pedro de Bérulle cria, em Paris, a Congregação do Oratório de Nosso
Senhor Jesus Cristo (1611). A mesma preocupação por uma boa formação do
clero conduz São Vicente de Paulo a fundar a Congregação da Missão ou
Lazaristas (1625); Jean-Jacques Olier, a Companhia dos Padres de São Sulpício,
os quais não têm votos (1641); e São João Eudes, a Congregação de Jesus e
Maria (1643). Alguns anos mais tarde foi fundada a Sociedade para as Missões
Estrangeiras de Paris, também sem votos (1663), a primeira das numerosas so-
ciedades missionárias que surgiram no século.

A necessidade de educação e evangelização em ambientes rurais e urbanos


estimula o zelo de outros fundadores, como São João Batista de La Salle, que
em 1682 funda, na França, os Irmãos das Escolas Cristãs, dedicados ao ensina-
mento gratuito e popular. No oeste da França, São Luís Maria Grignion de
Monfort e, em Nápoles, Afonso Maria de Ligório fundam duas congregações
clericais especializadas nas missões populares: os Monfortinos, 1705, e os
Redentoristas, 1732). Os Passionistas, fundados por São Paulo da Cruz, em 1741,
empenham-se no mesmo apostolado, sobre a base de uma vida solitária, peni-
tente e pobre.

5. A Revolução Francesa e as novas fundações


Ocasião providencial
A partir da Revolução Francesa, veri�ca-se, na Europa, uma onda fortemente
contrária em relação às comunidades religiosas, que se concretiza no con�sco
dos mosteiros, secularização dos religiosos e supressão das Ordens. Na
França, suprimem-se, completamente, as sociedades religiosas, com o pretex-
to de que os votos religiosos são contrários aos direitos dos homens. O número
diminui vertiginosamente: os institutos masculinos, que contavam com 3000
membros em 1775, não ultrapassam os 000 em 18.

A Revolução, porém, marca também o início de um extraordinário �oresci-


mento da vida religiosa, com o surgimento de inúmeras novas congregações.
Com a supressão das Ordens, muitos religiosos abandonam seu estado de vi-
da; outros, porém, tornam-se fundadores de novas congregações.
Três pilares da missão: catequese, misericórdia, empenho
missionário
As congregações representam uma resposta concreta à tentativa das forças
laicas anticristãs, na Europa e América do Sul, de marginalizar a in�uência da
Igreja e religião no campo civil. Quando as autoridades governamentais, se-
guindo princípios iluministas e anticlericais, tentam, de todos os modos, ori-
entar a juventude segundo a sua ideologia, aparecem numerosas congrega-
ções dedicadas ao ensinamento. Elas souberam suprir as inúmeras carências
do Estado leigo em relação a pessoas pobres, marginalizadas, de�cientes e
abandonadas.

As congregações excelem pela capacidade de identi�car as necessidades lo-


cais e responder às urgências sociais e eclesiais. As creches ajudam os pais
que trabalham nos campos e nas fábricas; a formação pro�ssional para moças
e rapazes os auxilia a enfrentar a vida com melhor preparação; o empenho ca-
ritativo é, particularmente, necessário nos setores mais pobres. Em todas as
congregações, nota-se uma clara especialização, empenho e incidência no
plano apostólico e caritativo. Pode-se recordar, entre muitos outros: o Instituto
Cavanis (1802); os Irmãos Maristas (1817), as Irmãs da Caridade do Bom Pastor
(1829), as Jose�nas do Murialdo (1873).

Uma segunda característica é um renovado empenho missionário. Muitas


congregações e institutos de vida apostólica surgem com essa �nalidade: os
Missionários Oblatos de Maria Imaculada (1816), o Pontifício Instituto das
Missões Estrangeiras de Milão (1850), os Padres Brancos (1876), os
Missionários Combonianos (1867), a Sociedade do Verbo Divino (1875), as
Franciscanas Missionárias de Maria (1877), os Missionários Xaverianos (1898)
e os Missionários da Consolata (1901).

As congregações femininas do século 19 também deram prova de vivacidade


criativa ímpar. Só no século 19 foram fundadas mais de 750, que se tornaram
de direito pontifício, um fenômeno que teve continuidade ao longo do século
As religiosas se preocuparam em dar um rosto mais humano, dedicando-se à
atividade educativa, sanitária, socioassistencial, pastoral e missionária. O que
�zeram pelos pobres, doentes, crianças, anciãos e jovens permanece uma das
páginas mais lindas da história da vida religiosa (CIARDI, 1994, p. 74ss.).

O carisma novo dos Institutos Seculares


O primeiro reconhecimento por parte da Santa Sé ocorre com o Motu Próprio
Primo Feliciter (1947) de Pio XII, que apresenta a vida consagrada secular
usando as metáforas evangélicas do sal da terra e luz do mundo. Um ideal de
vida havia encontrado sérias di�culdades para ser acolhido na Igreja. Como
superar a aparente contradição de dois termos tão distintos e quase opostos ao
longo da história da vida religiosa: consagração e secularidade?

Os institutos seculares nascidos no século 20 apresentam-se inovadores.


Além de viver a vida de consagrados, permanecendo inseridos na sociedade,
eles caracterizam-se pela positiva percepção dos valores seculares. A secula-
ridade passa a ser vista como uma realidade teológica, o único caminho para
realizar e testemunhar a salvação. Diante da descristianização da sociedade,
tornavam-se necessárias pessoas que tenham a coragem de inserir-se nessa
mesma sociedade. Buscam-se, portanto, organismos nos quais os membros,
nutridos pelo espírito de doação, próprio dos consagrados, tenham ao mesmo
tempo a prontidão, facilidade de movimento, astúcia, preparação técnica e cul-
tural da vida moderna. Essas pessoas realizam seu apostolado no mundo,
inserindo-se diretamente na sua vida, ao invés de retirar-se deles.

Nessa forma de vida, a consagração não é mais entendida como separação,


mas como inserção, um chamado a viver onde já se vive. A consagração secu-
lar é a resposta radical a Deus que chama a viver na secularidade, que con�r-
ma uma pessoa no seu estado secular, para permanecer no seu ambiente e o
transformar a partir de dentro. Estamos na linha do mistério da Encarnação:
Cristo assumiu a história humana para transformá-la e conduzi-la à sua ple-
nitude.

6. Considerações
A re�exão desenvolvida nesta Unidade 3 mostra a dinamicidade da vida con-
sagrada. Como expressão carismática na Igreja, ela assume características no-
vas partindo das novas exigências da sociedade. Pode-se perceber que se trata
de uma história em que o crescimento e o declínio alternam-se ao longo do
tempo. No momento em que uma forma de vida consagrada já não responde à
sensibilidade sociocultural e religiosa de seu tempo, o declínio torna-se inevi-
tável; em contrapartida, novas expressões surgem, trazendo consigo nova vi-
talidade.

Na próxima unidade, vamos centralizar nossa atenção sobre a dimensão ca-


rismática da vida consagrada.

Até lá!
(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-

g03273-fev-2024-grad-ead/)

Unidade 5 – Vida Consagrada: um Carisma na Igreja

Objetivos
• Entender a relação entre a vida cristã e a consagrada.
• Interpretar a vida consagrada como uma das expressões carismáticas na
Igreja.
• Compreender a experiência espiritual do fundador como uma experiên-
cia do Espírito por meio da qual se elabora a identidade de uma nova fa-
mília de consagrados.
• Analisar a dinâmica da �delidade e renovação na vida consagrada..

Conteúdos
• Vida consagrada: um carisma na Igreja.
• Os fundadores: homens e mulheres movidos pelo Espírito.
• O carisma como experiência do Espírito.
• do fundador e do Instituto.
• Fidelidade e renovação.

Orientações para o estudo


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orienta-
ções a seguir:

1. Sugerimos que você leia, atentamente, o texto proposto e elabore uma sín-
tese pessoal para facilitar o entendimento e a assimilação.
2. Também, sugerimos que você leia a bibliogra�a proposta, a �m de apro-
fundar e ampliar os conhecimentos.
3. Para uma maior compreensão desta unidade, leia a Exortação Apostólica
Vita Consecrata (JOÃO PAULO II, 1996).

1. Introdução
Anteriormente, você foi subsidiado com conteúdos relacionados à breve sínte-
se da história da vida consagrada. Seguindo esse raciocínio, podemos com-
preender como esse estado de vida foi assumindo características bem diferen-
ciadas ao longo da História. Ao analisar uma linha de continuidade na pro�s-
são pública de viver a radicalidade evangélica no serviço à Igreja e ao Reino,
percebem-se novidades profundas nos tantos modelos de vida consagrada
que surgiram.

Nesta unidade, o foco da re�exão é a teologia da vida consagrada. Na primeira


parte, apresentaremos a relação entre vida cristã e vida consagrada. Na se-
gunda, a re�exão se volta para a dimensão carismática dessa forma de vida.

O Concílio Vaticano II a�rma que o Espírito guia a Igreja por meio de dons hie-
rárquicos e carismáticos. A vida consagrada se coloca nessa segunda catego-
ria. Ela não pertence à estrutura hierárquica da Igreja, mas dirige-se intima-
mente à sua vida e santidade (ALMEIDA, 2005, n. 4).

2. Vida consagrada: um carisma na Igreja


Vida cristã e vida consagrada
Um olhar atento às narrações evangélicas nos mostra uma grande diversida-
de nas respostas dadas pelas pessoas a Jesus e seu convite ao discipulado. Tal
diversidade se coloca entre a indiferença, hostilidade e generosidade de quem
deixou tudo para segui-lo sem reservas.

A diversidade, porém, não está apenas na resposta, mas, em primeiro lugar, no


próprio chamado de Jesus, o qual se revela distinto de uma pessoa para outra.
Jesus chamou alguns para segui-lo na vida itinerante (cf. Mc 1,16-20), mas ao
homem geraseno que se dispôs a fazer o mesmo lhe disse para voltar à sua ca-
sa e anunciar lá as maravilhas que o Senhor tinha acabado de realizar em sua
vida; chamou o publicano Levi (cf. Mc 2,14) para que integrasse o Grupo dos
Doze; convidou o jovem rico a deixar todos os seus bens e segui-lo (cf. Lc
18,22), mas não dirigiu nenhum desses dois convites ao publicano Zaqueu (cf.
Lc 19,1-10). Assim, ao redor de Jesus estão os doze, mas próximo a eles está um
grupo bem mais amplo de discípulos (cf. Mc 4,10). Enquanto uns são chama-
dos ao discipulado na sua vida normal e familiar, outros o são para se torna-
rem eunucos pelo Reino (cf. Mt 19,10-12).

A diversidade de formas, porém, não compromete a autenticidade e a intensi-


dade do seguimento. Aos que desejam segui-lo, Jesus deixa claras as suas exi-
gências: "se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua
cruz e siga-me" (Mc 8,34). Negar a si mesmo, no sentido evangélico, não com-
porta a morti�cação da pessoa, nem o seu prazer de viver, muito menos a sim-
patia em relação ao mundo. Isso não teria sentido na boca de quem disse com
todas as letras que veio para que todos "tenham vida e a tenham em abundân-
cia" (Jo 10,10). Negar-se a si mesmo tem aqui o sentido de um deslocamento de
centro: de si mesmo para Deus. O discípulo de Jesus é aquele que reconhece
em sua vida o primado de Deus e do seu Reino (cf. Mt 6,33). A vida cristã é,
portanto, exigente e apela a decisões que se tornam determinantes na existên-
cia de cada um.

É aqui, a partir da vida cristã e dentro dela, que a vida consagrada encontra a
sua identidade. A vida cristã é já um chamado à radicalidade, enquanto medi-
anos conceitos, característica de atitudes medíocres, são-lhe completamente
estranhas (cf. Ap 3,15s). A vida consagrada, dentro da vida cristã, quer ser si-
nal claro e visível da radicalidade evangélica. Pela pro�ssão dos votos, os con-
sagrados assumem, diante de Deus e da Igreja, o compromisso de mostrarem
com a própria vida o primado de Deus, de modo que, pela sua própria vivência,
seja um apelo para que os demais discípulos vivam de forma plena o
Evangelho no seu próprio estado de vida.

Se a vivência plena do evangelho compromete a todos os cristãos indistinta-


mente seguir Jesus na sua forma de vida casta, pobre e obediente, como o faz
as pessoas de vida consagrada, é considerado um carisma e uma vocação par-
ticular (cf. Mt 19,10). Essa forma de seguimento se apresenta como a mais ra-
dical de viver o Evangelho, sendo um chamado a deixar tudo para seguir
Jesus como o �zeram os Doze. Por ser a forma de viver que mais se aproxima
daquela que o próprio Filho de Deus escolheu para si, a tradição cristã
reconhece-lhe uma objetiva excelência entre as diversas formas de viver o
Evangelho (cf. JOÃO PAULO II, 1996, n. 18). Por isso, ao mesmo tempo em que
se reconhece, espera-se do consagrado um testemunho autêntico de santida-
de (cf. ALMEIDA, 2005, n. 39).

É na pro�ssão pública dos conselhos evangélicos – obediência, pobreza e cas-


tidade –, reconhecida e legitimada pela Igreja, que devem ser buscadas a iden-
tidade e especi�cidade da vida consagrada. Um homem ou uma mulher, pela
força do Espírito, assume o compromisso público de viver o Evangelho de for-
ma plena e radical, fazendo disso o objetivo primeiro de seu ser no mundo.
Essa opção implica a renúncia de inúmeros aspectos da vida, vividos de forma
legítima pela maior parte das pessoas. Trata-se, portanto, de uma vocação es-
pecí�ca, enquanto não é dada a todos (cf. AZEVEDO, 1986, p. 32).

O especí�co da vida consagrada não é o chamado à santidade, pois ele é co-


mum a todos os cristãos (cf. ALMEIDA, 2005, n. 40), e sim a pro�ssão pública,
reconhecida, legitimada e valorizada pela Igreja, em que se compromete publi-
camente a viver na radicalidade o projeto evangélico como objetivo primeiro
de sua vida (cf. AZEVEDO, 1986, p. 32).

Isso mostra como a vida consagrada não se identi�ca, em primeiro lugar, pela
sua ação ou modo de fazer, mas pela qualidade evangélica de sua vida e pre-
sença na Igreja e no mundo. Sua especi�cidade está, portanto, na realização
plena e radical do seguimento de Jesus Cristo explicitado no Evangelho. As
formas de atuação serão de�nidas a partir do carisma próprio de cada comu-
nidade de consagrados.

Vida consagrada na obediência, pobreza e castidade


Irineu de Lião, padre da Igreja, nascido no ano de 130, contrapondo-se ao gnos-
ticismo, que propunha uma espiritualidade desencarnada e alheia aos valores
humanos, desenvolve em sua obra a ideia fundamental: o caminho de divini-
zação do ser humano passa necessariamente pela sua humanização (IRINEU
DE LIÃO, 1995). Esse é um marco do cristianismo, no qual o homem e o divino
se mesclam, quando o ser humano não apenas é obra de Deus, mas traz em si
a sua imagem e semelhança (Gn 1,27).

Dentro dessa concepção, reforçada pela sensibilidade do mundo contemporâ-


neo, podemos a�rmar que uma vida consagrada que não seja profundamente
humanizante não diz nada aos homens e às mulheres dos nossos dias. Essa é,
portanto, uma perspectiva essencial ao tentarmos elaborar uma teologia dos
conselhos evangélicos.

Vida consagrada na obediência


A obediência nos conduz ao coração da vida cristã, enquanto nos remete a
uma atitude fundamental na vida de Jesus. O Apóstolo Paulo o apresenta co-
mo aquele que se fez obediente até a morte na cruz (cf. Fl 2,8). Os evangelhos o
mostram em toda a sua vida buscando fazer a vontade do Pai. Essa atitude se
torna particularmente determinante na véspera de sua paixão. Nesse momen-
to, Jesus externa pela oração a densidade dos sentimentos que vive em seu in-
terior: "meu Pai, se é possível, que passe de mim esse cálice; contudo, não seja
como eu quero, mas como tu queres" (Mt 26,39). No Filho, que veio para fazer a
vontade do Pai, Deus nos revela a sua vontade sobre nós. Fazer a vontade de
Deus é a meta da vida de todo cristão, nisso consistindo a santidade.

Como diz Oliveira (2002, p. 147), o voto de obediência não é nada mais que a ra-
dicalização da obediência à qual são chamados todos os cristãos e cristãs. A
obediência se encontra, portanto, no centro da vida cristã.

Na vida consagrada, a obediência a Deus conta também com a mediação de


um superior. Aqui se colocam uma série de questões. A própria terminologia
"superior" é questionada por muitos, pelo fato de trazer uma conotação de de-
sigualdade, a qual não espelha adequadamente a relação entre os membros de
uma comunidade de consagrados, sendo que todos devem a mesma obediên-
cia a Deus. A autoridade torna-se, então, um serviço para que todos sejam �éis
à obediência professada.

A nova visão eclesiológica que se a�rma com o Concílio Vaticano II exige uma
participação de todos no discernimento, que deve ser contínuo, pois o Espírito
fala e vivi�ca sua Igreja por meio de todos os seus membros. Dentro dessa
concepção, a missão do superior não exime ninguém da responsabilidade do
discernimento. Um bom superior é aquele que envolve todos os membros da
comunidade no discernimento e nas decisões a serem tomadas de tal modo
que, à conclusão do processo, ele poderá tomar a decisão já amadurecida no
ambiente (cf. AZEVEDO, 1986, p. 90ss.). A valorização de cada pessoa e o senti-
do da corresponsabilidade tornam-se necessários para que a obediência seja
bem entendida no contexto do mundo contemporâneo.

Vida consagrada na pobreza


Novamente, o ponto de referência por excelência é a pessoa de Jesus. Nele,
Deus se fez pobre (cf. Fl 2,6-8) e armou sua tenda entre nós. Jesus mostra uma
profunda pobreza, seja em relação ao ter – vive com dignidade sem se apegar
a nada –, seja em seu ser – liberdade diante do poder e do prestígio. A pobreza
cria em Jesus uma liberdade total em relação a tudo o que não é Deus: pessoas
e coisas; bens espirituais e materiais. Assim, os consagrados e consagradas
não abraçam a pobreza para se livrarem das preocupações dos bens materiais,
mas para seguir Jesus Cristo.

A pobreza evangélica une a atitude de abertura con�ante em Deus a uma vida


simples, sóbria e austera, que afasta a tentação da cobiça e ostentação. Ela
consiste, essencialmente, em ter Deus como único absoluto. É no testemunhar
Deus como verdadeira riqueza do coração humano que se encontra o primeiro
signi�cado da pobreza evangélica (cf. JOÃO PAULO II, 1996, n. 90). Dessa ma-
neira, compreende-se que a verdadeira pobreza não está propriamente em não
ter, mas em ser livre para ter e não ter. Na Exortação Apostólica Evangelica
Testi�catio, Paulo VI lembra que a pobreza impõe para os consagrados um uso
dos bens limitado a quanto é necessário para o cumprimento �el da sua mis-
são (cf. PAULO VI, 1971, n. 18). O contato real com os pobres ajuda os consagra-
dos a terem uma visão mais realista da vida e realidade de grande parte da po-
pulação e, por consequência, a avaliar a própria relação com os bens e uso que
fazem do dinheiro. Seguir Jesus Cristo é professar a liberdade e ser livre sem-
pre.

Segundo Azevedo, mais do que nunca o mundo precisa de pessoas que teste-
munhem, de forma inteligível para o homem de hoje, a absoluta prioridade de
Deus e a consequente relativização do que os homens de nosso tempo preten-
dem absolutizar (cf. 1986, p. 40-53).

Vida consagrada na castidade


Para entender adequadamente esse conselho evangélico, é preciso reconhecer
a positividade da sexualidade. Somos imagem de Deus na totalidade do nosso
ser, e tudo em nós é expressão do amor de Deus, o qual, gerando o ser humano,
reconhece que tudo o que fez "era muito bom" (cf. Gn 1,31). A sexualidade é par-
te constitutiva do ser: fez-nos homem e mulher. Por consequência, a opção pe-
la castidade não pode estar marcada por uma visão negativa da sexualidade.
Deve, portanto, �car para trás tendências do passado que, de certa forma, bus-
cavam negar a sexualidade.

Para entender bem tal conselho evangélico, é interessante fazer uma distinção
entre e . A primeira se refere à pureza do ponto de vista
legal, ritual ou moral, colocando-se no campo da observância da norma. A se-
gunda, porém, é muito mais do que isso, pois transcende a norma, estando na
dimensão do amor. Amando a Deus, a castidade se abre ao próximo; amando o
próximo, ela tem a certeza de Deus.

Não podemos esquecer que todos os cristãos são chamados à santidade e que
os consagrados assumem, por meio da pro�ssão, o compromisso público de
buscá-la como primeiro objetivo de sua vida. A santidade, por sua vez, consis-
te na perfeição do amor. A consequência para o tema que estamos desenvol-
vendo é clara: para que a castidade tenha sentido, ela precisa conduzir ao
crescimento no amor. Longe de eliminar a capacidade de amar, a castidade
deve estar a seu serviço e potencializá-la para que alcance a sua plenitude. O
sentido mais profundo da castidade não está na renúncia, e sim na integração
da pessoa e de suas melhores energias em favor do Reino.

A castidade é, antes de qualquer coisa, um dom, mas para vivê-lo de forma


adequada, é necessário um processo formativo que ajude a pessoa consagrada
a integrar sua afetividade, desenvolvendo a capacidade de amar de forma ge-
nerosa, gratuita e desinteressada:
Sendo o voto de castidade um ato oblativo, de entrega total e incondicional, ele exi-
ge personalidades livres, determinadas, adultas, maduras, sensíveis, responsáveis,
transparentes e profundamente humanas (OLIVEIRA, 2002, p. 62).

A vivência da castidade se manifesta e se fortalece, em primeiro lugar, no


amor fraterno vivido na própria comunidade dos consagrados (cf. PAULO VI,
1965, n. 2).

Vida consagrada: um carisma na Igreja


Algumas premissas

Os carismas tiveram atenção muito diversi�cada na História do cristianismo,


seja do ponto de vista da Teologia, seja da própria pastoral da Igreja. Nos dois
primeiros séculos, eram tidos em grande apreço e encorajados. A própria
Teologia Paulina é um exemplo disso. Diante da compreensão apresentada pe-
los Coríntios, o Apóstolo Paulo sente a necessidade de esclarecer uma série de
coisas, bem como estabelecer critérios de discernimento, seja em relação à
sua autenticidade, seja em relação à oportunidade ou não de seu uso. Mas sua
atitude é positiva e encorajadora (cf. 1Cor 13-15).

Diante de algumas atitudes exacerbadas e até mesmo fanáticas de certos gru-


pos, porém, a Igreja passa a ter uma postura muito diferente a partir do �nal
do século 2º. Os carismas passam, então, a serem considerados apenas como
dons extraordinários, necessários no início do cristianismo, mas dispensáveis
depois que a Igreja conseguiu colocar os seus alicerces. No �nal do século 19, o
termo passa a ser usado para indicar dons extraordinários do Espírito, presen-
tes, principalmente, na igreja primitiva e, agora, comunicados por meio da im-
posição das mãos. Eram considerados carismas, sobretudo, os dons da verda-
de e fé, prerrogativa da infalibilidade do Sumo Pontí�ce. Você mesmo pode
perceber como tal postura institucionaliza os carismas: enquanto, na Teologia
Paulina, eles fazem parte da livre manifestação do Espírito, nessa concepção
os carismas passam a ser transmitidos pela imposição das mãos no sacra-
mento da ordem.

A discussão sobre o tema foi acalorada no Concílio Vaticano II. Um grupo de


padres conciliares, liderados pelo Cardeal Ruf�ni – arcebispo de Palermo,
Itália –, defende a ideia de que os carismas próprios dos tempos apostólicos
acabaram. Desse modo, seria inconcebível, em nossos dias, falar de uma plu-
ralidade de dons carismáticos dados aos �éis (cf. VANHOYE, 1988, p. 45). Outro
grupo, porém, liderado pelo Cardeal Suenens – arcebispo de Bruxelas –, con-
cebia os carismas como elementos fundamentais, sempre presentes na vida
da Igreja, a qual necessita sempre da contínua ação do Espírito Santo,
vivi�cando-a e concedendo tais dons, de forma abundante e imensamente di-
versi�cada. Na posição desse grupo, qualquer pessoa, independentemente do
seu nível cultural, pode contar com dons carismáticos e, assim, contribuir pa-
ra o bem da comunidade (cf. VANHOYE, 1988, p. 45).

Essa segunda concepção foi adotada pelo Concílio Vaticano II. Sem negar a
possibilidade de dons extraordinários, ao falar dos carismas, esse Concílio se
refere, preferencialmente, aos dons ordinários, concedidos pelo Espírito aos
�éis para a sua ação no campo da catequese, evangelização e nas mais varia-
das formas da ação social e caritativa (cf. GRASSO, 1982, p. 13s).

O Concílio Vaticano II, mesmo não usando a palavra "carisma" em relação à


vida consagrada, apresenta-a como uma das expressões carismáticas da
Igreja. Ao dizer que, embora não faça parte de sua estrutura hierárquica, ela
pertence "�rmemente à sua vida e à sua santidade" (ALMEIDA, 2005, n. 44), o
Concílio a coloca entre os dons com os quais o Espírito guia e enriquece a
Igreja. Seja na sua forma contemplativa, apostólica ou secular, de vida comu-
nitária ou solitária, é reconhecida pelo Concílio como um dom divino feito à
Igreja (cf. ALMEIDA, 2005, n. 43). No proêmio do Decreto Perfectae Caritatis, fa-
la dos homens e mulheres que, desejosos de seguir Cristo sob o impulso do
Espírito Santo, ou viveram uma vida solitária ou fundaram famílias religiosas,
reconhecendo que essa variedade de dons enriquece a Igreja (cf. PAULO VI,
1965, n. 1). Em Lumen Gentium, apresenta a vida consagrada como uma mani-
festação da "in�nita potência do Espírito Santo, admiravelmente operante na
Igreja" (ALMEIDA, 2005, n. 44). João Paulo II, em sua Exortação Apostólica Vita
Consecrata, a�rma que a unidade e a pluralidade são obras do Espírito Santo
"pois é Ele quem constitui a Igreja numa comunhão orgânica na diversidade
de vocações, carismas e ministérios" (JOÃO PAULO II, 1996, n. 31). Ao referir-se
à variedade dos carismas nos quais se manifesta a vida consagrada, reconhe-
ce que eles representam um precioso dom de Deus à sua Igreja (cf. JOÃO
PAULO II, 1996, n. 2 e 5). Podemos, portanto, concluir que a vida consagrada,
como vocação especí�ca na Igreja, tipo de existência cristã batismal, provém
da força e generosidade do Espírito.

3. Os fundadores: homens e mulheres movidos


pelo Espírito
Como dissemos anteriormente, a Igreja reconhece que as diversas manifesta-
ções da vida consagrada são expressão da contínua manifestação do Espírito
na comunidade eclesial. Ao analisar o caminho espiritual vivido pelos funda-
dores, damo-nos conta de ser assim que eles também percebem a sua experi-
ência carismática.

Para referir-se a ela, usam termos como "revelação", "inspiração", "luz", "intui-
ção" ou "visão". Essas expressões indicam a forma como interpretam o próprio
movimento interior que se desencadeia nos fundadores, o longo processo de
discernimento e decisão que gradualmente os conduz à fundação de uma no-
va família religiosa. Embora a forma de tomar consciência da missão que
Deus lhes con�a seja diversi�cada, manifesta-se comum a todos a consciência
de estarem realizando um projeto que não tem a sua origem neles mesmos,
mas que é fruto de uma inspiração que provém do Espírito (cf. CIARDI, 1982, p.
47).

Essa inspiração pode ser percebida diretamente pela própria pessoa do funda-
dor, sem a interferência de outros. Nesse caso, estamos no âmbito da experi-
ência mística – no seu sentido amplo –, na qual Deus manifesta o seu projeto,
por meio de uma visão intelectual ou sensitiva, de uma iluminação interior,
um sonho ou simples intuições espirituais. Tais experiências deixam na pes-
soa a certeza de que a iniciativa de fundar não é sua, mas de Deus (cf. LOZANO,
1978, p. 55ss.). Essas formas diversas são denominadas .
Elas se caracterizam pelo fato de a manifestação da vontade de Deus prescin-
dir de circunstâncias externas, uma determinada leitura dos acontecimentos
ou da realidade histórica.

Na , para manifestar o seu projeto, Deus se serve de deter-


minadas circunstâncias externas relacionadas à vida do fundador – situações
históricas, sociais e religiosas –, diante das quais ele se sente interpelado a
dar uma resposta. Trata-se, normalmente, de situações de carência, em que
uma parte da população se encontra e não consegue enfrentá-la sozinha nem
contar com a ajuda de outras pessoas ou instituições.

Esse dado é importante, pois nos revela um elemento fundamental da vida


consagrada. Na sua origem, ela se apresenta como uma expressão de fronteira
na vida da Igreja. A História nos mostra que novas famílias de consagrados
não nascem para fazer o mesmo que outros num determinado contexto histó-
rico, porém, para responder ao que está esquecido, isto é, ocupar-se de grupos
humanos abandonados e carentes. Podemos, portanto, dizer que a vida consa-
grada não apenas assume a missão da Igreja, mas se coloca na linha de frente,
chamando a atenção para situações esquecidas ou ainda não su�cientemente
atendidas.

No processo de fundação, muitas vezes, o fundador envolve-se diretamente e,


aos poucos, outras pessoas vão se unindo ao seu projeto. Ele faz, então, uma
gradual institucionalização de sua obra, que se efetivará em uma nova funda-
ção. Nesse processo gradual de discernimento, os fundadores manifestam
uma preocupação particular: entender qual é a vontade de Deus em relação ao
novo projeto.

A inspiração se apresenta na vida dos fundadores em forma de um ideal, sem


ter ainda as características de um projeto já elaborado, como se eles tivessem
unicamente que executar aquilo que já veem com clareza. Num primeiro mo-
mento, é clara a intuição fundamental de uma missão a realizar, como respos-
ta a um chamado de Deus, mas não são claros os passos, nem mesmo o que
deve ser feito. Vejamos um exemplo para tentar esclarecer: o teólogo jesuíta
Hugo Rahner assim comenta o percurso realizado por Santo Inácio, a partir da
experiência mística que teve à beira do Rio Cardoner até entender realmente
qual era a missão que Deus tinha para ele:

À força luminosa, inesquecível, da graça do Cardoner se une a obscuridade da igno-


rância sobre a forma concreta da execução, que o guia na direção da meta por quin-
ze anos a passos breves, lentos, incertos (RAHNER, 1959, p. 125ss.).
Nesse caso concreto, portanto, foram necessários quinze anos para que ele
conseguisse entender o que Deus esperava dele.

Para compreender esse contraste entre inspiração luminosa e caminho na es-


curidão, ao qual são submetidos os fundadores, é preciso ter presente a própria
natureza da experiência mística, que leva o espírito humano a uma visão sin-
tética, intuitiva, ou seja, um momento intenso de experiência de Deus que
marca para sempre a vida da pessoa, mas não dispensa o esforço humano no
difícil discernimento dos sinais que, gradualmente, revelam o Seu projeto.

Não são raros os casos em que os primeiros planos de concretização do projeto


sofrem alterações signi�cativas. A composição das primeiras Regras ou
Constituições é um momento signi�cativo, porque por meio delas o fundador
apresenta de forma sistemática a �sionomia da nova família religiosa.
Ordinariamente, exprime a intenção originária, enriquecida pela experiência
de vida dos primeiros membros, e serve para iluminar a vida e as obras daque-
les que farão parte dela.

Por meio desse processo brevemente apresentado, podemos dizer que o funda-
dor aparece como uma pessoa movida pelo Espírito Santo. É sob a sua guia
que se desenvolve a sua vida e o projeto de Deus, o qual, com sua pluralidade
de dons, enriquece e vivi�ca o Corpo de Cristo com novas famílias religiosas,
capazes de responder aos novos sinais dos tempos.

4. O carisma como experiência do Espírito


Alguns autores, os quais estudam o dom do Espírito que conduz à fundação de
uma nova família religiosa, costumam distinguir dois termos:

1. carisma fundador;
2. carisma fundador.

A primeira expressão (carisma fundador) se refere às graças que tornam a


pessoa capaz de tornar-se fundador. A alguns homens e mulheres, o Espírito
concede não apenas a da vocação pessoal à vida consagrada, mas, também, a
graça especial de serem iniciadores de um carisma concreto e novo que enri-
quece a Igreja (cf. AUBRY, 1994, p. 142).
Partindo, portanto, desse princípio, o Concílio Vaticano II reconhece que a ad-
mirável variedade com que a vida consagrada se apresenta e enriquece a
Igreja se deve a homens e mulheres ilustres. Com a expressão "carisma
fundador" ordinariamente se entende o conteúdo da experiência do Espírito,
que, vivida de forma exemplar pelo fundador, é transmitida a todos os que de-
sejam tomar parte daquela família de consagrados, a qual leva a compreensão
existencial do mistério de Cristo e seu Evangelho e a partir da qual o fundador
traça a identidade de uma obra que se exprime num serviço à Igreja e socieda-
de como resposta a uma determinada situação histórica (cf. CIARDI, 1982, p.
16).

Seguindo tal raciocínio, é a consciência de ter uma identidade própria para


sua obra que leva os fundadores a reivindicarem para si o direito de delinear a
identidade da família consagrada por eles fundada. A consciência de que a ex-
periência vivida pelos fundadores e transmitida aos seus discípulos tem ori-
gem no Espírito leva a Igreja a reconhecer, na vida consagrada, um dom preci-
oso, necessário no presente e para o futuro, pertencente à vida, santidade e
missão da Igreja (cf. JOÃO PAULO II, 1996, n. 3).

A experiência dos fundadores, que confere a cada congregação uma identida-


de própria, pode ser apresentada a partir de três dimensões fundamentais.
Vejamos cada uma delas.

A dimensão cristológico-evangélica
Cada fundador faz uma leitura própria do Evangelho a partir de um trecho, pa-
lavra ou frase que se transforma, para ele, em chave de leitura de todo o
Evangelho e toda a experiência do mistério de Cristo. É ao seu redor que ele
harmoniza os diversos elementos da vida da nova família religiosa, como, por
exemplo: espiritualidade, missão, relação entre os membros e formas de go-
verno. Essa leitura particular do Evangelho dá um caráter de originalidade a
cada fundador e instituto.

Um exemplo pode deixar mais claro o que queremos dizer. O aspecto do misté-
rio de Cristo que realmente impressiona São Francisco é o seu despojamento,
que se manifesta de modo particular no nascimento e na morte. Para contem-
plar a simplicidade com que o Filho de Deus nasceu entre nós, Ele criou o pre-
sépio, na cidade de Greccio. São Francisco mostra, apaixonado pelo Cristo do
Mistério Pascal, o trecho do Evangelho que apresenta o seguimento de Cristo
totalmente despojado e dedicado à sua missão, o envio dos setenta e dois dis-
cípulos:

Eis que eu vos envio como cordeiro entre lobos. Não leveis bolsa, nem alforje, nem
sandálias [...] Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘Paz a esta casa!'
(Lc 10,3-5).

Ao ouvir esse trecho durante uma celebração, São Francisco exclamou: "é isso
que eu quero, isso que eu peço, isso que desejo fazer com todo o coração"
(CIARDI, 1982, p. 161, n. 54; 1 CELANO, 22). Tal expressão de São Francisco mos-
tra com clareza que a melhor forma de seguir Jesus, segundo ele, é justamente
despojar-se de tudo, como ele o fez e propôs aos seus discípulos. É nessa pers-
pectiva que se deve entender o seu gesto simbólico de despir-se diante do bis-
po: é preciso despojar-se de tudo para seguir aquele que, por primeiro,
despojou-se. São Francisco vive todo o Evangelho a partir da ótica do despoja-
mento, central na vida franciscana.

De forma análoga à compreensão do mistério de Cristo na identidade da vida


franciscana, pode-se dizer que cada fundador e família religiosa vive todo o
Evangelho, mas a partir de um outro que se torna central. É a partir dele que
são elaborados todos os elementos que compõem a identidade e a vida da no-
va família de consagrados. Aqui está a origem da grande diversidade com que
se manifesta a vida consagrada, tornando-se uma riqueza extraordinária para
a Igreja (cf. JOÃO PAULO II, 1996, n. 5). Justamente porque cada comunidade de
consagrados percebe o mistério de Cristo a partir de um aspecto de seu misté-
rio, os múltiplos carismas tornam "o mistério de Cristo perenemente presente
na Igreja e no mundo, no tempo e no espaço" (JOÃO PAULO II, 1996, n. 5).

Tais elementos mostram como a ação do Espírito Santo conduz à pessoa de


Cristo, de modo que os consagrados possam reproduzir o mais �elmente pos-
sível sua vida e missão. A vida consagrada, em geral e em cada instituto, em
particular, não se apresenta, portanto, primeiramente, como uma determinada
missão a realizar ou como um conjunto de virtudes a praticar, mas como uma
forma de seguimento pleno de Jesus Cristo, percebido por meio de um aspecto
particular do seu mistério. É por isso que a Exortação Apostólica Vita
Consecrata a�rma que é Cristo o ponto de referência primeiro, a partir do qual
os consagrados avaliam sua �delidade ao próprio carisma (cf. JOÃO PAULO II,
1996, n. 9).

Dentro dessa perspectiva, pode-se a�rmar que a fonte e, ao mesmo tempo, a


expressão culminante de cada carisma encontram-se na própria pessoa de
Cristo. Você mesmo pode perceber como a ação do Espírito que suscita uma
nova comunidade de consagrados aponta para o centro da vida cristã, a qual é
a pessoa de Cristo. É na plenitude do seu mistério que cada um e todos os ca-
rismas encontram sua máxima realização e ponto de unidade (cf.
CASTELLANO, 1994, p. 543). Por outro lado, a ação do Espírito leva à vivência
do inteiro mistério sob uma ótica particular, os próprios fundadores com cons-
ciência da singularidade do próprio instituto e da existência de um caminho
original de seguimento de Cristo. Mesmo quando parece difícil notar traços
originais em uma determinada comunidade de consagrados, o fundador a�r-
ma, com segurança, a existência de uma identidade especí�ca (cf. CIARDI,
1982, p. 145).

A dimensão profético-eclesial
Um dos elementos típicos do carisma, no seu sentido amplo, é a sua eclesiali-
dade: apresenta-se como um dom de Deus para edi�cação do Corpo Místico de
Cristo. É por isso que a Exortação Apostólica Vita Consecrata apresenta a vida
consagrada como um dom do Espírito à Igreja e reconhece nela um "elemento
decisivo para a sua missão" (JOÃO PAULO II, 1996, n. 2). Na sua experiência, os
fundadores manifestam consciência da dimensão eclesial-missionária de seu
carisma. A conformação a Cristo, que o Espírito realiza em suas vidas, não vi-
sa somente a sua santi�cação, mas também os leva a assumir um serviço es-
pecí�co na Igreja, em resposta às situações urgentes do seu tempo.

Juntamente com a dimensão eclesial, aparece a dimensão profética.


Independentemente do maior ou menor grau de originalidade na forma de vi-
da consagrada a ser vivida, um aspecto especí�co do carisma do fundador é a
sua capacidade peculiar de discernir os sinais dos tempos, entender os apelos
e respondê-los de forma evangélica e e�caz (cf. CIARDI, 1982, p. 300). Enquanto
outras pessoas de seu tempo veem uma determinada situação histórica ainda
polivalente e opaca, os fundadores, em virtude do carisma que receberam, sa-
bem lê-la com capacidade de juízo e, sobretudo, são capazes de intuir e propor
respostas novas. Os novos carismas, portanto, colocam-se sempre no âmbito
da novidade que antecipa respostas concretas a situações de carência no seu
contexto socioeclesial.

É por essa perspicácia dos fundadores que o carisma religioso traz consigo
um inevitável elemento de contestação histórico-eclesial (cf. GÓMEZ, 1990, p.
105). Os carismas apresentam-se como uma contribuição original à vida da
Igreja. A História mostra de forma clara que o elemento dinâmico, fonte de to-
da verdadeira novidade, é sempre representado pela série de carismas que o
Espírito livre, periódica e imprevisivelmente, suscita quando e onde os ho-
mens menos esperam (cf. CARDAROPOLI, 1981, p. 120).

A consciência de ser uma resposta a necessidades concretas, porém, nem


sempre está presente no fundador e na fase inicial da sua obra. Muitas vezes,
torna-se perceptível a partir dos frutos que começam a surgir.

Isso signi�ca que, ao terem consciência de serem portadores de um dom que


deve ser posto a serviço de todo o Corpo de Cristo, os fundadores buscam a
aprovação de sua obra por parte da Igreja. Pelo fato, todavia, de apresentarem
sempre uma carga de novidade, os carismas nem sempre são imediatamente
compreendidos. Mutuae Relationes sintetiza assim tal processo: "a relação
justa entre carisma genuíno, perspectiva de novidade e sofrimento interior,
comporta uma constante histórica de conexão entre carisma e cruz" (BAGGIO;
PIRONIO, 1978, n. 12).

A dimensão comunitária
A dimensão comunitária, também denominada dimensão de fecundidade,
refere-se à capacidade do fundador de atrair outras pessoas para viver com ele
a mesma experiência do Espírito (cf. ROMANO, 1989, p. 68). Dimensão essenci-
al do carisma de fundador, uma pessoa somente pode ser considerada como
tal quando há um grupo que deseje partilhar efetivamente de sua experiência
carismática. A própria vida do fundador torna-se um chamado do Espírito pa-
ra outras pessoas que nele encontram uma parte de si mesmo, enquanto des-
cobrem que também são chamadas por Deus a viver daquela forma o
Evangelho e a prestar um serviço especí�co à Igreja. Ao entrar em contato
com a nova forma de vida, elas têm a clara sensação de achar o que há tempo
buscavam. Unindo-se ao fundador, essas pessoas dão origem a uma vida de
testemunho comunitário, germe de uma nova família religiosa.

Dessa forma, a�rma-se a paternidade e maternidade espiritual dos fundadores


e das fundadoras. Eles reúnem, ao redor de si, �lhos e �lhas que, de certa for-
ma, geram espiritualmente, enquanto os introduzem numa forma própria e
original de seguimento de Jesus. Em muitos casos, o primeiro grupo de discí-
pulos oferece uma contribuição signi�cativa aos fundadores em seu processo
de compreensão e explicitação do carisma.

5. Carisma do fundador e carisma do Instituto


O carisma de uma família de consagrados é evidente e intimamente relacio-
nado ao carisma do seu fundador. O documento Mutuae Relationes de�ne tal
carisma:

[...] como uma experiência do Espírito transmitida aos próprios discípulos, para ser
por eles vivida, preservada, aprofundada e constantemente enriquecida em sinto-
nia com o Corpo de Cristo em contínuo crescimento (BAGGIO; PIRONIO, 1978, n. 11).

A descrição mostra como o carisma não é algo estático, de�nido de uma vez
por todas. A experiência espiritual do fundador será sempre ponto de referên-
cia para aquela família de consagrados. Mas o carisma é dinâmico e, por isso
mesmo, enriquecido pela forma como cada geração de membros o compreen-
de e vive. Essa diversidade na compreensão e vivência do carisma forma o pa-
trimônio espiritual da família de consagrados.

Somente a História poderá dizer o que realmente é um determinado carisma e


quais suas reais potencialidades.

6. Fidelidade e renovação
Solicitando às congregações religiosas um retorno às fontes, o Concílio
Vaticano II apresenta-lhes uma questão nova: há no próprio instituto continui-
dade com as origens? As comunidades estavam convencidas de que seu modo
de viver estava em perfeita conformidade com as mesmas fontes. Por isso,
certos movimentos de renovação que apareciam no interior da vida consagra-
da se concretizavam, sobretudo, na fundação de novos institutos, sem renovar
aqueles já existentes. Salvo raras exceções, não existia uma mentalidade de
renovação capaz de suscitar uma constante adaptação às novas necessidades
do mundo. Muitos prosseguiam seu caminho com as constituições escritas
pelo fundador ou pela fundadora; os mesmos usos, manuais de oração e devo-
ções conservadas com veneração (TILLARD, 1968, p. 72s). Esse Concílio insiste
em uma renovação que, sem desconhecer a dimensão pessoal, centraliza sua
atenção na comunidade.

O Concílio Vaticano II pede mudanças em elementos fundamentais, como or-


ganização e governo, constituições, diretórios, orações, livros de usos e de ce-
rimônias, bem como outros códigos da mesma ordem (cf. PAULO VI, 1965, n. 3).
Não se trata, portanto, de pequenas modi�cações, mas pede-se que tudo seja
reexaminado a partir da nova mentalidade eclesial. Esse exame deve manter
um olhar atento, fundamentalmente, em dois aspectos: de um lado, na atuali-
dade, em que está compreendida a realidade da Igreja e do mundo contempo-
râneo em contínua mudança; de outro, nas origens da vida cristã, comuns a
todos, que é o Evangelho e as origens especí�cas do próprio instituto, o caris-
ma (cf. PAULO VI, 1965, n. 2). Tal releitura se torna essencial para que a Igreja
seja enriquecida pela variedade dos carismas dos diversos institutos (cf.
PAULO VI, 1965, n. 2).

Não é simplesmente um direito, mas também um dever que incumbe a cada


instituto enriquecer a comunidade eclesial a partir da sua peculiaridade: cada
instituto nasceu para a Igreja e deve enriquecê-la com suas características, es-
pírito e missão que lhe são próprios (cf. BAGGIO; PIRONIO, 1978, n. 14). A devida
valorização do carisma consiste na plena recuperação da sua especi�cidade
dentro da comunidade mais ampla, que é a Igreja. É a �delidade a um passado,
o qual os religiosos são chamados a compreender, para vivê-lo de forma criati-
va, em atenção aos atuais sinais dos tempos.

O documento religioso e promoção humana da Congregação para os Institutos


de Vida Consagrada apelam à �delidade dinâmica, às intenções segundo as
quais o Espírito suscitou os institutos na Igreja (n. 8); à identidade especí�ca
do instituto (n. 33); a uma �delidade capaz de atualizar, nas concretas situa-
ções de vida e missão do instituto, a mesma audácia com a qual seu fundador
se deixou guiar pelo Espírito (n. 30). Trata-se, portanto, de algo que não é está-
tico, mas dinâmico; de uma fonte de inspiração, ou seja, de um espírito que
continua a agir e inspirar.

Os fundadores souberam encarnar no seu tempo, com coragem e santidade, a


mensagem evangélica. É preciso que, sendo �éis ao sopro do Espírito, os seus
�lhos espirituais prossigam no tempo esse testemunho, imitando a criativida-
de, com uma madura �delidade ao carisma das origens, em constante escuta
das exigências do momento presente.

Maccise identi�ca na �delidade criativa o �o condutor da Exortação


Apostólica Vita Consecrata (1996, p. 109-121). Os discípulos são chamados a in-
terrogar a si mesmos sobre as novas fronteiras, sempre, é claro, em sintonia
com aquelas que foram as preocupações originais do próprio fundador.

Uma �delidade que não atualizasse a inspiração originária do fundador con-


duziria o instituto à morte; por outro lado, uma renovação desligada das pró-
prias origens levaria à fundação de uma nova comunidade. A �delidade con-
siste em inspirar-se no modo de proceder do fundador para exprimir, adequa-
damente, hoje, a mesma experiência do mistério de Cristo, a atitude espiritual
fruto da iluminação do Espírito, tendo em conta o atual contexto sociocultural
(cf. MACCISE, 1996, p. 109-121).

A renovação da vida consagrada solicitada pelo Concílio Vaticano II se apre-


senta, portanto, como um processo jamais concluído, mas sempre aberto e ne-
cessário cada vez que o instituto se encontra diante de estruturas que perten-
çam a outro contexto histórico e já não mais favoreçam o dinamismo caris-
mático das intenções fundantes (cf. ROMANO, 1989, p. 165).

Lozano apresenta alguns critérios para a leitura e renovação do carisma:


- Essencialidade: distinção entre o que é fundamental e o que é secundário na expe-
riência do fundador.
- Proporcionalidade: colocar-se diante do mundo e da Igreja de hoje como o funda-
dor se colocou diante do mundo e da Igreja do seu tempo.
- Intencionalidade: é importante descobrir as intenções do fundador para compre-
ender, a partir delas, as suas ações e opções concretas.
- Realidade profunda e formas históricas: torna-se necessário distinguir o sentido
de certas decisões das suas formas históricas (cf. LOZANO, 1978, p. 766).

Outro elemento não menos importante provém do fato de que se trata de �deli-
dade a um especí�co dom do Espírito Santo. Por isso, a compreensão e o enri-
quecimento não acontecem simplesmente como fruto de estudo ou re�exão –
elementos importantes –, mas é proporcional à qualidade da vida espiritual de
todos os membros da comunidade.

7. Considerações
Chegamos ao término da unidade. Você foi convidado a compreender a íntima
relação entre a vida cristã, a qual todos os cristãos são chamados a viver, e a
vida consagrada, buscando identi�car o que é especí�co, bem como analisar a
dimensão carismática da vida consagrada. Enquanto a Instituição está sem-
pre ligada à tradição, ela precisa zelar pela continuidade e �delidade às ori-
gens, assim, os carismas se colocam, sobretudo, no âmbito da inovação.
Carisma, nesse sentido, é entendido como experiência do Espírito que leva um
fundador ou fundadora dar vida a uma nova família de consagrados, comuni-
cando a ela uma identidade própria. Dado que todas as concretizações enve-
lhecem com o tempo, há uma dinâmica contínua que entrelaça a �delidade à
renovação.

A pura �delidade envelhece; a pura renovação rompe a relação com a experi-


ência originária. Ao propor a �delidade criativa como �o condutor da
Exortação Apostólica Vita Consecrata, o Papa João Paulo II chama a atenção
para a necessidade de uma relação dinâmica que entrelaça �delidade e reno-
vação.

Na próxima unidade, iniciaremos nossa abordagem sobre o tema do sacerdó-


cio.

Até lá!
(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-

g03273-fev-2024-grad-ead/)

Unidade 6 – O sacerdócio na Sagrada Escritura

Objetivos
• Conhecer a identidade e as funções do sacerdote no Antigo Testamento.
• Compreender a importância do sacerdócio no Antigo Testamento.
• Analisar o sacerdócio a partir do Novo Testamento.
• Interpretar a postura dos autores dos livros neotestamentários em rela-
ção ao sacerdócio antigo.
• Compreender a nova visão do sacerdócio a partir do Novo Testamento.
• Analisar as novidades do sacerdócio de Cristo.

Conteúdos
• O sacerdócio em outras culturas.
• Funções sacerdotais no Antigo Testamento.
• Importância do sacerdócio.
• O sacerdócio no Novo Testamento.

Orientações para o estudo


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orienta-
ções a seguir:

1. Sugerimos que você leia o texto quantas vezes for necessário para uma
boa compreensão do conteúdo.
2. Elaborar síntese e esquemas próprios.
3. Sugerimos, também, que você leia os textos bíblicos que citamos nesta
unidade, para entender melhor o contexto, bem como a bibliogra�a indi-
cada para obter uma compreensão mais ampla e aprofundada.

1. Introdução
Nesta unidade, procuraremos identi�car os elementos essenciais que caracte-
rizam a compreensão do sacerdócio na Sagrada Escritura. Um breve aceno a
outras culturas tem apenas a intenção de mostrar que o sacerdócio não é prer-
rogativa do judaísmo e do cristianismo. Como você mesmo poderá notar, al-
guns elementos perpassam as diversas compreensões, enquanto outras apa-
recem de forma original em uma ou outra tradição religiosa.

Um paralelo entre a compreensão do Antigo e do Novo Testamento mostra a


especi�cidade do sacerdócio cristão a partir da pessoa de Jesus Cristo.

2. O sacerdócio em outras culturas


Castellucci (2002, p. 14ss.) nota que, nas mais diversas expressões religiosas, o
sacerdócio aparece ligado ao conceito de mediação. No ambiente grego,
Homero apresenta o sacerdote como um homem que dispõe de capacidades
particulares para entender as coisas divinas. Por consequência, ele é a pessoa
mais adequada para mediar as relações com as divindades. Para Platão e
Aristóteles, essa mediação se concretiza, sobretudo, na apresentação das ofer-
tas e preces aos deuses. Entre os estoicos e os cínicos, a �gura sacerdotal é en-
tendida a partir do ponto de vista �losó�co: o sacerdote é aquele que perscruta
a natureza divina.

Desse modo, por meio de uma abordagem sintética sobre diversas religiões,
Parusel (1993, p. 799-800) a�rma que o sacerdote é:

Uma pessoa que tem por função celebrar atos cultuais e rituais como delegado e re-
presentante de uma comunidade religiosa tornando-se, assim, mediador entre o
homem e a divindade [...]. O seu poder [...] lhe permite [...] aproximar-se sem perigo
da esfera divina para realizar seu papel de mediador.

No âmbito do povo da Aliança, o sacerdócio passou por transformações ao


longo de sua história. Para escrever a história do sacerdócio bíblico, precisa-
ríamos estudar sua presença nos santuários de Israel, mas a brevidade de nos-
so estudo não nos permite entrar em detalhes para analisar as diversas com-
preensões que se sucederam nessa experiência religiosa. Limitar-nos-emos a
um olhar de síntese, buscando identi�car elementos constantes na compreen-
são do sacerdócio.

3. Funções sacerdotais no Antigo Testamento


Os primeiros textos que falam do sacerdócio, após a entrada na Terra
Prometida, mostram o apreço pela presença do sacerdote e sua relação com
um santuário, o qual é sinal visível da presença de Iahweh no meio do seu po-
vo, e os sacerdotes estão a serviço dessa mesma presença. A relação do sacer-
dote com um santuário é um traço constante na história do povo da Aliança.
As funções sacerdotais são diversas, e você vai conhecê-las na ordem crono-
lógica que aparecerem.

Em primeiro lugar, aparece a função chamada . Nesse sentido, cabe


ao sacerdote um papel de mediação, que consiste em interrogar Iahweh sobre
sua vontade para os que desejam conhecer os seus caminhos e comunicar sua
mensagem aos homens. Um exemplo pode tornar mais claro o que queremos
dizer. Os enviados dos �lhos de Dã, de passagem pelo santuário de Micas – ha-
bitante da montanha de Efraim –, ao se depararem com um sacerdote, pedem-
lhe para que consulte a Deus em relação ao sucesso do empreendimento que
intentam realizar: "ide em paz, responde-lhes o sacerdote, o vosso caminho es-
tá sob os cuidados de Iahweh" (Jz 18,5). Outros exemplos podem ser encontra-
dos em: 1Sam 14,41; 23,9; 30,7.

Uma segunda função consiste em ensinar a Lei de Deus para o seu povo e, ao
mesmo tempo, discernir a conformidade ou desconformidade de um compor-
tamento com a mesma lei. Nesse sentido, os sacerdotes tem a função de zelar
para que o comportamento dos israelitas esteja de acordo com a Palavra do
Senhor. É elucidativa a passagem de Nm 31,9-13: tendo escrito a Lei, Moisés a
entregou aos sacerdotes que carregavam a Arca da Aliança e ordenou-lhes:
Reúne o povo, os homens e mulheres, as crianças e o estrangeiro que está em tuas
cidades, para que ouçam e aprendam a temer a Iahweh vosso Deus, e cuidem de pôr
em prática todas as palavras desta lei.

As funções cultuais que não aparecem nas referências mais antigas


a�rmaram-se gradualmente, até se tornarem as principais: "eles oferecem in-
censo às tuas narinas e holocaustos sobre o teu altar" (Dt 33,10). O sacerdote,
porém, não sacri�cava as vítimas, mas apenas depositava sobre o altar a parte
do sacrifício que cabia a Deus.

O sacerdote tinha também a função de abençoar em nome de Deus. Iahweh


separa a tribo de Levi para o sacerdócio. É essa tribo que é encarregada de le-
var a Arca da Aliança, servir a Deus e abençoar em seu nome (cf. Dt 10,8). A
própria presença do levita é sentida como garantia da benção de Deus: "eu sei
que Iahweh me fará bem, porque tenho este levita como sacerdote" (Jz 17,13).
Com o passar do tempo, a função de interceder pelo povo junto a Deus foi ga-
nhando força:

Onias, que tinha sido sumo sacerdote, homem honesto e bom, modesto no trato e de
caráter manso, expressando-se convenientemente no falar e, desde a infância,
exercitado em todas as práticas da virtude, estava com as mãos estendidas, inter-
cedendo por toda a comunidade dos judeus (2Mc 15,12).

Essas diferentes funções têm íntima relação com a mediação. Ao transmitir


um oráculo, o sacerdote comunica uma resposta de Deus; ao instruir na lei de
Deus, ele interpreta os ensinamentos divinos; ao estender suas mãos, transmi-
te as bênçãos e graças divinas; ao depositar sobre o altar as vítimas do sacrifí-
cio, ele apresenta a Deus os pedidos dos �éis. Seguindo essa de�nição, pode-
mos dizer que o sacerdote, na compreensão do Antigo Testamento, é um re-
presentante de Deus junto aos homens e destes junto de Deus: "com sua dupla
mediação – descendente e ascendente –, todas as suas atividades tendem a
criar comunhão entre ambos" (cf. OÑATIBIA, 1998, p. 810).

Como você poderá perceber, a missão principal dos sacerdotes – zelar pelo
templo, apresentar as oferendas, interpretar a vontade divina e ensinar sua
palavra – é a de fazer a ponte entre o mundo dos homens, entendido como
profano, e o mundo da divindade, que é o mundo sagrado. A separação entre
sagrado e profano está na base do sacerdócio da Antiga Aliança.

Vale salientar, contudo, que a condição de mediador exigia deles uma particu-
lar proximidade de Deus. Entende-se que o sacerdócio não é apenas uma fun-
ção, mas se refere ao ser, enquanto indica, antes de tudo, uma relação singular
com Deus. A partir da viva consciência da santidade de Deus, há exigências
concretas para quem quer aproximar-se dele:

Sendo Deus santo, para entrar em relação com ele é necessário ser santo, isto é,
passar do nível profano da existência ordinária ao nível sagrado da realidade divi-
na (VANHOYE, 1988, p. 1390).

É importante você perceber que a realidade em que as pessoas ordinariamen-


te vivem, na mentalidade antigotestamentária, era vista como profana. Assim,
para alcançar a santidade necessária para apresentar-se diante do Senhor, era
necessária uma série de separações rituais. Dado que o povo, apesar de sua
eleição, não possuía a santidade su�ciente para aproximar-se de Deus (cf. Ex
19,12; 33,3), a tribo de Levi foi separada das outras em vista do serviço litúrgico.
No interior dessa tribo, a família de Arão foi separada para o oferecimento dos
sacrifícios. Dentro dessa família, um membro foi separado para ser o sumo sa-
cerdote, para o qual era reservado o ato mais solene do culto: o encontro com
Deus. Para entrar no lugar sagrado a �m de oferecer o sacrifício, o sacerdote
devia cumprir uma série de ritos para distanciar-se do mundo profano e
aproximar-se do celeste: uma consagração, descrita com detalhes em Ex 29 e
Lv 9, transfere-o do espaço profano para a esfera do sagrado. Trata-se de um
banho ritual que o puri�ca dos contatos profanos e uma unção que o impregna
de santidade. Os indumentos especiais com que o sacerdote se veste simboli-
zam a pertença ao mundo do sagrado. Tal santidade deve ser cuidadosamente
preservada: preceitos severos obrigam o sacerdote a evitar tudo o que possa
levá-lo ao nível profano (cf. Lv 21), e a transgressão deles o impediria de
aproximar-se de Deus (cf. VANHOYE, 1983, p. 16).

Antes de continuar nossa re�exão, é importante que façamos algumas considerações para
que você possa entender melhor o sentido do "sacrifício" na Antiga Aliança.

Para entender o sentido do sacrifício antigo, é necessário, antes de mais nada,


distingui-lo da nossa compreensão. Na linguagem corrente, quando falamos
de , normalmente estamos nos referindo à . Nesse sentido,
fazer um sacrifício signi�ca privar-se de alguma coisa por motivos ascéticos,
não raro, penitenciais. O sentido antigo da palavra era bem diferente. O termo
não signi�cava privação, mas : sacrifício, de sacrum facere,
"tornar puro, sagrado". O sacrifício, então, era um ritual por meio do qual uma
oferenda, pertencente ao mundo profano, passava para o mundo sagrado.
Assim, o sacerdote oferece sacrifícios porque lhe é impossível passar para o
mundo divino. Apesar de todas as cerimônias de consagração, ele continua
sendo um homem terreno. O animal, por sua vez, é completamente subtraído
do mundo profano, pois, oferecido sobre o altar do templo, é consumido pelo
fogo e, em forma de fumaça, transportado aos céus (cf. Gn 8,20-21; Lv 1,9.17).
Algo análogo acontece quando seu sangue é como que lançado (cf. Lv 16,14-15)
ao trono de Deus (cf. VANHOYE, 1983, p. 17).

Tendo cumprido todos os ritos, o sacerdote estava pronto para apresentar o sa-
crifício a Deus, o que signi�ca fazer passar uma vítima do mundo profano para
o divino, que é o sentido de sacri�car, tornando-a sagrada. O sacerdote, apesar
dos ritos de consagração, permanecia um homem terrestre, sem passar para o
mundo divino. O ritual previa, então, que fosse escolhido um animal sem de-
feito para ser consumado pelo fogo. Completamente subtraída da existência
terrestre, a vítima era devorada pelo fogo celeste, sendo levada para junto de
Deus. Depois desse movimento ascendente, esperava-se um movimento des-
cendente de graças divinas. O sacerdote, mediante o sacrifício apresentado a
Deus, tornava-se mediador dos favores divinos: podia comunicar ao povo o
perdão divino e o �m dos castigos provocados pelos pecados; o caminho certo
a seguir; e abençoar o povo em nome de Deus, trazendo-lhe fecundidade, paz e
felicidade (VANHOYE, 1988, p. 1391).

A separação não é algo que se refere apenas ao sacerdote. Segundo a mentali-


dade antigotestamentária, não se encontra Deus em qualquer lugar, mas so-
mente em lugar santo, isto é, no espaço reservado ao culto, proibido ao público.
Essa é outra expressão de separação.
O sacerdote é separado do povo para dedicar-se ao culto; deixa o espaço profa-
no para entrar no lugar santo; abandona as atividades profanas para dedicar-
se às cerimônias sagradas; suas ofertas sacri�cais deixam a vida terrena para
elevar-se junto de Deus.

4. Importância do sacerdócio
Ao longo dos séculos, observa-se em relação ao sacerdócio uma dupla evolu-
ção, a qual intensi�ca sua importância no interior do povo de Deus. Pela in-
�uência dos profetas e da reforma de Josias, cresce, signi�cativamente, o res-
peito pela santidade de Deus. A consequência disso será uma nova organiza-
ção do culto e sacerdócio. Ao invés de uma multiplicidade de santuários, um
único passa a ser considerado legítimo; todos os demais são comparados aos
templos pagãos e, portanto, destruídos. De forma análoga, o sacerdócio é uni�-
cado e hierarquizado.

No culto sacri�cal, o aspecto da expiação responde melhor à relação com a


santidade de Deus e, por consequência, assume o lugar central, tornando-se o
cume de todo o culto (cf. Lv 16). Esse era o único dia em que o sumo sacerdote
podia entrar na parte mais santa do templo. O culto da expiação manifestava a
maior exigência de santidade.

A segunda evolução refere-se ao poder. Depois do retorno do Exílio, o sumo sa-


cerdote assume uma posição de autoridade não apenas religiosa, mas também
civil (cf. Eclo 50,4). O título de sumo sacerdote passou a signi�car o acúmulo
de todos os poderes. Diante dos procuradores romanos, o sumo sacerdote se
apresentava como a autoridade maior da nação. Era ele quem presidia o siné-
drio – assembleia que constituía a suprema autoridade do povo judeu nos
tempos helenistas e romanos –, reconhecido, também, pelo próprio Império
Romano como autoridade local. Em consequência disso, tornou-se objeto de
ambições e rivalidades extremas.

O sacerdócio levítico não se manteve à altura de sua vocação. A falta de coe-


rência entre os ritos celebrados e sua vivência provocou fortes críticas (cf. Esd
10,14-18). Diante do mau exemplo do alto sacerdócio, Neemias intervém ener-
gicamente (Ne 2,10; 13,4-9; 13,28). O profeta Malaquias faz uma série de censu-
ras, buscando puri�car o sacerdócio (cf. Ml 1,6-14; 2,1-9; 2,16). Jesus também
não lhes poupou críticas por seu ritualismo vazio justamente por não viverem
o essencial dos mandamentos de Deus, que é o amor ao próximo (cf. Lc 10,31).
Essa postura crítica de Jesus será um dos fatores que contribuirão para a sua
condenação (cf. Mt 26,65).

5. O sacerdócio no Novo Testamento


Em relação ao sacerdócio antigo
Tanto os evangelhos como os Atos dos Apóstolos em nenhum momento atri-
buem o título sacerdotal a Jesus. Quando falam dos sacerdotes ou do sumo sa-
cerdote, fazem-no sempre em relação ao sacerdócio judaico. A única exceção
que encontramos é em At 14,13, no qual se fala do sacerdócio pagão.

É fácil perceber a diversidade de tratamento dependendo de qual categoria o


autor fala: de simples sacerdotes ou autoridade sacerdotal. Nos textos que se
referem aos simples sacerdotes, reconhece-se a sua função e não se observa
nenhuma tensão. Alguns exemplos podem nos ajudar a entender melhor isso.
Lucas fala de Zacarias, no exercício de seu sacerdócio no templo (cf. Lc 1,8s);
os sinóticos, de Jesus, que, tendo curado o leproso, pede-lhe que se apresente
ao sacerdote e que faça a oferta prevista na lei (cf. Mc 1,44); nos Atos dos
Apóstolos, Lucas, o qual um número considerável de sacerdotes aderiam à fé
(cf. At 6,7). Bem diferente, porém, é o que manifestam os textos que se referem
ao sumo sacerdote. No primeiro anúncio da paixão, Jesus declara: "o Filho do
Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacer-
dotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar" (Mc 8,31).

A expressão é muito parecida ao terceiro anúncio da paixão: "o Filho do


Homem será entregue aos chefes dos sacerdotes e aos escribas; eles o conde-
narão à morte" (MC 10,33). O nome deles retorna também em outras situações,
em que se veri�ca uma forte oposição a Jesus. Judas, para trair Jesus, dirige-
se aos sumos sacerdotes e combina com eles o valor de trinta moedas (Mt
26,16). Na condenação de Jesus, o sumo sacerdote tem um papel decisivo (cf.
Mt 26,62-66). Nos Atos dos Apóstolos, uma hostilidade parecida é manifestada
contra o grupo dos discípulos e, de modo particular, contra os Apóstolos (cf. At
4,6; 5,17s; 9,1s). Uma leitura atenta dos textos revela que, em todas essas situa-
ções, os sumos sacerdotes não estão na sede de culto, mas na do poder.

Em relação ao ministério de Jesus


Os evangelhos e os Atos dos Apóstolos não estabelecem qualquer relação en-
tre a pessoa de Jesus, seu ministério e nem mesmo a sua morte, pois nenhum
desses aspectos corresponde ao sacerdócio antigo. Segundo a lei mosaica,
Jesus não era sacerdote, pois o sacerdócio era reservado à tribo de Levi, trans-
mitido hereditariamente, e Jesus pertencia à de Judá. Durante a sua vida, Ele
nunca assumiu qualquer função sacerdotal nem pretendeu ser sacerdote.

O ministério de Jesus não teve características sacerdotais, e sim proféticas.


Como os profetas, pregou, realizou ações simbólicas, foi reconhecido como
Mestre e manteve uma postura crítica diante do formalismo religioso no qual
estavam envolvidos os sacerdotes, além de Relativizar, profundamente, a pu-
reza ritual. Aos que se incomodavam ao ver Jesus sentado à mesa com publi-
canos e pecadores – gesto que, segundo a lei antiga, comprometia a pureza –,
Jesus responde de forma incisiva: "ide, pois, e aprendei o que signi�ca: miseri-
córdia é o que eu quero, e não sacrifício" (Mt 9,13). Aos que estão demasiada-
mente preocupados com os ritos de puri�cação – como, por exemplo, lavar as
mãos antes das refeições –, Jesus assume uma postura crítica, servindo-se
das palavras dos profetas: "este povo me honra com os lábios, mas o coração
está longe de mim. Em vão me prestam culto, pois o que ensinam são manda-
mentos humanos" (Mt 15,8-9).

Jesus recusa também o conceito antigo que vinculava a santi�cação às sepa-


rações rituais. Retoma a frase do profeta Oseias: "quero a misericórdia e não o
sacrifício" (Os 6,6; Mt 9,13). Entre dois modos de servir a Deus, um por meio dos
ritos de separação e outro pela dedicação ao próximo, Jesus prefere o segundo.
A misericórdia é muito mais agradável a Deus do que os sacrifícios.

De forma análoga, a morte de Jesus não teve nenhuma relação com o culto ri-
tual: Ele não morreu em ambiente sagrado, e sim fora da cidade santa; a sua
morte foi uma condenação por motivos legais e não um ato de santi�cação ri-
tual.
Esses diversos motivos explicam por que a pregação cristã das origens não
associava o sacerdócio à pessoa de Jesus: nem na sua pessoa ou seu ministé-
rio, nem mesmo na sua morte os cristãos identi�cavam uma relação com a
instituição sacerdotal antiga.

Em relação à terminologia
Nessas últimas décadas, a exegese e a Teologia realizaram um progresso sig-
ni�cativo no estudo dos ministérios neotestamentários. Esse é um dos frutos
da renovação teológica realizada ao longo do século O ponto de partida foi um
retorno às grandes fontes da Teologia e, de modo particular, à Sagrada
Escritura. Gradualmente, abandonou-se a perspectiva reducionista que busca-
va nela con�rmação de uma Teologia previamente elaborada. O movimento de
retorno às fontes devolve à Bíblia a importância que ela merece. O resultado
será surpreendente, pois emerge do Novo Testamento uma pluralidade de mi-
nistérios.

Buscando entender a especi�cidade de cada um, notou-se uma convergência


sobre três aspectos:

1. Para indicar os ministérios das comunidades cristãs, o Novo Testamento


não usa a linguagem sacerdotal, pois estava carregada de uma conotação
sacral já superada no cristianismo.
2. Para indicar os ministérios cristãos, os autores neotestamentários usam
uma terminologia laica, a qual exprime uma relação do ministro com a
comunidade: ancião, servo, profeta e mestre.
3. Todos os ofícios eclesiais estão na linha da diaconia, que se torna a linha
mestra a partir da qual será de�nida, também, a dimensão sacerdotal do
ministro ordenado.

O Novo Testamento não estabelece nenhuma relação entre a terminologia sa-


cerdotal e os ministérios existentes nas comunidades cristãs. Ele reserva o
vocabulário estritamente sacerdotal a duas realidades: a instituição sacerdotal
antiga, seja entre os povos pagãos, seja entre os judeus; e o cumprimento cris-
tão do sacerdócio em Cristo, do qual participam todos os batizados.

O sacerdócio de Cristo
Algumas premissas

O fato de os autores dos livros do Novo Testamento não aplicarem o vocabulá-


rio sacerdotal aos ministros cristãos, preferindo servir-se de um vocabulário
neutro, mostra que a compreensão do ministério eclesial se apresenta em des-
continuidade com o sacerdócio do Antigo Testamento. Diversos elementos,
porém, farão com que o vocabulário sacerdotal, com o passar do tempo, seja
aplicado a Cristo, aos membros da comunidade cristã e, por �m, ao ministério
ordenado.

Jesus foi reconhecido como o messias davídico, porém, não se privava de re-
lações com as instituições cultuais. Para que você entenda melhor, vejamos
dois exemplos:

• O oráculo do profeta Natan anunciava que o �lho de Davi construiria a ca-


sa de Deus (cf. 2Sam 7,13), e esse tema foi retomado pelos quatro evange-
listas de uma forma nova e original por meio da metáfora da destruição e
reconstrução do templo. Estabelecer um novo templo para o encontro do
homem com Deus é um aspecto importante da missão de Jesus (Jo
2,13-22; Mc 14,58; 15,38), e o templo era, no Antigo Testamento, o lugar por
excelência da atuação do sacerdote.
• Na última ceia, Jesus, tomando o cálice, disse: "isto é o meu sangue, o
sangue da Aliança" (Mt 26-28). É claro que tal gesto e tais palavras não
eram previstos no ritual antigo, mas a associação do sangue à aliança é
uma clara alusão ao sacrifício da aliança apresentado em Ex 24,6-Tal as-
sociação dá uma conotação de sacrifício à morte de Jesus.

Os cristãos, gradualmente, deram-se conta desses aspectos. Testemunha disso


é o Apóstolo Paulo, ao a�rmar que existe uma incompatibilidade entre os dois
cultos sacri�cais: o da eucaristia e aquele oferecido aos ídolos (1Cor 10,14-22).
Nesse caso, é explícita a apresentação da eucaristia como sacrifício, e quem
oferece o sacrifício é o sacerdote.

A leitura que os evangelistas fazem da morte de Cristo a coloca em relação


com a imolação do cordeiro pascal (cf. Mt 28,2; Jo 18,28; 19,4). Em 1Cor 5,7, o
Apóstolo Paulo usa a expressão: "nossa páscoa, Cristo, foi imolada". Outra ex-
pressão da Carta aos Romanos também mostra a associação entre a morte de
Jesus e o culto sacri�cal: "Deus o expôs como instrumento de propiciação por
seu próprio sangue, mediante a fé" (Rm 3,25). Como você pode perceber, é clara
aqui a relação da morte de Jesus com o sacrifício de propiciação oferecido pe-
los sacerdotes da Antiga Aliança. De sua parte, Pedro aplica a Cristo uma ex-
pressão comum do ritual antigo: "cordeiro sem mancha" (1Pd 1,19; cf. Lv 14,10;
23,18). Para o sacrifício antigo, era condição indispensável que o animal utili-
zado para o sacrifício fosse sem nenhum defeito. Esses diversos textos mos-
tram que a primeira geração de cristãos teve uma compreensão sacri�cal da
morte de Jesus, entendida como sacrifício oferecido a Deus.

Está claro, portanto, o entendimento da morte de Cristo como sacrifício, mas


isso ainda não é su�ciente para falar do sacerdócio de Cristo. No Antigo
Testamento, havia uma clara distinção entre o sacerdote e a vítima a ser ofe-
recida.

Durante a vida pública de Jesus, inúmeras vezes as pessoas se colocaram a


perguntar sobre sua identidade. As respostas variavam: alguém dizia que ele
era um profeta, outros, um possesso ou o Messias, outros ainda viam nele um
sedutor. É, porém, interessante notar que ninguém o quali�cou como sacerdo-
te, e com razão, pois Jesus não pertencia a nenhuma família sacerdotal, nem
mesmo à tribo de Levi, separada para serviço do culto. Aliás, diga-se de passa-
gem, na série ascendente de separações rituais, Jesus se encontrava no de-
grau inferior, aquele do povo.

De forma análoga, Jesus nunca assumiu funções do sacerdócio judaico. Seu


ministério se aproximava muito mais da ação dos profetas, os quais procla-
mavam a palavra de Deus.

Para falar do sacerdócio de Cristo, o autor da Carta aos Hebreus precisará am-
pliar a re�exão. Ele o faz, mostrando que Cristo não é apenas a vítima, mas
também o sacerdote, ou melhor, o sumo sacerdote por toda a eternidade. Para
isso, o autor desenvolve um novo conceito de sacerdócio, que ultrapassa aque-
le antigo.

Cristo, o sumo sacerdote


A Carta aos Hebreus a�rma de forma incisiva que nós, cristãos, temos um sa-
cerdote eminente (cf Hb 10,2) e, mais do que isso, temos um sumo sacerdote e
um sumo sacerdote eminente (cf. Hb 4,14s; 8,1), deixando muito clara a sua
identidade: ele é "Jesus, o Filho de Deus" (Hb 4,14; cf. 3,1; 9,11). O autor da Carta
a�rma, tendo consciência que Jesus não pertencia a uma família sacerdotal:
"é bem conhecido, de fato, que nosso Senhor surgiu de Judá, tribo a respeito da
qual Moisés nada diz quando se trata dos sacerdotes" (Hb 7,14).

A novidade do sacerdócio de Cristo


Os livros de Macabeus testemunham como a dignidade do sumo sacerdócio,
que comportava poder político, tornara-se objeto de ambições e rivalidades
implacáveis desmedidas. Há casos em que o título de sumo sacerdote foi com-
prado por altos valores (2Mc 4,4-8) e, na concorrência, acabava �cando com
quem oferecia mais (2Mc 4,24). Em outros casos, a disputa pelo sumo sacerdó-
cio comportava até mesmo o assassinato. Esse é, por exemplo, o caso do sumo
sacerdote Onias, assassinado por instigação de Menalo (cf 2Mc4,32-34).

Esses elementos deixam bem claro que, segundo os costumes do tempo, o de-
sejo de alcançar a dignidade sacerdotal era marcado, essencialmente, pela
ambição. Aqui aparece a novidade da re�exão do autor da Carta aos Hebreus:
ele recusa tal caminho e propõe a direção contrária. Longe de querer elevar-se
acima dos demais, Cristo precisou renunciar a todo privilégio e descer ao nível
mais baixo, aceitando assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, até mesmo
compartilhar com eles o sofrimento e a morte.

A novidade não aparece apenas em relação aos costumes decaídos, mencio-


nados anteriormente, mas também em relação à forma como o sacerdócio era
entendido na Antiga Aliança. Os textos do Antigo Testamento insistem sobre
a necessidade da separação – marcada por uma série de ritos: banho de puri�-
cação, mudança de veste, imposição dos ornamentos sacerdotais e a unção
com o óleo – do sacerdote para se tornar digno de aproximar-se da presença
de Deus e, então, oferecer o sacrifício. Além disso, o sacerdote não podia ter
nenhuma doença ou defeito físico (cf. Lv 21,21). Essa pureza devia ser mantida
com uma série de cuidados especiais.

Para o autor da Carta aos Hebreus, a condição primeira e fundamental é a as-


similação completa aos demais homens. Era preciso que Jesus sofresse e pas-
sasse pela morte. A consagração sacerdotal não se realiza por meio de ritos de
separação, mas pela aceitação da solidariedade com todos os irmãos, até as
últimas consequências. Pela sua morte Cristo mergulha na condição humana,
alcançando suas raízes mais profundas; pela sua ressurreição, Cristo é eleva-
do à glória junto de Deus. "Jesus, que foi feito um pouco menor que os anjos
(...), por causa dos sofrimentos da morte, coroado de glória e de honra" (Hb 2,9).
Se a morte de Cristo produziu nele a dignidade – glória – de sumo sacerdote, é
justamente porque foi, ao mesmo tempo, um ato de obediência �lial para com
Deus e de solidariedade fraterna com os homens.

Aqui se encontra plenamente realizado o que se buscava de forma imperfeita


no sacerdócio antigo: estabelecer uma mediação válida entre Deus e os ho-
mens. Essa mediação em Cristo alcança o seu ápice: plenamente solidário
com a humanidade, torna-se seu representante; inserido na glória pela sua
ressurreição, um mediador de salvação para todos. Desse modo, Cristo realiza
de forma plena a sua missão: abrir a todos os homens o caminho da salvação
e da glória (cf. Hb 2,9.14-16). Para indicar a todos o caminho, é preciso colocar-
se à frente; para tal, porém, torna-se indispensável ir buscá-los onde estão, isto
é, no meio de sua existência, com toda a realidade que ela comporta. Cristo se
faz solidário, unindo-se ao sofrimento dos demais, para então comunicar-lhes
a glória que ele alcança em virtude da mesma solidariedade.

Enquanto outros autores neotestamentários leem a ação salvadora de Cristo


numa perspectiva existencial – "Cristo morreu pelos nossos pecados" (cf. 1Cor
15,3) –, o autor da Carta aos Hebreus lê tal ação numa perspectiva sacerdotal
ao usar a expressão "puri�cação dos pecados" (Hb 1,3).

A plenitude sacerdotal
Cristo realiza, assim, de forma plena, a missão sacerdotal, que consiste em eli-
minar o obstáculo do pecado (cf Hb 5,1-3), de modo que seja restabelecida a co-
munhão entre os homens e Deus. Ele é o mediador perfeito, pois, intimamente
unido a Deus na sua glória celestial, continua intimamente unido a nós. Nele,
portanto, está garantida a comunhão vivi�cadora entre Deus e os homens.

Como sumo sacerdote, Cristo nos fala em nome de Deus, e sua palavra exige
adesão de fé. Por outro lado, como sumo sacerdote, ele apresenta a Deus nossa
pro�ssão de fé; por meio dele, estamos unidos a Deus na fé (cf. Hb 13,15). O au-
tor da Carta aos Hebreus serve-se de uma passagem do profeta Malaquias pa-
ra expressar a novidade cristã diante do sacerdócio de Cristo. Para o profeta, o
sacerdote é mensageiro, e nas suas palavras se ouvem as palavras de Deus (cf.
Ml 2,7). Agora, porém, a voz que precisa ser ouvida e acolhida com fé plena é a
de Cristo glori�cado, estabelecido "como �lho, à frente da própria casa" de
Deus (Hb 3,6) e que, por consequência, fala com a autoridade de Deus. Cristo é
o sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus e é Filho de Deus. Aqui es-
tá fundamentada a autoridade de sua palavra sacerdotal, à qual o cristão é
chamado a aderir sem reservas, mantendo �rmemente sua pro�ssão de fé.
Cristo é o sumo sacerdote digno de fé.

Sacerdócio e miséria humana


Se a função do sacerdote é de estabelecer uma mediação entre Deus e os ho-
mens, não basta ocupar junto de Deus uma posição privilegiada – estar na ca-
sa de Deus –, nem mesmo poder falar em nome de Deus. Essa é uma condição
essencial, mas existe outra igualmente importante: estar intimamente vincu-
lado aos homens.

Com efeito, não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas
fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado.
Aproximemo-nos, então, com segurança do trono da graça para conseguirmos mi-
sericórdia e alcançarmos a graça, como ajuda oportuna (Hb 4,15s).

O autor poderia ter usado a forma positiva, mas, no versículo 15, serve-se de
duas negações, para mostrar de forma evidente como não deve ser interpreta-
do o sacerdócio de Cristo. A preocupação do autor é a seguinte: a glori�cação
de Cristo confere a Ele a autoridade sacerdotal mais alta que é possível conce-
ber. Ele partilha da Glória de Deus, na casa de Deus. Desse modo, poderia, po-
rém, levar as pessoas a senti-lo distante demais, quase inacessível. Entretanto,
um sacerdote digno de fé, que está na presença de Deus, mas lhe falta o víncu-
lo de solidariedade com os homens, não seria capaz de acudi-los em sua misé-
ria. O inverso também é verdadeiro: um sumo sacerdote cheio de compaixão
para com seus semelhantes, mas que não fosse agradável aos olhos de Deus
não poderia intervir de forma e�caz.

Aqui está a intenção do autor: aquele sumo sacerdote que está na presença da
casa de Deus, na Sua casa, é plenamente solidário com os homens. Ele chegou
à glória atual pelo caminho da paixão, isto é, do sofrimento e da morte huma-
na. Ele é o sacerdote misericordioso (cf. Hb 2,17), pois é capaz de "compadecer-
se das nossas fraquezas" (cf. Hb 4,15). Tendo experiência direta da realidade
humana, pois foi provado em tudo como nós, Ele tem experiência de nossas
di�culdades, pois conhece de dentro a condição humana, e isso lhe dá uma
profunda capacidade de compaixão.

Por tudo isso, o autor da carta estende o convite: "aproximemo-nos, então, com
segurança do trono da graça para conseguirmos misericórdia e alcançarmos
graça" (Hb 4,16).

6. Considerações
Nesta unidade, foi possível estabelecer um paralelo entre o sacerdócio, assim
como ele era entendido no Antigo Testamento, e a nova compreensão do sa-
cerdócio trazida por Jesus. O aprofundamento da compreensão do sacerdócio
no Novo Testamento é ponto de partida fundamental para qualquer re�exão
teológica sobre ele do ponto de vista cristão.

Na próxima unidade, veremos alguns elementos do sacerdócio no Novo


Testamento, mas o foco principal é a re�exão teológica.

Até lá!
(https://md.claretiano.edu.br/teoespestvid-

g03273-fev-2024-grad-ead/)

Unidade 7 – Teologia do Sacerdócio

Objetivos
• Compreender as diversas abordagens teológicas atuais sobre o sacerdó-
cio.
• Interpretar essas abordagens segundo o Novo Testamento.
• Analisar a diaconia como elemento característico e distintivo do sacerdó-
cio cristão.
• Compreender a caridade pastoral como elemento uni�cador da espiritua-
lidade sacerdotal.

Conteúdos
• Abordagens teológicas do sacerdócio.
• Um confronto com o Novo Testamento.
• Dimensão pneumatológico-eclesiológica da diaconia.
• Espiritualidade sacerdotal.
• Partícipe da vocação universal à santidade.

Orientações para o estudo


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orienta-
ções a seguir:

1. Sugerimos que você leia a Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis


(JOÃO PAULO II, 1992).
2. Faça anotações de todas as suas dúvidas, não deixe nenhuma para de-
pois, tente solucioná-las por meio do nosso sistema de interatividade ou
diretamente com o seu tutor.
3. Volte às unidades anteriores para entender e recordar os conceitos pro-
postos.

1. Introdução
Anteriormente, nossa re�exão sobre o sacerdócio teve como foco a dimensão
bíblica. O paralelo entre o sacerdócio do Antigo Testamento e o de Jesus escla-
receu a novidade do sacerdócio cristão.

Nesta unidade, nossa re�exão focaliza a Teologia e a espiritualidade sacerdo-


tal. Depois de uma breve apresentação das três abordagens teológicas princi-
pais, segue um confronto com o Novo Testamento. São a pessoa de Jesus e
seus ensinamentos a fonte por excelência para estabelecermos a identidade
do ministério sacerdotal.

Na última parte, a re�exão se volta para a espiritualidade. Busca-se, então, su-


perar uma visão reducionista, que entende a espiritualidade como sinônimo
de vida interior ou de práticas espirituais. Na perspectiva pneumatológica, po-
demos de�nir a espiritualidade sacerdotal como o modo próprio do sacerdote
viver a sua vida e o seu ministério, tanto sob a luz quanto o dinamismo do
Espírito. Se preferirmos uma descrição cristológica, podemos dizer que a espi-
ritualidade sacerdotal é o modo próprio dos sacerdotes viverem o seguimento
de Jesus.

2. Abordagens teológicas do sacerdócio


O teólogo José Cristo Rey García Paredes (1996, p. 624ss.) identi�ca três enfo-
ques principais na teologia pós-conciliar sobre o ministério ordenado:

1. ontológica;
2. sacramental;
3. funcional.

O ministério ordenado na perspectiva ontológica


Para os autores que pertencem a essa linha de pensamento, embora reconhe-
çam que o ministério ordenado comporte uma série de funções a serem de-
senvolvidas a partir da missão que lhe é própria, coloca-se no centro das aten-
ções a dimensão ontológica, isto é, o centro da re�exão é orientado no sentido
de dizer quem é o sacerdote e, por consequência, o que o distingue dos demais
cristãos. Busca-se, portanto, explicitar a identidade do sacerdote, colocando
em evidência aquilo que o diferencia dos outros membros da Igreja. Somente o
sacerdote pode presidir a eucaristia, apresentar as ofertas e ministrar os sa-
cramentos. Tais poderes lhe são conferidos pelo sacramento da Ordem, que
imprime nele um caráter indelével, ou seja, uma marca que jamais poderá ser
cancelada.

Por essa nova realidade conferida pelo sacramento da Ordem, o sacerdote é, de


certa forma, separado da comunidade dos simples �éis, enquanto recebe um
poder cultual que os demais não possuem. Como você pode perceber, mais do
que mostrar os aspectos de comunhão com os demais, tal leitura do sacerdó-
cio aponta para as diferenças. Dado que os leigos podem, pela participação no
sacerdócio de Cristo, exercer ministérios a serviço da Palavra e comunhão
eclesial, esses teólogos, como Bousse (1957), Nicolau (1971) e Hacker (1971), ao
traçar a identidade sacerdotal, enfatizam sobremaneira o que distingue o mi-
nistro ordenado a partir do que lhe compete de forma exclusiva: o poder cultu-
al.

Essa posição, muito embora apresente elementos verdadeiros do sacerdócio,


manifesta-se demasiadamente redutiva. Enfatizando o ser do sacerdote na-
quilo que lhe é especí�co, ela deixa à margem as funções ministeriais que, de
certa forma, têm também para os demais membros da Igreja – função proféti-
ca e pastoral – a mesma importância.

O ministério sacerdotal na perspectiva sacramental


Nessa linha de compreensão, coloca-se em destaque a função do sacerdote,
entendida a partir de uma ótica especí�ca, a qual podemos denominar sacra-
mental. Para entender bem tal compreensão, é preciso ter presente uma de�-
nição dos sacramentos que se tornou clássica na Teologia Católica:
. Ao falar de sinais, estamos nos referindo a coisas visíveis que,
por sua signi�cação simbólica, lembram e representam realidades invisíveis;
ao dizer e�cazes, ao fato de que esses sinais não apenas lembram e represen-
tam, mas também realizam a graça.

De forma análoga, esse grupo de teólogos, a saber, Favale, Gozzelino (1972) e


Grelot (1973), compreende o sacerdote como aquele que representa Cristo e age
em seu nome, isto é, na pessoa de Cristo. A partir de tal compreensão, a função
primeira e principal do ministério ordenado consiste em tornar presente e,
também, na comunidade eclesial, o Cristo-Cabeça e, como pastor, agir em Seu
nome.

Esses teólogos tomam como ponto de partida a sacramentalidade de toda a


Igreja, pela qual todos os membros são chamados a serem, pela sua vida, teste-
munhas de Cristo, tornando-o presente, e de certa forma visível, por meio de
sua própria vida. Nesse sentido, os �éis são sinais de Cristo na medida em que
vivem em comunhão com Ele e testemunham sua fé por meio de uma vida na
qual transparecem os valores do Reino.

A particularidade dos sacerdotes está no fato de que eles são sinais de Cristo
Pastor, aquele que está à frente e tem a missão de guiar os demais. Essa é uma
realidade especí�ca do sacerdote, pois, enquanto, pela consagração batismal,
somos unidos a Cristo e con�gurados a Ele, pelo sacramento da Ordem o sa-
cerdote participa de uma forma especí�ca do mistério de Cristo, sendo con�-
gurado a Cristo-Cabeça e Pastor. Pela nova realidade que recebe, o sacerdote é
chamado a ser imagem viva e transparente de Cristo Sacerdote e recebe o po-
der de agir em seu nome.

Dessa forma, São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica (III, q. 82, a. 7) a�r-
ma que na "eucaristia, quando ora, o sacerdote fala, certamente, in persona
Ecclesiae (em nome da Igreja), com a qual está unido. Mas na consagração ele
fala in persona Christi, que ele representa por sua capacidade de consagrar". É
a partir dessa compreensão que São Tomás de Aquino, ao tratar do sacramen-
to do batismo, a�rma que, quem o ministra, não age por força própria, mas co-
mo simples instrumento de Cristo, que permanece o verdadeiro ministro do
sacramento (SÃO TOMÁS DE AQUINO, III, q. 67, a. 5). Dizer que o sacerdote, ao
celebrar os sacramentos, age in persona Christi signi�ca a�rmar que ele é
apenas um instrumento pelo qual Cristo age e santi�ca a sua Igreja. Para fun-
damentação bíblica, tal corrente teológica recorre a textos nos quais o
Apóstolo Paulo a�rma que age em nome de Cristo (cf. Rm 1,5; 1Cor 1,10; 15,8; 2Ts
3,6), bem como a textos dos Evangelhos Sinóticos, falando que Cristo transmi-
tiu seus poderes messiânicos aos Apóstolos (cf. Mc 3,15; 6,7; Lc 9,1; Mt 10,1).

Diante deste contexto, podemos salientar que, a partir da perspectiva assinala-


da, o ministério sacerdotal torna visível e sacramentaliza entre os homens o
sacerdócio único de Cristo. Nesse sentido, os ministros ordenados são instru-
mentos vivos de Cristo, e não apenas seus delegados.

Essa compreensão, embora tenha elementos positivos, parece enfatizar, de-


masiadamente, a dimensão sacerdotal, deixando a dimensão profética e pas-
toral em segundo plano, embora não as exclua.

O ministério ordenado em perspectiva funcional


Outro grupo de teólogos pensa que o sacerdócio ministerial não deve ser expli-
cado nem a partir da ótica ontológica ou da sacramental, e sim a partir da sua
função: serviço carismático dentro de uma Igreja carismática e ministerial.
Segundo tal grupo de teólogos, a explicação do ministério sacerdotal deve ser
buscada na instituição do ministério pós-apostólico da igreja primitiva. Nessa
linha, segundo o teólogo Schillebeeckx (1983, p. 17), o único ordenamento que
as comunidades cristãs receberam de Jesus foi o apostólico. Em conformida-
de com as origens, o ministério ordenado é, fundamentalmente, um carisma
dentro da estrutura carismática da Igreja que edi�ca a comunidade, embora
seja de direção e presidência desta e, como tal, deve coordenar os demais ca-
rismas, de modo que seja colocado a serviço da edi�cação da comunidade. O
ministério ordenado não monopoliza os carismas nem os ministérios eclesi-
ais, mas os coordena e encoraja.

Na compreensão de Boff (1981), essa função hierárquica é desempenhada pelo:

• coordenador leigo de uma comunidade local;


• presbítero na paróquia;
• bispo na diocese;
• papa na Igreja universal.

Por motivos da comunhão eclesial, são eles que presidem as celebrações das
comunidades e também os primeiros responsáveis pela ortodoxia e ordenação
da caridade. Em vista da ordem e comunhão, compete-lhes discernir os espíri-
tos e zelar para que os carismas sejam colocados a serviço da comunidade.

O ministério ordenado e carismático, segundo tal perspectiva, não é aquele


por meio do qual Cristo age na Igreja, e sim um que a representa. Trata-se, por-
tanto, de um ministério eclesial, pois, não tendo sido instituído por Cristo, nas-
ceu espontaneamente das bases da comunidade eclesial de acordo com as leis
sociológicas da formação de grupos. Nesse sentido, a a�rmação neotestamen-
tária, segundo a qual Cristo concedeu "a uns ser apóstolos, a outros profetas, a
outros evangelistas, a outros pastores e mestres" (Ef 4,11), deve ser interpretada
não como um dom que vem de cima – de Deus –, mas como algo que nasceu
de forma espontânea e carismática na comunidade; embora, em seguida, te-
nha sido interpretada como dom do Senhor (SCHILLEBEECKX, 1983, p. 17s).

A partir dessa compreensão, que apresenta a Igreja como simples comunhão


de serviços, sem que tenha sido de�nida do alto, os limites entre laicado e sa-
cerdócio praticamente desaparecem. Essa compreensão tem suas vantagens.
Em primeiro lugar, enfatiza a dimensão eclesial do ministério ordenado, o
qual só pode ser bem entendido na sua relação com a comunidade. Outro as-
pecto interessante é o reconhecimento da dimensão carismática do sacerdó-
cio e sua relação com os demais carismas e ministérios na Igreja.

Ela apresenta, também, alguns limites signi�cativos. Enquanto valoriza de


forma adequada a dimensão pneumatológica do sacerdócio, apresentando-o
como uma expressão carismática, deixa em segundo plano a dimensão cristo-
lógica, não valorizando su�cientemente a relação do ministério ordenado com
a pessoa de Cristo. Esquecendo essa relação, a teoria funcional não consegue
explicar o motivo da importância do ministério ordenado entre os demais mi-
nistérios e carismas, bem como o fato de que esse ministério tenha um espe-
cí�co caráter sacramental ou o motivo pelo qual a presidência da eucaristia
está reservada a tal ministério. Essa corrente de pensamento, optando por
uma interpretação puramente funcional, recusa a ideia da ordenação sacerdo-
tal, assim como o conceito de caráter indelével que con�gura a Cristo sacerdo-
te (cf. KÜNG, 1971). Segundo esses autores, é impossível estabelecer um elo en-
tre o sacerdócio de Cristo e o ministério dos Apóstolos. Tudo o que é dito pelo
Novo Testamento em relação aos Doze ou se refere apenas a eles, ou à Igreja
na sua totalidade.

3. Um confronto com o Novo Testamento


Da breve apresentação dessas diversas correntes teológicas a respeito do sa-
cerdócio ministerial, você pode perceber como cada uma delas tem seus valo-
res, mas também seus limites. Para uma aproximação mais adequada do te-
ma, Castellucci (2002, p. 290ss.) propõe um olhar crítico a partir do Novo
Testamento. Torna-se necessário tomar distância de qualquer prévia compre-
ensão para que dele possam emergir os elementos fundamentais para uma
Teologia com olhares mais amplos, capazes de evitar pontos de vista parciais.

Ponto de referência para qualquer ministério é a pessoa e a obra de Jesus.


Antes de comunicar, Ele mesmo viveu o ministério. Nesse sentido, é interes-
sante notar como existe no Novo Testamento uma continuidade de termos
com seu ponto de partida em Jesus, a quem se atribui a plenitude do ministé-
rio: é Ele o Apóstolo/Enviado (cf. Jo, 20,21; Eb 3,1); é Ele o Servo/Ministro (cf.
Mc 10,45); o Mestre (termo 59 vezes atribuído a Jesus); é Ele o Pastor (cf. Jo 10).
Em Cristo, realiza-se o grande ministério, que é a salvação do mundo.

Jesus, por sua vez, comunica o ministério aos seus seguidores.


Evidentemente, não aquilo que lhe é próprio na sua relação com o Pai, mas co-
munica o poder ministerial que dele recebeu a �m de que a salvação realizada
no evento pascal seja comunicada pela mediação dos ministros e ação do
Espírito a todos os povos (Mt 28,18-20; Mc 16,16; Lc 12,19-20; Jo 20,22-23). Por
isso, alguns títulos ministeriais atribuídos a Jesus foram, em seguida, transfe-
ridos para os Doze: Apóstolos/enviados (cf. 28,19; Mc 16,15; Jo 13,20; 17,18); ser-
vos/ministros (cf. Mc 10,43-45); pastores (Jo 21,15-17).

Por sua vez, embora não possam transmitir sua qualidade de testemunhas
oculares de Jesus nem sua tarefa de dar uma �sionomia normativa à Igreja,
transmitem aos seus colaboradores e sucessores a missão de anunciar e ensi-
nar (cf. At 13,1-3; 2 Cor 1,19; 1Tm 3,2; 5,7), batizar (At 8,38), guiar, presidir e edi�-
car a comunidade (cf. 1Ts 3,1-2; Fl 2,19-24; At 20,28-32; 1 Cor 12,8), refutar as
doutrinas falsas (1Tm 1,3-7; 4,6-7; 2Tm 2,14-18; Tt 1,10-14), assistir os necessita-
dos (At 6,1-6; 2Cor 8,16-17-23; Tg 5,14) e constituir novos ministros na comuni-
dade (1Tm 4,14; 5,22; Tt 1,5).

Em virtude dessa transmissão, seguidamente realizada pela imposição das


mãos (cf. At 6,6; 13,1-3; 14,23; 1Tm 4,14; 5,22), alguns títulos ministeriais inicial-
mente aplicados a Jesus passaram para os Apóstolos e destes para seus cola-
boradores e sucessores. Esse é o caso dos títulos servos e pastores. Outros títu-
los surgem: anciãos/presbíteros, guias, doutores.

Esses elementos mostram como há uma continuidade entre o ministério de


Jesus, o dos Apóstolos e o dos colaboradores e sucessores que dão continuida-
de à sua missão. Fazendo referência à elaboração teológica de Von Balthasar,
Castellucci (2002, p. 296) lembra que o conceito de pastor permite estabelecer
uma continuidade entre o Antigo Testamento – no qual Iahweh é apresentado
como o pastor de Israel (cf. Sl 23,1; Ez 34,11-12; Is 40,10-11) –, a pessoa de Jesus
– o Bom Pastor (Jo 10,1-30; 1Pd 2,24; Ap 7,17) –, os Doze (cf Mt 10,6; Jo 21,15-17; 1
Cor 9,7) – e tanto os seus colaboradores quanto sucessores (At 20,28; 1Pd 5,2; Ef
4,11).

É importante notar que, no Novo Testamento, os batizados nunca recebem o


título de pastor. Isso mostra que essa palavra nos coloca diante de pessoas
que, dentro da comunidade, recebem um ministério próprio, que implica uma
liderança particular no interior da própria comunidade.

A missão é outra categoria que pode estabelecer essa relação que vai de Jesus
aos Apóstolos e destes a seus colaboradores e sucessores. Essa é a perspectiva
do Evangelho segundo João: assim como o Pai enviou a Jesus, Ele envia os
Apóstolos (cf. 13,20; 17,18; 20,21); estes, por sua vez, associam outras pessoas, a
quem transmitem o mesmo mandato missionário. Dessa forma, pode-se dizer
que a missão que provém de Jesus marca o ministério apostólico, bem como o
pós-apostólico.

A categoria que melhor caracteriza a natureza dos ministérios estáveis no


Novo Testamento é, entretanto, a diaconia. Essa categoria é capaz de sintetizar
as precedentes, indicando seu sentido e orientação: pastoralidade, poder, mis-
sionariedade, bem como o sacerdócio. A diaconia é capaz de dar sentido aos
diversos ministérios comunitários do Novo Testamento, partindo da pessoa de
Jesus até chegar às numerosas �guras que o sucederam.

Os ministérios, na sua globalidade, tem uma dimensão diaconal, isto é, são


serviços ou funções relacionadas a Cristo e à Igreja. As dimensões cristológi-
cas e eclesiológicas, necessariamente, caminham juntas. Em Jesus, tem-se a
origem e o modelo. A Igreja é o espaço no qual e, a partir do qual, a diaconia se
realiza em favor da edi�cação da comunidade e, em última instância, do
Reino. O trecho sobre o maior e o menor, na versão lucana, tem uma conotação
ministerial (Lc 22,26-26). Todos os ministérios essencialmente devem se ins-
pirar naquele que é a origem de todas as funções eclesiais e, em contraposição
à mentalidade corrente, a�rma: "Eu, porém, estou no meio de vós como aquele
que serve!" (Lc 22,27).

A diaconia como denominador comum


A palavra "diácono", bastante familiar a nós, deriva de uma palavra grega, diá-
konos, com a conotação de "servo", "servidor", "atendente". O verbo, diakoneo,
tem o sentido de "servir ou ministrar". No Novo Testamento, a palavra diáko-
nos pode indicar servos domésticos (cf. Jo 2,5), mas no uso mais comum se re-
fere aos que recebem missões e responsabilidades na comunidade dos segui-
dores de Jesus.

Contrapondo a atitude de autoridades religiosas – particularmente, escribas e


fariseus – que manifestavam gosto pela honra e reconhecimento público,
Jesus aponta para outra atitude que deve caracterizar a vida dos seus discípu-
los: "o maior dentre vós seja aquele que serve" (Mt 23,11). Diante da tendência
dos Coríntios de formar grupos separados – uns de Apolo, outros de Paulo –, o
Apóstolo das Nações serve-se da palavra diákonos para caracterizar o seu mi-
nistério e o de seus seguidores: "Quem é, portanto, Apolo? Quem é Paulo?
Servidores, pelos quais fostes levados à fé" (1Cor 3,5; cf. Ef 6,21). O termo é apli-
cado seja para homens e mulheres (cf. Rm 16,1). Pedro, na sua primeira carta,
adverte os membros da comunidade: "conforme o dom que cada um recebeu,
consagrai-vos ao serviço uns dos outros, como bons dispenseiros da multifor-
me graça de Deus" (1Pd 4,10).

A partir da análise da ministerialidade, assim como ela aparece no Novo


Testamento, Schlier (1969, p.411) conclui:
Todos estes desenvolvimentos do ministério apostólico em ministérios que gradu-
almente foram se formando no seio da Igreja e ao lado dos serviços livres e caris-
máticos têm sua unidade no fato que esses, como o serviço de Cristo e dos seus
apóstolos, são diaconia.

Dimensão cristológica da diaconia


No Novo Testamento, o ponto de referência para todo e qualquer ministério é a
diaconia de Jesus: dele, assume-se a missão e se recebe a autoridade; nele, há
o modelo para o contínuo confronto. Há uma relação clara de autoridade na
vida e prática missionária de Jesus. A referência primeira é a vontade do Pai,
que ele conhece pela sua particular intimidade – "Eu e o Pai somos um" (Jo
10,30) – e para a qual não admite intromissões que possam desviá-la (Mt
16,23). Esta autoridade é, em parte, transmitida aos Doze e destes, para outros
membros da comunidade que ao longo da História darão continuidade à mis-
são; porém, ela tem uma identidade própria e representa uma quebra de para-
digma em relação à mentalidade do tempo. No ambiente religioso judaico,
Jesus nota que escribas e fariseus buscam os primeiros lugares e, portanto, se-
rem vistos e reconhecidos pelos demais, confrontando-se com tal preocupa-
ção também entre o grupo dos seus discípulos (Mc 10,35-40). No ambiente pa-
gão, Jesus nota que "os que governam as nações as dominam e os grandes as
tiranizam" (Mc 10,42). Jesus rompe com esse paradigma com uma frase clara
e incisiva: "entre vós não seja assim: aquele dentre vós que quiser ser grande,
seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o ser-
vo de todos" (10,43).

Modelo desse novo paradigma é o próprio Jesus, o qual "não veio para ser ser-
vido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos" (10,45). Jesus se
apresenta, portanto, como o novo modo de entender a autoridade e os ministé-
rios.

Diante deste contexto, podemos salientar que, com toda clareza, �ca completa-
mente fora de foco e contexto qualquer compreensão dos ministérios e autori-
dade eclesiais vistas na ótica de domínio ou busca de privilégios. Seguindo tal
raciocínio, podemos dizer que são atitudes antievangélicas. Por isso, os minis-
térios eclesiais, nas mais variadas formas, caracterizam-se pela diaconia.
4. Dimensão pneumatológico-eclesiológica da
diaconia
Logo no início do Capítulo 12, o Apóstolo Paulo mostra-se preocupado com a
necessidade de um cuidadoso discernimento sobre as manifestações espiritu-
ais, isso é sinal de que ele percebe a existência do perigo de ambiguidade na
preferência dos seus interlocutores por certo tipo de experiências espirituais e
de repetirem na assembleia cristã determinadas atitudes praticadas quando
ainda eram gentios (1Cor 12,2). Nem todo tipo de entusiasmo é digno de apro-
vação por parte de um cristão; ao contrário, é necessário discernir as ações
que se apresentam como manifestações do Espírito. Em 1Cor 12,3, ele oferece
um critério de discernimento: quem é verdadeiramente inspirado pelo Espírito
não pode maldizer o nome de Jesus e ninguém pode professar a fé, a não ser
que seja movido pela ação do Espírito Santo.

Os Coríntios davam uma importância quase exclusiva a duas experiências es-


pirituais: glossolalia e profecia. Todos desejavam ardentemente falar em lín-
guas ou profetizar. O motivo de tal valorização da glossolalia deve ser compre-
endido a partir do signi�cado que tinha, no mundo antigo, a palavra spiritus
ou pneuma, às quais estavam relacionadas com "sopro" e "respiração". No
mundo bíblico, a função do espírito não era, primariamente, a de fazer com-
preender, e sim comunicar um dinamismo, um impulso para a ação. A cultura
grega, por sua vez, conhecia, desde os tempos antigos, a tensão entre a luz da
razão, simbolizada por Apolo, e o impulso obscuro e irracional, simbolizado
por Dionísio. Dentro desse contexto, os Coríntios consideravam que a manifes-
tação mais evidente da presença ativa do Espírito de Deus neles fosse o falar
em línguas, porque quem fala assim não usa a língua com a própria mente, de
modo a formar frases inteligíveis, mas se abandona à ação de uma força mis-
teriosa que dirige a língua de forma imprevisível (VANHOYE, 1983, p. 18).

Essa concepção e práxis, porém, causavam alguns problemas na comunidade


cristã: havia uma espécie de confusão nas assembleias litúrgicas e certa dis-
criminação entre os membros da comunidade, a partir das experiências espi-
rituais que eles manifestavam. Os cristãos menos inspirados sentiam-se des-
prezados, causando tensões e divisões na comunidade (VANHOYE, 1983, p. 23).
Outros dons mais almejados eram os da ciência e sabedoria. O Apóstolo Paulo,
porém, dirá que eles não têm valor algum sem a caridade (1Cor 13,2): até po-
dem levar a atitudes contrárias ao que é exigido pela autenticidade cristã (cf.
1Cor 8,1).

Ele procura apresentar um horizonte mais amplo, mostrando que, na verdade,


existe uma multiplicidade de dons espirituais, não devendo ser considerados
de forma isolada, mas relacionados com a vida da Igreja. Na verdade, o
Apóstolo Paulo luta contra o fascínio que as experiências extraordinárias cau-
savam nos Coríntios, colocando-se na perspectiva neotestamentária, a qual,
sem negar a validade de tais experiências, considera-as dentro de um contex-
to mais amplo da vida da pessoa e inteira comunidade (VANHOYE, 1983, p.
249).

Os carismas mais conhecidos suscitam um entusiasmo exagerado, talvez cau-


sando grandes ilusões, uma vez que é possível profetizar, fazer milagres e, ao
mesmo tempo, descuidar de aspectos essenciais da vida cristã (Mt 7,22s). É
justamente essa a perspectiva que ele assume, quando avisa que, sem a cari-
dade, os carismas mais espetaculares não têm utilidade alguma (1Cor 13,1-3).
Além disso, insistir excessivamente sobre os carismas cria descontentamento
na comunidade, pois pode causar um complexo de inferioridade em alguns
membros (1Cor 12,15ss) e uma atitude de orgulho em outros (12,21), colocando
em perigo sua união. Essa nova perspectiva mostra que, não somente quem
tem o dom das línguas ou da profecia é instrumento de Deus, mas também
qualquer pessoa que presta um serviço à comunidade.

Não obstante os possíveis desvios que devem ser corrigidos, o Apóstolo Paulo
sabe o quanto é essencial a ação do Espírito na vida da comunidade e reco-
nhece nos carismas uma de suas manifestações. Sua atitude, portanto, é deci-
didamente positiva: "não extingais o Espírito, não desprezeis as profecias.
Discerni tudo e �cai com o que é bom" (1Ts 5,19-20; cf. 1Cor 14,39; 1Cor, 14,18).
Pela analogia do corpo e membros (1Cor 12; Rm 12), ele reconhece na diversi-
dade carismática uma verdadeira riqueza para a Igreja.

É preciso, porém, tomar consciência de que aqui também nos encontramos di-
ante de um novo paradigma. Na mentalidade dos Coríntios, antes do contato
com o cristianismo, a irracionalidade e a divindade se aproximavam, no senti-
do de que quanto mais irracional era uma experiência religiosa, tanto mais era
considerada divina. O distintivo da manifestação do Espírito de Deus parecia
ser a anulação da razão. Segundo esse critério, o carisma de maior valor seria
o falar em línguas, porque exclui a razão; em seguida, viria a profecia, que pro-
duz discursos inspirados (VANHOYE, 1983, p. 35s).

O Apóstolo Paulo, por sua vez, apresenta uma nova compreensão, juntamente
com novos critérios de discernimento da autenticidade dos carismas. O ideal
não é a anulação da razão e a consequente perda da autoconsciência, mas re-
conhecer a presença ativa de Deus em todos os níveis da existência (1Cor
14,15). Especi�camente em relação aos carismas, nota-se uma mudança co-
pernicana: não é a extraordinariedade ou espetacularidade que mede a impor-
tância dos carismas, mas a sua real contribuição para o crescimento da comu-
nidade: "assim também vós: já que aspirais aos dons do Espírito, procurai tê-
los em abundância, para a edi�cação da Igreja" (1Cor 14,12). Há uma clara pas-
sagem do emotivo e maravilhoso para a área dos serviços comunitários
(LOZANO, 1983, p. 134ss.). Para ele, não é o espetacular que conta, mas o dom
de si mesmo em favor da comunidade, o qual raramente é espetacular. A par-
tir desse critério, é de�nida a importância de cada carisma e seu relativo exer-
cício na comunidade (cf. 1Cor 14; 12,20-26; Rm 12,3-8).

Os ministérios que brotam de tal diversidade carismática pela qual o Espírito


enriquece a Igreja são lidos a partir da ótica da diaconia. É nessa perspectiva
que se apresenta o ministério dos Doze (At 1,25). O Apóstolo Paulo usa seguida-
mente o termo "diaconia" para indicar a missão que recebeu do Espírito do
Ressuscitado: diácono da nova aliança (2Cor 3,6); diaconia da reconciliação
(2Cor 5,18); apresenta-se como diácono de Deus (2Cor 6,4); diácono da Igreja de
Cristo (cf. Col 1,25); diácono do Evangelho (cf. Ef. 3,7).

Diante deste contexto, podemos salientar que �ca completamente excluída, na


perspectiva neotestamentária, qualquer superioridade do ministro sobre os
�éis (cf. 1 Pd 5,2-3). Os ministérios não são dignidades que revestem quem os
detém de uma superioridade em relação aos outros membros da comunidade,
mas serviços em favor dos demais (CASTELLUCCI, 2002, p. 301). Isso se torna
evidente pela própria escolha terminológica: diaconia (SCHNACKENBURG,
1968, p. 25-30).
Essa concepção do ministério é apresentada de forma incisiva no Magistério
de João Paulo II. Na Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis, ele exorta a
que o serviço prestado pelos ministros seja destituído de qualquer presunção
ou desejo de assenhorear-se do rebanho; sendo, pelo contrário, realizado de
ânimo alegre, boa vontade e, segundo Deus, de modo a tornar-se modelo do re-
banho, assumindo, "frente ao mundo inteiro, essa atitude sacerdotal de serviço
à plenitude da vida do homem e à sua libertação" (JOÃO PAULO II, 1992, n. 21).

5. Espiritualidade sacerdotal
Embora em certas circunstâncias a Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis
use o termo "espiritualidade" no sentido redutivo, isto é, como sinônimo de
"vida interior", o conceito que predomina em sua re�exão recolhe a riqueza te-
ológica desenvolvida no período pós-conciliar.

Inspirando-se na Teologia Paulina, ela de�ne a vida espiritual como: "vida


animada e guiada pelo Espírito em ordem à santidade e à perfeição na carida-
de" (JOÃO PAULO II, 1992, n. 19). Essa descrição entende a vida espiritual como
a totalidade da existência enquanto animada e guiada pelo Espírito Santo.

Este é o ponto de partida e o centro da re�exão, não mais o modo de entender


que, ao falar de vida espiritual ou espiritualidade, começa a elencar e descre-
ver uma série de práticas espirituais (oração, penitência, exame de consciên-
cia, entre outros). Essas práticas evidentemente são parte importante da espi-
ritualidade, mas ela deve ser entendida, primeiro, como a totalidade da exis-
tência animada pelo Espírito de Deus. Nessa perspectiva, é espiritual aquela
pessoa que se deixa conduzir pelo movimento fundamental do Espírito, que é
a caridade, entendida como virtude teologal, como descrita pelo Apóstolo
Paulo (1Cor 13).

6. Partícipe da vocação universal à santidade


O Espírito do Senhor que Jesus reconhece em si no momento em que apresen-
ta publicamente a sua missão (cf. Lc 4,18) e que o perpassa em todo o seu ser e
agir, tornando-se princípio de consagração e missão o faz partícipe da in�nita
santidade de Deus, revelando-se fonte de santidade e apelo à santi�cação.
Esse mesmo Espírito está sobre a totalidade do Povo de Deus, fazendo dele um
povo consagrado a Deus e por Ele enviado para o anúncio do Evangelho. Os
membros do Povo de Deus são inebriados e assimilados pelo Espírito (cf. 1Cor
12,13; 2Cor 1,21-22; Ef 1,13; 4,3) e chamados à santidade (cf. JOÃO PAULO II, 1992,
n. 19).

Como cristão, o sacerdote participa plenamente da vocação universal à santi-


dade, que se fundamenta no batismo. Por esse sacramento, o presbítero é, em
primeiro lugar, um irmão entre os irmãos, membro do Povo de Deus e, na co-
munhão com os demais, participa dos bens da salvação (cf. Ef 4,4-6). Como to-
dos os batizados, ele partilha do mesmo chamado de pauta da própria existên-
cia nos caminhos do Espírito, no seguimento de Cristo, único mestre e modelo.

Os Documentos do Magistério, de Ratzinger e Bertone (1998), porém, falam


também de uma vocação especí�ca à santidade, a qual provém da própria
consagração pelo sacramento da Ordem. Se, pelo batismo, todos somos con�-
gurados e revestidos de Cristo pelo sacramento da Ordem, o presbítero é con�-
gurado a Cristo enquanto Cabeça e Pastor do seu povo. Ao mesmo tempo em
que todos são chamados à plenitude da santidade, que consiste na perfeição
da caridade (JOÃO PAULO II, 1988, n. 16), essa mesma e única santidade assu-
me forma e expressões diversas.

A con�guração a Jesus Cristo-Cabeça e Pastor


A Exortação Apostólica Pastores Dabo Vobis a�rma que Cristo é a Cabeça, e a
Igreja, seu corpo. Para que a expressão não seja mal interpretada, a mesma
Exortação imediatamente explica que Ele é cabeça no sentido novo e original
de ser servo. A sua autoridade, portanto, coincide com seu serviço e dom de si.
A partir desse preciso tipo de autoridade, a vida espiritual dos presbíteros é
animada e vivi�cada como consequência de sua con�guração a Jesus Cristo-
Cabeça e Pastor (cf. JOÃO PAULO II, 1992, n. 21). Jesus se autoapresenta como o
Bom Pastor (Jo 10,14) e a sua vida é uma contínua realização da caridade pas-
toral: sente compaixão das multidões que estão cansadas como ovelhas sem
pastor (cf. Mc 9,35s), procura a ovelha perdida (cf. Mt 18,12-14) e festeja o reen-
contro da que se perdera; conhece e chama a cada uma pelo nome e sua �deli-
dade a elas o leva a dar a própria vida (cf. JOÃO PAULO II, 1992, n. 22). Pedro
apresenta Jesus como o Príncipe dos pastores porque a sua obra e missão re-
cebe continuidade nos Apóstolos, nos seus sucessores e por meio dos presbíte-
ros que, em virtude da consagração sacerdotal, são con�gurados a Jesus Bom
Pastor e chamados a imitar e viver a plenitude da caridade vivida por Ele.

Pela sua incorporação a Cristo-Cabeça e Pastor, o sacerdote encontra-se tam-


bém na posição de esposo perante a comunidade. Dessa forma, ele não apenas
pertence à Igreja como um de seus membros, mas é colocado diante dela com
a missão de conduzi-la. Neste seu ministério, ele é chamado a reviver o amor
de Cristo-Esposo em relação à Igreja-Esposa. Assim, exige dele a capacidade
de amar a todos com um coração novo, grande e puro, numa dedicação e doa-
ção plena, contínua e �el, com uma ternura que se reveste de matizes do afeto
materno (cf. JOÃO PAULO II, 1992, n. 22). Esses elementos nos colocam no co-
ração da espiritualidade sacerdotal.

A caridade pastoral
O Concílio Vaticano II retomou com força a ideia de que a santidade consiste
na caridade. Se todos os cristãos são chamados à santidade, ela consiste na
caridade. Isso implica que a qualidade da vida espiritual de uma pessoa não é
medida pela quantidade de práticas espirituais, mas pela efetiva vivência da
caridade (cf. PAULO VI, 1964, n. 40), a qual assume formas diversas na vida lai-
cal, religiosa ou ministerial. Há um modo próprio de vivenciar cada uma de
suas formas.

Para o ministro ordenado, ela assume um caráter pastoral e se expressa e se


con�gura na caridade pastoral, que João Paulo II de�niu como a virtude:

Pela qual imitamos Cristo na entrega de si mesmo e no seu serviço. Não é apenas
aquilo que fazemos, mas o dom de nós mesmos que manifesta o amor de Cristo por
seu rebanho. A caridade pastoral determina o nosso modo de pensar e de agir, o
modo de nos relacionarmos com as pessoas (JOÃO PAULO II, 1992, n. 23).

O fato de colocar a caridade pastoral ao centro da espiritualidade sacerdotal


traz implicações signi�cativa e profundamente bené�cas para os presbíteros.
Apresentando-a como princípio uni�cador da vida e atividade do presbítero
(PO, n. 14), supera-se aquela visão dualista que, de certa forma, contrapunha
um tempo espiritual, no qual o sacerdote dedicava-se às práticas da vida inte-
rior – oração, meditação e outras –, ao tempo dedicado ao ministério em que
ele realizava o seu serviço à comunidade.

A partir dessa nova compreensão, o sacerdote santi�ca-se igualmente,


dedicando-se às práticas tradicionalmente chamadas como "práticas espiritu-
ais" ou em qualquer um de seus serviços que presta à comunidade, exercendo
os múnus de sacerdote, profeta e pastor. Assim, o ministério não aparece mais
numa relação de concorrência com a vida espiritual; pelo contrário, o exercí-
cio do ministério, perpassado pela caridade pastoral, já é vida segundo o
Espírito.

A caridade pastoral torna-se, assim, o centro uni�cador capaz de criar harmo-


nia e dar unidade ao conjunto das ações e relações vividas pelo sacerdote ao
longo de sua jornada. Desse modo, o atendimento de um doente, vivido no es-
pírito do Bom Pastor que se compadece e expressa seu amor com ternura e
afeto materno (cf. JOÃO PAULO II, 1992, n. 22), é um momento tão santi�cador
quanto aquele em que o sacerdote se dedica à oração do ofício divino, à oração
pessoal no silêncio de seu quarto, à presidência da liturgia ou ao anúncio da
Palavra. Como a�rma esta Exortação Apostólica:

Só a concentração de cada instante e de cada gesto à volta da opção fundamental e


quali�cante de "dar a vida pelo rebanho" pode garantir essa unidade vital, indis-
pensável para a harmonia e para o equilíbrio espiritual do sacerdote (JOÃO PAULO
II, 1992, n. 23).

Essa nova compreensão em nada diminui a importância da vida interior, mas


supera aquele dualismo inadequado que contrapunha Lia e Raquel, Marta e
Maria, ação e contemplação. A caridade pastoral, colocada ao centro da espiri-
tualidade sacerdotal, transforma-se no critério por excelência para medir o
valor de toda e qualquer ação do sacerdote. Oração e ação só terão um valor re-
almente espiritual quando movidas e permeadas pelo amor do Bom Pastor.

Dessa forma, temos a impressão de estar retornando às verdadeiras fontes do


cristianismo. Perguntado sobre qual é o maior mandamento, Jesus respondeu:
Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a
esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Mt 22,35).

É esse princípio que dá fundamento para entender a plenitude da caridade co-


mo expressão por excelência da santidade e a caridade pastoral como princí-
pio uni�cador da vida espiritual dos presbíteros.

Caridade pastoral e eucaristia


Se a caridade pastoral sintetiza o amor e a doação de si vivida por Cristo ao
longo de seu ministério, a eucaristia, enquanto celebração da morte e ressur-
reição do Senhor, coloca-nos diante dos olhos e próximo ao coração o memori-
al do evento que exprime de forma excelente o amor maior de quem é capaz de
dar a vida pelos que ama (cf. Jo 15,13). Por sua força simbólica e sacramental –
sinal sensível e e�caz da graça –, a eucaristia, expressão plena da caridade
pastoral vivida pelo Bom Pastor, torna-se fonte e alimento da caridade pasto-
ral do ministro ordenado. Conforme a�rma o Concílio Vaticano II:

A eucaristia constitui o centro e a raiz de toda a vida do presbítero, de modo que a


alma sacerdotal se esforçará por espelhar em si mesma o que é realizado sobre o
altar do sacrifício (PO, n. 14).

Na eucaristia é cada vez feito memória do dom total de Cristo à sua Igreja, ex-
pressão suprema do seu ser Cabeça, Pastor, Servo e Esposo da Igreja, a carida-
de pastoral do sacerdote não apenas brota da eucaristia, mas encontra na ce-
lebração a sua mais alta realização.

7. Considerações �nais
Esta unidade teve como foco o sacerdócio ministerial, que se fundamenta no
sacramento da Ordem. A consagração batismal confere a todos uma participa-
ção no sacerdócio de Cristo, a qual precede toda e qualquer distinção entre os
membros de seu Corpo e, ao mesmo tempo, fundamenta a diversidade de mi-
nistérios, os quais representam de formas variadas o único Pastor, Sacerdote e
Profeta.

Pela con�guração a Cristo-Cabeça e Pastor, o sacerdote torna-se ministro da


unidade eclesial. A ele cabem a coordenação e o encorajamento dos demais
membros da comunidade para que coloquem a serviço de todos os dons com
os quais o Espírito Santo enriquece a cada um. É dentro dessa perspectiva que
se entende a caridade pastoral como centro e, poderíamos dizer, coração e
princípio uni�cador da espiritualidade sacerdotal.

Concluindo esta unidade, �nalizamos o estudo referente à


. O conteúdo apresentado é apenas uma
introdução, pois, como você pôde perceber, muitos aspectos merecem ser tra-
tados de forma bem mais aprofundada do que nos foi possível fazer aqui.

Esperamos tê-lo ajudado a crescer na consciência da pertença à Igreja, fruto


da ação do Deus Trindade, que deseja a salvação de toda a humanidade. A gra-
ça batismal confere a todos igual dignidade como templos do Espírito Santo,
membros do Corpo de Cristo e Filhos de Deus. O Espírito, por sua ação livre e
contínua, enriquece a Igreja com uma pluralidade de carismas e ministérios.
À luz do sacerdócio de Cristo, estes não são meios de autopromoção e, muito
menos, de competição no interior da comunidade cristã, porém, cada um deve
ser, na sua forma, uma extensão do sacerdócio de Cristo, que, solidarizando-se
profundamente com a miséria humana, tornou-se sumo sacerdote por meio da
plena doação da própria vida.

A pessoa de Cristo torna-se, assim, o ponto de referência por excelência, para


que cada um possa entender sua identidade e missão dentro de uma Igreja to-
da ministerial.

Foi um prazer conhecer, ensinar e aprender com você!

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