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LITURGIA FUNDAMENTAL
(Parte 1)

A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA: FENOMENOLOGIA


E TEOLOGIA DA CELEBRAÇÃO

Atenção! Esta apostila é para uso exclusivo em sala de


aula. Portanto, não a compartilhe com outrem. Grato pela
compreensão!

Professor: JOAQUIM FONSECA, OFM


Ano: 2023/1
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PLANO DE ENSINO
Curso: TEOLOGIA
Disciplina: LITURGIA FUNDAMENTAL
Área: Teologia Pastoral
Períodos: 1 e 3 Ano: 2023 Semestre: 1 Horas: 30h Créditos: 2
Professor: Joaquim Fonseca de Souza

1. Ementa:

Fundamentos antropológicos, históricos e teológicos da liturgia cristã. Fenomenologia e a teologia


da celebração litúrgica (o termo “Liturgia”, o que é celebrar?, o que se celebra na liturgia cristã?,
quem celebra?, como se celebra?); Estudo da vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução
histórica.

2. Competências esperadas do futuro profissional teólogo/a:

- Formação e preparo adequados para assessorar e participar de instituições e eventos confessio-


nais, interconfessionais, educacionais, assistenciais e promocionais em perspectivas teóricas e prá-
ticas.

- Abertura ao diálogo e uso efetivo de outras ciências, particularmente as Humanas, na construção


do saber teológico e as tecnológicas que afetam o ser humano.

- Exercício do compromisso cristão unindo conhecimento e ação, mediante adequada prática pas-
toral e testemunho pessoal.

3. Objetivo:
Levar os cursistas à compreensão global das bases antropológicas, históricas e teológico-litúrgicas
do culto cristão e sua incidência na vivência da fé

4. Métodos Didáticos:
- Aulas expositivas da parte do docente.
- Trabalhos individuais e em grupos da parte dos discentes.

5. Processo de Avaliação:
Trabalhos de aproveitamento e exames, assim distribuídos: duas avaliações, totalizando 70 pontos
(30 +40) e o exame final de 30 pontos.
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6. Grade Horária do Programa:
Unidades de Ensino Horas

I – A CELEBRAÇÃO LITÚRGICA: FENOMENOLOGIA E TEOLOGIA DA CELEBRAÇÃO


1. O que é celebrar?
2. O termo “Liturgia”
3.O que celebramos na liturgia cristã?
4. Quem celebra?
5. Como celebramos?

II- A VIDA LITÚRGICO-SACRAMENTAL DA IGREJA EM SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA


Introdução
Capítulo I: A liturgia nos primórdios do cristianismo
Capítulo II: A liturgia em fase de estruturação plena - séc. IV a VIII
Capítulo III: A liturgia romana em ‘nova’ fase, ou, a liturgia “romana” da idade média
- séc. VIII-XIV
Capítulo IV: A reforma litúrgica do concílio de trento e consequências
Capítulo V: A liturgia que o Brasil e América Latina herdaram
Capítulo VI: Uma longa campanha de renovação e reforma da liturgia: o movimento
litúrgico
Capítulo VII: A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II
RESUMO FINAL

7. Bibliografia:
a) Básica:
BOROBIO, Dionísio (Org.). A celebração na igreja: liturgia e sacramentologia fundamental. São
Paulo: Loyola, 1990. v. 1.
CELAM. Manual de liturgia: a celebração do mistério pascal. Introdução à celebração litúrgica. 2.
ed. São Paulo: Paulus, 2004. v. 1.
NEUNHEUSER, B. et al. A liturgia, momento histórico da salvação. São Paulo: Paulus, 1987.
(Anamnesis 1).

b) Complementar:
BUYST, Ione; SILVA, Jose Ariovaldo. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo:
Paulinas, 2003.
BUYST, Ione; FRANCISCO, Manoel João. O mistério celebrado: memória e compromisso II. São
Paulo: Paulinas, 2004. v. 2.
LÓPEZ MARTÍN, Julián. No espírito e na verdade: introdução teológica à liturgia. Petrópolis: Vo-
zes, 1996. v. 1.
LÓPEZ MARTÍN, Julián. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia. Petrópolis:
Vozes, 1997. v. 2.
SILVA, José Ariovaldo da. Os elementos fundamentais do espaço litúrgico para a celebração da
missa. São Paulo: Paulus, 2006.
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I – O QUE É CELEBRAR? PECULIARIDADE DA TEOLOGIA LITÚRGICA


(Extraído de: BOROBIO, D. (org.). A celebração na Igreja I: liturgia e sacramentologia fundamental. São
Paulo: Loyola, 1990, p. 236-244)

O enraizamento da fé cristã no mundo e na existência humana depende, em larga medida, da ma-


neira como se celebramos sacramentos e as outras ações litúrgicas. Ora, a teologia do culto litúrgico
favorece também a compreensão e a dignificação das celebrações litúrgicas; e a carência dessa teo-
logia, como ocorre nos fenômenos históricos da devotio moderna1, do protestantismo e do ilumi-
nismo, empobrece fortemente a liturgia. Em consequência, é importante e, em nossos dias, urgente
uma abordagem teológica da liturgia, para que se manifeste o mistério cristão do culto em seus con-
teúdos fundamentais, a partir de categorias culturalmente significativas hoje em dia e situado no cen-
tro da Igreja e no núcleo da vida dos fiéis.
A liturgia não é um discurso sobre o culto cristão, mas, principalmente, uma celebração mistérica
e institucional da Igreja, que é "expressão e revelação do mistério de Cristo e da autêntica natureza
da verdadeira Igreja" (SC 2). Por isso, a fonte real do estudo teológico da liturgia é a própria celebra-
ção litúrgica. Entre a celebração litúrgica e a teologia (a fé viva de um crente que busca compreender
aquilo em que crê), surge a teologia litúrgica; essa simbiose situa o pensamento litúrgico em seu
contexto próprio, fora de todo ritualismo frívolo e de toda secularização racionalista. O liturgista é
antes de tudo um mistagogo, alguém que crê no mistério de Jesus Cristo e o celebra no meio da Igreja,
sendo sua reflexão teológica um fruto da sua atividade celebrante. A teologia litúrgica é a própria
celebração enquanto objeto de reflexão, nascendo esta da experiência daqueles que dela participam e
nela vivem.

1. Teologia e liturgia
O ponto de partida da teologia da liturgia é o próprio ato da celebração litúrgica, que não é um
discurso, mas uma ação salvífica. Por conseguinte, a liturgia permanece sempre como a "teologia
primeira", visto ser o lugar onde se celebra e se vive o mistério da salvação cristã. O original não é o
conceito, e sim a fé; o eixo não é a argumentação, mas a adoração. Assim, pois, a liturgia supera
constantemente a teologia litúrgica, de maneira que, quando se celebra, não se deve dizer o que se
faz, mas fazer o que se diz. É próprio da iniciação teológica aos mistérios litúrgicos o fazer-se medi-
ante a contemplação, quer dizer, por meio do esforço permanente do pensamento e do coração, que
nos conduz ao descobrimento da vida litúrgica e à purificação da própria existência.
Fica, pois, clara a diferença entre a liturgia como acontecimento celebrativo e a teologia da liturgia
como reflexão acerca dessa mesma celebração. O mistério vem primeiro, seguindo-se a ele a afirma-
ção teológica; primeiro vem o inefável e, depois, o formulável. Não obstante, o principal objeto da
teologia litúrgica não é uma coisa exterior, mas a própria celebração. Por isso, não podemos separar
a teologia da fé, nem confundir a anatomia da liturgia com a sua filosofia. A ciência teológica da
liturgia é adquirida em primeiro lugar por intermédio da participação mistérica nela. Portanto, num

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A Devotio Moderna foi um movimento religioso ocorrido de fins do século XIV ao XVI no seio da Igreja Católica. Por
volta do século XIV, o mundo ocidental mergulhou num período de crise econômica, demográfica e de valores. Em ter-
mos espirituais, o clero católico havia enriquecido e demonstrava hábitos dissolutos.
Por volta de 1370, nos Países Baixos, numa reação contra a vida segregada e privilegiada que os monges levavam em
seus mosteiros, Gerard Groote abandonou a clausura para se tornar um pregador itinerante e viver no meio do povo. Ele
entendia que todo o clero deveria ser muito bem instruído e que o povo deveria ter acesso ao saber para que tivesse
condições de ler e decidir por si mesmo. Por essa razão, traduziu trechos da Bíblia e alguns hinos para o vernáculo.
Surgiram assim os “Irmãos e irmãs da Vida Comum”, um grupo de homens e mulheres que viviam segregados e valori-
zando a pobreza, a humildade, a obediência e a autonegação. O seu maior propósito era reformar a igreja oficial através
da educação da juventude, da instrução religiosa transmitida ao povo e da caridade ao próximo.
Essas atitudes deram início ao movimento que se denominou Devotio Moderna, que rapidamente se espalhou por toda a
Europa Ocidental. Em seu contexto surgiu um pequeno livro, a “Imitatio Christi” (Imitação de Cristo), cuja mensagem
espelhava o espírito da Devotio Moderna. A obra destinava-se a todos, sem exceção, mas principalmente àqueles desejo-
sos de transformar e santificar o seu quotidiano.
Propunha-se assim um modelo de vida religiosa que colocava sacerdotes e leigos no mesmo nível, sem distinções hierár-
quicas. O livreto “Imitação de Cristo” goza de sucesso editorial até nossos dias.
Extraído de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Devotio_Moderna
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certo sentido, precisa-se de uma síntese entre vida cristã e liturgia para se chegar a uma síntese entre
liturgia e teologia. A liturgia, mistério de fé, nos leva à experiência da fé e a uma teologia fundada na
vida, na experiência e no testemunho. O celebrante da liturgia, na medida de sua reflexão, faz teologia.
A liturgia é o contexto nato da reflexão teológica.
Aqui, consideramos a liturgia como celebração, em seu sentido pleno. Isto é, tratamos a liturgia
como acontecimento teológico em sua especificidade cristã, que compreende o mistério salvífico, a
sua celebração e a vida nova. O ato litúrgico é ação da Igreja que celebra o mistério pascal de Jesus
Cristo para que este se cumpra nos fiéis cristãos. Referimo-nos à teologia litúrgica para designar a
teologia da celebração litúrgica plena. Não nos preocuparemos tanto com o aspecto teórico, mas com
a liturgia como fé celebrada e vivida, fé que salva hic et nunc (aqui e agora). Tampouco nos deteremos
diretamente numa liturgia teleológica, no nível pastoral, mas na liturgia ontológica, cujo conteúdo é
o mistério cristão. Logo, a teologia litúrgica é reflexão teológica sobre a celebração do efaphax do
mistério sacerdotal de Jesus Cristo (Hb 7,27). Esse é o Sitz im Leben do conteúdo teológico da liturgia,
em sua realidade existencial, que nos leva diariamente à consciência de viver em comunhão com o
mistério pascal de Jesus Cristo e em comunhão com o homem. Essa é a memória de Jesus Cristo e a
memória do homem. A teologia da liturgia é mais uma questão de fé professada do que de ritos
realizados. É uma experiência de fé e uma missão apostólica, mais do que conteúdos corretamente
expressos.
A liturgia, anterior à teologia litúrgica, já é de si mesma um acontecimento teológico, provocando,
de imediato, a reflexão do celebrante. O ato celebrativo é epifania do mistério litúrgico como experi-
ência e como reflexão. A teologia, num segundo momento, interpreta o acontecimento litúrgico em
sua relação com a salvação cristã do homem. Isso nos leva a pensar que, embora a teologia tenha sido
o parente pobre da liturgia, a reflexão teológica sobre a liturgia é tão antiga quanto a própria Igreja.
Nesse sentido, há já uma teologia litúrgica na própria Escritura Sagrada, nos santos padres, na esco-
lástica etc. Na Baixa Idade Média, produz-se uma separação prática entre a liturgia e a piedade pes-
soal, o que levaria mais tarde à típica incompreensão protestante, cujas consequências chegaram ao
nosso século.
A teologia litúrgico-sacramental de Tomás de Aquino, mesmo que se reconheça a sua validade
fundamental em nosso tempo, deve ser criticada a partir das fontes da fé cristã, da experiência dos
celebrantes e da cultura antropológica atual. Seguindo esse caminho, também nos tornaremos discí-
pulos do Doutor Angélico. Interessa-nos, de modo particular, a relação entre o homem e a liturgia
nos planos de Deus. A questão antropológica da liturgia já foi considerada na teologia clássica, por
exemplo, quando se fala do sujeito dos sacramentos e dos efeitos destes. Sempre se afirmou: Sacra-
menta sunt propter homines. Não obstante, o homem era então considerado mais do ponto de vista
da natureza racional, enquanto na atualidade interessa mais o homem visto a partir da dimensão his-
tórico-dinâmica da sua personalidade e em sua realidade existencial. Assim, pois, consideramos a
liturgia na vida do homem que busca a libertação ou o desenvolvimento, bem como a salvação, no
plano providencial da historia salutis.
O Concílio de Trento não nos deixou diretamente uma teologia própria da liturgia. Dada essa ca-
rência, explica-se o sentido triunfalista da liturgia no período barroco, onde o mistério salvífico do
culto se perdia na filosofia burguesa da religião, de caráter externo e classista. Com o Movimento
Litúrgico, iniciado já no século XIX, assentam-se os primeiros fundamentos para uma renovação da
teologia da liturgia, na qual apareçam essas realidades cúlticas do cristianismo, capazes de dar à vida
humana o sentido da essencialidade. De qualquer modo, a teologia sistemática da liturgia responde à
teologia fundamental dos sacramentos, potenciando o aspecto de ortopráxis que favorece a fertilidade
das celebrações litúrgicas. Contudo, é preciso perceber os motivos pelos quais o tratamento dos sa-
cramentos em geral sofreu ultimamente grandes críticas, visto que as mesmas reservas poderiam apli-
car-se à teologia da liturgia. Em definitivo, levando em conta o conceito analógico de sacramento, é
necessário partir da vida litúrgica da Igreja como o lugar prioritário do pensamento teológico sobre a
liturgia, bem como sobre todas as outras estruturações reflexivas da fé cristã. A teologia da liturgia é
um discurso crítico sobre a celebração a partir da própria liturgia concreta. A celebração litúrgica é
chamada a ser verdadeira em sua ortodoxia e em sua ortopráxis. Uma liturgia ortodoxa manifestará o
louvor correto e uma liturgia ortoprática exigirá uma correta existência sacramental, geradora da li-
bertação integral do homem. A liturgia, como afirmava Tomás de Aquino da teologia, é especulativa
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e prática. Nosso estudo é uma constante tentativa de nos abrir à modernidade, ou melhor, à criativi-
dade do Espírito Santo.

2 . Teologia da liturgia
O sentido teológico da liturgia continua sendo algo nebuloso. Referimo-nos ao conteúdo teológico
da teologia litúrgica ou ao valor teológico da liturgia. Evidentemente, não nos fixamos tanto no vo-
cabulário quanto no significado real. Quando falamos de teologia da liturgia, fazemos referência a
uma interpretação crítica, a partir de critérios científicos, da celebração da fé eclesial, a fim de puri-
ficá-la de toda falsidade possível. A teologia litúrgica tem um conteúdo dogmático; é mais do que
uma dimensão da teologia e não se esgota na liturgia considerada como locus theologicus, ao estilo
pós-tridentino. Também se apresentou a liturgia como ponto focal ou convergência de toda a teologia,
à medida que nela se celebra o mistério pascal da salvação cristã ou historia salutis. Todavia, o que
tentamos manifestar aqui é o conteúdo ou sentido teológico da liturgia, como parte da dogmática
(culto e sacramento) a que se refere o Concílio Vaticano II (SC 16; OT 16).
É necessário passar da liturgia considerada como uma fase integradora da teologia para a liturgia
aceita como contexto próprio da teologia, cujo objeto é o mistério pascal.
A teologia litúrgica é uma parte da teologia sistemática, em sua realidade ontológica, cujo objeto
é o estudo do culto da Igreja, analisando e definindo a sua essência e as suas formas; percebendo a
liturgia, ainda, como fonte regeneradora da teologia, pois a lex orandi é o critério fundamental da lex
credendi. Entretanto, não se deve reduzir a teologia à liturgia (panliturgismo), dado que esta, embora
fonte e ponto culminante da vida da Igreja, não esgota toda a sua atividade (SC 9-10). Em consequên-
cia, a prioridade ontológica da teologia está na liturgia, que não termina na celebração, pois aquilo
que a antecede e aquilo que a segue também se acham dirigidos para a glória de Deus e para a edifi-
cação da Igreja. Mas não confundamos a relação liturgia-fé com a relação liturgia-teologia, embora a
primeira seja fundamento da segunda. O sentido próprio da teologia da liturgia é o estudo científico
da celebração do mistério pascal enquanto acontecimento concreto, hic et nunc, em sua conotação
histórica e antropológica. O acontecimento litúrgico é um fato teologicamente privilegiado: é uma
profissão de fé cristã e uma experiência de salvação em Jesus Cristo. Nele, encontramo-nos com a
igreja real e com a existência real dos cristãos, em seu fazer-se mais profundo e definitivo.
A liturgia, mais do que um lugar teológico, é a epifania da vida da Igreja, devendo projetar-se na
Igreja e no fazer teológico como um novo estilo de viver como cristão e como uma nova forma de
praticar teologia. Tudo isso supõe uma fé viva e uma experiência eclesial. Necessitamos nos expor à
influência da liturgia para chegar a captar esse sentido da vida cristã. O importante na teologia da
liturgia é considerar a liturgia como critério prioritário no conhecimento teológico no culto e nas
formas concretas da existência cristã. A liturgia, considerada em termos teológicos, é algo além da
identificação empírica dos dados da fé. A teologia da liturgia é a ciência do culto cristão enquanto
ação sacramental da Igreja, com a sua própria metodologia e os seus objetivos específicos.
O método da teologia da liturgia compreende três etapas: em primeiro lugar, determina o aconte-
cimento litúrgico; em segundo lugar, analisa-o teologicamente; e, por fim, apresenta uma síntese do
conteúdo a partir do seu significado e do seu testemunho. O objetivo específico da teologia litúrgica
é o seu caráter escatológico, cuja função essencial é realizar a plenitude do mistério da Igreja, até
tornar-se a epifania do Reino de Deus.
Encontramo-nos, pois, com o objeto transcendente da teologia da liturgia, cujo discurso próprio se
desenvolve no nível simbólico e apofático.2 O acontecimento litúrgico é conhecido em termos relati-
vos e à medida que se faz interior ao celebrante. O valor epistemológico da análise litúrgica é uma

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Apofatismo deriva do verbo ‘apofasko’ = ‘apofemi’, que significa negar. Ordinariamente refere-se à teologia. Entende-
se por teologia apofática o sistema teológico que procede por negações, recusando-se progressivamente a referir a Deus
os atributos tomados do mundo sensível e inteligível, para aproximar-se de Deus - que está além de todas as coisas criadas
e de todo conhecimento relativo a elas - transcendendo todo e qualquer conhecimento e conceito. Ao contrário, teologia
catafática, própria da tradição ocidental, é o procedimento teológico mediante o qual se referem a Deus os conceitos
relativos aos nomes com os quais ele é indicado: tais conceitos, extraídos dos seres derivados de Deus, podem ser aplica-
dos a Deus como causa primeira de todas as coisas, não podendo porém exprimir adequadamente sua natureza. É preciso
porém deixar claro que também no Ocidente encontramos uma notável tradição apofática, bastando lembrar mestre
Eckhart ou os místicos espanhóis do século XVI, ou simplesmente a tradição mística franciscana. O apofatismo encontra
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função do seu grau de interiorização experimental e da linguagem simbólica. Nesse sentido, pela
celebração litúrgica, o mistério pascal se realiza, verifica-se e se presentifica em sua dimensão ascen-
dente ou cúltica e em sua dimensão descendente ou salvífica. De modo definitivo, a finalidade da
teologia da liturgia é a própria celebração litúrgica, voltando assim à sua própria fonte. A realidade
mística da liturgia precede ou conclui o processo de sua dimensão formulável ou teológica. A cele-
bração leva à reflexão e esta nos devolve à celebração. Alertemos desde agora que não consideramos
este estudo como um tratado completo da dimensão teológica da liturgia. Apresentamo-lo, antes,
como um projeto, entre outros, de teologia da liturgia.
Por conseguinte, a teologia da liturgia, ciência especulativa e prática fundada na Sagrada Escritura
e na tradição viva da Igreja, é uma interpretação teológica do acontecimento cúltico. É uma atividade
de compreensão e explicação daquilo que é celebrado na liturgia, de acordo com o ritmo bilateral do
intellectus fidei, sintetizado por Agostinho na famosa frase: Intellige, ut credas; crede, ut intelligas.3
De qualquer maneira, a hermenêutica litúrgica exige uma experiência do culto, pois estamos numa
ciência mais indutiva do que dedutiva. Definitivamente, um bom teólogo da liturgia é também um
bom celebrante. A liturgia não é um produto teológico, mas reflete e origina uma teologia, que conduz
novamente à celebração. Falamos de teologia da liturgia em sentido reflexo, do mesmo modo como
se fala de teologia da Sagrada Escritura. Não há dúvidas, a teologia da liturgia é a reflexão cristã sobre
o culto que é o mistério, ação sagrada e vida nova. A teologia da liturgia, ciência apofática, é a refle-
xão sobre o mistério pascal, celebrado em espírito e em verdade, para a vida, que é glória de Deus e
edificação da Igreja.

3. Teologia simbólica da liturgia


O racionalismo é um inimigo da celebração e da ciência litúrgicas. O culto da Igreja se obscurece
quando expresso racionalmente. Pode-se afirmar que, no processo discursivo, o preço da clareza é a
perda da profundidade. Nessa perspectiva, referimo-nos ao caráter simbólico da teologia litúrgica
como alternativa à sua análise racional. Fazemos uma tentativa de chegar perto da expressão simbó-
lica da liturgia, para além dos seus conteúdos lógicos. Recordemo-nos dos teólogos e dos místicos
apofáticos, que se referem copiosamente à ciência do não-saber. Talvez ainda não se atribua valor
suficiente ao critério teológico da expressão simbólica e de sua consequente experiência.
Alertemos, desde o início, que quando apresentamos a liturgia em sua expressividade simbólica,
referimo-nos de maneira direta a uma questão hermenêutica e não a um problema de conteúdo. É uma
questão de linguagem litúrgica. A liturgia se exprime, em termos essenciais, por meio de símbolos
relacionados com a sua base mistérica e antropológica. O homem, imerso em seu corpo e na criação
- realidades com grande poder de simbolização -, exprime-se simbolicamente. A linguagem litúrgica
não é lógico-sistemática, mas simbólico-poética. Aqui, encontramos uma relação deveras sugestiva
entre liturgia e estética, de modo que as celebrações cúlticas manifestam, de maneira muito especial,
a beleza e a verdade da Igreja. A liturgia, transcendente em seu conteúdo, não pode ser contida na
ideia, mas necessita do símbolo para exprimir a experiência da beleza da vida cristã. O símbolo nos
introduz no mistério da salvação de Jesus Cristo, que pode manifestar-se em categorias fundamentais
tais como relacionalidade e densidade. Já Romano Guardini, em seu livro clássico O espírito da li-
turgia, falava, no capítulo IV, que a liturgia vive de sua força simbólica.
Estamos no campo das forças expressivas humanas. Com o símbolo, transmite-se o sentido ou
espírito da realidade de uma para outra pessoa. O símbolo manifesta o sentido daquilo que se celebra.
Esse nível de expressividade, mais determinante do que o mero significado, fundamenta-se no fato
de que o homem é um ser necessitado de sentido; não pode viver sem sentido e sem dar sentido àquilo

seu apogeu em Dionísio, o Pseudo-Areopagita, o misterioso autor do Corpus dionysiacum (provavelmente início do sé-
culo VI), aquele que influenciou mais do que todos a mística bizantina. Ele distingue dois sistemas teológicos possíveis:
um procede por afirmações (teologia catafática ou positiva), o outro por negações (teologia apofática ou negativa). O
primeiro leva-nos de fato a certo conhecimento de Deus, mas trata-se de um meio muito imperfeito. A via apofática,
embora nos conduza à ignorância perfeita, é entretanto a única que está em conformidade com a natureza incognoscível
de Deus. Com efeito, todos os conhecimentos têm como objeto aquilo que é, ao passo que Deus está além de tudo aquilo
que existe. Para se aproximar dele seria preciso negar tudo aquilo que lhe é inferior, quer dizer, tudo aquilo que é.
Fonte: SPITERIS, Y., Apofatismo, in: Lexicon - dicionário teológico enciclopédico, São Paulo: Loyola, 2003, p. 41.
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“Entenda para que crês; crê, para que entendas”.
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que é e ao que faz. Dar a vida, mais do que engendrar, é dar o sentido da vida presenteada. Situando-
nos já no mistério litúrgico, percebemos que a liturgia é um acontecimento de comunicação salvífica,
em que Deus nos transmite a vida do mistério pascal. Por isso, Deus e o homem fazem parte da
estrutura litúrgica enquanto acontecimento de comunicação expresso em ações e palavras simbólicas.
Mas não podemos reduzir a liturgia à sua expressividade simbólica; essa é a razão por que, quando
falamos de liturgia, é necessário precisar se nos referimos ao acontecimento mistérico ou à expressão
ritual-simbólica.
Não é fácil descrever o significado do símbolo; tentaremos fazê-lo da perspectiva da teologia li-
túrgica. Etimologicamente, símbolo (syn-ballein) significa harmonia ou união, como a relação exis-
tente entre dois gladiadores no Coliseu ou como a relação sexual entre o homem e a mulher, fundada
num amor verdadeiro e pessoal. Contudo, o símbolo não cria a união harmônica, mas a restabelece,
pondo em relação duas unidades que, embora distintas, são chamadas a existirem juntas. Nesse sen-
tido, o celebrante da liturgia aparece como vocacionado por Deus a levar todas as coisas à harmonia
fundamental, que se realiza na salvação cristã experimentada, o homem simbólico se contrapõe ao
homem caótico, o verdadeiro liturgo é luz, harmonia e santidade.
Toda ação humana pode ser interpretada em sentido técnico (enquanto serve para algo) e em sen-
tido simbólico (enquanto significa algo). Entretanto, distingue-se entre o sinal, pertinente ao mundo
do ser, e o símbolo, que pertence ao sentido do ser. São dois os critérios que determinam a natureza
do símbolo: a relacionalidade, por remeter a uma realidade concreta, e a consistência, por representar
de algum modo essa realidade sob a sua própria identidade, embora sempre de maneira imperfeita.
No símbolo, dá-se uma correlação entre o símbolo e o simbolizado (significante) e entre o simboli-
zado e o símbolo (expressão). O símbolo descobre a profundidade das coisas, tornando-as diáfanas;
mas não é magia, e sim intuição humana e fé cristã, segundo o caso. O núcleo do símbolo é sua
vicariedade, pois ele é como que o visível do invisível, à feição de memória epifânica. O símbolo
corrente contém o nome sem a natureza; é presença de sentido, não da natureza. O símbolo tem uma
energia que impele para a transcendência e para a escatologia; é como a luz e a cor do ícone transfi-
gurado e carregado de presença. Não é fonte de luz, mas o seu transmissor. O símbolo é intuição, não
raciocínio; distinção, e não separação. Em consequência, leva à unidade, ao passo que o diabo (a
mesma etimologia) luta pela divisão e pela confusão.
O símbolo implica a presença da realidade simbolizada, de maneira figurada, porém real. É a pre-
sença de uma realidade oculta noutra realidade encarnada, sensível ou imaginável. O símbolo é per-
cebido por meio da conaturalidade ou experiência, na qual a pessoa toma parte e com a qual se com-
promete, influindo aí, sobretudo, o peso da fé e a atração do amor. Achamo-nos, em última análise,
diante de uma simpatia fundamental do homem com o cosmos e com o seu Criador. A linguagem
simbólica não é separável por inteiro da linguagem racional; apesar de serem diferentes, estas se
influenciam e se criticam mutuamente. A linguagem simbólica é mais apropriada para a teologia do
que a linguagem racional, dado que o objeto da revelação é sobrenatural. Mediante a simbologia,
superam-se os paradoxos conceituais da teologia e se corrige o possível exagero nas argumentações
metafísicas e nas comparações alegóricas, admitida sempre a tensão dialética entre o símbolo e o
conceito. A realidade simbolizada na teologia é sempre, de alguma maneira, Deus em Jesus Cristo ou
em algum dos seus atributos. Em termos concretos, sempre há, nas fórmulas dogmáticas, um valor
simbólico para além do enunciativo. O conteúdo dogmático completo ultrapassa sempre o seu signi-
ficado enunciado, pois compreende o valor evocado. Por exemplo, a relação entre a graça e a liber-
dade, entre Jesus Cristo Deus e homem etc.
O símbolo litúrgico é uma via correta para chegar à história da salvação no hoje de Deus (cf. Dt
26,3.16-18). Não se trata apenas de uma atitude de admiração diante de um fato que nos é estranho,
mas da aceitação e da experiência salvadora de uns certos acontecimentos históricos que são objeto
da nossa fé. A memoria cordis é essencial à compreensão do símbolo na celebração litúrgica. É a
memória pascal do povo de Deus: memória de fé e de amor. "Escuta, Israel...". A memória bíblica
nos leva à memória litúrgica, pois existe um liame genético entre a liturgia de Israel e a liturgia cristã.
A tradição do passado, celebrada na liturgia, abre-nos à esperança do futuro. Assim, chegamos ao rito
cristão, sendo a liturgia a ritualização da salvação cristã contida no mistério pascal de Jesus Cristo. O
símbolo ritual, em sua dimensão histórica, nos possibilita a relação com Cristo e a relação com o
homem. A palavra revelada é a chave hermenêutica do símbolo, situado em seu contexto próprio da
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profissão de fé. Assim sendo, os símbolos litúrgicos realizam uma função profética, proclamando
que a história sagrada, em sua profundidade, continua a fazer realidade no novo êxodo do novo povo
de Deus, que escuta a palavra de Deus em Cristo: "Eu sou aquele que é...", constituído Senhor e
Salvador (cf. At 2,36). O rito litúrgico não pretende arrebatar o favor de Deus, mas receber dele a
salvação histórica e escatológica realizada em Jesus Cristo, Senhor da história enquanto Criador e
Redentor.
No cristianismo, o rito é sacramental, em sua própria dimensão histórica, de modo que é avaliado
principalmente, não em seu significado fenomenológico, mas em seu sentido ontológico e eficaz.
Quando afirmamos que o símbolo litúrgico é interpretado mediante o sacramental, queremos dizer
que o símbolo litúrgico não é apenas sinal, mas também presença real, em algum sentido, do signifi-
cado, num nível de realidade realizada e presentificada. Na liturgia, não estamos diante de uma som-
bra ou lembrança humana, mas diante da existência real do acontecimento histórico da nossa salva-
ção. Quando consideramos a celebração litúrgica como uma estrutura simbólica, devemos interpretá-
la corretamente para superar toda possível violência feita ao culto através de ideologias alheias ao
mundo litúrgico.
A liturgia, celebrada em símbolos sacramentais, pode ser explicitada como palavra (sem verba-
lismo doutrinário), como encontro (sem intimismo subjetivista) e como expressão simbólica da fé e
da salvação (sem coisificação nem vivências mágicas). O sacramento é uma expressão libertadora,
porque nele alcançamos a salvação de Deus e a verdade do homem; mas o símbolo é uma mediação
corretora de qualquer manipulação do divino ou do humano pelos sacramentos. A liturgia sacramental
é como o molde ou ícone de Deus; é a impressão que o modelo deixa na argila ou o meio no qual uma
realidade plena de luz se faz presente de uma maneira reflexa e obscura. Nesse sentido, afirma Teo-
doreto de Ciro: "O batismo é um símbolo e um símile da morte de Cristo, pois, como diz S. Paulo, se
a nossa existência se acha unida a ele numa morte como a sua, também o estará numa ressurreição
como a sua". O rito sacramental é um símbolo da relação salvífica de Jesus Cristo com os homens,
que nos leva, por sobre o simbolismo natural, ao desígnio das misericórdias de Deus Pai. O banquete
pascal nos traslada à aliança de Deus com o seu povo e, definitivamente, ao banquete escatológico.
Esse sentido litúrgico que, a partir do hoje salvífico de Cristo nos relaciona, pelo poder sacramental,
com a kénosis do Servo de Iahweh (cf. Fl 2,8), fala-nos do tempo original e da grandeza litúrgica
envolta na debilidade dos símbolos, os quais não são o seu cárcere, mas chamado à comunicação e à
comunhão. Na liturgia, o tempo passado penetra no presente e o presente nos descobre o futuro.
Pelo símbolo sacramental, chegamos ao homo liturgicus, o homem criado e restaurado segundo a
imagem e a semelhança de Deus, onde construímos a nossa reflexão teológica sobre a liturgia. Mas
falamos do símbolo sacramental cristão, que sempre nos leva a Jesus Cristo por meio da fé. Cristo
aparece como o arquétipo fundamental que projeta e estrutura a realização da vida cristã, dando ori-
gem à identificação do fiel e do celebrante na liturgia. Falar do símbolo como estrutura fundamental
da teologia litúrgica ajuda-nos a superar todo exagero racionalista que possa levar a uma interpretação
mágica, por exemplo, do axioma sempre válido do ex opere operato, esquecendo-se da referência a
Cristo. O simbolismo nos auxilia a passar de um sacramento mágico (o do celebrante depende do
sinal) ao sacramentalismo cristão (o sinal depende do celebrante como mediação). O símbolo sacra-
mental é um acontecimento da graça, e não um mero meio para a graça. A simbologia sacramental
nos introduz numa celebração litúrgica mais próxima e mais verdadeira, ajudando-nos a superar essa
tensão, já clássica na liturgia, entre racionalismo e simbolismo. Para que a salvação celebrada na
liturgia não se torne algo acrescentado, algo mágico, devemos revalorizar o caráter simbólico do
culto, evitando também o abuso dos ritos secundários, que poderiam obscurecer a abertura ao simbo-
lizado. Decididamente, o caráter simbólico da liturgia é interpretado como sacramentalização da sal-
vação histórica, em sua tríplice dimensão evocativa, intercessória e escatológica. O sentido litúrgico
pleno nos vem, por fim, da cruz e da ressurreição de Jesus Cristo.
A simbolização sacramental histórica da historia salutis é um critério muito rigoroso na liturgia.
Em primeiro lugar, na ciência e na prática celebrativa, supõe um compromisso no sentido de conse-
guir uma linguagem litúrgica adequada, na qual seja promovida a existência humana e cristã dos
celebrantes. Essa simbolização histórica da salvação cristã deve ser feita no nível cósmico e escato-
lógico em gestos e palavras performativos, nascidos da cultura atual e, sobretudo, da experiência da
fé. Nós, cristãos, vivemos na história pascal; e a linguagem litúrgica, gerada na modernidade cultural
10
e na pascalidade cristã, chegará a ser compreensível para o homem de hoje. Em consequência, os
símbolos cósmicos e escatológicos, de tipo histórico, devem continuar a ser a base da liturgia. Em
segundo lugar, é preciso captar o sentido da história da salvação. A história, como dimensão linear, é
uma herança do povo hebreu, pois a cultura grega, em sua regularidade cíclica, carece do sentido
histórico. Nessa perspectiva, a teologia cristã, mais hebraica do que grega, concebe a vida, não como
destino, mas como peregrinação escatológica e como profecia, em cujo processo a pessoa de Jesus
Cristo é o fundamento. Como resultado, a simbolização sacramental da liturgia é, enfim, a memória
histórica do mistério pascal de Jesus Cristo.

II – O QUE CELEBRAMOS NA LITURGIA CRISTÃ?


(Extraído de: BOROBIO, D. (org.). A celebração na Igreja I: liturgia e sacramentologia fundamental. São
Paulo: Loyola, 1990, p. 245-276)

A constituição litúrgica do concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, enquadra teologica-


mente a realidade da liturgia no mistério pascal de Jesus Cristo, dentro de uma perspectiva histórico-
salvífica. Ao usarmos o vocabulário do mistério pascal, situamo-nos também nas primeiras reflexões
bíblicas e patrísticas sobre o acontecimento litúrgico. De nossa parte, é fundamental estabelecer um
vínculo com o significado cristão dessas expressões cúlticas da Igreja primitiva. Nesse sentido, o
mistério pascal, em seu significado teológico, situa-nos na origem do novo povo de Deus, do novo
culto e da nova aliança. Propomo-nos aqui, com outras palavras, os pressupostos cristológicos da
celebração litúrgica em sua dupla vertente, como realidade preexistente e como acontecimento atual
histórico-salvífico. O mistério pascal é o núcleo da Igreja e da liturgia, percebendo-se nele a profunda
relação entre teologia e culto, a abertura a uma síntese entre o homem e o plano salvador de Deus.
Em consequência, é preciso considerar o mistério pascal como a chave teológica da compreensão de
Cristo e da liturgia. Assim, situa-se o litúrgico em seu contexto próprio e em sua extensão adequada.
Essa proposição equilibra a relação entre os mistérios históricos de Cristo e o Senhor glorificado,
atualmente vivo e presente no culto. É muito importante fundamentar a liturgia no Cristo histórico,
para evitar toda aparência docetista,4 embora seja necessário favorecer o processo real do Cristo his-
tórico para o Cristo da fé.

1. O mistério de Jesus Cristo


O Concílio Vaticano II, em sua constituição litúrgica, descreve da seguinte maneira o significado
do mistério pascal: "Essa obra da Redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, da qual foram
prelúdio as maravilhas divinas operadas no povo do Antigo Testamento, completou-a Cristo Senhor,
principalmente pelo mistério pascal de sua sagrada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa As-
censão" (SC 5). Noutra parte do mesmo documento, afirma-se também: "Por isso, a liturgia dos Sa-
cramentos e Sacramentais consegue para os fiéis bem dispostos que quase todo ato da vida seja san-
tificado pela graça divina que flui do Mistério Pascal da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, do
qual todos os Sacramentos e Sacramentais adquirem sua eficácia. E quase não há uso honesto de
coisas materiais que não possa ser dirigido à finalidade de santificar o homem e louvar a Deus" (SC

4
Docetismo é o nome dado a uma doutrina cristã do século II, considerada herética pela Igreja primitiva. Antecedente
do gnosticismo, acreditava-se que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas apa-
rente. Não existiam “docetas” enquanto seita ou religião específica, mas como uma corrente de pensamento que atraves-
sou diversos estratos da Igreja. Esta doutrina é refutada pela Igreja Católica com base no Evangelho de São João, onde
no primeiro capítulo se afirma que “o Verbo se fez carne”. Autores cristãos posteriores, como Inácio de Antioquia e Ire-
neu de Lião deram os contributos teológicos mais importantes para a erradicação deste pensamento, em especial o último
que, na sua obra Adversus Haereses defendeu as ideias principais que contrariavam o docetismo, ou seja, a teologia
do Cristocentrismo, a recapitulação em Cristo do Homem caído em pecado e a união entre a criação, o pecado e a reden-
ção. A origem do docetismo é geralmente atribuída a correntes gnósticas para quem o mundo material era mau e corrom-
pido e que tentavam aliar, de forma racional, a Revelação disposta nas escrituras à filosofia grega. Esta doutrina viria a
ser condenada como heresia no Concílio Ecumênico de Calcedônia.
Extraído de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Docetismo
11
61). O mistério pascal de Jesus Cristo é, por conseguinte, o objeto da celebração e da teologia
litúrgicas, como fica igualmente claro nessas outras palavras: "Nunca, depois disso, a Igreja deixou
de reunir-se para celebrar o mistério pascal" (SC 6).
O magistério do papa João Paulo II também fez eco ao conteúdo teológico do mistério pascal,
usando essa mesma terminologia. "A mensagem messiânica de Cristo e a sua atividade entre os ho-
mens terminam com a cruz e com a ressurreição. Devemos penetrar no fundo desse acontecimento
final que, de modo especial na linguagem conciliar, é definido mysterium paschale, se desejarmos
exprimir profundamente a verdade da misericórdia, tal como foi revelada de modo profundo na his-
tória da nossa salvação... O mistério pascal é o ponto alto dessa revelação e dessa atuação da miseri-
córdia, que é capaz de justificar o homem, de restabelecer a justiça no sentido da ordem salvífica
desejada por Deus, desde o princípio, para o homem e, mediante o homem, no mundo... A dimensão
divina do mistério pascal alcança, contudo, uma profundidade ainda maior. A cruz colocada sobre o
Calvário, onde Cristo tem o seu último diálogo com o Pai, emerge do próprio núcleo daquele amor,
com o qual o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, foi agraciado segundo o eterno desígnio
divino... O mistério pascal de Cristo é o auge da revelação do inescrutável mistério de Deus... Esses
poderosos clamores devem estar presentes na Igreja do nosso tempo, dirigidos a Deus, para implorar
a sua misericórdia, cuja manifestação a Igreja professa e proclama enquanto realizada em Jesus cru-
cificado e ressuscitado, isto é, no mistério pascal.”
O mistério pascal é o mistério pessoal e filial de Jesus, o Cristo, expresso em suas dimensões, a
humana, de kénosis (a redenção) e a divina, de glorificação (o amor misericordioso de Deus), que
convergem na cruz e foram hino logicamente cantadas em Fl 2,6-11. Noutro sentido, podemos falar
de dois tempos no mistério pascal: o momento da humilhação de Jesus até a morte e o momento da
sua glorificação mediante a ressurreição pela força do Espírito, que nos leva à dimensão da eternidade
em Cristo. Encontramo-nos, pois, com o Cristo histórico e com o Cristo glorificado da fé, que é o
mesmo Cristo e diante do qual necessitamos da mesma fé. Não há dúvida de que o mistério pascal é
o próprio mistério de Cristo, concebido, não como uma justaposição de fatos salvíficos, mas como
um acontecimento unitário de salvação. A morte de Cristo é a nossa própria morte para o pecado,
bem como o rosto do nosso pecado; a sua ressurreição foi a efusão do Espírito de Jesus, de maneira
tal que ele começou a viver no Espírito com todo o seu ser. A sua transfiguração foi uma manifestação
da parusia final. A salvação cristã, por conseguinte, não é algo a ser distribuído, mas uma pessoa. O
mistério pascal de Cristo, síntese escatológica, não é uma lembrança dos acontecimentos da nossa
salvação, mas os próprios acontecimentos da nossa salvação, no nível da proclamação e da realização,
graças ao dom da liturgia. É necessário captar esse mistério pascal em seu sentido histórico, não
apenas no nível subjetivo (Geschichte), como também no nível objetivo (Historie), bem como o seu
sentido único e total. Desse modo, a liturgia aparece com o seu sentido histórico e como celebração
do mistério de Cristo em sua unicidade e em sua totalidade.
O vocábulo "mysterion", na gênese histórica do seu significado religioso, ainda não foi estudado
o suficiente. Em primeiro lugar, é usado na cultura helênico-pagã no plural, designando os cultos dos
mistérios, especialmente de iniciação, destinados a obter a salvação. Neles, regia a lei do segredo no
tocante aos ritos e não quanto à esperança da salvação mítica. No neoplatonismo, misturam-se as
doutrinas com os cultos mistéricos. No gnosticismo, aparece um sincretismo ainda mais pronunciado,
que reinterpreta os ritos mistéricos com relação aos mitos da salvação humana. Já no mundo da reve-
lação, o uso do termo mysterion é raro no Antigo Testamento (aparece umas 20 vezes na septuaginta),
como também o será no Novo Testamento. Contudo, interessa-nos o significado neotestamentário de
mistério, visto que o vocabulário do mistério pascal depende originalmente de Paulo, sendo indepen-
dente das religiões mistéricas pagãs e até no Antigo Testamento.
Segundo Paulo, o mistério de Deus é o acontecimento-Cristo e a ação salvífica de Deus Pai nele,
manifestada e realizada na plenitude dos tempos. O mistério estava em Deus e continua a realizar-se
no mundo, com a eficácia e a sabedoria da cruz, dando origem à história da salvação, ainda não
consumada: o mistério escondido desde os séculos e desde as gerações, mas agora manifestado nos
seus santos. A estes quis Deus tornar conhecida qual é entre os gentios a riqueza da glória deste
mistério, que é Cristo em vós, a esperança da glória! (Cl 1,26-27). "Lendo-me, podeis compreender
a percepção que eu tenho do mistério de Cristo. Às gerações e aos homens do passado ele não foi
dado a conhecer, como foi agora revelado aos seus santos apóstolos e profetas, no Espírito" (Ef 3,4-
12
5). Esse significado fundamental do mistério de Cristo não tem relação alguma com os cultos mis-
téricos; ele surge dos atos e sofrimentos históricos de Jesus Cristo. Num segundo momento, o misté-
rio, em Paulo, passa a significar o anúncio profético da salvação em Cristo e alguns aspectos parciais
de sua salvação, relacionando-se o mistério de Cristo com o querigma de Cristo. "Seguramente,
grande é o mistério da piedade: Ele foi manifestado na carne, justificado no Espírito, contemplado
pelos anjos, proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na glória" (1Tm 3,16). "Ensinamos a
sabedoria de Deus, em mistério e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a
nossa glória" (1Cor 2,7).
Nesse sentido, Jesus Cristo manifesta-se como o novo santuário e como o novo culto. Cristo é
Iahweh no meio do seu povo; é o fundamento já assentado; é o fruto mais esplêndido da raiz santa,
que era Israel. Jesus pode inclusive dizer de si mesmo: "Digo-vos que aqui está algo maior do que o
Templo" (Mt 12,6). O mistério pascal, Cristo, não é uma teoria, mas o acontecimento da nossa salva-
ção, em seu sangue, preço da nossa redenção e propiciação dos nossos pecados. No mistério, há uma
realidade patente, que é a história visível da nossa redenção, e outra realidade, latente, que é a pre-
sença de Deus, rico em misericórdia, nela. É fascinante e maravilhoso perceber a transcendência do
fato histórico da salvação pascal como fundamento do culto litúrgico. É essa a história constituinte
do cristianismo. Por isso, a palavra-chave da liturgia é memória ou "anamnese" do mistério pascal de
Jesus Cristo. Cristo se lembra do seu povo e o povo redimido se lembra do seu Deus. A consciência
histórica do cristão e a dimensão anamnética da liturgia são consequências do mistério pascal.

2. O mistério litúrgico
O mistério pascal de Jesus Cristo, isto é, a passagem de sua morte à sua ressurreição, triunfando
diante da morte e do pecado, mediante a glorificação do Espírito Santo, é o núcleo do mistério oculto
durante séculos no seio do Pai e agora revelado na história. E esse é também o centro do mistério
litúrgico, que é o centro da história sagrada da salvação ou realização da obra da redenção. Nesse
sentido, percebe-se a relação essencial entre o mistério pascal e a liturgia e, de modo definitivo, entre
o mistério pascal e o mistério da Igreja. Na celebração litúrgica, aparece toda a riqueza da páscoa do
Senhor. Em primeiro lugar, celebra-se o plano eterno de Deus, que determinou a nossa salvação do
pecado e da morte; em segundo lugar, celebra-se o conjunto de intervenções históricas de Deus no
povo eleito para ser afastado da idolatria e para ser instruído acerca do caminho do verdadeiro culto
em espírito e em verdade; e, em terceiro lugar, a liturgia celebra, ritual e simbolicamente, a memória
da aliança de Deus com o seu povo de Israel e a aliança nova e definitiva, estabelecida em Cristo,
Senhor e Salvador. Esse é o rito memorial, figura no Antigo Testamento e plenitude no Novo Testa-
mento, caracterizado pela presença sacramental do mistério pascal.
Essa união da liturgia com Jesus Cristo e com o seu corpo, que é a Igreja, fundamenta o sentido
teologal da liturgia e a opção história nela implicada em favor da salvação dos homens e contra todas
as provocações humanas contrárias à libertação instaurada por Jesus Cristo. O mistério pascal de
Cristo é o eixo da salvação, a fonte da nossa reconciliação e a plenitude do culto divino. Aqui se
compreende o axioma teológico: Caro est cardo salutis.5 Essa relação da liturgia com Cristo encar-
nado e com a Igreja-sacramento nos obriga a superar toda visão frívola do culto a partir de dimensões
jurídicas e estáticas inadequadas, aparecendo a liturgia como o momento atual da história da salvação,
na qual a Igreja proclama (evangelho) e celebra (mistério) a redenção de Jesus Cristo. Por outro lado,
a celebração litúrgica da salvação exige o entrar em comunhão com a situação atormentada do mundo
e do homem para realizar a libertação concreta da humanidade. Essa liturgia cristã tem sabor de céu,
mas também tem entranhas de terra. A liturgia é chamada a ser historicamente libertadora.
Nesse sentido, Jesus Cristo, verbo de Deus e imagem do Pai invisível, é o sacramento fonte e
origem, de modo que a Igreja, sacramento geral, e as celebrações litúrgicas se referem a Cristo, tal
como os símbolos se referem ao significado. A relação existente entre a liturgia e a Sagrada Escritura
nos ajuda a descobrir o sentido da liturgia em relação a Jesus Cristo. A palavra de Deus é o anúncio
da história salvífica, e a liturgia é a celebração ritual da Escritura e da redenção. Nessa perspectiva,
João apresenta em seu evangelho os milagres de Jesus como sinais da sua missão salvadora (cf. Jo

5
Tradução literal: A carne é o eixo (pivô central) da salvação.
13
2,23; 3,2; 9,16). Tanto a revelação divina como o culto litúrgico proclamam e celebram o aconte-
cimento histórico do Deus que sai ao encontro do homem para salvá-lo. A história, para o cristão,
está penetrada do acontecer salvífico de Deus.
Para os santos Padres, Cristo, a Igreja e as celebrações litúrgicas são os mistérios fundamentais,
tanto em termos de significado como de eficácia. O decisivo na liturgia é a plenitude significativa e
operativa. A liturgia realiza aquilo que significa, sendo garantia da presença de Cristo. Agostinho, na
carta sobre os ritos da Igreja, distingue entre a celebração sacramental e a celebração meramente
memorial: "Celebramos a páscoa de tal maneira que não se trata apenas de recordar o acontecido, isto
é, a morte e ressurreição de Cristo; a páscoa contém o mistério, o que não se deve omitir na celebra-
ção". Em termos concretos, Agostinho fala de uma inovação da nossa vida que é produzida mediante
a fé, passando, graças ao mistério da páscoa, da morte do pecado à vida em Cristo.
Os santos padres, dentro de uma cultura marcadamente platônica, usaram, para nos falarem do
mistério litúrgico, termos como imagem, figura, profecia, símbolo, alegoria, sinal, tipo, antítipo, sa-
cramento, mistério etc., descrevendo assim o mistério paulino e os mistérios dos ritos cristãos. De
qualquer maneira, até Agostinho, não é possível afirmar que os vocábulos mistério-sacramento te-
nham sido as denominações técnicas das celebrações sacramentais cristãs. Tertuliano, por exemplo,
usa essas palavras com valor cultual-sacramental, referindo-se apenas ao batismo e à eucaristia; en-
quanto Inácio de Antioquia referia-se com elas exclusivamente ao mistério redentor de Cristo, e não
à sua celebração cultual. Em conclusão, por derivação do significado neotestamentário ou paulino do
termo mysterion, chega-se a falar dos mistérios de Cristo e dos mistérios do culto cristão. Aquilo a
que mais tarde se dará o nome de sacramento e de liturgia já existe desde a Igreja primitiva como
experiência própria. Portanto, a sacramentalidade é uma categoria legítima, partindo de Jesus Cristo,
mistério salvífico de Deus Pai e da Igreja, sendo esta soma e pleroma de Cristo. Nessa perspectiva, o
mistério de Cristo, já realizado, continua a ser celebrado nos sacramentos, tais como o batismo e a
eucaristia (cf. Ef 1,13; 4,30; 1Cor 11,26). Tomás de Aquino também alude claramente à relação dos
sacramentos com Jesus Cristo, por exemplo, ao apresentar os sacramentos como instrumentos distin-
tos do próprio Cristo.
Essa explicação do mistério litúrgico a partir de Jesus Cristo nos obriga a abandonar o esquema da
encíclica Mediator Dei (1947), que nos apresenta a liturgia como um culto baseado nas obrigações
inerentes da criatura com o Criador. Nessa encíclica, percebe-se ainda um esquema filosófico-teoló-
gico sobre o culto, objeto da virtude da religião, e um nível claramente cristológico, apresentando a
liturgia como exercício do sacerdócio de Cristo; esse esquema e esse nível, embora sejam corretos de
maneira absoluta, não são plenamente coerentes em termos concretos. Não se pode simplesmente
identificar a liturgia com o culto, pois este é uma ação virtuosa e, aquela, uma ação sacerdotal de
Cristo e da Igreja. A liturgia não é somente algo que nós tributamos a Deus, mas, antes de tudo, algo
que Deus nos concede para a sua glória e para a nossa salvação. Por isso, a participação ativa na
liturgia é mais do que exercício da virtude da religião, é atuação das virtudes teologais e, sobretudo,
ação sacerdotal do próprio Jesus Cristo. Na mesma linha, deve-se superar a visão da liturgia como
instituição própria da hierarquia eclesiástica, pois a autoridade da Igreja não institui, mas autêntica, a
liturgia.
Na constituição litúrgica do Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, encontramos outra perspectiva,
decididamente cristológica. Nesse documento, achamos um movimento sacramental e litúrgico a par-
tir de Cristo e na direção da Igreja. Na origem da celebração litúrgica, está Jesus Cristo, e a liturgia
só é compreendida e celebrada de modo correto em Cristo e em seu corpo místico que é a Igreja,
nascida do lado do Senhor adormecido na cruz. Nesse sentido, Cristo é a nossa reconciliação e a
plenitude do culto divino (SC 5). Ora, relacionar a Igreja com Jesus Cristo é relacioná-la com os seus
mistérios históricos, fonte da nossa salvação. "No decorrer do ano, revela todo o Mistério de Cristo,
desde a Encarnação e Natividade até a Ascensão, o dia de Pentecostes e a expectação da feliz espe-
rança e vinda do Senhor. Relembrando destarte os Mistérios da Redenção, franqueia aos fiéis as ri-
quezas do poder santificador e dos méritos de seu Senhor, de tal sorte que, de alguma forma, os torna
presentes em todo o tempo, para que os fiéis entrem em contato com eles e sejam repletos da graça
da salvação" (SC 102).
Aqui encontramos o fundamento do porquê e do como a liturgia é manifestação do mistério de
Cristo e da autêntica natureza da Igreja. As celebrações litúrgicas são o exercício sacramental da
14
nossa redenção cristã e o celebrante principal é, definitivamente, o próprio Jesus Cristo. Em pri-
meiro lugar, a liturgia nos põe em relação com o poder santificador e os méritos do mistério pascal
do Senhor, presentificado de alguma maneira nela. A reconciliação em Cristo vem originalmente do
mistério da sua encarnação, pois ao fazer-se Deus e homem, ele pôde conciliar de modo perfeito a
humanidade com a Trindade. A liturgia também contribuiu para a redescoberta do valor soteriológico
da ressurreição do Senhor, como ponto culminante do mistério pascal, conservando uma visão unitá-
ria do mistério de Cristo. Lembremo-nos de que, há uns poucos anos, ainda se considerava a ressur-
reição de Cristo, quase exclusivamente como argumento apologético. O valor próprio da ascensão do
Senhor aos céus também se manifesta na liturgia como acontecimento de salvação. Cristo, tendo as-
cendido aos céus, age como sacerdote pleno da liturgia celeste e da liturgia terrestre ou eclesial en-
quanto participação naquela. Jesus Cristo, sentado à direita de Deus Pai, reparte conosco, na eucaris-
tia, o seu corpo e o seu sangue. O Senhor, agora glorioso, entrega-nos o seu corpo e o seu sangue,
com a virtude de nos vivificar no Espírito Santo. "Eu vos digo: desde agora não beberei deste fruto
da videira até aquele dia em que convosco beberei o vinho novo no Reino do meu Pai" (Mt 26,29).
Centrando-se a liturgia no mistério pascal de Jesus Cristo, as celebrações litúrgicas adquirem um
valor histórico e cristológico próprio. Por conseguinte, o conceito de liturgia, assim como o de sacra-
mento, devem ser vinculados com o mistério paulino, valorizando a sua hermenêutica simbólica com
relação às suas dimensões teologal, antropológica e cósmica. Deus criou o homem e quer salvá-lo
entabulando com ele um diálogo de amizade e de comunhão. Quando se caracteriza a liturgia como
mistério cultual, a partir do mistério pascal de Cristo, faz-se obrigatória a referência ao monge bene-
ditino de Maria Laach, Odo Casel, pois embora a sua explicação da presença da obra divina da re-
denção na liturgia tenha sido qualificada de certo modo como nebulosa, a sua influência e a sua con-
tribuição foram por certo decisivas no tocante ao vocabulário e à relação do mistério litúrgico com
Jesus Cristo como acontecimento original e constituinte.

III – QUEM CELEBRA?


(Extraído de: BUYST, Ione.; SILVA, José Ariovaldo da. O mistério celebrado: memória e compromisso I.
São Paulo: Paulinas, 2003, p. 93-110)

UM POVO QUE CELEBRA

A cada domingo - e também em outros momentos significativos - os seguidores de Jesus Cristo se


reúnem para celebrar. Por que se reúnem? Por que não fica cada um em sua casa para fazer memória
de Jesus? Reunir-se é o primeiro requisito para se poder fazer a liturgia, porque celebrar é um ato
comunitário, eclesial. Levando em conta que a "lit-urgia" é uma ação, convém perguntar: quem é o
sujeito, o agente, o "ator" da celebração? Quem celebra quando os cristãos se reúnem? Quem faz a
liturgia? Quem faz o quê, para quem?
O agente visível da liturgia é o povo de Deus reunido em assembleia num determinado tempo e
lugar. No entanto, por trás desse agente visível, trabalha o agente invisível: Deus, a Santíssima Trin-
dade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Deus e o seu povo atuam em conjunto e um para o outro.
As palavras-chave que iremos trabalhar neste capítulo são: povo sacerdotal e profético, sacerdócio
batismal (ou sacerdócio comum), sacerdócio ministerial; assembleia, ministérios, equipe de liturgia;
ação conjunta ("sinergia"); participação (comunhão, solidariedade, "koinonia''); comunhão dos san-
tos.

1. Liturgia é ação da Igreja, povo de Deus

O Concílio Vaticano II deu uma virada eclesiológica na liturgia; introduziu uma mudança radical
na maneira de entendermos o sujeito, ou agente, ou os "atores" da liturgia. Quem celebra não é o
clero. Quem celebra é todo o povo santo de Deus reunido em assembleia; é toda a comunidade unida
ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. Os presbíteros não celebram "para" o povo, mas juntamente
15
com ele, fazendo parte dele e estando a seu serviço. Outros ministérios litúrgicos, exercidos por
leigos e leigas, também estão a serviço da assembleia celebrante, em comunhão com os ministros
ordenados.
As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é o "sacramento
da unidade", isto é, o povo santo, unido e ordenado sob a direção dos bispos. Por isso, essas
celebrações pertencem a todo o corpo da Igreja, e o manifestam e afetam; mas atingem a
cada um dos membros de modo diferente, conforme a diversidade de ordens, ofícios e da
participação atual (SC 26). Também os ajudantes, leitores, comentadores e componentes
da Schola Cantorum [grupo dos cantores e cantoras] desempenham um verdadeiro minis-
tério litúrgico (SC 29).

Liturgia é ação da Igreja. Mas, sabemos que há muitos "modelos" de Igreja, muitas maneiras dife-
rentes de entendê-la e vivê-la. O modelo escolhido influencia na maneira de fazer a liturgia. A uma
Igreja clerical corresponde uma liturgia clerical; a uma Igreja comunitária corresponde uma liturgia
comunitária. O Concílio Vaticano II redefiniu a Igreja como mistério (sacramento), como povo de
Deus, como povo sacerdotal, profético, régio. Vejamos o que isso significa e quais as consequências
para o nosso tema.

1.1. A Igreja como mistério (sacramento)


Como mistério, a Igreja é considerada uma realidade espiritual, e não apenas uma instituição ou
realidade sociológica. Nasce do lado aberto de Cristo na cruz (SC 5) e do Sopro do Espírito. É de tal
modo unida a Cristo que é chamada de "Corpo de Cristo". Não se pode mais pensar em Igreja, sem
vê-la unida a Cristo como um corpo está unido à cabeça; não se pode mais pensar em Cristo sem
incluir a Igreja; fala-se do "Cristo Total", cabeça e membros. Onde está a cabeça, aí estará também o
corpo e vice-versa.
Outras imagens bíblicas expressam a mesma realidade: a Igreja é, no Espírito, um templo espiri-
tual, do qual Cristo é a pedra angular (1Pd 2,4-5); é esposa do Cristo-Esposo (Ap 19,7-9; 21,2). A
comunhão entre os irmãos, à qual são chamadas as comunidades eclesiais, nasce desta realidade fun-
damental da comunhão no Corpo de Cristo, pelo Espírito, que é corroborada a cada comunhão euca-
rística. É a "comunhão dos santos" que professamos no Creio. Dizem das comunidades primitivas
que os fiéis eram um só coração e uma só alma (At 4,42). Outras testemunhas diziam: Vejam como
se amam! O termo bíblico para esta comunhão é koinonia; vai desde nossa comunhão com Deus até
o colocar em comum dos bens (terras, casas, dinheiro... cf. At 2,44-45 e 4,34-37).

1.2. A Igreja como povo de Deus, sacerdotal, profético e régio


Na concepção do Concílio Vaticano II, a Igreja é o povo de Deus, convocado e reunido por Jesus
Cristo, no Espírito Santo. Compreende todos os batizados e batizadas; e assim impõe-se a necessidade
de levar em conta a igualdade entre homens e mulheres, baseada no batismo. Como membros do povo
sacerdotal, profético e régio, os leigos e leigas voltam a ser chamados a assumir sua "cidadania"
eclesial e sua missão como Igreja no mundo, na sociedade, a serviço do Reino; deixam de ser consi-
derados simples "assistidos" do clero. A Igreja volta a ser toda ela ministerial. É reconhecido de novo
o sacerdócio batismal do povo de Deus como participação no único sacerdócio, o de Jesus Cristo;
este sacerdócio batismal é a base da participação de todo o povo de Deus na liturgia; o sacerdócio do
clero, sacerdócio ministerial, brota da mesma e única fonte - o sacerdócio de Cristo - e está a serviço
do sacerdócio do povo.
Assim como participa do sacerdócio de Jesus Cristo, todo o povo batizado participa igualmente de
sua missão profética e régia, dando continuidade a essa missão em nossa realidade atual. Somos um
povo de sacerdotes, profetas e reis, chamados a viver e expressar a fé na diversidade de culturas às
quais pertencemos.
Como povo sacerdotal, somos chamados a viver conscientemente e a expressar publicamente, na
liturgia, os laços de intimidade, de fidelidade, que nos unem com o Senhor, com o Deus da aliança;
mas também os laços que, muitas vezes de forma inconsciente ou difusa, unem todos os seres huma-
nos e até mesmo toda a realidade criada, com o sagrado, com o transcendente, com Deus. Quantos(as)
16
não exercem seu trabalho, suas atividades profissionais, sua arte, sua vida cotidiana como um ver-
dadeiro sacerdócio?
Como povo profético, somos chamados a ser "sentinelas", vigilantes, atentos à palavra do Senhor
a respeito dos acontecimentos, a respeito do rumo que a história vai tomando. Somos chamados a
discernir a presença do Senhor, os avanços ou recuos em relação ao Reino de Deus na realidade
pessoal e social. E somos chamados a fazer ouvir esta palavra, anunciá-la, sussurrando em pequenos
grupos, ou gritando por cima dos telhados.
Como povo de reis-pastores, somos chamados a assumir nossa responsabilidade na organização,
na coordenação, no governo do mundo, rumo ao Reino de Deus; desde nossa própria casa, passando
por nossas comunidades, associações, cooperativas, escolas, empresas, até na organização da cidade,
do estado, da nação... ou em organismos internacionais, cada um de acordo com suas possibilidades.
É esta Igreja - povo de Deus, povo sacerdotal, profético e régio, Corpo de Cristo no Espírito Santo
- que é chamada a celebrar a liturgia, a ser seu sujeito, “ator”, agente; a ser “liturgo”.
Deseja ardentemente a Mãe Igreja que todos os fiéis sejam levados àquela plena, cônscia e
ativa participação das celebrações litúrgicas, que a própria natureza da liturgia exige e à
qual, por força do batismo, o povo cristão, "geração escolhida, sacerdócio real, gente santa,
povo de conquista" (1 Pd 2,9; cf. 2,4-5), tem direito e obrigação (SC 14).

1.3. Um povo “ordenado”, organizado: dons e ministérios


Mas o povo de Deus não é massa amorfa ou diluída. Trata-se de um povo “ordenado”, diz o texto
do Concílio, organizado em comunidades, com suas lideranças, seus ministérios. Nem todos têm os
mesmos dons, as mesmas funções. São Paulo nos ajuda a entender isso, usando a imagem de um
corpo humano que tem muitos membros diferentes (pé, orelha...), mas que estão a serviço uns dos
outros, sem que um seja mais digno ou mais importante que o outro: todos(as) formam o corpo. As
palavras de ordem são: serviço (diakonia) e colaboração (sinergia, trabalho de equipe).
Entre os vários ministérios atuais destacam-se os ministérios ordenados (do bispo, do presbítero e
do diácono). Por que são "ordenados"? Qual o sentido profundo do sacramento da ordem? É que a
Igreja não existe por iniciativa própria, mas porque Cristo enviou os apóstolos, assim como ele pró-
prio foi enviado pelo Pai (cf. Jo 20,21). O ministro ordenado é sinal permanente da relação da Igreja
com Cristo e com o Espírito. Trata-se de uma relação fontal: assim como um rio nasce e depende de
sua fonte, assim a Igreja nasce e depende de Cristo e do Espírito. O ministro ordenado é sinal dessa
relação; representa sacramentalmente o Cristo como cabeça e servidor de seu Corpo, que é toda a
Igreja; é também o ministro da epiclese, da invocação para que o Espírito Santo venha e atue. É por
isso que lhe é confiada a presidência das celebrações litúrgicas. E quem pode ser ministro ordenado?
Não basta que a própria pessoa se disponha a isso; nem é a Igreja que escolhe os candidatos como
bem entende. A ordenação depende antes de tudo de um dom recebido do Espírito Santo; a comuni-
dade deve reconhecer esse dom e chamar a pessoa; por fim, o rito da imposição das mãos confirma e
completa sacramentalmente essa realidade.
Com isso, já dá para perceber que na liturgia nem tudo pode ser realizado por todos ou por qualquer
um(a) lhe compete (SC 28). Ou seja, a presidência da celebração não deve coordenar os cantos nem
fazer leitura; um leitor ou leitora não deve querer substituir o acólito; ao leigo não compete assumir
as funções próprias do ministério ordenado.
Entre os ministérios litúrgicos que não requerem a ordenação, mencionamos: quem for, ministro
ou fiel, ao desempenhar a sua função, faça tudo e só aquilo que pela natureza da coisa ou pelas normas
litúrgicas não ordenados; outras pertencem a toda a assembleia: Nas celebrações litúrgicas, seja in-
distintamente. Nem todos terão as mesmas tarefas. Algumas ações pertencem aos ministros ordena-
dos; outras a ministros leitores(as); salmistas; cantores(as), instrumentistas, dirigentes do canto; acó-
litos(as) e outros ajudantes (como turiferário, por exemplo, que cuidam do incenso); equipes de aco-
lhimento; presidentes de uma liturgia das horas (ofício divino); presidentes de uma celebração domi-
nical da Palavra; padrinho e madrinha do batismo e da crisma (confirmação); testemunhas do matri-
mônio...
Algumas funções litúrgicas historicamente consideradas próprias e típicas do ministério ordenado
são às vezes confiadas a leigos(as) (ou religiosos(as) de forma extraordinária, a título de suplência:
batizar, presidir exéquias, distribuir a sagrada comunhão - durante a celebração eucarística ou fora
17
dela); testemunhar qualificadamente o sacramento do matrimônio, presidir a celebração domini-
cal... Por enquanto, isso não aconteceu em relação a outras duas funções litúrgicas sentidas como
prementes na prática pastoral em muitas regiões: a unção dos enfermos e a presidência de celebrações
dominicais eucarísticas. Com isso, inúmeros cristãos não recebem o consolo do sacramento dos en-
fermos e inúmeros outros estão impossibilitados de cumprir o preceito dominical, com grave prejuízo
espiritual. Quem sabe, futuramente, a Igreja poderá reorganizar de forma mais ousada os ministérios
eclesiais e lhes confiar algumas dessas funções de forma definitiva; ou reconhecer o dom das atuais
lideranças das comunidades, homens ou mulheres, celibatárias ou casadas e impor-lhes as mãos, para
que se tornem assim também ministros e ministras ordenados(as) e para que as comunidades não
dependam mais, artificialmente, de um ministro vindo de fora para sua vida litúrgica.
Para que a assembleia litúrgica seja, de fato, expressão do ser profundo da Igreja, todos os minis-
térios deverão atuar em comunhão, em equipe, como membros de um corpo, em sintonia com a as-
sembleia. Daí a importância das chamadas "equipes de liturgia" e "equipes de celebração"; essas
equipes programam a vida litúrgica e preparam as celebrações de comum acordo, celebram em sin-
tonia, avaliam juntos(as) para melhorar sua atuação, não somente em nível "técnico", mas também
espiritual.

1.4. Quem é convocado por Deus?


É importante perguntar: que tipo de pessoas Deus convoca? Quem é chamado a fazer parte da
Igreja, povo de Deus? Quem é chamado a celebrar a liturgia? Em princípio, todas as pessoas do
mundo inteiro (crianças, jovens, adultos, pessoas idosas; pessoas sãs e doentes; ou pessoas de todas
as condições sociais e de todas as culturas) que aceitam a boa nova de Jesus Cristo. Porém, precisa-
mente essa boa nova privilegia os pobres. Assim, no pós-concílio, principalmente na América Latina,
a Igreja (re)descobriu sua vocação de ser Igreja dos pobres, que lutam por condições de vida digna
de seres humanos, filhos e filhas de Deus, gente ressuscitada em Jesus Cristo.
As comunidades eclesiais de base nasceram com grande vigor entre os pobres, como uma nova
forma de ser Igreja, reatando com a experiência das comunidades cristãs primitivas, impulsionadas
pelo Espírito de Deus, contando com a solidariedade e participação de muitas pessoas não tão pobres,
mas que atenderam ao apelo evangélico. Essas comunidades deram e continuam dando muitos frutos
para o Reino de Deus, inclusive até o martírio. Não se trata de uma Igreja fechada em si, preocupada
com sua própria salvação, mas de uma Igreja a serviço do Reino no mundo, uma Igreja em missão,
comprometida com a justiça, que dá testemunho da ressurreição recuperando vidas perdidas por sis-
temas sociopolítico-econômicos que deliberadamente oprimem, excluem ou negam os pobres. Uma
Igreja que suscita esperança, que ajuda a encontrar “uma luz no fim do túnel dos desesperados de
desesperançados e abre caminho para uma sociedade sem exclusões.
A comunidade cristã de base é o primeiro e fundamental núcleo eclesial que deve, em seu
próprio nível, responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também pelo culto
que é sua expressão. É ela, portanto, célula inicial de estruturação eclesial e foco de evan-
gelização e atualmente fator primordial de promoção humana e desenvolvimento (MED
15,11).

As assembleias litúrgicas da Igreja dos pobres têm a cara do povo faminto, doente, explorado, que
seguia Jesus pelas estradas da Galileia, e que, por ele, recuperou a vida e a esperança: Ide contar a
João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são
purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados. E bem-aventu-
rado quem não ficar escandalizado por causa de mim! (Mt 11,4-6). É um povo que segue Jesus
implorando, intercedendo, suplicando, por causa de suas necessidades; mas que também tem razões
profundas para festejar, alegrar-se, cantar e dançar, agradecer, louvar, comprometer-se, envolver-se
na missão profética, libertadora. No encontro dos irmãos e irmãs, a palavra de Deus é comentada por
todos, com a ajuda do Espírito Santo; Deus é cantado e louvado a partir do chão da vida sofrida, com
a linguagem moldada por séculos de fervor e devoção popular. É um povo que atrai cristãos de outras
camadas sociais, que queiram viver sua fé de forma solidária e coerente.
18
1.5. A distância entre a teoria e a prática: um desafio
Sabemos por experiência que todas essas opções por determinado modelo de Igreja, ainda que
definidas no Concílio e em Conferências Episcopais, não são tranquilas. Nem sempre são aceitas e
postas em prática. Outros modelos de Igreja, outras eclesiologias procuram se manter e impor e en-
contram sua expressão na liturgia. Continua forte a influência do modelo anterior ao Concílio, o da
Igreja-instituição, baseado no poder sagrado do clero.
Todas as pessoas que vêm às celebrações têm consciência de serem Corpo de Cristo no Espírito
Santo, povo sacerdotal, profético e régio? Os padres celebram de fato com o povo, presidentes de um
povo celebrante? Ou continuam sendo celebrantes para um aglomerado de gente que vem "assistir" à
liturgia do padre? Continua forte a resistência à participação das mulheres em condições de igualdade
com os homens. O que falta para que as mulheres deixem sua condição de "segunda categoria"? E,
convém perguntar: até que ponto a Igreja é, de fato, dos pobres? Custa deslanchar a inculturação da
fé. Até que ponto estamos conseguindo superar o monopólio cultural que foi imposto há séculos? Os
povos indígenas, os afrodescendentes, as comunidades caracterizadas por um catolicismo popular
estão podendo e conseguindo criar uma liturgia com características culturais próprias? As leigas e os
leigos evangelicamente engajados em sua profissão, em seu trabalho, em ONGs e outras organizações
sociais estão encontrando seu espaço e expressão também na liturgia?
Momentos regulares de avaliação são importantes para cada igreja local tomar consciência do mo-
delo de Igreja que está, de fato, seguindo e para reajustar sua maneira de ser, viver e celebrar de
acordo com a proposta do evangelho de Jesus Cristo.

2. Assembleia litúrgica, sacramento da Igreja

O povo de Deus vive espalhado pelo mundo, pela cidade, pela região. Como qualquer organização
humana, necessita de reuniões para visibilizar e garantir sua existência. Como realidade divina, ne-
cessita reunir-se em assembleia litúrgica. O que entendemos por "assembleia litúrgica"?

2.1. Em continuidade com as grandes assembleias do passado


A assembleia litúrgica está em continuidade com as grandes assembleias constitutivas do povo
judeu com Moisés no Sinai (Ex 19-14), com Josué em Siquém (Js 24), com Esdras e Neemias na
reconstrução de Jerusalém após o exílio (Ne 8).
Está em continuidade com as assembleias da comunidade primitiva, reunida de "comum acordo",
na "unanimidade" (At 1,14; 2,46; 4,24; 5,12...), todos reunidos num mesmo lugar (At 2,1), colocando
tudo em comum (At 2,44-45; 4,34-36), todos reunidos para a fração do pão (At 20,7). O que os une
não é a proximidade física ou a amizade ou a afinidade social, cultural, mas a fé no mesmo Deus, o
amor do Pai, a inserção no Corpo de Cristo pelo Espírito Santo.

2.2. A assembleia litúrgica constitui a Igreja


A assembleia litúrgica não é uma reunião qualquer, ela é constitutiva da Igreja. Sem ela não há
Igreja. Nenhuma outra reunião dos membros da Igreja se equivale a uma assembleia litúrgica. Por
quê? A assembleia litúrgica é sacramento da Igreja; é seu "sinal" e "instrumento"; é realidade visível
que remete à sua realidade invisível; é celebrando juntos que nos tornamos Igreja e temos condições
de experienciar a realidade de "ser Igreja":
a. É nas assembleias litúrgicas que o povo se encontra com o seu Deus, convocado por ele para
celebrar a Aliança, ao redor de Cristo Ressuscitado, novo templo, erguido em três dias (cf. Jo 2,18-
22).
b. É nas assembleias litúrgicas que a Igreja é "formada" como Corpo de Cristo pelo Espírito Santo
de Deus, ao fazer memória de Jesus, principalmente pela escuta de sua palavra e pela celebração da
Ceia do Senhor (cf. SC 6). Somos feitos participantes da intercomunhão entre o Pai e o Filho e o
Espírito Santo, de onde brota o amor fraterno entre irmãos e irmãs.
c. Cristo Ressuscitado está ativamente presente com seu Espírito na assembleia litúrgica: onde
dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ai eu estarei no meio deles (cf. SC 7; Mt 18,20).
19
d. A assembleia visível está associada à multidão dos anjos e santos, com Maria, com os após-
tolos e profetas, e com todos os irmãos e irmãs que nos precederam e que estão dia e noite louvando
o Senhor Deus e o Cordeiro na cidade santa, a Jerusalém celeste.
e. Cada assembleia litúrgica é "páscoa" e "pentecostes": é momento de transformação pascal e de
derramamento do Espírito do Senhor. Cada assembleia litúrgica antecipa a reunião definitiva de todos
os filhos e filhas de Deus dispersos, de todos os povos e culturas na casa do Pai, quando Deus será
"tudo em todos" (1 Cor 15,28).
f. Em cada assembleia litúrgica somos de novo enviados(as) pelo Senhor, para anunciar o Reino e
promover a solidariedade e a verdadeira comunhão entre as pessoas e os povos, entre si e com Deus,
partindo de nossa comunhão na vida do Deus uno e trino.
A comunhão que se há de construir entre os seres humanos abrange-lhes todo o ser desde
as raízes do amor, e há de se manifestar em toda a sua vida, até na sua dimensão econômica,
social e política. Produzida pelo Pai e o Filho e o Espírito Santo é a comunicação de sua
própria comunhão trinitária. Esta é a comunhão que as multidões do continente procuram
com ânsia, quando confiam na providência do Pai ou confessam a Cristo como Deus Sal-
vador, quando buscam a graça do Espírito nos sacramentos da Igreja e até quando traçam
sobre si o sinal da cruz: "Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (PUE n. 215-216.
Quem puder, leia por inteiro os n. 211-219, Comunhão e participação).

2.3. Elementos rituais que evidenciam o sentido da assembleia


Os traços teológicos esboçados acima perpassam todas as celebrações litúrgicas e estão expressos
de forma mais evidente em alguns elementos rituais que queremos):
1) A organização da assembleia no espaço de celebração:
- O recinto da igreja, de preferência de tal forma (semicircular, por exemplo) que possibilite a
intercomunicação de toda a assembleia e com lugares previstos para cada um dos ministérios.
- O altar, a estante da Palavra de Deus e a cadeira da presidência num lugar central, visível para
todos, como símbolos da presença e presidência do Ressuscitado.
2) Textos evidenciando que a ação litúrgica pertence a todo o povo sacerdotal:
- Todos os genuínos textos litúrgicos são redigidos na primeira pessoa do plural, "nós": nós vos
louvamos, nós vos adoramos, nós vos glorificamos...; nós vos pedimos, suplicamos, recordamos...;
oferecemos...; nós, teu povo santo... Mesmo quando o ministro fala sozinho a Deus (nas orações
presidenciais), é em nome da comunidade reunida que fala, dizendo "nós".
- Alguns cantos pertencem de modo especial a todo o povo e devem ser cantados por todos (ainda
que dialogando com os cantores): Senhor, tende piedade; Glória; refrão do salmo responsorial; acla-
mação ao Evangelho; a resposta das preces; Santo; aclamação anamnética (Anunciamos, Senhor,...)
e outras aclamações na Oração Eucarística; o Amém final da Oração Eucarística; a resposta ao Cor-
deiro de Deus.
3) Textos evidenciando a atuação especial de ministros ordenados, representando o Cristo-Cabeça
no Espírito Santo, dialogando com seu povo:
- A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam
convosco! (ou com vocês!) - O Senhor esteja convosco - A bênção de Deus... esteja convosco.
4) Textos e gestos simbólicos expressando a comunhão dos participantes da assembleia com o
Senhor e entre si:
- Todos os gestos realizados em comum: sinal da cruz, os cantos ("cantemos a uma só voz", se diz
no final do prefácio), as procissões, as inclinações, levantar, sentar, ajoelhar...
- Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo, como resposta à saudação da presidência.
- O abraço da paz e, principalmente, a comunhão eucarística.
5) Gestos simbólicos evidenciando a dignidade do povo sacerdotal:
- Assembleia e ministros são aspergidos (lembrando o batismo) e incensados.
6) Gestos simbólicos expressando que somos um povo a caminho:
- Procissões dentro e fora do recinto da igreja.
Quando você ensinar, exortará o povo a ser fiel à assembleia da Igreja. Que não falte; pelo con-
trário, que seja fiel ao reunir-se em assembleia. Que ninguém diminua a Igreja por não compare-
cer, assim reduzindo, em um membro, o Corpo de Cristo (...) não privem o Salvador de seus mem-
bros, não rasguem o seu Corpo (Didascália, 13).
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3. Ação conjunta entre os parceiros da nova Aliança: liturgia de "mão dupla"

Dissemos que a liturgia é ação de toda a Igreja. Na verdade, não há como pensar a Igreja fora de
Jesus Cristo e do Espírito Santo, que nos ligam com o Pai. Liturgia é ação de toda a Igreja, juntamente
com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ou, como os cristãos orientais costumam dizer: a ação litúrgica
é uma sinergia (do grego: syn + ergon, ergomai), uma ação conjunta, uma (co)operação, um trabalho
ou serviço realizado em conjunto, ou também uns para com os outros.
Nós nos reunimos em Igreja, sob a liderança dos ministros; mas é Deus quem envia os ministros e
convoca o seu povo por meio deles. Estamos reunidos entre irmãos e irmãs; mas Cristo está no meio
de nós, e juntamente com ele estão o Pai e o Espírito Santo. Proclamamos, ouvimos e interpretamos
as leituras bíblicas; mas é Cristo que fala, é o Espírito que dá voz à Palavra, toca nossa mente e nosso
coração e nos faz compreender a Palavra do Senhor. Oramos e cantamos, louvamos e agradecemos;
mas, é Cristo e o Espírito que oram, cantam, louvam e agradecem em nós, e o Pai ouve, acolhe e
atende nossa prece. Realizamos a ação memorial na liturgia eucarística, mas é “por Cristo, com Cristo
e em Cristo” que oferecemos, e, a nosso insistente pedido (invocação, epiclese), o Pai envia o Espírito
Santo que nos associa ao mistério pascal de Jesus e nos santifica, nos transforma. Batizamos ou somos
batizados, crismamos ou somos crismados, celebramos a reconciliação...; mas é Cristo que batiza,
crisma, reconcilia com o Pai..., na unidade do Espírito Santo.
Como fazer para que esta certeza nuclear de nossa fé transpareça também hoje, numa sociedade
secularizada, racionalizada, informatizada? Ou, então, como suscitar o olhar de reconhecimento, de
admiração para com o Deus verdadeiro num mundo lotado de “deuses” (o prazer, o dinheiro, a fama...
os quais facilmente deixamos ocupar o lugar do Transcendente)? Como abrir os ouvidos para sua
palavra que muitas vezes vem nas entrelinhas? Como despertar a relação e a comunhão com ele atra-
vés dos sinais sensíveis com os quais expressamos nossa fé?
Na verdade, vós sois santo, ó Deus do universo (...) não cessais de reunir o vosso povo para que
vos ofereça, em toda parte, do nascer ao pôr-do-sol, um sacrifício perfeito (Oração Eucarística n.
3).

3.1. Um destaque para a ação do Espírito Santo


Pouco se tem falado da ação do Espírito Santo na liturgia. Por isso, destaquemos alguns pontos
daquilo que o Catecismo da Igreja Católica diz a respeito, com muitos pormenores, nos números
1091-1109:
1) O Espírito Santo prepara a Igreja para acolher o Cristo:
- Faz-nos (re)ler, a partir de Cristo, a herança que recebemos do povo judeu: a leitura do antigo tes-
tamento, a oração dos Salmos, a memória dos fatos de intervenção libertadora do Senhor a favor de
seu povo (a promessa e a aliança, o êxodo e a Páscoa, o reino e o templo, o exílio e a volta). Faz-nos
reviver e compreender de maneira nova todos esses acontecimentos no “hoje” da liturgia, principal-
mente no desenrolar do ano litúrgico.
- Une os cristãos no único Corpo de Cristo, ultrapassando as afinidades humanas, raciais, culturais e
sociais.
- Desperta a fé, a conversão do coração e a adesão à vontade do Pai.

2) O Espírito Santo recorda e manifesta o Cristo à fé da assembleia (desperta a memória da Igreja):


- Dá-nos a compreensão espiritual da Palavra de Deus e suscita uma resposta de fé, como consenti-
mento e compromisso; cria a comunhão na fé entre os participantes da liturgia.
- Suscita a ação de graças e o louvor (doxologia) a partir da recordação (memória, anamnese) daquilo
que Deus realizou a favor de seu povo, por Jesus Cristo, nosso Senhor.

3) O Espírito Santo torna presente e atualiza o mistério de Cristo:


- A pedido da Igreja feito ao Pai na epiclese (= invocação), o Espírito Santo realiza em nós o mistério
de Cristo recordado na anamnese. (Por exemplo: faz com que a água do batismo se torne para nós
morte ao pecado e ressurreição para a vida nova em Cristo; faz com que o pão e o vinho se tornem
para nós o corpo e o sangue de Cristo).
- Apressa assim a vinda do Reino e a realização plena do mistério da salvação.
21

4) O Espírito Santo une a Igreja à vida e à missão de Cristo (realiza a comunhão):


- Põe a comunidade em comunhão com Cristo, para formar o seu Corpo. (É como a seiva da vida do
Pai que produz os seus frutos nos ramos que estão ligados à videira, o Cristo, cf. João 15).
- Realiza inseparavelmente a comunhão com a Santíssima Trindade e a comunhão fraterna entre os
irmãos e irmãs.
- Leva a pleno efeito a comunhão da assembleia com o mistério de Cristo: faz de nossa vida uma
oferenda viva a Deus, através da transformação espiritual à imagem de Cristo, da preocupação pela
unidade da Igreja e da participação da sua missão pelo testemunho e pelo serviço da caridade (n.
1109).

3.2. O lugar de Maria


Qual é o lugar que Maria ocupa na liturgia? Vejamos, por exemplo, a Oração Eucarística n. 2.
Maria é mencionada em um dos “mementos” (Lembrai-vos, ó Pai...), junto com outros membros da
Igreja: Enfim, nós vos pedimos, tende piedade de todos nós e dai-nos participar da vida eterna, com
a Virgem Maria, mãe de Deus, com os santos apóstolos e todos os que neste mundo vos serviram, a
fim de vos louvarmos e glorificarmos por Jesus Cristo, vosso Filho. Está “do nosso lado”, na linha
ascendente, louvando e glorificando o Pai. É o mesmo lugar que ocupava depois da morte ressurreição
do Senhor, quando se reunia com os outros discípulos:... voltaram a Jerusalém (...) subiram à sala
superior onde costumavam ficar. Eram Pedro e João, Tiago e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e
Mateus; Tiago, filho de Alfeu e Simão, o zelota; e Judas, filho de Tiago. Todos estes, unânimes,
perseveravam na oração com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com os
irmãos dele (At 1,12-14). Maria está na comunidade, na Igreja, junto com a assembleia. Em nenhum
momento, a liturgia dirige-se a Maria invocando-a, como se fosse uma "deusa", uma salvadora ou
redentora. O que se pode fazer é venerar e pedir que Deus Pai leve em conta os méritos e as preces
de Maria (e dos Apóstolos e de todos os santos), como se faz, por exemplo, na Oração Eucarística n.
1.
Acostumado(a) com a reza do terço e outras expressões da piedade popular, alguém talvez queira
rezar a Ave Maria depois do Pai Nosso na missa ou no batismo... ou queira “consagrar” a criança a
Maria no final da celebração do batismo. Não encontramos respaldo para isso na tradição litúrgica.
A “Ave Maria” é uma oração devocional muito louvável e significativa, mas que não pode ser equi-
parada ao “Pai Nosso”. Caberia talvez no final da celebração, após a bênção, como é o caso das
antífonas marianas no final das completas (ofício divino à noite). Quanto à consagração no batismo:
é a Deus que a criança é consagrada no batismo, e não a Maria.

4. A participação da assembleia

Chegando ao final deste capítulo, falemos da palavra mais repetida na SC: participar, partici-
pação... (Vejam os n. 11, 14, 18, 19, 21, 27, 30, 41, 48, 50, 53, 55, 79, 100, 114, 118, 121, 124...: toda
a renovação conciliar gira em torno da participação de todo o povo de Deus na sagrada Liturgia.)
Nesta palavra se condensa de certo modo tudo o que foi falado neste capítulo e no anterior; assim,
agora já estamos em condições de captar o seu sentido profundo.

4.1. Participar do mistério, participando da ação ritual


"Participar" é "ter parte". Ter parte de quê? Da ação litúrgica, da vida litúrgica, da ação sagrada.
No entanto, se a ação litúrgica não é apenas uma exterioridade, mas expressão do mistério de Deus,
do mistério de Cristo, então participar da ação litúrgica significa ter parte no mistério que está sendo
celebrado. É uma ação não apenas técnica, ou psicológica, mas teologal. É sinônimo de comunhão
(koinonia), comunhão com Cristo, e através dele e de seu Espírito, com o Pai e entre nós. Vejamos
isso com dois textos de são Paulo, um sobre o batismo e outro sobre a eucaristia.
Nos dois casos se trata de uma ação realizada com gestos corporais; no caso do batismo: banhar,
entrar e sair na água, mergulhar e ser retirado; no caso da eucaristia: bendizer (dar graças), partir,
comer e beber. No entanto, através dessas ações rituais temos parte no mistério da morte-ressurreição
do Senhor: mergulhar na água batismal é ser sepultado(a) com ele na morte para ressuscitar com ele
22
para uma vida nova; beber do cálice de bênção, partir o pão eucarístico e comer dele é entrar em
comunhão com o Senhor, tornar-se parte de seu corpo: Pelo batismo nós fomos sepultados com ele
na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também
nós vivamos vida nova (Rm 6,4). O cálice de bênção que abençoamos não é comunhão com o sangue
de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Já que há um único pão, nós,
embora muitos, somos um só corpo, visto que todos participamos deste único pão (1 Cor 10,16-17).

4.2. Várias "qualidades" da participação


A constituição conciliar usa vários adjetivos quando fala da participação do povo na liturgia: ativa,
externa, interna, consciente, piedosa, fácil, plena, frutuosa..Comentemos brevemente cada um deles.
Ativa: É o oposto de "passiva"; sugere ação, e não apenas o fato de ser objeto da ação realizada
pelos ministros. Tomemos como exemplo o ato de comungar. Não se trata simplesmente de receber
o pão e o vinho consagrados. Participar ativamente significa: querer encontrar-se com o Senhor, res-
ponder a seu convite e, por isso, tomar a iniciativa de ir até a mesa, estender a mão, responder "Amém"
quando o ministro diz: "Corpo e Sangue de Cristo", colocar o pão na boca, comer (mastigar, saborear,
engolir...). Da mesma forma, todo o povo cristão é chamado a participar de todas as ações litúrgicas,
ativamente: entrar em procissão, responder à saudação, cantar, aclamar, assumir as atitudes do corpo
(sentar-se, ficar de pé, ajoelhar, levantar as mãos), acompanhar as orações presidenciais, ouvir as
leituras, a homilia e possíveis convites, professar a fé, fazer preces, levar oferendas ao altar ...
Olhemos mais de perto um outro exemplo: a memória da oferta (sacrifício, oblação) de Jesus na
oração eucarística. Não pode ficar reduzida a um momento de espera passiva até que o padre tenha
realizado a ação sagrada. Precisamos participar ativamente. Vejam como o expressa a Constituição
Conciliar: ...a Igreja tome diligentes medidas para que os fiéis não assistam a este mistério da fé
como estranhos ou espectadores mudos. Mas cuida para que bem compenetrados pela celebração e
pelas orações participem consciente, piedosa e ativamente da ação sagrada (...) e aprendam a ofe-
recer-se a si próprios oferecendo a hóstia imaculada [o próprio Cristo em sua entrega ao Pai], não
só pelas mãos do ministro, mas também juntamente com ele e assim diariamente sejam consumados,
tendo a Cristo como mediador (SC 48). Portanto, é preciso que cada um(a) de nós se ofereça a si
mesmo(a), unindo esta oferta à oferta do próprio Cristo nas mãos do Pai. Reparem no detalhe: não só
pelas mãos do padre, mas juntamente com ele. O padre fala e age, mas nós devemos estar participando
ativamente, acompanhando com nossa mente e nosso coração.
Ressaltemos que há também um aspecto "passivo" em nossa participação na liturgia, à medida que
deixamos Deus (o Pai, o Filho, o Espírito Santo) agir em nós.
Externa e interna: Os exemplos anteriores já deixaram claro que a participação tem um aspecto
externo e outro interno, de acordo com a maneira de ser dos humanos. O gesto, a palavra, o canto, a
música, o movimento... têm uma repercussão em nossa interioridade. E em que consiste essa interio-
ridade? Como podemos ter acesso a ela? Em primeiro lugar, penso que podemos entender que se trata
aqui de nossa "alma", nossa psique, com sua capacidade de conhecer racional e afetivamente e sua
capacidade de querer (vontade, liberdade).
Mas a interioridade vai além. Trata-se de atingir o fundo de nosso ser, nosso "coração" (em sentido
bíblico), nosso "espírito", por meio do qual estamos ligados com o ser e o espírito de Deus. Por
exemplo, participar interiormente da comunhão eucarística significa deixar-se apanhar pelos laços do
Espírito de Deus enquanto recebemos, comemos e bebemos o pão e o vinho; ele nos une com o Filho
e, por ele, com o Pai e com toda a Igreja, com todas as pessoas do mundo inteiro e até mesmo com
todos os seres do universo. Comungar significa mergulhar no mistério da unidade em Deus. E a partir
daí deixar que o Senhor transforme nossa maneira de pensar e agir, purifique nosso coração, nos faça
sempre mais parecidos(as) com Jesus, em sua entrega ao Pai e aos irmãos e irmãs.
A participação interior coloca algumas exigências para nossa maneira de celebrar. Antes de tudo,
necessitamos de momentos de silêncio. Depois, é toda uma maneira "espiritual" de celebrar e parti-
cipar, prestando atenção a cada coisa a partir de nosso ser mais profundo: andar, cantar, ler e ouvir,
perceber a luz e a escuridão, sentir a água, o incenso, sentar-se, levantar-se, comer e beber, ungir e
ser ungido(a).
23
Na cultura atual, saturada de racionalismos, verbalismos e exoterismos, sedenta de mística, uma
atenção maior à participação interior na liturgia será certamente bem-vinda. Poderá inclusive dar uma
grande contribuição indireta para a paz, pessoal e social.
Consciente: Que nossa mente acompanhe as palavras, os gestos, os cantos, cada uma das ações,
compreendendo o que estamos fazendo. E aqui, novamente, trata-se de uma compreensão que vai
além de nossa capacidade de raciocínio. Trata-se de um conhecimento espiritual, na fé, que nasce do
anúncio e da meditação da Palavra de Deus, da tradição litúrgica, do discernimento da presença do
Senhor nos sinais dos tempos.
Fácil: Nada deve atrapalhar ou dificultar a participação de toda a assembleia nas ações litúrgicas.
Daí a necessidade de se adaptar e inculturar a liturgia (cf. SC 21 e 37ss.), realizar as celebrações na
linguagem (verbal, conceituai, gestual, musical) do povo reunido. É preciso dar formação litúrgica
não só para o clero e demais ministros, mas para todo o povo de Deus. É necessário ainda cuidar para
que todos possam ouvir e ver cada ação realizada. E que as celebrações sejam realizadas com nobre
simplicidade, sejam transparentes por sua brevidade e evitem as repetições inúteis (cf. SC 34).
Plena: Em primeiro lugar, a participação plena na missa supõe participação na sagrada comunhão.
(Durante séculos, o povo ficou afastado da comunhão eucarística; comungava somente uma vez por
ano, por ocasião da Páscoa. Vocês se lembram da expressão: "fazer a Páscoa"?) Certamente, podemos
entender também a participação plena, no sentido de uma identificação crescente com o Cristo em
sua paixão e ressurreição; ou como nos diz são Paulo: Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive
em mim (Gl 2,20).
Piedosa: Esta palavra não deve ser entendida em seu sentido comum de sentimento religioso, mas
em seu sentido bíblico. Trata-se da atitude de Jesus, o justo, o servo do Senhor, o servo fiel, que ama
o Senhor e que é eficiente na execução de suas ordens, de sua palavra. Não basta dizer "Senhor,
Senhor..."; é preciso pôr em prática o que o Senhor mandar. Não basta ser um cristão "praticante", só
no sentido de estar presente em todas as celebrações e rezar bastante. É necessário o compromisso
com a causa do Reino.
Frutuosa: A participação na celebração dá frutos na vida, na missão, no dia-a-dia, no testemunho,
no compromisso, na oração e comunhão contínuas com o Senhor, no amor aos irmãos e irmãs. É a
liturgia-celebração se projetando e tendo continuidade na liturgia-vida Por fim, lembremos que o
Concílio aponta os pastores como os responsáveis pela participação do povo; é um dos principais
deveres dos pastores promover a ativa participação interna e externa dos fiéis pela palavra e pelo
exemplo (cf. SC 19).

4.3. A subjetividade dos participantes da assembleia e a objetividade da liturgia


Liturgia é uma ação "objetiva", celebração do mistério de Jesus Cristo, renovação da nova e eterna
Aliança, ação eclesial. Como entram aí a individualidade de cada participante, seus sentimentos, suas
emoções, suas vivências?
Devemos ter bem claro o seguinte: na liturgia, não é nossa subjetividade que deve dominar ou ser
o ponto de referência. Ao contrário, cada um de nós, com nosso jeito de ser, com nossa história pes-
soal, com nossas tristezas e alegrias... somos convidados a nos "confrontar" com Cristo, em seu mis-
tério pascal, em sua relação com o Pai, no Espírito. Somos convidados a "subjetivar", a assumir, como
nossas, as atitudes, os sentimentos, a maneira de pensar e agir de Cristo, expressa na liturgia. Aqui
também vale a palavra do apóstolo: Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus (FI 2,5).

4.4. Alguns desafios pastorais


Confrontando os dados da tradição com nossa realidade pastoral, quais são os maiores desafios
que se nos apresentam? Apontamos alguns:
Como fazer dos assistentes anônimos uma assembleia celebrante? Como sanar o individualismo
na liturgia e passar do "eu" ao "nós"? Como acolher as categorias de pessoas abertas ou sutilmente
excluídas? Como organizar assembleias litúrgicas com povos indígenas, afrodescendentes, morado-
res de rua... Como constituir assembleias litúrgicas nas grandes cidades, com pessoas que, em sua
maioria, não participam regularmente de uma comunidade eclesial?
24
Como sanar o devocionalismo e o ritualismo e passar a celebrar, como Igreja, o mistério de
nossa salvação, por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo? Como abrir espaço
para o crescimento da interioridade e da mística na liturgia?
Como sanar o clericalismo e fazer com que todo o povo reunido celebre a liturgia, ativa e consci-
entemente? O que fazer para que os ministros ordenados se considerem e atuem como parte da Igreja
e não como seus "donos"? Como fazer com que celebrem com e não "para" a assembleia reunida?
Como prover cada comunidade de ministros e ministras necessários para realizar plenamente sua vida
litúrgica? Como formar as equipes de liturgia em cada comunidade e paróquia?

IV - COMO SE CELEBRA? ELEMENTOS E DINAMISMO DA CELEBRAÇÃO


(Extraído de: BOROBIO, D. (org.). A celebração na Igreja - 1: liturgia e sacramentologia fundamental.
São Paulo: Loyola, 1990, p. 188-235)

1. AS LEITURAS
1.1. Palavra que convoca
A maioria das celebrações litúrgicas cristãs têm como primeiro elemento importante a leitura da
palavra de Deus.
A ação litúrgica costuma começar, depois de um início introdutório mais ou menos extenso, com
uma ou várias leituras. Essa espécie de lei ou constante não é um fato casual, mas o resultado do
caráter dialogal da liturgia, bem como da prioridade que a iniciativa divina tem nesse diálogo consti-
tutivo da fé e da história santa.
A comunidade se reúne, isto é, se une de modo reiterado e reflexo, porque é chamada a essa união
comunitária, porque é con-vocada através da palavra de Deus. Toda assembleia festiva é, como já
dissemos, "qahal", "ekklesia", ou seja, a con-vocada: é o conjunto de fiéis agrupados pela convocação
do chamado divino. É a atualização das grandes assembleias do deserto (do êxodo, do Sinai, enfim,
da história de Israel), centradas na palavra (Ex 19; 2Rs 22, Nm 9).
Tal é o significado da leitura bíblica numa celebração, que explica a sua colocação no começo da
festa. Graças a essa estrutura, aparece com toda nitidez o fato de a festa cristã ser uma festa evangé-
lica, uma celebração evangélica. Inspira-se no espírito do evangelho, que é o ponto culminante da
palavra e da revelação divinas. Assim é afugentado todo possível desvio alienante, todo falso magi-
cismo e falso misticismo, todo entusiasmo contrário ao Pneuma de Jesus. Mais ainda, assim se reatu-
aliza o mistério da conversão.
A comunidade fiel reunida quer responder ao apelo do canto invitatório (SI 94,7-8): "Oxalá ouvís-
seis hoje a sua voz: Não endureçais vossos corações como em Meriba (discórdia!)"
Essa foi uma das principais intenções do Vaticano II e da reforma litúrgica nele inspirada (SC 6,
7, 24, 33, 35, 51, 56, 78, 90, 106). Naturalmente, essa reforma não pretendeu senão voltar às fontes e
às origens mais genuínas da festa cristã.
Com efeito, já a celebração da liturgia judaica, em especial a sinagogal do sábado, fundamentou-
se basicamente nas leituras das diversas perícopes bíblicas (chamadas parashen) e, de modo mais
particular, nas do Pentateuco ou torá e dos profetas (Lc 4,16-27; At 13,14-43; 15,26).
A Igreja primitiva segue desde o início a mesma linha, como nos indica o texto clássico de Justino:
"São lidas as memórias dos apóstolos e os escritos dos profetas, quando o tempo o permite".

1.2. Palavra eficaz


Ora, o Vaticano II fundamenta essa primazia da Palavra dentro da celebração não apenas no motivo
eclesiológico já mencionado - a Igreja é a assembleia convocada -, como também no motivo cristo-
lógico, formulado da seguinte forma: "Cristo está presente em sua palavra. É ele quem fala quando
se leem as Sagradas Escrituras na Igreja" (SC 7 e 23).
A leitura é um sinal da presença de Cristo na assembleia. A Palavra tem um caráter quase sacra-
mental. Por meio dela, põe-se em ação esse dinamismo, essa eficácia que à palavra de Deus se atri-
buem pela tradição bíblica e que a palavra de Cristo, como palavra do Filho de Deus enviado pelo Pai
na plenitude dos tempos, possui: "Como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam; sem
25
terem regado a terra, tornando-a fecunda e fazendo-a germinar, dando semente ao semeador e pão
ao que come, tal ocorre com a palavra que sai da minha boca: ela não torna a mim sem fruto; antes,
ela cumpre a minha vontade e assegura o êxito da missão para a qual a enviei" (Is 55,10-11).
Quando se anuncia ou acolhe a palavra na ação litúrgica, deve-se fazê-lo com uma profunda fé em
sua força. Deus diz que se faça a luz e a luz se faz (Gn 1,3-5). A sua palavra nunca é mera palavra
vazia, oca, que o vento leva, como ocorre tantas vezes com a palavra do homem “(palavras, palavras,
palavras", de que fala Hamlet); é sim fato, acontecimento, como o indica o termo hebraico dabar; é,
de maneira mais concreta, sabedoria, revelação, amor, escolha, aliança.
Quando Jesus diz "faça-se a luz" diante do cego de nascença ou "enquanto estou no mundo sou a
luz do mundo" (Jo 9,5-7), faz-se também a luz e se renova o dinamismo criador. Porque Jesus é a
palavra do Pai que toma Corpo e marca presença na nova humanidade, na nova criação iniciada com
a Igreja (Jo 1,1-9; 14). Como diz Paulo: "Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos
Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho..." (Hb 1,1-2).
Por isso, os seus discípulos, os fiéis chamados cristãos, acolhem essa palavra, ao se reunirem, na
"obediência à fé" (Rm 1,5; 1Ts 1,5-10; 2Ts 2,13); uma fé que significa adesão, confiança e entrega,
mas também compromisso de pôr em prática aquilo que se ouve (Lc 11,28; Jo 14,23).

1.3. Palavra diferenciada


Essa parte dedicada às leituras foi aos poucos elaborando a sua própria estrutura, desenvolvendo-
se numa ordem harmônica e significativa. Podem-se registrar quatro estratos que são, ao mesmo
tempo, quatro momentos, etapas ou partes distintas:
a) o profeta que anuncia e prefigura (fragmentos, perícopes tomadas dos livros históricos, profé-
ticos ou sapienciais do Antigo Testamento);
b) o salmo que retoma todos os dados numa forma lírica e numa linguagem poética, aberta ao
cumprimento messiânico;
c) o apóstolo que desvela as riquezas do reino iniciado com Cristo (fragmentos e perícopes neo-
testamentários tomados dos Atos, das Epístolas e do Apocalipse);
d) o Evangelho, que trata diretamente das palavras e das ações de Jesus.
Sobre esse registro quádruplo, a história litúrgica fez diversas combinações. A Didascalia do sé-
culo II nos traz o seguinte testemunho: "E estando de pé o leitor, no meio, num lugar elevado, que
leia os livros, leia os livros de Moisés e de Josué, filho de Nun, o dos Juízes e dos Reis e do Deutero-
nômio e os do retorno (cativeiro), além dos de Jó, Salomão e dos dezesseis profetas. Acabadas as
leituras feitas entre dois, que outro cante os hinos de Davi. Em seguida, leiam-se nossos Atos, as
cartas de Paulo... e depois o diácono ou presbítero leia o Evangelho".
As Constituições Apostólicas ordenam para cada celebração a leitura da lei e dos profetas, das
Epístolas, dos Atas e dos Evangelhos.
A liturgia sírio-oriental registra três perícopes do Antigo Testamento (leis, profetas e livros sapi-
enciais) mais três no Novo Testamento (Atos, cartas e Evangelhos). As liturgias copta e caldeia têm
quatro perícopes. As grandes vigílias, em diversas famílias litúrgicas, chegam a acumular doze leitu-
ras. Em contrapartida, a liturgia das horas reduz essa parte a fragmentos breves ou capítulos, exceto
no ofício das leituras. Aqui, ademais, acrescentam-se textos não bíblicos, dos padres, dos concílios,
dos papas e, em geral, dos autores espirituais mais veneráveis.
O fio condutor que vai tecendo a unidade das diversas leituras bíblicas em sua heterogeneidade é
o chamado sentido tipológico da Bíblia ou o seu cristotelismo, segundo as expressões da tradição, ou
seja, a dinâmica interna na direção de Cristo que marca as grandes passagens bíblicas.
Os Padres fazem essa interpretação cristocêntrica apoiando-se no próprio Novo Testamento,
quando este põe na boca de Jesus o logion que diz: "São estas as palavras que eu vos falei, quando
ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de
Moisés, nos Profetas e nos Salmos" (Lc 24,44-45). É também a chave decisiva da catequese que Jesus
faz aos seus discípulos no caminho de Emaús (Lc 24,25-26.27. Veja-se também 1Pd 1,11-12).
Máximo Confessor comentou o sentido místico-teológico dessa estrutura litúrgica das várias lei-
turas e de sua ordem (lei, profeta, evangelho), comparando-o a um movimento epifânico que vai da
sombra para a imagem e, da imagem, para a presença.
26
1.4 . Palavra dinâmica e salvífica
Deve-se reconhecer que uma certa evolução histórica foi empobrecendo e reduzindo à sua mínima
expressão essa riqueza (abundância e variedade) de leituras. Influiu nisso, entre outras causas, o prin-
cípio rígido e inflexível mantido na Igreja romana de não traduzir os textos litúrgicos na língua do
povo. Assim, o povo foi se desinteressando das leituras e prescindindo delas.
A reforma conciliar do Vaticano II quis devolver à comunidade cristã a vivência da revelação
bíblica e o florescimento das leituras que constatamos nos primeiros séculos da liturgia da Igreja. Mas
o concílio quis mostrar não apenas a riqueza como também a unidade de toda a Bíblia, bem como
esse dinamismo progressivo que vai apontando com cada vez mais nitidez para a manifestação de
Cristo; ou seja, o sentido cristocêntrico tão importante para os Padres.
Essa estrutura que os Padres denominam tipológica constitui hoje, mais uma vez, o nexo interno
das várias leituras, patenteando a sua infraestrutura que a palavra de Deus não se deixou ouvir gradu-
almente por meio de uma justaposição aditiva ou de uma soma exterior de verdades que vão do sim-
ples para o complexo, do elementar-concreto ao abstrato-geral. O desenvolvimento da revelação bí-
blica aparece - e isso procura evidenciar a organização da liturgia da palavra - como o de um tema,
ou melhor, de um ato central que se enriquece a si mesmo ao revestir-se aos poucos de novas harmô-
nicas, até invadir o nosso universo mental e existencial.
A palavra de Deus não progride no sentido da complexificação múltipla de afirmações cada vez
mais diversas e sutis, mas no da unidade que descobre uma única personalidade divina, assim como
um único desígnio divino que gira em torno da comunhão entre Deus e a humanidade.
O que se deve buscar na organização da liturgia da palavra não é uma sucessão de conceitos sempre
novos, mas o aprofundamento de verdades bem simples e de dados bem elementares, mas densos e
ricos. O que nos permite penetrar na compreensão das Escrituras é o acesso à contemplação do grande
desígnio salvífico-libertador que delas emana e do único, cujo rosto elas refletem.
É certo que, nessa unidade, há um avanço e um desenvolvimento, um conjunto de etapas que se
sucedem umas às outras, um jogo daquilo que os padres chamam "protótipos" e "antitipos", isto é, de
frases que se preparam e esclarecem mutuamente, de antecipações, prefigurações, previsões e pleni-
tudes ou cumprimentos cujo ponto culminante último é a chegada de Cristo "na plenitude dos tempos"
(Ef 1,10; CI 1,10).
Um sinal ritual-simbólico do anterior é o fato de que, nas ações sacramentais, a última leitura é
sempre a evangélica. Todas as outras a precedem, quer dizer, subordinam-se a ela, porque o evangelho
é o símbolo do próprio Cristo que apareceu no meio dos homens no final dos tempos, depois de ter
sido anunciado como alfa e ômega de toda a história humana.

1.5. Palavra ordenada


Há duas outras particularidades interessantes na liturgia das leituras. Uma delas é a da "leitura
seguida", "continuada", de um livro bíblico ao longo de diversos domingos, combinada com a "leitura
própria", isto é, aquela que se faz escolhendo os fragmentos que tenham relação mais direta com a
festa do dia ou com o "tempo próprio" do ano litúrgico (Advento, Natal, Quaresma, Páscoa).
E a monja Etéria (ou Egéria) se refere ao sistema de "leitura própria" quando diz, ao descrever a
liturgia de Jerusalém que ali são proclamadas leituras adequadas ao dia e ao lugar.6
A outra particularidade é a da compilação. Consiste em selecionar para a perícope que vai ser lida
os versículos considerados mais interessantes, deixando de lado os intermediários.
O que nunca se faz é trocar o texto do livro bíblico contido no lecionário, lendo-se uma glosa mais
ou menos livre com a intenção de fazê-lo soar mais moderno. Aqui, o critério é o seguinte: os lecio-
nários devem apresentar uma tradução realmente atual, feita com toda a licença e liberdade próprias
de toda tradução. Mas em seguida, e partindo dessa suposição, deve-se respeitar o texto, a sua histo-
ricidade, a sua idiossincrasia cultural, a sua linguagem, a sua terminologia. Justamente aí aparece o
mistério da encarnação do Verbo e, assim, a comunidade é iniciada nesse mistério da historicidade
da palavra feita carne. A palavra toma corpo numa época concreta e numa cultura concreta, bem como
numa história que, como tal, é sempre particular, única e irrepetível (nunca genérica ou abstrata);
portanto, distinta de outras épocas históricas.

6
Cf. Peregrinação de Etéria. Petrópolis, Vozes.
27
A adaptação e atualização do texto bíblico proclamado na liturgia da palavra são feitas pela
homilia, pelo canto, pela oração, mas não pela leitura nem pelo leitor.

1.6. Palavra celebrada


Convém recordar agora que as leituras, por serem feitas no âmbito da ação litúrgica, ficam reves-
tidas do mesmo caráter próprio de toda liturgia, a saber, o caráter celebrativo ou festivo. E, além disso,
contribuem decisivamente para ele. A leitura de textos bíblico-cristãos deve ser feita de modo que
resulte numa verdadeira celebração.
A celebração não começa quando as leituras terminam, como se estas (fossem um mero proêmio,
um prólogo, uma introdução doutrinal-catequética (uma antemissa, no caso da eucaristia) e como se
a ação litúrgica se iniciasse com o rito. A leitura é já, deve ser, parte importante da celebração e da
ritualidade desta. A estrutura palavra-rito que, como dissemos, constitui o núcleo de toda liturgia, não
deve ser entendida num sentido basicamente diacrônico, como se todo um primeiro tempo da festa
litúrgica fosse dedicado apenas à palavra e, um segundo, ao rito.
O esquema é de natureza bem mais sincrônica. Ao longo de toda a ação litúrgica, deve haver
palavra e rito (gesto, símbolo), como as duas faces da mesma moeda, embora, numas sequências,
predomine mais um ou outro elemento. Palavra e rito estão lado a lado e, assim emparelhados e
imbricados, constituem a textura de toda liturgia cristã que, por definição, é e deve ser, como disse-
mos, sempre evangélica.
Para que a parte da leitura ou o ato da leitura sejam uma e resultem numa celebração festiva, uma
liturgia da palavra, e não uma catequese, uma aula, uma sessão doutrinal, de doutrinação, de cultura
bíblica, uma discussão ou discurso religiosos, uma reflexão ou especulação teológicas..., devem-se
levar em conta vários pontos.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que se trata de um acontecimento e de uma realidade atuais.
Não se celebram ideias nem simples lembranças, mas fatos e atualidades. Por isso o leitor é conside-
rado um pregoeiro, um arauto que anuncia a palavra da Boa Nova aqui e agora, fazendo-a presente
com toda a sua eficácia.
Em segundo lugar, celebrar é festejar, alegrar-se, admirar-se, assombrar-se, gozar, louvar, dar gra-
ças. Por isso a leitura é sempre acompanhada de cantos e orações.
Algumas missas de crianças (e de outras faixas etárias), que organizam toda a liturgia da palavra,
por certo amplamente extensa, na base de exemplos expositivos, esboços, perguntas e respostas, dis-
cussões ou colóquio, sem oração, sem vestígios de hinologia intercalada, destruíram o caráter cele-
brativo dessa parte fundamental da festa sacramental. A dedicação de todo o tempo a falar, a discutir,
a pregar, sem deixar tempos de silêncio, de escuta meditativa e o fato de se dar a impressão de querer
"tomar" ou açambarcar a palavra sem a devida atitude de acolhida contrariam o verdadeiro celebrar.
(Sem esquecer que as "coisas santas" - sacramentos, palavras de Deus - não são tomadas, mas rece-
bidas.)
Em terceiro lugar, celebrar é pôr em jogo toda a pessoa e, portanto, a sua dimensão corporal-
material ou sensível. Deve-se incorporar aqui a oração do corpo, o gesto e todas as realidades simbó-
licas que complementam a gestualidade humana. Por isso a liturgia realiza as leituras, sobretudo a
evangélica, através de uma procissão e de um circundar o livro-lecionário (evangeliário) com a ho-
menagem do incenso, das luzes, dos círios, do ósculo, da subida ao ambão, do estar de pé etc. Mais
do que isso, empregam-se esses símbolos para criar uma atmosfera especial, um clima evocador dessa
festa fascinante que a proclamação e a acolhida da palavra suscitam.
Tudo fica preenchido pela fumaça ascendente do incenso, pelo fulgor dos castiçais, pela cor lumi-
nosa das alvas dos ministros e dos seus ornamentos. (O fato de o sacerdote "vestir-se" quando a
liturgia da palavra termina é um claro sintoma dessa falta de sensibilidade festiva que confunde essa
parte fundamental da festa com uma inadequadamente chamada antemissa.)
Há outros elementos sutis, mas não menos importantes, de nexo firme entre palavra e rito. O pre-
fácio, o "communicantes", a anáfora inteira retomam com frequência motivos das leituras, tal como
ocorre com o canto de comunhão, a bênção final etc. Quanto ao mais, essa é uma das funções da
homilia.
Por último, deveríamos acrescentar que muitas perícopes bíblicas, em termos concretos as esco-
lhidas para certas festas, são elas mesmas "roteiros celebrativos", como as denominam os exegetas
28
(Kultlegende). Quer dizer, elas descrevem, mais do que fatos históricos, as celebrações cúlticas que
o povo de Deus fazia desses fatos. O exemplo típico é o relato da ceia, fortemente liturgizado na
forma em que nos chega.

1.7. Palavra proclamada


O leitor, para cumprir o seu ofício, deve, em primeiro lugar, estar consciente da importância da
sua função e do seu papel, já que, quando atua, é ele quem faz presente na assembleia a palavra viva
de Deus como acontecimento novo, único, irrepetível.
Em segundo lugar, deve cumprir algumas exigências mínimas de caráter técnico, sem as quais põe
a perder a sua incumbência. Podemos enumerá-las e comentar sumariamente da seguinte maneira:
Vocalização. Deve-se ter especial cuidado em pronunciar bem cada sílaba, cada palavra.
Regulação do volume da voz de modo que se ouça bem o que é dito, em especial os finais de frase.
Deve-se também dosar as emissões fortes e suaves de acordo com o sentido da frase.
Regulação do ritmo da leitura, reduzindo ou acelerando a emissão segundo o caso, mas, sobretudo,
intercalando pausas, inserindo silêncios nas vírgulas, nos pontos e no aparte.
Modulação da voz, mudando de tom segundo as variações das situações descritas no texto. O texto
deve ser interpretado de acordo com o gênero literário a que pertencer, nos termos da estrutura que
possuir etc.
Postura corporal ereta, com a cabeça levantada, encarando com frequência a assembleia, para que
a leitura se torne verdadeira locução, interlocução, diálogo vivo, interpelação proética etc. O ambão
e o livro nunca devem ser uma pantalha, uma parede, que separem, ocultem ou desvinculem o leitor
da assembleia.

1.8 Complemento

A TEMÁTICA BÍBLICO-LITÚRGICA DO LECIONÁRIO


E SUA LIGAÇÃO COM A EUCOLOGIA
(Extraído de: DE ZAN, R. Os múltiplos tesouros da Palavra; introdução ao lecionário e à leitura litúrgica da Bíblia.
Petrópolis: Vozes, 2015, p. 123-125).

A ligação temática entre a primeira leitura e o evangelho tem identidades diversificadas. Pode ser
do tipo profético, tipológico e sapiencial (pedagógico). Não esqueçamos que é também o “título” da
perícope que orienta. Esta enumeração assim simplificada pode induzir em erro porque estas três
categorias podem ser declinadas em diferentes modos. Por exemplo, pode haver tipologias por antí-
tese ou ligações de simples ambientação cultural e teológica.
Há ligação temática de tipo profético quando o texto da primeira leitura, considerado profecia
pela tradição cristã, encontra sua realização no texto do evangelho. No 4º Domingo do Advento, ano
A, a ligação temática entre a primeira leitura (Is 7,10-14) e o evangelho (Mt 1,18-24) é de tipo profé-
tico. Na primeira leitura está o texto isaiano do Emanuel e no evangelho temos a confirmação de
Mateus que tal profecia se cumpriu na encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria (cf. Mt 1,22:
“Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta”).
Há uma ligação de forma tipológica quando o texto da primeira leitura, considerado tipológico
pela tradição cristã, antecipa em fatos, ou personagens ou coisas sagradas, realidades que se tornarão
presentes em seu pleno significado no Novo Testamento. Na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo,
ano A, a primeira leitura (Dt 8,2-3.14-16) apresenta o episódio miraculoso do maná, alimento descido
do céu, num contexto que convida o fiel judeu a tomar humildemente consciência dos sinais milagro-
sos feitos por Deus, começando pela saída do Egito. No evangelho, Jo 6,51-59, o tema é retomado,
mas desta vez o alimento descido do céu é Jesus: “Quem come minha carne e bebe meu sangue tem
a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia”.
Há uma ligação de tipo sapiencial (pedagógico) em diversos casos. Por exemplo, o caso do 6º
Domingo do Tempo Comum, ano B. Na primeira leitura (Lv 13,1-2.44-46) se vê como era o leproso
no mundo do Antigo Testamento: um impuro, alguém sem vida, uma espécie de morto que respira.
No evangelho (Mc 1,40-55) Jesus cura um leproso. Para uma primeira leitura do texto poderia parecer
29
que a narrativa de Marcos seja apenas um milagre de tipo terapêutico. Mas, prestando atenção a
quem seja o leproso para o povo judaico, entende-se imediatamente que o milagre feito por Jesus não
é apenas um milagre terapêutico, mas é um devolver à vida, tanto aquela que tem relação com o
próximo como aquela que se relaciona com Deus. Trata-se de uma revificação, como a da filha de
Jairo, ou do filho da viúva de Naim, ou a de Lázaro.
Por fim, temos uma ligação temática evidenciada pelos títulos das leituras. Espontânea é a per-
gunta sobre a ligação que possa existir, no 4º Domingo da Quaresma, ano A, entre o texto evangélico
de Jo 9,1-41 (cura do cego de nascença) e 1Sm 16, 1.6-7.10-13 (unção real de Davi por parte de
Samuel).
O texto de 1Sm 16,1.6-7.10-13 leva o seguinte título, traduzido literalmente do latim: “Davi é
ungido rei sobre Israel”. Para Jo 9,1-41 aparece o seguinte título, traduzido também esse literalmente
do latim: “Foi, lavou-se e voltou vendo”. Nesta altura o desconcerto é ainda maior. Que ligação pode
aqui existir? Se tomarmos em mãos o ELM 97 ficamos sabendo que o 3º, 4º e 5º domingos da Qua-
resma, ano A, estão colocados tematicamente sobre a iniciação cristã. Da exegese sabemos também
que os gestos de Jesus, que acompanham a cura, têm um valor simbólico de tipo batismal: “passou
nos olhos”, “ungiu” (epichriein); esta é a leitura do grego melhor documentada e tem o apoio dos dois
papiros Bodmer. É também interessante notar que dois destes gestos de Jesus em Jo 9, a unção e o
uso da saliva, tornaram-se mais tarde parte do cerimonial batismal. O evangelho não demora a inter-
pretar o nome da piscina onde se podia obter esta água saudável, e o nome significa “aquele que foi
enviado” associa claramente a água com Jesus. Que tal simbolismo teria sido compreendido pelos
cristãos da época do Novo Testamento é indicado pelo fato que “iluminação era um termo usado
pelos autores do Novo Testamento para aludir ao batismo”. Agora as coisas estão mais claras: a unção
real de Davi por parte de Samuel antecipa tipologicamente a unção que Jesus faz com a lama sobre
os olhos do cego. Considerando que a “unção” de Jesus é parte integrante dos gestos realizados sobre
o cego e que simbolizam o batismo, torna-se fácil aproximar a realeza ao batismo. Trata-se de um
tema retomado dos gestos explicativos do rito do batismo: “Para que, inserido em Cristo, sacerdote,
profeta e rei, continues no seu povo até a vida eterna.

2. CANTO E MÚSICA
(Apontamentos - Joaquim Fonseca, OFM)

A música será tanto mais litúrgica quanto mais intimamente estiver ligada à ação litúrgica, quer
expressando com maior suavidade a oração, quer favorecendo a unanimidade e dando maior soleni-
dade aos ritos sagrados (cf. SC 112).

Desse princípio do Concílio Vaticano II, decorre o que vem a seguir:

- Canto e música são parte integrante da ação litúrgica, não um mero enfeite.

- Canto e música participam da sacramentalidade da liturgia ora integrando um rito ora cons-
tituindo um rito. Daí, a necessidade de critérios teológico-litúrgicos na escolha do repertório a ser
utilizado nas diversas celebrações tanto da Eucaristia como nos demais sacramentos e sacramentais.

- Critérios básicos para a escolha do repertório quanto aos textos e quanto à melodia
Quanto aos textos:
- Sejam extraídos da Sagrada Escritura, ou inspirado nela e nas fontes litúrgicas (cf. SC 121);
- Sejam poéticos: evitando explicitações óbvias, redundâncias, moralismos, intimismos, chavões...;
- Sejam levados em conta a dimensão comunitária, dialogal e orante;
- Sejam originais: evitando paráfrases, acréscimos ou mesmo substituições (nos cantos do “ordiná-
rio” da Missa);
- Estejam em consonância com os tempos do Ano Litúrgico e suas Festas (cf. SC 107);
- Estejam de acordo com o momento ritual a que se destinam (cf. SC 112).
30

Quanto à melodia:
- Seja inspirada (com beleza e profundidade);
- Seja acessível à grande maioria da assembleia. N.B.: Não confundir “acessível” com “banal”, “su-
perficial”;
- Seja capaz de realçar o sentido teológico-litúrgico-espiritual dos textos;
- Seja original: evitando adaptações de canções populares, trilhas sonoras de filmes e novelas;

2.1. Importância do repertório bíblico-litúrgico


Repertório é o conjunto de cantos que cada comunidade elege – a partir de critérios teológico-
litúrgicos – para o uso nas celebrações, ao longo do ano litúrgico. Portanto, não se trata de uma
escolha subjetiva ou aleatória voltada apenas para o gosto pessoal de algumas pessoas da equipe de
canto e música, mas de uma escolha objetiva e cuidadosa que leva em conta os critérios oriundos da
própria natureza da liturgia (cf. acima).
Repertório pressupõe repetição. A repetição de alguns cantos que expressem a espiritualidade
de cada tempo litúrgico ou festa permitirá à comunidade vivenciar o mistério pascal de Cristo, graças
à ação renovadora do Espírito Santo. Com isso, não se quer fechar a possibilidade de a comunidade,
aos poucos, ampliar seu repertório com novas composições. Tudo dependerá do ritmo e da necessi-
dade de cada Igreja.
A ideia de repertório está intimamente ligada à de rito. O rito, por natureza, coloca ordem,
classifica, estabelece as prioridades, organiza, dá sentido à ação e, consequentemente, é estável. Não
podemos modificar sua estrutura, a sua essência: o máximo que podemos fazer com o rito é adaptá-
lo à cultura e ao jeito de cada povo. A função primordial do rito cristão é evocar, tornar presente,
recordar e, sobretudo, alimentar a fé em Jesus Cristo. A música, enquanto rito (música ritual), deve
naturalmente possuir essas propriedades.
Um repertório bíblico-litúrgico que permanece vivo na memória dos fiéis, além de facilitar a
participação da assembleia, também resgata a dimensão de memorial - essencial para a liturgia. A
ação renovadora do Espírito Santo proporcionará à mesma assembleia, a novidade na ‘repetitividade’.
A pedagogia intrínseca ao ato de repetir, a cada ano, um repertório básico de cantos, levará os fiéis a
uma vivência espiritual, cada vez mais intensa, do mistério celebrado.
A Igreja no Brasil tem como principal referência o Hinário Litúrgico. Trata-se de uma cole-
ção de quatro fascículos com partituras de um repertório básico para as celebrações da Eucaristia e
da Palavra nos domingos e festas do ano litúrgico, além de uma série de cantos para outros tipos de
celebrações como batismo, matrimônio, exéquias etc.
A finalidade do Hinário Litúrgico é orientar a criatividade musical e ser referência para a
criação de um repertório bíblico-litúrgico nas comunidades. A gravadora Paulus, a pedido da CNBB,
gravou em CD boa parte desse rico repertório. Ao todo, são 20 CDs da série “Liturgia”.
Enfim, a intenção de se criar um repertório bíblico-litúrgico é resgatar o verdadeiro sentido
da música como parte integrante da liturgia (cf. SC 112). Como parte integrante, a música, assim
como os demais elementos que compõem o rito, tem a nobre função de expressar, de tornar presente
e, sobretudo, levar os fiéis à vivência do mistério pascal de Cristo.

2.2. Canto e música nos tempos do ano litúrgico

O canto e a música devem expressar o mistério pascal de Cristo, de acordo com o tempo do
ano litúrgico e suas festas. Segue uma breve orientação sobre o repertório litúrgico correspondente,
de acordo com o Hinário Litúrgico da CNBB.

2.2.1. Cantar o Advento do Senhor


No início do ano litúrgico, ao longo de quatro semanas, a Igreja entoa um canto de vigilante,
amorosa e alegre espera da vinda do Senhor, o Príncipe da Paz, o Emanuel, Deus-conosco. Este canto,
antes entoado pelos profetas, João Batista e Maria continua ressoando no seio da Igreja que clama:
“Vem, Senhor, nos salvar. Vem, sem demora, nos dar a paz”.
31
2.2.2. Cantar o Natal do Senhor
Neste tempo, cantamos, com a euforia dos profetas e evangelistas de todos os tempos, o mis-
tério da encarnação (Natal) e da manifestação (Epifania) do Verbo de Deus, do Príncipe da Paz, do
Emanuel Deus-conosco. Os pobres, ao nos ouvirem, acorrerão pressurosos até o presépio. A boa no-
tícia é sobretudo para eles, embora seja de alegria para todos os povos: “A luz resplandeceu em plena
escuridão...”; “Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorar o Senhor”.

2.2.3. Cantar a Quaresma


Cantar a quaresma é, antes de tudo, cantar a dor que se sente pelo pecado do mundo, que, em
todos os tempos e de tantas maneiras, crucifica os filhos de Deus e prolonga, assim, a Paixão de
Cristo. É um canto de penitência e conversão, um canto sem “glória” e sem “aleluia”, um canto sem
flores e sem as vestes da alegria, um canto “das profundezas do abismo” em que nos colocaram nossos
pecados (Sl 130); um grito penitente de quem implora e suplica: “Tende piedade de mim, Senhor,
segundo a vossa bondade, e conforme a vossa misericórdia, apagai a minha iniqüidade” (Sl 50).
O hino da Campanha da Fraternidade de cada ano explicita o compromisso dos fiéis na vivên-
cia concreta da quaresma. Ele pode ser entoado em algum momento da homilia – o que facilitaria a
vinculação da liturgia da Palavra com o “chão” da vida (tema da CF) - ou nos ritos finais, no momento
do “envio”.

2.2.4. Cantar o Tríduo Pascal


Nesses três dias, vivenciamos, de forma condensada, o mistério pascal de Cristo que se des-
dobra nas celebrações do “Tríduo Sacro” de sua morte, sepultura e ressurreição.
O canto de abertura da Missa na Ceia do Senhor - “Quanto a nós devemos gloriar-nos na cruz
de nosso Senhor Jesus Cristo que é nossa salvação, nossa vida, nossa esperança de ressurreição...” –
nos dá o “tom” do que será explicitado ao longo da celebração: é na glória dessa cruz que brilha o
mandamento do amor (lava-pés); é no brilho dessa cruz que resplandece o sacramento do amor (eu-
caristia); é no resplendor dessa cruz que podemos cumprir o pedido do Mestre: “fazei isto em memó-
ria de mim”.
Na celebração da Paixão do Senhor, cantamos a confiança do Servo Sofredor que se entregou,
sem reservas, nas mãos d’Aquele que o pode livrar “do poder do inimigo e do opressor” (Sl 30,16) e
aguarda com ânimo forte e resistente a sua salvação. Abandonando-nos com Cristo nas mãos do Pai,
cantamos a esperança da vitória de seus fiéis seguidores, os “crucificados” de nossos dias.
Na noite do Sábado Santo, cantamos o esplendor de uma luz que jamais se apagará. Procla-
mamos as maravilhas de Deus que nos libertou das trevas da morte e nos devolveu a vida. Revigora-
mos nosso compromisso batismal. E, enquanto nos alimentamos da ceia eucarística, cantamos: “Ce-
lebremos nossa páscoa, na pureza, na verdade. Aleluia!”.

2.2.5. Cantar a Páscoa do Senhor


O canto da Igreja no Tempo Pascal é de exultação e de alegria. Ressuscitados com Cristo,
cantamos sua glória, sua vitória sobre a morte. O “aleluia” volta a ressoar em nossos lábios, invadindo
todo o nosso ser com ardor sempre crescente, pois “as coisas antigas já se passaram, somos nascidos
de novo!”.

2.2.6. Cantar o Tempo Comum


O Tempo Comum – o mais extenso do ano litúrgico – nos possibilita desfrutar de outros as-
pectos da vida e da missão de Jesus e seus discípulos, que não são contemplados nos tempos do Natal
e da Páscoa. Cada domingo do Tempo Comum tem o sabor de “páscoa semanal”. O Hinário Litúrgico
– 3 traz um rico repertório que acompanha o conteúdo central do evangelho de cada domingo, sobre-
tudo nos versículos das aclamações ao evangelho e nos refrãos dos cantos de comunhão.

2.2.7. Cantar as solenidades e festas


Embora, ao longo de todo o ano litúrgico, a Igreja celebre o mesmo mistério de Cristo, no
decorrer da história foram sendo agregadas ao calendário litúrgico outras celebrações do Senhor, da
Santíssima Virgem e dos santos e santas.
32

* Celebrações do Senhor
- Apresentação do Senhor no Templo (2 de fevereiro);
- Anunciação do Senhor (25 de março).
- Santíssima Trindade (domingo depois de Pentecostes);
- Transfiguração do Senhor (6 de agosto);
- Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro);
- Cristo, Rei do Universo (último domingo do Tempo Comum).
* Outras celebrações:
- Maria (Mãe de Deus, Assunção, Imaculada Conceição, Aparecida);
- Santos (Natividade de S. João Batista, São Pedro e São Paulo Apóstolos, Todos os Santos);
- Dedicação da Basílica do Latrão;
- Comemoração dos fiéis defuntos.

2.3. Importância dos instrumentos musicais

- Os instrumentos musicais são importantíssimos, pois além de sustentar o canto da assembleia, dão
um caráter festivo à ação litúrgica (cf. MS 62-64).
- A sacramentalidade da voz humana está acima de qualquer aparato externo como: instrumentos
musicais, amplificadores eletrônicos etc. Estes equipamentos, quando mal utilizados (p. ex.: volume
excessivo...), impedem a ação do “Espírito que canta em nós”, na assembleia celebrante.
- Uma formação litúrgico-musical permanente para todos os que exercem o ministério de instru-
mentista é pré-requisito indispensável para que haja uma participação ativa e frutuosa de todo o povo
sacerdotal na ação litúrgica.

3. A HOMILIA

3.1. A homilia, acontecimento celebrativo


Um importante elemento da celebração litúrgica, que guarda estreita relação com as leituras, é a
homilia. A tradição sinagogal, os relatos neotestamentários (Lc 4,16-20) e da Igreja apostólica o con-
firmam. "Quando o leitor acaba, diz Justino, o que preside exorta e incita com palavras à imitação
dessas coisas excelsas" (Apologia I, 67).
A homilia é uma pregação, mas uma pregação litúrgica, isto é, que tem lugar numa celebração,
num contexto celebrativo (e não só na eucaristia, como em todos os sacramentos, na liturgia das horas,
nas vigílias). Está vinculada com todo esse conjunto de elementos constituintes da celebração. Não é
uma peça autônoma. Isso lhe confere sua peculiaridade e sua diferença diante de outros tipos de pre-
gação cristã (a pregação missionária de evangelização e de pré-evangelização, a catequética, a do
cultivo espiritual, como, por exemplo, a de certos retiros, exercícios espirituais etc.).
Destaquemos que essa caracterização recebida pela pregação homilética do seu "meio" ou ambi-
ente festivo não é algo meramente extrínseco, epidérmico, circunstancial. Pelo contrário, determina,
como veremos a seguir, o seu conteúdo.
De sua parte, a homilia traz um ingrediente peculiar à ação litúrgica. Às vezes, é o momento mais
esperado da celebração. É, de alguma maneira, o elemento de maior novidade, visto que o seu conte-
údo não é programado nem conhecido, mas inédito. Mesmo que tenha sido preparado, surge também,
e deve surgir, da espontaneidade inspirada do momento. É, pois, rodeada de um certo "suspense", de
uma certa emoção.

3.2. Os conteúdos da homilia


A tarefa daquele que intervém na celebração trazendo sua contribuição homilética é por certo co-
mentar as leituras bíblicas, explicar os textos proclamados que, como sabemos, são textos antigos,
escritos num contexto e numa linguagem distintos dos nossos, por vezes pouco compreensíveis.
Ora, esse ex-plicar não deve ser de caráter erudito, cultural, mas de cunho existencial. Deve ser
uma ex-tração, um des-entranhamento da força atual da palavra, da sua natureza de acontecimento;
uma demonstração de como Deus nos fala hoje por meio dela, de como nos anuncia a Boa Nova, nos
33
interpela, nos salva, criando uma situação nova em nossa vida, certamente seguindo as linhas e a
continuidade da historia salutis.
A palavra de Deus, como dissemos antes, tem lima força criadora. Aquilo que diz, faz; aquilo que
conta ter ocorrido "in illo tempere" (a Escritura refere, refere-se a "sucessos", acontecimentos susci-
tados pelo dinamismo do Espírito; é um livro que recopila atos mais do que ideias; por isso, é uma
história ou um "livro de histórias") ocorre também em nossos dias, cumpre-se na atualidade, como
diz Jesus ao pregar na sinagoga de sua aldeia de Nazaré, depois de ler uma perícope de Isaías: "Hoje
se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura" (Lc 4,21).
Evidentemente, os livros bíblicos que lemos na celebração apenas nos indicam como se cumpriu
a palavra no tempo de Cristo, inaugurando, "criando" esse tempo de Jesus que é o início dos tempos
messiânicos e, portanto, escatológicos. Mas nada dizem, nem podem dizer, de como se cumpre hoje.
O preenchimento dessa "lacuna" é a tarefa da homilia.
Perguntemo-nos, pois: como se cumpre hoje a palavra, como atua ela hoje, salvando, libertando?
Hoje como antes, Deus age através de sinais semeia). Esses sinais, como ensina o quarto evangelho,
são ações libertadoras que mostram a presença redentora de Deus, sua presença atuante, de um modo
real, mais ainda oculto. Desvelam e, ao mesmo tempo, ocultam. São algo patente e latente.
Esses sinais são a Igreja (sinal primordial ou proto-sacramento), os sacramentos (isto é, as cele-
brações litúrgicas) e os acontecimentos da vida atual, que seguem a direção do desígnio messiânico
(liberdade, justiça, amor, vida plena), chamados também "sinais dos tempos" (Mt 16,1-3).
A homilia será então uma leitura de sinais, uma hermenêutica que desentranhe a estreita relação
entre palavras e sacramento, entre Escritura e Igreja, entre o livro santo e a vida, a história dos ho-
mens.
Daí o caráter de ponte ("pontifical"), de dobradiça ou gonzo da homilia. Uma celebração sem
homilia pode mostrar-se fora do eixo, isto é, ter desconectados os seus diversos elementos, as suas
diferentes dimensões (palavra e sinal sacramental, festa e vida humana) ou privada da suficiente uni-
dade e fluidez entre eles.
A homilia deve mostrar que os sinais sacramentais, os gestos ou ações que denominamos sacra-
mentos, isto é, as celebrações litúrgicas, não são senão a realização, hoje, daquilo que a palavra, a sua
atualidade misteriosa ou mistérica (na realidade e no ocultamento), anuncia.
Deve fazer o mesmo com os atos libertadores da atualidade. Ora, como esses atos têm uma maior
ambiguidade ou equivocidade, o seu lado obscuro (de ocultamento) é mais profundo, não acontecem
no âmbito da Igreja (ao contrário dos sacramentos), mas no do "mundo". Deve-se aplicar aqui o "dis-
cernimento de espíritos" para não se divinizar a história profana, não absolutizar certas opções tem-
porais nem impor ditatorialmente determinadas conclusões. Como diz Jesus, falando do tempo ante-
rior à chegada ao fim: “Então, se alguém vos disser: ‘Olha o Cristo aqui!’ ou ‘ali’, não creais” (Mt
24,23).
Os sacramentos, bem como os testemunhos evangélicos de vida no mundo, vão criando Igreja, vão
fazendo surgir a edificação da Igreja como comunidade messiânica. Isso quer dizer: vão suscitando
homens fiéis, com uma profunda fé em Deus e em seu filho, Jesus Cristo, com uma esperança no
futuro da promessa e com uma caridade entranhável com relação ao Pai e aos irmãos. É esse o prin-
cipal fruto dessa atuação e atualidade da palavra. E isso sim é e pode ser palpável, perceptível, na
celebração, entre participantes da celebração. E disso a homilia deve dar testemunho.
Por essa razão, a homilia deve ser uma pregação de caráter sobremodo testemunhal, deveras pes-
soal. Aquele que fala deve dizer, contar como, nele e na comunidade, a palavra faz germinar essa
nova vida da fé, da confiança em Deus, da esperança na vida plena, do amor reconciliado. Assim, ele
exprimirá, manifestará, o modo pelo qual a nova criação - fruto da palavra - emerge aqui e agora.
Certamente deve-se aplicar, também com relação a essa função da homilia, o "discernimento de
espíritos". A homilia não é a ocasião para um exibicionismo narcisista nem para se fazerem projeções
psicológicas sobre certas situações, instituições ou pessoas. O testemunho versa mais sobre a ação de
Deus do que sobre a introspecção da subjetividade.
Da mesma maneira, o testemunho homilético deve gravitar em torno do que é o núcleo do queri-
gma cristão, ou seja, o anúncio da Boa Nova, da notícia gozosa de que o reino está próximo. Deve
seguir fielmente o paradigma de toda atividade evangélica, tal como nos é transmitida por Marcos
34
nas palavras de Jesus: "Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e
crede no Evangelho" (Mc 1,15).
Aqui se vê bem a prioridade do anúncio da iniciativa e da ação de Deus, ação salvífica e liberta-
dora, isto é, do reino de Deus. (O reino de Deus vem, se aproxima, não somos nós que o trazemos.)
Subsequentemente, embora como algo inseparável, situa-se o anúncio, a exigência da conversão; se
se quiser, a denúncia da pecaminosidade humana.
Se se mantém essa hierarquia de prioridades, liberta-se a homilia do moralismo que com frequên-
cia a sobrecarrega.
É preciso saber falar daquilo que Deus fez ontem e hoje e não só do que o homem deve fazer. Ou,
se se prefere, deve-se saber discernir a presença dinâmica, inspiradora, de Deus "em toda situação
humana, por mais precária e desesperadora, por mais órfã de presença divina que pareça.

3.3. As referências da homilia


Diante de tudo o que vimos, fica patente o porquê de a homilia ser um elemento festivo sintonizado
com a festa celebrativa, à qual traz a sua contribuição. Tal como a festa, a homilia é uma homenagem
e um canto à vida de Deus que brota no meio da sua comunidade reunida. É um abrir de lábios "in
medio ecclesiae" para contar as "mirabilia Dei" e cantar em seu louvor.
Daí a relação entre a homilia e os outros elementos da celebração: cantos, orações, símbolos. Esses
elementos, e não apenas as leituras, devem refletir-se nela; e não tanto para serem explicados como
para serem unificados em torno da palavra. A partir dessa unificação, recebem uma nova luz, da
mesma maneira que iluminam e esclarecem a palavra.
Assim, a palavra deve ser mostrada também como una. A homilia mostrará a relação existente
entre as diversas leituras.
Ora, essa unificação a que nos referimos não será esquemática, rígida, mas flexível, ondulante,
mais da ordem da associação de imagens e ideias em forma de convergências e círculos concêntricos
do que da dedução silogística que siga um curso rígido de direção retilínea.
E, por fim, esse caráter focalizador da homilia já sugere ser ele tarefa própria do presidente da
assembleia. O bispo ou presbítero, em sua condição de presidentes da assembleia litúrgica, são os
responsáveis pela unidade, unificação e coordenação da celebração eclesial, tanto no que se refere
aos membros participantes da festa litúrgica como no tocante aos elementos desta. A homilia é pre-
cisamente uma peça que tem por si só essa finalidade. Será pois incumbência daquele que exerce o
ministério da unidade, a saber, aquele que preside. Pertence ao seu âmbito; tem a mesma natureza da
função dele.
Isso não impede que os fiéis façam as suas breves contribuições homiléticas, isto é, que inter-
venham no espírito e na linha do "falar homilética", da "função homilética". Como presidente da
assembleia reunida, o presbítero (ou o bispo) deve cuidar para que essas intervenções dos fiéis na
homilia se restrinjam aos critérios expostos (que sejam testemunhos reais, e não especulações; que se
realizem com espírito de verdade; de caridade, e não de polêmica, discussão ou agressividade; que
não psicologizem nem politizem a celebração, aproveitando-se dela par à fazer projeções, introspec-
ções e desabafos intimistas, subjetivistas, propaganda, proselitismo etc.).
Mas, sobretudo, ele deverá, como presidente, recolher, re-sumir, re-unir essas diversas inter-
venções, destacando os seus pontos básicos de coincidência, bem como as suas peculiaridades, as
suas contribuições novas mais positivas.
Por último, a ele cabe velar para que as intervenções não sejam demasiado extensas nem nu-
merosas em excesso. Isso romperia o equilíbrio da celebração.

4. AS ORAÇÕES - ORAÇÃO LITÚRGICA


(Apontamentos)

- Oração em geral: Diálogo com Deus; não apenas uma espécie de monólogo nosso dirigido a Deus,
mas Deus nos fala por primeiro; nós o escutamos e lhe respondemos. A oração em geral pode ser
individual ou comunitária.

- Oração litúrgica: É, como toda oração, diálogo com Deus, mas tem características próprias:
35

1. É sempre oração comunitária. Mesmo quando proferida por uma pessoa, ela é feita em nome de
todos, o que se torna explícito no “amém” final.
Por exemplo: As orações presidenciais são oração litúrgica por excelência; a oração dos fieis: uma
pessoa faz o pedido, mas todos confirmam pelo “Senhor, escutai a nossa prece!”; os salmos: quando
o salmo é composto na 1ª pessoa do singular, é o “eu” coletivo.

N.B.: Orações propriamente no singular, como aquelas do presidente da eucaristia antes da comunhão
e ao comer o corpo e beber o sangue de Cristo não podem ser consideradas como litúrgicas.

2. Em sua forma ideal (sobretudo as orações presidenciais): são dirigidas ao Pai – por Jesus Cristo –
na unidade do Espírito Santo.
Esta regra não vale para as aclamações, nem para muitos hinos litúrgicos, como o “Glória”, o “Santo”,
o “Cordeiro de Deus”.
Pode ser também que uma oração litúrgica seja dirigida ao Espírito Santo, como por exemplo, a “Se-
quência de Pentecostes”: “Vinde ó Espírito Santo...”.
Na liturgia não nos dirigimos aos santos, nem a Maria, para fazer-lhes um pedido. As orações litúr-
gicas nas festas e comemorações dos santos são dirigidas a Deus; os santos são mencionados na 3ª
pessoa. Em ladainhas ou quando em outras orações, nos dirigimos aos santos, pedimos apenas que
intercedam por nós, junto de Deus.

3. Estrutura da oração litúrgica: Invocação, memória, pedido, conclusão.


Esta estrutura clássica aparece, sobretudo, nas orações eucarísticas e nas preces de consagração em
outros sacramentos e nas bênçãos. Também nas orações do dia.

N.B.: A conclusão corresponde à revelação do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo.

4. Outras qualidades da oração litúrgica:


a) Bíblica: tirada diretamente da Bíblia, sobretudo os salmos e cânticos bíblicos da Liturgia das Horas.
Há também orações inspiradas em passagens da Sagrada Escritura.
b) Performativa: ela realiza o que as palavras exprimem; a oração cria pelo menos uma nova relação
entre nós e Deus seja como Palavra de Deus (“ele disse – e foi feito”), seja como uma palavra, pela
qual me comprometo (por ex.: “eu lhe prometo ajuda”).
c) Eficaz: em sua dimensão anamnética, ela realiza uma abertura da pessoa, da comunidade diante de
Deus, que fez maravilhas no passado; em sua dimensão impetratória (expiatória) faz assumir o com-
promisso com a santificação de si, dos outros, do mundo no futuro; o que, dada a oferta objetiva da
salvação aqui e agora da parte de Deus, significa a eficácia da oração no presente.

N.B.: O pedido central das principais celebrações litúrgicas é o do Espírito Santo, que tem a garantia
absoluta de ser atendido (Cf. Lc 11,9-13), ao qual se podem reduzir todos os outros pedidos e que
implica um compromisso com o amor e a libertação (cf. Lc 4,18s).
36

LITURGIA FUNDAMENTAL
(PARTE 2)

O MISTÉRIO CELEBRADO AO LONGO


DOS TEMPOS
PANORAMA HISTÓRICO GERAL
DA LITURGIA

Texto revisto e atualizado


a partir dos já publicados in: CELAM. Manual de Liturgia. Volume IV. A celebração do mistério pascal.
Outras expressões celebrativas do Mistério pascal e a liturgia na vida da Igreja. São Paulo: Paulus, 2007, p.
445-518, e BUYST Ione & SILVA José Ariovaldo. O mistério celebrado: memória e compromisso I (Li-
vros Básicos de Teologia 9). Valencia/São Paulo: Siquem/Paulinas, 2003, p. 25-75.

Frei José Ariovaldo da Silva, OFM


37
INTRODUÇÃO
UMA REFLEXÃO INICIAL A PARTIR DA PALAVRA “LITURGIA”

Para estudarmos a Liturgia na história, creio ser importante iniciarmos com uma reflexão pré-
via sobre a natureza da Liturgia a partir da própria palavra “Liturgia”. Trata-se de um “aperitivo” que,
com certeza, vai nos ajudar a saborear melhor o conteúdo do nosso estudo.
1. Partamos da própria palavra “Liturgia”. É uma palavra de origem grega (leitourgía; verbo:
leitourgein; substantivo pessoal: leitourgós), incorporada em nossa lingua portuguesa. Ela provém da
junção das palavras laós [jônico; laós: ático] (= povo) e érgon (= obra/serviço/ação). Daí, traduzido
literalmente, leitourgía significa primeiramente “serviço feito para o povo”, ou, “serviço diretamente
prestado para o bem comum”. Por exemplo, alguém participa de um mutirão. Os gregos diriam: Está
fazendo uma Liturgia. Alguém, ou um grupo, põe-se a construir uma ponte ou a organizar uma festa.
Os gregos diriam: Está fazendo Liturgia. Um sacerdote põe-se a prestar um serviço no templo... Está
fazendo Liturgia7. Por que? Porque são obras, serviços, ações em favor do povo, em favor das pes-
soas, em favor da comunidade humana, em favor da vida humana.
2. Ora, nesta linha de pensamento, me vem a esta altura uma pergunta pertinente que, a meu
ver, nos conduz a reflexões posteriores muito interessantes. A pergunta é esta: Quem realizou e con-
tinua a realizar as maiores ações em favor da comunidade humana? Ou, para sermos fiéis à termino-
logia grega, quem realiza as melhores Liturgias. A experiência religiosa nos mostra que é Deus. Todo
o Antigo Testamento é um grande canto e uma imensa narrativa das ações do Senhor em favor do
povo eleito. A grande experiência religiosa do povo eleito foi precisamente a de ter pouco a pouco
descoberto - foi-lhe sendo revelado! - Deus como Aquele que, através de fatos, acontecimentos, pes-
soas, profetas, sábios etc., age na História em favor do seu povo (faz Liturgia!) e o salva. A experi-
ência do êxodo é típica e paradigmática. Deus foi sendo descoberto sempre mais intensamente, so-
bretudo pelos sábios e profetas, como Aquele que, fielmente e com eterna misericórdia (Sl 135),
opera a salvação do povo. Um Deus libertador, solidário, misericordioso, fiel, um Deus perdão, um
Deus que ama a vida do seu povo, um Deus que tudo faz para que o povo tenha salvação, isto é, vida
plena.
3. Desse jeito Deus é! Permanente ação (serviço) em favor da vida do seu povo: Liturgia! A
palavra “Liturgia” me faz lembrar que Deus é deste jeito. Então, por que não dizer que Liturgia é o
próprio jeito de Deus como ação amorosa em favor da humanidade? E daí, por que não dizer que o
específico jeito de ser de Deus é Liturgia? Por que não dizer que Deus é a perfeição da Liturgia, a
própria fonte de toda Liturgia?8. Esta Liturgia - com maiúsculo! - a gente celebra.
4. Interessante que esta aproximação teológica de Liturgia “bate” perfeitamente com a visão
profética de culto. Se Deus é assim, então nossa melhor “homenagem” a Deus é fazer o que ele faz,
realizar as suas obras. E as festas, ritos e sacrifícios? São exatamente para manter acesa a memória
do operar de Deus e nosso consequente compromisso com a Liturgia divina, em vista do bem de
todos. Caso contrário, festas, sacrifícios, uso da arca, existência do templo, tornam-se vazios. Deixam
de ser um lugar onde o Deus vivo da história se encontra com seu povo.
5. O jeito de Deus como perfeição da Liturgia tornou-se bem claro para nós na plenitude dos
tempos, isto é, com Jesus Cristo e o seu mistério pascal. Deus Pai nos prestou este grande serviço:
Ele nos deu o Filho. Aí está: A Liturgia do Pai nos oferece o Filho! E o Filho vive a Liturgia do Pai
entre nós, porque, como sabemos, “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e
dar a própria vida para a salvação de muita gente” (Mc 10,45). O gesto de Jesus de lavar os pés dos
discípulos é um exemplo e um sinal do modo de ser litúrgico de Jesus a ser imitado por todos nós (cf.
Jo 13,1-17).
6. Mas é sobretudo na paixão, morte e ressurreição de Jesus que aparece de maneira acabada
a Liturgia divina. Feito radicalmente servo de todos e exaltado como Senhor (cf. Fl 2,5-11), Jesus

7 Interessante que o próprio apóstolo Paulo e a carta aos Hebreus usam o termo “Liturgia” neste sentido de serviço em
favor dos outros. Epafrodito presta serviços aos cristãos de Jerusalém, recolhendo esmolas para eles (2Cor 9,12). Os anjos
servem a Deus em favor dos homens (Hb 1,7.14).
8
Cf. CORBON Jean. Liturgia de Fonte. São Paulo: Paulinas, 1991.
38
triunfou sobre o pecado e a morte, ressuscitando-nos para a vida eterna (cf. 1Cor 15,12-28). Ima-
gine que obra ele realizou! A saber, libertou-nos da escravidão do pecado e da morte, fazendo-nos
passar para a liberdade de filhos e filhas reconciliados de Deus. É a máxima obra (Liturgia) em favor
da vida da humanidade. No mistério pascal, sempre atual porque Cristo está vivo, vislumbramos a
maior e mais inigualável Liturgia! Pois resolveu-se definitivamente para nós o angustiante problema
da morte. Instaurou-se uma nova ordem no mundo e no cosmos, que nós chamamos Reino de Deus:
Que obra pública grandiosa! Que Liturgia! A maior de todas!... Esta Liturgia a gente celebra.
7. Então, por que não dizer que Liturgia é a própria vida de Jesus, vivida no amor até as
últimas conseqüências em favor do Reino da vida? Presença do jeito litúrgico de Deus entre nós. E
daí, por que não dizer que em Jesus vemos a perfeição da Liturgia divina? Por que não dizer que em
seu mistério pascal se nos dá a fonte da Liturgia? Por isso, com a carta aos Hebreus podemos procla-
mar que Jesus Cristo é o liturgo por excelência (Hb 8,2.6; 10,11-12). Esta Liturgia a gente celebra.
8. Ora, de tudo o que vimos até aqui, você já pode deduzir o que pode significar celebrar a
Liturgia, qual o sentido de uma celebração litúrgica cristã. A palavra “celebrar” vem do adjetivo
“célebre”. Você sabe o que é “célebre”! Quer dizer “importante, inesquecível, irrenunciável, famoso,
conhecido”. Transformando o adjetivo “célebre” em verbo ativo, temos então “celebrar”. Celebrar,
portanto, significa “tornar célebre, fazer memória de algo muito importante”. Algo muito importante
e decisivo se torna presente pela memória que dele fazemos. E como se dá isso? Através de todos os
nossos sentidos, usando palavras, símbolos, expressões corporais, gestos e ações simbólicas, música
etc.
9. E celebrar a Liturgia? Celebrar a Liturgia significa: Tornar célebre, fazer solene memória
da Liturgia divina sempre viva e atual no meio de nós (cf. supra). Basta lembrar que o próprio Cristo,
na última ceia, nos deu esta ordem: “Façam isto em memória de mim” (1Cor 11,24-25; Lc 22,19).
Quer dizer: “Por esta ação eucarística, vocês vão 'tornar célebre' (sempre atual) a Liturgia eterna-
mente viva que vocês estão percebendo em mim e em vocês mesmos, reunidos em meu nome”. O
memorial da Liturgia divina se dá também nos outros sacramentos, nos sacramentais, no ofício di-
vino, nas celebrações da Palavra e em tantas outras celebrações em nome do Senhor. Numa palavra:
A Liturgia divina se comunica a nós pela memória que dela fazemos. E como isto se dá? De maneira
sensível (“mediante sinais sensíveis”: SC 7), a saber, em comunhão com todos os nossos sentidos,
valorizando as expressões simbólicas e culturais da comunidade humana que celebra.
10. Daí segue que celebrar a Liturgia hoje significa: no Espírito que nos foi dado, fazer ex-
periência comunitária da presença viva da Liturgia divina (mistério pascal) na celebração litúrgica9.
Na ação celebrativa que realizamos em nome do Senhor, fazemos a experiência da presença da Litur-
gia divina como núcleo do evangelho fermentando a nossa História, e que nos convoca a um renovado
compromisso com o Reino.
11. Por isso, chamo a Liturgia celebrada de “a melhor evangelização”, pois ali é o próprio
Senhor vivo e ressuscitado - o Libertador: Liturgia viva! - quem fala, ensina, comunica-se com seu
povo e o liberta. Explicitar, na celebração litúrgica, esta presença viva da Liturgia divina comuni-
cando seu amor, da melhor maneira possível, com os elementos da nossa cultura, isto é, com a nossa
cara, o nosso jeito, eis um grande desafio. Vice-versa: A Liturgia divina deseja comunicar-se – dar-
se! – a nós, da maneira mais humana e completa possível, como outrora na forma cultural judaica, no
judeu Jesus de Nazaré, agora também na forma litúrgico-celebrativa brasileira. O desafio está em
discernirmos uma forma litúrgico-celebrativa tal que nela possamos realmente, como comunidade
cristã com rosto de Brasil, sentir a presença viva e atuante da Páscoa de Jesus Cristo (Liturgia!),
ontem, hoje, e sempre.

Para início de conversa


1. Experimente uma vez fazer um levantamento de serviços prestados em favor das pessoas
na sua comunidade, ou em qualquer comunidade. Faça-o (quem sabe) junto com outras pessoas, numa

9
O grande teólogo liturgista Salvatore Marsili chama a Liturgia celebrada de “momento histórico da salvação” (cf. NEU-
NHEUSER Burkhard. & outros, A Liturgia, momento histórico da salvação (= Anámnesis 1). São Paulo: Paulinas, 1987,
p. 37ss), e de “primária experiência espiritual cristã” (título do seu artigo. In: GOFFI Tulio – SECONDIN Bruno. Orgs.
Problemi e prospettive di Spiritualità. Queriniana, Brescia 1983, p. 249-276).
39
reunião de grupo, por exemplo. E você vai constatar uma variedade imensa de serviços, os mais
diversos. Por exemplo: mutirões; inúmeros serviços voluntários na área da saúde, assistência social,
educação etc.; os mais diferenciados serviços em favor da paz, da segurança, contra a violência; os
mais diferenciados serviços prestados pelas ONGs; enfim, todo tipo de serviço que venha garantir
vida e dignidade às pessoas... Você mesmo(a) pode completar a lista.
2. Agora, veja que coisa interessante! Os gregos, antigamente, chamavam a isso tudo que se
faz de bom para as pessoas, de “Liturgia”. Isso mesmo! Liturgia! Os gregos usavam a palavra “Litur-
gia” para identificar os mais diferentes tipos de serviços que se prestam em favor da comunidade
humana. Alguém está cuidando da segurança? Os gregos diriam: Está fazendo uma “Liturgia”, isto
é, um trabalho benéfico em favor das pessoas. A todo trabalho benéfico em favor do povo, os gregos
chamavam de “Liturgia”.
3. Experimente agora retomar e ampliar a lista de “Liturgias” que são feitas pelo Brasil afora,
pelo mundo afora. Provavelmente vai se surpreender com a quantidade de “Liturgias” que são reali-
zadas... E mais, de repente você começa a perceber que “Liturgia”, em primeiro lugar, tem a ver
diretamente com a vida da gente, com a nossa maneira de servir ao próximo.

A “Liturgia” de Deus
4. Vamos um pouco mais fundo na nossa reflexão. Lendo a Bíblia, podemos facilmente cons-
tatar que existe alguém muito mais experiente na arte da Liturgia, isto é, na arte de servir o povo. Este
alguém é Deus! A criação, toda ela, é uma esplêndida obra de Deus em favor da humanidade, uma
imensa “Liturgia”. Como também é uma maravilhosa “Liturgia” todo o “trabalho” que Deus fez no
Antigo Testamento para que o povo voltasse para o caminho da vida, da justiça e da paz: Salvou-o da
escravidão, fez alianças com o povo, constituiu líderes e chamou profetas para o povo, “assentou” o
povo numa terra, e assim por diante. E, a certa altura da História, nos prestou um serviço ainda maior:
Enviou-nos o seu próprio Filho que se tornou para nós o Caminho, a Verdade e a Vida, o nosso
Salvador, a garantia mais certa daquela vida plena que todos nós sonhamos.
5. Lendo os evangelhos, percebemos que toda a vida de Jesus foi uma vida só de serviço em
favor das pessoas ou, como diriam os gregos, uma grande “Liturgia”. Ele curava os doentes, conso-
lava as pessoas, acolhia os pecadores, abençoava as crianças, denunciava as tiranias opressoras da
vida, anunciava um novo ano da graça de viver na alegria da liberdade... Esta “Liturgia” de Jesus
atingiu seu ponto alto quando ele chegou a nos entregar sua própria vida e, ressuscitando, nos garantiu
o resgate total da nossa vida que havíamos perdido. Na páscoa (passagem) de Jesus da morte para a
vida, Deus realizou esta esplêndida “Liturgia”, isto é, esta esplêndida obra em favor da humanidade,
a saber: garantiu-nos a vitória sobre o pecado e a morte.
6. E mais, no fim das contas, Deus ainda nos deu o dom do Espírito (outra grande “Liturgia”-
obra em favor da humanidade!), pelo qual nos tornamos corpo de Cristo, filhos de Deus, família de
Deus, povo de Deus, igreja, raça escolhida e nação santa, habitação do Altíssimo Senhor, colabora-
dores diretos do Criador no cuidado do paraíso chamado planeta terra.

Esta “Liturgia”, a gente celebra – Ela se torna “célebre”


7. Esta “Liturgia”, isto é, toda esta obra maravilhosa de Deus, a gente a celebra. Aliás, a cria-
ção toda é uma imensa memória celebrativa da obra do Criador. E Jesus, na última ceia, pediu para
celebrar a obra maior ainda, a da salvação, quando disse: “Façam isso em memória de mim”. Façam
isso, quer dizer, peguem o pão e o vinho, dêem graças e, depois, comam e bebam: é o meu corpo
entregue em favor vocês e o meu sangue derramado em favor de vocês. Em outras palavras, façam
isso em memória da “Liturgia” que o Pai realizou por mim em favor de vocês. E os cristãos obede-
ceram ao Senhor. Até hoje vêm fazendo o que o Senhor mandou, até hoje vêm realizando a santa ceia
em memória dele e da obra que ele realizou, fazendo a experiência de comunhão com o Senhor da
vida.
8. Mas a “Liturgia” divina celebrada pelos cristãos não se limita só na celebração da Ceia do
Senhor (que depois chamaram de Missa), embora ela seja central. A “Liturgia” se alarga para inúme-
ras outras maneiras de celebrá-la, pelos sacramentos em geral, pela oração do Ofício Divino (oração
dos salmos), pela prática da caridade etc.
40
9. E mais, a maneira de celebrar a “Liturgia” tem variado conforme os tempos, as mentali-
dades, as culturas, ora de maneira mais fiel ao que Jesus quis e os apóstolos nos transmitiram, ora de
maneira menos fiel.
10. Por exemplo, em grande parte do primeiro milênio da era cristã a “Liturgia’ foi celebrada
mais centrada no mistério pascal do Senhor, com a participação bem ativa, plena, comunitária dos
cristãos com sua cultura. Já no segundo milênio a “Liturgia” (isto é, a obra do Senhor em favor do
povo) foi celebrada esquecendo-se da centralidade do mistério pascal, enfatizando mais a vida dos
santos, as devoções, e com muita pouca participação ativa, plena, comunitária do povo nas ações
litúrgicas.
11. Só recentemente, a partir da década de 1960, com o Concílio Vaticano II, é que a Igreja
católica romana acordou e percebeu que estávamos longe do sonho de Jesus e da experiência dos
apóstolos em termos de celebração da “Liturgia”. E o que fez? Desencadeou um enorme trabalho no
sentido de resgatar a rica tradição do primeiro milênio, que havíamos perdido por muitos e muitos
séculos.
12. A Igreja resgatou a “Liturgia” celebrada de forma mais participativa, como um direito e
obrigação de todos. Resgatou a importância de sentir Deus falando quando é proclamada a sua Palavra
durante a celebração, inclusive quando se comentam as Escrituras através da homilia. Resgatou a
importância dos ministérios na celebração. Resgatou a importância da participação plena na “Litur-
gia” pela sagrada comunhão, e não pura e simplesmente pela adoração ao Santíssimo como se fazia
na Idade Média para cá.

Enfim...
13. Eis aqui uma pequena reflexão inicial servindo como uma espécie de alerta, no sentido
que, sendo a Liturgia uma paixão do tamanho de Deus, ainda precisa ser descoberta para melhor ser
vivida. Afinal de contas, este é também um sonho do Concílio Vaticano II, através do seu documento
sobre a Sagrada Liturgia, 40 anos já passados.

A LITURGIA NA HISTÓRIA

O desenvolvimento da Liturgia na história pode ser comparado ao crescimento de uma árvore.


Suas primeiras raízes estão lá na comunidade cristã primitiva. Antes ainda: na Liturgia hebraica. Aos
poucos, com o passar dos tempos e no contato com novas épocas e culturas, esta árvore produz novos
ramos, liberta-se de outros, e vai crescendo em grande variedade de detalhes, nutrida pelo único ter-
reno vital, Jesus Cristo.
Pode ser comparado também a um edifício antigo - um castelo, um mosteiro, uma catedral
etc., - cuja construção original, com o passar dos tempos, sofreu notáveis transformações ou acrésci-
mos e novas organizações internas. Muitas vezes, nem dá para reconhecer a forma original à primeira
vista, a não ser mediante um estudo aprofundado, de onde surgem também critérios para avaliar se as
mudanças que se deram correspondem ou não à forma e à intenção originais da obra, e como deverão
ser feitas eventuais reformas10.
Vale lembrar o que diz a Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia
(SC), n. 21, do Concílio Vaticano II: “A Liturgia consta de uma parte imutável, divinamente institu-
ída, e de partes suscetíveis de mudança. Estas, com o correr dos tempos, podem ou mesmo devem
variar, se nelas se introduzir algo que não corresponda bem à natureza íntima da própria Liturgia, ou
se estas partes se tornarem menos aptas”.

Uma análise atenta da história dos ritos litúrgicos permite ver com facilidade tudo o que, ao
longo dos tempos, permaneceu praticamente inalterado (não tanto em sua expressão externa,
mas em seu sentido profundo): isso é que deve ser conservado e transmitido às gerações vin-
douras. E permite também ver a grande quantidade de expressões que foram mudando de
acordo com as condições variáveis dos tempos e lugares: esta constatação nos convence sobre

10
ADAM Adolf. Corso di Liturgia, p. 20.
41
a necessidade de que a Liturgia mude e se adapte continuamente às características de cada
época e de cada país11.

Vamos, pois, realizar um passeio para dentro do mundo da história da Liturgia, enfocando
de preferência a Liturgia romana. Vamos verificar, numa visão panorâmica geral, como o mistério
pascal foi celebrado ao longo dos tempos. Fá-lo-emos não por mera curiosidade ‘arqueológica’. Mas
para mergulharmos em nossas origens e, assim, obtermos luzes e força para nos lançarmos em dire-
ção ao futuro. Pois, como se diz, “quem perde as origens, perde a identidade” e, para dar um salto
para frente, normalmente temos que retroceder para tomar impulso. O sucesso do imenso trabalho
de reforma litúrgica que ainda temos pela frente, não obstante os quase 50 anos já passados do Con-
cílio Vaticano II, depende também (e muito) de um profundo e nítido conhecimento da história da
Liturgia.
A presente obra pretende ser uma pequena contribuição no sentido de ajudar na obtenção
deste conhecimento, com vistas à continuidade da reforma, tanto para os que trabalham na pastoral
litúrgica como para os que atuam diretamente nas ações celebrativas do mistério de Cristo. Assim,
compreendendo por que nós celebramos a Liturgia do jeito que celebramos hoje, possamos chegar
cada vez mais perto da realização daquele grande sonho do Concílio Vaticano II: “Deseja ardente-
mente a Igreja que todos os fiéis sejam levados àquela plena, cônscia e ativa participação das cele-
brações litúrgicas, que a própria natureza da Liturgia exige e à qual, por força do batismo, o povo
cristão... tem direito e obrigação” (SC 14).
Dividimos nossa incursão para dentro da história da Liturgia em sete blocos (enfoques prin-
cipais) ou capítulos. Num primeiro passo mergulhamos nos primórdios do cristianismo, para de lá
colhermos elementos sobre como e com que espírito os cristãos dos três primeiros séculos celebra-
ram a Liturgia. Em seguida veremos como a Liturgia, adaptada aos diferentes povos com sua índole
e cultura, alcança sua fase de estruturação plena nos séculos IV a VIII. Num terceiro capítulo (im-
portante para compreendermos as origens remotas de nossa cultura religiosa latino-americana), ve-
remos como a Liturgia foi celebrada na Idade Média (séc. IX a XV). O quarto capítulo, igualmente
importante para compreendermos nossa cultura religiosa, trata da reforma litúrgica do concílio de
Trento e suas consequências (séc. XVI em diante). Dedicamos um quinto capítulo à Liturgia que o
Brasil e América Latina herdaram, lembrando inclusive algumas adaptações feitas sobre essa ‘he-
rança’. O sexto capítulo debruça-se sobre o grande movimento de reforma da Liturgia a partir dos
inícios do século XX: Trata-se do chamado “movimento litúrgico”, que teve sua pré-história no
século XVIII (por influência do Iluminismo) e no século XIX (por influência indireta do Roman-
tismo, suscitador do movimento de “restauração católica”). Enfim, o sétimo capítulo trata da reforma
litúrgica do Concílio Vaticano II e suas subsequentes repercussões básicas na América Latina e no
Brasil.
Fazemos votos que este panorama histórico geral sobre o mistério celebrado ao longo dos
tempos possa realmente contribuir para dar continuidade à reforma litúrgica do Concílio Vaticano
II, de forma criteriosa, sobretudo na nova fase que temos pela frente, a saber, a da inculturação da
Liturgia entre os povos deste continente.

CAPÍTULO I
A LITURGIA NOS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO

Falamos da celebração da Liturgia, digamos, em seu estado germinal, embrionário, dos pri-
mórdios do cristianismo: primeiro no período apostólico (séc. I), depois no período caracterizado
como “era dos mártires” (séc. II e III). A Liturgia desses três primeiros séculos, do ponto de vista
histórico, certamente tem muito a nos ensinar em termos de celebração litúrgica. Vale a pena conferir.

11
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 6.
42
1. A LITURGIA NO PERÍODO APOSTÓLICO

Os escritos do NT não trazem nenhuma descrição completa sobre como Jesus e os primeiros
cristãos celebravam a Liturgia. O que existem são alusões, indicações, detalhes e indícios cá e lá.
Mesmo assim, com os dados disponíveis, podemos tirar algumas conclusões sobre a Liturgia de Jesus
e seus primeiros discípulos.

1.1. Em continuidade com o culto judaico...

Às vezes, desavisadamente, poderíamos pensar que Jesus e seus primeiros discípulos tinham
um comportamento avesso e até hostil à Liturgia judaica. Muito pelo contrário!...
Devemos ter presente que Jesus e os seus primeiros seguidores eram judeus. Herdeiros, por-
tanto, de uma longa, rica e bem elaborada tradição cultual. Como tais, e como todo judeu piedoso,
não deixaram de participar normalmente das celebrações litúrgicas da religião do seu povo (templo,
sinagogas, festas, orações).
Isso significa que, em termos cultuais, houve uma natural continuidade entre o judaísmo e o
movimento cristão emergente. Os evangelhos trazem abundantes exemplos a respeito.

Os evangelhos nos mostram Jesus como filho de uma família que vive segundo a lei cultual
de Moisés (cf. Lc 2,21-22.41-42). Adulto, no início de sua atividade missionária ele se faz
“batizar” por João (Lc 3,2; Mt 3,13ss; Mc 1,9ss). Tinha por “costume” frequentar as sina-
gogas, ensinando e tomando parte ativa no culto sinagogal (cf. Mc 1,21; Mt 4,23; Lc 4,17-
21). Frequentemente demora-se no templo, centro e expressão máxima do culto judaico (cf.
Jo 2,13; 5,1; 7,2-14; 10,22-23 etc). (Mas com um detalhe: os evangelhos não dizem que
Jesus ia lá para participar das cerimônias sagradas - sacrifícios. Sua presença no templo
parecia ter outra finalidade: passar ao povo uma mensagem nova e renovadora trazida do
Pai). Membro de um povo tradicionalmente orante, Jesus passa noites em oração (Lc 6,2)
e ensina seus discípulos a rezar (Lc 11,1-4). Celebra as tradicionais festas religiosas do seu
povo. Exemplo típico é a reunião que ele faz com seus discípulos para celebrar a ceia pascal
(cf. Mc 14,12-25; Mt 26,17-29; Lc 22,7-20; Jo 13,1ss). No seio de sua família, deve ter
pronunciado muitas das orações que todo judeu piedoso reza todo dia. Por exemplo, ele
conhece e lembra o “Shema Israel” (“Ouve, Israel”: tradicional profissão de fé que todo
judeu faz na oração da manhã) (Mc 12,29). Conhece e utiliza as célebres “louvações” (be-
rakoth) (Mc 6,41; 8,6; 14,22-23), chegando a transformá-las em uma de suas orações (cf.
Mt 11,25-27).
Quanto aos primeiros discípulos de Jesus, não podia ser diferente. Seguindo os passos do
mestre, continuavam praticando normalmente o culto judaico (no templo, nas sinagogas,
nas orações diárias, nas festas12.

1.2. Nova orientação

Jesus e os apóstolos não criaram uma Liturgia totalmente nova. Isto é, foi sobre formas cultu-
ais já existentes que procuraram encarnar o novo “culto em espírito e verdade” inaugurado por Jesus
(cf. Jo 4,23) . Aliás, Jesus mesmo declarou que não veio para abolir a lei e os profetas mas para dar-
lhes cumprimento (Mt 5,17). Não veio para romper com a Liturgia dos pais, mas para aperfeiçoá-la.
E ele o fez dando nova orientação a certos ritos judaicos já existentes.
A nossa Liturgia cristã, portanto, em seus elementos rituais mais originários, significa sim-
plesmente a continuidade da Liturgia hebraica. Porém, - e isto é importante! - a “Liturgia hebraica”
vivida e celebrada por Jesus e sua primeiríssima comunidade assume agora um novo referencial.
Carrega-se de um novo sentido. O referencial é a própria novidade Jesus de Nazaré, o Cristo Salvador.
Assim, a partir do mistério de Cristo, aconteceu uma “cristianização” dos elementos rituais herda-
dos/“adotados” do judaísmo, emergindo daí uma “Liturgia cristã”. A última ceia é um exemplo típico

12
Cf. NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. Triacca
(Orgs.). Dicionário de Liturgia, p. 523.
43
de re-interpretação “cristã” da ceia pascal judaica: celebração memorial não mais do êxodo, mas
da passagem de Cristo deste mundo ao Pai. “Isto é o meu corpo entregue..., este é o sangue da nova
aliança..., fazei isto em memória de mim” (cf. Lc 22,19-20), ordenou Jesus “naquela ceia derradeira”,
como lembramos na Oração Eucarística.
Uma simples listagem de elementos rituais de origem judaica que foram “cristianizados” em
nossa Liturgia cristã ilustra o que acima afirmamos. Vejam quantos elementos herdamos do juda-
ísmo, isto é, que foram “cristianizados” pelo movimento cristão:
 A organização da Liturgia da Palavra da missa (com leituras bíblicas, canto dos salmos,
homilia): vem da Liturgia judaica celebrada aos sábados nas sinagogas.
 A oração eucarística da missa: foi organizada a partir das “louvações” (orações de lou-
vor) que os judeus faziam durante as refeições familiares e nas sinagogas, exaltando os
benefícios da criação e da providência divina sobre Israel.
 Os pedidos da oração dos fiéis na missa: inspiram-se no modelo das dezoito bênçãos com
as quais se iniciava a Liturgia sinagogal.
 A semana, com o costume de dedicar um dos sete dias à reunião litúrgica (os cristãos a
deslocaram do sábado para o domingo, em memória da Ressurreição), as festas de Pás-
coa, Pentecostes e o próprio conceito de “ano litúrgico” (com uma série de celebrações
religiosas que sacralizam o tempo profano), o culto dos mártires: tudo isso herdamos do
judaísmo.
 Alguns elementos da oração cotidiana (oração da manhã e da tarde: Laudes e Vésperas;
o ternário das horas: Terça, Sexta, Noa; a contagem do dia litúrgico de tarde a tarde, isto
é, de véspera a véspera): herdamos do judaísmo.
 O costume de iniciar as orações litúrgicas com a fórmula invocatória “Corações ao alto”,
“Oremos”, “Demos graças”: herdamos do judaísmo.
 A doxologia, isto é, o costume de terminar a oração com um breve louvor a Deus, à ma-
neira do “Glória ao Pai”; o canto dos serafins (Is 6,3: “Santo, santo, santo”) usado pelos
judeus na oração da manhã: herdamos do judaísmo.
 Aclamações litúrgicas proclamadas pela comunidade judaica, como “Amém”, “Aleluia”,
“Hosana”, “Pelos séculos dos séculos”: herdamos do judaísmo.
 As chamadas orações “paradigmáticas”, mediante as quais, fazendo alusão a grandes
exemplos (paradigmas) da história da salvação, pede-se a Deus ajuda e salvação: herda-
mos do judaísmo.
 A imposição das mãos, um dos gestos mais importantes da Liturgia cristã, bem como a
unção dos enfermos: herdamos do judaísmo.
 É todo um conjunto riquíssimo de elementos rituais cristãos originários do culto judaico,
o que demonstra o quanto nossa Liturgia está enraizada na tradição cultual do AT13.

1.3. Aspectos de descontinuidade


Por outro lado, não obstante a significativa continuidade na passagem de elementos cultuais
do judaísmo para o cristianismo, constatamos também aspectos fundamentais de descontinuidade,
distanciamento, e até de ruptura, entre a Liturgia ‘cristã’ emergente e Liturgia judaica.
Os evangelhos testemunham que Jesus, assíduo frequentador da Liturgia do seu povo, demons-
tra uma atitude profundamente crítica em relação à ordem cultual da religião judaica: em relação ao
lugar sagrado (templo), ao tempo sagrado (sábado) e à pessoa sagrada (sacerdote). Não que ele fosse
contra as instituições cultuais em si... Seguindo a linha dos profetas, o que ele questiona radicalmente
são as práticas cultuais meramente exteriores, vazias, isto é, sem compromisso com a vida, sem com-
promisso com o essencial da Lei, que é a lei do Amor. Em outras palavras, o que Jesus quer é resgatar
e garantir o fundamento do culto que se havia esquecido: o Amor que se desdobra na prática da
justiça, da misericórdia, do perdão (cf. Mt 9,13; Os 6,6)14. Diante da samaritana ele mesmo proclama
que “os verdadeiros adoradores (a começar por ele mesmo!) hão de adorar o Pai em espírito e verdade
e são estes os adoradores que o Pai deseja” (Jo 4,23).
13
KLAUSER Theodor. Breve historia de la Liturgia occidental I..., p. 6.
14
Cf. CASTILLO José Maria. Símbolos de libertad, p. 31-80 (“Jesús y la práctica religiosa establecida”).
44

Adorar a Deus em espírito e verdade quer dizer, na perspectiva de Jesus, colocar o centro
do culto não no cumprimento minucioso de uma série de normas externas mas no ofereci-
mento interno do amor e a obediência a Deus. Os homens e mulheres dão culto a Deus na
medida em que fazem de suas vidas uma oferenda, um ‘sacrifício’ de amor ao Pai cum-
prindo sua vontade...15.

Também os discípulos de Jesus, seguindo os passos do mestre e, sobretudo, impregnados da


experiência pascal, comportaram-se com grande liberdade frente à religião judaica. Não só adotaram
elementos da tradição cultual de sua religião, mas também - e não sem eventuais tensões - distancia-
ram-se de uns e romperam com outros.
Após a ascensão de Cristo, eles continuaram de certa maneira vinculados ao templo, partici-
pando das orações que nele se faziam. Porém, evitavam participar dos sacrifícios rituais. E tinham
suas razões para isso: Como judeus “cristianizados”, estavam convictos de que a morte-ressurreição
de Cristo havia superado os sacrifícios da Lei antiga. Consequentemente, o templo também perdeu
sua razão de ser, sendo substituído pelo verdadeiro Templo que agora é Cristo. Isso atiçou a ira dos
zelosos guardiães do lugar santo, o que desencadeou o martírio de Estêvão e a primeira perseguição
contra a igreja de Jerusalém (cf. At 7,54-8,3). Assim, o vínculo dos cristãos com o templo foi desa-
parecendo pouco a pouco, sumindo enfim por completo após a destruição deste pelas tropas romanas
no ano 70 d.C. Consequentemente, o autêntico culto cristão foi se formando e se organizando em
reuniões celebradas em casas particulares.

A partir do mistério de Cristo, processa-se na primitiva comunidade cristã uma paulatina


superação da imagem do espaço sagrado (o templo), do tempo sagrado (o sábado) e da
pessoa sagrada (o sacerdote). A partir de Cristo, o lugar da morada de Deus é antes de tudo
o espaço humano; o tempo sagrado é o dia que não tem ocaso, Cristo, senhor do sábado; o
sacerdócio cristão é um “sacerdócio existencial” e não ritual16.

Outro dado importante: num inusitado espírito de abertura para fora do judaísmo, os apóstolos
decidiram liberar os pagãos convertidos ao cristianismo do peso da circuncisão e da lei mosaica (cf.
At 15,7-11).

1.4. Criação de formas próprias para celebrar a Liturgia


Dentro desse clima de liberdade, e também de alegria vivida a partir da experiência do mistério
de Cristo, sem renegar as raízes judaicas, e até mesmo em sintonia com elas, mas com senso crítico,
a Igreja apostólica soube também criar formas próprias de culto.
Por exemplo, quando o NT se refere a algum tipo de celebração litúrgica, ele usa normalmente
os verbos “reunir-se“ e “congregar-se” (cf. Mt 18,20; 1Cor 11,17.20.33-34; 14,23.26; At 4,31; 20,7-
8; Hb 10,25; Tg 2,2 etc.). “Reunir-se junto”, “congregar-se” (aspecto comunitário!): é o que caracte-
riza a Liturgia dos primeiros cristãos.
E mais: Faziam as “reuniões“, como já dissemos, em casas particulares. Conforme a narração
dos Atos dos Apóstolos, os primeiros cristãos “partiam o pão em casa, tomando as refeições com
alegria e simplicidade de coração” (At 2,46). Trata-se de reuniões tanto para um “ágape” (refeição
fraterna) como também para uma “ceia eucarística” (cf. 1Cor 11,17-34), normalmente celebrada den-
tro de uma refeição (herança judaica!). Junto com a refeição tinha lugar o “ensinamento dos apósto-
los”, a “comunhão fraterna” e as “orações” (cf. At 2,42.47; 4,24-31; 12,5). Uma oração que, nestas
“reuniões”, certamente nunca faltava era a “oração de bênção” (oração eucarística: ação de graças),
de origem judaica, mas agora com conteúdo e motivo cristão (pascal cristão!).
Outra novidade: Introduziram o costume de realizar as reuniões litúrgicas “no primeiro dia da
semana”. Inclusive deram um nome a esse dia: “dia do Senhor” (domingo), por ser o dia memorial
da ressurreição do Senhor (cf. 1Cor 16,2; At 20,7; Ap 1,10). A celebração da Páscoa anual vai surgir
mais tarde. Mas a consciência de uma Páscoa anual já é sentida quando Paulo, ao falar do domingo

15
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 7-8.
16
Cf. CASTILLO José Maria. Símbolos de libertad, p. 31-80 (“Jesús y la práctiva religiosa establecida”).
45
da Páscoa, proclama: “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1Cor 5,7). Quer dizer: A imolação de
Cristo substituiu a do cordeiro da Páscoa anual hebraica.
A celebração do batismo “no nome de Jesus Cristo” (At 2,38), o batismo “no Espírito Santo”,
anunciado por João Batista (cf. Mt 3,11; Mc 1,8; Lc 3,16; Jo 1,33) e pelo próprio Jesus a Nicodemos
(Jo 3,3-5): é outra novidade.
Enfim, numa palavra, o novo culto “em espírito e verdade”, inaugurado por Jesus Cristo, onde
o compromisso amoroso com a vida das pessoas está acima de tudo, acontece nas reuniões litúrgicas
dos primeiros cristãos em clima de simplicidade extraordinária, de vitalidade espontânea, de alegria,
seja seguindo formas cultuais judaicas daquele tempo, seja rompendo com outras, seja criando novas.
E para garantir a “edificação da comunidade” (1Cor 14,12), os dirigentes têm o cuidado de não deixar
introduzir nas reuniões desvios nem desordens contra o espírito comunitário.
Fica claro, pois, que “a comunidade apostólica, embora não tendo ainda uma regulamentação
estável da Liturgia, já dispunha de algumas formas litúrgicas próprias. Destaca-se a importância das
Reuniões de Oração, do Batismo e da Eucaristia”17.

Fatores essenciais que contribuíram para a formação e o desenvolvimento da Liturgia no pe-


ríodo apostólico:
 a mensagem e atividade de Jesus;
 o mistério de sua morte e ressurreição;
 a consciência da presença do Senhor entre os seus; a ação do Espírito Santo18.

2. A LITURGIA NA ERA DOS MÁRTIRES

No período caracterizado como “era dos mártires” (séc. II e III), os cristãos procuram consci-
entemente se manter no âmbito da tradição litúrgica judaica, mas com orientação radicalmente nova,
é claro. Ao mesmo tempo, herdeiros do monoteísmo judaico, eles rejeitam o politeísmo e lutam contra
os cultos pagãos, como no tempo dos apóstolos (cf. 1Cor 10,21-22). Não obstante isso, com a entrada
definitiva do Evangelho de Cristo no mundo greco-latino, a Liturgia também vai se moldando com
elementos culturais próprios dos povos mediterrâneos. A Bíblia continua a ser a principal fonte de
inspiração para compreender e elaborar a Liturgia no contato com as novas culturas.

2.1. Esforço em permanecer no âmbito da tradição judaica


O cristianismo dos três primeiros séculos continua mantendo um forte vínculo com a
tradição litúrgica judaica, o que pode ser detectado precisamente em orações compostas neste perí-
odo.
Por exemplo, as orações de S. Clemente Romano19 e as orações “eucarísticas” da Didaqué ou
“Doutrina dos doze apóstolos”20, do final do primeiro século, são composições tipicamente hebraicas
na sua forma, mas agora com conteúdo cristão, focalizando Jesus, o servo de Deus.

Orações “eucarísticas” (de ação de graças) da Didaqué (séc. I):


Sobre o cálice: “Nós te bendizemos (agradecemos), nosso Pai, pela santa vinha de Davi, teu
servo, que tu nos enviaste por Jesus, teu servo; a ti, a glória pelos séculos! Amém.
Sobre o pão a ser repartido: “Nós te bendizemos (agradecemos), nosso Pai, pela vida e pelo
conhecimento que nos revelaste por Jesus, teu servo; a ti, a glória pelos séculos! Amém.

17
AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 29.
18
Ibid, p. 30.
19
Carta de S. Clemente Romano aos Coríntios, 59-61 (=Coleção Fontes da Catequese 3). 3ª ed., Petróplis, Vozes, 1984,
p. 60-63.
20
Trata-se do mais antigo catecismo cristão que conhecemos. É de final do século I e início do século II. Cf. Didaqué.
Catecismo dos primeiros cristãos, 4ª ed., Petrópolis: Vozes, 1983; cf. também Didaqué. O catecismo dos primeiros
cristãos para as comunidades de hoje, 7ª ed. São Paulo: Paulus, 1989; cf. ainda La Didajé (= Cuadernos Phase 75).
Barcelona: Centre de Pastoral litúrgica, 1996, p. 5-22.
46
E, depois da ceia: “Nós te bendizemos (agradecemos), Pai Santo, por teu santo nome, que
tu fizeste habitar em nossos corações, e pelo conhecimento, pela fé e imortalidade que tu nos
revelaste por Jesus, teu servo; a ti, a glória pelos séculos. Amém.
Tu, Senhor, Todo-poderoso, criaste todas as coisas para a glória de teu nome e, para o gozo
deste alimento e a bebida aos filhos dos homens, a fim de que eles te bendigam; mas a nós
deste uma comida e uma bebida espirituais para a vida eterna por Jesus, teu servo.
Por tudo te agradecemos, pois és poderoso; a ti, a glória pelos séculos. Amém.
Lembra-te, Senhor, de tua Igreja, para livrá-la de todo o mal e aperfeiçoá-la no teu amor;
reúne esta igreja santificada dos quatro ventos no teu reino que lhe preparaste, pois teu é o
poder e a glória pelos séculos. Amém21.

Importantes escritores cristãos da época, como Tertuliano (séc. II) e Hipólito de Roma (+ 235), bem
como a arte litúrgica deste período, fazem contínua alusão a figuras e temas do AT para explicar e
fazer viver os mistérios cristãos.
Tertuliano, para explicar o batismo cristão, utiliza a tipologia veterotestamentária: água da
criação, o dilúvio, a passagem pelo Mar Vermelho, a água que sai da rocha no deserto22.
As orações compostas por Hipólito de Roma (+ 235) estão cheias de alusões às figuras do AT
(reis, chefes, sacerdotes, anciãos, profetas etc.). Ele via no leite e mel, que os recém-batizados toma-
vam depois de comungar na vigília pascal, um símbolo do cumprimento da promessa que Deus fizera
ao seu povo (cf. Ex 3,8; 13,5; 33,3; Nm 13,27)23.
A arte litúrgica deste período se inspira em temas bíblicos. Pinturas muito antigas em locais
de reuniões cristãs do século III, como em Dura-Europos (na Mesopotâmia), apresentam figuras como
Adão e Eva, Davi e Golias etc. Nas pinturas dos cemitérios romanos antigos, anteriores ao século IV,
os temas preferidos são: Noé, sacrifício de Isaac, Moisés tirando água da rocha, Jonas, os três jovens
na fornalha ardente, Daniel na cova dos leões, Susana, além de outras do AT24.

2.2. Estabilização das reuniões de culto nas domus ecclesiae (“casas da igreja”)

Este é o período em que também se “institucionalizou” a prática apostólica das reuniões para
a “fração do pão” em “casas particulares”. Exemplo típico dessa transformação temos em Dura Eu-
ropos, aludida há pouco. Trata-se de uma casa helenística construída lá pelo ano 200 a.C., que foi
transformada em domus ecclesiae (casa da Igreja) em 232. Em Roma existia bem umas 40 destas
casas. As mais famosas foram descobertas sob as igrejas de S. João e S. Paulo, santa Cecília, S.
Clemente e santa Pudenciana.

Famílias ricas ofereciam as suas moradias para as reuniões da comunidade cristã. Por causa
da ‘planta’, essas casas facilmente se prestavam às necessidades litúrgicas da igreja. O ta-
blinium romano, de onde o paterfamilias presidia tudo; o atrium, em que os membros da
família se reuniam; o triclinium ou sala de refeição e o impluvium, que era um recipiente
de água com grande capacidade: constituíam ambiente perfeito para a Liturgia Com ligeiras
modificações essas casas facilmente se transformavam em centros adaptados à atividade
da igreja. Hospedavam a comunidade que se reunia para o culto e, por este motivo, se
chamavam domus ecclesiae (casa da igreja)25.

21
Didaqué. Catecismo dos primeiros cristãos, 9-10, 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 32-33. Coleção Fontes da Catequese
1.
22
Cf. De baptismo 3,4,9.
23
Cf. Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 38ss; cf. La tradición apostólica (=
Cuadernos Phase 75). Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 1996, p. 23ss.
24
Juntamente com estas pinturas do AT, há também várias do NT. Por exemplo, em Dura Europos: a cura do paralítico,
Pedro salvo no lago, o Bom Pastor. Nos cemitérios romanos: a ressurreição de Lázaro, a cura do paralítico, do cego, da
mulher enferma, a samaritana, a adoração dos magos, o batismo de Jesus, a multiplicação dos pães, Maria com a criança
e o profeta, o banquete celeste, o barco, o pescador, a mulher em oração, e o Bom Pastor).
25
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicionário de Liturgia,
p. 3.
47
2.3. Um vigoroso “não” aos rituais pagãos
Herdeiros do monoteísmo judaico mas, sobretudo, conscientes da centralidade do “culto espi-
ritual” a partir do mistério de Cristo, e também por causa das perseguições sofridas, os cristãos de-
claram um vigoroso “não” aos rituais pagãos. A intransigência diante do paganismo é um traço pe-
culiar deste período. Os rituais, templos e ídolos pagãos eram considerados como criações diabólicas.
Por isso, os cristãos não tinham nada a ver com eles. E “pagaram caro” por tal postura, sofrendo
sangrentas perseguições! Então, defendendo a jovem Igreja contra as forças da idolatria, os Padres
procuravam exaltar a superioridade do cristianismo e desmascaravam a corrupção do paganismo.
Neste sentido, seus escritos são fartos de ironias contra os cultos pagãos.
Defendendo-se contra a acusação, movida pelos pagãos, de que os cristãos eram uma “gente
ateia e sem religião”, pois não tinham templo, nem altar, nem sacrifícios, nem sacerdotes, os Padres
reafirmam e exaltam o culto espiritual26. A saber, o templo dos cristãos é Cristo e, nele, a própria
comunidade dos cristãos, formando em Cristo um só corpo; esta é a morada de Deus. O altar é Cristo
e, em Cristo, são sobretudo os órfãos e as viúvas, os pobres em geral, sobre os quais os cristãos
depositam a oferta de suas próprias vidas. Sacrifício é o de Cristo e, em Cristo, a própria vida dos
cristãos colocada a serviço das pessoas. Consequentemente, sacerdote também é Cristo e, em Cristo,
todos os cristãos, inseridos no único sacerdócio de Cristo a serviço de todos. Neste sentido entende-
se a novidade e superioridade do cristianismo.... E suas ações rituais não são senão celebrações me-
moriais que atualizam a Aliança eterna de amor selada por Cristo com os seres humanos, para que os
cristãos possam também vivê-la em Cristo com renovada intensidade.

2.4. Sem medo de compreender e celebrar a Liturgia com elementos linguísticos e simbólicos
das culturas
Porém, quando se trata de elementos culturais ou rituais não estritamente vinculados ao culto
pagão, os Padres não demonstram nenhuma dificuldade em usá-los para explicar a Liturgia. Nesse
sentido, desaparece a intransigência.
Por exemplo, Tertuliano, para descrever a renúncia batismal usa a palavra eieratio, termo ju-
rídico, extra-cultual, que significa “desligamento de um contrato de serviço ou de associação”. Ou,
para falar da profissão batismal ou de fidelidade a Cristo, usa a expressão sacramenti testatio ou
signaculum fidei, termos técnicos que significam o juramento de fidelidade feito pelo soldado ao
imperador romano. No seu livro sobre o batismo, falando da unção pós-batismal, Tertuliano diz que
ela deve ser abundante, a ponto de o óleo escorrer por todo o corpo nu do neo-batizado. O rito deve
ser realizado desse jeito porque assim o fez Moisés ao ungir Aarão. Com isso, o autor “insinua que o
batismo confere ao cristão o que no AT a unção conferia ao israelita: o sacerdócio. Sabemos, porém,
que gregos e romanos ungiam o corpo por diversos motivos: com fins terapêuticos, para ficar fisica-
mente em forma ou por outras razões referentes ao esporte. Ambrósio de Milão conservou o signifi-
cado sacerdotal da unção pós-batismal, ao mesmo tempo que descreveu com termos mais culturais a
unção pré-batismal: Unctus est quasi athleta Christi (Ungido qual atleta de Cristo)”27.
Já aludimos acima ao uso proposto por Hipólito de Roma (séc. III) de dar leite adoçado com
mel aos recém batizados após comungarem. Com o batismo, o neófito atravessa o Rio Jordão, entra
na terra prometida e goza de suas bênçãos. O rito tornou-se assim um símbolo da páscoa cristã. Inte-
ressante que o leite adoçado com mel não era bebida só dos cristãos. Antes destes, os romanos já
tinham o costume de dá-lo aos recém-nascidos, como sinal de boas-vindas na família e para protegê-
los dos maus espíritos. Provavelmente Hipólito conhecia o seu uso, e resolveu adotá-lo para os recém-
nascidos no batismo, revestindo o rito de interpretação bíblica.
Nota-se, pois, como elementos da cultura mediterrânea (eieratio, sacramenti testatio, unção,
leite com mel) se prestavam perfeitamente a uma interpretação cristã. Tinham uma certa “conaturali-
dade” para exprimir o mistério cristão. E, para evitar uma interpretação errada ou uma teologia de má
qualidade, por parte dos recém-batizados, os Padres insistiram na catequese e na mistagogia, isto é,
na apresentação dos mistérios cristãos contidos nestes ritos28.

26
Cf. CASTILLO José Maria. Símbolos de libertad, p. 81-111 (“La iglesia primitiva y la práctica religiosa”).
27
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação, art. cit., p. 3-4.
28
Ibid.
48
Numa palavra, por causa da entrada do Evangelho no mundo helenístico, já a partir do tempo
apostólico, não obstante a radical recusa dos ritos pagãos, a Liturgia cristã não deixou de se enriquecer
com novas formas rituais e toda uma terminologia própria da cultura ambiente.
Isso mostra como a Liturgia cristã, já deste os tempos apostólicos, vai se adaptando aos povos
mediterrâneos com sua cultura própria. A Liturgia vai se inculturando, diríamos hoje. O mistério de
Cristo vai sendo celebrado também com elementos da cultura local...

2.5. Período de uma Liturgia já mais organizada/elaborada


Este é um período no qual já encontramos importantes elementos testemunhais de uma Litur-
gia já mais elaborada/organizada.
A Didaqué, por exemplo, nos dá interessantes informações sobre a vida litúrgica entre os anos
80 e 130: concretamente, sobre a celebração do batismo, sobre o jejum e a oração, sobre a celebração
do ágape e da eucaristia, especialmente no domingo29. Acima já nos referimos também às orações da
carta do papa Clemente aos Coríntios (do ano 96).
O procônsul Plínio o jovem, de Bitínia, numa carta escrita ao imperador Trajano no ano 112,
refere-se a duas reuniões litúrgicas num dia estabelecido: uma ao raiar do dia, na qual os cristãos
elevam cantos de louvor a Cristo “como a um Deus” e assumem sob juramento observar certos man-
damentos; outra à tarde para uma “refeição inocente“30.
Outro testemunho importantíssimo nos vem de Justino, leigo, filósofo convertido ao cristia-
nismo. Lá pelo ano 150 ele escreve uma Apologia (defesa) em favor dos cristãos. Entre outras coisas,
ele faz uma explanação sobre como se desenrolava normalmente a celebração da missa na comuni-
dade cristã que ele defendia31. Trata-se de um testemunho documental interessantíssimo, pois por ele
sabemos como se celebrava a missa em meados do século II:

E no dia chamado do Sol, realiza-se uma reunião num mesmo lugar de todos os que habitam
nas cidades ou nos campos. Leem-se os comentários dos Apóstolos ou os escritos dos pro-
fetas, enquanto o tempo o permitir. Em seguida, quando o leitor tiver terminado a leitura,
o que preside, tomando a palavra, admoesta e exorta a imitar estas coisas sublimes. Depois
nos levantamos todos juntos e recitamos orações; e como já dissemos, ao terminarmos a
oração, são trazidos pão, vinho e água e o que preside, na medida de seu poder, eleva ora-
ções e igualmente ações de graças e o povo aclama, dizendo o Amém. Então vem a distri-
buição e a recepção, por parte de cada qual, dos alimentos eucaristizados, e o seu envio aos
ausentes através dos diáconos. Os que possuem bens e quiserem, cada qual segundo sua
livre determinação, dão o que lhes parecer, sendo colocado à disposição do que preside o
que foi recolhido. Ele por sua vez socorre órfãos e viúvas, os que por enfermidades ou outro
qualquer motivo se encontram abandonados, os que se encontram em prisões, os forasteiros
de passagem; em uma palavra, ele se torna provedor de quantos padecem necessidade.

Como se vê, temos aí apresentadas todas as partes principais da missa: reunião em assembleia
no “dia do Sol”32 (isto é, no domingo), escuta da Palavra, homilia, oração dos fiéis, preparação das
oferendas, oração eucarística, comunhão, socorro aos necessitados. Logo em seguida, Justino explica
por que os cristãos se reúnem no “dia do Sol”:
Fazemos a reunião todos juntos no dia do Sol, porque é o primeiro dia, em que Deus trans-
formando as trevas e a matéria, fez o cosmos, e Jesus Cristo, nosso Salvador, no mesmo
dia ressuscitou dentre os mortos.
A Tradição apostólica de Hipólito de Roma (ano 215) também é outro documento importan-
tíssimo que nos ajuda perceber como era organizada e celebrada a Liturgia nesse período. Refere-se
ao batismo (com um itinerário de iniciação cristã já bem detalhado), à eucaristia (com uma ‘oração

29
Cf. Didaqué. Catecismo dos primeiros cristãos, op. cit., cap. 7-10.14, p. 30-33.39.
30
Há quem diga que a primeira reunião seja a celebração da eucaristia e a segunda de um ágape. Outros interpretam a
celebração da manhã como sendo uma Liturgia da Palavra ou também de uma Liturgia batismal, e a refeição da tarde uma
eucaristia (cf. ADAM Adolf. Corso di Liturgia., p. 24).
31
Cf. JUSTINO, Apologia I,67. In: Tradição apostólica de Hipólito de Roma. Op. cit., p. 82-83.
32
Dia dedicado ao deus Sol na tradição religiosa romana.
49
eucarística’ já elaborada)33, às ordenações (de bispo, presbítero e diácono, com uma oração conse-
cratória para cada um destes graus), às bênçãos, às orações e ao ágape.
No que diz respeito ao batismo, eucaristia e ordenações, também Tertuliano (+ por volta de
220) e Cipriano (+ 258) nos oferecem bons testemunhos.

2.6. Espontaneidade e improvisação


Não obstante os elementos litúrgicos mais ou menos elaborados e organizados, o que predo-
mina nesse período é ainda um clima de grande espontaneidade e ampla liberdade para improvisar as
orações. Não existiam livros litúrgicos como temos hoje. Muitas vezes, com base num esquema de-
finido (a grande bênção da ceia pascal judaica era sem dúvida um referencial, como já dissemos
acima!), o presidente da assembleia improvisava a oração de acordo com suas habilidades. Isso nós
vemos pelos próprios documentos.
A Didaqué, por exemplo, depois de uma fórmula de oração “eucarística”, acrescenta: “Deixai
os profetas bendizer à vontade”. Justino, na sua Apologia, testemunha que o presidente da celebração
pronuncia a oração eucarística “na medida de seu poder”. Hipólito de Roma, na sua Tradição apos-
tólica, depois de apresentar um modelo de oração eucarística, lembra ao bispo que não é obrigado a
rezar com aquelas palavras nem repeti-las de cor. Pode rezar de acordo com seus próprios talentos,
de modo mais longo e solene, ou de modo mais simples. O importante é que o bispo, quando ora, siga
a regra da fé:
Dê graças o bispo, tal como mencionamos. De forma nenhuma é necessário que, dando
graças a Deus, profira as mesmas palavras que mencionamos, como se o fizesse de memó-
ria: reze cada um segundo suas possibilidades. Se alguém tiver capacidade para rezar uma
oração mais longa ou mais solene, ótimo. Se outro, porém, rezando, proferir uma oração
mais simples, deixai-o, contanto que reze o que é correto dentro da ortodoxia34.

3. RESUMINDO

Em termos cultuais o movimento cristão iniciado por Jesus de Nazaré significa simplesmente
a continuidade da Liturgia judaica.
Mas também há aspectos de descontinuidade entre a Liturgia judaica e a Liturgia judeu-
cristã emergente. Às práticas cultuais meramente exteriores se antepõe a lei do Amor. Ao templo se
sobrepõe aos poucos o novo Templo (Cristo/Igreja). Aos pagãos convertidos não se impõe o peso
da circuncisão e da lei mosaica.
E mais, os cristãos se sentiram também muito livres em criar formas próprias para celebrar a
Liturgia, a memória do mistério de Cristo. “Reunir-se junto” para a escuta da Palavra, a oração co-
mum, a fração do pão (Eucaristia), em casas particulares, no primeiro dia da semana (domingo), o
batismo, a comunhão fraterna, são alguns elementos próprios de destaque.
As comunidades cristãs dos séculos II e III procuraram celebrar e compreender a Liturgia
mantendo um significativo vínculo com a tradição judaica.
Herdeiro do monoteísmo judaico, mas sobretudo conscientes da importância do “culto espiri-
tual” a partir do mistério de Cristo, e também por causa das perseguições sofridas, os cristãos decla-
raram um vigoroso “não” aos rituais pagãos.
Ao mesmo tempo, não hesitaram em compreender e celebrar a Liturgia com elementos cultu-
rais dos povos greco-latinos da bacia do Mediterrâneo.
À medida que o tempo ia passando, e os cristãos se multiplicando, a Liturgia também foi
naturalmente se elaborando e se organizando cada vez mais.
Mesmo assim, prevaleceu ainda o princípio da espontaneidade e ampla liberdade para impro-
visar as orações litúrgicas.
O que se procurou garantir em tudo isso, a todo custo, foi o essencial herdado de Jesus e dos
apóstolos: o mistério de Cristo.

33
Esta ‘oração eucarística’ foi acolhida e introduzida no nosso missal romano, depois do Vaticano II, com algumas adap-
tações: é a Oração Eucarística II.
34
Tradição apostólica de Hipólito de Roma, op.cit., p. 45.
50
Perguntas para aprofundar
1. O que foi novidade para você no estudo sobre “A Liturgia no período apostólico”? Em que aspectos Jesus
e seus discípulos simplesmente seguiram a Liturgia judaica? Em que aspectos houve descontinuidade e até
ruptura com a Liturgia judaica? Por que? Algo novo foi criado pela Igreja no tempo dos Apóstolos? O que
foi?
2. Jesus e seus primeiros seguidores têm algo a nos ensinar em termos de celebração da Liturgia? O que nos
ensinam?
3. O que foi novidade para você no estudo sobre “A Liturgia na era dos mártires”? Em que aspectos os
cristãos deste período permanecem no âmbito da tradição do AT? Quais os principais motivos pelos quais
os cristãos deste período rejeitaram terminantemente os rituais pagãos?
4. Em que sentido a Liturgia cristã deste período vai se adaptando aos povos greco-latinos com sua cultura?
Algo novo foi criado em termos litúrgicos pela Igreja neste período, e o que se procurou garantir a todo
custo? O que foi?
5. As comunidades cristãs dos séculos II e III têm algo de especial a nos ensinar em termos de celebração da
Liturgia? O que nos ensinam?
6. Nas celebrações litúrgicas de sua comunidade, você percebe algum elemento próprio da Liturgia das co-
munidades cristãs dos três primeiros séculos? Faça um elenco de elementos.

Indicação bibliográfica para leitura complementar

ADAM Adolf. Corso di Liturgia, p. 20-25.


AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 27-31.
BASURKO Xavier. O culto na época do Novo Testamento / A Liturgia na era dos mártires. In:
BOROBIO Dionísio (Org.). A celebração na Igreja 1..., p. 41-69.
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Di-
cionário de Liturgia, p. 2-4.
KLAUSER Theodor. Breve historia de la Liturgia occidental I, p. 5-20.
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 7-21.
MARSILI Salvatore & outros. Panorama histórico da Liturgia (= Anámnesis 2), p. 7-41.
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M.
(Orgs.). Dicionário de Liturgia, p. 522-527.

CAPÍTULO II
A LITURGIA EM FASE DE ESTRUTURAÇÃO PLENA (SÉC. IV A VIII)

Conhecer a história da Liturgia neste período é com certeza importantíssimo para promover-
mos hoje uma pastoral litúrgica teologicamente criteriosa, como aliás é o desejo do Concílio Vaticano
II. Afinal, é aqui que a Liturgia atinge sua plena fase de estruturação, transformando-se em referencial
necessário para uma sadia adaptação do culto cristão aos povos de hoje com sua cultura, seu jeito de
ser.

1. A VIRADA DO SÉCULO IV

Em 313 o imperador Constantino decretou liberdade total para a Igreja. Fim das perseguições!
Resultado: o número de cristãos se multiplica a olhos vistos. É que, a partir de então, ser cristão
passou a significar uma honra a mais: equivalia a ser também cidadão do império. Questão de honra
cívica! Pois o imperador (cuja figura antes era adorada como deus) agora também é cristão! Conse-
quentemente, sob a natural e maciça influência da cultura romana, dentro da nova situação política,
religiosa e social estabelecida, a Liturgia passa a sofrer profundas e duradouras mudanças em sua
forma e compreensão35.

35
Cf. CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicionário de
Liturgia, p. 4-5.
51
Nos séculos anteriores, as celebrações aconteciam em regime doméstico, em grupos geral-
mente pequenos, de forma espontânea e simples. A partir de agora, sobretudo para celebrar a euca-
ristia presidida pelo bispo, os cristãos passam a se reunir em ambientes amplos, nas basílicas e, pela
influência então direta da cultura romana, as celebrações se transformam em algo progressivamente
solene e régio. Inclusive os ritos da iniciação cristã, na vigília pascal, assumem um caráter imponente
e suntuoso.
Não obstante toda a adaptação e toda a criatividade em processo, também permanece
certo apego às formas tradicionais. Isso se percebe na construção de diversas basílicas constantinia-
nas, cujo modelo de fundo continua sendo a antiga domus ecclesiae. Na abside da basílica é colocado
o trono de quem preside a assembleia (o bispo). O trono é cercado de assentos para os presbíteros,
em forma de semicírculo. No santuário é colocada uma estante para a proclamação da palavra de
Deus e uma mesa para a eucaristia. A nave é todo um espaço amplo para os fiéis e os catecúmenos.
“A basílica constantiniana não passa de uma domus ecclesiae aumentada e muito estilizada”36.
A Bíblia continua a ser, como antes, a principal fonte de inspiração na composição dos textos
litúrgicos e na explicação dos mistérios cristãos.
Também neste período (e, sobretudo, neste!), a Liturgia cristã recebe elementos próprios da
cultura. Assim, dentro do novo contexto político, social e eclesial, as celebrações da Liturgia (sobre-
tudo as grandes celebrações presididas pelo bispo) se revestem dos esplendores característicos da
corte imperial. As Liturgias se transformam em suntuosos “cerimoniais pontificais” adaptados dos
cerimoniais usados na corte. Os ministros ordenados, no serviço do altar, são revestidos de uma dig-
nidade, de honras e indumentária próprias dos mais altos dignitários do império romano37. No fundo,
é o mistério pascal de Cristo que, visto como esplendor, passa a ser expresso exteriormente na forma
esplêndida dos cerimoniais da corte imperial. O ‘imperador’ agora é Cristo, representado por seus
ministros revestidos de honras e dignidade à altura.
Terminadas as perseguições, termina também o antagonismo relativo ao culto pagão. E não
só isso! Agora os cristãos chegam inclusive a adotar elementos rituais pagãos para celebrar a Liturgia.
Por exemplo:
 Os cristãos adotam a prática pagã de tomar refeição junto do túmulo, deixando parte do
alimento e bebida para o falecido (refrigerium). Houve exageros, a ponto de Ambrósio de
Milão proibi-la. Agostinho, por sua vez, mais tolerante, transformou esta prática em cele-
bração com objetivos de caridade.
 No Oriente, adotam a prática de formular orações com peculiaridades próprias das orações
helenistas pré-cristãs (pagãs): com orientação solene, multiplicando atributos divinos (es-
pecialmente os negativo-positivos: infinito, inefável, incompreensível), usando um estilo
retórico próprio da cultura helenista.
 Adotam a prática romana de invocar as divindades com a súplica litânica “Livrai-nos, Se-
nhor” ou “Nós vos rogamos, ouvi-nos”.
 Adotam também o costume de beijar o altar e imagens sagradas, que na origem eram gestos
pagãos de reverência.
 Inclusive a iniciação cristã foi se acumulando de usos pagãos. Por exemplo a palavra “mis-
tagogia” (iniciação aos mistérios cristãos) foi adotada da religião dos mistérios. A veste
branca, que era dada aos recém iniciados na religião dos mistérios, foi adotada pelos cris-
tãos como sinal distintivo da dignidade batismal aos recém iniciados nos sacramentos cris-
tãos. Inclusive as velas batismais foram adotadas da religião pagã. A prática de se voltar
para o oriente na hora do batismo começou por influência das religiões solares mediterrâ-
neas38.
36
Ibid., p. 5.
37
Isso aparece nas próprias orações para a ordenação dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos, onde se usam termos
como “honra“, “dignidade” e “grau” (termos que eram atribuídos a cargos públicos com seus diferentes níveis de digni-
dade e de honra, e que agora entram para a linguagem litúrgica). Quanto à indumentária, os ministros ordenados, para
presidir e atuar na celebração dos sagrados mistérios, adotam as roupas festivas próprias das mais altos fucionários do
império romano (a tunica romana, a paenula ou toga, e a mappula). Estas, passando depois por modificações, se trans-
formam nos paramentos sagrados da Liturgia romana.
38
Ibid.
52
O método usado nas adaptações é o da assimilação e da reinterpretação. Mas também usou-se
o método da substituição. A saber, elementos cultuais pagãos (sobretudo festas) foram substituídos
por elementos cristãos, anulando praticamente as pagãs. Certa semelhança entre temas ou analogias
entre festas pagãs e cristãs levou a Igreja a instituir as suas festas no lugar das pagãs e em oposição a
elas. Caso típico é a festa do Natal: entrou no lugar da festa do nascimento do deus-sol da religião
pagã. A festa da cátedra de são Pedro, no dia 22 de fevereiro, substituiu a festa romana que comemo-
rava os antepassados falecidos. Nesse dia os cristãos passaram a comemorar o seu grande antepassado
são Pedro, cuja autoridade é representada pela cátedra.

Elementos adotados do mundo cultural greco-latino, em parte de suas religiões mistéricas, em


nossa Liturgia (um resumo de Theodor Klauser):
 Os principais elementos que vão configurar o rito de admissão no batismo cristão, com
seus exorcismos e unções; inclusive a ideia de fazer a celebração batismal na noite da
Páscoa, e até mesmo a ideia da “vigília”;
 a disciplina do arcano, isto é, o costume cristão muito antigo de fazer profundo silêncio
no momento central dos ritos e, especialmente, das fórmulas sagradas.
 a tendência a formar as orações de acordo com as leis da retórica clássica, especial-
mente de acordo com a lei da simetria e da conclusão rítmica;
 o costume de rezar voltado para o oriente, com o consequente costume de construir as
igrejas cristãs direcionadas para o nascer do sol, é de origem helenístico. (No judaísmo
costumava-se rezar voltado para o templo de Jerusalém...);
 numerosas expressões do vocabulário litúrgico cristão: a própria palavra “Liturgia”, e
outras como “eucaristia”, “eulogia”, “mysterium”, “praefatio”, “canon”, “anámnesis”,
“epíclesis”, “ágape”, “epifanía”, “adventus”, “exorcismus”, “doxologia”, “acclama-
tio”, “hymnus”, “vigilia” etc;
 inclusive determinados tipos de orações como a ladainha dos santos e outras fórmulas
como “in saecula” e “in saecula saeculorum”;
 enfim, também as aclamações comunitárias como: “Kyrie eleison”, “Dignum et iustum
est” e “Deo gratias”39.

2. FORMAÇÃO DAS GRANDES FAMÍLIAS LITÚRGICAS

Vimos que as primeiríssimas manifestações litúrgicas cristãs se deram nas formas rituais pró-
prias do judaísmo. Ao mesmo tempo, na medida em que pessoas de outras culturas iam se incorpo-
rando à Igreja, a Liturgia cristã adotou também expressões próprias dessas culturas, resultando daí
uma crescente diversificação de formas externas de celebrar o mistério de Cristo.
Podemos classificar esta evolução nos seguintes estágios cronológicos. Primeiro (séculos I-
II), há uma certa unidade litúrgica (não uniformidade rígida) em todas as comunidades. Procura-se
garantir o que é essencial, recebido da tradição, em meio a uma grande liberdade e espontaneidade.
Depois (séculos III-IV), vai se criando uma multiplicidade sempre maior de formas celebrativas: cada
comunidade vai fixando seus costumes, seus ritos, suas orações. Finalmente (a partir do século V),
em plena atmosfera de liberdade estabelecida sob Constantino e seus sucessores, se dá uma unificação
progressiva (não ainda de tipo universal, mas regional): é o momento da criação das diversas famílias
ou ritos litúrgicos, tanto no oriente como no Ocidente40.

2.1. Expressões diversas da mesma fé

Desde a primeira comunidade de Jerusalém até à parusia, é o mesmo mistério pascal que é
celebrado, em todo lugar, pelas Igrejas de Deus fiéis à fé apostólica. O mistério celebrado
na Liturgia é um só, mas as formas da sua celebração são diversas.

39
KLAUSER Theodor. Breve história de la Liturgia occidental I..., p. 7.
40
Cf. LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 23-29.
53
A riqueza insondável do mistério de Cristo é tal que nenhuma expressão litúrgica é capaz
de esgotar sua expressão. A história do surgimento e do desenvolvimento desses ritos atesta
uma complementaridade surpreendente. Quando as Igrejas viveram essas tradições litúrgi-
cas em comunhão na fé e nos sacramentos da fé, enriqueceram-se mutuamente e cresceram
na fidelidade à tradição e à missão comum à Igreja toda.
As diversas tradições litúrgicas surgiram justamente em razão da missão da Igreja. As Igre-
jas de uma mesma área geográfica e cultural acabaram celebrando o mistério de Cristo
através de expressões particulares tipificadas culturalmente: na tradição do ‘depósito da fé’
(2Tm 1,14), no simbolismo litúrgico, na organização da comunhão fraterna, na compreen-
são teológica dos mistérios e nos tipos de santidade. Assim, Cristo, luz e salvação de todos
os povos, é manifestado pela vida litúrgica de uma Igreja, ao povo e à cultura aos quais ela
é enviada e nos quais está enraizada. A Igreja é católica: pode integrar na sua unidade,
purificando-as, todas as verdadeiras riquezas das culturas” (Catecismo da Igreja Católica,
n. 1200-1202).
São vários os fatores que levaram à diversificação das expressões externas do mesmo culto
cristão. Às vezes, em razão de convulsões e perseguições, certas comunidades acabavam ficando
isoladas das demais. Resultado: faltando o contato com o restante da Igreja “católica”, elas natural-
mente foram criando seus ritos próprios. Mas “o motivo mais comum - e mais profundo ao mesmo
tempo - é a consciência de que o importante é a fidelidade essencial à Liturgia apostólica, perfeita-
mente compatível com a liberdade e a diversidade das expressões próprias de cada comunidade, se-
gundo suas características de lugar e tempo”.
Fatores geográficos e culturais com certeza tiveram decisiva influência em tudo isso. “Houve
uma adaptação lógica e natural da fé e do culto cristão às características peculiares de cada povo, o
que favoreceu a difusão do cristianismo e sua encarnação na alma popular”41.
A língua (mormente o grego e o latim) teve também grande influência na diversificação das
Liturgias42.
Mas o que influenciou mesmo foi a mentalidade dos povos de cada área geográfica e cultural.
Ela é que condicionou “as diversas combinações dos elementos da celebração litúrgica cristã, criando
‘estilos’ próprios tanto nas cerimônias como nas orações”43.
Por exemplo, a maneira de estruturar a grande oração eucarística ou “anáfora”, vai se diferen-
ciando de um lugar para outro. Às vezes, a oração é elaborada numa única peça invariável. Outras
vezes, ela consta de diferentes peças variáveis. Também a maneira como se organizam os ciclos de
leituras bíblicas ao longo do ano litúrgico, é diferente de um lugar para outro. Há inclusive fórmulas
típicas no rito de cada Igreja. Assim, por exemplo, no norte da África (Cartago etc.), o presidente da
assembleia saudava com a fórmula “a paz esteja convosco” (pax vobiscum). Em Roma já é diferente:
ele diz “o Senhor esteja convosco” (Dominus vobiscum). E na Espanha era mais diferente ainda: “o
Senhor esteja sempre convosco” (Dominus sit semper vobiscum).
E, com certeza, o que é mais típico nas diferentes Liturgias é o estilo literário em que são
elaboradas as orações, as antífonas, os hinos: “O Oriente, herdeiro da cultura helenística e com gosto
pela expressão pomposa, dá origem a uma Liturgia mais poética, teológica, solene. O Ocidente, her-
deiro da cultura romana, dá lugar a uma Liturgia mais prática, simples, austera. Espanha é um caso
especial: sua Liturgia autóctone é empolada, sentimental e muito popular”44.

2.2. As grandes famílias litúrgicas


As formas diversas com que o mesmo mistério de Cristo é celebrado, fez com que surgissem
diferentes ritos que, por sua origem histórica, se constituem em grandes famílias litúrgicas, originadas
a partir dos mais antigos e influentes patriarcados: Antioquia, Alexandria, Roma. A ação missionária
destes grandes centros religiosos e culturais expandiu a sua Liturgia para outras terras, formando
novos ramos litúrgicos, mas conservando um tronco comum.

41
Ibid., p. 25
42
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicioná-
rio de Liturgia, p. 527ss.
43
Cf. LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 25.
44
Ibid., p. 26.
54
Para compreender melhor, tenhamos em mente a seguinte grande distinção: existem as Li-
turgias orientais e as ocidentais.
As Liturgias orientais (do Oriente) se distinguem em dois grupos, por causa dos seus patriar-
cados de origem (Antioquia e Alexandria): o grupo antioqueno e o grupo alexandrino. O grupo anti-
oqueno, se subdivide em siríaco ocidental (que compreende o siríaco de Antioquia, o maronita, o
bizantino e o armeno) e siríaco oriental (que compreende rito nestoriano, o caldeu (na Mesopotâmia)
e o malabar (na Índia)45. O grupo alexandrino abrange o rito copta e o etiópico.
As Liturgias ocidentais (do Ocidente) são: a romana (da diocese de Roma), a ambrosiana
(própria da diocese de Milão), a hispânica (peculiar da Espanha), a galicana (das Gálias) e a celta
(elaborada entre os povos celtas, no ambiente geográfico que compreende a Irlanda, a Escócia e país
de Gales). Atualmente, na prática se conserva apenas um rito ocidental: o romano. Dos outros, resta-
ram apenas vestígios, ou estão limitados a lugares bem determinados (como é o caso do rito ambro-
siano e hispânico).
Ultimamente, “a introdução das línguas modernas na Liturgia romana (que até o Concílio
Vaticano II era celebrada em latim) representa um elemento de diversificação que, com o
princípio da adaptação, promulgado pelo Concílio, fará com que se formem aos poucos
diversos tipos litúrgicos, se bem que parentes e derivados do rito romano. Quanto aos ritos
orientais, o mais expandido é o bizantino que, já desde tempos antigos, se celebrava em
diversas línguas, mesmo que o seu idioma original seja o grego. Temos que ter presente
que os ritos orientais são utilizados tanto pelos ortodoxos como pelos católicos”46.

3. A FORMAÇÃO DA LITURGIA ROMANA PURA

A estas alturas, e daqui para frente, nos detemos particularmente no estudo da Liturgia romana
propriamente dita, exatamente porque ela não só exerceu fortíssima influência sobre as Liturgias oci-
dentais, mas também porque, durante séculos, praticamente foi a única Liturgia do Ocidente (latino)
e dos povos de missão (América, Ásia e África)47.
Conhecê-la no seu estado original puro nos ajuda hoje, com certeza, a promover uma pastoral
litúrgica teologicamente criteriosa, como aliás é o desejo do Concílio Vaticano II.
Estamos no período que vai do século IV até o século VIII. É o tempo em que a igreja romana
foi desenvolvendo e formando a sua Liturgia na forma esplêndida que lhe é característica, até alcançar
sua forma madura, plenamente elaborada e organizada, e “extraordinariamente rica sob o ponto de
vista teológico“48. É a chamada “idade de ouro da Liturgia romana“49. Posteriomente, esta Liturgia
romana clássica vai entrar em contato com os povos franco-germânicos, sofrendo numerosas modifi-
cações: ela então deixa de ser Liturgia romana pura50.

3.1. Causas
As causas do florescimento e estruturação da Liturgia romana clássica estão na própria mu-
dança de situação política e eclesial a partir de 313 (como já vimos acima), em que o cristianismo se
converte em religião oficial do império romano sob o imperador Teodósio (383-395).
Cresce o número de cristãos por todos os lados. Resultado: a Liturgia dos ambientes das cata-
cumbas e das casas particulares, ainda um tanto quanto informais, e se estabelece nas “basílicas”
(espaços inspirados na arquitetura civil, apropriados para acolher multidões e adaptados para grandes
assembleias litúrgicas). Consequentemente (e dada a espontânea vontade de se revestir a Liturgia com
os cerimoniais próprios da corte imperial), surge o natural imperativo de se elaborar/organizar as
celebrações litúrgicas de forma mais fixa e rígida.
45
Siríaco: porque Antioquia era um patriarcado da Síria.
46
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 26-27.
47
Para outras Liturgias, tanto ocidentais como orientais, remetemos a MARSILI Salvatore & outros. Panorama histórico
geral da Liturgia (= Anámnesis 2), p. 64-152.
48
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. Art. cit., p. 531.
49
Cf. LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 31-36.
50
Infelizmente, ainda hoje, quando falamos em Liturgia romana, inadvertidamernte a identificamos com Liturgia do
período posterior ao século VIII, misturada com elementos franco-germânicos. Na verdade, Liturgia romana mesmo é
aquela que se produziu entre os séculos IV ao VIII, e que o Concílio Vaticano II procurou resgatar.
55
Assim, os bispos de Roma, que gozam de crescente prestígio e autoridade, vão criando por
escrito inúmeras orações. Introduzem novos ritos. São inovadores e dinâmicos. Sabem adaptar a cul-
tura da época às exigências da fé.

3.2. Formação dos livros litúrgicos


A Liturgia romana, no seu esplendor característico, conserva um caráter eminentemente co-
munitário, com atuação de diferentes ministérios na celebração. Por isso, para cada ministério foi
organizado um livro litúrgico.
Antes, o presidente da celebração litúrgica costumava improvisar livremente as fórmulas das
orações (seguindo, é claro, um esquema fixo). Não havia um livro para ler as orações.
Agora, sente-se a necessidade de redigir tais fórmulas por escrito, em pequenos folhetos, para
uso na missa. As melhores iam sendo guardadas para serem novamente usadas em outra oportunidade
ou por outras comunidades. Depois, por causa de sua qualidade literária, conteúdo teológico e pres-
tígio dos seus autores, estas orações foram sendo selecionadas e recopiadas todas juntas em forma de
livro.
Surge então o primeiro livro litúrgico romano, chamado Sacramentário. É o livro litúrgico
que contém as orações presidenciais tanto para a celebração da eucaristia como dos demais sacra-
mentos. Remontam aos séculos V e VI. São vários, com nomes diversos segundo seu conteúdo e
finalidade, e com textos que remontam aos papas Leão Magno (440-461), Gelásio (492-496), Vigílio
(537-555) e Gregório Magno (590-604).
Os mais importantes Sacramentários do rito romano são:
- Veronense (porque se encontra na biblioteca de Verona), chamado também de Leoniano (porque
muitas de suas orações foram compostas pelo papa Leão Magno, mas tem textos também do papa
Gelásio e Vigílio);
- Gelasiano antigo (erroneamente atribuído ao papa Gelásio; na realidade é uma coleção de textos
utilizados nas igrejas presbiterais de Roma);
- Gregoriano (porque contém uma coleção pessoal de textos do papa Gregório Magno), dos quais
foram conservados vários tipos (o do papa Adriano, o de Pádua, e o revisto por Alcuino).
Também para proclamar a palavra de Deus na Liturgia, se fez com o tempo uma seleção de
textos bíblicos, que depois são copiados num único livro, de forma ordenada segundo o correr do ano
litúrgico. Nasce assim o Lecionário: o livro litúrgico dos ministros encarregados de proclamar a pa-
lavra de Deus. Para a missa, o Lecionário compreendia dois livros, segundo sua finalidade: o Evan-
geliário (para uso do diácono) e o Epistolário (para uso do leitor). Seus manuscritos mais antigos
remontam aos séculos VI e VII.
Surgiram também os Antifonários, igualmente do século VI e VII, que são coletâneas de textos
e melodias para serem usadas pelo coro na missa. Há ainda os próprios para serem usados no Ofício
Divino.
Enfim, temos o Ordo, livro que descreve o modo de executar as ações litúrgicas. É um livro
de rubricas, isto é, de normas e orientações para que as ações litúrgicas decorram em ordem. Para
cada tipo de celebração existia um Ordo. Por isso, somam ao todo uns 50. Os mais importantes são o
Ordo I (que apresenta um quadro da “missa solene” romana por volta do século VII), e o Ordo XI
(que apresenta toda a orientação para a celebração do catecumenato e da iniciação cristã: batismo e
confirmação).

3.3. Elementos característicos da Liturgia romana clássica


Pela amplidão dos espaços basilicais e a adoção de solenidades provindas de usos imperiais,
foram introduzidas na missa três grandes procissões, todas elas acompanhadas de um canto:
- a solene procissão de entrada (Introitus) do presidente com seus ministros;
- a procissão levando ao altar os dons do pão e do vinho;
- a procissão em direção ao altar para receber a comunhão sob duas espécies.
No final de cada procissão foi introduzida uma oração (respectivamente: coleta, sobre as ofe-
rendas, após a comunhão), que varia segundo o correr do ano litúrgico .
Também se ritualiza a proclamação do evangelho, reservada ao diácono e precedida de uma
procissão acompanhada de luzes, incenso e a aclamação do Aleluia.
56
Praticamente desaparece a oração dos fiéis (só fica na Sexta-feira santa). Mas a aclamação
“Kyrie eleison” (“Senhor, tende piedade de nós“) desta oração permanece, porém deslocada para o
início da missa.
A oração eucarística (chamada “cânon romano”) é única, imutável (com pouquíssimas exce-
ções) para todos os dias do ano, mas com uma grande variedade e riqueza de prefácios.
Aos poucos, por influência de papas de origem oriental, foi acrescentado na missa o canto de
um antiquíssimo e famoso hino chamado “Glória” e também do hino chamado “Cordeiro de Deus”
(papa S. Sérgio I, 687-701).
As orações (coleta, sobre as oferendas, prefácios, após a comunhão) traziam evidentes traços
do gênio romano: nobre simplicidade, sobriedade, concisão, praticidade. Com poucas palavras (e em
forma literária elegante!), elas se atém ao essencial (o mistério celebrado). Não ficam ‘perdendo
tempo’ em considerações sentimentais em torno de cenas evangélicas51. São geralmente dirigidas ao
Pai, por Cristo, no Espírito Santo.
Comparando os elementos formais da Liturgia romana pura com os das Liturgias orientais
e outras Liturgias ocidentais, observamos a sua simplicidade precisa, sóbria, sucinta, não
loquaz e pouco sentimental; a sua disposição é clara e lúcida; a sua grandeza, sagrada e
humana ao mesmo tempo, espiritual e de notável valor literário. Entre os elementos teoló-
gicos característicos, devemos observar que a oração é dirigida geralmente ao Pai, por
Cristo, no Espírito Santo. Observamos ainda que a oração eucarística romana se distingue
da sua correspondente galicana e hispânica e também das “anáforas” orientais, porquanto
ela é única (= cânon romano)”52.
De grande valor é a piedade eucarística romana: “a Eucaristia é a santa ação, que celebra o
memorial da morte e ressurreição de Cristo, culmina na ’oração eucarística’, é introduzida
pela ‘oração sobre as oferendas’ e pelo prefácio, e termina com o Amém dos fiéis. Estes
participam da ação em dois grandes momentos processionais: a apresentação dos dons do
pão e do vinho e o acesso à santa mesa a fim de comungar sob as duas espécies. Como
conclusão vem a ‘oração após a comunhão’. Nesta ação solene realiza-se o memorial, que
é a presença do sacrifício de Cristo, ‘hóstia pura, santa, imaculada, pão da vida eterna e
cálice da salvação’. O corpo e o sangue de Cristo são recebidos ‘participando deste altar’53.
A celebração eucarística na Liturgia romana clássica tem como finalidade adorar a Deus Pai,
mas por meio de Jesus Cristo, na re-presentação do seu sacrifício único. O culto eucarístico é impres-
sionantemente sóbrio. Com muita reserva se fala da adoração do santo alimento. Não existiam sinais
de veneração no momento da consagração, nem depois. Muito menos existia adoração ao santíssimo
durante a missa, como se entende e se faz hoje. As próprias orações depois da comunhão evitam as
palavras “corpo” e “sangue”. Elas falam da eucaristia como “alimento” e “bebida”, “sacramento”,
“mistério sagrado” e “dom celeste“. Na missa romana, a eucaristia nos é dada acima de tudo para ser
comida e bebida, e não tanto para ser adorada.
Quanto ao ano litúrgico, o domingo se converte oficialmente em dia de repouso, possibilitando
celebrações eucarísticas mais longas e solenes. Os diversos tempos litúrgicos se organizam de ma-
neira estável e com matiz próprio. O Natal passa a ser preparado por um tempo de quatro semanas
chamado Advento. A celebração anual da Páscoa se estrutura na forma de um Tríduo pascal formado
pela Sexta-feira santa, Sábado santo e a Vigília pascal, celebrando respectivamente a paixão-morte,
sepultura e ressurreição do Senhor. Organiza-se um tempo de quarenta dias (Quaresma) de preparação
para celebração do Tríduo, e a festa da Páscoa se prolonga por cinquenta dias (Tempo pascal) que
culmina com a festa do Espírito Santo no quinquagésimo dia (Pentecostes). Também se introduzem
festas especiais de Maria e memórias dos mártires e outros santos.

51
Por exemplo, no Natal, vigília de Páscoa, Pentecostes, as orações não se perdem em considerações sentimentais em
torno da manjedoura e o canto dos anjos, ou em torno da pedra que rola do sepulcro vazio, o emocionante encontro do
ressuscitado com Maria Madalena ou os discípulos a caminho de Emaús, em torno dos dramáticos eventos de Pentecos-
tes... As orações vão direto ao conteúdo teológico do mistério que celebram, expresso (nos exemplos acima) em termos
de “luz”, “claridade”, “esplendor”.
52
AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 37.
53
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicioná-
rio de Liturgia, p. 534).
57
A iniciação cristã atinge a máxima solenidade. A Quaresma é a última etapa de preparação
dos catecúmenos para o batismo, que é celebrado solenemente na Vigília pascal. No caso de um
cristão (depois de iniciado e batizado) cometer algum delito sério, tinha que ingressar na “ordem dos
penitentes” para uma espécie de ‘reciclagem’ (que chamavam de “penitência pública“). Na Quinta-
feira santa se fazia então a reconciliação desses penitentes, numa missa própria com toda a comuni-
dade. Ainda não existia a prática da penitência sacramental privada. As ordenações são celebradas
conforme a antiga tradição, e o povo colabora ativamente na eleição dos candidatos. Quanto ao ma-
trimônio, não era feito na igreja. A bênção nupcial era dada pelo ministro ordenado na casa dos pais
do noivo, na hora do contrato. Quanto à unção dos enfermos, sublinha-se a importância primordial
da bênção do óleo pelo bispo, e o uso deste óleo não é restrito aos sacerdotes.
A participação do povo na Liturgia continua sendo espontânea e viva, com grande equilíbrio
entre o pessoal e o comunitário.
Sobretudo a partir do século VI, desenvolve-se o canto litúrgico, dando à Liturgia um tom
ainda maior de solenidade e de elevação artística que atrai e comove o povo.

4. RESUMINDO

Com a virada constantiniana a Liturgia passa sofrer profundas e duradouras mudanças em sua
forma e compreensão. A celebração do mistério de Cristo assume novos e permanentes contornos.
Dado o número crescente de cristãos, as celebrações litúrgicas (sobretudo as presididas pelo
bispo) passam de casas particulares para os amplos ambientes das basílicas. Com essa mudança, a
Liturgia assumiu um estilo cada vez mais solene e régio, imponente e suntuoso.
Conserva-se certo apego às formas tradicionais (as basílicas ainda têm algo das antigas domus
ecclesiae) e a Bíblia continua a ser a principal fonte de inspiração para a Liturgia.
Dentro do novo contexto político, social e eclesial, as celebrações litúrgicas, sobretudo as
presididas pelo bispo no ambiente amplo das basílicas, carregam-se de um estilo próprio dos ceri-
moniais das cortes imperiais. O esplendor do mistério de Cristo é expresso exteriormente na forma
esplêndida dos cerimoniais da corte imperial.
Diferentemente do que acontecia nos séculos anteriores, agora os cristãos introduzem na Li-
turgia inclusive elementos rituais pagãos para expressar o mistério de Cristo.
À medida que os tempos vão passando, a riqueza insondável do mistério de Cristo vai sendo
expresso liturgicamente de maneira diversificada, segundo a cultura dos diferentes povos que aderi-
ram ao cristianismo.
Muitos destes povos, sem desvincular-se do essencial da tradição apostólica, acabaram cri-
ando, segundo a sua cultura, ritos próprios para celebrar o mistério pascal. Esses ritos, tanto no Ori-
ente como no Ocidente, se dividem em grandes famílias litúrgicas, segundo seu patriarcado comum
de origem: Antioquia, Alexandria, Roma.
Quanto à Liturgia romana, dado o novo contexto (número crescente de cristãos que se consti-
tuem em grandes assembleias reunidas nos amplos espaços basilicais, e a influência cultural da
época), ela se vê obrigada a se estruturar e se fixar de forma mais objetiva e rígida.
Daí nascem numerosas composições escritas (orações etc.) e surgem diferentes livros litúrgi-
cos para uso dos diversos ministérios na celebração. Isto mostra que a Liturgia romana clássica tem
um caráter fortemente comunitário e ministerial.
A estrutura da missa se enriquece de novos elementos (procissões, variedade de orações etc.).
Suas orações trazem os traços próprios do gênio romano: nobre simplicidade, precisão, sobriedade,
concisão, praticidade, sem muitas palavras e pouco sentimental; disposição lúcida e clara; grandeza,
sagrada e humana ao mesmo tempo, espiritual e de grande valor literário.
As orações são geralmente dirigidas ao Pai, por meio de Jesus Cristo, no Espírito Santo. E a
celebração eucarística tem como finalidade adorar a Deus Pai, mas por meio de Jesus Cristo, na re-
presentação do seu único sacrifício. Sinais de veneração ao pão e vinho consagrados durante a missa
eram impressionantemente sóbrios. É que, na missa romana, a eucaristia nos é dada por Deus acima
de tudo para ser comida e bebida.
58
O ano litúrgico atinge uma estruturação madura, com um tempo de preparação para o Tríduo
pascal e para o Natal, e um tempo de cinquenta dias de prolongamento da festa maior que é a Páscoa.
Também se inserem festas especiais de Maria, bem como memória dos mártires e outros santos.
A iniciação cristã atinge a máxima solenidade, depois de um catecumenato bem estruturado e
programado. A penitência é pública e a celebração de reconciliação dos penitentes é feita na Quinta-
feira santa com toda a comunidade. As ordenações são celebradas segundo a antiga tradição, com
adaptações nas orações. O matrimônio é celebrado na casa dos pais dos noivos. Quanto à unção dos
enfermos, importante é a bênção do óleo pelo bispo, e o seu uso não é restrito aos sacerdotes.

Perguntas para aprofundar

1. Que transformações mais significativas sofreu a Liturgia com a virada constantiniana? Cite alguns
exemplos de inculturação da Liturgia com o advento da era constantiniana.
2. Com o advento da era constantiniana, a Igreja tem algo de especial a nos ensinar em termos de
Liturgia (celebração do mistério de Cristo)? O que nos ensina?
3. Que razões e situações levaram diferentes povos a criar um rito próprio para celebrar a Liturgia?
Nas diferenças desses ritos, que elemento teológico-litúrgico essencial estes povos procuraram
garantir?
4. A formação das famílias litúrgicas tem algo a nos ensinar? O que podemos aprender? Quais os
principais ritos e como se dividem?
5. Por que é importante estudar a Liturgia romana clássica? E que causas levaram à formação de
uma Liturgia tipicamente romana?
6. Como se formaram e como se dividem os livros litúrgicos da Liturgia romana pura? E qual o seu
significado e importância?
7. Quais os principais elementos característicos da Liturgia romana clássica? E o que mais chama
atenção de você em tais elementos? Por que?
8. A formação da Liturgia romana clássica tem algo a nos ensinar? O que podemos aprender?
9. Que elementos típicos da Liturgia romana clássica você percebe nas celebrações litúrgicas de sua
comunidade hoje? Faça uma lista...

Indicação bibliográfica para leitura complementar

ADAM Adolf. Corso di Liturgia, p. 26-35.


AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 31-41.
BASURKO Xavier. O culto na igreja do império. In: BOROBIO Dionísio (Org.). A celebração na
Igreja 1..., p. 70-88.
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Di-
cionário de Liturgia, p. 4-5
KLAUSER Theodor. Breve historia de la Liturgia occidental I, p. 39-66.
DALMAIS Irénée-Henri. As famílias litúrgicas orientais. In: MARTIMORT Aimé Georges (Org.).
A Igreja em oração. Introdução à Liturgia I, p. 48-60.
GY Pierre-Marie. História da Liturgia no Ocidente... In: MARTIMORT Aimé Georges (Org.). A
Igreja em oração. Introdução à Liturgia I, p. 62-68.
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 23-36.
MARSILI Salvatore & outros. Panorama histórico da Liturgia (= Anámnesis 2), p. 7-202. 249s.
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M.
(Orgs.). Dicionário de Liturgia, p. 527-534.
SCICOLONE Ildebrando. Livros litúrgicos. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M.
(Orgs.). Dicionário de Liturgia, p. 684-687.
59
CAPÍTULO III
A LITURGIA ROMANA EM ‘NOVA’ FASE, OU, A LITURGIA “ROMANA” DA IDADE
MÉDIA (SÉC. VIII-XIV)

Este é, sem dúvida, um dos períodos mais importantes da história da Liturgia para entender-
mos a Liturgia na história do Brasil e América Latina. Pois foi (como veremos mais tarde) com o
modelo de Liturgia deste período que os povos deste continente foram evangelizados durante bem
cinco séculos. Vale a pena conferir.

A PASSAGEM DA LITURGIA ROMANA PARA AS IGREJAS FRANCO-GERMÂNICAS

Na altura do século VII os diversos ritos litúrgicos, tanto do Oriente como do Ocidente, já
tinham adquirido as suas características fundamentais.
Um dos fenômenos mais interessantes e, talvez, dos mais importantes para entendermos in-
clusive as origens mais remotas da nossa cultura religiosa brasileira e latino-americana, é o fenômeno
da ‘migração’ da Liturgia romana para as terras franco-germânicas ao longo do século VIII e início
do século IX.
Esta ‘migração’ se deu primeiro de maneira quase imperceptível e um tanto casual, e depois
de maneira consciente. Por ela, a Liturgia romana foi adaptada à Liturgia galicana para depois voltar
(modificada) a Roma como fundamento da Liturgia ‘romana’ da Idade Média.
As principais causas desse processo de fusão são: 1) admiração pela Liturgia romana pelos
povos franco-germânicos; 2) crescente insegurança e insatisfação (da parte de muitos bispos e abades
franco-germânicos) pelo diversificado tipo litúrgico galicano.

1.1. O fenômeno da ‘migração’ da Liturgia romana

Inicialmente foram peregrinos dos países franco(gálico)-germânicos, cheios de admiração


pelo cerimonial, pelos edifícios e pelos textos da Liturgia romana, papal, que a tornaram
conhecida no norte com os seus relatos, com os seus esboços e croquis e, enfim com os
elementos de uma Liturgia grandiosa, monumental não obstante simples, como também a
sua peculiaridade teológica, sem contudo renunciar completamente ao seu patrimônio pró-
prio, tal como se conservou até hoje nos documentos da Liturgia galicana antiga (no Mis-
sale Gothicum, Francorum, Gallicanum Vetus), caracterizada por predileção pela lingua-
gem sentimental, cálida, comovente, e pela ação dramática54.

Dado o apreço que se tinha pela Liturgia de Roma, o imperador Carlos Magno, lá pelo ano
783, acabou pedindo ao papa Adriano I uma cópia de um sacramentário autenticamente romano. Seu
intuito, provavelmente por motivos políticos, era uniformizar a Liturgia em todo o império franco-
germânico e, assim, fortalecê-lo. Foi-lhe enviado cópia do Sacramentário Gregoriano.
Porém, assim que se começou a usar este livro nas igrejas do império, percebeu-se que nele
faltavam vários formulários de missas e de bênçãos que o povo tinha em alta consideração. Por este
motivo, foram incorporados ao sacramentário vários elementos próprios da Liturgia galicana em uso
nessas terras (bênçãos do círio pascal, orações para ordenações, bênçãos, dedicações de igrejas, exor-
cismos). Resultado: um sacramentário tipicamente romano acabou sendo adaptado às preferências
dos povos nórdicos pelo drama, pela abundância de palavras e pelo moralismo. E resultou daí uma
Liturgia híbrica, romano-franco-germânica, que aparecerá reelaborada em livros litúrgicos posterio-
res, entre os quais destaca-se o Pontifical Romano-Germânico do século X.

54
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicioná-
rio de Liturgia, p. 534.
60
1.2. Uma Liturgia híbrida (romano-franco-germânica): características
Às orações simples, breves e sóbrias da Liturgia romana, agora se misturam formulários lon-
gos, em linguagem comovente, cheia de sentimento e dramaticidade, próprios da Liturgia galicana. E
aos rituais austeros e práticos da Liturgia romana, agora se misturam cerimoniais elaborados e com
significados simbólicos próprios da Liturgia galicana.
“O tipo de Liturgia que resulta pode ser descrito com estas características: desenvolvimento
muito rico, material variado e abundante, novo estilo (mais extenso, bastante loquaz, dramático)” (M.
Augé, Liturgia..., p. 42).
A dramaticidade das orações e ações litúrgicas se liga à mentalidade religiosa dos povos
franco-germânicos, caracterizada por um acentuado pavor diante da divindade, uma forte consciência
de pecado, um inquietante sentimento de culpa, angústia diante da morte e do juízo iminente e, con-
sequentemente, um grande individualismo religioso (cada qual trate de “salvar a sua alma”!) apoiado
sobretudo nas devoções... São sentimentos e atitudes que agora vão impregnando fortemente a Litur-
gia...
Por isso, são introduzidas na missa inúmeras orações em que o sacerdote confessa privada-
mente e em silêncio as próprias culpas e pede perdão (prática que vai aparecer pouco a pouco no
começo de quase todas as partes da missa). E porque estamos diante do Juiz terrível, do mistério
tremendo, as orações (sobretudo a oração eucarística) devem ser ditas em voz baixa (em segredo!)
pelo sacerdote. Muitas orações são de tipo novo, dirigidas de preferência ao próprio Cristo e não mais,
como na forma romana clássica, ao Pai através de Cristo. A Liturgia é colocada longe do alcance do
povo. Não há mais participação ativa do povo na missa. O caráter comunitário, próprio da Liturgia
romana, desaparece. Todos os papéis que antes, na Liturgia romana clássica, eram distribuídos entre
vários ministros, agora são assumidos exclusivamente pelo sacerdote celebrante que, no seu isola-
mento lá no altar, reza a sua missa ‘para o povo’. O povo, que na missa perde o contato com a Palavra
e se ausenta cada vez mais da mesa da comunhão, é apenas um mudo espectador de uma Liturgia
clerical rezada à distância, em latim, de costas. Multiplicam-se os sinais da cruz e genuflexões do
padre na missa. Multiplicam-se as missas por intenções e devoções particulares. Multiplicam-se as
missas rezadas pelos padres privadamente, isto é, sem presença de pessoas. A missa é explicada não
como memorial pascal, mas alegoricamente (como uma espécie de ‘encenação’ simbólica dos passos
da paixão de Cristo feita pelos padres). Cresce a preferência pelas devoções. Multiplicam-se as festas
dos santos. Introduz-se a prática da penitência privada. O Tríduo pascal é dramatizado com a inclusão
do domingo de ramos, das cerimônias do lava-pés, da comovedora adoração da Cruz (com o “Eis o
lenho da cruz” cantado três vezes, os “impropérios”, e a aclamação “Deus Santo”), dos muitos e
profundos ritos da Vigília pascal (bênção do fogo, aclamação “Eis a Luz de Cristo“, solene louvação
do círio cantando o “Exsultet” e quase toda a cerimônia da bênção da água batismal). Tudo isso
praticamente não existia na Liturgia romana pura que, como dissemos, se caracterizava por nobre
simplicidade e sobriedade.

A missa deixa de ser um ato comunitário para converter-se numa devoção privada do sa-
cerdote ou de cada um dos fiéis assistentes. Também se perde o sentido pascal da celebra-
ção cristã: já não domina a ação salvadora de Deus mas o esforço humano de tipo devoci-
onal, e se dá mais importância aos aspectos sentimentais da meditação da paixão de Cristo
do que a dimensão mistérica da fé na ressurreição55.

Do período franco-germânico são também grandes composições literárias e poéticas para a


Liturgia. Uma delas é o famoso hino Veni Creator Spiritus (Vinde, Espírito Criador). Também deste
período são as magníficas igrejas românicas na Alemanha, França e Espanha.
Como se vê, a Liturgia romana passou por muitas e profundas transformações no encontro
com o temperamento franco-germânico. As atenções, que antes convergiam para o eixo central da
Liturgia (mistério de Cristo), se deslocam do essencial para uma infinidade de manifestações subje-
tivas de uma espiritualidade fortemente individualista, pouco pascal e pouco eclesial-comunitária. E

55
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 38.
61
o mais curioso é que esta Liturgia ‘transformada’ foi adotada mais tarde por Roma como sendo
‘Liturgia romana‘ obrigatória para todas as igrejas do ocidente!

2. ADOÇÃO DA LITURGIA ROMANO-FRANCO-GERMÂNICA PELA IGREJA DE ROMA

A partir do final do século IX a vida espiritual e litúrgica em Roma passa por uma tremenda
crise. A situação é tristemente decadente, caótica. Ao trono pontifício sobem homens indignos. Tanto
os papas como o clero em geral mostram pouquíssimo interesse pela vida litúrgica da Igreja. Nem
livros litúrgicos se faziam mais. O desleixo era total! A Liturgia romana estava ameaçada de morte.
Logo em Roma, que elaborou e viveu nos séculos IV ao VIII (como vimos acima) uma Liturgia
invejavelmente exuberante e rica, tanto em sua expressão externa como em sua teologia!...
Frente a essa situação intervém os piedosos imperadores Otão I e Otão II, da Alemanha. Em
suas viagens a Roma, ficavam horrorizados com o caos religioso e cultual que aí reinava. Resultado:
eles mesmos tomam a iniciativa de promover a vida litúrgica na cidade eterna. Como? Insistindo no
uso de livros litúrgicos que eles mesmos traziam de suas terras, isto é, os livros litúrgicos romano-
franco-germânicos.
Um exemplo: No ano 962, quando Otão I vai a Roma para ser coroado imperador, ele mesmo
leva consigo o Pontifical Romano-Germânico, escrito em Mogúncia por volta do ano 950. Esse Pon-
tifical acaba sendo adotado em Roma e, com base nele, posteriormente foram elaborados outros, pró-
prios para a Igreja de Roma.
Os imperadores alemães exerciam grande vigilância sobre a vida litúrgica romana. E até in-
tervinham quando julgavam necessário. Por exemplo, no dia 14 de fevereiro de 1014, quando Henri-
que II foi coroado imperador pelo papa Bento VIII, ele (o imperador) reclamou que na missa não se
recitou o “Creio”, como era costume em sua pátria. E exigiu a inclusão da fórmula de profissão de fé
na missa. Resultado: o papa obedeceu, e mandou introduzir o “Creio” na missa.
O que acontece, pois? A cidade eterna, berço da Liturgia romana, acaba adotando a Liturgia
híbrida romano-franco-germânica que se formara no norte dos Alpes a partir do século VIII.
Com isso, podemos dizer que a Igreja franco-germânica salvou a Liturgia romana em seu
tempo de crise. A vida litúrgica e espiritual em Roma assume um novo estilo, uma nova sensibilidade
com a contribuição dos povos franco-germânicos. Assume o estilo romano-franco-germânico, cujas
peculiaridades já nos é conhecida.

3. A REFORMA DE GREGÓRIO VII

Superada a decadência sofrida por Roma no século X, os papas voltam a assumir a rédeas da
Liturgia romana, cedidas durante quase três séculos aos soberanos e aos bispos do norte dos Alpes.
O primeiro papa que se destaca neste sentido é Gregório VII (1073-1085). Seu intuito é recu-
perar as tradições antigas. Ele mesmo avalia desfavoravelmente o período imediatamente anterior, no
qual - como diz - “o comando da Igreja romana havia sido entregue aos teutões”.
Gregório VII tomou a decisão de promover uma ampla e profunda reforma na Igreja. Tal
reforma consistia, entre outras, em moralizar o clero e aumentar o apreço pelo sacerdócio. Neste
contexto entra o interesse específico pela Liturgia. A Liturgia (como prega a reforma gregoriana)
exige dignidade, santidade e coerência de vida de quem tem o dever de presidi-la. No entanto, por
falta de conhecimento histórico, pensava-se mais em Liturgia interpretada como atividade própria e
quase exclusiva dos sacerdotes (“coisa de padre”, diríamos hoje!). Como se vê, nesse trabalho de
moralização do clero, reforça-se ainda mais a monopolização clerical da Liturgia, herdada da tradição
franco-germânica. Assim sendo, mesmo buscando o retorno às antigas tradições, Gregório VII não
recupera o caráter comunitário próprio da Liturgia romana clássica dos séculos IV a VIII.
A reforma gregoriana visa também garantir definitivamente a autoridade suprema do papa.
Como consequência, se dá um processo de centralização romana. Em termos cultuais, todas as Igrejas
no Ocidente são obrigadas a seguir o modelo de Liturgia da cúria romana, isto é, o tipo de Liturgia
que o papa e seus colaboradores celebram, e que no fundo (mesmo com os retoques feitos dos livros
litúrgicos), mantém a estrutura fundamental romano-franco-germânica adotada no tempo dos Otões.
Um dos resultados típicos dessa centralização foi a supressão da Liturgia hispânica.
62
Numa palavra, a reforma litúrgica de Gregório VII teve pouco sucesso. Não se conhecendo
a real situação histórica, acaba se instaurando e consolidando em Roma (e de Roma para o mundo!)
a Liturgia ‘romano’-franco-germânica.

4. A REFORMA DE INOCÊNCIO III

O papa Inocêncio III (1198-1216) dedicou-se à reforma dos livros litúrgicos. Ele “codificou
os costumes na igreja romana para o uso da sua cúria. Embora se tendesse à forma romana clássica,
o resultado continuou permeado de legalismo, de alegorismo e de pietismo”56.
Na Liturgia romana clássica, como já vimos, para cada ator da celebração havia um livro.
Uma praxe que expressava bem o caráter comunitário da celebração litúrgica naquela época. Com o
tempo, porém, a participação ativa diminui de tal maneira que tudo acaba sendo confiado ao sacer-
dote. Este monopoliza todas as ações. Acaba sendo o único ator, enquanto os fiéis assistem passiva-
mente. Com isso, para ser mais prático, evitando o incômodo de vários livros litúrgicos ao mesmo
tempo (Sacramentário, Lecionário, Antifonário etc.), resolvem juntar todos esses num livro só, cha-
mando-o de “Missal pleno”. Nasce assim o livro que depois vão chamar simplesmente de “Missal”,
próprio para ser usado pelos padres quando rezam a missa sozinho, isto é, sem a presença de pessoas.
Um livro, portanto, que não supõe nem prevê a presença de uma assembleia litúrgica. E é esse o livro
que vai se impondo como modelo obrigatório para todas as igrejas. O mais importante é o chamado
“Missal segundo o costume da cúria”, composto para ser usado na cúria do papa Inocêncio III. Esse
missal foi amplamente difundido pela Europa afora pelos pregadores itinerantes da recém-fundada
Ordem dos Frades Menores.
O mesmo aconteceu com o livro da oração eclesial. “Por motivo de comodidade e para a
oração privada, inclui-se num único livro, geralmente de formato reduzido, tudo o que é necessário
para ao Ofício Divino, chamado mais tarde de ‘Breviário’. O mais conhecido é o Breviarium segun-
dum consuetudinem romanae curiae (Breviário segundo o costume da cúria romana), difundido por
obra dos Frades menores, que o adotaram oficialmente em 1223”57.

5. A LITURGIA “ROMANA” DA IDADE MÉDIA: ALGUMAS CARACTERÍSTICAS

Não obstante as reformas de Gregório VII e Inocêncio III, a Liturgia continua se impondo
como um fato clerical, distante do povo. A dimensão comunitária da celebração continua sendo rea-
lidade de um passado já distante.
Consequentemente, continua se impondo a ausência de participação ativa do povo na Liturgia.
Sua ‘participação’ é outra: enquanto o padre, isolado, ‘reza’ a missa lá no altar distante, o povo (do
‘lado de cá’) se entretém com suas devoções particulares. Nem da comunhão o povo participa mais.
Esta é substituída pela adoração da hóstia. Ver a hóstia, de longe, adorando-a, tornou-se uma forma
de “comungar”. Por isso que, então, os padres adotaram o costume de levantar bem alto a hóstia (e,
mais tarde, o cálice), na hora da consagração. Para o povo ver e prestar adoração ao Senhor terrível
que “desceu sobre o altar”, na hóstia consagrada e no cálice de vinho. O momento da elevação tornou-
se como que o ponto alto, o momento mais importante e central da missa. E o desejo de ver a hóstia
tornou-se uma verdadeira febre para os fiéis. Introduziram até o costume de tocar campainhas na hora
da elevação, exatamente para chamar a atenção e enfatizar o momento. Bastava ver a hóstia e o povo
já se dava por muito satisfeito. Tudo isso virou costume...

O que antes era assembleia, caridade, sacrifício e comunhão, se reduz em adoração das
espécies eucarísticas. De modo semelhante, Corpus Christi se converte na festa mais im-
portante do ano litúrgico, solenemente superior até mesmo à Páscoa, e se começa a desen-
volver a ‘piedade eucarística’ num sentido muito distante do primitivo58.

56
CHUPUNCGO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs. Dicionário de Liturgia,
p. 6.
57
AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 47.
58
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 40.
63
Continua se impondo o costume ‘devocional’ das missas privadas pelos defuntos, em honra
dos santos e por diferentes intenções particulares, que se multiplicam a olhos vistos. Consequente-
mente, multiplicam-se também os padres “altaristas” (padres ordenados só para rezar missa). Sem
falar dos abusos em relação aos estipêndios recebidos pelas missas. Multiplicam-se ainda mais as
apologias na missa. A dramatização de gestos e ações litúrgicas do padre na missa (muitos sinais da
cruz, movimentos de um lado para outro do altar, genuflexões etc.) aproximam a Liturgia do teatro
religioso medieval.
Não faltaram sutis reações e resistências com relação ao “perigo” das missas privadas. Des-
taco a exortação feita por Francisco de Assis aos seus frades: “Admoesto e exorto no Se-
nhor a que, nos lugares onde moram os irmãos, seja celebrada apenas uma missa por dia,
segundo a forma da santa Igreja. Se, porém, houver muitos sacerdotes no lugar, por amor
à caridade, contente-se um em ouvir a celebração do outro sacerdote”59.

Quanto ao batismo, desaparece o catecumenato e tudo fica reduzido ao momento do batismo


de crianças. A confirmação, agora um sacramento independente do batismo, é celebrada com maior
destaque sobre a unção do que sobre a imposição das mãos. A penitência privada se consolida, rece-
bendo o nome de “confissão”. Os ritos de ordenação, por influência da mentalidade galicana, se dra-
matizam e se complicam: insiste-se mais nos ornamentos, nas unções e na entrega dos instrumentos
próprios de cada ministério. O matrimônio passa a ser celebrado na porta da Igreja, com uma inves-
tigação prévia e pedido expresso do consentimento. A prática da unção dos enfermos, por acabar
ficando muito ligada à “confissão”, torna-se exclusiva dos sacerdotes.
Os sacramentos não são vistos mais tanto como celebração do mistério pascal em diferentes
situações da vida humana, mas antes como “remédio” que purifica, cura, previne e fortalece. Uma
espécie de ‘vacina’ espiritual, especialmente eficaz, “administrada” aos fiéis!...
A própria teologia, que primitivamente se elaborava a partir da experiência do mistério de
Deus celebrado na Liturgia (Palavra proclamada e Sacramento), agora (com a escolástica) se trans-
forma em especulação racional sobre Deus e seus mistérios em categorias aristotélicas.

Com tudo isso, a vida espiritual do povo cristão caminha à margem e fora do âmbito litúr-
gico. Há um notável aumento de devoções privadas, das quais algumas se popularizam -
por exemplo o rosário e a via-sacra - e servem para alimentar e manter a piedade dos cris-
tãos. De certo modo, inclusive a própria Liturgia se converte numa devoção, como pode-
mos concluir da afeição pelas missas votivas, pelas missas em honra de determinados san-
tos, pelas séries de missas aplicadas por intenções particulares. Na época medieval, há um
exuberante florescimento da mística, mas reduzida a minorias muito pequenas e, em geral,
distantes das formas litúrgicas da oração60.

6. A LITURGIA NO “OUTONO DA IDADE MÉDIA”

O crescente individualismo religioso atinge o seu auge no chamado “outono da Idade Média“
(séculos XIV e XV). Trata-se de um período em que a vida e a espiritualidade litúrgicas decaem de
forma acentuadamente progressiva.
Preocupante era a mentalidade que se difundia acerca dos “frutos da missa”. A Santa Missa
como benefício pelos vivos e pelos mortos torna-se o tema fundamental das pregações sobre a missa,
enumerando-se os frutos que dela se obtém, mesmo com a mera assistência. A religião vira um grande
jogo de negociata com Deus. Acredita-se que, com a multiplicação de missas votivas e com determi-
nadas séries de missas, consegue-se de modo infalível o “fruto” da missa, a salvação da alma.
Com esses recursos nas mãos do clero, o povo é estimulado a frequentar e a encomendar
missas votivas, multiplicando as missas de modo anormal e aumentando desmesurada-
mente o número de ‘altaristas’, um proletariado clerical que vive praticamente de salá-
rios...61.

59
Carta enviada a toda a Ordem, 30-31. In: Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes/FFB. 2004, p. 123.
60
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 42.
61
BASURKO Xavier. A Liturgia no “outono da Idade Média”. In: BOROBIO Dionísio (Org.). A celebração na Igreja
1..., p. 107.
64

Neste período floresce também o drama no âmbito litúrgico. Já o havia no século XII. Mas
agora, nesse período caracterizado por total ignorância litúrgica, as representações dramáticas apare-
cem como um elemento sumamente importante do culto público. Nesse tempo em que a Liturgia nada
mais dizia às pessoas, os pastores adotam as representações sacras (teatro sacro) como forma de ins-
trução catequética.
É também o período em que surge um intenso movimento espiritual chamado “devotio mo-
derna”. “Caracterizado pelo realismo psicológico, pela desconfiança com relação aos gestos brilhan-
tes e heróicos, pelo amor à seriedade, à solidez e moderação prudente, esse movimento enfatiza mais
a oração interior do coração do que a oração vocal e a ação litúrgica”62. Dentre os mestres deste tipo
de espiritualidade intimista, destaca-se Tomás de Kempis (1379-1471) com o seu livro Imitação de
Cristo.
Sobre a “devotio moderna” assim se expressa Salvatore Marsili:

a vida espiritual não encontra alimento nem na Liturgia nem nas devoções, porque são
ambas igualmente atingidas pelo materialismo cultual; nem tira proveito maior a teologia
que se entrincheirou no intelectualismo. Para que se produza uma vida espiritual ‘nova’, é
preciso voltar-se para uma profunda vida interior, orientada para a imitação de Cristo, e
que se deve alcançar através da meditação e da oração pessoal. É o verdadeiro nascimento
do individualismo religioso: a salvação não é tanto obra alcançada através dos mistérios de
Cristo (Sacramentos)..., mas é o resultado de um esforço psicológico63.

Estamos, pois, num período em que a piedade em geral é caracterizada por um individualismo
religioso carregado de sentimentos intensos, de intimismo, de máximo pathos (paixão). A piedade
em relação ao Cristo Senhor é cada vez mais realística, mais humana, de tom intimista. O mesmo se
diga em relação è piedade mariana e ao culto dos santos. A piedade popular atinge o auge de autono-
mia em relação à piedade propriamente litúrgica.

7. RESUMINDO

Com o fenômeno da “migração” da Liturgia romana para as igrejas franco-germânicas, a no-


bre simplicidade de uma Liturgia romana austera e prática se mistura com a loquacidade sentimental,
comovente e dramática da Liturgia galicana que reflete bem a mentalidade religiosa dos povos franco-
germânicos (caracterizada por um pavor diante da divindade, forte sentimento de culpa, medo do
juízo, um grande individualismo). Surge uma Liturgia híbrida: romano-franco-germânica.
Esta ‘nova’ Liturgia, tanto em sua expressão externa quanto em sua compreensão teológica e
vivência espiritual, vem carregada de dramatização nas ações, forte individualismo, clericalismo e
devocionalismo.
Em tempo de crise espiritual e litúrgica na Igreja de Roma a partir do século IX, implanta-se
na cidade eterna, por influência dos piedosos imperadores Otões, a Liturgia romano-franco-germâ-
nica, cuja história nos é conhecida. Assim foi “salva” a Liturgia da diocese de Roma em tempo de
crise.
Superada a decadência sofrida por Roma no século X, o papa Gregório VII assume as rédeas
da Liturgia romana, mas sem grandes sucessos. Por causa da supervalorização do sacerdócio minis-
terial (ordenado), acaba reforçando a monopolização clerical das ações litúrgicas. Não consegue, por-
tanto, recuperar o caráter comunitário e participativo da Liturgia romana antiga. Além do mais, a
centralização romana que se instaura em torno da autoridade papal faz com que todas as igrejas do
Ocidente sejam obrigadas a adotar o tipo de Liturgia que em Roma é celebrada.
Outro papa que se destaca na reforma litúrgica romana é Inocêncio III. Dedicou-se, sobretudo,
à reforma dos livros litúrgicos, adaptando-os para o uso da cúria romana, onde a maioria dos padres
rezava a missa privadamente. Surge daí o Missal da cúria romana, um livro que, naturalmente, não

62
Ibid., p. 108.
63
Cf. Rumo a uma teologia da Liturgia. In: NEUNHEUSER Burkhard & outros. Liturgia, momento histórico da salvação,
p. 80.
65
prevê a presença de uma assembleia litúrgica. Este missal foi amplamente difundido pela Europa
afora através dos franciscanos. O mesmo se deu com o livro de oração eclesial (Ofício Divino). Con-
solida-se, assim, para a Igreja do Ocidente a estrutura básica e o espírito da Liturgia híbrida ‘romano’-
franco-germânica.
Transformada a Liturgia num fato clerical (não mais como celebração da comunidade), o povo
(sem participação ativa) mergulha no emaranhado das inúmeras devoções particulares, dentre as quais
se destaca a adoração da hóstia na missa. O costume ‘devocional’ das missas privadas leva à multi-
plicação dos padres “altaristas”. As missas são dramatizadas com a introdução de muitos gestos e
movimentos rituais do padre no altar. Também os sacramentos passam por mudanças significativas e
são vistos mais como “remédio”. A própria teologia agora virou especulação racional sobre Deus e
seus mistérios em categorias aristotélicas. Numa palavra, a vida espiritual do povo cristão caminha à
margem e fora do âmbito da Liturgia como celebração do mistério pascal.
No “outono da Idade Média” o individualismo religioso se exacerba. A super-propaganda dos
“frutos” da missa transformam a religião num grande jogo de negociata com Deus. Adotam-se as
representações sacras como meio de ‘suprir‘ uma Liturgia totalmente fora do alcance popular. A es-
piritualidade se carrega de extremo intimismo. A piedade popular atinge o auge de autonomia em
relação à piedade litúrgica.

Perguntas para aprofundar

1. Como se deu a passagem da Liturgia romana para as igrejas franco-germânicas? Quais os resul-
tados dessa passagem? Quais as consequências da fusão entre a Liturgia romana e a Liturgia ga-
licana?
2. Quais as principais particularidades da nova Liturgia híbrida romano-franco-germânica? E quais
as razões de tais particularidades?
3. A história da formação desta Liturgia romano-franco-germânica tem algo a nos ensinar hoje? O
que podemos aprender?
4. Por que “Liturgia ‘romana’ da Idade Média”?
5. O que mais lhe chamou a atenção ao estudar a Liturgia “romana” da Idade Média? Alguma coisa
lhe chamou a atenção sobre a atuação dos imperadores Otões sobre a Liturgia romana? Qual o
resultado ‘positivo’ desta atuação?
6. Quais as características e consequências das reformas litúrgicas de Gregório VII e Inocêncio III?
7. Quais as principais peculiaridades da Liturgia “romana” da Idade Média? E em que se caracteriza
a Liturgia do “outono da Idade Média”?
8. Consegue ver alguma ligação entre a Liturgia “romana” da Idade Média e as nossas celebrações
litúrgicas hoje? Que ligações?

Indicação bibliográfica para leitura complementar

ADAM Adolf. Corso di Liturgia, p. 35-42.


AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 41-49.
BASURKO Xavier. De Gregório Magno a Gregório VII / De Gregório VII a Trento. In: BOROBIO
Dionísio (Org.). A celebração na Igreja 1..., p. 88-111.
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Di-
cionário de Liturgia, p. 5-6.
GY Pierre-Marie. História da Liturgia no Ocidente. In: MARTIMORT Aimé Georges (Org.). A Igreja
em oração. Introdução à Liturgia I, p. 68-74.
KLAUSER Theodor. Breve historia de la Liturgia occidental I, p. 62-78; Breve historia de la Liturgia
occidental II, p. 3-23.
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p 37-42.
MARSILI Salvatore. & outros. Panorama histórico da Liturgia (= Anámnesis 2), p. 161-202, 252-
261.
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M.
(Orgs.). Dicionário de Liturgia, p. 534-537.
66
CAPÍTULO IV
REFORMA LITÚRGICA DO CONCÍLIO DE TRENTO E CONSEQUÊNCIAS

Nos anos 1545-1563 celebrou-se o famoso concílio de Trento, como reação ao levante pro-
testante contra uma série de abusos existentes dentro da Igreja, também no que diz respeito à Liturgia.
Trento tomou pé da situação e promoveu algumas reformas litúrgicas importantes.
No século XVI a situação da Liturgia no Ocidente é lamentável. Pode comparar-se a um
cadáver ricamente adornado, mas sem vida e com sintomas de decomposição. Os ritos e as
cerimônias são executados sem sentido pastoral e acompanhadas de uma série de abusos e
superstições64.

Também este é um capítulo dos mais importantes na história da Liturgia para entendermos a
Liturgia na história do Brasil e América Latina. Pois foi (como veremos) também com o modelo pós-
tridentino de Liturgia que os povos deste continente foram evangelizados durante cinco séculos. Vale
a pena conferir.

1. PROPOSTA DE REFORMA LITÚRGICA PROTESTANTE

A anarquia litúrgica na Igreja romana é muito grande e o povo permanece alienado da Liturgia,
cumprindo apenas o mínimo do que era prescrito como obrigação de assistência aos atos de culto.
Nesse contexto, é natural que venham à tona vozes de protesto, dentre as quais se destaca Lutero e
seus seguidores.

Os reformadores acusam com muita razão a decadência da Liturgia, sua falta de espírito
evangélico. Eles exigem o uso da língua do povo, a participação efetiva da assembleia, a
recitação da oração eucarística em voz alta (recitação que, há séculos..., se fazia em voz
baixa), a simplificação de muitos ritos, isto é, uma série de coisas que a Igreja católica
acabará concedendo, mas com quatro séculos de atraso, na reforma litúrgica do Concilio
Vaticano II”65.
“As reformas litúrgicas de Martinho Lutero e dos seus contemporâneos continham indubi-
tavelmente importantes pontos positivos: culto em língua vernácula, comunhão sob duas
espécies, superação do excessivo cunho privado existente na celebração da missa, insistên-
cia na recepção da comunhão durante a missa, sobretudo eliminação de abusos. Mas, apesar
de uma vontade muitas vezes reta e sincera, o objetivo não foi atingido. Os reformadores
aboliram em demasia elementos do patrimônio autêntico da tradição e, juntamente com o
contato com a grande igreja, perderam também o caminho de acesso ao tesouro hereditário
das origens apostólicas (cf. o julgamento de historiadores protestantes equilibrados a pro-
pósito da Liturgia)66.

2. ABUSOS LITÚRGICOS COLHIDOS PELO CONCÍLIO TRENTO

Ao tratar da Liturgia, uma das coisas que o concílio logo procurou fazer foi estudar a situação
das celebrações, especialmente da missa. Como resultado, elaborou uma lista dos principais abusos
que até então haviam sido introduzidos na maneira de celebrar a Liturgia. Damos aqui alguns exem-
plos.
Alguns dos abusos revelam como se havia perdido o sentido autêntico de comunidade ou
assembleia litúrgica (missas votivas e de defuntos nos domingos; várias missas celebradas simulta-
neamente em espaços muito próximos; missas privadas celebradas em altares laterais enquanto se
celebrava a missa solene no altar mor).
Outros abusos revelam um conceito equivocado em torno da eficácia das palavras sacramen-
tais. Por exemplo:

64
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p.43.
65
Ibid.
66
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicioná-
rio de Liturgia, p. 537).
67

Alguns, quando rezam a missa, não mantém a gravidade, mas pronunciam as palavras sa-
gradas feito palhaços e, como se fizessem teatro, ora levantam a voz bem forte, ora apenas
a sussurram em voz baixa e, desse jeito, pronunciam aos tropicões palavras que deveriam
ser ditas com o mesmo tom sério e comedido. Outros, quando chegam as palavras da con-
sagração aproximam a boca da hóstia e do cálice e, como se lançassem alento sobre eles,
dizem aos poucos cada uma das palavras da consagração e fazem com a cabeça o sinal da
cruz, como se estes gestos conferissem mais força consecratória às palavras do Senhor ou
toda a virtude da consagração estivesse colocada neste tipo de gestos: quando as palavras
da consagração devem ser ditas de maneira simples sobre a hóstia e o vinho” (Concílio de
Trento).

Outros abusos manifestam o sentido mágico dado aos ritos, bem como os exageros em torno
das procissões de Corpus Christi. Por exemplo:

Alguns fazem sobre a hóstia consagrada mais cruzes e sinais do que o estabelecido. Exe-
cutam as cruzes de tal maneira que, mais que fazer o sinal da cruz, parecem gesticular
provocando risos nos assistentes. Outros, depois da consagração, pegam com as duas mãos
a hóstia e, mantendo a cabeça inclinada, a levantam até a nuca, tocando muitas vezes os
cabelos, com o grave perigo de rompê-la”.
Nas procissões de Corpus Christi se engalanam as ruas com ornamentos que são antes pin-
turas lascivas nada dignas de tão magno espetáculo, e inclusive às vezes fazem pelas ruas
bailes, danças e representações teatrais totalmente profanas (Concílio de Trento).

3. A OBRA LITÚRGICA DO CONCÍLIO DE TRENTO

Consciente da situação lamentável em que se encontrava a maneira de celebrar a Liturgia, no


dia 17 de setembro de 1562 o concílio aprovou um decreto sobre o que devia ser observado e evitado
na celebração da missa.
O concílio cortou muitos dos abusos. Mas não cedeu a várias reivindicações dos reformadores
luteranos. Manteve a obrigatoriedade tanto da Liturgia em latim como da recitação da oração euca-
rística em segredo. Logo, não favoreceu a participação direta do povo na celebração litúrgica.
Na verdade, no âmbito da Liturgia, a maior atenção do concílio se centrou em assuntos de tipo
dogmático em torno dos sacramentos. Por exemplo, diante da negativa protestante a respeito da missa
como sacrifício e da presença real, o concílio estudou a questão e esclareceu-a teologicamente, afir-
mando o caráter sacrifical da missa e a presença real de Cristo na eucaristia.
Infelizmente, quando Trento aborda teologicamente a eucaristia, a doutrina é apresentada em
três sessões (capítulos) diferentes: a presença real (sessão XIII), a comunhão (sessão XXI) e o sacri-
fício (sessão XXII). Isso pedagogicamente não foi nada bom. Dificultou, posteriormente, a busca de
uma síntese integrada e harmônica da doutrina eucarística, o que também na prática levou os católicos
a ver o “altar”, a “mesa da comunhão” e o “sacrário” como realidades totalmente separadas. A teolo-
gia sacramental sobre a eucaristia acabou ficando distorcida e fragmentada.
Em suma, como aspecto positivo da obra litúrgica de Trento, podemos ressaltar a busca de
correção de muitos abusos, bem como os esclarecimentos teológicos sobre os sacramentos em geral
e a eucaristia de modo especial. Como dado negativo podemos ressaltar a não aceitação de muitas
das reivindicações pastorais dos reformadores. E temos também um aspecto ambivalente: Dada a
falta de tempo, o concílio entregou nas mãos do papa toda decisão posterior em matéria litúrgica:
“Isso constituía uma solução de emergência diante da anarquia reinante, mas manterá a Liturgia ro-
mana completamente petrificada durante quatro séculos”.67
Nas mãos do papa ficou a tarefa de publicar os livros litúrgicos. Pio V publicou o Breviário
romano (1568) e o Missal romano (1570). Clemente VIII publicou o Pontifical romano (1596) e o
Cerimonial dos bispos (1600). Paulo V publicou o Ritual romano (1614; não obrigatório).
Em todos esses livros transparece a intenção de voltar às fontes antigas e genuínas da Liturgia,
mas, por falta de conhecimento das fontes, o que se fez foi uma purificação e restauração do rito
67
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 47.
68
romano com base nas formas herdadas dos tempos de Gregório VII a Inocêncio III. Portanto, basi-
camente continuamos ainda com a estrutura romano-franco-germância.

4. ERA DAS RUBRICAS E INFLUÊNCIA BARROCA

As fórmulas e os ritos codificados nos livros litúrgicos agora são obrigatórios para toda a
Igreja latina (menos para as dioceses e ordens religiosas com tradição própria de mais de dois sécu-
los). E fica expressamente proibida a introdução de qualquer modificação. Para controlar esta Liturgia
uniforme, fixa e inalterável, o papa Sisto V cria em 1588 a Sagrada Congregação dos Ritos. Esta tem
como missão, não tanto dar continuidade à reforma, mas velar pelo exato cumprimento de todas as
normas estabelecidas. Com isso, de agora em diante, a preocupação do clero se centrará mais no
cumprimento rigoroso das normas litúrgicas do que na celebração do mistério pascal. Entramos na
era das rubricas, no tempo do rubricismo e do legalismo litúrgico. Estudar Liturgia significava então
assimilar as leis que regem o culto. Tudo sob a exuberante roupagem do barroco.
O barroco é um movimento cultural que expressa bem o espírito da Contra-reforma. Depois
da crise provocada pela Reforma protestante, a Igreja católica se sente segura, forte, vitoriosa. Respira
um ar triunfalista, o que se reflete sobretudo na Liturgia. Numa atitude radicalmente anti-protestante,
acentua-se cada vez mais a presença real de Cristo na eucaristia, omitindo os demais aspectos do
sacramento. Insiste-se cada vez mais na dignidade do sacerdócio dos ministros ordenados, resultando
daí a separação sempre mais profunda entre o que o padre diz e faz no altar e o que o povo pratica
durante a celebração. Missa na língua do povo: nem pensar! Qualquer tradução, impressão e posse
do missal traduzido serão sujeitas a severa condenação (até mesmo com excomunhão!), como amea-
çou o papa Alexandre VII em 166168. As celebrações litúrgicas barrocas são brilhantes e espetacula-
res, mas cada vez mais longe do verdadeiro espírito da Liturgia.

Uma característica do barroco é a tendência a acentuar os aspectos periféricos da Liturgia.


Os altares laterais se multiplicam, como também as imagens dos santos e de Maria; a co-
munhão se separa do contexto da missa e se converte numa devoção privada; a homilia vira
‘sermão‘, sai da celebração eucarística e de seus textos, e se desenvolve no ‘púlpito’, trans-
formado em cátedra de oratória sacra; a reserva eucarística se guarda, não na sacristia ou
na parede, mas em sacrários sobre o próprio altar...; os sacrários são cada vez mais monu-
mentais e luxuosos, com ‘templinhos’, baldaquinos, degraus etc.; também se desenvolve a
música sacra: é a época do auge da polifonia, porém não orientada à finalidade de serviço
ao culto, mas como um concerto que tem valor em si mesmo, de modo que a igreja se
transforma num salão, com palcos e galerias, coro alto etc., no qual a missa é ‘ouvida’; há
uma grande riqueza e luxo nos elementos artísticos, sobretudo nos imponentes retábulos
barrocos, em relação aos quais o altar mor fica reduzido à categoria de um simples suporte
ou peanha; as múltiplas devoções eucarísticas (quarenta horas, procissões, exposições do
Santíssimo) superam em esplendor e solenidade à própria missa, que é - segundo o cate-
cismo de Kettler, de 1734 - ‘uma das cinco maneiras de adorar a Cristo na eucaristia’; neste
culto eucarístico se introduz o cerimonial de tipo cortesão, semelhante ao que na época
constantiniana foi se infiltrando nas cerimônias cristãs, mas tendo naquela ocasião como
destinatários os bispos e sacerdotes; agora, é a Divina Majestade de Cristo presente na eu-
caristia que recebe as honras que as cortes mundanas tributam a seus príncipes69.

Como se vê, a Liturgia reformada por Trento e praticada de modo uniforme por todos, “não
foi capaz de resistir às pressões da cultura religiosa do tempo: ao gosto pela festividade e pelas gran-
diosas manifestações exteriores; ao triunfalismo, especialmente nas peregrinações e nas procissões
com os estandartes; à sensualidade na expressão artística e às devoções de piedade. Assim fica per-
feitamente compreensível que a festa por excelência do barroco tivesse que ser a de Corpus Domini
com a sua solene procissão completa de estandartes, roupas próprias e guardas de honra. Até o edifício

68
Cf. MARSILI Salvatore . A Liturgia, momento histórico da salvação. In: NEUNHEUSER Burkhard. & outros, A Litur-
gia, momento histórico da salvação (= Anámnesis 1). Op. cit., p. 85.
69
Llopis Joan. La liturgia a través de los siglos, p. 51.
69
da igreja foi transformado em palácio ornado para festa, destinado a receber o rei eucarístico, em
salão cuidadosamente decorado e dominado por tabernáculo imponente, como se fosse trono apoiado
sobre o altar. A missa, por conseguinte, passou a ser uma celebração cujo cunho festivo era exaltado
pela orquestra e pela música polifônica, enquanto a consagração era saudada por uma banda de mú-
sica e pelo som jubilante de sinos. No entanto, a participação ativa na Liturgia em si era quase zero;
os elementos exteriores foram enaltecidos de modo exagerado, ao passo que o essencial ficou mini-
mizado e relegado à periferia. Para muitos a missa constituía excelente ocasião para a recitação do
rosário ou do terço e para cada um se entregar às suas devoções particulares e aos santos padroeiros.
Mas, apesar de tal regresso, devemos admitir que o modo barroco de celebrar a Liturgia correspondia
estritamente, pelo menos na sua situação histórica particular, ao temperamento das pessoas”70.

5. RESUMINDO

Frente à anarquia reinante no fim do “outono da Idade Média”, vêm à tona vozes de protesto,
dentre as quais se destacam Lutero e seus seguidores. Estes exigem volta ao espírito evangélico, pelo
qual o povo volte a ter voz e vez no culto.
O concílio de Trento, por sua vez, convocado como reação às contestações protestantes, colhe
uma lista dos principais abusos realmente existentes na Igreja. Inclusive publica um decreto sobre o
que era necessário observar e evitar na celebração da missa.
Mas não cedeu a várias reivindicações dos reformadores. Por exemplo, a Liturgia deve conti-
nuar a ser celebrada em latim, e a oração eucarística deve continuar a ser recitada em segredo.
Mas a maior atenção do concílio foi centrada sobre assuntos dogmáticos em torno dos sacra-
mentos. Quanto à eucaristia, a forma de abordá-la trouxe sérios inconvenientes no futuro: o fato de
ter tratado da presença real, da comunhão e do sacrifício em separado, levou os católicos a ver “altar”,
“mesa da comunhão” e “sacrário” como realidades totalmente separadas. A teologia eucarística pos-
terior acabou ficando fragmentada e distorcida.
Como resultado posterior decorrente do concílio de Trento veio a publicação dos livros litúr-
gicos. Estes conservam a estrutura romano-franco-germânica herdada dos tempos medievais e são
tornados fixos, inalteráveis e obrigatórios para todas as igrejas.
Entra-se, pois, na era do rubricismo e do legalismo litúrgico, sob a exuberante roupagem do
barroco, o qual, refletindo a vitória católica anti-protestante, transforma a Liturgia num rico e luxuoso
ambiente de festa em honra de Sua Majestade o Rei Eucarístico, de Maria e dos santos, ao som de
encantadores concertos de orquestras e corais polifônicos. O gosto pelas devoções e pelas procissões
toma totalmente conta da alma popular. A prática das missas privadas continua. E a participação ativa
do povo na Liturgia é quase zero.

Perguntas para aprofundar

1. Quais as principais propostas de reforma litúrgica de Lutero e seus seguidores?


2. Quais os principais abusos litúrgicos que existiam na Igreja, e que exigiam correção imediata?
3. Qual a obra litúrgica do concílio de Trento? Quais os aspectos positivos e limites desta obra?
4. Quais os livros litúrgicos produzidos e publicados depois do concílio de Trento? Quais os aspectos
positivos e limites desta imensa obra no seu conjunto?
5. Por que chamamos o período pós-tridentino de “era das rubricas”?
6. Que tipos de influência recebeu a Liturgia do movimento cultural barroco? Que caracteristicas e
problemas da Liturgia no período barroco você detecta?
7. Consegue ver alguma ligação entre a Liturgia reformada por Trento, com suas consequências, e
as nossas celebrações litúrgicas hoje? Que ligações?

70
CHUPUNGCO Ancar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicionário de Liturgia,
p. 7.
70

Indicação bibliográfica para leitura complementar

ADAM Adolf. Corso di Liturgia, p. 42-46.


AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 48-53.
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Di-
cionário de Liturgia, p. 6-7.
GOENAGA José Antônio. De Trento ao movimento litúrgico. In: BOROBIO Dionísio (Org.). A ce-
lebração na Igreja 1..., p. 112-125.
JOUNEL Pierre. Do Concílio de Trento ao Vaticano II. In: MARTIMORT A. G. (Org.), A Igreja em
oração. Introdução à Liturgia I..., 75-80.
KLAUSER Theodor. Breve historia de la Liturgia occidental II, p. 25-45.
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 43-53.
MARSILI Salvatore & outros. Panorama histórico da Liturgia (= Anámnesis 2), p. 195-202, 264-
270.
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M.
(Orgs.). Dicionário de Liturgia, p. 537-538.

CAPÍTULO V
A LITURGIA QUE O BRASIL E AMÉRICA LATINA HERDARAM

Falamos acima (amplamente, de propósito), da Liturgia na Idade Média e no período triden-


tino e pós-tridentino, ressaltando suas principais características. O conhecimento dessa Liturgia,
como havíamos alertado, é decisivo para entendermos as raízes históricas de nossa própria cultura
religiosa brasileira e latino-americana, isto com vistas aos desafios no processo de inculturação litúr-
gica daqui para frente, segundo o espírito do Concílio Vaticano II.
Não se trata aqui de levantar todos os pormenores da Liturgia na história do continente latino-
americano. Basta apresentarmos alguns ‘resultados litúrgicos’ da evangelização neste continente, fo-
calizando mais o Brasil. Queremos chamar a atenção para a Liturgia que herdamos, sobretudo, no
período colonial, e para algumas adaptações desta Liturgia no nosso contexto social e religioso. De
certa maneira, o que aconteceu no Brasil, no fundo valeu para os demais países da América Latina.

1. A LITURGIA QUE HERDAMOS

A Liturgia que herdamos foi a Liturgia nos moldes medievais e pós-tridentinos, como vimos
acima, que os colonizadores e os missionários portugueses e espanhóis transpuseram para o conti-
nente latino-americano a partir de 1492. Uma Liturgia híbrida (de estrutura e índole romano-franco-
germânica) e de língua única e obrigatória (o latim) para todos os povos do Ocidente. Uma Liturgia
monolítica, obrigatoriamente igual para todos, sem levar em conta as culturas que estavam sendo
evangelizadas. Se bem que alguma adaptação se tentou fazer, como veremos.
Foi uma Liturgia em que não é tanto o mistério de Deus que é comunitariamente celebrado,
mas um ritual meio mágico feito pelo clero. Tanto que, ainda hoje, quando entre nós se fala em Li-
turgia, pensa-se logo em aparato cerimonial e clerical, e não em primeiro lugar no mistério pascal que
a comunidade celebra sob a presidência de seus pastores.
Foi uma Liturgia distante, incompreensível, sem envolvimento direto do povo na ação cele-
brativa. A Liturgia que herdamos foi uma Liturgia não mais popular, mas clerical, isto é, feita apenas
pelo clero. O povo apenas assistia, não se sentia ator da celebração. Apenas assistia à distância, pas-
sivamente, às cerimônias feitas pelos padres lá no altar. Atores mesmo da celebração eram os padres,
e sem serem entendidos pelo povo!
Foi uma Liturgia em que o povo, não se sentindo mais protagonista da ação litúrgica, natural-
mente soube preencher este vácuo dedicando-se às devoções aos santos, ao Santíssimo Sacramento,
71
às procissões, novenas etc. Vive-se num deslocamento de eixo, da centralidade da Liturgia como
celebração do mistério de Cristo para as devoções enaltecendo sobretudo a “presença real” e os san-
tos.
Foi uma Liturgia em que os sacramentos eram vistos, não como celebração (atualização) do
mistério pascal em nossa vida, mas preferencialmente como “remédio” para curar os males (ou pre-
veni-los) e manter uma boa relação de amizade com Deus, para escapar do perigo do inferno. Conse-
quência, a Igreja, em vez de ser um espaço comunitário de vivência do mistério pascal tornado pre-
sente pela Liturgia, é vista antes como uma espécie de grande supermercado religioso, uma enorme
farmácia espiritual, com seus agentes de saúde credenciados na qualidade dos ministros ordenados,
para onde o povo acorre em suas necessidades individuais.
Foi uma Liturgia em que não se contemplava o eclesial, o comunitário, o valor da assembleia
litúrgica. Uma Liturgia, portanto, em que predomina o individualismo religioso. Cada pessoa, indivi-
dualmente, cuida da “sua” vida espiritual, sem muito compromisso de participação eclesial e de trans-
formação social, sem sentir-se irmão com os irmãos, membro do povo de Deus, do corpo místico de
Cristo.
Esta foi a Liturgia, isto é, em moldes medievais e pós-tridentinos, que os missionários implan-
taram (muitas vezes sob pressão aos índios e negros) no continente latino-americano: uma Liturgia
híbrida, monolítica, ritualista, distante, clerical, mágica, devocional (isto é, sem referência explícita
ao mistério pascal), “farmacêutica”. Pouco mistérica e eclesial, muito utilitarista e individualista71.
Uma Liturgia em que os elementos exteriores eram exageradamente enaltecidos, ao passo que o es-
sencial dela ficou minimizado e relegado à periferia.
Com essa Liturgia ‘católica’ é que fomos evangelizados durante cinco séculos, o que formou
neste continente uma típica cultura religiosa. Como concluíram os bispos latino-americanos em 1979:
“A religião do povo latino-americano, em sua forma cultural mais característica, é expressão da fé
católica. É um catolicismo popular” que comporta, por um lado, inegáveis elementos positivos (soli-
dariedade, hospitalidade, piedade, capacidade de resistência aos contratempos da vida, gosto pela
festa, espírito orante, jovial e alegre etc.) e, por outro, preocupantes aspectos “negativos” (superstição,
magia, fatalismo, idolatria do poder, fetichismo, ritualismo, falta de formação, sincretismo, redução
da fé a um mero contrato com Deus, individualismo religioso etc)72.

2. ADAPTAÇÕES FEITAS...

A Liturgia que herdamos, na sua rigidez que lhe é típica, entrando em contato com os povos
destas terras (indígenas, negros, colonizadores e mestiços) e com a estrutura de sociedade aqui for-
mada, teve que sofrer algum tipo de adaptação à nova situação social. Damos apenas alguns exem-
plos. Trata-se de um assunto que demanda ainda um amplo estudo aprofundado.
Para começar, houve tentativas de adaptação da celebração do batismo entre os índios do Bra-
sil, como nos atestam documentos do século XVII. Uma das adaptações é a tradução de textos que os
missionários fizeram para a língua tupi73.

71
Cf. DA SILVA José Ariovaldo da. A Liturgia que nossos índios e negros tiveram de “engolir”. In: Revista de Liturgia,
São Paulo, n. 159, 2000, p. 4-6.
72
Cf. CELAM. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Puebla: Conclusões. São Paulo: Loyola
1982, nn. 444-456 (p. 184-197).
73
Cf. Catecismo da lingoa brasilica (...). Em Lisboa por Pedro Crasbeeck ano 1618. A custo dos padres do Brasil. In:
ARAÚJO A. de. Catecismo na língua brasileira. Reprodução facsimilar da 1ª edição (1618), com apresentação pelo pe.
A. Lemos Barbosa, professor de lingua tupi na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC,
1952; Catecismo brasilico da doutrina christãa (...). Lisboa na officina de Miguel Deslandes, M.DC.LXXXVI [1686].
Com todas as licenças necessarias. In: Catecismo brasilico da doutrina christãa; publicado por Julio Platzmann; edição
facsimilar. Leipzig: B.G. Teubner, 1898. Sobre estas fontes, cf. ORMONDE FILHO Domingos. Entre a conversão do
índio e a “conversão” do rito. Elementos para a identificação formal de ritos para o batismo de índios no século 17 (=
Dissertação de Mestrado apresentada na Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção, São Paulo), São Paulo 2003.
72
A maneira de apresentar a missa e os sacramentos também devia ser adaptada à linguagem
e compreensão dos negros escravos, com a máxima simplificação possível74.
Talvez uma das adaptações mais interessantes é a que aparece na organização do espaço das
celebrações (as igrejas) no Brasil. O espaço chegou a aparecer dividido, em alguns lugares, em até
seis recintos:
 “O recinto clerical (1), separado dos outros recintos, simboliza o lugar dos organizadores
do culto75.
 O recinto central (2) é reservado às mulheres, que ficam ‘agachadas ou ajoelhadas’ num
plano mais baixo do que o dos recintos laterais...
 Os recintos laterais (3), num plano mais elevado, são reservados aos ‘homens bons’ ou
homens livres, que ficam em pé, simbolizando assim sua posição característica [superior],
tanto diante do clero como diante das mulheres e dos escravos.
 O espaço em torno da porta (4) é reservado para os pretos e escravos em geral, que ficam
também em pé, ‘espiando os santos’, como o povo diz até hoje”76.
 Um lugar de destaque (com cadeiras), entre o presbitério e a nave, para as pessoas
importantes.
 O coro, sobre a porta da igreja, reservado aos cantores à orquestra, mas que era ocupado
também por pessoas mais afoitas.

A posição na igreja obedecia a uma hierarquização imposta pelos costumes sociais; no


meio, cercadas por uma grade de madeira, ficavam as senhoras brancas, acocoradas sobre
esteiras ou sobre ricos tapetes, como estavam acostumadas a ficar em casa; fora das grades,
os homens brancos; em lugar de destaque, em cadeiras, as pessoas importantes; da porta
para fora, os negros. O coro, sobre a porta de entrada, reservado aos cantores e à orquestra,
era ocupado também por pessoas mais afoitas, que gostavam de apreciar tudo lá de cima.
Algumas igrejas possuíam galerias laterais superiores, ocupadas em dias de festa. Durante
a missa apresentava-se às pessoas importantes o hissope e a ‘paz’ para que tocassem ou
beijasse77.

Além do mais, existiam igrejas próprias para os escravos negros e igrejas de uso exclusivo
dos brancos, como é visível nas antigas cidades mineiras do Brasil colônia (Ouro Preto, Mariana
etc.) e na Bahia. E as casas tinham, cada qual, normalmente o seu oratório para a Liturgia familiar.

Muito importante a Liturgia familiar; as casas tinham oratório diante do qual a família se
reunia para a reza do terço e da oração da noite. Em tal celebração destacava-se o papel do
rezador, muitas vezes pessoa simples; ainda que houvesse um padre presente na reza, o
rezador, o puxador de orações, continuava sendo ele, mesmo se fosse um preto velho; às
refeições não se dispensava a oração ritual78.

A missa, sobretudo nas festas de padroeiro, era celebrada com grande pompa barroca adaptada
ao ambiente social próprio do Brasil colonial.
No século XVI..., a missa se celebrava num contexto de alegria, de festa, de animação. Os
jesuítas permitiam o uso de instrumentos musicais indígenas como maracá, taquara, berim-
bau, faziam amplo uso dos impressionantes recursos que a Liturgia barroca fornecia no
sentido de atrair os indígenas: músicas, procissões, cruz alçada, paramentos multicores, as
mais variadas bandeiras, batinas, barretes, cânticos de aclamação, folhas de palmeira para

74
Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (promulgadas no dia 21 de julho de 1707), primeiro “livro”;
HOORNAERT Eduardo & outros. História da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. Primeira
Época, p. 301ss.
75
Destaca-se aí o altar-mor, barroco, ricamente adornado, com uma espécie de escadaria em formato semipiramidal que
se eleva até a imagem do(a) santo(a) padroeiro lá em cima, criando um misterioso clima de distância (para olhar/contem-
plar ) e de proximidade aconchegante ao mesmo tempo.
76
HOORNAERT Eduardo & outros. História da Igreja no Brasil... Op. cit., p. 294.
77
HAUCK João Fagundes & outros. História da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. Segunda
Época... p. 100.
78
Ibid., p. 101).
73
serem agitadas na hora da procissão, sermões grandiloquentes, gestos largos e imponen-
tes, imagens, teatros e dramatizações, fitas, as mais variadas decorações. Os missionários,
ao celebrarem a missa, traziam sempre meninos consigo, índios e mesmo às vezes portu-
gueses, os famosos ‘meninos de Jesus’..., que cantavam de dançavam em ritmos indígenas
e entusiasmavam toda a assistência79.

São alguns exemplos de adaptação da Liturgia medieval e pós-tridentina no contexto de Brasil


colônia. Contudo, no seu espírito ela permanece a mesma: uma Liturgia em que os elementos exteri-
ores eram exageradamente enaltecidos, ao passo que o essencial dela (o mistério pascal) continuava
minimizado e relegado a segundo plano.
3. RESUMINDO
A Liturgia que os povos do Brasil e América Latina herdaram foi a Liturgia nos moldes me-
dievais e pós-tridentinos europeus, de fundo romano-franco-germânico, via Península Ibérica, acres-
cido de tinturas barrocas, cujas características ‘litúrgicas’ tivemos ocasião de identificar acima.
Esta Liturgia aqui implantada pelos missionários espanhóis e portugueses passou por algum
tipo de adaptação ao novo contexto social vigente: na catequese e sacramentalização dos indígenas e
escravos negros, na arquitetura sacra, nas celebrações das missas de festa etc.
Contudo, os elementos exteriores continuavam se sobrepondo ao essencial da Liturgia (mis-
tério pascal) relegado em segundo plano.

Perguntas para aprofundar

1. Qual o tipo de Liturgia que os povos do Brasil e América Latina herdaram? Tente descrevê-la
com suas próprias palavras.
2. Nas celebrações de sua comunidade (missa, sacramentos), dá para você perceber algum elemento
que herdamos dos moldes litúrgicos medievais e pós-tridentinos? Dê algum exemplo.
3. Em relação à Liturgia adotada no Brasil e América Latina, que tipos de adaptações foram feitas
entre nós? Além das indicadas acima, você acrescentaria mais alguma? Quais?
4. Em sua comunidade, dá para você perceber alguma destas adaptações? Cite algum exemplo.

Indicação bibliográfica para leitura complementar

CATOLICISMO POPULAR. In: REB, Petrópolis, 36, 1976, p. 5-280.


CELAM. Iglesia y religiosidad popular en América Latina. Buenos Aires, Editora Patria Grande,
1976.
COMBLIN José. Situação Histórica do Catolicismo no Brasil. In: REB, Petrópolis, 26, 1966, p. 574-
601.
. Para uma Tipologia do Catolicismo no Brasil. In: REB, Petrópolis, 28, 1968,, p. 46-73.
HAUCK João Fagundes & outros. História da Igreja no Brasil... Segunda Época, p. 99-101.
HOORNART Eduardo. & outros. História da Igreja no Brasil... Primeira Época. p. 274-320.
LUGON Clovis. A república “comunista” cristã dos guaranis: 1610-1768. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1977.
ORMONDE Domingos. A Liturgia tem história na América Latina. In: Revista de Liturgia, São
Paulo, n. 115, 1993, p. 202-206.
ROLIM Antônio. Em Torno da Religiosidade no Brasil”. In: REB, Petrópolis 25, 1965, p. 11-28.

79
HOORNAERT Eduardo & outros. História da Igreja no Brasil... Primeira Época, p. 297. Cf. também HAUCK João
Fagundes & outros. História da Igreja no Brasil... Segunda Época. p. 99; LUGON C. A república “comunista” cristã
dos guaranis: 1610-1768. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
74
CAPÍTULO VI
UMA LONGA CAMPANHA DE RENOVAÇÃO E REFORMA DA LITURGIA:
O MOVIMENTO LITÚRGICO

No início do século XX inicia-se um grande movimento de reforma e renovação litúrgicas na Igreja


do Ocidente. Trata-se do assim chamado “movimento litúrgico”, que teve sua pré-história no período do Ilu-
minismo (século XVIII) e da restauração católica (século XIX), com seu auge no século XX irradiando luz até
mesmo em terras brasileiras. Trata-se de um capítulo igualmente importante, pois aí germina a reforma des-
lanchada pelo Concílio Vaticano II.

1. PRÉ-HISTÓRIA DO MOVIMENTO LITÚRGICO

No século XVIII aparece na Europa um novo fenômeno cultural como reação ao barroco: o
Iluminismo. Teve grande influência também no campo da Liturgia. Desencadeou todo um movimento
de protesto contra a centralização tridentina e contra a exagerada exteriorização barroca.
Impregnados das ideias iluministas, muitos católicos exigem uma Liturgia mais simples, des-
pojada de inúmeros elementos supérfluos herdados do passado. Exigem uma Liturgia mais fácil de
ser compreendida pelo povo. Exigem participação mais intensa do povo nas celebrações.
Um exemplo clássico de como o Iluminismo suscitava exigências de reforma litúrgica na
Igreja temos no sínodo diocesano de Pistóia (Itália) em 1786. Este exigia um único altar em cada
igreja, participação ativa do povo, abolição da cobrança pela missa, redução das procissões, música
simples, grave e adaptada ao sentido das palavras, ornamentação que não ofenda nem distraia o espí-
rito, reforma do Breviário e do Missal, publicação de um novo Ritual, redução do excessivo número
de festas, leitura ao longo do ano de toda a Bíblia no Ofício Divino etc. Pio VI condenou o sínodo,
por estar imbuído de ideias jansenistas. Além do mais, o clero e o povo não estavam preparados para
essas reformas. Conclusão: foi um insucesso. Note-se, porém, que todas essas exigências de reforma
litúrgica vão aparecer depois contempladas no Concílio Vaticano II.
O problema é que os católicos iluministas viam a Liturgia mais como função educadora do
povo do que como celebração do mistério de Cristo participada pelo povo. Essa limitação compro-
meteu o trabalho de reforma.
Em todo caso, eles eram movidos por um princípio que posteriormente vai orientar todo o
movimento litúrgico do século XX, que culmina na reforma litúrgica do Vaticano II. Trata-se do
princípio da “pastoral litúrgica“, isto é, que “a Liturgia é a fonte primordial da vida cristã”80. A época
do Iluminismo foi, sem dúvida, o período de primeira gestação do futuro movimento litúrgico.
No século XIX, por influência do Romantismo, como num movimento pendular, entramos no
chamado “período da restauração católica”, contra os exageros do racionalismo iluminista. Só que
essa “restauração”, em termos litúrgicos, limitou-se apenas em garantir a ‘tradição romana’ compre-
endida em modelos estruturais do catolicismo medieval e pós-tridentino. Como resume A. Chu-
pungco, “o período da restauração caracteriza-se por uma reação contra os excessos do iluminismo
chegando à triste consequência de uma volta... ao romantismo, ao barroco, quando não até a formas
medievais”81.
Como exemplo brilhante da reação romântica e restauracionista, destaca-se a figura do abade
beneditino Prosper Guéranger (1805-1875), que defendia “um retorno à pura tradição romana, tanto
no que se refere aos textos, cerimônias e rubricas, como, especialmente, à música sacra. A restauração
do canto gregoriano, considerado como o máximo expoente musical da autêntica tradição romana e
o modelo mais perfeito da música sacra, é uma das tarefas principais a que se dedicam os monges da
abadia francesa de Solesmes, sob a direção de Guéranger”82.
O movimento restauracionista, por mais meritório que seja, “não patrocina ainda com sufici-
ente convicção a participação do povo na celebração litúrgica. O culto cristão é considerado como

80
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 52.
81
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicionário de Liturgia.
p. 7.
82
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 53.
75
uma realidade intocável e misteriosa, obra perfeitíssima inspirada diretamente pelo Espírito Santo,
que deve permanecer inalterável, à margem de toda evolução histórica”83.
O grande mérito do movimento está em ter deslanchado o interesse pela pesquisa histórica e
teológica das fontes litúrgicas, o que contribuirá imensamente para o nascimento e desenvolvimento
vigoroso do movimento litúrgico.
Outro detalhe importante: o papa Pio X, entusiasmado com a restauração do canto gregoriano,
publica em 1903, um Motu proprio intitulado “Tra le sollecitudini” estabelecendo normas sobre o
uso do canto na Liturgia. Surpreendentemente, a certa altura do documento ele faz uma afirmação
revolucionária e de grande repercussão posterior: “o verdadeiro espírito cristão consiste na participa-
ção ativa dos fiéis nos sagrados mistérios”. Em outras palavras, segundo o papa, quem não participa
ativamente da Liturgia não tem verdadeiro espírito cristão! Além do mais, contrariando um costume
que se arrastava desde a Idade Média, Pio X recomenda a comunhão frequente e a comunhão das
crianças84.

2. O MOVIMENTO LITÚRGICO

As disposições de Pio X encontram acolhida entusiasta em muitos pastores já preocupados


pelo fomento da vida litúrgica. Desencadeia-se daí o chamado “movimento litúrgico clássico”.
Seu início é marcado por uma famosa conferência que o abade beneditino Lambert Beauduin,
de Mont-César (Bélgica), pronunciou em 1909, num congresso católico de Malines (Bélgica), defen-
dendo a renovação da vida litúrgica da Igreja. A partir de então, este beneditino deslancha um verda-
deiro movimento em favor da participação dos cristãos nas celebrações. Para conseguir esta partici-
pação, ele publica um Missal popular e organiza cursos e conferências para sacerdotes.
A causa do movimento - motivado pelo zelo pastoral - é a volta à forma clássica da Liturgia
romana através de pesquisa histórica e teológica sobre a tradição litúrgica. Como centros de pesquisa
se destacam as abadias de Maria Laach (Alemanha: com vultos como Ildefons Herwegen, Odo Casel
e Cunibert Mohlberg), Mont-César (Bélgica: com Lambert Beauduin e Bernard Capelle).
As descobertas e aprofundamentos nas pesquisas repercutem também na pastoral, isto é, ofe-
recem fundamentos sólidos para promover a participação ativa do povo nas celebrações. Por exemplo,
o beneditino Gaspar Lefebvre, da abadia de Santo André (Bruges: Bélgica) publica também um Mis-
sal para os fiéis, amplamente difundido e traduzido em várias línguas. Na França, o jesuíta Paul Don-
coeur fomenta a “missa dialogada” com jovens. Romano Guardini (na Alemanha), através de cursos,
conferências e publicações, promove a formação litúrgica no meio estudantil e acadêmico. Pius
Parsch (na Áustria) se dedicou à grande massa do povo cristão. E muitos outros...
O movimento “não ficou imune de oposições e suspeitas que causaram acaloradas discussões.
Uma voz importante neste debate foi a de Pio XII que publicou, em 1947, a Encíclica Mediator Dei,
documento decisivo para a causa litúrgica, que especifica alguns conceitos e reconhece os esforços
desenvolvidos pelo movimento litúrgico”85. Um exemplo claro de que o papa realmente aderia ao
movimento aparece logo depois, nos anos 1951-52, quando ele resgata a antiga Vigília pascal (no
sábado santo à noite), cuja Liturgia vinha sendo há séculos celebrada absurdamente no sábado de
manhã86.

83
Ibid., p. 54.
84
Cf. URDEIX Josep (Org.). Pío X y la reforma litúrgica (= Cuadernos Phase 112). Barcelona: Centre de Pastoral Litúr-
gica, 2001.
85
AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. p. 57-58.
86
Sabemos que, no primeiro milênio, a Vigília Pascal era celebrar na noite da Páscoa (isto é, na passagem do sábado
santo para o domingo da ressurreição). Então, naquela noite, se irrompia com o vibrante canto de Aleluia. O sábado
mesmo era “sábado santo”, dia da sepultura, dia de silêncio, dia do Senhor na região dos mortos (em visita a todos os
falecidos), dia da expectativa, dia do aguardo da ressurreição. Depois, lá pelo século XII, aconteceu um fato histórico
esquisito, a saber: Passaram a celebrar a Vigília às 14h00 do sábado santo, quebrando-se assim o sentido próprio do
sábado santo. Posteriormente, anteciparam ainda mais a Vigília, para as 9h00 da manhã do sábado. Agora, imagine só:
Em plena manhã de sábado, o diácono diante do círio aceso cantava: “Ó luz bendita, que iluminas as trevas desta noite.
Ó noite santa esta, na qual Cristo venceu as trevas da morte e do pecado!”... Por isso que, ainda hoje, não obstante o
resgate oficial da tradição antiga, há mais de 50 anos, ainda tem gente que erroneamente chama o “sábado santo” (sábado
da sepultura!) de “sábado de Aleluia”!...
76
Sob o impulso da Mediator Dei foram fundados “Institutos Litúrgicos” em vários países.
Promoveram-se numerosos congressos nacionais e encontros internacionais, dentre os quais se des-
taca o famoso Congresso Internacional de Liturgia Pastoral de Assis, em 1956. Marcando presença
neste Congresso, o papa Pio XII proclama, em seu discurso, o seguinte:
O movimento litúrgico surge como um sinal das disposições providenciais de Deus para o
tempo presente, como uma passagem do Espírito Santo em sua Igreja, para aproximar os
homens dos mistérios da fé e das riquezas da graça, que decorrem da participação ativa dos
fiéis na vida litúrgica”.

3. O movimento litúrgico no Brasil (1933-1959)87

3.1. Primeira fase: 1933-194788


No Brasil, o movimento litúrgico começou propriamente em 1933. Mas isso não quer dizer
que, antes desta data, não circulavam por aí notícias e ideias sobre o movimento que se desenvolvia
na Europa. Inclusive encontramos, já a partir de 1905, exortações e legislações eclesiásticas que, às
vezes com base no Motu Próprio de Pio X (de 22.11.1903), apelavam para a necessidade da instrução
dos fiéis sobre a Liturgia e o Canto Gregoriano. Além disso, ainda antes de 1933, surgiram no Brasil
preciosas colaborações escritas, no sentido de instruir e facilitar a participação na Liturgia. Mas tudo
isso não tinha ainda o colorido e as dimensões de um verdadeiro movimento.
O movimento litúrgico no Brasil foi iniciado pelo monge beneditino Dom Martinho Michler
(do Mosteiro São Bento: Rio de Janeiro), vindo da Alemanha em 1933. Como europeu, havia bebido
abundantemente das águas do movimento por lá. Teve contato com os ambientes monásticos de Ma-
redsous e Mont-César (Bélgica), bem como de Maria Laach (na Alemanha) e outros. Conheceu muito
bem Lambert Beauduin, Odo Casel, Romano Guardini e outros.
Assim que chegou ao Brasil, Dom Martinho começou a dar aulas e cursos de Liturgia, sob o
aspecto teológico e espiritual, para leigos universitários e intelectuais do Centro D. Vital, no Rio de
Janeiro. Coisa inédita! Uma grande novidade, primeiro porque não se imaginava que leigos pudessem
participar de aulas de Liturgia, segundo porque até então se identificava Liturgia com o seu mero
aparato externo (velas acesas, flores no altar, paramentos, gestos etc.). De repente, descobre-se que é
muito mais... Através do contato com a sabedoria de Dom Martinho, que cativava também pelo seu
espírito jovial, desvenda-se o profundo e envolvente sentido teológico-espiritual da Liturgia. Os ou-
vintes do recém-chegado monge alemão – sobretudo um grupo de jovens da Ação Universitária Ca-
tólica (AUC) do Centro D. Vital – se entusiasmam. Aí fundam logo um Centro de Liturgia. Organi-
zam retiros em que dialogam a missa versus populum (de frente para o povo) com Dom Martinho.
Tanto nos retiros como no Centro D. Vital começam a rezar o Ofício Divino. Escrevem artigos litúr-
gicos e informações sobre a Liturgia na revista Vida, da AUC. O mesmo fazem os intelectuais da
revista A Ordem, do próprio Centro D. Vital.
Daí para frente, o movimento foi se alastrando do Rio de Janeiro para os mais diversos pontos
do território nacional, sobretudo nos meios da Ação Católica fundada em 1935. Dom Martinho mar-
cou presença também no Estado de Minas Gerais, onde, através de suas sábias exposições sobre o
sentido da Liturgia, das missas dialogadas, das missas versus populum etc., arrastou inúmeros jovens
da Ação Católica para o entusiasmo pela Liturgia. Basta dizer que vários rapazes do Rio e um consi-
derável número de moças de Minas (sobretudo de Belo Horizonte, Juiz de Fora, Uberaba, e Sul de
Minas), acabaram ingressando na Ordem Beneditina ou outras Ordens e Congregações Religiosas:
foi um dos imediatos e mais empolgantes frutos do apostolado litúrgico de Dom Martinho e do mo-
vimento litúrgico por ele iniciado.
Ao lado de Dom Martinho, não podemos deixar de mencionar outros pioneiros do movimento:
pessoas que ofereceram imediato apoio material e intelectual, sobretudo através de publicações pra-
ticamente indispensáveis. Quem são: Dom Beda Keckeisen OSB, na Bahia, com seu famoso Missal

87
Cf. DA SILVA José Ariovaldo. O movimento litúrgico no Brasil. Estudo histórico. Petrópolis: Vozes, 1983; ID. Avan-
ços e retrocessos do movimento litúrgico no Brasil. In: Revista de Cultura Teológica, São Paulo, n. 31, 2000, p. 109-131.
88
Até 1947 por ser o ano da publicação da Encíclica “Mediator Dei” de Pio XII, e que marca o início de uma segunda
fase para o movimento litúrgico no Brasil.
77
traduzido para o português89; Dom Polycarmpo Amstalden OSB com seu folheto litúrgico espa-
lhado pelas paróquias da cidade de São Paulo; Dom Hildebrando Martins OSB com a publicação do
Ordinário da Missa em português para uso do povo; Frei Henrique G. Trindade OFM com seu livri-
nho Sigamos a missa; o bispo D. Mário de Miranda Vilas-Bôas, com sua primeira e famosa Carta
Pastoral à diocese de Garanhuns (PE), em 1938, conclamando a todos para uma urgente campanha
de “restauração e difusão” da Liturgia90; Dom Tomaz Keller OSB, com seu trabalho intitulado Missa
dialogada91.
Dois fatores impulsionaram o desenvolvimento e a expansão inicial do movimento litúrgico
no Brasil: a) a grande descoberta do sentido da Liturgia como participação dos fiéis no mistério de
Cristo, na vida da Igreja como Corpo Místico de Cristo; b) através desta descoberta, percebe-se com
angústia a ignorância e alienação geral do povo em matéria de Liturgia, de um povo entretido quase
que exclusivamente com devoções “sentimentais” e “subjetivas”, com uma vida ascético-espiritual
por demais “individualista”.
Com estas duas contrastantes descobertas, parte-se para uma empenhada reação frente ao “es-
cândalo” do distanciamento dos fiéis em relação àquilo que constitui a Vida da Igreja, a saber, a
Liturgia. A reação se dá às vezes de maneira dura, violenta até, exatamente pela “angústia” que a
grande novidade (a Liturgia) trazia num ambiente em que predominava o “individualismo religioso”.
Parte-se, portanto, para a ação: difundir o movimento litúrgico para possibilitar ao maior número
possível de brasileiros a experiência da grande descoberta e, assim, dar aos fiéis a possibilidade de
participar viva, ativa e conscientemente da grande riqueza da Igreja como presença viva de Cristo, na
Liturgia.
Promovem-se inúmeras publicações: livros e artigos traduzidos de autores estrangeiros, dentre
os quais figuram pesquisadores e divulgadores clássicos como Capelle, Beauduin, Guardini, Casel,
Parsch; publicações, em escala menor, de livros e artigos escritos no Brasil mesmo; publicações para
servir diretamente ao culto (Missais, folhetos, Ordinários da Missa etc.). Tudo somado: uma verda-
deira biblioteca litúrgica.
Promovem-se cursos, conferências, congressos, retiros e outras programações litúrgicas, so-
bretudo para a Ação Católica e com a colaboração efetiva dela. Promovem-se semanas da missa para
o povo em geral em paróquias com a participação e colaboração da Ação Católica. Promoções todas
que se realizaram nos mais diversos pontos do país: no Rio de Janeiro, Minas Gerais (Belo Horizonte,
Juiz de Fora, Leopoldina, Uberaba, Poços de Caldas, Paraisópolis etc), Sergipe (Aracajú), Pernam-
buco (Garanhuns, Cajazeiras), em Belém do Pará etc.
Promove-se a renovação até mesmo na arte sacra em geral, na música, na pintura, na escultura.
Funda-se a revista Musica Sacra (Petrópolis, 1941), uma “Escola de Música Sacra” (Rio de Janeiro,
1943), coros de meninos cantores e Scholae Cantorum. Difunde-se a imagem do Cristo glorioso (Pan-
tocrator), seguindo o modelo de Maria Laach (Alemanha). Constroem-se igrejas mais cristocêntricas,
centrando-se mais para o altar, em função da Liturgia.
Quanto ao episcopado brasileiro, este se colocou em geral de maneira muito reservada frente
ao movimento litúrgico. Os bispos não falam contra. Mas também não falam muito a favor. São bas-
tante reservados. Com algumas exceções, é claro.
O Primeiro Concílio Plenário Brasileiro (1939), sem usar a expressão “movimento litúrgico”,
permite com extrema cautela a missa dialogada. De seis sínodos diocesanos realizados nessa fase,
apenas um usa a expressão “movimento litúrgico”: trata-se do Sínodo da Arquidiocese de Belo Ho-
rizonte (1944) que, aliás, é o único que expressamente se interessa pelo movimento e estabelece di-
retivas para promovê-lo. Os outros sínodos – também o Concílio Plenário Brasileiro – quando tocam

89
Espalhado pouco a pouco pelo Brasil afora, nos meios de Ação Católica e nas paróquias.
90
Considerada uma “Pastoral de fogo e de vida..., raio de luz nas trevas da confusão que... reina em matéria de Ação
Católica e movimento litúrgico”, ou, no dizer o escritor Tristão de Athayde, um documento que deverá ser marcado “nos
faustos de nossa histórica eclesiástica”, esta Pastoral teve ampla repercussão para além das fronteiras da diocese de Ga-
ranhuns: foi adotada até mesmo como uma espécie de manual de estudo para Ação Católica no Brasil. Tanto que recebeu
uma nova edição em 1940, pela Editora Vozes.
91
Com este estudo, o Abade Dom Tomaz Keller salvou a prática de dialogar a missa com o povo de uma possível proi-
bição por parte dos bispos do Primeiro Concílio Plenário Brasileiro, em 1939.
78
em assuntos litúrgicos, a preocupação maior vai na linha do disciplinamento doutrinário e organi-
zativo do culto.
Das várias cartas pastorais dessa fase, embora demonstrem real interesse (umas mais, outras
menos) pela promoção de uma vida litúrgica profunda, viva e consciente dos fiéis, a maioria evita
falar diretamente do movimento litúrgico. São relativamente poucas as que o fazem. Na arquidiocese
de São Paulo, por razões de prudência, foi vedada a missa versus populum (1941). Na arquidiocese
do Rio de Janeiro, um edital da cúria proibiu a prática da missa dialogada (1943).
Olhando todos os documentos episcopais brasileiros em seu conjunto até 1947, o que positi-
vamente mais aparece é a insistência no sentido de instruir os fiéis sobre a Liturgia, bem como se
insiste bastante em promover o canto litúrgico, sobretudo o canto gregoriano.
Assim, tocamos já num primeiro obstáculo – se assim podemos dizer – para o movimento
litúrgico no Brasil: a reserva e extrema cautela da maioria dos bispos.
Mas ouve outros obstáculos não menos graves. Sabemos que simpatizantes do movimento
litúrgico, descobrindo a beleza da Liturgia e, consequentemente, “escandalizando-se” com o devoci-
onismo do povo entregue ao “individualismo” e ao “sentimentalismo” de uma vida espiritual longe
da Liturgia, não medem por vezes palavras para criticar a situação de pobreza litúrgica em que vivem
inúmeros católicos brasileiros. Combatem o devocionismo. Propagam a Liturgia como superior às
devoções e como ponto central de vida espiritual, capaz de resgatar o povo da “praga do individua-
lismo” para um sentido de vida comunitária (eclesial) de fato intensa. Diante disso, da outra parte, da
parte de um bom grupo de tradicionalistas e reacionários, surgem reações violentas, ataques impie-
dosos, polêmicas apaixonadas.
Da parte de muitos adeptos do movimento litúrgico, levados pelo entusiasmo que a grande
novidade despertava, não escaparam sem dúvida ao exagero, à imprudência e à imprecisão na lingua-
gem teológica, seja em atacar (por vezes até de maneira violenta) a pobreza litúrgica que vegetava
pelo país afora, seja em apresentar os ideais do movimento, seja em rebater os ataques dos adversá-
rios. Nisso são concordes liturgistas brasileiros de renome na época. Além do mais, a existência de
tais imperfeições se deduz dos próprios e seguidos apelos dentro do próprio movimento no sentido
de zelar pelo equilíbrio.
Da parte dos tradicionalistas (que se opunham sistematicamente aos ideais do movimento), os
ataques se fazem de maneira realmente violenta e dura contra os chamados “abusos” e “heresias li-
túrgicas” de “alguns asseclas do assim chamado movimento litúrgico”, como dizem. Fazem-no ale-
gando sobretudo três motivos: a) os “liturgicistas” propagam o “exclusivismo litúrgico”; b) conse-
quentemente, desprezam as devoções privadas recomendadas pela Igreja; c) desprezam os métodos
tradicionais de ascese e espiritualidade.
Não obstante as tentativas de explicação dadas pelos adeptos do movimento, os ataques dos
tradicionalistas contra estes se fazem de maneira sempre mais feroz e agressiva, de tal modo que
ameaçam a própria credibilidade do movimento litúrgico como tal. Na realidade, no fundo é o próprio
movimento que é atacado: primeiro, pela própria maneira exageradamente agressiva, generalizada e
vaga com que os chamados “liturgicistas” são anatematizados; segundo, porque os adversários do
“liturgicismo” não demonstram o mínimo interesse em verificar os valores positivos do movimento
como se desenvolvia no Brasil (surto de vocações sacerdotais e religiosas, melhor conhecimento,
vivência e participação da missa etc.).
Contudo, pode-se dizer também que as polêmicas e controvérsias iniciais tiveram seu lado
positivo: obrigaram os adeptos do movimento litúrgico a rever e aprofundar suas posições.
Enfim, apesar dos obstáculos todos, o movimento litúrgico cresceu e se desenvolveu pelo Bra-
sil afora de maneira edificante e consoladora nessa fase, levando para os mais diversos pontos do país
uma mensagem de vida eclesial (comunitária) intensamente marcada pela Liturgia.

3.2. Segunda fase: 1947-195992

Em 1947, o papa Pio XII publicou a Encíclica “Mediator Dei” sobre a Liturgia. Consequente-
mente, o movimento litúrgico no Brasil passa para uma nova fase. Assume um novo colorido. Isto é,

92
Até 1959 por ser o ano em que foi anunciado pelo papa João XXIII a realização do Concílio Vaticano II.
79
seu ponto de referência na busca de reforma litúrgica se desloca preferencialmente para as diretivas
dadas pelo papa nesta Encíclica. A partir dela, e tendo-a como principal fonte de inspiração, é que se
leva avante no Brasil o trabalho de promoção da vida litúrgica.
A Encíclica teve ampla repercussão nos meios católicos brasileiros, logo após sua publicação.
Foi amplamente divulgada e comentada. E aí se constatam duas tendências. Uma fazendo uma leitura
parcial do documento, segundo interesses e mentalidades particulares e segundo situações concretas
de lugares. Outra buscando ter uma visão da Encíclica em sua totalidade. Portanto, falando das pri-
meiras repercussões da “Mediator Dei” no Brasil, constatam-se duas maneiras diversas de fazer a sua
imediata leitura.
De um lado, do lado dos tradicionalistas, a reação é de alegria e júbilo, porque (segundo eles)
Pio XII finalmente “condenou” os “abusos” no campo da Liturgia. Principalmente os adversários do
movimento litúrgico ligados ao antigo jornal católico O Legionário (São Paulo), numa leitura extre-
mamente unilateral da “Mediator Dei”, rejubilam-se, exultam realmente pelas “condenações” feitas
por Pio XII ao chamado “liturgicismo”. Não lhes interessa veicular o conteúdo doutrinário e pastoral
do documento. Interessam-lhes unicamente as chamadas “condenações”: estas lhes vinham “garantir”
a sensação de que seus ataques contra o movimento litúrgico estavam perfeitamente justificados.
Por outro lado, sobretudo do lado dos adeptos do movimento litúrgico, a “Mediator Dei” é
vista como um precioso documento que não apenas vem chamar a atenção para erros e abusos, mas
traz uma segura diretiva teológica e pastoral para o apostolado litúrgico. A reação é de alegria e
gratidão, porque o apostolado litúrgico dispunha então da segura orientação dada por Pio XII. Pro-
movem-se publicações do texto da Encíclica bem como comentários positivos sobre ela. Emanam-se
declarações e documentos da parte da hierarquia a partir e sobre o documento.
Também aqui os pontos de vista na leitura da Encíclica não foram totalmente iguais ou con-
cordes entre si. É visível a diversidade de acentos na abordagem do documento, conforme as diferen-
tes mentalidades, correntes de pensar, interesses pessoais e locais. O acento balança ora para o aspecto
teológico-espiritual, ora para o aspecto mais teológico-dogmátco, ora para o puramente prático e pas-
toral, ora para o interesse puramente jurídico e rubricista. Aliás, exemplo típico desta diversidade de
acento aparece sobretudo em documentos emanados de autoridades eclesiásticas sobre a “Mediator
Dei” e a partir dela.
É claro, houve também esforço no sentido de conhecer, fazer conhecer e aplicar a Encíclica
mais ou menos no seu todo. Salta à vista neste sentido o trabalho feito para difundir do texto do
documento, bem como várias publicações de comentários sobre o mesmo. Notável, neste sentido, foi
o trabalho do beneditino Dom Bandeira de Mello, com inúmeros artigos sobre a “Mediator Dei” nas
páginas de A Tribuna de Recife (PE). Ressalte-se ainda a realização de congressos e semanas de
estudo sobre a Encíclica, dentre os quais sobressai o II Congresso Brasileiro de Teologia, em São
Paulo, nos dias 28 de dezembro 1950 a 6 de janeiro de 195193.
Falando do desenvolvimento do movimento litúrgico no Brasil após a “Mediator Dei” (1947-
1959), constata-se que diminuíram sensivelmente as publicações litúrgicas (sobre Liturgia). A razão
está na própria importância dada à Encíclica, a qual, traçando as diretivas e os limites exatos para o
apostolado litúrgico, passou como que a substituir qualquer outro tratado teológico-liturgico-pastoral.
O papa tinha a palavra. Era só segui-lo. Consequentemente, acalmou-se bastante aquela febre de dis-
cussões litúrgicas e buscas de “novidades”, característica da fase anterior.
Assim, é sob o incentivo da “Mediator Dei” e inspirando-se nela que se prosseguem os cursos
e semanas de Liturgia: no norte e nordeste (Belém do Pará, Pernambuco etc.), no centro (Belo Hori-
zonte), no sul (São Paulo, Porto Alegre etc.)... Em Belo Horizonte parte-se para uma verdadeira cam-
panha de catequese litúrgica para o povo em geral.
Uma característica: nesta fase as campanhas litúrgicas se acentuam sempre mais nas paróquias,
isto é, para além do círculo da Ação Católica, isto é, para o povo em geral. A preocupação mais
freqüente vai no sentido de instruir o povo em geral sobre o significado da missa e ensiná-lo como
acompanhar a celebração. Portanto, a preocupação é preferencialmente prática: fazer o povo entender
e acompanhar o que se passa no altar. Isso explica inclusive a quantidade de publicações de cunho

93
As Atas, Crônica e os estudos apresentados no Congresso foram publicados num número especial da Revista Eclesiás-
tica Brasileira (cf. REB, Petrópolis, 11, 1951, p. 1-223).
80
sempre mais acessível e popular para serem usadas pelos fiéis – pelas crianças de modo especial –
no culto.
No Rio de Janeiro se promove uma grande campanha em torno da música sacra: fundação da
Escola Pio X de canto gregoriano, com sua Revista Gregoriana (1950); realização de “Semanas Gre-
gorianas”. Embora a tendência parecesse mais cultural que litúrgica, contudo não se pode negar a
incidência positiva destas promoções sobre a Liturgia.
Numa palavra, falando do movimento litúrgico no Brasil após a “Mediator Dei”, constata-se
uma certa tendência para a diminuição do entusiasmo pela teologia litúrgica em favor de uma pastoral
litúrgica muito prática, no sentido de ensinar o povo a acompanhar a missa.
Tal tendência fortemente prático-pastoral é notada sobretudo nos documentos episcopais desta
fase (nos sínodos e cartas pastorais), onde o que se sobressai é a insistência no sentido de “instruir”
os fiéis sobre a missa para melhor assistir (participar) ao Santo Sacrifício. Os bispos tomavam de fato
consciência do problema da distância entre o povo e o altar. Vários deles se manifestam muito preo-
cupados com esta situação. E, para “saná-la”, insistem inclusive sobre alguns “meios” necessários
como, por exemplo: missa explicada por um sacerdote enquanto outro celebra, uso do Missal ou
“folhetos litúrgicos” pelos fiéis, devoções extralitúrgicas durante a missa etc. São usos que para nós
hoje soam estranhos. Na verdade, exagera-se na dimensão catequética da Liturgia e do movimento
litúrgico. Compreende-se, pelo zelo pastoral dos bispos ao assumir as diretivas provindas da Sé apos-
tólica. Além disso, o problema era visto como presente apenas na “ignorância” do povo e não na
própria celebração da missa desprovida de qualquer comunicação direta com este povo. Tal “ce-
gueira” é compreensível, exatamente pela tendência rubricista na aplicação da “Mediator Dei” (so-
bretudo nos sínodos diocesanos) e pela excessiva cautela e prudência jurídica nos incentivos da pro-
moção da vida litúrgica, transparentes em grande parte dos documentos. Além disso, a própria Encí-
clica não abriu muito a mão para uma reforma da própria celebração da missa. Esta reforma cami-
nhava muito lentamente, chegando mesmo só com o concílio Vaticano II. Outro fator que, com cer-
teza, fez pesar a “prudência” dos bispos: a força dos adversários do movimento litúrgico que, persis-
tentemente, atacavam as tentativas de reformas como sendo um perigoso ninho de heresias.
Contudo, descontando as omissões (por exemplo, quase não se fala do Ofício Divino) e falhas,
chama a atenção como vários bispos se mostram realmente preocupados com o problema da falta de
participação dos fiéis na missa. É uma consciência que vai se alastrando sempre mais. Testemunha-o
a própria insistência quanto à instrução dos fiéis e quanto aos meios para levá-los a uma melhor
participação, numa suada tentativa de “liturgizar” o povo, desconhecendo no entanto a necessidade
de “popularizar” a própria Liturgia94. Por influência do Congresso Internacional de Pastoral Litúrgica
de Assis (setembro de 1956), esta consciência se tornou ainda mais forte. Assim, finalmente, em julho
de 1958, na IV Assembleia Geral da CNBB, dentro do limite “essencialmente prático e pastoral”, o
episcopado nacional aceitou, apoiou e recomendou o desafio dos ideais do movimento litúrgico como
necessários para a renovação urgente das paróquias.
Enfim, não podiam faltar de novo as controvérsias! E aqui chama a atenção, em primeiro lugar,
a instrumentalização da “Mediator Dei” feita pelos adversários do movimento litúrgico para golpeá-
lo e, ao mesmo tempo, justificar a “nobreza” dos golpes. Isso se nota nas páginas do antigo jornal
católico O Legionário (São Paulo). Isso se observa no jornal O Catolicismo, da diocese de Campos
(RJ). Isso se percebe na própria Carta Pastoral do ultraconservador e reacionário bispo de Campos,
D. Antônio de Castro Mayer, de 06.01.1953. Certamente tinham razão em chamar a atenção para o
perigo dos abusos do exclusivismo litúrgico. Mas o fato de desconhecerem qualquer ponto positivo
do movimento litúrgico no Brasil é muito significativo: o movimento, na verdade, não lhes parecia
mais do que um foco de heresias destruidoras da “fé da nação”, do “verdadeiro catolicismo brasi-
leiro”.
Realmente, os adversários faziam grande alarde. Ameaçavam. Tanto que, em São Paulo, o
Cardeal D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta teve que intervir com uma Carta Pastoral de

94
Entendemos aqui o “popularizar” a Liturgia no sentido de realmente reformar a própria maneira de celebrá-la, tornando-
a mais acessível (por exemplo, a Missa versus populum tinha sido um primeira tentativa). E entendemos o “liturgizar” o
povo no sentido de levar o povo por todos os meios a entender e acompanhar a celebração da Liturgia, até então “intocá-
vel”.
81
07.09.1950 para defender a paz, a concórdia, a Ação Católica e o próprio movimento litúrgico na
arquidiocese.
Os adversários eram influentes. E o movimento litúrgico foi por eles tão negativamente pin-
tado que mereceu uma advertência da própria Santa Sé, numa carta (de 05.03.1950) que a Sagrada
Congregação dos Seminários enviou aos bispos do Brasil95.
Na realidade, havia imprudências, exageros, problemas, sobretudo no Seminário de Belo Ho-
rizonte96, para os quais o arcebispo D. Cabral Antônio dos Santos Cabral havia proposto uma solução
muito equilibrada, exatamente pela sua imparcialidade: valorizar os elementos tradicionais (devoci-
onais) e valorizar o movimento litúrgico. Também a carta da Sagrada Congregação dos Seminários
propôs a sua solução: acentuar a tradição e acabar com o “liturgismo”.
A solução dada pela Santa Sé, em certo sentido, é válida. Mas falhou metodologicamente. Pelo
seu exclusivismo em favor da tradição e contra o “liturgismo”, e ignorando os valores positivos do
movimento litúrgico no Brasil, deixa entender ter sido muito parcial. Deixa entender que apoiava
exclusivamente as reivindicações dos adversários do movimento, que dava realmente toda a razão a
eles. Este foi certamente um dos golpes mais fortes que sofreu o movimento litúrgico no Brasil em
toda a sua história.
Contudo, o movimento não morreu. Suas inúmeras as realizações (difusão da “Mediator Dei”,
publicações, congressos, cursos, conferências, semanas litúrgicas, orientações eclesiásticas etc.), em-
bora com compreensíveis falhas e defeitos, comprovam suficientemente que o movimento litúrgico
no Brasil, após o advento da “Mediator Dei”, não morreu, mas continuou seu lento e sofrido desen-
volvimento, sob a segurança que a Encíclica lhe garantia.

4. RESUMINDO

No início do século XX inicia-se um grande movimento de reforma e renovação litúrgicas na


Igreja do Ocidente. Trata-se do assim chamado “movimento litúrgico”, que teve sua pré-história no
período do Iluminismo (século XVIII) e da restauração católica (século XIX).
A partir de 1909 desenvolve-se o movimento litúrgico propriamente dito: uma longa, ampla e
suada busca de reforma e renovação litúrgicas, através de pesquisas históricas e teológicas, através
de congressos, cursos, conferências e um amplo trabalho de pastoral litúrgica (promovendo a partici-
pação do povo nas celebrações). Uma voz importante no debate em torno da reforma foi a de Pio XII,
que reconhece os esforços desenvolvidos pelo movimento litúrgico e especifica alguns conceitos.
No Brasil, o movimento litúrgico teve esplêndido florescimento, não obstante os imensos obs-
táculos. Não escapou aos ataques furiosos de grupos tradicionalistas, que defendiam a “fé” da nação
brasileira, ameaçada pelos que chamavam de “hereges liturgicistas”. No fundo, era uma centenária
cultura religiosa brasileira, caracterizada pelo devocionalismo, que se pensava ameaçada pelo movi-
mento litúrgico que pregava a volta às fontes. O movimento foi muito estudado e discutido. Fez um
grande bem à Igreja.

Perguntas para aprofundar


1. O que é o “movimento litúrgico”?
2. Qual o significado e a importância do Iluminismo para a reforma da Liturgia no século XVIII? E
qual o limite da reforma litúrgica buscada neste período?
3. Que tipo de reforma litúrgica pleiteavam os católicos no período da restauração católica do século
XIX? E por quê? E quais os limites da reforma litúrgica no período da restauração católica?
4. Qual o grande objetivo do movimento litúrgico clássico do século XX e quem foram os seus
principais promotores? Como foi o movimento litúrgico no Brasil? E qual foi o maior mérito do
movimento litúrgico em geral?
5. Consegue ver alguma ligação entre a reformada litúrgica buscada pelo movimento litúrgico e as
nossas celebrações litúrgicas hoje? Que ligações?

95
Cf. AAS 42, 1950, p. 836-844. O documento vem publicado também em REB, Petrópolis, 10, 1950, p. 471-477.
96
Havia um grupo que “brigava” por uma vida litúrgica mais intensa, e outro grupo que “brigava” pela primazia das
devoções (a Nossa Senhora, aos Santos, ao Santíssimo Sacramento, reza do terço, novenas, via-sacra etc.).
82
Bibliografia para leitura complementar

ABAD José Antonio. Sacrosanctum Concilium. De la convocatória del concílio até a carta apostólica
por ocasião do seu 40o aniversário. In: Burgense, Burgos, 45, 2004, p. 7-16.
ADAM Adolf. Corso di Liturgia, p. 46-54.
AUGÉ Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 54-58.
. Il movimento liturgico. Alla ricerca della fondazione “spirituale” della liturgia. In: Ecclesia
Orans, Roma, 24, 2007, p. 335-350.
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Di-
cionário de Liturgia, p. 7.
GOENAGA José Antônio. O movimento litúrgico. In: BOROBIO Dionísio (Org.), A celebração na
Igreja 1..., p.126-135.
JOUNEL Pierre. Do Concílio de Trento ao Vaticano II. In: MARTIMORT Aimé Georges (Org.). A
Igreja em oração. Introdução à Liturgia I..., 82-85.
KLAUSER Theodor. Breve historia de la Liturgia occidental II..., p. 28-30.
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 51-57.
MARSILI Salvatore & outros, Panorama histórico da Liturgia (= Anámnesis 2). p. 270-276.
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenixco & TRIACCA Achille
M. (Orgs.). Dicionário de Liturgia, p. 538-540.
. O movimento litúrgico: panorama histórico e linhas teológicas. In: NEUNHEUSER Burkhard &
outros. A Liturgia, momento histórico da salvação (= Anámnesis 1). p. 9-36.
. Movimento litúrgico In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicionário de
Liturgia, p. 787-799. SILVA José Ariovaldo da. O movimento litúrgico no Brasil. Estudo Histórico.
Petrópolis: Vozes, 1983.
URDEIX Josep (Org.). Líneas básicas del movimiento litúrgico (= Cuadernos Phase 64). Barcelona:
Centre de Pastoral Litúrgica, 1995.
. Pío X y la reforma litúrgica (= Cuadernos Phase 112). Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica,
2001.

CAPÍTULO VII
A REFORMA LITÚRGICA DO CONCÍLIO VATICANO II
E SUAS POSTERIORES APLICAÇÕES

Os tempos estavam maduros para uma reforma fundamental e geral da Liturgia. E eis que,
para surpresa de todos (ninguém esperava!), no dia 25 de janeiro de 1959, o saudoso papa João XXIII
revelou sua disposição de realizar um concílio ecumênico. Trata-se do Concílio Vaticano II (1962-
1965), que reuniu os bispos do mundo inteiro (cerca de 2150!) para estudar, resgatar e votar princípios
fundamentais de renovação da Igreja no mundo atual.

A CONSTITUIÇÃO “SACROSANCTUM CONCILIUM” SOBRE A SAGRADA LITURGIA

Para alegria e júbilo de todos que trabalharam no movimento litúrgico, o primeiro resultado
do concílio foi precisamente a Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia
(SC), votada no dia 4 de dezembro de 1963 (com 2147 votos a favor e 4 votos contra!) e aprovada
pelo papa Paulo VI. Foi o primeiro documento votado e aprovado, não só porque seu esquema era de
saída o melhor elaborado (o mais amadurecido), mas também porque os Padres conciliares percebe-
ram que a reforma da Liturgia era de fato uma necessidade para que as finalidades essenciais do
concílio fossem cumpridas; como, aliás, inicia a Constituição:
O Sacrossanto Concílio propõe-se fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis; aco-
modar melhor às necessidades de nossa época as instituições que são suscetíveis de mu-
danças; favorecer tudo o que possa contribuir para a união dos que creem em Cristo; e
promover tudo o que conduz ao chamamento de todos ao seio da igreja. Por isso julga seu
dever cuidar de modo especial da reforma e do incremento da Liturgia (SC 1).
83
Trata-se de um documento que vem ao encontro da nova sensibilidade cultural amadurecida
no século XX: protagonismo da comunidade, participação de todos, simplicidade e autenticidade.
Neste sentido, ele próprio (o documento) já significa uma tentativa de adaptação da Liturgia à cultura
atual, deslanchando assim um novo processo de inculturação...

1.1. O documento
O documento todo se compõe de uma introdução, sete capítulos e um apêndice, totalizando
130 números ou artigos.
Na introdução, o concílio declara a sua intenção de fomentar e reformar a Liturgia, enfati-
zando, ao mesmo tempo, que esta reforma está vinculada aos demais aspectos da renovação da Igreja.
O primeiro capítulo é o mais extenso e importante. Fundamental! Intitula-se: “Os princípios
gerais da reforma e do incremento da Liturgia”. Divide-se em cinco partes. Na primeira parte
deste capítulo (n. 5-13), fala-se da natureza da sagrada Liturgia e insiste-se na sua importância para a
vida da Igreja. Numa linguagem eminentemente bíblica e patrística, o concílio apresenta os funda-
mentos teológicos da Liturgia. Situa a Liturgia no contexto da revelação como “história da salvação”,
cujo centro e fulcro é o mistério de Cristo. Com certeza, é o núcleo do documento. Na segunda parte
(n. 14-20) se trata da necessidade de promover a educação litúrgica e a ativa participação. A terceira
parte (n. 21-40), sumamente importante, expõe os princípios que devem regular a reforma da Liturgia.
A saber, estabelecido o princípio fundamental de que os sinais utilizados na Liturgia sejam transpa-
rentes (n. 21), primeiro são apresentadas as normas gerais (n. 22-25), em seguida as normas tiradas
da índole da Liturgia como ação hierárquica e comunitária (n. 26-32) e as normas litúrgicas da índole
didática e pastoral (n. 33-36) e, enfim, as normas para conseguir a adaptação da Liturgia à mentalidade
e às tradições dos povos (n. 37-40). Terminadas as considerações sobre a reforma litúrgica, nas duas
últimas partes se fala do incremento da vida litúrgica na diocese e na paróquia (n. 41-42) e da promo-
ção da pastoral litúrgica (n. 43-46).
Os capítulos seguintes da constituição abordam aspectos específicos da Liturgia, apresentando
cada vez uma breve fundamentação teológica sobre os mesmos, bem como os princípios que devem
ser observados no trabalho de reforma.
O capítulo segundo fala do sacrossanto mistério da eucaristia, qual núcleo de toda a Liturgia,
fogo que dá luz e calor às demais celebrações litúrgicas. Note-se que “o título não fala do ‘sacramento’
da eucaristia nem do ‘sacrifício’ da missa, mas, englobando suas diversas facetas numa só palavra
carregada de ecos patrísticos, fala do ‘mistério’ da eucaristia97!
O capítulo terceiro inclui os demais sacramentos e sacramentais. Após algumas considera-
ções gerais (n. 59-63), trata do batismo (n. 64-70), da confirmação (n. 71), da penitência (n. 72), da
unção dos enfermos (n. 73-75), da ordem (n. 76) e do matrimônio (n. 77-78). Enfim, são dadas normas
para a revisão de alguns sacramentais mais importantes (n. 79-82).
O capítulo quarto traz a teologia e os princípios para a reforma do ofício divino (n. 83-101).
O quinto capítulo é dedicado ao ano litúrgico, com fundamento teológico e normas para a
sua melhor vivência (n. 102-111).
E os dois últimos capítulos (quinto e sexto) tratam da música sacra (n. 112-121) e da arte e
os objetos sagrados (n. 122-130).
O documento traz também um “Apêndice” com uma declaração do concílio sobre a revisão
do calendário.

1.2. Considerações...
Finalmente, a “Sacrosanctum Concilium” realizava o que deveria ter sido feito já em
fins da Idade Média, mas que o concílio de Trento não conseguiu por falta de tempo e por causa do
ritmo dos acontecimentos, a saber: “esclarecimento profundo sobre o que é a Liturgia como culto da
Igreja, como adoração ao Pai em espírito e verdade, como celebração memorial da obra salvífica de
Cristo; indicações das normas diretrizes de uma reforma real, a fim de finalmente conseguir atingir...
o alvo corajoso que Pio V havia prefixado para si [em 1570], ou seja, a renovação da Liturgia ‘no

97
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos, p. 60.
84
jeito dos antigos Padres’, naturalmente fazendo ao mesmo tempo uma atualização autêntica cor-
respondente às necessidades dos nossos dias”98.
Foi preciso esperar quatro séculos (ou até mais!) para que a reforma litúrgica chegasse. E
chegou, finalmente, com o Concílio Vaticano II, que estabelece claros princípios teológicos e pasto-
rais para a reforma. Boaventura Kloppenburg, perito do concílio, enumera oito: os princípios da na-
tureza da Liturgia, da participação dos fiéis, da fácil inteligibilidade, da descentralização, do uso da
língua vernácula, da adaptabilidade da Liturgia, da natureza didática da Liturgia, da natureza comu-
nitária da Liturgia99. Recentemente, José-Antonio Abad destaca como princípios fundamentais sobre
os quais deverá se basear toda a construção da reforma litúrgica posterior, os seguintes: 1) Centrali-
dade do mistério pascal; 2) Liturgia, momento culminante da história da salvação; 3) a assembleia,
sujeito integral da ação litúrgica; 4) centralidade da Palavra de Deus na liturgia; 5) a formação dos
pastores e do povo em geral; 6) vivenciando a presença viva do Senhor na globalidade das ações
rituais celebração, “per ritus et preces” (n. 48); 7) a “inculturação” litúrgica.
Foi um documento que, dentre todos os demais, suscitou maior número de escritos pontifícios
e outras literaturas... A partir dele veio uma enxurrada de escritos, em livros, artigos, documentos do
magistério pontifício e local (dioceses etc...).
O grande mérito do concílio foi o de ter colocado a Liturgia numa perspectiva eminentemente
teológica e pastoral, resgatando a primazia da ação litúrgica como obra de Deus e de Jesus Cristo, ou,
a ação litúrgica como obra de Cristo na ação ritual100. Superou-se uma visão exclusivamente estética
e ritualista da Liturgia em favor de uma compreensão teológica e espiritual da mesma.
Mas para que o essencial da Liturgia, isto é, o mistério de Cristo, pudesse reaparecer de fato
e de novo na sua pureza absoluta, era preciso limpar toda a “poeira” medieval e pós-tridentina que
foi se acumulando sobre as expressões celebrativas próprias do rito romano e que o transformaram
num cômodo ‘ninho’ de individualismo religioso egocêntrico e de horizontes limitados. Foi preciso
purificar o rito romano de todas as excrescências acumuladas ao longo dos tempos, que comprome-
tiam seriamente a vivência do mistério pascal. Resgatar a Liturgia romana na sua pureza original, este
foi um dos grandes desafios, como na prática enfatiza o próprio concílio:
“O texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que de fato exprimam mais clara-
mente as coisas santas que eles significam e o povo cristão possa compreendê-las facil-
mente, na medida do possível, e também participar plena e ativamente da celebração co-
munitária” (SC n. 21).
“As cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade, sejam transparentes por sua brevi-
dade e evitem as repetições inúteis, sejam acomodadas à compreensão dos fiéis e, em geral,
não careçam de muitas explicações” (SC 34).

O concílio igualmente a dimensão comunitária da Liturgia: esta é celebração da comunidade,


Corpo de Cristo, presidida por seus pastores. E, por ser ação da comunidade, resgatam-se também os
diferentes ministérios nas ações litúrgicas, e o povo volta a ter contato direto e abundante com a
Palavra de Deus proclamada e com o Sacramento celebrado.
E se a Liturgia é ação da comunidade, procura-se resgatar a todo custo a participação plena,
ativa e frutuosa dos fiéis nas celebrações. O próprio concílio enfatiza que a participação ativa na
Liturgia é um direito e um dever do povo (cf. SC n. 14)101. Para tanto, favoreçam-se todos os meios
possíveis, a começar pela formação litúrgica em todos os níveis, pelo uso da língua vernácula e pela
transparência dos ritos. E que a Liturgia romana, plenamente resgatada, também se adapte à mentali-
dade e às tradições dos povos, garantindo sempre a evidência do essencial que é o mistério pascal de
Cristo.

98
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicioná-
rio de Liturgia, p. 540.
99
Cf. KLOPPENBURG Boaventura. Princípios da renovação litúrgica do Vaticano II. In: REB 24 (1964), p. 3-42.
100
Cf. LÓPEZ MARTÍN Julián. Actualidad de la Constitución “Sacrosanctum concilium” del concilio Vaticano II. In:
Scripta Theologica, Navarra, 43, 2011, p. 685-699.
101
Cf. SILVA José Ariovaldo da & SIVINSKI Marcelino (Orgs.). Liturgia: um direito do povo. Petrópolis: Vozes, 2001.
85
1.3. Algumas lacunas no documento
Como já dissemos, a SC foi o primeiro documento trabalhado, votado e aprovado no Concílio.
Daí, é natural que nele possam ter havido lacunas, como houve102, mas que não diminuem em absoluto
o imenso valor do documento para vida litúrgica da Igreja. As possíveis lacunas serão, aos poucos,
naturalmente preenchidas em documentos posteriores.
Uma lacuna que se percebe é que a SC não tratou ou, pelo menos, não aludiu ao princípio
básico da relação entre Liturgia e Catequese, segundo o antigo axioma: lex orandi lex credendi (a lei
da fé estabelece a lei da fé).
E mais, a SC fala abundantemente da participação na Liturgia, mas não desenvolve o funda-
mento dessa participação: o sacerdócio comum dos fiéis. Apenas alude (cf. SC 14). O assunto vem
tratado com mais atenção em documentos posteriores (por exemplo, LG 11, 34).
Faltou também alguma atenção maior ao movimento ecumênico, apenas mencionado no co-
meço (cf. SC 4). Sobretudo no que tange ao Batismo, à Palavra e à Eucaristia, três fortes momentos
litúrgicos que exigem uma orientação ecumênica: faltou uma palavra nesse sentido.
O capítulo sobre o ano litúrgico, embora rico em conteúdo teológico e orientações litúrgicas,
apresenta também alguma lacuna. A saber, a presença dos mistérios nas celebrações anuais é formu-
lada timidamente em termos de conteúdo e de forma. Aliás, com exceção à quaresma, as épocas fortes
do ano litúrgico nem são tratadas.
Nos capítulos sobre música e a arte, lamenta-se a ausência de uma teologia da expressão ar-
tística. Faltou o devido destaque à música, ao canto e à arte como ações simbólicas fundamentais na
ação simbólica por excelência que é a Liturgia. Com isso ficou a impressão de serem tais capítulos
uma espécie de meros apêndices à Constituição, quando na verdade são parte do corpo dela.
Especificamente sobre a música sacra, embora haja alusões em SC 112 e 121, talvez faltaria
dizer algo também sobre o conteúdo daquilo que se deve cantar nas celebrações litúrgicas. “Aqui
entra em jogo, de uma ou de outra maneira, o princípio lex orandi lex credendi, talvez com mais vigor
do que em outras partes da Liturgia, visto que o canto é uma das mais profundas expressões do ser
humano” 103. Hoje costuma se montar ‘outra liturgia’ sobre a Liturgia da Igreja com cantos que não
têm nada a ver com ela (com a Liturgia). Paulo VI afirmava, depois do concílio, que o tema da música
sacra “requer uma ampla reflexão”.
Nada se disse sobre o sentido dos edifícios dedicados ao culto cristão, tão rico em conteúdos
teológicos, que vão da literatura patrística até os rituais da dedicação. Essa lacuna foi posteriormente
preenchida muito bem pelo atual Ritual da Dedicação de Igreja e de Altar: uma fonte riquíssima de
teologia do espaço litúrgico.
Além destes vazios, a SC apresenta também uma inegável lacuna pneumatológica: deixa
pouco espaço para o Espírito Santo como agente importantíssimo na Liturgia. Esta lacuna vai sendo,
posteriormente, preenchida pelas Instruções gerais e Introduções aos livros litúrgicos pós-conciliares
(por exemplo: a Instrução Geral sobre o Missal Romano, a Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas,
a Introdução ao Elenco de Leituras da Missa) e, esplendidamente, pelo Catecismo da Igreja Católica,
graças à contribuição de Jean Corbon104.

2. EXECUÇÃO DAS DETERMINAÇÕES DA CONSTITUIÇÃO CONCILIAR

Aprovada a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, o papa Paulo VI não perdeu tempo. Tratou
logo de levar a efeito as reformas pedidas pelo concílio. Para tanto, no dia 25 de janeiro de 1964,
constituiu um “Conselho para a Execução da Constituição sobre a Sagrada Liturgia”105, composto de

102
Cf. GOENAGA José Antônio. A Constituição de Liturgia do Vaticano II. In: BOROBIO Dionísio (Org.). A celebração
na Igreja 1..., p. 144-146.
103
Ibid., p. 145.
104
Cf. AROCENA Félix Maria. La pneumatología litúrgica del Catecismo y de J. Corbon. In: Phase, Barcelona, n. 271,
2006, p. 27-54; BUYST Ione. O Espírito Santo e nós: ‘parceria’ na liturgia. In: Revista de Liturgia, São Paulo, n. 231,
2012, p. 4-8.
105
ISNARD Clemente José Carlos. O Conselho para a Execução da Constituição sobre a Sagrada Liturgia. In: SILVA
José Ariovaldo da & SIVINSKI Marcelino (Orgs.). Liturgia: um direito do povo. Op. cit., p. 43-56.
86
cerca de 50 cardeais e bispos, metade dos quais nomeados pelo papa, e metade enviados pelas
conferências episcopais. À disposição deles foram colocados cerca de 200 assessores (consultores e
conselheiros). Do Brasil participou do Conselho o bispo de Nova Friburgo (RJ), D. Clemente José
Carlos Isnard, OSB.
Mãos à obra, este Conselho desenvolveu um ingente trabalho de reestruturação de quase todos
os ritos e composição dos textos correspondentes em língua latina. Um enorme trabalho de revisão
dos livros litúrgicos! A obra mais importante do Conselho foi sem dúvida o novo Ordo Missae (Or-
dinário da Missa) e a revisão do Missal Romano, promulgados em abril de 1969. O Missal foi enri-
quecido com três novas orações eucarísticas. Hoje já somam 14 em uso no Brasil.
Digno de nota são as Introduções feitas em cada livro litúrgico, onde se apresenta antes de
tudo uma fundamentação teológica para o respectivo rito. São verdadeiras fontes de teologia sacra-
mentária.
Tanto o Missal como vários outros livros litúrgicos passaram depois por novas revisões, sendo
reeditados.
Sobre todo o trabalho de reforma realizado, assim conclui B. Neunhäuser: “daí surtiu uma
reforma de alcance verdadeiramente histórico. Salvaguardando o núcleo essencial colocado por
Cristo e pelos apóstolos, procuraram voltar às formas originárias da Liturgia romana clássica e simul-
taneamente levar em conta a situação hodierna”106.

Principais documentos da Sé Apostólica para a execução da SC, até hoje:


 “Sacram Liturgiam” (Motu proprio de Paulo VI, de 25.01.1964, determinando a entrada
em vigor de algumas prescrições da SC)107.
 “Inter oecumenici” (Primeira Instrução da SCR e do Conselho para aplicar a SC, de
26.09.1964))108.
 “Tres ad hinc annos” (Segunda Instrução da SCR e do Conselho para aplicar a SC, de
04.05.1967)109.
 “Liturgiae instaurationes” (Terceira Instrução da Congregação para o Culto Divino para
aplicar a SC, de 05.09.1970)110.
 “Varietates legitimae” (Quarta Instrução da Congregação para o Culto Divino e a Dis-
ciplina dos Sacramentos para aplicar a SC, de 25.01.1994)111. Traça normas para adap-
tação e inculturação da Liturgia entre os diferentes povos.
 “Liturgiam authenticam” (Quinta Instrução da Congregação para o Culto Divino e a
Disciplina dos Sacramentos para aplicar a SC, de 28.03.2001)112. Traça normas para a
tradução dos textos litúrgicos para as línguas vernáculas.
 “Redemptionis Sacramentum” (Sexta Instrução da Congregação para o Culto Divino e a
Disciplina dos Sacramentos, de 25.03.2004)113. Trata “sobre alguns aspectos que se deve
observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia “.

106
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M. (Orgs.). Dicio-
nário de Liturgia, p. 541. Há quem hoje conteste veementemente que a reforma litúrgica pós-conciliar tenha sido de fato
uma volta às fontes patrísticas (cf. THOMMASI Romano. Es la Nueva Misa realmente um retorno a las fuentes patrísti-
cas? In: http://www.panodigital.com/node/1185).
107
Cf. AAS, Cidade do Vaticano, 56, 1964, p. 139-144.
108
Cf. AAS, Cidade do Vaticano, 56, 1964, p. 877-900.
109
Cf. Notitiae, Cidade do Vaticano, 3, 1967, p. 169-194.
110
Cf. Notitiae, Cidade do Vaticano, 7, 1971, p. 10-26.
111
Cf. Notitiae, Cidade do Vaticano, 30, 1994, p. 80-115; A Liturgia romana e a inculturação (= Documentos Pontifícios
257). Petrópolis: Vozes, 1994).
112
Cf. Notitiae, Cidade do Vaticano, 37, 2001, p. 120-174; cf. SEDOC, Petrópolis, n. 288, p. 194-236; “Coleção Docu-
mentos da Igreja” n. 16, São Paulo: Paulinas, 2004.
113
Cf. Notitiae, Cidade do Vaticano, n. 451-452, 2004, p. 127-193; publicada no Brasil na “Coleção Documentos da
Igreja” n. 16, São Paulo: Paulinas, 2004. Todos os documentos acima arrolados (alguns em parte) foram publicados por
URDEIX Josep (Org.). La gradual renovación litúrgica (= Cuadernos Phase 120), Barcelona: Centre de Pastoral Litúr-
gica, 2001) [= “Cuadernos Phase”, com seu respectivo número]. Para a Instrução “Redeptionis Sacramentum”, cf. “Cua-
dernos Phase” 143.
87
E no Catecismo da Igreja Católica: como a liturgia é abordada
A coisa se complica quando entramos na própria proposta de iniciação cristã representada pelo Cate-
cismo da Igreja Católica. Ao tratar da “celebração do mistério cristão”, quando na primeira sessão (nn. 1066-
1209) se trata da celebração da liturgia como “obra da Trindade”, “fonte e ápice para o qual tende a ação da
Igreja, e ao mesmo tempo fonte donde emana toda a sua força”, na segunda sessão (nn. 1210-1690), ao tratar
dos sete sacramentos da Igreja (mormente a Eucaristia!) se esquece de certa maneira o aspecto celebrativo
deles (dimensão mais mistagógica) e privilegiam-se, como “fonte e ápice”, as doutrinas (em moldes escolásti-
cos), as “verdades de fé” sobre eles... Em outras palavras, repete-se neste caso, veladamente, um velho padrão
apologético, anti-herético, que é a preocupação acima de tudo doutrinal114, em prejuízo de uma visão preferen-
temente mistagógica dos sacramentos!

3. REFORMA LITÚRGICA PÓS-CONCILIAR NA AMÉRICA LATINA E NO CARIBE

Apenas destacaremos algumas linhas básicas da busca de reforma litúrgica pós-conciliar na América
Latina e no Caribe refletidas nos principais documentos do CELAM (Conferência do Episcopado Latino-Ame-
ricano): de Medellín (1968), de Puebla (1979), de Santo Domingo (1992) e de Aparecida115. Por motivos ób-
vios, não é possível abordar aqui todos os pormenores da reforma neste continente.

3.1. Medellín (1968)

Linhas gerais da situação da Liturgia na América Latina, segundo Medellín:


 Os esforços em busca de renovação são crescentes, mas ainda insuficientes.
 Houve mudança nos ritos, mas não de mentalidade, com o perigo de cair no neo-ritulismo.
 Sente-se enorme dificuldade em adaptar a Liturgia às várias culturas.
 O Bispo nem sempre exerce seu papel de liturgo, promotor, regulador e orientador do
culto.
 A Liturgia não está suficientemente integrada na educação religiosa.

Além destes, podemos ainda destacar outros importantes: PAULO VI. Encíclica “Mysterium Fidei” sobre a Sagrada
Eucaristia, de 03.09.1965 (cf. AAS 57, 1965, p. 753-774; Documentos Pontifícios 153, Petrópolis: Vozes, 1965; “Cua-
dernos Phase” 84, p. 5-26); SCR. Instrução “Eucharisticum Mysterium” sobre o Culto Eucarístico, de 25.05.1967 (=
Documentos Pontifícios 168). Petrópolis: Vozes, 1967; ID. Carta Circular “Eucharistiae participationem” acerca das
orações eucarísticas e das possibilidades oferecidas no missal para a feitura da celebração, de 18.04.1973 (cf. Notitiae,
Cidade do Vaticano, 9, 1973, p. 193-201; SEDOC, Petrópolis, n. 64, 1973, col. 290-296); JOÃO PAULO II. Carta apos-
tólica “Domicae coenae” sobre o mistério e o culto da eucaristia, de 24.02.1980 (cf. Notitiae, Cidade do Vaticano, 16,
1980, p. 125-154; “Cuadernos Phase” 84, p. 27-58; SEDOC, Petrópolis, n. 130, 1980, col. 897-918); ID. Carta apostólica
“Vicesimus quintus annus” sobre o XXV aniversário da “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia (= Docu-
mentos Pontifícios 227). Petrópolis: Vozes, 1989; cf. também “Cuadernos Phase” 30, p. 63-80); ID. Carta apostólica
“Dies Domini” sobre a santificação do domingo, de 31.05.1998. São Paulo: Paulus, 1998 (cf. também “Cuadernos Phase”
93); ID. Carta Encíclica “Ecclesia de Eucharistia” sobre a Eucaristia e sua relação com a Igreja, de 17.04.2003. São
Paulo: Paulus/Loyola, 2003 (cf. também “Cuadernos Phase” 133); ID. Carta apostólica “Mane nobiscum Domine” para
o ano da Eucaristia, de 07.10.2004 (= Coleção Documentos Pontifícios). São Paulo: Paulus/Loyola, 2004; BENTO XVI.
Exortação apostólica “Sacramentum Caritatis” sobre a eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (= A Voz
do Papa 190). São Paulo: Paulinas, 2007; ID. Carta apostólica sob a forma de Motu Próprio “Summorum Pontificum”
sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma realizada em 1970 (= A Voz do Papa 191). São Paulo: Paulinas, 2007;
ID. Exortação apostólica pós-sinodal “Verbum Domini” sobre a palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (= A
Voz do Papa 194). São Paulo: Paulinas, 2010; SCCD. Diretório para celebrações dominicais na ausência do presbítero,
de 02.06.1988 (cf. Notitiae, Cidade do Vaticano, n. 263, 1988, p. 366-378; “Cuadernos Phase” 30, p. 33-62, e 60, p. 3-
32; SEDOC n. 213, 1989, p. 17-26); CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRA-
MENTOS. Diretório sobre piedade popular e Liturgia. Princípios e orientações (= Documentos da Igreja 12). São Paulo:
Paulinas, 2003. Documentos sobre a reforma do calendário, de 17.12.2001: cf. “Cuadernos Phase” 80. Vale lembrar
também os diferentes acordos ecumênicos sobre o batismo, eucaristia e ministérios” (cf. “Cuadernos Phase” 2, p. 7-11,
12-21, 37-68; 15, p. 5-72; 54, p. 41-51). Enfim, para completar toda a documentação: KACZYNSKI Reiner (Org.), En-
chiridion documentorum instaurationis Liturgiae I (1963-1973), Turim, Marietti, 1976; id., vol. II (4.12.1973 –
4.12.1983, Roma, Edizioni Liturgiche, 1988; CAL. Enchiridion liturgico, Casale Monferrato, Piemme, 1989; PARDO
Andrés (Org.), Documentación litúrgica posconciliar, Barcelona: Regina, 1995; “Cuadernos Phase” 100bis, p. 91-95
[Índice de documentos].
114
Cf. METZGER Marcel. La reforme liturgique du concile Vatican II et les idéologies qui résistent. In: Revue des Sci-
ences Religieuses, Strasbourg, 85, 2011/1, p. 102-106.
115
Cf. Bibliografia abaixo.
88
 O número de peritos para apoiar o trabalho da renovação litúrgica é insuficiente (cf.
MED, 9,II)116.
A II Conferência do Episcopado Latino-Americano, reunida em Medellín (na Colômbia) em
1968, apoiada na constituição conciliar Lumen Gentium e na encíclica Populorum Progressio de
Paulo VI, fez uma releitura da constituição Sacrosantum Concilium sobre a Liturgia para o concreto
contexto social e eclesial deste continente.
No todo do documento, a grande questão a ser respondida era essa: À luz do Vaticano II, qual
é a missão da Igreja dentro do continente latino-americano, caracterizado de um lado por miséria,
opressão, dependência econômica, política e cultural, e de outro por um desejo impaciente de mu-
dança, de transformação em todos os níveis?
Pois bem, ao ler o documento de Medellín, integrando o seu capítulo 9 (que trata explicita-
mente da Liturgia) com a sua Introdução geral (na qual se fala da páscoa como realidade concreta que
acontece hoje, quando há “passagem de condições menos humanas para condições mais humanas“),
poderíamos destacar três eixos fortes que orientam a reforma litúrgica no continente.
Primeiro eixo: Medellín intuiu e expressou uma estreita ligação entre Liturgia e libertação,
Liturgia e história, Liturgia e transformação. Percebe-se no documento uma “Liturgia da libertação”.
A Páscoa que a Liturgia celebra deve incluir também as intervenções de Deus na história concreta do
povo pobre e oprimido deste continente, quando há “passagem de condições menos humanas para
condições mais humanas”. Como se realizaria essa ligação, na prática de uma celebração litúrgica, o
documento não disse. Mas as comunidades cristãs (sobretudo as Comunidades Eclesiais de Base -
CEBs) foram aos poucos encontrando um caminho, criando uma nova prática, com sua linguagem,
seus símbolos, sua música e seus cantos, sua espiritualidade libertadora117.
A partir de Medellín e das comunidades “vão se delineando os traços de uma teologia litúrgica
primeira que deverá ser levada em conta e desenvolvida pelos liturgistas:
 a assembleia é uma parada na caminhada do povo de Deus para, diante do Senhor, avaliar
e renovar o compromisso da aliança com o Deus-Libertador-dos-oprimidos;
 o Deus que se revela pela sua Palavra é o Deus que atua na história, libertando o seu povo,
ontem como hoje;
 a celebração litúrgica é memorial da páscoa de Cristo, sim, mas do Cristo Cabeça e
membros, do Cristo Total, do Cristo que continua morrendo e ressuscitando no povo
oprimido hoje;
 o Cristo que nos dá seu Corpo e Sangue na Eucaristia é o Servo Sofredor. Levado à cruz
injustamente, é salvo e justificado pelo Pai. É o Cristo Glorificado que associa à sua glória
todos aqueles que deram sua vida por amor aos irmãos e que foram injustiçados,
perseguidos, presos, torturados, mortos;
 celebração e vida formam uma unidade, enquanto ambas são expressões inseparáveis do
único culto espiritual do Novo Testamento”118.
Outro eixo do documento de Medellín é a insistência no homem latino-americano como “su-
jeito” da transformação do continente. Isso significa que, também em termos litúrgicos, o povo pobre
e oprimido (maioria esmagadora do continente) emerge como grande sujeito das ações celebrativas
das comunidades. É o que na prática vai se percebendo, nas CEBs. Descentralizam-se os locais de
celebração, espalhando-se celebrações litúrgicas por todo canto. Todos participam sentindo-se as-
sembleia, povo de Deus. Multiplicam-se ministérios assumidos pelo próprio povo. A Palavra de Deus
é valorizada, sendo lida e comentada a partir da realidade sofrida e vivida pelo povo.

116
Oito anos mais tarde, em relação a estes pontos são constatados alguns progressos. Mas também se sente que há muito
a desejar, inclusive com sérios problemas, que se somam por falta de formação e de conhecimento do verdadeiro espírito
da reforma do Concílio Vaticano II (cf. CELAM, Realização da reforma litúrgica, Medellín, 1976. In: Liturgia para a
América Latina, p. 76-99).
117
Cf. BUYST Ione. Medellín na Liturgia. In: REB 48 (1988), p. 864-866.
118
Ibid., p. 866-867.
89
A comunidade cristã de base, em sua Liturgia, revive a experiência cristã da Igreja pri-
mitiva: a reunião dos cristãos nas casas para a leitura da Bíblia, a pregação dos apóstolos,
a celebração da Eucaristia e a comunhão fraterna119.

Alguns tópicos já começam a despontar para sistematização dos teólogos liturgistas:

 “o sujeito privilegiado, convocado por Deus para a assembleia litúrgica, é o povo pobre e
oprimido, reunido em comunidade;
 o mesmo povo é também o primeiro destinatário da Boa-Nova anunciada na Liturgia;
 o grito e o lamento do povo expressos na oração dos fiéis têm força junto a Deus: Ele ouve
o seu clamor e desce para fazer justiça e libertar;
 a Liturgia é ação comunitária: toda a comunidade é povo sacerdotal, participante do
sacerdócio de Jesus Cristo;
 o Cristo que está presente na assembleia litúrgica é o Cristo que se identifica com os
pobres; tem compaixão do povo, pára para ver e ouvir seus problemas, hoje como
ontem”120.
Um terceiro eixo que emerge: há que se libertar a Liturgia do seu formalismo sisudo, de sua
rigidez ritualística, e resgatar uma Liturgia na cultura do povo, em ambiente doméstico de comunica-
ção informal, onde as pessoas se sentem livres para se expressar à vontade. É o que na prática vai se
constatando nas celebrações das CEBs. Sendo preparada pelo povo, a Liturgia na Igreja dos pobres
vai ganhando um “rosto” mais popular, com traços característicos da cultura dos pobres do lugar (seus
símbolos, seu jeito de falar, pensar, enfeitar, rezar, cantar, tocar, adorar etc.).

Podemos destacar “três grandes linhas características da Liturgia de Medellín:


I - A Liturgia da libertação: trata-se basicamente da relação entre Liturgia e práxis libertadora,
que faz surgir uma nova compreensão e vivência do mistério celebrado.
II - Mudança de dono: trata-se da passagem de uma Liturgia centralizada no clero, nos grandes
centros, para uma Liturgia ‘atomizada’, descentralizada, nascendo da cabeça, das mãos e do
coração do povo pobre e marginalizado.
III - Libertação da Liturgia: o novo dono vai aos poucos imprimindo seu próprio estilo às
celebrações: é a Liturgia tornando-se mais popular, negra, indígena, mulher..., mais gestual e
simbólica, mais afetiva e fervorosa”121.

3.2. Puebla (1979)


Dez anos se passaram, e o grande sonho de mudança e transformação, que o documento de
Medellín refletia, pareceu não ter se realizado. O povo latino-americano estava mais ainda na misé-
ria, opressão, dependência econômica, política e cultural.
A III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla (México) em
1979, constatando esta realidade, desenvolve então seu projeto de evangelização levando em conta
três grandes temas: opção preferencial pelos pobres, religiosidade popular, comunhão e participação.
Fazendo a opção preferencial pelos pobres (que são a maioria na América Latina), a Confe-
rência se deu conta de que “a religião deste povo, em sua forma cultural mais característica, é expres-
são da fé católica. É um catolicismo popular” (PUE n. 444).
Por isso, ao tratar da “Liturgia”, o documento o faz em conjunto com os temas “oração par-
ticular” e “piedade popular” (PUE n. 896-963). Em outras palavras, no trabalho de evangelização na
América Latina, há que se integrar necessariamente “Liturgia” e “religiosidade popular”, numa mútua
fecundação. A Liturgia, baseada em autêntica teologia e purificada dos vícios herdados do passado,
deverá sabiamente se adaptar a esta “cultura” típica (“catolicismo popular“) aprendendo com ela, ao
mesmo tempo que esta “cultura” deverá também ser purificada pelo espírito da Liturgia herdado da

119
CELAM. Liturgia para a América Latina, p. 63.
120
BUYST Ione. Medellín na Liturgia. Art. cit., p. 870.
121
Ibid., p. 861.
90
Tradição antiga da Igreja e retransmitido pelo Concílio Vaticano II. Está lançado, pois, o desafio
da “inculturação da Liturgia” na realidade cultural típica latino-americana (cf. PUE n. 940)!
Tudo isso, dentro do espírito de comunhão e participação. Em outras palavras, reafirma-se o
caráter eminentemente comunitário da Liturgia, na qual todos possam participar de modo pleno, cons-
ciente e ativo, sentindo-se verdadeiros atores das ações celebrativas com sua cultura.

Linhas gerais da situação da Liturgia na América Latina, segundo Puebla:

“Em geral, a renovação litúrgica na América Latina está dando resultados positivos, pelo fato
de se estar novamente encontrando a posição real da Liturgia na missão evangelizadora da
Igreja, pela maior compreensão e participação dos fiéis, favorecidos pelos novos livros litúr-
gicos e pela difusão da Catequese pré-sacramental.
Isto foi favorecido pelos documentos da Sé Apostólica e das Conferências Episcopais, bem
como por encontros em diversos níveis: latino-americano, regional, nacional etc.
Facilitaram esta renovação o idioma comum, a riqueza cultural e a piedade popular.
Sente-se a necessidade de adaptar a Liturgia às diversas culturas e à situação de nosso povo
jovem, pobre e humilde.
A falta de ministros, a dispersão populacional e a situação geográfica do continente fizeram
crescer a consciência da utilidade das celebrações da Palavra e da importância de servir-se dos
meios de comunicação social (rádio e televisão) para alcançar a todos.
Verificamos, entretanto, que não se tem atribuído ainda à pastoral litúrgica a prioridade que
lhe cabe dentro da pastoral de conjunto, continuando muito prejudicial a oposição existente
em alguns setores entre Evangelização e Sacramentalização. Falta um aprofundamento em
torno da formação litúrgica do clero; nota-se marcada ausência de catequese litúrgica desti-
nada aos fiéis.
A participação na Liturgia não repercute de forma adequada no compromisso social dos cris-
tãos. A instrumentalização que, por vezes, se faz da mesma, lhe desfigura o valor evangeliza-
dor.
Prejudicial também tem sido a falta de observância das normas litúrgicas e do seu espírito
pastoral, por abusos que causam desorientação” (PUE n. 896-903).

3.3. Santo Domingo (1992)


A IV Conferência Geral do CELAM, realizada em Santo Domingo (República Dominicana),
em 1992 (por ocasião do quinto centenário do “descobrimento” da América), “foi marcada por uma
série de polêmicas e fatos dolorosos provocados pelo modo como o Vaticano e os organismos da
Cúria Romana se relacionaram com a Igreja da América Latina”122. Ao mesmo tempo, se situa no
contexto da grande campanha do papa João Paulo II em favor da “nova evangelização” de todos os
povos, cada qual com sua cultura.
O documento final da Conferência (= documento de Santo Domingo: SD) destaca como
grande desafio o da inculturação do Evangelho entre os povos da América Latina e do Caribe com
sua cultura religiosa típica. O título do documento expressa essa preocupação: “Nova Evangelização,
Cultura Cristã e Inculturação”.
“A questão da Liturgia aparece em diversos números do texto e de um modo às vezes frag-
mentário (cf. nn. 34, 35, 43, 51-53). Além destes números, há referências ao culto em vários outros
números (cf. nn. 58, 61, 71, 145, 151, 152, 248,249,254)”123.

122
BARROS SOUZA Marcelo de. A glória de Deus é a vida do pobre. A Liturgia na conferência e no Documento de
Conclusões de Santo Domingo. In: Revista de Liturgia, São Paulo, n. 115, 1993, p. 200-2001. As comunidades populares
do continente haviam assumido a data “como dia de penitência e memória dos milhões de vítimas da conquista que se
prolongou nestes 500 anos”. O governo da Igreja, por sua vez, fez questão “celebrar festivamente o V centenário da
cristianização do continente”. Outra característica desta assembleia foi, segundo o citado autor, “o seu ambiente exagera-
damente hierárquico e autoritário... (ibid.).
123
Ibid., p. 201.
91
O documento enfatiza o profundo sentido evangelizador da celebração litúrgica segundo o
espírito do Vaticano II, nas diferentes culturas (SD n. 34-35). Ao mesmo tempo retoma a “religiosi-
dade popular” como um valor cultural que não pode ser esquecido no trabalho da evangelização (SD
n. 36).
É necessário que reafirmemos nosso propósito de continuar os esforços por compreender
cada vez melhor e acompanhar com atitudes pastorais, as maneiras de sentir e viver, com-
preender e expressar o mistério de Deus e de Cristo por parte de nossos povos, para que
purificadas de suas possíveis limitações e desvios cheguem a encontrar seu lugar próprio
em nossas Igrejas locais e em sua ação pastoral (SD, n. 36).
Quanto à Liturgia, testemunha o documento que “muito resta a ser feito tanto para assimilar
em nossas celebrações a renovação litúrgica desencadeada pelo Concílio Vaticano II, como para aju-
dar os fiéis a fazer da celebração eucarística a expressão de seu compromisso pessoal e comunitário
com o Senhor. Ainda não se alcançou plena consciência do que significa a centralidade da Liturgia
como fonte e cume da vida eclesial. Perdeu-se para muitos o sentido do ‘dia do Senhor’ e da conse-
quente exigência eucarística. Persiste a pouca participação da comunidade cristã, e surge quem queira
se apropriar da Liturgia sem considerar seu verdadeiro sentido eclesial. Descuidou-se da séria e per-
manente formação litúrgica segundo as instruções e documentos do magistério (cf. Carta apostólica
Vicesimus quintus annus, 4), em todos os níveis. Ainda não se dá atenção ao processo de uma sã
inculturação da Liturgia. Isto faz com que as celebrações sejam ainda, para muitos, algo ritualista e
privado a ponto de não se fazerem conscientes da presença transformadora de Cristo e de seu Espírito
nem de traduzirem-se em um compromisso solidário para a transformação do mundo” (SD n. 43).
Como se vê, manifesta-se aí a nítida preocupação em relação a uma sã inculturação da
Liturgia, com certeza em todos os níveis. Posteriormente, voltando a atenção especificamente aos
indígenas, o documento propõe: “Promover uma inculturação da Liturgia, acolhendo com apreço seus
símbolos, ritos e expressões religiosas compatíveis com o claro sentido da fé, mantendo o valor dos
símbolos universais e em harmonia com a disciplina geral da Igreja” (SD n. 248). Sem esquecer a
realidade dos negros (n. 249) e dos jovens (n. 117).

3.4. Aparecida (2007)


Lamentavelmente a liturgia não ocupa o lugar que deveria no seu Documento final. Conten-
tou-se apenas com um parágrafo, inserido na última hora, na hora da aprovação final do documento124.
Fala-se seguido da Eucaristia, há parágrafos bons sobre os sacramentos, mas esquece-se de certa ma-
neira o aspecto celebrativo deles (dimensão mais mistagógica). Privilegiam-se, em moldes escolásti-
cos, “as doutrinas”, as “verdades de fé”, “as necessidades” deles e sobre eles. Faltou a necessária
ênfase à Liturgia (celebração do mistério!) como lugar privilegiado de encontro com Jesus Cristo e
de formação de discípulos e missionários para que nele nossos povos tenham vida.
Acima falávamos de como o Catecismo da Igreja Católica, ao tratar da “celebração do mistério
cristão” (primeira sessão: nn. 1066-1209), usa uma linguagem mais mistagógica para falar da Litur-
gia; mas, ao abordar em seguida os sacramentos (segunda sessão: nn. 121-1690), desliza para uma
linguagem teológica mais escolástica. O documento de Aparecida privilegiou este estilo de aborda-
gem no que tange a aspectos da celebração do mistério cristão. Esqueceu o fenômeno da Liturgia
como celebração, qual fonte importantíssima de formação de discípulos missionários...
Sem dúvida, essa é uma das maiores lacunas (se não a maior) do Documento de Aparecida.
Tanto é que o vocábulo “liturgia” nem consta no índice analítico final do documento final!
Acha-se que a metodologia de trabalho adotada na Assembleia é que prejudicou. Será mesmo?
Será que a liturgia é tão sem importância assim, a ponto de sua abordagem ser comprometida por uma
metodologia de trabalho? Ou não terá sido um inconsciente coletivo ainda um tanto limitado em
relação ao espírito da liturgia a causa de tal prejuízo?

124
O tal parágrafo que fala especificamente da Liturgia está no n. 250 do Documento final, que reza assim: “Encontramos
Jesus Cristo, de modo admirável, na Sagrada Liturgia. Ao vivê-la, celebrando o mistério pascal, os discípulos de Cristo
penetram mais nos mistérios do Reino e expressam de modo sacramental sua vocação de discípulos e missionários. A
constituição sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano II nos mostra o lugar e a função da liturgia no seguimento de Cristo,
na ação missionária dos cristãos, na vida nova em Cristo e na vida de nossos povos n’Ele”.
92

4. REFORMA LITÚRGICA PÓS-CONCILIAR NO BRASIL ESPECIFICAMENTE (REALIZAÇÕES, DIFICUL-


DADES, PERSPECTIVAS E DESAFIOS FUTUROS)

Naturalmente que este não é o espaço para entrarmos em todos os detalhes sobre o que já se
empreendeu em termos de reforma litúrgica pós-conciliar no Brasil. Como também não podemos
abordar todas as dificuldades, perspectivas e desafios. Merecia um livro, a ser ainda publicado. Tra-
zemos aqui, sucintamente, apenas alguns dados que julgamos relevantes.

4.1. Realizações
À medida que os livros litúrgicos romanos foram sendo publicados em suas edições típicas,
no Brasil se encaminhou logo um intenso, longo, e penoso trabalho de tradução dos textos litúrgicos
em português. Para tanto, foi constituída na CNBB uma Comissão Nacional de Liturgia (a partir de
1964: Secretariado Nacional de Liturgia), sob a presidência de D. Clemente José Carlos Isnard, OSB.
O trabalho foi imenso, com muitas reuniões, discordâncias e suados acordos, idas e vindas a
Roma e a Portugal: um “complicado processo”, cujos detalhes não vem ao caso aqui abordar125. Hoje
os livros litúrgicos estão todos traduzidos.
Dentre os livros litúrgicos mais significativos traduzidos hoje, por causa das adaptações que
já foram introduzidas, destacamos alguns. Em primeiro lugar, o Missal Romano, ressaltando, sobre-
tudo a partir de 1993, a nova tradução sobre a 2ª edição típica: nesta foi acrescida “grande variedade
de introduções ao ato penitencial, à oração sobre as oferendas, ao Pai-nosso e ao abraço da paz, bem
como fórmulas para o envio no fim da missa”, além de “aclamações para todas as orações eucarísti-
cas” (cf. Apresentação). E por falar em oração eucarística, uma delas foi feita especialmente para ser
usada no Brasil: é a Oração Eucarística V, composta de forma ritmada, apropriada para ser procla-
mada e cantada no nosso jeito brasileiro. Outro livro importante é o da Liturgia das Horas, com os
salmos e responsórios traduzidos em forma ritmada, cadenciada, para serem cantados também no
nosso jeito brasileiro. E por falar em Liturgia das Horas, um livro (não oficial, mas oficioso) que faz
sucesso é o Ofício Divino das Comunidades: uma tentativa bem sucedida de inculturação da Liturgia
das Horas à índole da maioria dos brasileiros. Para a celebração do matrimônio foi elaborado um
Ritual alternativo do matrimônio, adaptado para o Brasil a partir da 2ª edição típica com a nova
Introdução Geral. O Ritual do batismo de crianças recebeu uma tradução adaptada à índole do povo
brasileiro. O mesmo já sucedeu com Ritual de Iniciação Cristã de Adultos. Também o Ritual de
Exéquias recebeu um tratamento novo126. O Ritual de Bênçãos está em vias de tradução adaptada.
Convém também lembrar o Hinário Litúrgico da CNBB em quatro volumes, que recolhe para os
diferentes tempos do ano litúrgico o melhor da música litúrgica composta no Brasil nestes ricos anos
pós-conciliares127.
D. Clemente Isnard testemunha que “o interesse pela renovação da Liturgia se estendeu na
década de 60 como um rastilho de pólvora”128. Daí que, nesta mesma década (logo depois do Concílio
Vaticano II, portanto), foram realizados vários Encontros Nacionais de Liturgia, refletindo sobre di-
ferentes temas: Pastoral da Assembleia Litúrgica, Iniciação cristã, Pastoral da penitência, Matrimô-
nio, Domingo, Arte Sacra. Também se realizaram na mesma década muitos Encontros de Música
Sacra, ocasião em que se criaram e se divulgaram inúmeros cantos litúrgicos de boa qualidade, que
vieram contribuir enormemente para a participação ativa do povo na Liturgia. Na linha da formação,
há que se destacar na mesma década o funcionamento do Instituto Superior de Pastoral Litúrgica

125
Cf. BECKHÄUSER Alberto. Os livros litúrgicos em vernáculo no Brasil. Memória de complicado processo. In:
SILVA José Ariovaldo da & SIVINSKI Marcelino (Orgs.). Liturgia: um direito do povo. Op. cit., p. 64-95; cf. também
ISNARD Clemente José Carlos. Reminiscências para servir a uma história da renovação litúrgica no Brasil. In: A vida
em Cristo e na Igreja (Revista de Liturgia), São Paulo, n. 61, 1984, p. 5-11.
126
Cf. Nossa Páscoa. Subsídios para a celebração da esperança. São Paulo: Paulus, 2003.
127
Atualmente vêm sendo amplamente divulgados em CD para facilitar e agilizar seu uso nas comunidades, segundo os
tempos do ano litúrgico.
128
ISNARD Clemente José Carlos. Reminiscências para servir a uma história da renovação litúrgica no Brasil. Art. cit.,
p. 8.
93
(ISPAL) no Rio de Janeiro. Pessoas que estudaram no ISPAL hoje estão na linha de frente da
pastoral litúrgica no país.
A partir de 1964, implantou-se no Brasil, sob o comando da CNBB, a Campanha da Fraterni-
dade: uma forma tipicamente brasileira de viver a Quaresma, dentro do ano litúrgico, enfocando cada
ano um problema social que mais aflige a sociedade129. O mesmo se diga das “novenas de Natal”:
uma forma bem brasileira de viver o tempo do Advento.
Na década de 70, a CNBB desenvolveu um grande projeto de pastoral sacramental, publicando
uma série de documentos de orientação sobre diferentes sacramentos130: Sacramentos da iniciação
cristã (1974), Penitência (1976), Matrimônio (1978), Unção dos enfermos (1979), Batismo das cri-
anças (1980). Também foi publicado um documento intitulado “Pastoral da música litúrgica no Bra-
sil” (1976). Em 1977, na tentativa de adaptar a Liturgia ao povo mais simples, foi aprovado e publi-
cado pela CNBB um “Diretório para missas com grupos populares”. Infelizmente, este documento
teve um fim inglório, pela proibição que sofreu da Sagrada Congregação para o Culto Divino, não
obstante inúmeras tratativas.
A década de 80 também foi muito rica. Destaca-se pelos Encontros Nacionais de Professores
de Liturgia, promovidos pela Linha 4 (Liturgia) da CNBB. Num destes encontros, realizado em Sal-
vador (BA) nos dias 07 a 11.07.1983, surgiu a ideia de realizar um amplo levantamento sobre a situ-
ação da Liturgia no Brasil. Um questionário foi distribuído pela CNBB para todas as dioceses, Ordens
e Congregações Religiosas. Sobre as respostas, devidamente tabuladas e sintetizadas, uma equipe de
liturgistas elaborou uma avaliação da situação da Liturgia no Brasil. Todo esse material foi publicado
sob o título Liturgia: 20 anos de caminhada pós-conciliar (Estudos da CNBB 42). A partir desse
levantamento germinou e veio à luz o importante Documento 43 da CNBB (Animação da vida litúr-
gica no Brasil: elementos de pastoral litúrgica) publicado em 1989.
Os Encontros Nacionais dos Professores de Liturgia resultaram na fundação da Associação
dos Liturgistas do Brasil (ASLI), por ocasião do 10° Encontro realizado em Vitória (ES) nos dias 13
a 17.02.1989. Um ano depois, no Encontro realizado em Curitiba (PR) nos dias 06 a 09.02.1990, seus
estatutos foram aprovados em caráter definitivo, sendo depois registrados em Cartório. A ASLI se
reúne uma vez por ano para estudo de um tema específico, intercâmbio de experiências, articulações
de atividades científicas e pastorais dos liturgistas etc.
A partir de 1984 funciona na Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção (São Paulo) o curso
de pós-graduação em Liturgia. Ao mesmo tempo constituiu-se na Faculdade o Centro de Liturgia,
composto por uma equipe de liturgistas que, além de pensar e programar o curso de pós-graduação
em Liturgia, também organiza e promove um Curso de Verão (dois janeiros) e Semanas de Liturgia
para agentes de pastoral em geral131. Trata-se de um Centro irradiador de animação da vida litúrgica
para o Brasil e América Latina, possibilitando o progresso da ciência e da pastoral litúrgicas em nosso
meio. O Centro desenvolveu, adotou, e vem promovendo uma metodologia própria para a formação
litúrgica, pela qual se parte da constatação e análise de práticas celebrativas bem concretas (primeiro
passo), reflete-se teologicamente sobre esta realidade à luz da Tradição (segundo passo) e se tira
conclusões para o aperfeiçoamento destas práticas (terceiro passo)132. Nesta linha se desenvolveu

129
Cf. WILMSEN Klaus Carlos. Campanha da Fraternidade, para onde vais? Algumas considerações para uma melhor
integração da Campanha da Fraternidade na Quaresma (= Cadernos de Liturgia 13). São Paulo: Paulus, 2004.
130
Todos eles publicados na coleção “Documentos da CNBB”, pelas Paulinas. Alguns atingiram várias edições, como é
o caso do Documento 2a (Pastoral dos sacramentos da iniciação cristã).
131
O curso de pós-graduação é iniciado por um curso propedêutico intensivo de 4 meses, intitulado “Especialização em
Liturgia”. O curso de Verão é chamado de “Atualização em Liturgia”.
132
Cf. BUYST Ione. Como fazer ciência litúrgica na América Latina hoje: princípios, (= Tese de Mestrado: Faculdade
de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo), p.ms. São Paulo, 1987; ID. Como estudar Liturgia: princípios de
ciência litúrgica. São Paulo: Paulus, 1990; ID. O hino “Cristo Ressuscitou”. Relato e análise de uma experiência litúrgica
como contribuição para a metodologia da ciência litúrgica (= Tese de Doutorado: Faculdade de Teologia Nossa Senhora
da Assunção, São Paulo), p.ms. São Paulo 1993; ID. Pesquisa em Liturgia: relato e análise de uma experiência. São
Paulo: Paulus, 1994; ID. Cristo ressuscitou: meditação litúrgica com um hino pascal. São Paulo: Paulus, 1995; Centro
de Liturgia. Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. São Paulo. Formação litúrgica. Como fazer? (= Cader-
nos de Liturgia 3). São Paulo: Paulus, 1994; ID. Curso de Especialização em Liturgia. Uma experiência universitária
significativa (= Cadernos de Liturgia 4). Paulus: São Paulo, 1995).
94
também a eficiente metodologia do “laboratório litúrgico”133, já bem difundida pelo Brasil afora,
promissora de uma Liturgia verdadeiramente inculturada. Ao mesmo tempo, multiplicam-se os espe-
cialistas em Liturgia.
Cursos de Verão, mais ou menos na mesma linha metodológica, são desenvolvidos também
no sul do Brasil e no Norte e Nordeste. Sem contar as inúmeras Semanas e Cursos de Liturgia que se
realizaram pelo país afora, em paróquias, dioceses, seminários, com o clero e o povo. Sobretudo o
povo tem demonstrado uma enorme vontade em se aprofundar na Liturgia, ainda mais quando per-
cebe nela a fonte por excelência de espiritualidade cristã engajada na luta em favor da vida. A Rede
“Celebra” de animação litúrgica popular, com núcleos em várias regiões do país, vem igualmente
prestando um ótimo serviço de formação litúrgica para o povo em geral.
Na mesma esteira de trabalho em prol da formação litúrgica temos que lembrar igualmente as
inúmeras publicações já feitas no Brasil (algumas de alto nível!) em livros e revistas. E por falar em
revista, temos que mencionar a Revista de Liturgia, bimestral, das Pias Discípulas do Divino Mestre,
de São Paulo. Desde 1973 ela vem prestando excelente serviço às comunidades eclesiais, através de
artigos (formativos e informativos) e de subsídios para preparar as celebrações.
À luz dos grandes Encontros do episcopado latino-americano em Medellín (1969) e Puebla
(1979), despertou-se a consciência de que o grande sujeito da Liturgia no Brasil e na América Latina
é o povo pobre. Este deverá ser o grande protagonista de uma boa reforma da Liturgia. Nesta linha,
não podemos deixar de enfatizar a contribuição, sobretudo, das Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) no Brasil. Nelas (onde o maior peso de participação é o da mulher) verificamos de forma
muito vital o processo de inculturação litúrgica no Brasil, deslanchado pelo Vaticano II134. Cerca de
70% delas celebra o dia do Senhor em torno da palavra de Deus. Tanto é que a CNBB veio em seu
auxílio publicando em 1994 um documento intitulado: Orientações para a celebração da palavra de
Deus (Documento 52). Com os elementos próprios da cultura, em sadia sintonia com os valores do
“catolicismo popular”, conjugando religiosidade popular e Liturgia, as CEBs sabem celebrar a páscoa
de Cristo na páscoa do povo e a páscoa do povo na Páscoa de Cristo, e celebram a Eucaristia como
ceia memorial do sacrifício de Cristo em favor dos pobres. O caráter popular e participativo em toda
a ação litúrgica, o caráter pascal das celebrações, a centralidade da palavra de Deus, os novos minis-
térios, o caráter ecumênico das celebrações, a valorização do corpo e da natureza, a valorização da
linguagem simbólica, a música, são algumas características da Liturgia das CEBs em processo de
inculturação no Brasil.
Os negros, sob o impulso da Campanha da Fraternidade de 1988135 e com o apoio da Dimen-
são Litúrgica da CNBB, têm desenvolvido um excelente trabalho no sentido de poderem celebrar o
mistério pascal de Cristo com os elementos de sua raça. Pesquisas, publicações, seminários, celebra-
ções, tudo vem buscando contribuir para uma Liturgia com rosto negro no Brasil. No dias 23 a
25.04.1993, aconteceu em São Paulo (SP) o Primeiro Encontro entre a Articulação Nacional dos Pa-
dres e Bispos Negros e Agentes de Pastoral Negros e a Dimensão Litúrgica da CNBB. Posteriormente,
nos dias 10 a 15.09.1996 aconteceu em Duque de Caxias (RJ) um grande e marcante Seminário Na-
cional sobre Inculturação da Liturgia a partir da cultura afro-brasileira. Depois, para os dias 13 a
17.09.1999, em Salvador (BA), a CNBB promoveu mais um Seminário Nacional em torno do tema
“Memória de Jesus no jeito afro de celebrar”.
Vale lembrar que, na Bahia (que compreende no Regional Nordeste III da CNBB), especifi-
camente, vem se trabalhando um significativo processo de inculturação da Liturgia para Igreja da

133
Cf. ORMONDE Domingos. Laboratório litúrgico. O que é, como se faz, por quê? In: Revista de Liturgia (A Vida em
Cristo e na Igreja), São Paulo, n. 122 (1994), p. 34-35; BARONTO Luiz Eduardo P. Laboratório litúrgico. Pela inteireza
do ser na vivência ritual. São Paulo: Editora Salesiana, 2000.
134
Cf. BARROS SOUZA Marcelo de. Eucaristia no estilo das CEBs. In: Celebrar o Deus da vida. Tradição itúrgica e
inculturação. Loyola: São Paulo, 1992, p. 144-147; CARPANEDO Penha & GUIAMARÃES Marcelo. Comunidades
que celebram - um jeito novo de celebrar a fé a a vida. In: X Encontro Intereclesial (Ilhéus - Bahia - 11 a 15 de julho de
2000). CEBs: Povo de Deus, 2000 anos de caminhada. Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 1999, p. 131-149; SILVA José
Ariovaldo da & FERNANDES Veronice. A Liturgia no X Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base. In:
Revista de Liturgia, São Paulo, n. 161, 2000, p. 4-7.
135
Esta Campanha teve como lema: “A Fraternidade e o Negro” e, como tema: “Ouvi o clamor deste povo!”.
95
Região. No dias 27 a 31.08.2001 aconteceu com sucesso o Primeiro Seminário sobre Liturgia e
Inculturação do Regional Nordeste III136. Nos dias 01 a 04.08.2002, aconteceu o Segundo Seminário,
dando continuidade ao tema do Seminário anterior. Nos dias 21 a 23.11.2003 aconteceu o Terceiro
Seminário, desta vez sobre o tema “Liturgia e Vida – Vida e Liturgia”. No dias 05 a 09.10.2005 foi a
vez do Quarto Seminário, refletindo sobre a Inculturação da Iniciação Cristã no Regional Nordeste
III à luz do Ritual de Iniciação Cristão de Adultos (RICA). Todos os Seminários foram celebrados
em Feira de Santana (BA) com representantes das diferentes dioceses do Regional.
A CNBB vem incentivando também um processo de inculturação da Liturgia nos meios indí-
genas. Neste sentido, para refletir sobre o assunto, ela já promoveu quatro seminários, reunindo litur-
gistas, missionários e representantes indígenas. Todos em Brasília, o primeiro foi nos dias 29 a
31.08.2000, o segundo nos dias 31 a 08-02.09.2001, o terceiro nos dias 05 a 07 de março de 2004, e
o quarto nos dias 17 a 19 de março de 2006. Entre os índios Xavante, no Mato Grosso, já existe um
avançado ensaio de inculturação do rito de iniciação cristã e da celebração da Vigília Pascal137.
No campo da arte sacra, já foram construídos neste período pós-conciliar belíssimos espaços
realmente convidativos para celebrar em comunidade o mistério que nos faz Igreja (Povo de Deus-
Corpo de Cristo) reunida para ouvir a Palavra, celebrar a Páscoa e, na força do Ressuscitado, trabalhar
pelo Reino138. A própria CNBB retomou ultimamente, e com crescente sucesso, os Encontros Naci-
onais de Arte Sacra: um em Vila Velha (ES) nos dias 11 a 13.07.1996, outro em São Paulo nos dias
25 a 27.06.1999, outro em Belo Horizonte (MG) nos dias 02 a 05.08.2001, outro em Salvador (BA)
nos dias 30 de julho a 4 de agosto de 2003, e outro no Rio de Janeiro nos dias 27 a 30 de julho de
2005139, e outros mais se sucederam...
Vale lembrar ainda realização de três importantes Seminários Nacionais de Liturgia promovi-
dos pela CNBB, já em pleno terceiro milênio. O primeiro foi nos dias 10 a 13 de março de 2003 (em
comemoração aos 40 anos da Constituição sobre a Sagrada Liturgia)140, o segundo nos dias 14 a 18
de fevereiro de 2005 sobre “A Eucaristia na vida da Igreja” (em comemoração ao ano da Eucaristia
promovido pelo papa João Paulo II)141, e o terceiro nos dias 31 de janeiro a 4 de fevereiro de 2012
(“Releitura da Sacrosanctum Concilium no contexto do Vaticano II e nos Documentos Latinoameri-
canos”, em preparação para o jubileu da Constituição litúrgica). Este foi em Itaici, os dois primeiros
foram em São Paulo.
O pentecostalismo dentro da Igreja Católica tem contribuído para celebrações mais alegres,
espontâneas e vivas nas comunidades, arrebanhando inclusive multidões para momentos celebrativos
cheios de grande emoção. Contudo, apresenta também sérias dificuldades para o avanço da reforma
litúrgica no espírito do Concílio Vaticano II. Assim sendo, no intuito de esclarecer e ajudar, a CNBB
publicou em 1994 um precioso documento intitulado Orientações pastorais sobre a Renovação Ca-
rismática Católica (Documento 53)142.

136
Cf. SILVA José Ariovaldo da. Seminário sobre Liturgia e inculturação. Uma experiência bem sucedida na Bahia. In:
Revista de Liturgia, São Paulo, n. 169, 2002, p. 30-31.
137
Cf. LACHNITT Georg. Símbolos da iniciação cristã entre os xavante. Inculturação dos ritos de iniciação cristã entre
os xavante: dos símbolos do “rito da iniciação cristã dos adultos” a símbolos rituais em consonância com a cultura
xavante (= Tese de Doutorado apresentada na Pontifícia Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção, em São Paulo, no
dia 08.06.2001), São Paulo, 2001.
138
Destacamos os trabalhos do artista sacro Cláudio Pastro e da arquiteta Regina de Albuquerque Machado (cf. PASTRO
Cláudio. Arte Sacra, São Paulo: Paulinas, 2001; ALBUQUERQUE MACHADO Regina de. O local da celebração. Ar-
quitetura e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2001). A arquiteta Irmã Laíde Sonda com sua equipe vem promovendo Encon-
tros de Arte Sacra, bem Cursos de Especialização em Arte Sacra em São Paulo, Porto Alegre e tantos outros lugares.
139
Na década de 60 já tinha havido dois destes Encontros: um no Rio de Janeiro nos dias 01 a 05.11.1967, e outro em
Brasília nos dias 30.10 a 03.11.1968.
140
Das contribuições deste seminário resultou uma publicação da CNBB: A sagrada Liturgia 40 anos depois (= Estudos
da CNBB 87). São Paulo: Paulus, 2003.
141
Das contribuições deste seminário resultou uma publicação da CNBB, muito lida e estudada pelo Brasil afora: A
eucaristia na vida da Igreja (= Estudos da CNBB 89). São Paulo: Paulus, 2005.
142
Cf. BECKHÄUSER Alberto. Análise de certos fenômenos “religiosos” à luz da sagrada Liturgia. In: REB 59 (1999),
p. 618-643.
96
4.2. Dificuldades
Uma primeira grande dificuldade (desde a década de 60) veio de um grupo de cristãos reaci-
onários liderados pelo bispo da diocese de Campos (RJ), D. Antônio de Castro Mayer, os quais sim-
plesmente não aceitaram as reformas do Concílio Vaticano II, alegando que a Liturgia de Pio V (1570:
logo depois do concílio de Trento) é “a verdadeira Liturgia romana“. Ignorância histórica!... Hoje há
duas linhas de Igreja dentro da diocese de Campos: uma da reforma do Concílio Vaticano II, e a outra,
tradicionalista, que celebra a Liturgia nos moldes medievais e pós-tridentinos (de fundo romano-
franco-germânica, portanto).
Se por um lado havia os tradicionalistas reacionários, por outro houve também os afoitos e
apressados que, sem conhecer a fundo o espírito da reforma do Vaticano II, cometeram graves abusos
e desvios. Lembramos a afronta de padres à religiosidade e à cultura religiosa popular, quebrando
antigas igrejas, derrubando artísticos altares, alijando os “santos” para fora do recinto sagrado, sob
pretexto de reforma litúrgica. Sem contar, como escreve D. Clemente Isnard, outros “abusos e desvios
que se verificaram neste período. Vez por outra chega ao conhecimento alguma iniciativa esdrúxula,
promovida por algum padre ignorante de Liturgia e desejoso de fazer coisas novas”. Mas não só isso:
“outro escolho no caminho da renovação litúrgica foi e tem sido o descaso, a rotina, a acomodação.
Muitos apenas mudaram de livros litúrgicos, mas não assumiram o espírito da renovação. Essas ce-
lebrações têm valor do ‘opus operatum’, mas carecem de comunicação com o povo e desperdiçam
toda a potencialidade pastoral da Liturgia”143.
Outro problema que dificultou a agilidade do processo de reforma foi sem dúvida o número
reduzido de pessoal especializado para ajudar na formação litúrgica que se fazia urgente. Isso, sobre-
tudo, nas décadas de 60 e 70. A falta de formação litúrgica em todos os níveis tem sido sem dúvida
uma das grandes dificuldades para levar adiante o processo de reforma. Mas há esperanças...
À falta de formação litúrgica se alia o próprio imaginário religioso do povo brasileiro forte-
mente estruturado em moldes medievais e pós-tridentinos, como já vimos acima. O espírito da re-
forma litúrgica do Vaticano II tem tido enormes dificuldades em ‘penetrar’ no nosso “catolicismo
popular“ (com valores evangélicos que se traduzem em solidariedade, hospitalidade, confiança em
Deus etc., mas também com seus desvalores)... Ainda mais com o poder atual da mídia que, desco-
nhecendo o espírito do concílio, muitas vezes justifica e reforça o clericalismo e o individualismo
religioso que herdamos.
Uma última dificuldade se liga ao zelo pastoral dos padres em levar o povo a participar ativa-
mente da Liturgia. Tal zelo os levou a adotar os famosos folhetos litúrgicos. A iniciativa, louvável
em parte, bloqueia a criatividade e a inculturação da Liturgia. Além do mais, ‘banaliza’ a palavra de
Deus e a própria Liturgia, pelo uso de um ‘descartável’ que não tem nenhum sentido simbólico144.
Sem falar do uso sem critério de cantos nas celebrações, muitas vezes favorecido por hinários mais
adequados para encontros catequéticos, pastorais e ‘devocionais’ do que para a Liturgia145.

4.3. Perspectivas e desafios futuros


Pelas realizações acima apontadas, muito sucintamente, pode-se perceber que há boas pers-
pectivas futuras em relação ao processo de reforma litúrgica do Vaticano II no Brasil. Tem aumentado
o número de pessoas preparadas e especializadas. Continua-se investindo, com crescente intensidade,
na formação litúrgica em todos os níveis. Aumenta o interesse pela Liturgia pois, aos poucos, desco-
bre-se que em sua celebração se encontra a fonte genuína da espiritualidade e vivência cristãs.
Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer e os desafios são muitos. O maior deles
ainda continua sendo o da formação, não só do ponto de vista prático-celebrativo, mas também his-
tórico-teológico-litúrgico em diálogo com as práticas. Basta lembrar que a maioria dos seminários,
casas religiosas e faculdades de teologia ainda não colocou a Liturgia entre as matérias principais,
segundo as exigências do Vaticano II (cf. SC 16).

143
ISNARD Clemente José Carlos. Reminiscências para servir a uma história da renovação litúrgica no Brasil. Art. cit.,
p. 11.
144
O n. 37 da Introdução ao Lecionário proíbe o uso de folhetos nas celebrações litúrgicas, isso “em consideração à
dignidade da Palavra de Deus”. Que a Palavra seja proclamada do livro!
145
Exemplo típico deste tipo de hinário é o Louvemos, difundido em muitas paróquias pela Renovação Carismática Ca-
tólica.
97
Resultado: por causa de uma formação litúrgica ainda deficiente, aliada a certo poder “de-
formador” da mídia, corremos o risco de continuarmos no espírito cultual da cristandade medieval e
pós-tridentina, com alguma tintura moderna apenas, mas longe do Espírito do Senhor, longe do centro
da nossa fé (do mistério pascal de Jesus Cristo que nos empenha a um compromisso comunitário na
vivência da fé). Corremos o risco de continuarmos a dar mais importância à “presença real”, às de-
voções ao Santíssimo Sacramento, do que à Eucaristia como memorial do sacrifício pascal de Cristo
que nos libertou e continua nos libertando. Corremos o risco de continuarmos a ver a missa apenas
como “remédio que cura”, como se a celebração eucarística não fosse já a presença da salvação; ou
como “coisa de padre” que se encomenda para ‘homenagear’ pessoas (vivos ou defuntos) e destacar
eventos sociais, e não como ação comunitária participada por todos; ou como show para ser piedosa
e entusiasticamente assistido, e não como ceia pascal dos cristãos em clima tranquilo de ação de
graças. Corremos o risco de ver os sacramentos apenas como “remédio” (uma espécie de “vacina”
contra os males), e não como celebração da Páscoa que nos libertou da raiz de todos os males. Cor-
remos o risco de continuarmos com uma religião clerical, individualista, mágica e puramente devo-
cional, sem compromisso comunitário, distante do projeto de Jesus Cristo. Sem formação litúrgica,
corremos o risco de vermos de certa maneira comprometida a reforma do Concílio Vaticano II.
O papa João Paulo II insistia na evangelização das culturas. Ora, nós temos uma cultura reli-
giosa, de fundo medieval e pós-tridentino, como já foi dito. Cabe agora, mediante uma sadia formação
litúrgica, fazer com que a Liturgia se encarne profundamente no “catolicismo popular” como reali-
dade cultural tipicamente nossa (cf. Puebla 444). Isso já está se ensaiando no Brasil... Cabe a nós dar
continuidade a todo esse trabalho, sem deixar-nos engolir pela onda de discutíveis apelos de certos
fenômenos “religiosos” do nosso tempo, certamente estranhos e até maléficos a uma sadia reforma
da Liturgia no Brasil. Cabe a nós dar continuidade a uma formação litúrgica que leve em conta nossa
cultura (“catolicismo popular”), ou melhor, que dialogue com as culturas populares, num processo de
mútua fecundação entre religiosidade popular e Liturgia no espírito do Concílio Vaticano II.
Os livros litúrgicos já estão todos traduzidos. Agora, o grande passo é o da paulatina incultu-
ração da Liturgia no meio católico brasileiro, sem trair a intuição básica do Vaticano II. Oxalá o
processo de formação litúrgica prossiga - não seja impedido nem pela acomodação - e o espírito de
permanente diálogo entre a prática e a Tradição continue: então certamente a inculturação litúrgica
no espírito do Vaticano II será uma realidade entre nós.

5. RESUMINDO

Enfim dispomos de uma Constituição sobre a Sagrada Liturgia, que nos foi legada pelo Con-
cilio Vaticano II. Assim como nós brasileiros temos a nossa Constituição federal, a saber, a Carta
Magna que fundamenta e rege a organização e os destinos na Nação; assim como as Ordens e Con-
gregações religiosas têm suas Constituições Gerais, a saber, a Carta Magna que espelha o carisma de
cada uma delas e rege a sua organização para viver o carisma; assim a Igreja Católica Apostólica
Romana tem hoje a sua Carta Magna contendo os princípios teológico-litúrgicos e pastorais funda-
mentais que regem a vida litúrgica das comunidades cristãs da Igreja.
Com esta Constituição, o concílio desencadeia dentro da Igreja uma ampla e profunda re-
forma, tanto na compreensão da Liturgia quanto na celebração da mesma. Resgatam-se elementos
fundamentais da antiga Tradição, que haviam sido “esquecidos” praticamente em todo o segundo
milênio. Por exemplo: Resgata-se a centralidade do mistério pascal, a centralidade da Palavra, a Li-
turgia como momento histórico da salvação, resgata-se o princípio da participação ativa, consciente
e frutuosa como um direito de todo o povo sacerdotal, resgata-se a dimensão comunitária e ministerial
da Liturgia, resgata-se a celebração da Liturgia como cume e fonte da vida da Igreja, e fonte por
excelência de espiritualidade cristã.
O CELAM, através de suas Conferências Gerais de Medellín, Puebla e Santo Domingo, fa-
zendo uma releitura do Vaticano II, busca aproximar Liturgia e vida do povo em busca de libertação.
Busca garantir que o povo pobre do continente latino-americano seja de fato o grande sujeito da
Liturgia. Busca resgatar uma Liturgia com a “a cara” deste povo, a partir de uma mútua fecundação
entre Liturgia e religiosidade popular. Busca incentivar a inculturação da Liturgia no meio do nosso
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povo latino-americano com sua cultura típica (“catolicismo popular”). Para tanto, insiste-se muito
na formação litúrgica em todos os níveis.
No Brasil, especificamente, a reforma litúrgica pós-conciliar teve consideráveis avanços. Mui-
tas e grandes já foram as realizações, não obstante as dificuldades. Mas ainda temos grandes desafios
para o futuro. Muito ainda há que se fazer, pacientemente e com persistência, para que o verdadeiro
espírito da Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Liturgia seja de fato assumido por todos.
Esta reforma terá êxito no Brasil e América Latina se for capaz de saber dialogar com o “ca-
tolicismo popular”, não se deixando ao mesmo tempo engolir por fenômenos “religiosos” de tom
intimista e individualista, típicos dos tempos modernos. E o sucesso desse diálogo, em vista de um
processo de inculturação da Liturgia, depende de uma metodologia apropriada, pela qual se parte da
constatação e análise de práticas litúrgicas bem concretas, reflete-se teologicamente sobre esta reali-
dade à luz da Tradição e se tira conclusões para o aperfeiçoamento destas práticas. É o que está se
ensaiando no Brasil, e com resultados positivos. A formação litúrgica, com esta metodologia, conti-
nua sendo o grande desafio para levar adiante o processo de reforma litúrgica, deslanchado pelo Va-
ticano II e incentivado pelos documentos do CELAM e da CNBB.

Perguntas para aprofundar

1. O que é a Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia?


2. Qual a sua importância para o momento histórico atual da Igreja?
3. O que visa este histórico documento conciliar da Igreja?
4. Dentro do panorama histórico geral da Liturgia, o que você anotaria de característico na reforma
litúrgica proposta pelo Concílio Vaticano II?
5. Em que linha a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II veio sendo aplicada na Igreja da América
Latina e do Brasil?
6. O que já se fez e o que ainda falta acontecer do grande sonho do Concílio Vaticano II em termos
de Liturgia?
7. Nas celebrações de sua comunidade, que elementos você percebe da reforma litúrgica do Concílio
Vaticano II? E você percebe nelas também algum elemento próprio das propostas de Medellín,
Puebla, Santo Domingo e da CNBB? Quais?
8. Que desafios temos ainda pela frente, para que nossas celebrações litúrgicas “batam” realmente
com o “espírito” de Jesus e a vivência dos primeiros cristãos?

Bibliografia para complementar a leitura

ABAD José Antonio. Sacrosanctum Concilium. De la convocatória del concílio até a carta apostólica
por ocasião do seu 40o aniversário. In: Burgense, Burgos, 45, 2004, p. 16-43.
ADAM Adolf. Corso di Liturgia, p. 54-59.
ALDAZÁBAL José (Org.). La reforma litúrgica del concílio (= Cuadernos Phase 11). Barcelona:
Centre de Pastoral Litúrgica, 1989.
AUGÉ Matias. Liturgia... p. 59-70.
BARAÚNA Guilherme (Org.), A Sagrada Liturgia renovada pelo Concílio. Estudos e comentários
em tôrno da Constituição Litúrgica do Concílio Vaticano Segundo. Petrópolis: Vozes, 1964.
BUYST Ione. Medellín na Liturgia. In: REB, Petrópolis, 48, 1988, p. 860-875.
. Liturgia no documento de Medellín. In: Revista de Liturgia (A vida em Cristo e na Igreja), São
Paulo, n. 62, 1984, p. 2-8.
CARR Ephrem. Sacrosanctum Concilium and its Consequences: The Reform of the Liturgy. In:
Questions Liturgiques, Leuven, 92, n. 2, 2011, p. 183-194.
CATOLICISMO POPULAR. In: REB, Petrópolis, 36,1976, p. 5-280.
CELAM. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio. Conclusões de Me-
dellín. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 41-43 (Introdução) e p. 106-110 (Capítulo 9).
. Iglesia y religiosidad popular en América Latina. Buenos Aires: Editora Patria Grande, 1976.
. Liturgia para a América Latina. Documentos e Estudos. São Paulo: Paulinas, 1977.
99
. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Conclusões: Puebla. São Paulo:
Loyola, 1982, nn. 896-963 (p. 270-277).
. Santo Domingo: Nova Evangelização, Cultura Cristã e Inculturação. Petrópolis: Vozes, 1992,
nn. 34-36. 43. 248 (p. 50-51. 53. 223).
CHUPUNGCO Anscar. Adaptação. In: SARTORE D. & TRIACCA A. M. (Orgs.). Dicionário de
Liturgia, p. 7-9.
COMBLIN José. Situação Histórica do Catolicismo no Brasil. In: REB, Petrópolis, 26, 1966, p. 574-
601.
. Para uma Tipologia do Catolicismo no Brasil. In: REB, Petrópolis, 28, 1968,, p. 46-73.
GIBIN Maucyr. Ensaio de renovação litúrgica na América Latina. In: Revista de Liturgia (A vida
em Cristo e na Igreja), São Paulo, n. 62 (1984, p. 19-24.
GOENAGA José Antônio. A constituição de Liturgia do Vaticano II / O pós-concílio. In: BOROBIO
Dionísio. (Org.), A celebração na Igreja 1..., p. 136-160.
HAUCK João Fagundes & outros, História da Igreja no Brasil... Segunda Época, p. 99-101.
HOORNAERT Eduardo & outros, História da Igreja no Brasil... Primeira Época, p. 274-320.
ISNARD Clemente José Carlos. Reminiscências para servir a uma história da renovação litúrgica no
Brasil. In: Revista de Liturgia (A vida em Cristo e na Igreja), São Paulo, n. 61 (1984), p. 5-11.
KLAUSER Theodor. Breve historia de la Liturgia occidental..., p. 57-61.
LLOPIS Joan. La Liturgia a través de los siglos (= Emaús 6). Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica,
1993.
MARSILI Salvatore & outros. Panorama histórico da Liturgia (= Anámnesis 2). São Paulo: Paulinas,
1987.
MARTIMORT Aaimé Georges (Org.). A Igreja em oração. Introdução à Liturgia I: Princípios da
Liturgia. Petrópolis: Vozes 1988.
NEUNHEUSER Burkhard. História da Liturgia. In: SARTORE Domenico & TRIACCA Achille M.
(Orgs.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 522-544.
. Storia della Liturgia attraverso le epoche culturali, Roma, Edizioni Liturgiche, 1983, p. 15-102.
NEUNHEUSER Burkhard & outros, A Liturgia, momento histórico da salvação (= Anámnesis 1).
São Paulo: Paulinas, 1987.
ORMONDE Domingos. A Liturgia tem história na América Latina. In: Revista de Liturgia, São
Paulo, n. 115, 1993, p. 202-206.
ROLIM Antônio. Em Torno da Religiosidade no Brasil. In: REB, Petrópolis, 25, 1965, p. 11-28.
SILVA José Ariovaldo da. O movimento litúrgico no Brasil. Estudo Histórico. Petrópolis: Vozes,
1983.
TENA Pere. La reforma litúrgica promovida por el Concilio Vaticano II. In: Anuario de Historia de
la Iglesia (Navarra) 10, 2001, p. 189-198.
VATICANO II. Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia. In: Compêndio
do Vaticano II. Constituições. Decretos. Declarações, 26ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 259-306.
VAN DEN BERG Adriano. Puebla e a Liturgia. A repercussão dos grandes enfoques de Puebla na
Liturgia. In: Revista de Liturgia (A vida em Cristo e na Igreja), São Paulo, n. 62, 1984, p. 10-18.

RESUMO FINAL

A Liturgia de grande parte do primeiro milênio, sobretudo até o século VIII, era vivida e
compreendida como celebração memorial do mistério de Deus atuando na história. Uma Liturgia com
característica fortemente pascal, vivida em clima eucarístico (ação de graças) e de compromisso ecle-
sial-comunitário, em que o contato direto dos cristãos com a palavra de Deus era permanente. Uma
Liturgia cujo ator da celebração era a comunidade presidida por seus pastores. Participada por todos,
era ela “a devoção popular”. Não existiam outras devoções. A centralidade do mistério pascal é que
era determinante. Inclusive os mártires eram celebrados à luz deste mistério.
A Liturgia de grande parte do primeiro milênio, pelo menos dos oito primeiros séculos, foi
uma Liturgia que, procurando ser fiel à tradição cristã e apostólica, se adaptou a diferentes povos com
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sua cultura, tanto no Oriente como no Ocidente, formando inclusive verdadeiras “famílias litúrgi-
cas”, com sua língua e costumes próprios.
Nos dois últimos séculos do primeiro milênio vivemos um tempo de transição na Liturgia
romana. É o período da fusão entre a Liturgia romana propriamente dita e a Liturgia galicana dentro
do império franco-germânico. Nesta fusão, a Liturgia romana passa por profundas transformações:
passa de um cunho pascal e comunitário (eclesial), com nobre simplicidade, para um caráter eminen-
temente devocionalista e individualista, com sortidas complicações. Trata-se de uma ‘passagem’ su-
mamente significativa, pois determinará os rumos da Liturgia ocidental em praticamente todo o se-
gundo milênio da era cristã.
No segundo milênio, com a força da reforma gregoriana e a codificação dos livros litúrgicos
no tempo de Inocêncio III, implanta-se definitivamente na igreja romana o modelo de Liturgia cleri-
cal, distante do povo, herdado, sobretudo, da fusão romano-franco-germânica do século VIII. O povo,
não se sentindo mais ator da Liturgia, preenche ainda mais este vácuo espiritual com as devoções aos
santos e ao Santíssimo Sacramento. O individualismo religioso toma conta da maioria, tanto do clero
que faz da missa sua devoção particular, como do povo que faz das devoções particulares a grande
fonte de vida espiritual.
Esta situação não foi superada nem mesmo com o concílio de Trento. A era das rubricas e a
influência barroca só fizeram acentuar ainda mais a distância abismal entre a Liturgia do clero e o
povo entretido com devoções. Só fez acentuar ainda mais o individualismo religioso.
Com este modelo de Liturgia, em moldes medievais e pós tridentinos, é que no Brasil e Amé-
rica Latina fomos evangelizados durante quatro séculos (ou até mais). Assim, podemos dizer que esta
é a nossa cultura religiosa que, por outro lado, criou também na alma do nosso povo sentimentos
nobres de solidariedade, hospitalidade, alegria, gosto pela festa etc.
Por isso, hoje, quando se insiste em evangelizar os povos com sua cultura, temos que levar
em conta a cultura do nosso povo, que traz no seu subconsciente um modelo de Liturgia herdado de
um passado plurissecular com valores e desvalores.
A reforma do Concílio Vaticano II, preparada pelo movimento litúrgico (que no Brasil teve
grande sucesso e enfrentou ferrenhas oposições), busca resgatar o verdadeiro sentido teológico da
Liturgia segundo a Tradição romana antiga, busca resgatar a participação ativa, consciente e frutuosa
do povo na Liturgia segundo esta mesma Tradição, busca resgatar o sentido eminentemente comuni-
tário da Liturgia.
O CELAM, através de suas Conferências Gerais de Medellín, Puebla e Santo Domingo, fa-
zendo uma releitura do Vaticano II, busca aproximar Liturgia e vida do povo em busca de libertação.
Busca garantir que o povo pobre do continente latino-americano, se sinta o grande sujeito da Liturgia.
Busca resgatar uma Liturgia com “a cara” deste povo, a partir de uma mútua fecundação entre Liturgia
e religiosidade popular. Busca incentivar a inculturação da Liturgia no meio do nosso povo latino-
americano com sua cultura típica (“catolicismo popular”). Para tanto, insiste-se muito na formação
litúrgica em todos os níveis.
No Brasil, especificamente, a reforma litúrgica pós-conciliar teve consideráveis sucessos,
grandes foram as dificuldades, maiores ainda são os desafios para o futuro, muito ainda há por se
fazer.
Esta reforma terá êxito, com certeza, se for capaz de saber dialogar com o “catolicismo popu-
lar”, não se deixando ao mesmo tempo engolir por fenômenos “religiosos” de tom intimista e indivi-
dualista, típicos dos tempos modernos. E o sucesso desse diálogo, em vista de um processo de incul-
turação da Liturgia, depende de uma metodologia apropriada, pela qual se parte da constatação e
análise de práticas celebrativas bem concretas, reflete-se teologicamente sobre esta realidade à luz da
Tradição e se tiram conclusões para o aperfeiçoamento destas práticas. É o que está se ensaiando no
Brasil, e com resultados positivos. A formação litúrgica, com esta metodologia, continua sendo com
certeza o grande desafio para levar adiante o processo de reforma litúrgica, deslanchado pelo Vaticano
II e incentivado pelos documentos do CELAM e da CNBB.

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