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Mantenedora

Faculdade Vitória em Cristo

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Prof. Me. Isaías Luis Araújo Júnior

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Diretor Financeiro
Oldair Leal Santos

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Diretor de Graduação e Pós-Graduação


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Equipe Multidisciplinar

Gabriel Luis Oliveira Araújo


Paulo Victor de Oliveira Souza
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Prof. Dr. Yohans de Oliveira Esteves
Romulo de Souza Santos Barbosa
Prof. Me. Isaías Luis Araújo Júnior

2 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Ficha catalográfica elaborada por __________________________________.

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APRESENTAÇÃO
Estudar os quatro Evangelhos – Mateus, Marcos Lucas e João – é uma tarefa

importante para todo cristão. Sendo assim, não restam dúvidas de que, para teólogos,

trata-se de uma tarefa imprescindível. Isto porque, de forma explícita e plena, é nos

Evangelhos que temos o clímax da revelação de Deus por meio de Jesus Cristo e os

Evangelhos constituem, por assim dizer, um centro teológico das Escrituras. Eles

apresentam, entre outros temas, os seguintes assuntos fundamentais sobre Jesus Cristo

e a Sua obra: nascimento, vida, pregação, ação, morte, ressurreição, ascensão e

comissionamento.

É importante ressaltar que os Evangelhos constituem um gênero literário próprio.

Ainda que apresentem dados biográficos, eles não são biográficos. Ainda que apresentes

fatos históricos, eles não são historiográficos. A proposta é teológica, afinal, o foco está

na apresentação da boa notícia de que Deus irrompeu na história, por meio de Jesus

Cristo, e veio ao encontro do ser humano, que estava em uma condição de perdição,

com a finalidade de salvá-lo (Jo 20.31). Portanto, o foco é Jesus. Ele é o Messias que

veio para cumprir o que o Antigo Testamento apontava e que, portanto, exerce um

ministério público e terreno de serviço a Deus e ao próximo, por meio do ensino, da

cura, da libertação, da compaixão, da pregação e da implantação definitiva do Reino de

Deus entre os seres humanos.

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O Evangelho é de Jesus Cristo e não de homens. Por isso, o melhor é dizer

“Evangelho de Jesus” segundo escreveu Mateus, Marcos, Lucas ou João. Ainda assim,

fica óbvio que eles também manifestam suas percepções e traços específicos na

composição da obra. Afinal, os Evangelhos não surgem do nada; eles estão inseridos em

um contexto sociocultural e religioso próprio. Assim sendo, para melhor entendermos a

mensagem e o propósito dos Evangelhos, precisamos entender o mundo em que eles

estavam inseridos.

É a partir destes pressupostos que pretendemos dar início ao nosso estudo dos

Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e do Evangelho de João, com a esperança

de que sejamos cada vez mais despertados para a fé na obra de Cristo e assumamos

um compromisso engajado com a nossa missão de viver a anunciar o Reino de Deus.

Prof. Dr. Acyr de Gerone Junior

Orientações Gerais para o Estudo

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Bem-vindo mais uma vez! Sabemos que o estudo de uma disciplina de graduação

traz alguns afazeres, e estar preparado é fundamental para se chegar ao fim desta

jornada. Assim, antes de iniciarmos nossa disciplina, preparamos algumas dicas para

tornar seus estudos mais fáceis, práticos e agradáveis. Vamos lá?

Tenha Compromisso

O caminho para o sucesso da disciplina passa por você e por sua vontade e

determinação. Assuma um compromisso com você mesmo, seja constante e não

procrastine.

Seja você o agente do seu aprendizado, não fique esperando o professor/tutor,

ou algum colega te perguntar se fez ou não determinada tarefa, simplesmente faça!

Cada passo conta como uma vitória, o conhecimento adquirido é seu, somente

seu, e não esqueça que o nosso cérebro é o órgão do nosso corpo que, quanto mais

usamos, melhor fica!

Faça uma Agenda de Estudos

Se organize, crie uma agenda própria para estudar, faça um compromisso com

você mesmo e evite ao máximo trocar seus estudos por outra atividade qualquer. O

maior beneficiado é você mesmo.

O ideal é estabelecer uma meta diária de horas de estudo e buscar todos os dias

atingir essa meta. Mas calma, se a semana ficou difícil e você não conseguiu, lembre

que pode reajustar a rota e recuperar o tempo perdido. Só não faça da exceção, a regra.

Pontualidade é a chave do sucesso! Não deixe para a última hora, não perca seus

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prazos e tarefas, elas são contribuições preciosas em seu processo de aprendizagem.

Se prepare

Se prepare! Encontre um lugar adequado, separe tudo o que vai precisar, não

deixe nada e nem ninguém te atrapalhar e lembre, a tranquilidade e o conforto contam

muito nessa hora.

Fique calmo, você não está sozinho!

Toda dúvida precisa ser sanada, não deixe de pedir auxílio, o professor/tutor está

habilitado para te ajudar e aliás, essa é a função dele.

Crie uma lista de dúvidas e prioridades, não deixe que acumulem e peça sempre

orientação logo que elas aparecerem.

Exercícios e Avaliações

Fique atento ao cronograma de atividades e avaliações e não deixe de realizá-las,

elas são importantes ferramentas para que você perceba como anda sua aprendizagem

durante o curso. Lembre-se, cada ponto conta!

Se concentre, procure um lugar tranquilo e que te permita ler e compreender bem

o que se pede. Após as correções, busque a melhoria contínua, aprenda com os erros

que cometeu, a aprendizagem é um processo contínuo.

Bom estudo e sucesso!

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Sumário

APRESENTAÇÃO 4

1 13

Fatos históricos de transição entre o ambiente do AT e o NT 13

1.1 Período intertestamentário: entre o fim do AT e o início do NT 14

1.1.1 Período babilônico (605 a 539 a.C.) e período medo-persa (539 a 331 a.C.) 16
1.1.2 Período grego (331 a 167 a.C.) 19
1.1.3 Período Macabeu ou Hasmoneu (166 a 37 a.C.) 22
1.1.4 Período Romano (63 a.C. a 135 d.C.) 24

1.2 Instituições religiosas 26


1.3 Grupos religiosos 29

1.4 A Literatura do período 33


1.5 A Plenitude dos Tempos 34

2 41

Introdução aos Evangelhos e a questão sinótica 41

2.1 Quatro retratos sobre Jesus 42


2.2 O termo “Evangelho” e por que escrevê-los? 45
2.3 Processo de formação e formas narrativas dos Evangelhos 47

2.3.1 A questão sinótica 51


2.3.2 Algumas curiosidades 61

3 65

O Evangelho de Marcos 65

3.1 Autoria 66
3.2 Data e local da escrita 69

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3.2 Público-alvo 70
3.3 Gênero literário 71
3.4 Estilo 72

3.5 Breve estrutura/esboço 73


3.6 Texto-chave 74

3.7 Percepção a respeito de Jesus 75

3.8 Pontos e assuntos principais 75


3.9 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas 77

3.10 A conclusão (término) do Evangelho de Marcos 79


3.11 Assuntos exclusivos 80

3.12 Algumas curiosidades 81


3.13 Conclusão 82

Unidade Revisional 1 154

Atividades de Aprendizagem 94

4 97

O Evangelho de Mateus 97

4.1 Autoria 98
4.2 Data e local da escrita 101
4.2 Público-alvo 103
4.3 Gênero literário 107
4.4 Estilo 107

4.5 Breve estrutura/esboço 109


4.6 Texto-chave 111

4.7 Percepção a respeito de Jesus 112


4.8 Pontos e assuntos principais 112

4.9 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas 115


4.10 Assuntos exclusivos 118
4.11 Algumas curiosidades 119

4.12 Conclusão 120

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5 122

O Evangelho de Lucas 154

5.1 Pressupostos iniciais 122

5.2 Autoria 123


5.3 Data e local da escrita 128

5.4 Público-alvo 133


5.5 Gênero literário 134

5.6 Estilo 136


5.7 Breve estrutura/esboço 137

5.8 Texto-chave 139


5.9 Percepção a respeito de Jesus 140
5.10 Pontos e assuntos principais 140
5.11 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas 144
5.12 Assuntos exclusivos 147
5.13 Algumas curiosidades 149
5.14 Conclusão 151

6 154

O Evangelho de João 154

6.1 Pressupostos iniciais 154

6.2 Autoria 155

6.3 Data, local e fontes de escrita 163

6.4 Gênero literário 167

6.5 Estilo 168

6.6 Texto-chave 170

6.7 Esboço 172

6.8 Percepção a respeito de Jesus 173

6.9 Pontos e assuntos principais 173

6.10 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas 176

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6.11 Assuntos exclusivos 182

6.12 Algumas dificuldades 184

6.13 Algumas curiosidades 186

6.14 Conclusão 187

Unidade Revisional 2 190

Atividades de Aprendizagem 203

Gabarito 206

Atividades de aprendizagem 206

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 207

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1

Fatos históricos de transição entre o


ambiente do AT e o NT
Antes de aprofundarmos as questões próprias sobre aquilo que escreveram

Mateus, Marcos, Lucas e João, importa que conheçamos melhor quais eram as

circunstâncias históricas, sociológicas e religiosas que permeavam o tempo em que Cristo

se manifestou. Para tanto, precisamos entender um pouco mais sobre os fatos

contemporâneos aos últimos registros do Antigo Testamento, bem como, precisamos

conhecer mais detalhes do período intertestamentário que antecede a encarnação e o

ministério de Jesus.

Essas informações são importantes porque elas se relacionam diretamente com

boa parte do que passa acontecer nas narrativas dos evangelistas. Precisamos também

lembrar que alguns conceitos, que são aceitos como parte do cotidiano da vida na

palestina do Novo Testamento, não estavam presentes no Antigo Testamento.

No aspecto político, os impérios que governaram boa parte do mundo daquela

época haviam mudado, passando do Persa para o Grego e deste para o Romano. Nessas

mudanças, os judeus também se espalharam pelas principais cidades do Império Grego

e Romano (diáspora judaica) e se teve início uma transformação sútil de uma sociedade

agropastoril, como era a do Israel do AT, para uma sociedade com fortes características

urbanas, como se apresentou o mundo do NT. No aspecto cultural, emergiu o helenismo

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e a língua grega se tornou uma língua universal. Em Israel, houve uma significativa

redução do uso do hebraico e se passou a utilizar comumente o aramaico que havia

sido aprendido na Babilônia.

No aspecto religioso, diante de tanta perseguição e violência, o exclusivismo

judaico se sobressaiu, inclusive com o fortalecimento do cisma samaritano-judaico. A

valorização da Torá (Lei), o abandono definitivo da idolatria que havia dominado a

história de Israel como nação no AT e o surgimento do Judaísmo como religião

marcaram o período. É nesse contexto do exílio e principalmente do pós-exílio que

surgem o Sinédrio, a Sinagoga, as seitas políticas-religiosas, a literatura não canônica e

também apocalíptica. Por sua vez, emerge a ideia de um messianismo político como

única opção de restauração de Israel.

É exatamente estes últimos aspectos que precisam ser melhor entendidos nessa

introdução, que ainda está em transição do Antigo para o Novo Testamento. Nossa

análise será, inicialmente, do fundo histórico que permeia esse tempo a partir de três

perspectivas: as instituições religiosas, os partidos políticos-religiosos e a literatura

surgida nesse período. Ao final, vamos considerar a questão sinótica que envolve os três

primeiros evangelhos.

1.1 Período intertestamentário: entre o fim do AT e o início do NT

A Bíblia é a Palavra de Deus em linguagem humana. Deste modo, além de ser

obra da inspiração do próprio Deus, ela também é fruto da realidade de escritores que

estavam inseridos em um contexto histórico, social, político, cultural, religioso etc. com

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características próprias de seus respectivos tempos. E, queiramos ou não, tais fatores se

relacionam diretamente com o texto que chegou até nós. Portanto, tanto aquilo que

precedeu como aquilo que sucedeu os dias do ministério público de Jesus são aspectos

importantes que devem ser percebidos para que, assim, ocorra uma melhor apreensão

da mensagem dos Evangelhos.

Deste modo, precisamos entender sobre que tipo de mundo estamos falando

quando as histórias descritas pelos evangelistas são apresentadas a nós. É o mesmo

mundo de Malaquias, o último profeta escritor do AT? Ou é um mundo semelhante ao

de João Batista, o último profeta do Antigo Pacto que, porém, antecede o ministério de

Jesus (Mt 11.7-15, Lc 16.16)? A verdade é que o cenário do Novo Testamento nos

apresenta vários termos e conceitos, sociais, políticos e religiosos, que são, até então,

desconhecidos no período da revelação bíblica do Antigo Testamento. Dito de outra

forma, existem fatos que surgem na narrativa do NT, mas que, porém, não estão

presentes no texto do AT. Porém, os escritores bíblicos do NT apresentam esses fatos

como algo que já faz parte da vida cotidiana das pessoas no ambiente do NT. Precisamos

conhecer e identificar estes fatos para que possamos entender melhor o que está

acontecendo no ambiente em que Jesus deu início ao seu ministério.

Sob uma perspectiva histórica, a época que antecede o NT é teologicamente

conhecida como “Período Intertestamentário”. Trata-se de um momento que teve a

duração aproximada de 400 anos, entre o fim do ministério profético do AT e o início

da pregação de João Batista. Normalmente se faz referência a esse tempo como uma

época em que Deus esteve em silêncio para com o seu povo. Nenhum profeta de Deus

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se manifestou ou, pelo menos, nenhum deixou escritos que tenham sido considerados

canônicos. Apesar disso, precisamos lembrar que tal silêncio foi apenas profético e que

os demais ritos religiosos (Templo, Sacrifício etc.) continuaram a existir no período. A

exceção se dá ao Sacrifício do Tempo que cessou em 168 a.C. como cumprimento

profético de Daniel 9.27.

O texto do Novo Testamento não fornece informações sobre esse período. Por

sua vez, é principalmente nos livros deuterocanônicos de Macabeus, que descrevem a

revolta Macabeia e o caos ocorrido na Palestina durante a dominação grega, e os escritos

de Joséfo, historiador judeu do primeiro século da era cristã, que temos as principais

fontes de informação sobre esse período. Todavia, antes mesmo de entrar entender

melhor o Período Intertestamentário, importa lembrar, ainda que brevemente, qual era

a realidade do povo de Deus no período próximo ao fim do Antigo Testamento.

1.1.1 Período babilônico (605 a 539 a.C.) e período medo-persa (539 a 331
a.C.)
Depois que o Reino do Norte, Israel, tinha sido levado para o cativeiro Assírio em

722 a.C. (2Rs 17.6-22) e diante da rebeldia contínua do povo de Deus que ainda vivia

no Reino do Sul, Judá, o próprio Deus permitiu que um dos grandes impérios da

humanidade conquistasse Jerusalém e seus arredores, com deportações que foram

ocorrendo nos anos de 605, 597 e 587 a.C. (2Rs 24.12 – 25.21).

Judá foi levado ao exílio, onde foi afligido e passou por grande servidão. Esse

período que envolve o exilio babilônico (antes, durante e depois) se caracteriza pela

perseguição e desprezo em relação às mensagens dos profetas. Contudo, a dominação

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dos babilônicos foi um pouco diferente em relação à invasão Assíria. De certa forma,

havia mais liberdade em todos os aspectos da vida do povo judeu em seu exílio. É a

partir desse contexto que, por exemplo, surge o Judaísmo e se começa a entender a

importância de abandonar a idolatria que existia entre o povo de Deus (TENNEY, 1984).

Contudo, logo o Império babilônico também ruiu e deu espaço ao Império Medo-

Persa (539-331 a.C.). Ciro II (559-530 a.C.), deu início à dinastia Aquemênida e realizou

um expansionismo territorial que levou a civilização medo-persa a construir um enorme

império. Esse imperador conquistou a Lídia e as colônias gregas da Ásia Menor e, a

seguir, em 539 a.C., conquistou a Babilônia, libertando, assim, os judeus do exílio e

permitindo que eles regressassem à Palestina (Ed 1.1-4). Progressivamente a Fenícia, a

Palestina e a Síria também se submeteram ao domínio persa, cujo Império se estendeu

da Ásia Menor e costa mediterrânica, no Ocidente, à Índia, no Oriente.

Apenas para uma melhor compreensão da história, os principais reis e

imperadores dos medo-persas que, em sua maioria, estão descritos na Bíblia, foram Ciro

I (600-580 a.C.), Cambises I (580-559 a.C.), Ciro II, o grande (559-530 a.C.), Dario I (521-

486 a.C.), Xerxes I (485-465 a.C.), Artaxerxes I (465-424 a.C.), Xerxes II (424 a.C., por

apenas 45 dias), Sogdiano (424-423 a.C.), Dario II (423-405 a.C.) e Artaxerxes II (404-359

a.C.).

Como descreve as Escrituras, Ciro foi um instrumento de Deus para permitir,

decretar e financiar a volta do povo de Deus para a Palestina em 538/537 a.C. (Is 45.1).

Ainda que muitos judeus não tenham optado pelo retorno – por se acharem felizes onde

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estavam – uma parte considerável de cerca de 50 mil judeus voltaram (HALE, 2001). Esse

retorno aconteceu em 3 momentos distintos, pelo menos:

● Zorobabel (537-535 a.C.) – deu início à reconstrução do Templo que foi concluído

em 516 a.C.,

● Esdras (458 a.C.) – renovou o culto a Deus no tempo em que Artaxerxes era o rei,

● Neemias (446-445 a.C.) – reconstruiu os muros (reforma política); deu fim aos

juros (reforma econômica) e organizou os registros civis e os casamentos (reforma

social).

Finalmente, a Lei, o sacerdócio e a nação estavam reorganizados. Esse período

recebeu muitas transformações e contribuições. A idolatria foi definitivamente abolida e

se emergiu de forma acirrada o cisma samaritano, provocado pela rivalidade comercial

e pelo preconceito racial e religioso entre os dois povos. É nesse contexto que um

templo no Monte Gerizim foi construído pelos samaritanos. O povo de Deus, por sua

vez, passou a desenvolver uma maior observância à Lei de Moisés e renovou sua

esperança messiânica.

Sob um aspecto mais cultural, é nesse período (babilônico e medo-persa) que

ocorre a perda do uso da língua hebraica e se passa a usar de forma generalizada o

aramaico, além de ocorrer uma sutil adaptação do povo judeu aos costumes dos

babilônicos e persas. É exatamente nesse período que temos o fim da mensagem

profética e o destaque da liderança do sumo sacerdote, visto que não havia mais reis. E

assim o Antigo Testamento termina com as palavras de Malaquias, que profetizou entre

450 e 425 a.C., aproximadamente.

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1.1.2 Período grego (331 a 167 a.C.)
O período persa também terminou e deu início ao período de dominação grega,

que se estendeu de 331. a.C. até a revolta dos Macabeus em 167 a.C. Esse foi um dos

mais importantes períodos para a história do judaísmo e do cristianismo. A dominação

grega teve início com Alexandre Magno que em, aproximadamente, 336 a.C. passou a

comandar o exército grego e avançou com suas tropas por várias partes do mundo

daquela época. A força desse exército era tanta que em, aproximadamente, 331 a.C.

várias regiões do mundo já estavam rendidas às forças gregas, inclusive os persas.

No início de sua invasão na Palestina, Alexandre foi relativamente “amigável”,

demostrando certa consideração pelo povo. Diferentemente de outros, por exemplo, ele

não destruiu Jerusalém. Do mesmo modo, apesar de serem pagãos, eles eram tolerantes

e não obrigaram os judeus a seguirem a religião deles.

Um dos aspectos mais importantes deste período foi a idealização de uma cidade

por Alexandre, em sua própria homenagem, dando-lhe o nome de Alexandria. Essa

cidade se encontrava em um local estratégico para o comércio do mundo daquela época,

entre o Mediterrâneo, a Índia e o extremo Oriente. Essa cidade se tornou também um

importante centro cultural, substituindo assim as cidades gregas de outrora. Entre suas

construções destacaram-se o farol e a biblioteca. Através de um intercâmbio, Alexandre

trouxe para a cidade de Alexandria vários judeus. E por isso mesmo, essa cidade se

tornou um grande e influente centro do judaísmo, com a instalação de várias sinagogas.

Porém, depois de poucos anos no poder e com 32 anos de idade, Alexandre

morreu e seu império foi dividido entre quatro de seus generais:

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● Cassandro (cerca de 358-297 a.C.): governou a Macedônia, a maior parte da Grécia

e partes da Trácia,

● Lisímaco (cerca de 361-281 a.C.): administrou a Lídia, a Jônia, a Frígia e outras

partes da atual Turquia,

● Seleuco (falecido em 281 a.C.): governou a região do atual Irã, o Iraque, a Síria e

partes da Ásia Central. Foi dele que mais tarde surgiu o Império Selêucida,

● Ptolomeu I (falecido em 283 a.C.): administrou o Egito e as regiões adjacentes

Após a morte de Alexandre, inicialmente, a Palestina ficou sob o domínio dos

Ptolomeus (Reis Gregos do Egito, que foram descendentes do General Ptolomeu I Sóter).

A Palestina esteve sob esse governo de 323 a 204 a.C., proporcionado um tempo de

relativa paz para os judeus. É nesse período que a tradução grega do AT, a Septuaginta,

foi desenvolvida.

Já os Selêucidas eram os Reis Gregos da Síria e foram originados pelo seu primeiro

general, Seleuco Nicator. Eles governaram a Palestina de 204 a 166 a.C. Diferentemente

do período anterior, esse foi um período difícil para os judeus. Em especial, o povo judeu

enfrentou grande dificuldade sob o governo de Antíoco IV Epifânio, entre 175 e 163 a.C.

Entre tantas coisas que aconteceram, podemos destacar um pouco sobre alguns fatos o

que aconteceram no período.

Em Israel, o governo local era exercido por Onias, o sumo sacerdote. Contudo,

Epifânio comercializou o cargo sacerdotal, vendendo-o a Jasão por 360 talentos. Ele

também se esforçou para impor a cultura e a religião grega em Israel, atraindo sobre si

a inimizade dos judeus. Em certa ocasião, enquanto estava em viagem para o Egito,

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divulgou-se o boato de sua morte (motivo pelo qual os judeus realizaram uma grande

festa). Porém, ao tomar conhecimento do fato, o rei da Síria reagiu e promoveu um

grande massacre, matando cerca de 40 mil judeus.

Em um momento crítico desta história, em 168 a.C., Antíoco Epifânio sacrificou

uma porca sobre o altar em Jerusalém e entrou no Santo dos Santos (o que era proibido,

pois era um lugar em que apenas o sumo sacerdote entrava uma vez por ano). Em seus

atos blasfemos, ele ordenou que o Templo dos judeus fosse dedicado a Zeus, o principal

deus da mitologia grega, ao mesmo tempo em que proibiu os sacrifícios, os cultos, a

circuncisão e a observância da Lei mosaica. Uma simples posse de uma cópia da Lei se

tornou ofensa punível com a morte. E para piorar, esses atos religiosos proibidos foram

substituídos pelos ritos pagãos.

Ainda que tenha sido um momento de inúmeras dificuldades, esse período foi de

vital importância, principalmente na preparação do caminho para o nascimento e o

exercício do ministério de Jesus pelos seguintes motivos:

A língua grega se tornou uma língua universal,

O helenismo foi difundido pelo mundo, por meio da cultura, da arte, da filosofia,

da literatura etc.

A forma de governo e de educação mudou a maneira das sociedades daquele

tempos se organizarem,

O poder político no sumo sacerdote influenciou significativamente as questões

religiosas no tempo de Jesus,

A liderança monárquica dos descendentes de Davi desaparecem,

21 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


A voz profética cessou e foi substituída pelo movimento dos escribas e dos

estudiosos da lei,

Emergiu-se a literatura apocalíptica como esperança de um tempo da chegada de

um messias que restaurasse Israel e o reino davídico.

1.1.3 Período Macabeu ou Hasmoneu (166 a 37 a.C.)


Diante de tanta atrocidade e blasfêmia, uma família de classe sacerdotal, chamada

Hasmoneu, resistiu vigorosamente aos éditos dos emissários da Síria que tentavam fazer

cumprir os decretos de Epifânio. Matatias, da linhagem Hasmoneu e pai da família

Macabeu, recusou-se a adorar os deuses pagãos e começou uma certa resistência ao

domínio grego e ao sacerdócio corrompido que havia se instalado em Israel. Quando

um cidadão se ofereceu para oferecer sacrifício no altar aos deuses pagãos, Matatias o

matou e aos poucos, passou a crescer o número daqueles que se puseram ao lado dos

Macabeus.

Os Sírios laçaram três campanhas contra esses fiéis judeus, sendo que uma foi

realizada pelo próprio Antíoco Epifânio; porém, nenhuma teve êxito. Algum tempo

depois Epifânio morreu e, então, se irrompeu uma guerra civil. Judas Macabeu, que havia

sucedido seu pai Matatias, estendeu seu controle sobre grande parte da Palestina,

incluindo partes de Jerusalém. Três anos após o dia da profanação de Epifânio, em 165

a.C., o Templo foi purificado e os sírios estabeleceram a paz com os judeus.

Entretanto, além da liberdade religiosa, Judas intentou a liberdade política e por

isso mesmo, ele não gozou de paz por muito tempo. Sem querer correr qualquer risco,

Judas Macabeu apelou para os romanos, pedindo assistência contra a Síria. Tal iniciativa

22 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


ofendeu a muitos judeus que o abandonaram. E assim, Judas foi morto na Batalha de

Elasa em 161 a.C., antes de chegar qualquer ajuda.

Seu irmão Jônatas assumiu a liderança, tornando-se, inclusive, um sumo sacerdote

e, por causa da fraqueza da Síria, ele se tornou um comandante quase que independente

na Judéia. Depois de morrer, ele foi sucedido por seu outro irmão, chamado Simão, que

conquistou a independência definitiva dos Sírios em 142 a.C. e que perdurou até 63 a.C.,

permitindo, assim, que seu trono se tornasse hereditário. Deste modo, sucessivamente,

outros governantes foram surgindo:

● João Hircano, filho de Simão (135-104 a.C.): tinha tendência imperialista.

Conquistou a Iduméia e a Samaria. Destruiu o templo samaritano e sofreu

oposição dos "hassidim" (seita dos "santos", os fariseus),

● Aristóbulo I (104-103 a.C.): prendeu a mãe e matou o irmão,

● Alexandre Janeu (103-76 a.C.): conquistou as costas da Palestina e o território de

Israel, chegando a ter uma extensão semelhante àquela que existiu nos dias do

Rei Davi. Ele também sofreu a oposição dos fariseus e passou a receber o apoio

dos saduceus,

● Alexandra Salomé, esposa de Alexandre Janeu (76-67 a.C.): foi uma governante

pacífica que voltou a se aproximar dos fariseus,

● Hircano II e Aristóbulo II (67-63 a.C.): Aristóbulo II era muito ambicioso e por isso

brigou pelo poder com seu irmão, Hircano II, que era mais brando e havia

recebido o trono de sua mãe. Este último desistiu do trono, mas continuou com

o ofício de sumo sacerdote que logo foi cobiçado por Aristóbulo II. Em 63 a.C.,

23 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


HIrcano apelou à Roma, permitindo com que Pompeu invadisse Jerusalém sob o

pretexto de trazer pacificação. Deste modo, Pompeu deportou Aristóbulo e

colocou Hircano II apenas como sumo sacerdote, sem, porém dar a ele o título

de governante. Assim, Roma colocou um procurador romano no seu lugar cujo

nome era Antípater (que, aliás, tinha sido um conselheiro de Hircano II).

Como se constata, trata-se de um período que provocou muitas transformações.

É nesse contexto, por exemplo, que temos o surgimento dos partidos políticos-religiosos

dos fariseus, dos saduceus e dos essênios. Igualmente, nessa ocasião surge o Sinédrio,

que era formado por uma assembleia judia de anciãos da classe dominante à qual foram

atribuídas diversas funções políticas, religiosas, legislativas, jurisdicionais e educacionais.

Há também a separação do poder espiritual do poder político e a produção de alguns

textos históricos e de sabedoria importantes para o judaísmo.

1.1.4 Período Romano (63 a.C. a 135 d.C.)


O período do governo romano na região se estendeu de 63 a.C. a 135 d.C. Como

se constatou anteriormente, Hircano II (63-40 a.C.) havia perdido o direito de governar

a Judeia e passou a exercer apenas o ofício de sumo sacerdote. Na administração local,

Antípater, um ex-conselheiro de Hircano II, representava Roma como procurador. Por

sua vez, em Roma, o governo era exercido por Pompeu, Crasso e Júlio César, formando,

assim, o primeiro Triunvirato. Após uma briga entre os três, Júlio César venceu e se

tornou o Imperador Romano.

Na Palestina, Antípater, o procurador estabelecido por Roma, colocou seu filho

Fasael como governador da Judeia e Herodes como governador da Galileia. Pouco tempo

24 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


depois, Antípater foi envenenado e três anos mais tarde Júlio César foi assassinado em

Roma. Surge, então, um novo triunvirato romano com Otávio (sobrinho de César), Marco

Antonio e Emílio Lépido. Antonio e Otávio concederam a Herodes o título de “Rei dos

Judeus” após a morte de Fasael e de Antípater. Pensando no poder e de olho no ofício

sacerdotal, Herodes casou-se com Mariamne, neta de Hircano, com o objetivo de tornar-

se parte da dinastia da família macabeia.

Aos poucos Herodes estendeu seu poder na Judéia – governando a região de 37

a.C. a 4 a.C. – e fez muitas amizades entre os poderosos. Embora não fosse bem aceito

pelos judeus, ele conseguiu governar com certa harmonia dos judeus com os romanos.

Houve um período de paz. Entretanto, ele mesmo vivia sob o pavor de que um

descendente dos macabeus subisse no poder para tomar-lhe o trono. Tendo Aristóbulo,

irmão de Mariamne, sido nomeado sumo sacerdote, sua popularidade fez com que

Herodes mandasse afogá-lo. Mariamne ficou enfurecida e Herodes mandou executá-la.

Depois executou seus dois filhos.

Nos anos seguintes ele tornou-se cada vez mais vingativo, e seus atos sangrentos

durante boa parte do seu governo provocaram a ira dos judeus. Assim sendo, para tentar

acalmar a hostilidade dos Judeus, ele deu início a um programa de construção de muitas

obras públicas e baniu muitos salteadores da época. Tudo isso trouxe certa prosperidade

à Judeia. Em vista disso, seu principal empreendimento foi a reconstrução do templo.

Perto do fim da vida, esse governante, dominado pelo medo, ordenou o massacre

dos infantes em Belém quando Jesus nasceu (Mt 2.16-17), visto que Jesus era percebido

como um rival por Herodes, que, como sabemos, não era o legitimo rei dos judeus.

25 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


O período de governo romano também trouxe significativas contribuições. A

principal delas foi a Pax romana, um momento de aparente paz, ordem, prosperidade

econômica, expansão e segurança entre Roma e as suas províncias. Por sua vez, apesar

de tentar influenciar o mundo com sua cultura e valores, a política romana era favorável

à religião dos dominados, facilitando a prática do judaísmo e a consequente expansão

posterior do cristianismo.

1.2 Instituições religiosas

De forma simples e objetiva podemos dizer que a Sinagoga é o lugar de

celebração da fé judaica. O termo "sinagoga" tem origem na palavra grega συναγωγή

(sinagogé) que é composta de σύν [sýn], “com, junto”, e ἄγω ['ago], “conduta, educação”,

cujo significado amplo seria "assembleia” ou “reunidos juntos”. No hebraico, a Sinagoga

recebe o nome de ‫כנסת‬, ‫( בית‬beit knésset) que é traduzido para "casa de reunião".

Também pode ser chamada ‫תפילה‬, ‫( בית‬beit tefila), ou seja, "casa de oração". Na prática,

portanto, contempla um lugar social, educativo, religioso e relacional (TENNEY, 1984.

Ainda que alguns digam que a Sinagoga teve início com Moisés, parece-nos que

ela surge, provavelmente, no contexto do exílio babilônico ou persa, em que o povo

judeu estava longe de seu Templo (que havia sido destruído) e, portanto, precisavam de

um lugar para se reunir para celebrar, orar, ler as Escrituras e discorrer sobre sua fé

(HALE, 2001).

Uma Sinagoga era administrada por um grupo de anciãos e normalmente, um

26 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


presidente (Mc 5.22) e um auxiliar (Lc 4.20) eram os principais responsáveis pelo serviço

sinagogal. Para a formação de uma Sinagoga havia a necessidade de um quórum mínimo

de, pelo menos, 10 homens em uma comunidade. Os textos bíblicos do NT apontam

para a existência de inúmeras Sinagogas espalhadas por Israel e por outras cidades do

Império Romano nos tempos bíblicos. O termo aparece 56 vezes no texto do NT e com

exceção de uma citação na carta de Tiago e duas no livro do Apocalipse, todas as outras

menções estão nos Evangelhos e no livro de Atos dos Apóstolos. Acredita-se que

existiam cerca de 500 em Jerusalém do NT (HALE, 2001).

A celebração, quando se forma um quórum, era feita todos os dias, com a leitura

das Escrituras, cujos rolos eram retirados da Arca (heikhal) e transportados até o púlpito

(Tebá). Aliás, havia uma série trienal da leitura sinagogal, em momentos distintos, que

poderiam contemplar as três partes do que hoje conhecemos como cânon hebraico (Lei,

Profetas e Escritos), além do Shemá Israel (TENNEY, 1984). Alguns mestres eram

convidados a ler e explicar e parece que foi isso que aconteceu no início do ministério

de Jesus em Nazaré, na Galileia (Lc 4.14-21). A celebração seguia o modelo de culto do

Templo (exceto pelo sacrifício) e incluía orações e salmos cantados.

Como se constata no cenário do NT, a existência de muitas Sinagogas espalhadas

pelo mundo da época facilitou a pregação do Evangelho. Os cristãos normalmente

começavam suas incursões de pregação numa sinagoga e é por isso que elas exerceram

forte influência na igreja cristã primitiva (At 13.15-43; 14.1 etc.).

Uma outra instituição é o Templo que, sob todos os pontos de vistas, é o centro

religioso de Israel. O primeiro foi construído por Salomão e destruído quando Jerusalém

27 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


foi conquistada em 587 a. C. por Nabucodonosor. O segundo Templo, que era muito

mais modesto. Ele ficou conhecido como Templo de Zorobabel, sendo reconstruído após

a volta do exílio e inaugurado em 516 a.C. nos tempos dos profetas Ageu e Zacarias. Em

um terceiro momento, o Tempo foi reedificado (ampliado) por Herodes – iniciando em

19 a.C. e concluído em 64/65 d.C. – em base completamente nova e mais suntuosa. A

intensão era de que esse Templo superasse a beleza do Templo de Salomão. Por isso,

ficou conhecido como o Templo de Herodes. Contudo, poucos anos depois, em 70 d.C.,

o Templo foi novamente destruído pelos romanos (TENNEY, 1984; HALE, 2001).

Conforme o relato do evangelista Marcos (11.15-18), Jesus constatou que, em sua

época, o Templo estava corrompido. Ainda assim, tanto Jesus como os apóstolos

continuaram frequentando e pregando no Templo de Jerusalém. O afastamento dos

cristãos do Templo se deu tardiamente, como fruto do distanciamento dos cristãos da

fé judaica (TENNEY, 1984).

Uma terceira e importante instituição religiosa que surge nesse tempo é o

Sinédrio. Trata-se de uma Assembleia formada por 71 anciãos da classe dominante e

de linhagem sacerdotal, normalmente presidida pelo sumo sacerdote. Em termos legais,

ao Sinédrio foram atribuídas diversas funções políticas, religiosas, legislativas,

jurisdicionais e educacionais. Historicamente, o termo aparece em 55 a.C. No tempo do

NT, o Sinédrio tinha jurisdição apenas de caráter religioso-civil entre aqueles que viviam

na Palestina. Entre outras funções, por exemplos, o Sinédrio poderia dar uma sentença

de morte, mas somente com a aprovação do governador romano. Alguns textos do NT

mostram a força dessa instituição (Mt 26.57, 59; At 5.21). Por causa da tradição e prestígio

28 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


que haviam adquirido, suas decisões eram honradas por toda a dispersão judaica.

1.3 Grupos religiosos

De forma especial, também precisamos considerar a existência de certos “grupos

ou partidos religiosos”, como denomina Hale (2001) ou também “seitas”, como afirma

Tenney (1984). Isso é importante porque estes grupos, apesar de desconhecidos no AT,

estão bem presentes no contexto do NT. Tenney (1984) lembra que apesar dessas seitas

procurarem manter lealdade para com a Lei, elas divergiam entre si em questões

teológicas e políticas. Vale apena ressaltar, ainda, conforme afirma Hale (2001), o

historiador judeu Flavio Joséfo (37-100 d.C.), em suas duas obras mais importantes

“Guerra dos Judeus” e “Antiguidades Judaicas”, fala com maestria sobre esses partidos.

O maior e mais popular e influente grupo religioso é o partido dos Fariseus. Eles

procuravam viver de forma simples e em unidade. Em sua origem, o termo remete ao

conceito parash (separar) e por isso eram conhecidos como “separatistas”. Deste modo,

eles se caracterizavam como um partido revolucionário e reacionário. Defendendo um

nacionalismo judaico-religioso, com forte apego à tradição dos pais, eles representavam

a tendência de sempre reagirem contra os dominadores estrangeiros, procurando, por

sua vez, manter o exclusivismo da fé judaica em detrimento do helenismo que dominava

o mundo e tentava influenciar a religião.

Seu período de emergência e relevância é após a dominação grega, durante o

governo de Hircano I, em aproximadamente 135 a.C. (TENNEY, 1984). Entretanto, Hale

destaca que: “os fariseus foram o resultado final do movimento que teve seus primórdios

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com Esdras” (2001, p. 18). Nesse sentido, a tradição oral e o método alegórico tinham

valor especial que suplantavam a Lei escrita, com o objetivo de, segundo eles, “facilitar

o cumprimento da lei” e, assim, evitar o ato de pecar. Eles se interessavam pelo poder

religioso e não político, apesar de exercer influência neste meio também. A sinagoga era

controlada por eles.

Teologicamente falando, algumas doutrinas conhecidas e defendidas pelos

cristãos foram suscitadas pelos fariseus, tais quais: a ressurreição dos mortos, os

demônios, os anjos, na imortalidade da alma, na ressurreição do corpo e na esperança

messiânica. Fundamentados num moralismo e numa espiritualidade rigorosa, muitas

vezes pautada na justiça própria, eles praticavam com austeridade o jejum, a oração, a

guarda do sábado e a entrega do dízimo. Apesar de normalmente serem considerados

hipócritas no NT, é certo que existiam fariseus virtuosos e bons, como o próprio

Nicodemus que teve um encontro com Jesus (TENNEY, 1984). Durante seu ministério

público, Jesus manteve várias controvérsias com os fariseus (Mt 9.11, 3 4; 12.2, 14, 24,

38; 15.1, 12; 16.6-12; Lc 11.37-44; 12.1 entre muitos outros textos). Eles foram os únicos

a sobreviver à destruição de Jerusalém nos anos 70 e constituíram as bases do que hoje

conhecemos como judaísmo ortodoxo.

Os Saduceus constituíam outro importante grupo que, inclusive, eram os

principais oponentes dos fariseus. Em menor número que estes últimos, a origem dos

Saduceus é desconhecida; contudo, conforme pontuam Tenney (1984) e Hale (2001),

pode ser que a origem esteja ligada a um certo Zadoque, que sucedeu Abiatar como

sumo-sacerdote nos tempos de Salomão (2Cr 31.10). Eles formavam o partido da

30 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


aristocracia e dos sacerdotes abastados daquele tempo e, por isso mesmo, não eram

populares, afinal defendiam os direitos sacerdotais. Tradicionalmente, se orgulhavam da

fidelidade que manifestavam à Lei de Moisés em detrimento da tradição oral.

Eles controlavam o Templo, o Sinédrio e qualquer resquício de poder político que

pudesse existir. Normalmente, eles colaboravam com os dominadores estrangeiros,

alinhando-se a eles em busca do poder político e civil. Por sua vez, também buscavam

o poder religioso, dominando as principais instituições religiosas e ocupando o posto

do sumo sacerdote.

Eles se limitavam-se à interpretação literal da Torá (que acreditavam ter maior

autoridade que os Profetas e os Escritos) e rejeitavam as doutrinas dos fariseus, tais

quais a ressurreição dos mortos, a existência dos demônios e dos anjos/espíritos. Como

se percebem, eles eram, portanto, bem racionalistas. Eles defendiam a ideia do livre-

arbítrio humano, enquanto os fariseus normalmente atribuíam os acontecimentos à

vontade de Deus. Esse grupo também esteve envolvido em alguns momentos do

ministério de Jesus (Mt 22.23; Mc 12.18-27; At 23.8).

Um terceiro grupo importante era formado pelos Zelotes. Em uma releitura de

Flávio Joséfo, Hale (2001) esse grupo surgiu por meio de Judas de Gamala, que se

revoltou com a taxação romana em 6 d.C. Eles eram devotos fervorosos que

representavam a extrema esquerda, bem mais acentuados que os fariseus. Como algo

bem característico, eles buscavam a independência da nação de Israel e sua autonomia,

negligenciando toda outra preocupação. O foco deles era o de sacudir o jugo romano

e anunciar o reino messiânico. Para tanto, eles advogavam o uso da violência para

31 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


alcançar suas pretensões. Foram eles que precipitaram a revolta em 66 d.C. que levou a

destruição em Jerusalém em 70 d.C.

A Bíblia não fala diretamente sobre os zelotes mas o pensamento revolucionário

deles estava bem presente entre os discípulos de Jesus. Como exemplo, Zelote é o nome

dado a Simão, um dos apóstolos (Mt 10.4, Mc 3.18). Eles esperavam que Jesus iria

expulsar os romanos e restabelecer o reino de Israel, mas Jesus lhes explicou que seu

Reino não era deste mundo (João 18.36). Alguns discípulos também estavam prontos

para lutar por Jesus, mas ele recusou a violência (Mt 26.51-52).

Entre os grupos presentes no contexto do NT estão, também os Essênios, mesmo

que eles não sejam diretamente mencionados no NT. Contudo, há indicações

consistentes de que eles influenciaram vários personagens do NT, inclusive João e Jesus.

Tenney (1984) adverte que temos poucas informações sobre eles e que sua origem pode

estar atrelada ao termo grego hosios que significa santo.

Em termos de posicionamento, eles formavam uma comunidade rigorosamente

ascética e posicionada à extrema direita dos fariseus. Teologicamente falando, eram bem

próximos dos fariseus. Eles insistiam na observação rigorosa da Lei e viviam de forma

devota e isolada ao redor do Mar Morto. É possível constatar que os documentos de

Qumram foram por eles compilados. Uma das características desse grupo era o fato de

que eles aguardavam um messias que iria combinar as linhagens real e sacerdotal.

Temos ainda dois grupos de menor expressão, mas, que, precisam ser

considerados. Um deles é o grupo dos Herodianos, que surgiu em 6 d.C. Eles

representavam os saduceus de extrema esquerda que, utilizando o nome de Herodes,

32 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


baseavam suas esperanças nacionais nessa família, acreditando, inclusive, que por meio

deles se cumpririam as profecias messiânicas. Eles aparecem em algumas citações

bíblicas (Mt 22.16; Mc 3.6; 12.13).

O outro é o grupo dos Zadoqueus que, mesmo não sendo mencionados no NT,

fazem parte daquele contexto. Segundo Hale (2001), eles surgiram possivelmente em

um movimento de reforma iniciado entre os sacerdotes (filhos de Zadoque), entre os

saduceus, no início do segundo século. Eles representavam a ala direita dos saduceus e

queriam promover uma reforma no sacerdócio e no judaísmo com ênfase na esperança

messiânica. Alguns documentos de Qumram apontam para uma certa aproximação com

os essênios. Eles aceitavam toda a Escritura do AT e rejeitavam a tradição oral.

Em Síntese, temos o seguinte quadro:

FARISEUS SADUCEUS

Zelotes Essênios Herodianos Zadoqueus


(extrema esquerda) (extrema direita) (extrema esquerda) (extrema direita)

Quadro 1: Fariseus e Saduceus.


Fonte: Elaborado pelo Autor

1.4 A Literatura do período

Sempre é importante lembrar que para além dos textos canônicos que temos em

nossas Bíblias, uma série de outros textos foram escritos no período intertestamentário.

Ainda que alguns tenham se perdido, uma parte significativa foi conservada,

33 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


principalmente pelos cristãos. Os judeus, por sua vez, queriam destruí-los. Normalmente,

consideramos dois tipos de texto para esse período, isto é, os apócrifos (falso, oculto) e

os pseudoepígrafos (escritor pseudônimo). Ambos não são dotados de autoridade como

Escritura pelos judeus pelo fato de terem sido escritos depois do final do período persa.

Como se sabe, alguns desses livros foram alvo de discussão entre as diferentes

tradições cristãs e que, ainda que não sejam canônicos, podem apresentar valor histórico

e devocional. Alguns são mera invenção e ficção, já outros apresentam aspectos

importantes para se entender melhor a fé entre os judeus no período. Entre outras,

podemos destacas as seguinte obras:

● Históricas: I e II Macabeus, III Esdras

● Sabedoria: Eclesiástico (Siraque), Baruque, Sabedoria

● Ficção: Tobias, Judite, III Macabeus,

● Apocalíptica: Livro de Enoque (Jd 1.14-15)

1.5 A Plenitude dos Tempos

“Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu

Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que

estavam debaixo da lei, a fim de que recebêssemos a adoção de

filhos”

(Gl 4.4 - NAA)

Como foi possível constatar, a história do mundo, entre o final do AT e o início

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do NT, convergiu para um momento significativo da história. Diante de tudo o que

vimos, de fato, Jesus não poderia ter nascido em qualquer época. Ele teve um tempo

específico para nascer e Deus, em sua infinita sabedoria, preparou tudo para que o Verbo

se encarnasse no tempo certo (Jo 1.1, 14). Houve, ao que parece, da parte de Deus, um

preparo prévio para a vinda de seu Filho, ou seja, podemos ver Deus atuando na História

e determinando o que a Bíblia chama de “plenitude dos tempos”.

Desde que o ser humano pecou (Gn 3), Deus começou a trabalhar para salvá-lo.

Todo o esforço de Deus para tão nobre fim, fundamenta-se em preparar o mundo para

receber aquele que na cruz redimiria a humanidade. E, como percebemos, vários fatores

contribuíram para que o tempo da manifestação do Salvador fosse oportuno e

apropriado. Entre outros, percebemos uma convergência favorável dos fatores religioso,

político, econômico, social e cultural.

No ambiente político, o mundo civilizado da época era governado pelos romanos.

Existiam oito províncias, sob o governo de um procônsul ou de um procurador. A

palestina ficou sob o governo de 14 procuradores por quase todo o período do NT. O

poder deles não era absoluto, pois eram controlados por Roma. Normalmente, os

governadores eram escolhidos para pagar alguma dívida junto ao Imperador. Entre

outros, são citados no NT Pilatos, Félix e Festo. Do mesmo modo, Herodes, o Grande,

foi o grande Rei dos Judeus (morreu em 4 d.C.). Ele ficou marcado por uma administração

de progresso, mas ao mesmo tempo de intrigas, caos doméstico e muitas mortes, como

já constatamos. Seus filhos assumiram após sua morte.

O Império Romano teve 11 imperadores durante o NT. Alguns relatados na Bíblia

35 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


são Augusto, Tibério, Cláudio, Nero, Vespasiano e Domiciano. O modelo de governo dos

romanos era democrático, com certa liberdade religiosa. A revolta dos partidos religiosos

dos judeus, mais extremados e violentos, que deu início à perseguição dos romanos em

66 a.C. e com a completa destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. contribui com uma

redefinição religiosa, separando o cristianismo do judaísmo.

No ambiente religioso, tínhamos, principalmente, dois mundos religiosos no

contexto: o Judaísmo e as religiões greco-romanas. Ambas, entretanto, enfrentavam um

certo esgotamento religioso. A religiosidade greco-romana envolvia o panteão romano

(reunião dos deuses autorizados pelo estado) e se estendia do animismo até o culto ao

imperador. Os cultos aos deuses greco-romanos (Júpiter, Juno, Netuno, Plutão sob os

nomes gregos Zeus, Hera, Posídeon e Hades) eram marcados pela imoralidade e brigas

entre as divindades. O culto ao imperador era uma forma de unir o império e assegurar

a lealdade dos súditos.

Porém, nenhuma dessas realidades religiosa assegurava a paz espiritual. De outro

modo, o judaísmo, fortalecido e formado no exílio babilônico, tinha forte influência persa

e babilônica, além de dividir o povo sob várias perspectivas e seitas religiosas. Emergia-

se, portanto, uma nova esperança religiosa. Havia necessidade de uma religião, com

valor prático, moral e espiritual para o indivíduo. A ideia de um Deus pessoal e íntimo

era real e havia no ser humano do primeiro século um coração aberto para a mensagem

cristã.

Os Escribas foram importantes nesse período. Eles exerciam uma atividade de

muita importância. Além de cuidarem de assuntos religiosos, eles exerciam um

36 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


importante papel em assuntos legais e eram responsáveis por escrever – daí o nome

escriba – documentos e manuscritos bíblicos. Foram eles que deram a cada Sinagoga

uma porção das Escrituras, usada para leitura pública nos sábados. O zelo deles pelo

judaísmo, suas tradições, ritos e escritos, foi a causa da não degeneração do povo judeu

diante das inovações de alguns grupos religiosos e dos helenistas.

No ambiente social e econômico, tínhamos uma divisão em classes sociais. A

classe alta contemplava a corte, a classe religiosa e civil (negociantes, arrendatários,

proprietários e a nobreza sacerdotal (ligada à família do sumo sacerdote). A classe média

era formada por pequenos comerciantes, artesãos, donos de hotéis, sacerdotes comuns

e os levitas. Já a classe baixa tinha pessoas escravas (50% do povo), mendigos, escribas,

doentes etc. A família era desvalorizada na cultura greco-romana (o divórcio era banal),

mas era valorizada no contexto judaico, com filhos bem-educados.

No ambiente cultural, as línguas faladas na Palestina eram o aramaico, aprendido

na Babilônia e grego, a língua do mundo da época. Mais tarde, o latim, de Roma, se

tornou a língua oficial nos documentos. O hebraico era mais utilizado pelos estudiosos

do AT. É importante lembrar que os gregos, desde a época de Alexandre Magno,

helenizaram o mundo. Eles espalharam a cultura grega por todos os lugares que

conquistavam e faziam com que a língua grega se tornasse o segundo idioma daquela

nação. O povo, de uma forma geral usava o grego koiné. A educação grega era muito

fomentada. Eles incentivavam a cultura e davam grande valor às bibliotecas. Naquele

tempo, a maioria do povo possuía um certo grau de instrução em boa parte do Império

Romano. O analfabetismo era bárbaro, ou seja, indivíduos que não faziam parte do

37 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Império Romano.

No ambiente geográfico, a Judéia possuía uma posição geográfica extremamente

estratégica. Naquele tempo, era quase que uma rota obrigatória dos comerciantes que

precisam cruzar as regiões. De fato, todo o Império se valia desta importante rota

comercial e isto foi um fator determinante para a propagação do Evangelho.

Concluímos, portanto, que Deus preparou o mundo para receber o seu Filho com

Roma estabelecendo a paz pela força entre os seus súditos (Pax Romana). A Grécia deu

ao mundo uma só língua e uma das melhores culturas já conhecidas pelo homem

daquele tempo. A Judéia contribuiu com seu tradicionalismo religioso e nacional voltado

para o monoteísmo bíblico. E assim, o mundo em que Jesus nasceu era o melhor de

toda a sua história para assistir o evento de tamanha significação e repercussão. Esse

era o mundo que antecedia a realidade narrada pelos evangelistas Mateus, Marcos, Lucas

e João.

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39 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC
40 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC
2

Introdução aos Evangelhos e a questão


sinótica
Sem perder de vista que toda a Escritura Sagrada é inspirada e útil (2Tm 3.16-17),

ressalta-se o fato de que os Evangelhos estabelecem o cerne da fé cristã. Afinal, uma

considerável parte daquilo que sabemos sobre Jesus Cristo estão relatados, quase que

exclusivamente, pelos quatro evangelistas. Eles são singulares porque descrevem as

palavras e as ações de Jesus em seu ministério público. Por assim ser, a leitura dos

Evangelhos possibilita a descoberta do grande e perfeito propósito de Deus para a

humanidade que se concretizou por meio de Cristo.

Nessa unidade, portanto, vamos entender, ainda que introdutoriamente, um

pouco mais sobre os relatos sobre Jesus a partir das diferentes narrativas dos quatro

evangelistas. Vamos procurar entender, também, o que quer dizer o termo Evangelho,

tanto em seu caráter teológico quanto em seu caráter literário. Em um segundo

momento vamos entender o processo de formação e as formas narrativas presentes no

desenvolvimento dos Evangelhos em seu caráter literário. Vamos também analisar a

questão sinótica que envolve os três primeiros Evangelhos, diferenciando-os, portanto,

do quarto Evangelho, isto é, de João. Por fim, vamos conhecer algumas curiosidades

sobre os Evangelhos na história da igreja e da teologia.

41 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


2.1 Quatro retratos sobre Jesus
Para quem quer compreender o cristianismo, o ponto de partida está nos quatro

Evangelhos. Não há como entender de forma consistente o que é a fé cristã e quem é

o próprio Jesus sem prestarmos atenção nas narrativas dos evangelistas. E por que

afirmamos isso? A resposta é simples, afinal, é justamente porque eles relatam eventos

importantes do nascimento, da vida, da pregação, da morte e da ressurreição de Jesus.

De forma geral, os evangelistas desejavam mostrar que Jesus era bem mais do que um

simples homem; ele era o próprio Filho de Deus que veio salvar a humanidade.

Contudo, para além de qualquer estrutura textual ou literária, precisamos ressaltar

que os Evangelhos têm a ver com a mensagem proclamada por Jesus. Aliás, bem mais

que isso, o Evangelho é o próprio Jesus. Paulo, o apóstolo que exerceu um ministério

de proclamação aos gentios, compreendeu que Jesus era o conteúdo do Evangelho, por

meio da sua vinda, do seu ministério na terra, do seu sofrimento e morte e da sua

ressurreição (Rm 1.1-9; 15.19; 1Co 9.12,18). Ela era a Boa-nova em pessoa. Trata-se,

portanto, de uma mensagem vívida proclamada, um conceito não literário; isto é, tudo

menos um livro com textos distantes e sem vida. A vida de Jesus e a sua proclamação

são o Evangelho.

Ainda que toda a Palavra de Deus, em sua perfeita unicidade, seja fundamental

para compreendermos a completa Revelação de Deus, não restam dúvidas de que os

Evangelhos podem ser considerados os livros mais importantes do NT, justamente

porque eles discorrem essencialmente sobre Jesus. Como afirma Simões (2017, p. 15), “o

42 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


centro da Bíblia para os cristãos compreende os Evangelhos” e eles são “a fonte principal

de informações sobre a vida, a obra e o sofrimento de Jesus” (HÖRSTER, 1996, p. 8) E

ainda que sejam quatro livros, temos apenas um único Evangelho. É por isso que desde

os tempos da Antiguidade cristã, normalmente, prefere-se dizer “o evangelho segundo

(e não de) Marcos ou segundo cada um dos quatro evangelistas” (FLUCK, 2020, p.6), ou

seja, o Evangelho é um só e ele é o Evangelho de Deus e não dos escritores humanos

(Rm 1.16-17).

Alguns criam uma confusão quando tentam definir o gênero literário destes

quatros escritos. Nessa perspectiva, surge a seguinte questão: os Evangelhos são

biográficos? A resposta mais simples e objetiva é um alto e sonoro “não”! Afinal, os

Evangelhos não pretender ser uma descrição completa da vida de Jesus. Eles não

evidenciam qual era a sua aparência externa e os dados biográficos apresentados são

escassos. Do mesmo modo, muitas vezes, eles não falam dos motivos das ações de Jesus

e não fazem uma narrativa baseada em uma sequência cronológica. O foco está

estabelecido desde o início; trata-se de uma proclamação sobre o Cristo e a sua Obra,

utilizando-se, obviamente, dos recursos próprios de uma narrativa textual.

Nesse sentido, precisamos sempre lembrar que os Evangelhos, bem como toda a

Bíblia, não tem por propósito ser um livro de história, um livro cronológico, um livro

científico, um livro místico ou de códigos. O propósito da escrita é proclamar o

Evangelho, que nada mais é que anunciar as boas-novas, apresentando Jesus como o

Filho de Deus que havia sido prometido por todo o AT e que agora se manifestava por

meio da encarnação (Jo 1.1, 14). Devemos lembrar, aliás, que inicialmente, mais do que

43 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


um texto, o termo Evangelho “estava relacionado à pregação oral sobre Jesus Cristo”

(SIMÕES, 2017, p. 30).

Em sua essência e propósito, o evangelista Marcos nos ajuda a compreender tal

realidade. Para ele, o que será descrito em sua obra é o “Princípio do evangelho de Jesus

Cristo, Filho de Deus” (Mc 1.1, NAA) ou ainda, como se apresenta em outra tradução,

trata-se de revelar “A boa notícia que fala a respeito de Jesus Cristo, Filho de Deus, [que]

começou a ser dada” (Mc 1.1, NTLH). Hörster (1996) lembra, inclusive, que essa afirmação,

introduzida por Marcos em sua obra, fez com que o termo Evangelho passasse a

designar um livro (e depois, obviamente, os quatro livros), bem como introduziu um

novo estilo literário com a mesma designação.

Em síntese, entendemos que a principal motivação que levou os evangelistas a

escrever os Evangelhos se resume no texto de João que diz: “Estes, porém, foram

registrados para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,

crendo, tenham vida em seu nome” (Jo 20.31, NAA). Portanto, apesar de Jesus ter

realizado muitas outras coisas em seu ministério terreno – algumas escritas e outras não

–, o que era essencial tinha sido registrado, isto é, os Evangelhos existem com o

propósito principal de fazer com que as pessoas creiam em Cristo.

É por isso que designar os quatro primeiros livros do Novo Testamento de

“Evangelhos” significa destacar que eles existem para anunciar a boa notícia de salvação

para os seres humanos que estavam perdidos e distanciados de Deus, por meio da obra

de Jesus Cristo – seu nascimento, sua vida, sua pregação, sua morte, sua ressurreição,

sua ascensão e seu retorno glorioso.

44 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Portanto, eles são realmente significativos porque descrevem as palavras, os

ensinos, os atos, as motivações e os exemplos de Jesus. De fato, tudo o que Ele fez

estabelece o padrão para tudo aquilo que nós devemos realizar. Tudo o que Ele fez, em

palavra ou em ação, serve como base para a nossa vida. Por meio da leitura dos

Evangelhos, descobrimos e entendermos o bom e perfeito desígnio de Deus para a

humanidade, o qual se consolidou por meio de Jesus

2.2 O termo “Evangelho” e por que escrevê-los?


O termo “Evangelho” não era algo novo ou desconhecido pelos primeiros cristãos

ou mesmo no mundo greco-romano daquela época. De fato, originalmente, o termo

significava uma boa notícia dada por um imperador ao seu povo, principalmente quando

ocorriam vitórias ou conquistas militares. Hörster (1996) lembra que o termo ganhou um

tom de caráter religioso no império romano por causa do culto a César, o imperador

que era venerado como um deus e um salvador (sóter).

Por isso, tanto Hörster (1996) quanto Simões (2017) ainda acrescentam que o

termo era utilizado para anunciar o nascimento ou a data do aniversário de um

imperador ou a entronização dele no poder. Enfim, tudo o que um imperador realizava

era considerado uma boa notícia para seus súditos.

A questão é que, nem sempre, de fato, o anúncio era uma boa notícia para o

povo. Na prática, um mensageiro, a serviço de seu imperador, chegava em algum lugar

do reino e gritava Euangelion. Ao escutar tal palavra, todos deveriam se reunir para

receber a mensagem enviada. Literalmente, portanto, evangelho significava "boa

mensagem", "boa notícia", “notícia de vitória” ou "boas-novas", derivando da palavra

45 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


grega ευαγγέλιον, euangelion (eu, bom e angelion, anúncio, mensagem).

Hörster (1996) e Simões (2017) ainda destacam que o termo euangelion também

aparecia na Septuaginta (tradução grega do AT que foi muito utilizada na época de

Jesus). Entre outros textos, o termo aparecia em algumas profecias de Isaias, nas ocasiões

em que o profeta anunciou uma boa notícia sobre a intervenção salvífica e libertadora

de Deus, inicialmente para com Israel – que em seu propósito sacerdotal deveria ser luz

para as nações – , mas, que, obviamente, se estenderia para toda a raça humana.

É por isso que, a partir de Jesus Cristo, tal realidade foi melhor compreendida,

como também ampliada e ressignificada. O termo Evangelho se tornou uma categoria

especial para descrever uma verdade única e especial sobre Jesus Cristo e sua obra. O

termo está no singular (evangelion) e não no plural (evangelia). Trata-se, portanto

daquela que era, de fato, “a boa notícia” e que não poderia haver qualquer paralelo

naquela ou em qualquer outra época. É importante lembrar que a palavra grega

euangelion deu também origem ao termo "evangelista" para a língua portuguesa.

Entre outros aspectos, os Evangelhos surgiram das necessidades práticas das igreja

cristãs emergentes que estavam levando à sério o cumprimento de suas respectivas

tarefas missionárias e discipuladoras. E por isso mesmo, os Evangelhos foram o

fundamento da proclamação a respeito de Jesus Cristo, ou seja, “por meio de suas

narrativas, eles levam o conhecimento da Palavra de Deus, asseguram a fé dos crentes

e fazem da vida de Jesus um modelo para as nossas” (SIMÕES, 2017, p. 28). A mesma

autora, junto com Hörster (1996) destaca outras finalidades que levaram os evangelistas

a escreverem os Evangelhos, tais quais:

46 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● Assegurar a tradição de Jesus em um contexto de perseguição,

● Desenvolver um registro fiel do que Jesus tinha, de fato, realizado, afinal a morte

dos apóstolos estava acontecendo no período,

● Transmitir um texto correto e fiel para todos os lugares aonde Cristo seria

proclamado, visto que o crescimento e a expansão da igreja cristã em várias

regiões exigia algo mais confiável,

● Dar respostas às dúvidas e incertezas da comunidade cristã sobre Jesus, seus

ensinos e sua obra,

● Combater um certo tipo de proto-gnosticismo que queria separar o Jesus divino

do humano e um certo tipo de fé equivocada que separava o Jesus histórico do

Cristo da fé,

● Legitimar a continuidade da história da salvação às comunidades cristãs gentílicas

em que os próprios evangelistas estavam inseridos,

● Despertar e fortalecer a fé em Jesus como o Messias prometido por Deus,

● Evidenciar que a vida de Jesus se tornou um exemplo para os fiéis que o seguem,

● Mostrar o vínculo entre Jesus e seus discípulos, que passaram a formar uma

comunidade de fiéis que mais tarde se formalizou por meio da igreja.

2.3 Processo de formação e formas narrativas dos Evangelhos


Precisamos entender que, normalmente, os textos encontrados nas Escrituras

Sagradas não são fruto de um ditado literal¹ de Deus ao escritor. Como afirma o

47 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


evangelista Lucas (1.1-4), existiam muitas fontes e materiais disponíveis sobre Jesus e

seu ministério que estavam sendo compartilhados pelas testemunhas oculares e pelos

ministros da palavra. Os Evangelhos – assim como todo o NT –, antes de qualquer

estrutura textual como a que temos atualmente, começou a tomar forma por meio da

oralidade, da mensagem, do anúncio, do testemunho (FLUCK, 2020). Não obstante, esses

textos surgiam em comunidades de fé, como expressão de fé de um povo que cria e

pregava sobre Jesus.

Portanto, o processo de formação dos textos que temos nos Evangelhos, de modo

óbvio, foi algo que se desenvolveu de forma natural e gradativa. Diga-se mais uma vez,

os evangelistas não aspiravam escrever uma biografia (no sentido historiográfico atual),

muito menos uma história precisa de detalhes e cronologia; eles apenas escreveram

obras com um caráter intencionalmente teológico que demonstravam quem Jesus era e

o que ele tinha realizado.

Deste modo, tudo aquilo que Jesus falou e realizou, desde o início do seu

ministério terreno (Mt 4.12, Mc 1.14, Lc 4.14), até o dia em que ascendeu aos céus (At

1.9), foi naturalmente passando de uma oralidade pregada para pequenos textos

compartilhados. Era assim que surgiam as “coleções das palavras de Jesus (logia)”,

conforme afirma Barrera (1995, p. 118), que nada mais eram que uma espécie de

____________________________________________________________
¹ Ainda que uma vez ou outra isso possa ter acontecido.

conforme afirma Barrera (1995, p. 118), que nada mais eram que uma espécie de

coletânea de ditos de Jesus formados pelas sentenças, parábolas, ensinos e milagres que

passaram a servir de auxílio para aqueles que se tornaram evangelizadores e que, como

48 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


foi o caso da maioria, não participaram pessoalmente dos acontecimentos.

Trebolle Barrera (1995) ainda reitera que esses textos foram sendo compartilhados

naquele período por meio de folhas soltas de papiro, como uma forma de propagar a

fé cristã. Como se constata, mais tarde esses textos colaboraram na composição do que

se tornou os quatro Evangelhos. Portanto, devemos ter em mente que esse material

sobre Jesus “passou por um importante processo de formação que compreendeu etapas

distintas entre si” (SIMÕES, 2017, p. 31).

A redação que compôs a obra final de cada evangelista deve ter ocorrido a partir

dos anos 60 d.C. E assim, segundo afirma Fluck (2020, p. 6), apenas “na geração posterior

ao apóstolo Paulo a Igreja tratou de dar forma aos quatro evangelhos para edificar sua

fé”. Por sua vez, de acordo com Simões (2017), foi também apenas no início do segundo

século que essas obras foram reunidas com a finalidade de compor o cânon das

Escrituras. De forma prática poderíamos entender melhor esse processo de formação

nas seguintes etapas hipotéticas:

1. Em primeiro lugar aconteceu o fato (ensino ou ação) que possibilitou e instigou

a transmissão oral do Evangelho, que era o próprio Jesus e a mensagem que ele

anunciava,

2. Em segundo lugar, essa mesma mensagem foi transmitida, mais uma vez, de forma

oral, por meio do testemunho e da pregação dos discípulos nas comunidades em

que eles estavam inseridos,

3. Em terceiro lugar, em um momento posterior à ressurreição e assunção de Cristo

aos céus, a transmissão oral continuou sendo anunciada ao passo em que foi

49 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


sendo realizada, concomitantemente, à redação dos textos que foram formando

as pequenas coletâneas de texto (os ditos/logia de Jesus).

4. Em quarto lugar ocorreu a redação final do texto, depois de uma compilação

intencional realizada pelos evangelistas e que compõem os Evangelhos como eles

se apresentam atualmente.

Como se percebe, trata-se de um processo que se estendeu por um bom período

de tempo. Não foi uma obra produzida em apenas um momento e nem mesmo uma

obra surgida do acaso. Hörster (1996, p. 10) afirma que os evangelistas juntam “o

material transmitido e o ordenam, e depois o transmitem adiante”. De fato, em harmonia

com o que nos diz Lucas (1.1-4), ocorreu uma “tarefa de seleção da tradição recebida,

fosse oral, fosse escrita” (SIMÕES, 2017, p. 34).

Eles não pretendiam escrever tudo (Jo 20.30-31), mas intencionalmente

escolheram o que era de seus próprios interesses e objetivos teológicos. Para tanto, eles

fizeram isso utilizando-se de fontes orais e escritas que já circulavam naquele tempo.

Nesse processo, eles elaboraram uma síntese, com a finalidade de ensinar sobre Jesus

ao mesmo tempo em que manifestavam suas profissões de fé nele como Senhor e

Salvador em meio às comunidades eclesiais em que eles estavam inseridos.

Todavia, com isso não se quer dizer que as testemunhas oculares que andaram

com Jesus, como Mateus e João, por exemplo, não tenham relatado algo daquilo que

eles mesmos vivenciaram. Certamente, há relatos que estão marcados na memória

daqueles evangelistas e que foram compartilhados conosco.

50 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Em relação às formas narrativas, ainda que o gênero literário predominante seja

categorizado especificamente como “Evangelho”, há, igualmente, na redação do texto,

uma variedade de recursos e gêneros literários que foram intencionalmente escolhidos

com a finalidade tornar a mensagem sobre Jesus bem vívida aos leitores. Sendo assim,

tudo o que Jesus fez e ensinou foi transmitido por diferentes estilos; entre eles: parábolas

(cerca de 40), alegorias (ex.: videira verdadeira, Jo 15), relatos de milagres (cura,

intervenção na natureza ou exorcismo), anunciação (Lc 1.5-25, 1.26-38),

controvérsias/disputas (Mt 22.41-46), apocalíptico (Mt 24-25, Lc 21.5-36), entre outros.

2.3.1 A questão sinótica


Por que precisamos de quatro Evangelhos? Um só não bastaria? Diante da

providência divina em estabelecer que quatro narrativas deveriam constar no cânon

bíblico, parece-nos que a resposta é que, de fato, um só Evangelho não bastaria e que,

do mesmo modo, precisaríamos de quatro livros que se complementam quando

discorrem sobre Jesus.

Uma ressalva, entretanto, se faz necessária. Como bem adverte Tenney (1984), em

sua origem, os Evangelhos devem ser percebidos como obras separadas, afinal, foram

escritos em contextos diferentes, por autores diferentes, para diferentes destinatários.

Originalmente, portanto, eles eram lidos separadamente e não em um conjunto

canônico, porque foi justamente assim que eles surgiram. E resta óbvio que cada autor

entendia que aquilo que havia sido escrito era suficiente para transmitir a mensagem

que havia intencionado.

Não obstante, hoje, a partir de nossa percepção histórica completa e canônica, a

51 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


verdade é que cada evangelista apresenta a mesma mensagem a partir de perspectivas

e ênfases diferentes. São quatro versões de uma mesma história. Alguns deles eram

testemunhas oculares, como Mateus e João, por exemplo; outros eram discípulos das

testemunhas oculares, como Marcos, por exemplo. E assim, eles estão ligados à tradição

apostólica transmitida e preservada pela igreja primitiva. Como afirma Simões (2017, p.

32), “os textos trazem em suas composições a interpretação de cada autor sobre os

eventos, compreendidos num contexto particular, dentro de uma comunidade específica,

da qual cada um deles fazia parte”

Teologicamente, três deles são chamados de sinóticos, a saber: Mateus, Marcos e

Lucas. Já o apóstolo João escreve a partir de um ponto de vista diferente. O termo

sinóptico deriva-se do grego synoptikos, forma adjetiva de synopsis, formado de syn, e

0psis, vista, que, aplicado aos Evangelhos veio a significar: vistos de um ponto de vista

em comum; um mesmo olhar. Isto significa que os assim chamados Evangelhos

sinópticos encaram a vida, os ensinamentos e a significação da vida de Jesus a partir de

um mesmo ponto de vista, sem desconsiderar o fato de que nem sempre dizem as

mesmas coisas ou relatam o mesmo evento.

Ainda que ocorra uma certa dependência literária entre eles –, provocada não

porque um dependia do outro para escrever, mas, sim, porque todos eles “eram

dependentes de coleções de fontes” (FLUCK, 2020, p. 8) –, também fica claro que cada

evangelista dá um toque especial, apresentando fatos inéditos e diferentes (e não

divergentes) dando certa complementariedade às narrativas evangélicas. Tudo isso faz

com que tenhamos uma melhor apreensão dos fatos ocorridos durante o ministério de

52 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Jesus. Sendo assim, vejamos no quadro abaixo um pequeno resumo sobre as diferenças

existentes nas narrativas dos sinóticos em paralelo à narrativa de João.

SINÓTICOS EVANGELHO DE JOÃO

Estão preocupados principalmente com o Está mais preocupado com o ministério de

ministério de Jesus no norte, na região da Jesus no sul, na região da Judéia.

Galileia.

Há muita ênfase no Reino de Deus Há mais ênfase na pessoa de Jesus

Jesus é apresentado como o Filho de Davi ou Jesus é apresentado como Filho de Deus

Filho do Homem

Há expectativas e referências ao início da igreja, É o Evangelho da igreja ainda em

em Mateus amadurecimento

Enfoque principal na história terrena Enfoque principal no significado celestial

Os discursos de Jesus geralmente são curtos Os discursos de Jesus estão em maior

(por exemplo, as parábolas) número e são mais longos

Existem, relativamente, poucos comentários por Existem muitos comentários realizados a

parte dos escritores dos Evangelhos partir das percepções de João.

Há somente uma menção da Páscoa Há menção de três ou talvez até quatro

Páscoas

Tem um caráter mais narrativo-histórico Tem um caráter mais teológico

Quadro 2: Evangelhos sinóticos e joão.


Fonte: Elaborado pelo Autor

Entre outros aspectos, constatamos que os sinópticos organizam o material e a

narrativa do texto a partir de uma perspectiva geográfica e não cronológica. Por sua vez,

João procura dar ênfase às questões do ministério de Jesus de forma mais sequencial e

53 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


linear. Os sinópticos enfatizam os atos (por exemplo, ressaltam os 35 milagres nos

Evangelhos); já João relata apenas sete milagres. Os sinóticos fazem uma narrativa breve;

João descreve grandes diálogos. Enquanto a designação Filho do Homem é mais comum

nos sinóticos; a designação Filho de Deus se acentua em João.

Como bem destaca Simões (2017), os sinóticos se caracterizam por ter um

esquema de narrativa bem idêntico. A aproximação é tanta que, quando se coloca os

textos que se repetem neles em colunas paralelas, se consegue perceber facilmente suas

muitas semelhanças e suas poucas diferenças.

Hörster (1996) destaca algumas das semelhanças que permitiram que os três

primeiros Evangelhos fossem categorizados como sinóticos. Entre outros, o autor afirma

que eles são distintos no:

● Esboço: estruturam de forma simples (nascimento, batismo, ministério na Galileia,

viagens para Jerusalém, Paixão)

● Ordenação do material: organizam o seu material do ponto de vista geográfico

● Escolha de temas: enfatizam os atos de Jesus (milagres, curas)

● Apresentação das controvérsias: apresentam os adversários de Jesus em suas

características (fariseus e escribas, saduceus e sacerdotes)

● Forma narrativa: relatos breve da vida de Jesus com declarações marcantes,

● Discursos de Jesus: são discursos com frases curtas e de fácil assimilação, com

uma oratória direta e objetiva.

● Autodenominação de Jesus: Jesus prefere o título de Filho do Homem

Vejamos no quadro abaixo uma comparação sobre como os evangelistas

54 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


organizam o material e a escrita:

Quadro 3: Material e escrita.


Fonte: Elaborado pelo Autor

A partir destes aspectos precisamos considerar a questão sinótica, também

chamado por alguns de problema sinótico. Afinal, quando comparamos os primeiros três

Evangelhos, constatamos dois aspectos que parecem se contrapor:

1. Os sinóticos são semelhantes em longos trechos na estrutura, na sequência das

perícopes e também na forma do texto grego,

2. Os sinóticos se diferenciam na escolha dos temas, na apresentação do contexto

da narrativa e frequentemente também na forma do texto grego.

Portanto, o problema sinótico é o seguinte: como podemos explicar esses

aspectos ou como podemos entendê-los melhor com base na história da origem dos

próprios Evangelhos? Tenney (1984, p. 208) levanta a questão de forma bem objetiva ao

55 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


dizer que “se cada um dos Evangelhos Sinóticos é, em origem e desenvolvimento,

totalmente independente de cada um dos outros, por que razão se parecem tão

intimamente uns com os outros, até à concordância verbal exata em muitos lugares?”

Hale (2001, p. 55) de forma simples questiona: “Por que eles têm tantas coisas em

comum, e como explicar as diferenças”? Para respondermos essas questões precisamos

considerar alguns aspectos.

Em primeiro lugar precisamos considerar a fonte da escrita de cada um ou de

todos eles. Afinal, existem várias teorias sobre as fontes de escrita dos Evangelhos.

Ressalta-se que são hipóteses que podem e foram questionadas muitas vezes. Contudo,

ainda assim, elas nos ajudam a entender um pouco mais a questão. Em uma síntese

elaborada a partir das obras de Tenney (1984), Hörster (1996) e Hale (2001),

apresentamos algumas delas:

● Teoria do não documento: essa teoria defende que os Evangelhos, em sua

redação final, se desenvolveram de forma independente uns dos outros.

Considerando-se que atualmente não se questiona o fato de que há uma certa

interdependência, essa hipótese não se sustenta, visto que ela não explica as

muitas semelhanças entre os sinóticos (teoria improvável),

● Teoria do documento único: essa teoria diz que os sinóticos tiveram um único

documento como fonte informativa, que poderia ser um protoevangelho, como o

evangelho dos Nazarenos, em aramaico. Agostinho também acreditava que

Mateus tinha sido o primeiro Evangelho, que Marcos era um resumo dele e que

Lucas dependia de ambos (teoria improvável),

56 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● Teoria dos fragmentos: Alguns consideraram a possibilidade de que os sinóticos

foram constituídos a partir de inúmeros pequenos fragmentos. Ainda que

fragmentos diversos devem estar presentes entre os textos que circulavam na

época, essa teoria não resolve a questão sinótica do texto grego (teoria

improvável)

● Teoria da tradição oral: Alguns defendiam a ideia de que a semelhança dos

sinóticos se deu porque eles tem base na mesma tradição oral. Constamos a

existência dessa tradição por meio dos “ministros da Palavra” no Evangelho de

Lucas (1.2) e do “ensino dos Apóstolos” no livro de Atos (2.42). Contudo, mesmo

que não deva ser descartada num todo, como a transmissão oral ocorreu no

aramaico, essa hipótese também não contribui muito com a questão sinótica que

contempla o texto grego (teoria improvável),

● Teoria dos dois documentos: Diz que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a

ser escrito e que ele foi usado por Mateus e Lucas como fonte de esboço. Além

disso, citam uma outra fonte denominada de Fonte Q (formada pelas logia/ditos

de Jesus) contendo os cerca 250 versículos que se encontram em ambos e não

em Marcos (teoria provável),

● Teoria dos quatro documentos (ou documentos múltiplos): diz que Mateus e

Lucas de fato se valeram dos registros de Marcos para terem um esboço similar,

todavia, além da fonte Q (com cerca de 250 versículos), Mateus se valeu da

tradição oral ou escrita da igreja de Antioquia da Síria e Lucas da tradição oral ou

escrita de Cesareia e outros lugares, para escrever àquilo que está presente apenas

57 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


em cada um dos respectivos Evangelhos, que são cerca de 300 versículos (fonte

M) em Mateus e cerca de 580 versículos (fonte L) em Lucas (teoria provável).

De acordo com o prólogo introdutivo e explicativo de seu Evangelho, Lucas (1.1-

4) nos dá a entender que existiam várias narrativas dos fatos acontecidos sobre Jesus

que estavam sendo transmitidos por testemunhas oculares e pelos ministros da Palavra.

E ele ainda conclui que realizou uma investigação cuidadosa e detalhada de todos os

fatos, desde a origem, produzindo, assim, um texto com base nesses inúmeros

documentos narrativos e fontes da tradição oral.

Ainda que sejam apenas teorias, temos uma possível solução. A teoria dos 4

documentos, segundo alguns biblistas, é a que melhor se encaixa como resposta ao

problema sinótico. A questão se resume ao fato de que embora um tanto similares em

muitos momentos, os Evangelhos apresentam algumas variações consideráveis. Afinal,

diferentes pessoas estavam escrevendo, com diferentes propósitos, a diferentes públicos-

alvo e certamente utilizando-se de mais de uma fonte informativa.

Como veremos posteriormente, acredita-se que Marcos foi o primeiro a escrever

e que Mateus e Lucas escreveram depois dele. A questão sinótica evidencia que os dois

últimos evangelistas utilizam muito material redacional que está presente no Evangelho

de Marcos. Portanto, Mateus e Lucas compõem suas narrativas com um certo olhar e

um aproveitamento intenso e estratégico daquilo que Marcos tinha escrito.

Segundo Hale (2001, p. 54), “entre 94 e 95 porcento do Evangelho de Marcos é

reproduzido em Mateus e Lucas”. Por sua vez, estes dois reelaboram a história em suas

próprias palavras e acrescentam fatos novos a partir de outras fontes comuns aos dois

58 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


ou mesmo às suas próprias fontes particulares ou excluem alguns outros quando acham

necessário. Tenney resume essa questão da seguinte forma:

Uma questão importante é a relação de Marcos com os outros dois

sinóticos. Praticamente, todo o material de Marcos, com exceção de

cerca de quinze versículos, pode ser achado embutido em Mateus

e em Lucas. De 1068 versículos de Mateus, cerca de 500 são

semelhantes a Marcos e, de 1149 versículos de Lucas, cerca de 320

parecem-se com Marcos. Mais, Mateus e Marcos podem concordar

contra Lucas ou Lucas e Marcos podem concordar contra Mateus,

mas Mateus e Lucas nunca concordam contra Marcos onde houver

considerável extensão de texto que seja comum aos três. Esses

escritores conheceram Marcos e usavam-no no seu trabalho [...]

(TENNEY, 1984, p. 208)

Simões (2017) ainda destaca sobre os ditos (logia) de Jesus que compõem a

chamada Fonte Quelle (Q) e que, apesar de não ter sido encontrada (por isso, uma

hipótese), está bem presente nos textos que formam os sinóticos. É esse documento

que “explica os textos que são paralelos entre os Evangelhos segundo Mateus e Lucas”

(SIMÕES, 2017, p. 45) e que são desconhecidos ou não utilizados por Marcos. Uma

característica interessante destes textos é que eles são formados, essencialmente, pelos

ensinamentos de Jesus com caráter moral e doutrinário. Como exemplo, temos Mt 5.1-

12 e Lc 6.20-23 (bem-aventuranças), Mt 11.2-6 e Lc 7.18-23 (dúvida de João Batista) e

Mt 6.9-13 e Lc 2.-4 (oração do Pai-nosso).

59 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Como afirma Simões (2017), talvez a escrita de Marcos, em seu estilo e conteúdo

– que foi bem aceito no contexto do cristianismo primitivo –, tenha até impulsionado

aos demais evangelistas a escreverem também. Vejamos abaixo como se dá a relação

entre os Evangelhos Sinóticos:

Figura 1: Relação entre os evangelhos sinóticos.


Fonte: Google imagens

Simões (2017, p. 47) resume a perspectiva do quadro acima de forma bem

apropriada quando diz que

As passagens encontradas nos três textos que se explicam por meio

de suas fontes são chamadas de perícopes de tríplice tradição,

comuns a Marcos, a Mateus e a Lucas. Já as passagens paralelas em

60 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Mateus e Lucas são chamadas de tradição dupla. As apresentadas

apenas em uma dessas obras são conhecidas como tradição

simples. E as que aparecem mais de uma vez num mesmo

Evangelho são chamadas duplicatas.

Tais perspectivas nos ajudam a assegurar que a escrita dos Evangelhos não foi de

uma obra inventada da cabeça de um outro personagem qualquer. Existem documentos

confiáveis que já circulavam nas igrejas e os evangelistas, ao escolherem esse material,

nos apresentaram aquilo que havia de melhor para descrever o ministério de Jesus. A

concordância entre eles nos ajuda a perceber isso e os relatos diferentes e exclusivos de

cada um deles nos ajudam a complementar e conhecer melhor as histórias que

intencionalmente optaram por apresentar. Em tudo isso, o mais importante é constatar

que os Evangelhos são narrativas de caráter teológico que apresentam Jesus e a Sua

obra – nascimento, vida, morte, ressurreição – com a finalidade de demonstrar que o AT

se cumpriu e que Deus irrompeu na história por meio da encarnação de Seu Filho.

2.3.2 Algumas curiosidades

A Igreja primitiva enxergou uma relação entre os quatro Evangelhos e os quatro

‘seres viventes’ descritos por Ezequiel (Ez 1.10) e João (Ap 4.7), da seguinte forma:

● Homem em Mateus: humanidade de Jesus

● Leão em Marcos: força e realeza

● Novilho em Lucas: Sacrifício de Jesus

● Águia em João: O Espírito Santo sobre Jesus

61 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


É bom lembrar, também que os Evangelhos, apesar de estarem no início do NT

por uma questão lógica, não foram os primeiros escritos do cristianismo. Algumas (ou

várias) cartas foram escritas antes. Essa questão de datação será melhor apreendida nas

unidades respectivas de cada Evangelho.

Por vezes, se ouve falar de que existem outros evangelhos que a igreja decidiu

esconder e não revelar às pessoas por apresentarem conteúdo diferente dos quatro

evangelistas canônicos e que estes conteúdos mudariam o Cristianismo. Inicialmente,

portanto, é preciso dizer que sim, existem outros evangelhos. Aliás, há uma grande

variedade deles que foram escritos tardiamente e foram profundamente influenciados

por comunidades gnósticas e místicas. São cerca de cinquentas, aproximadamente, e

que são chamados de evangelhos apócrifos. Como exemplo temos o evangelho de

Tomé, o evangelho de Filipe, o evangelho de Pedro e o evangelho de Judas, o evangelho

de Maria etc. Contudo, é preciso afirmar que a igreja nunca escondeu tais escritos e que

eles, de forma alguma, mudariam a nossa teologia cristã.

E por que, então, eles não foram aceitos? Simplesmente porque não passaram

pelo crivo de um evangelho canônico, muito menos apresentaram rigorosidade histórica

e verídica em relação à vida de Jesus! Por sua vez, os cristãos creem que os quatro

Evangelhos que temos são dignos de confiança, pois não apenas contém verdades, mas

eles mesmos são a verdade sobre Jesus, o salvador, como bem afirmou o apóstolo Pedro

em sua carta ao dizer que:

“Porque não lhes demos a conhecer o poder e a vinda de nosso

62 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas,

mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade”

(2Pe 1.16, NAA)

63 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


64 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC
3

O Evangelho de Marcos
Ainda que na ordem canônica das nossas Bíblias o Evangelho de Marcos não seja

o primeiro a aparecer na lista, é justamente com ele que iniciaremos, afinal, como

constatamos na unidade anterior, a precedência cronológica de Marcos é um fato que

pouco se dúvida nos atuais ambientes teológicos. E, como bem lembra Fluck (2020),

temos, também, afirmações significativas de historiadores eclesiásticos do segundo

século que corroboram tal realidade.

Para além destes aspectos, constatamos por meio de uma análise do texto em si

que um percentual muito significativo do conteúdo de Marcos está bem presente nos

outros dois sinóticos. Hale (2001, p. 73) ainda acrescenta que alguns dos versículos que

se repetem nos sinóticos e que tem como base o texto de Marcos “são idênticos quanto

ao vocabulário e ordem das palavras”. Trata-se de uma semelhança que não é um mero

acaso.

Deste modo, optamos pelo caráter cronológico e, portanto, não canônico, no

início de nossa análise de cada um dos Evangelhos. Aqui vamos discorrer sobre questões

de autoria, data e local de escrita, propósito e mensagem, público-alvo, estilo, esboço,

entre outras questões especificas sobre esse Evangelho.

65 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


3.1 Autoria
Assim como em todos os Evangelhos, o escritor deste também é anônimo, ou

seja, não temos nenhuma informação explicita no próprio livro sobre quem é o seu

autor. Contudo, já no início do segundo século, esse Evangelho foi atribuído como obra

da autoria de João Marcos, sendo que João é o nome judaico (semítico) e Marcos é o

nome romano (latino). Alguns afirmam que ele era um discípulo de Jesus (hipótese

pouco provável) ao passo que Tenney (1984) infere que Marcos deveria ter cerca de 20

anos de idade nos dias da crucificação de Jesus.

Marcos aparece várias vezes em Atos e nas cartas do Novo Testamento. Acredita-

se que ele era de uma família cristã de Jerusalém e que sua a mãe, chamada Maria, tinha

uma casa em Jerusalém onde, possivelmente, os seguidores de Jesus se reuniam (At

12.12). Aliás, provavelmente também é o local do cenáculo onde se realizou a última

ceia e que o Jardim do Getsêmani supostamente poderia compor a propriedade. Como

afirma Tenney (1984, p. 163), se esses fatos forem verdade, “Marcos estava bem

relacionado com os dirigentes do movimento cristão quase desde o começo”.

E isso confirmaria, igualmente, o fato de que as suas aparições nos textos

neotestamentários não são mera coincidência, afinal, Marcos acompanhou e colaborou

com os principais líderes da igreja primitiva, como Pedro, Paulo e Barnabé. Deste modo,

é quase certo que mais tarde ele foi um assistente do apóstolo Pedro em Roma. O

próprio Pedro afirma que o amava como seu próprio filho (1Pe 5.13).

Paulo lembra que ele era um primo de Barnabé (Cl 4.10). Lucas destaca que ele

começou seu ministério por meio do chamado de Paulo e Barnabé (At 12.25), e que,

66 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


inclusive, os acompanhou na primeira viagem missionária (At 12.25). Contudo, Marcos

abandonou os apóstolos quando, no decorrer da viagem, decidiu voltar para Jerusalém

(At 13.13). Na segunda viagem missionária Paulo não quis mais a companhia do jovem

Marcos (At 15.37-38), permitindo com que tal desentendimento tenha contribuído para

que Paulo e Barnabé se separassem (At 15.38-40).

Contudo, depois de um certo tempo – que, segundo Tenney (1984) se estendeu

por cerca de 10 anos –, Marcos retornou ao convívio de Paulo. Ele estava com o apóstolo

na prisão (Cl 4.10-11), tornando-se, inclusive, um importante companheiro de trabalho

(Fm 24) e útil para o ministério de Paulo (2Tm 4.11). Além de Paulo, Marcos também

estava presente com Pedro e Silvano (Silas) na Babilônia, que, simbolicamente, deveria

representar, na verdade, a cidade de Roma (1Pe 5.12-13).

Na história da igreja, principalmente nos primeiros séculos, alguns corroboram o

fato de que o primeiro Evangelho escrito tenha sido o de Marcos, que foi elaborado a

partir das pregações e dos ensinos do apóstolo Pedro enquanto ambos estavam em

Roma (HORSTER, 1993; HALE, 2001). Essa afirmativa encontra fundamento na obra do

historiador Eusébio de Cesareia, em sua História eclesiástica, citando Papias (140 d.C.,

bispo em Hierápolis, discípulo de João). Eusébio, que era bispo em Cesareia, afirma que

aqueles que ouviam a pregação de Pedro:

[...]. Não ficavam satisfeitos apenas ouvindo-o uma vez, nem com o

ensinamento não escrito da pregação divina, mas com todo tipo de

pedidos importunavam Marcos – de quem se diz que é o Evangelho

e que era companheiro de Pedro – para que lhes deixasse também

67 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


um memorial escrito da doutrina que de viva voz lhes era

transmitida, e não o deixaram em paz até que o homem o tivesse

terminado, e desta forma tornaram-se a causa do texto chamado

Evangelho de Marcos. E dizem que o apóstolo, quando por

revelação do Espírito soube o que tinha sido feito, alegrou-se pela

boa vontade daquela gente e aprovou o escrito para ser lido nas

igrejas

(CESAREIA, 2002, p. 41, Livro II, XV, 1-2)

Nas palavras do próprio Papias, citado por Hale (2001, p. 74) temos a informação

de que “Marcos, tendo se tornado o intérprete de Pedro, escreveu precisamente tudo o

que ele lembrara das coisas ditas e feitas pelo Senhor, mas não em ordem. Pois nem ele

ouvira o Senhor, nem o seguira, mas posteriormente, como eu disse, Pedro adaptou seus

ensinos às necessidades (de seu ouvintes)”. Papias ainda ressalta que Marcos registrou

tudo com muita diligência, sem omitir nada do que ouviu e nem mesmo intentou

declarar algo falso.

Outros, como Justino Mártir (159 d.C.) e Irineu de Lyon (130—202 d.C.) reforçaram

tal argumento na história. Como adverte Hale (2001, p. 74), o primeiro cita o Evangelho

de Marcos como “memórias de Pedro”; já Irineu de Lyon (130-202) diz que Marcos foi

escrito “quando Pedro e Paulo pregavam o Evangelho em Roma e fundaram a igreja ali”

e que depois da morte destes, “Marcos, discípulo de Pedro, nos forneceu por escrito o

68 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


conteúdo da pregação de Pedro” (HALE, 2001, p. 74). Clemente afirma que Marcos

escreveu enquanto Pedro ainda estava vivo, tendo a sua narrativa verificada e Origenes

afirma que Marcos escreveu o Evangelho conforme Pedro o explicava (TENNEY, 1984).

Tenney (1984) ainda levanta o fato da existência de uma grande semelhança do

conteúdo de Marcos com o sermão pregado por Pedro em Atos (10.34-43).

Ainda que um ou outro biblista tenha discordado da autoria de Marcos, diante

destes fatos e evidências quase que unânimes da história (com pouca divergência de

relatos) não há muitas dúvidas de que, de fato, João Marcos, tão conhecido entre os

apóstolos e tão presente nas narrativas do NT, seja o autor do segundo Evangelho.

Tenney (1984) ainda acrescenta que Marcos deve ter cooperado com a fé cristã durante

muito tempo – de 30 a 65 d.C– e que, de acordo com uma fonte da tradição preservada

por Eusébio de Cesareia, o evangelista fundou as igrejas de Alexandria.

3.2 Data e local da escrita

Antes de arriscarmos definir uma data de escrita para o Evangelho de Marcos,

precisamos lembrar e reafirmar que tentativas de datação e do local da escrita da maioria

dos livros bíblicos é uma questão apenas de aproximação, ou seja, na maioria dos casos

podemos apenas especular e inferir algumas possibilidades a partir de uma análise das

circunstâncias históricas, literárias e teológicas que envolvem o livro. Para além disso,

normalmente não há concordância nem mesmo entre os biblistas. Deste modo, com o

Evangelho de Marcos não é diferente.

Nesse sentido, podemos situar a escrita do Evangelho de Marcos entre os anos

69 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


60 e 70 d.C., ainda que alguns comentaristas mais precipitados prefiram a data de 50

d.C. Segundo a tradição da igreja, Marcos escreveu o Evangelho em Roma entre 67 e 68

d.C. Tenney (1984) o situa entre 56 e 66 d.C. Simões (2017) o coloca entre 65-70 d.C. e

Fluck (2020), de forma aproximada, sugere 65-69 d.C. Horster (1993) e Hale (2001)

indicam a data de 64/65 d.C., o que, em síntese com os outros, parece ser bem provável.

Em relação ao local de escrita se faz necessário considerar o contexto que

possivelmente envolve a escrita do Evangelho. Nesse sentido, esse Evangelho poderia

ser uma resposta para a comunidade cristã que está em crise, por causa da perseguição

do Império Romano (Nero) aos cristãos da capital do império, ou seja, a cidade de Roma.

E talvez seja por isso mesmo que na abertura de seu Evangelho ele apresenta Jesus

Cristo como o Salvador em contraposição a Cesar, o Imperador Romano que se

considerava-se um deus e salvador. Sendo assim, Roma pode ser uma opção bem

provável do local da escrita. Devemos lembrar que historicamente existem muitas

evidências que Marcos esteve em Roma, tanto com Paulo quanto com Pedro (HALE,

2001).

3.2 Público-alvo

Diante das informações anteriores resta óbvio que o público-alvo da escrita deste

Evangelho são os gentios, ou seja, os não judeus. Algumas evidências internas podem

confirmar tal afirmativa. Como exemplo, Marcos normalmente faz questão de explicar

alguns costumes judaicos (7.14; 14.12; 15.42), o que não seria necessário para um público

judeu. Em outros casos, porém, ele omite elementos de interesse mais judaicos, tais

70 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


quais as genealogias apresentadas por Mateus e Lucas no início de seus respectivos

textos.

Marcos também traduz frases e palavras em aramaico (3.17, 5.41, 7.11 etc.) e faz

pouca referência ao AT, demonstrando que não fazia muito sentido recorrer ao AT para

um público que não precisava de tal informação. De outro modo, Marcos usa algumas

expressões latinas em vez do grego (5.9; 6.27; 12.15, 42; 14.44, 65; 15.15, 19, 44-45) e

faz uma contagem do tempo no sistema romano (6.48, 13.35). Ele também cita em Mc

15.21 os filhos de Simão Cirineu – Alexandre e Rufo – como pessoas bem conhecidas

pelos seus leitores e em Romanos 16.13 constatamos que Rufo estava em Roma.

Portanto, diante destes aspectos e das informações históricas descritas

anteriormente, é, de fato, bem possível, que Marcos tenha escrito esse Evangelho

apresentando uma mensagem para alcançar, inicialmente, os romanos (HORSTER, 1993;

HALE, 2001). Contudo, isso não quer dizer que, como era comum entre os escritos que

surgiram no primeiro século, esse Evangelho não deva ter alcançado também aos cristãos

gentios de outras comunidades cristãs daquele tempo. Por isso, o “destinatário também

é todo aquele que deseja conhecer e ser discípulo do Evangelho de Jesus Cristo”

(SIMÕES, 2017, p. 97). Portanto, cada leitor atual é, também, um destinatário

contemporâneo desse Evangelho.

3.3 Gênero literário

Sendo um dos quatro primeiros livros do Novo Testamento, resta óbvio que

Marcos tem seu gênero literário definido como Evangelho. Aliás, mais que isso, sendo o

71 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


primeiro Evangelho a surgir, Marcos inaugura o gênero literário caracterizado de

evangelho. Contudo, precisamos perceber detalhes mais específicos da escrita. Nesse

sentido, Horster (1993, p. 24) destaca que “o autor fez uma seleção de relatos sobre os

atos e discursos de Jesus e os redigiu de forma aparentemente desconexa”. Não há,

portanto, uma sequência linear ou um cronograma pré-estabelecido. Portanto, reitere-

se que não se trata mesmo de uma biografia com a intenção de apresentar uma

descrição completa da vida de Jesus.

Horster (1993) percebe que Marcos também faz constantes “inserções” em sua

narrativa. É algo como interromper o que vinha falando para apresentar um fato que ele

acha importante (3.21 e 31-35; 5.21-24 e 35-43; 6.14-29 e 30ss; 11.15-19 e 11.12-14, 20-

25 etc.).

3.4 Estilo

Cada autor manifesta no seu texto o seu estilo próprio e com Marcos não é

diferente. Tenney (1984, p. 167) destaca que esse Evangelho é obra de um jovem que

“estava inteiramente familiarizado com a mensagem a respeito de Jesus e que escreveu

como tinha ouvido, sem elaboração ou embelezamentos de qualquer natureza”. Do

mesmo modo, Horster (1993, p. 22) ressalta que “a ênfase dessa narrativa está nos atos

de Jesus”. Fluck (2020, p. 8) ressalta que hoje se tem convicção de que “Marcos está

mais próximo do estilo oral”. Considerando a informação de que sua base perpassa pelas

pregações de Pedro, isso faz muito sentido.

Por isso, de fato, Marcos é caracterizado por um estilo, prático, conciso, rápido,

72 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


claro, direto e focado na ação. Deste modo, expressões como “imediatamente” e “logo”

aparecem 42 vezes no texto. Essa quantidade é significativa, principalmente quando

comparamos dois Evangelhos maiores que utilizam tal recurso em apenas poucas vezes.

Mateus utiliza 7 vezes e Lucas apenas uma vez. Marcos também usa uma linguagem

grega nada sofisticada; antes, pelo contrário, prefere uma abordagem rústica e mais

simples o possível. Fluxk (2020) destaca que o evangelista chega a preservar certos

aspectos do aramaico em sua escrita.

Marcos organiza o seu material e apresentação que faz no Evangelho do ponto

de vista geográfico (Galileia – Judeia – Jerusalém). Não se trata de detalhar aspectos

geográficos (como João o faz), mas, sim, de determinar um lugar onde Jesus começa

seu ministério e no fim um lugar onde ele o conclui. Como diz Simões (2017, p. 70), “a

geografia está a serviço da teologia do evangelista”. Dessa forma, ele não leva em conta

a sequência cronológica dos fatos.

Sendo o evangelho mais abreviado, seu propósito também é o de fazer um relato

mais breve e emocionante sobre a vida de Jesus e, por isso mesmo, dá pouca ênfase

aos ensinos e discursos de Jesus. Ele mostra Jesus em ação, na perspectiva de convencer

o leitor, a partir do que Jesus fez, que ele era o que realmente afirmava ser, ou seja, ele

era o Filho de Deus.

3.5 Breve estrutura/esboço

Simões (2017, p. 60) afirma que a obra de Marcos

“pode ser dividida em duas grandes partes, que respondem a duas

73 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


perguntas sobre Jesus. O capítulo 8 é o centro de todo o texto,

pois, nele, depois de Jesus ter sofrido rejeição e incompreensão até

de seus discípulos, inicia-se o ensinamento a respeito do sofrimento

e da morte do Filho do Homem, como também de sua ressurreição

como projeto de Deus”.

De forma mais simples, um breve esboço deste Evangelho poderia ser o seguinte:

Texto Conteúdo

1.1-13 Introdução

1.14 – 5.43 Ministério na Galileia

(ao redor do Mar da Galileia)

6.1 – 9.50 Ministério na Galileia

(jornadas para além da Galileia)

10.1-52 Jornada para Jerusalém

11.1 – 12.34 Ministério em Jerusalém

13 Discurso apocalíptico (em Jerusalém)

14.1 – 16.20 Ministério em sua etapa final (Paixão)

Quadro 4: Texto e conteúdo.


Fonte: Elaborado pelo Autor

3.6 Texto-chave

É claro que todo o texto do Evangelho escrito por Marcos é importante, contudo,

numa perspectiva prática e pedagógica poderíamos escolher o texto abaixo, descrito em

duas traduções diferentes, como uma síntese elementar do livro:

● Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1.1, NAA)

74 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● “A boa notícia que fala a respeito de Jesus Cristo, Filho de Deus, começou a ser

dada” (Mc 1.1 – NTLH)

Ainda assim, outros textos também merecem um destaque especial (1.15; 10.45;

14.61-62).

3.7 Percepção a respeito de Jesus

Para o Evangelista Marcos Jesus é:

● O Filho do Homem que sofreu por nossa causa como um servo (10.45)

● O Filho de Deus que venceu o mal, isto é, o diabo (5.1-20)

● O Messias prometido (9.36-37)

● O Mestre (Rabi) (10.17)

3.8 Pontos e assuntos principais

Como lembra Fluck (2020), o Reino de Deus é um dos assuntos centrais nos

Evangelhos. De fato, o assunto referente ao Reino de Deus predominou o ministério de

Jesus. Há, aproximadamente, 160 referências ao Reino por todo o texto do Novo

Testamento. Exclusivamente nos Evangelhos temos 127 textos que falam do assunto.

Não obstante, o próprio Jesus falou sobre o Reino de Deus cerca de 90 vezes. Para

Marcos, o Reino já chegou (1.14) e ele faz 14 referências ao Reino.

Outra ênfase de Marcos contempla o poder de Jesus sobre todas as coisas, a

ponto de um terço de Marcos ser dedicado aos milagres realizados por Jesus. De fato,

para o evangelista, o tema se sobressai diante daquilo que ele quer provar. Os

75 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Evangelhos relatam 35 milagres realizados por Jesus. Mateus menciona 20 deles, Lucas

também. Já Marcos apresenta 18 milagres. Contudo, devemos lembrar que seu texto é

bem menor quando comparado com os demais evangelistas. Apenas para menção, João

cita 7 milagres. Tenney (1984, p. 174) justifica tal ênfase de Marcos ao dizer que ele

“estava muito simplesmente mais interessado em fatos do que em teorias”.

Assim como os demais evangelistas, o discipulado também faz parte da narrativa,

“pois apresenta o caminho a ser seguido pelos discípulos de Jesus Cristo” (SIMÕES, 2017,

p. 61). O ministério de Jesus, por cerca de 3 anos, intencionou um preparo junto ao seus

discípulos. Para tanto, Jesus os advertiu das renúncias necessárias e dos desafios postos

para os seus seguidores (8.34-38).

Para alguns pesquisadores, um dos assuntos que permeiam esse evangelho de

forma singular está no fato de que Jesus mantém em segredo o fato de ser o Messias

(segredo messiânico), pois, segundo a percepção de Marcos, o povo não entenderia

(8.27-30) e assim estaria se justificando o fato de que os judeus não creram em Jesus.

Hale (2001), entretanto, discorda dessa questão; para ele, o Evangelho é uma

chamada à fé em Cristo que, como homem, revelou também sua natureza divina. Simões

(2017) entende que Marcos tem uma motivação histórica e teológica sobre o assunto.

Essa autora acrescenta que se deve perceber dois tipos de segredos no texto. O segredo

quanto aos milagres não era obedecido; já quanto ao messianismo em si, tanto os

discípulos quanto os demônios observavam. Horster (1993), em harmonia com Simões

(2017), entende que Marcos quer proteger o ministério do Messias, visto que para Jesus

cumprir sua missão de forma completa ele precisaria de tempo e, assim sendo, revelar

76 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


precocemente sua identidade poderia prejudicar o ministério de Cristo frente aos judeus

e ao poder romano.

3.9 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas

Já discorremos sobre os propósitos fundamentais que suscitaram a escrita dos

Evangelhos de forma geral. Contudo, cada evangelista também deixa transparecer alguns

de seus propósitos específicos que fundamentam a escrita. Em Marcos percebemos que

os aspectos essenciais giram em torno do seguinte:

● Propósito Cristológico: Marcos quer demonstrar que Jesus é o Filho de Deus, o

Messias e redentor da humanidade (1.1; 8.29-30; 9.2-8,41; 11.1-11; 14.61ss etc.),

● Propósito consolador: Marcos fala muito sobre perseguição (8.34-38, 10.30, 33-

45 etc.) e, assim, apresenta aos cristãos que sofrem alguém que também sofreu e

morreu, fazendo, assim, que todos venham se identificar com Cristo (8.31, 9.31,

10.32-34)

● Propósito evangelístico: Marcos coloca o leitor diante da pessoa e da obra de

Jesus Cristo (1.14), ou seja, era “uma declaração clara e completa acerca de Jesus

Cristo” (HALE, 2001, p. 77). Era o Evangelho narrado (Mc 1.1).

● Propósito de fé: Marcos faz um convite para que o seu leitor tenha a fé em Cristo

(5.36, 11.22 etc.)

● Propósito catequético: os principais nomes da igreja primitiva – dentre eles os

apóstolos – estavam sendo martirizados e, assim, se fazia necessário registrar por

escrito os fatos como eles haviam sido dados pelas testemunhas oculares,

77 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● Propósito Escriturístico: Fluck (2020, p.26) afirma que “Marcos enfatiza que Jesus

Cristo é o cumprimento do plano de Deus conforme revelado nas Escrituras (1.1-

4, 15; 4.12; 7.67; 8.18; 11.9-10.17; 12.10-11, 36; 13.24-25; 14.27)”.

De forma prática, Hernandes Dias Lopes (2006) acrescenta igualmente que:

● Marcos tem um propósito claramente querigmático (voltado para a proclamação

– em harmonia com a mensagem pregada pelos apóstolos).

● Marcos enfatiza a popularidade do ministério de Jesus.

● Marcos enfatiza o tema da identidade do ministério de Jesus.

● Marcos põe ênfase na ação.

● Marcos apresenta Jesus como o Filho de Deus.

● Marcos apresenta Jesus como servo.

● Marcos apresenta Jesus como àquele que tem poder para operar milagres.

● Marcos enfatiza o sofrimento de Jesus Cristo.

Simões (20170 ainda faz uma boa síntese sobre a dimensão teológica do

Evangelho de Marcos, destacando os seguintes grandes temas:

● Jesus é o Evangelho; Ele é o mensageiro e a mensagem,

● Jesus é o Messias que proclama o Reino de Deus

● Jesus é o Filho de Deus

● Jesus é o Filho do Homem (aparece 14 vezes e mencionado até 8.31)

78 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● Jesus mostra o caminho do discipulado aos seus seguidores, tanto aos apóstolos

quanto ao restante dos discípulos

● Jesus é o realizador de milagres

3.10 A conclusão (término) do Evangelho de Marcos

Uma questão recorrentemente discutida sobre o Evangelho de Marcos envolve a

sua parte final. De fato, boa parte dos estudiosos afirmam que a seção final que

contempla os versículo 9-20 do capítulo 16 não faziam parte do texto original. E por

que afirmam isso? Em primeiro lugar é porque precisamos reconhecer que essa parte

realmente não consta nos manuscritos mais antigos dos primeiros séculos. E, de acordo

com Hale (2001), é por isso que os primeiros Pais da Igreja (pais apostólicos, do I e II

século) também não citam essa parte.

Alguns acreditam que Marcos, por motivo de perseguição e fuga, não conseguiu

concluir seu Evangelho ou outros acreditam que essa parte se perdeu em algum

momento. Ainda alguns acreditam que Marcos pode ter escrito depois, em Alexandria,

e enviado posteriormente à Roma.

Diferentemente dos primeiros séculos, todavia, os Pais da Igrejas posteriores ao

terceiro século apresentam essa parte final com variações (uma mais curta, outra mais

extensa), estabelecendo, assim, um possível término no Evangelho. Esses biblistas

também afirmam que o término em 16.8 é improvável, porque não faz parte do estilo

de escrita de uma literatura grega (não há precedente) terminar de forma abrupta (como

supostamente termina em 16.8) sem uma conclusão mais marcante como ocorre nos

79 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


demais escritos.

Contudo, ainda que essa parte final não apresente fatos mentirosos (afinal o que

está ali narrado aparece aqui ou acolá nos Evangelhos), a crítica textual tem a tendência

de rejeitar essa parte final (9-20). Para esses eruditos, essa parte pode ser um acréscimo

dos copistas a partir do segundo século – que achavam que o término em 16.8 era

insuficiente –, e que, por isso mesmo, optaram por uma conclusão como uma forma de

repetição ao que já consta em Mateus, Lucas, João e Atos. Horster (1993) discorda e

entende que, mesmo que a questão exija constante reflexão, há a possibilidade desse

final ter saído, ainda que posteriormente, das mãos do próprio Marcos.

Por fim, é bom ressaltar que essas hipóteses e especulações são apenas

conjecturais. Dito isto, reconhecemos que o texto que temos em mãos é aquele que

Deus permitiu que nós recebêssemos e utilizássemos.

3.11 Assuntos exclusivos

Como já constatamos, o Evangelho de Marcos serviu como base para a escrita

dos Evangelhos de Mateus e Lucas (mais de 90% estão nos dois Evangelhos sinóticos).

Contudo, ainda assim há alguns textos exclusivos neste Evangelho. São eles:

● 4.26-29 – A Parábola da Semente

● 7.31-37 – A cura do homem surdo e do gago

● 8.22-26 – O cego curado em Betsaida

● 11.25-26 – O perdão condicionado à nossa disposição de perdoar

80 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● 14.51-52 – O jovem que fugiu desnudo.

● 16.14-18 – A Grande Comissão (?)

3.12 Algumas curiosidades

Fluck (2020, pp. 21-22) destaca o Evangelho de Marcos parte do pressuposto de

uma continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Para ele:

João Batista é a figura que significa essa conexão. O começo do

evangelho de Jesus Cristo é relacionado ao que foi escrito por Isaías:

Preparai o caminho do Senhor (Marcos 1.3). João Batista é

apresentado então como esta ponte entre a antiga e a nova aliança.

Em João Batista, o Espírito Santo gritava no deserto, preparando o

caminho do Senhor Jesus. É o mesmo Deus que atua agora pelo

seu mensageiro. Marcos vinculou o final de Malaquias (o último

profeta do Antigo Testamento) e o texto do profeta Isaías que fala

do envio do precursor do Messias, personificado em João Batista, o

qual pregou batismo de arrependimento para perdão de pecados.

(Marcos 1.4)

Alguns estudiosos defendem que a casa onde a Última Ceia foi celebrada, era a

casa dos pais (ou, pelo menos, a mãe) de Marcos e que o Jardim de Getsêmani, onde

81 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Jesus passou os últimos momentos antes de ser preso, também pertencia à família do

evangelista. Ainda que haja muita especulação nessas afirmações, se pelo menos parte

disso for verdade, é bem possível, também, que tenha sido nesse mesmo lugar os

apóstolos receberam a visita do Espírito Santo, após a ressurreição.

Outros sugerem que Marcos pode ter aparecido em sua própria narrativa quando

fala, por duas vezes, de um jovem que estava coberto com um lençol branco e que

acompanhava Jesus, no Getsêmani, no dia de sua prisão (14.51-52). Essa última também

parece ser mera especulação.

Por fim, Tenney (1984) destaca que Marcos é o Evangelho das reações pessoais.

Não obstante, encontramos reações como: admirados (1.27), criticavam (2.7), medrosos

(4.41), perplexos (6.14), espantados (7.37), hostis (14.1) etc., pois há cerca de 23

referências semelhantes. Simões (2017) indica que o evangelista também utiliza diversos

diminutivos, tais quais: filhinha (5.23, 7.21), cachorrinhos (7.27), peixinhos (8.7) etc.

3.13 Conclusão

Marcos define o tema de seu escrito desde o início. Em 1.14-15 ele demonstra

qual é a missão de Jesus: “pregar o Evangelho de Deus e o Reino de Deus”. Trata-se,

portanto, de um convite ao leitor para que se arrependa e creia em Jesus.

Se considerarmos que o final de do Evangelho faz parte de seu texto, constatamos

que o texto é concluído com a grande comissão em 16.15, evidenciando, assim, que a

mensagem continua a mesma e cabe à igreja anunciar o Evangelho do Reino em todo

o mundo. O Evangelho de Marcos por inteiro é uma grande comissão!

82 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


A partir da apresentação do Evangelho de Marcos, Jesus não é somente o anúncio,

mas ele é o primeiro que divulga e apresenta o Evangelho. Afinal, ele se auto apresenta

como “o evangelho de Deus”, em outras palavras a “boa nova” que Deus apresenta ao

mundo através dele seu filho

83 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


84 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC
Unidade Revisional 1
Nas três primeiras unidades do primeiro módulo desta disciplina aprendemos

alguns aspectos destacados abaixo:

● Unidade 1

○ Para melhor entendermos os Evangelhos, precisamos voltar na história para

compreender o mundo e a transição que ocorre entre o fim da mensagem

do AT, o período intertestamentário e o início da mensagem do NT por

meio dos Evangelhos,

○ Muitos aspectos sociais, políticos, históricos, culturais e religiosos que

antecedem a mensagem dos Evangelhos precisam ser conhecidos, visto

que eles podem interferir numa melhor compreensão do que está

acontecendo no tempo do ministério público de Jesus,

○ O cenário do Novo Testamento apresenta vários termos e conceitos, que

são desconhecidos no período do Antigo Testamento. Estes fatos surgem

na narrativa do NT, mas, não estavam presentes no AT. Porém, os escritores

bíblicos do NT apresentam esses fatos como algo que já faz parte da vida

cotidiana das pessoas no ambiente do NT. Portanto, precisamos conhecer

estes fatos para que possamos entender melhor o que está acontecendo

no mundo dos Evangelhos,

85 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


○ Precisamos conhecer o Período Intertestamentário, que nada mais é que

um momento que teve a duração aproximada de 400 anos, entre o fim do

ministério profético do AT e o início da pregação de João Batista. Ele é

caracterizado pelo silêncio profético e a maioria das informações sobre esse

tempo podem ser encontradas nos livros deuterocanônicos de Macabeus e

nos livros históricos de Flávio Joséfo,

○ Antes de se encerrar a revelação bíblica do AT, o povo de Deus teve que

enfrentar a dominação de grandes impérios da história, tais quais:

Babilônico e Medo-Persa. E já no período intertestamentário, os Gregos

dominaram Israel.

○ Todos esses impérios influenciaram, positiva e negativamente, o povo de

Deus, por meio dos seus costumes culturais (religião, língua, comércio etc.),

○ Os babilônicos exilaram o povo de Deus, os persas permitiram o retorno

dos judeus às suas terras e deram mais liberdade a eles. Por sua vez, os

gregos, inicialmente, foram brandos, porém, depois, agiram com truculência

por meio dos generais que passaram a governar o mundo. Entre eles,

Antioco Epifânio causou muitos males aos judeus e à forma como os judeus

viviam a sua fé,

○ Os abusos, principalmente espirituais, incitaram uma revolta entre os

judeus, dando início ao período Macabeu ou Hasmoneu (166-37 a.C.).

Contudo, depois de problemas de conflito em relação ao poder, mais uma

vez a região dos judeus passou a ser dominada por um povo estrangeiro,

86 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


dando início ao Período Romano (63-135 d.C.), que era o império

dominante durante o ministério de Jesus e o ambiente em que as histórias

narradas nos Evangelhos ocorreram,

○ Além dos poderes políticos, há também uma transição entre o mundo do

AT e do NT em relação as aspectos religiosos. É durante a após a

dominação dos babilônicos que começam a surgir algumas instituições

religiosas que estão bem atuantes no contexto dos Evangelhos,

○ A Sinagoga, como um lugar de culto, oração e educação, possivelmente

surgida durante o exílio babilônico, foi muito importante nas narrativas do

NT. Jesus e os apóstolos frequentavam as Sinagogas e elas foram muito

úteis para a expansão da fé cristã,

○ O Templo de Jerusalém também passou por várias transições entre o AT e

o NT. O primeiro Templo, sonhado por Davi e construído por Salomão, foi

destruído no contexto da dominação babilônica. No retorno dos Judeus à

Jerusalém, durante a dominação persa, o Templo foi novamente

reconstruído, ainda que de forma mais simples. No contexto que antecede

aos Evangelhos, já no período romano, o Templo passou por longos anos

de reforma, tornando-se conhecido como o Templo de Herodes,

○ Outra instituição religiosa importante foi o Sinédrio, que era uma

Assembleia formada por 71 anciãos da classe dominante e de linhagem

sacerdotal, normalmente presidida pelo sumo sacerdote. Eles exerciam

muita influência e poder político, civil e religioso durante o NT,

87 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


○ Também no ambiente dos Evangelhos, o NT relata a existência de alguns

grupos/partidos ou seitas religiosas que surgiram entre o povo de Israel.

São eles: fariseus, saduceus, zelotes, essênios, herodianos e zadoqueus,

○ Durante todo esse período muitos textos não canônicos surgiram e

influenciaram a forma de viver e crer dos judeus. Ainda que não sejam

considerados inspirados por Deus, eles são uteis em seu caráter histórico e

teológico,

○ Por fim, constatamos que todo esse período, marcado por muitas

transformações, contribuíram para que, no tempo certo e determinado,

Deus revelasse ao mundo o seu plano por meio de Jesus Cristo. Isto é o

que a Bíblia chama de plenitude dos tempos, sendo que, os fatores

religiosos, sociais, políticos, econômicos, culturais e geográficos

contribuíram para que tudo ocorresse da melhor forma possível para que

a mensagem sobre Cristo se espalhasse ao mundo.

● Unidade 2

○ Na segunda unidade fizemos uma introdução aos Evangelhos e tratamos

da questão sinótica,

○ Destacamos a importância dos Evangelhos e sua centralidade bíblica na

revelação de Deus aos seres humanos, afinal, muito do que conhecemos

sobre Jesus e a Sua obra, estão amplamente narrados pelos quatro

evangelistas,

88 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


○ Para além de um gênero literário distinto e específico, os Evangelhos têm

a ver com Jesus. Jesus é a mensagem e o mensageiro; Jesus é o próprio

Evangelho, Ele é a Boa-nova!

○ Entendemos que a principal motivação que levou os evangelistas a

escreverem é a mesma de João: “Estes, porém, foram registrados para que

vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,

tenham vida em seu nome” (Jo 20.31, NAA). Portanto, os Evangelhos

existem com o propósito principal de fazer com que as pessoas creiam em

Cristo,

○ Aprendemos que o termo grego euangelion, ou seja, Evangelho, não era

desconhecido dos judeus, dos cristãos ou dos demais cidadãos daquela

época. Os governantes utilizavam o termo para se referir às supostas boas-

notícias dadas pelo mensageiro imperador sobre fatos que envolviam o

próprio imperador (seu nascimento, suas vitorias etc.). Os judeus já tinham

visto o termo no AT, na tradução grega chamada de Septuaginta. Por isso,

foi fácil para os cristãos entenderem e aplicarem o termo,

○ Contudo, na fé cristã o termo Evangelho ganhou uma conotação toda

especial, pois, de fato, agora a palavra estava relacionada à uma boa notícia.

A designação virou até um gênero literário que procurava descrever a vida

de Jesus – seu nascimento, sua vida, seu ministério, sua pregação, sua morte

na cruz, sua ressurreição ao terceiro dia, sua ascensão aos céus e sua

promessa de retorno a este mundo,

89 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


○ De forma prática, outras razões que instigam a escrita dos evangelhos são

bem variadas. Entre outros, envolvia questões de catequese e instrução, e

de registro e preservação dos escritos,

○ O processo de formação dos Evangelhos foi natural e gradual. Sob uma

perspectiva da Tradição Oral, começou com a proclamação de Jesus e se

estendeu durante a proclamação dos apóstolos. Em seguida, junto à

transmissão oral, pequenas porções (ditos de Jesus) com ensinos e relatos

de milagres começaram a ser produzidas e compartilhadas. Finalmente,

esse material foi compilado e organizado, dando origem ao que temos hoje

como um texto pronto e acabado,

○ Em relação às formas narrativas, há uma variedade de recursos literários

que foram utilizados na escritas dos Evangelhos,

○ Uma questão importante no estudo dos Evangelhos é a questão sinótica,

visto que, muitos textos dos três primeiros evangelistas se assemelham,

○ A questão sinótica tem a ver com desenvolver diferentes narrativas, por

diferentes pessoas que tiveram o mesmo ponto de vista na forma de contar

suas histórias e foi exatamente isso que, diferentemente de João, os

evangelistas Mateus, Marcos e Lucas fizeram,

○ Existem muitas teorias que tentam explicar como se deu esse processo. Até

agora, a mais coerente defende que Marcos foi o primeiro a escrever e que

o que ele escreveu serviu de base e inspiração para Mateus e Lucas, visto

que, os textos destes últimos, seguem um padrão bem aproximado ao que

90 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


escreveu o primeiro, tanto na escolha dos termos como na forma de

apresentá-los,

○ Contudo, isso não quer dizer que Mateus e Lucas também não tenham

utilizado uma fonte comum entre eles, chamada de “fonte Q” e que ambos

não tenham utilizado fontes exclusivas (fonte M e fonte L).

● Unidade 3

○ Na unidade três começamos a falar diretamente sobre o Evangelho de

Marcos que, como se acredita atualmente, foi o primeiro Evangelho a ser

escrito,

○ Entendemos que, apesar de o autor ser anônimo, João Marcos, um

personagem bem presente nas páginas do NT e nos ministérios de Paulo,

Pedro e Barnabé, é o autor do Evangelho que leva seu nome,

○ Considerando a autoria de Marcos e o contexto em que ele estava inserido,

conforme afirmado por várias fontes da tradição histórica da igreja dos

primeiros séculos, pressupõe-se que Marcos escreveu sua obra a partir de

Roma, numa data aproximada a 64/65 d.C.,

○ Em harmonia com os aspectos acima, constatamos igualmente que o

público-alvo são os gentios e que, é bem provável, que sejam os cristãos

de Roma. Contudo, isso não quer dizer que o escrito de Marcos não tenha

alcançado outras igrejas cristãs gentílicas daquele tempo e que nós

também somos o alvo desse evangelho,

91 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


○ Em seu gênero literário, Marcos deixa claro que sua pretensão de escrita é

apresentar o Evangelho de Jesus Cristo (Mc 1.1). Para tanto, além de estar

caracterizado pelo gênero literário do Evangelho, Marcos faz seleção de

relatos sobre os atos e discursos de Jesus, utilizando-se do ponto de vista

geográfico para descrever onde começa (na Galileia) e onde termina (em

Jerusalém) o ministério de Jesus,

○ Em seu estilo, Marcos é caracterizado em focar nos atos de Jesus, de forma

prática, concisa, rápida, clara, direta e focada na ação,

○ De forma simples e abreviada, o esboço do Evangelho está aportado nas

etapas geográficas do ministério de Jesus, sendo o início na Galileia, o meio

na viagem para a Judeia e o fim em Jerusalém, onde ocorre a Paixão,

○ O texto chave é: “A boa notícia que fala a respeito de Jesus Cristo, Filho de

Deus, começou a ser dada” (Mc 1.1 – NTLH)

○ Para o Evangelista Marcos Jesus é: o Filho do Homem que sofreu por nossa

causa como um servo (10.45), o Filho de Deus que venceu o mal, isto é, o

diabo (5.1-20), o Messias prometido (9.36-37) e o Mestre (Rabi) (10.17),

○ Os principais assuntos tratados por Marcos são: o Reino de Deus, os

milagres realizados por Jesus, o discipulado como um caminho para quem

deseja seguir ao mestre e o segredo messiânico,

○ Entre outros aspectos, os propósitos centrais são: Cristológico, consolador,

evangelístico, escriturístico, catequético e de estímulo à fé,

92 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


○ Constatamos que o final do Evangelho de Marcos (16-9-20) faz parte de

um debate acirrado entre os biblistas e estudiosos da crítica textual. Alguns

acreditam que o final pode ter sido escrito por Marcos e ter sido incluído

em cópias posteriores; já outros acreditam que se trata apenas de um

acréscimo de copistas do segundo século,

○ Marcos também apresenta alguns textos que são exclusivos em sua

narrativa. São eles: 4.26-29 (A Parábola da Semente), 7.31-37 (A cura do

homem surdo e do gago), 8.22-26 (O cego curado em Betsaida), 11.25-26

(O perdão condicionado à nossa disposição de perdoar), 14.51-52 (O jovem

que fugiu desnudo),

○ Como curiosidade, alguns acreditam que o lugar da última ceia, do Jardim

do Getsêmani e da descida do Espírito Santo sejam da família de Marcos.

Por sua vez, alguns sugerem que Marcos pode ter aparecido em sua própria

narrativa quando fala por duas vezes de um jovem que estava coberto com

um lençol branco e que acompanhava Jesus, no Getsêmani, no dia de sua

prisão (14.51-52). Contudo, é importante entender que são apenas

especulações.

93 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Atividades de Aprendizagem

Avaliação por fórum

Nesse Fórum, vamos avançar no caminho da pesquisa científica e do

compartilhamento do conhecimento com colegas de estudo.

Para tanto, vamos promover uma discussão aqui neste espaço da seguinte forma:

Leia as páginas indicadas da seguinte obra:

● COLLI, Gelci André. Panorama Teológico do Novo Testamento.

Curitiba: Intersaberes, 2017 (páginas 11-44)

Posteriormente, cada aluno precisa realizar uma postagem sobre o que mais

achou interessante no texto.

Em seguida, temos duas etapas complementares:

● Responda a, no mínimo, 2 postagens de seus colegas

● Responda a, no mínimo, 2 respostas de seus colegas na sua postagem

Depois, envie o arquivo final, em PDF, através do AVA, contendo:

● Sua postagem principal

● Suas respostas aos dois colegas

● Suas interações com os colegas que responderam sua postagem

● Entregue o trabalho impresso em seu polo de origem

94 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


95 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC
96 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC
4

O Evangelho de Mateus
Ainda que, conforme se constatou na unidade anterior, Marcos possivelmente seja

o primeiro Evangelho escrito, de acordo com algumas citações encontradas na história

do cristianismo, o Evangelho de Mateus foi o mais utilizado em comparação com todos

os outros. Ele é o Evangelho que mais influenciou a primeira geração de cristãos

(HORSTER, 1993). Afinal, no início do segundo século ele já era conhecido em

praticamente todo o cristianismo da época (HALE, 2001) e “já aparecia em primeiro lugar

nos antigos manuscritos bíblicos” (SIMÕES, 2017, p. 61).

Numa perspectiva mais ampla, até hoje o Evangelho segundo escreveu Mateus é

uma referência acadêmica e teológica sobre a pregação de Jesus. Por isso, o aspecto

doutrinal se ressalta nesse Evangelho, tanto pelos ensinos realizados pelo Mestre como

pelos temas que intencionalmente são destacados em toda a obra. De forma singular,

esse Evangelho consegue construir uma ponte fundamental entre o Antigo Testamento

e o Novo Testamento, estabelecendo uma harmoniosa unicidade entre os testamentos.

É justamente sobre o evangelho de Mateus que vamos estudar nessa unidade.

Objetivamente, vamos discorrer sobre questões de autoria, data e local de escrita,

propósito e mensagem, público-alvo, estilo, esboço, entre outras questões especificas

sobre esse Evangelho.

97 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


4.1 Autoria
Assim como ocorre com todos os Evangelhos, no livro de Mateus também não

temos informações sobre quem, de fato, é o autor. Trata-se, portanto, de uma autoria

anônima. Todavia, ainda que não exista exatidão em relação à autoria, como há em

outras obras, esse primeiro Evangelho do cânon neotestamentário é reconhecido pela

tradição da igreja como resultado do trabalho de Mateus. Nesse sentido, como afirma

Horster (1993, p. 36) o “nome de Mateus é citado no título do evangelho que surgiu no

segundo século e a partir daí foi incorporado a tradição”. Porém, antes de

aprofundarmos a questão histórica sobre a autoria, importa lembrar quem é esse

personagem do NT.

Ele é um dos doze que consta em todas as listas de apóstolos (Mt 10.3; Mc 3.18;

Lc 6.15, At 1.13). Seu nome hebraico é Matatias (SIMÕES, 2017) e ele é filho de Alfeu

(Mc 2.14). Como Tiago, um dos doze, também tinha um pai com esse nome (Mt 10.3),

fica a dúvida se eles eram irmãos. Em Mateus 9.9-13 há o relato do seu chamado e em

10.3 ele é denominado como um publicano (cobrador de impostos). Simões (2017, p.

78) ressalta que esse Mateus era “um judeu-cristão muito bem instruído nos métodos

dos escribas”.

Marcos e Lucas o chamam de Levi (Mc 2.13-17; Lc 5.27-32), o que pode pressupor

que ele tinha dois nomes, ou seja, seu nome poderia ser Levi Mateus ou, talvez, após a

sua conversão o nome Mateus tenha sido atribuído a ele, afinal, isso não é incomum na

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história bíblica e nos relacionamentos de Jesus com seus discípulos. Hale (2001) cogita

a possibilidade de que o termo Levi (Leuín) utilizado por Marcos e Lucas poderia ser

traduzido como levita, o que pode pressupor que ele pertencia à tribo de Levi e não

que, necessariamente, Levi era o seu nome.

Não obstante, é interessante notar que, diferentemente de Marcos e Lucas, o

próprio Mateus, quando descreve seu encontro com Cristo e seu respectivo chamado,

prefere, ele mesmo, utilizar Mateus. Apesar disso, não temos dados suficientes para

chegar a qualquer conclusão; o que temos são apenas especulações – às vezes

divergentes – entre os estudiosos.

Sob a perspectiva da tradição da igreja, Papias (antes de 70-155 d.C., bispo em

Hierápolis, discípulo de João), Orígenes (185-253 d.C., teólogo, filósofo, um dos Pais da

Igreja), entre outros, também afirmam que Mateus é o autor desse Evangelho. Eusébio,

bispo em Cesareia, na obra “História Eclesiástica” escrita no século IV, afirma que Marcos

e Lucas já tinham publicado seu Evangelho e que agora,

Com efeito Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus,

quando estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu

Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da

escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem se

afastava

(CESAREIA, 2002, p. 65, Livro III, XXIV, 6)

Mesmo diante das contribuições de Clemente, Irineu, Inácio, Papias, Origenes e

Eusébio que, num consenso, atribuem esse Evangelho à autoria de Mateus, existem

99 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


alguns questionamentos “se esta associação era com um dos Evangelhos completados

ou com uma das fontes” (HALE, 2001, p. 86). De forma prática, a dúvida recai se as

primeiras fontes que circulavam na Palestina, escritas em aramaico (ou hebraico), que

são descritas por Eusébio ao se referir à “língua materna” de Mateus, sejam o alvo das

afirmações dos escritores dos primeiro séculos ou se o Evangelho pronto, em língua

grega seja o objeto das mesmas informações.

Nesse sentido, pode ser que o que é chamado de Evangelho de Mateus num

primeiro momento seja, na verdade, a Logia de Jesus (coleção dos ditos de Jesus, com

ensinos e relatos de milagres). Por isso, muitos afirmam que orginalmente esse

Evangelho – ou parte dele – foi escrito na língua hebraica (ou aramaica) e que traduções

foram sendo realizadas e compartilhadas pela igreja. Deste modo, pode ser que, apenas

mais tarde, “uma edição grega substituiu complemente a hebraica, ou aramaica, uma

vez que não foi encontrado nenhum fragmento de um Mateus em aramaico ou hebraico”

(HALE, 2001, p. 87). Ressalte-se que não se trata de uma tradução do aramaico/hebraico

para o grego; as cópias que temos desse Evangelho evidenciam que ele foi mesmo

escrito em grego. Tenney (1984) sugere que pode ter havido uma edição e não uma

tradução do aramaico.

Como se constata, a questão é complicada. Hale (2001) sugere possíveis soluções

que, ressalte-se, são apenas possibilidades. Para ele, pode ter acontecido que (1) Papias,

que foi o primeiro a dizer que Mateus escreveu o Evangelho em hebraico, se enganou,

visto que o estilo e a natureza da obra são bem judaicos. Pode ser também que (2)

Mateus fez uma primeira composição (Logia) em hebraico que serviu como base para a

100 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


redação final do Evangelho que pode ter sido compilado por Mateus ou outro escritor.

Horster (1993) segue esse raciocínio, acreditando que é um outro escritor que fez a

compilação final. Finalmente, (3) pode ser que Mateus escreveu uma primeira versão em

hebraico/aramaico (Logia) antes da circulação do Evangelho de Marcos e que,

posteriormente, usou Marcos como sua base grega em harmonia com outras fontes

(tanto as próprias, como outras). Tenney (1984) aponta essa possibilidade sugerindo que

a obra grega rapidamente substituiu a anterior.

A verdade é que não temos uma resposta para essas questões. Contudo, um fato

se evidencia de forma significativa, afinal, desde os primeiros séculos da Era Cristã já se

tem afirmações consistentes e suficientes de que Mateus escreveu um Evangelho e,

assim, resta pouca dúvida de que, seja numa edição anterior em hebraico/aramaico ou

mesmo numa redação posterior escrita na língua grega – como ora a concebemos –

Mateus está diretamente vinculado como autor desse Evangelho.

Após a descrição dele em Atos 1.13 como um dos apóstolos, Mateus desaparece

das narrativas bíblicas. As variadas histórias afirmam que ele evangelizou a Etiópia, a

Macedônia, a Síria, a Pérsia e Média. Alguns afirmam que ele morreu de morte natural,

mas há uma boa possibilidade real que ele tenha sido martirizado com ferimento por

espada na Etiópia (HALE, 2001).

4.2 Data e local da escrita

Qualquer tentativa de estabelecer uma data de escrita para o Evangelho de

Mateus – assim como ocorre com os demais Evangelhos –, será mera aproximação.

101 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Nesse sentido, podemos situar a escrita do Evangelho de Mateus entre os anos 60 e 70

d.C. Alguns, como Simões (2017) e Fluck (2020) tendem a situar a escrita desse Evangelho

em um data posterior ao ano 70 d.C., pelo fato de, entre outros aspectos, existirem na

narrativa de Mateus textos que descrevem a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C.

Contudo, estes textos (capítulos 22 e 24) sugerem mais uma predição do que uma

informação. Por sua vez, Tenney (1984) diz que a tradição da igreja, por meio do

testemunho de Irineu, afirma que o Evangelho tinha sido escrito enquanto Paulo e Pedro

ainda estavam em Roma. Se essa afirmação for verdadeira, essa é mais uma razão para

situarmos a escrita antes dos anos 70 d.C.

Fluck (2020) acredita que o Evangelho de Mateus foi escrito entre 80-100 d.C.

Simões (2017) sugere a escrita depois de 80 d.C. Tenney (1984), sem definir um ano

específico, afirma que, possivelmente, o texto foi escrito entre 50 e 70 d.C. Horster (1993)

sugere o ano de 66 d.C. Hale (2001) sugere uma data inicial de 65 d.C., mas, que, porém,

pode se estender até 75 d.C., principalmente pelo fato de ser um período marcado pela

separação definitiva do cristianismo em relação ao judaísmo. Em síntese e diante de

tudo o que já discorremos, podemos situar a escrita do Evangelho escrito Mateus em

uma data aproximada entre os anos 65-70 d.C.

Acredita-se que Mateus tenha escrito o Evangelho em algum lugar da Palestina.

Simões (2017), Tenney (1984) e Horster (1993) indicam que possivelmente esse lugar é

a cidade de Antioquia da Síria, que era um lugar estratégico e importante para o

cristianismo. Tenney (1984) acrescenta que uma versão grega do Evangelho tenha sido

elaborada exatamente para atender as necessidades dessa igreja e que a partir dela o

102 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


texto se espalhou por outras igrejas gentílicas que cresciam em número, superando as

igrejas de fala aramaica.

Como já se constatou na unidade de introdução aos Evangelhos, a fonte de escrita

de Mateus passa, essencialmente, por uma cópia grega do Evangelho de Marcos (que é

um importante referencial em toda a obra de Mateus ainda que, por vezes, altere a

forma de uso) e pela Fonte “Q” (utilizada por Lucas também). Simões (2017) destaca

que Mateus é, de fato, uma síntese dessas duas fontes. Ainda assim, esse Evangelho

também utiliza uma fonte designada “M”, que se caracteriza por ter material exclusivo

de Mateus. Aliás, cerca de 1/5 do livro de Mateus não está em Marcos e Lucas e, assim,

Mateus poderia ter utilizado em sua composição outras fontes orais e escritas. Em

síntese, caracterizado como um trabalho de compilação e reelaboração, Mateus contém

muito material de Marcos, tem um significativo material em comum com Lucas e um

pouco de material que é exclusivo dele.

Eusébio de Cesareia destaca que entre outros escritos do NT apenas João e

Mateus deixaram por meio de seus escritos “memórias das conversações do Senhor”

(CESAREIA, 2002, p. 65, Livro III, XXIV, 5). Deste modo, o fato de ter sido um dos doze e

de ter convivido com Jesus durante cerca de três anos, podem certamente ter

contribuído para uma percepção exclusiva de Mateus sobre Jesus seu ministério.

4.2 Público-alvo

Como constatamos acima, é bem possível que o Evangelho de Mateus, antes de

escrito, tenha sua origem nas pregações de Mateus aos hebreus. Este fato é super

103 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


interessante, afinal, por ter sido um publicano, Mateus era alguém desprezado e rejeitado

pelos judeus. Ele era um israelita a serviço de um poder estrangeiro, e por isso mesmo,

era considerado um traidor e um aproveitador (ladrão). No aspecto religioso, ele era um

impuro que não podia realizar seus ritos religiosos. Entretanto, de forma graciosa, Mateus

é o Evangelho “mais judaico dos quatro” (HALE, 2001, p. 85), sendo praticamente certo

que esse texto foi escrito tendo os judeus cristãos, que tanto o odiaram no passado,

como público-alvo (HORSTER, 1993; HALE, 2001).

Essa percepção de uma autoria mateana com foco nos judeus é ressaltada por

Irineu (130-202 d.C., bispo, teólogo, um dos Pais da Igreja e considerado pai da ortodoxia

cristã) que, quando citado por Eusébio de Cesareia, diz que “Mateus publicou entre os

hebreus, em sua própria língua, um Evangelho também escrito, enquanto Pedro e Paulo

estavam em Roma evangelizando e lançando os fundamentos da Igreja” (CESAREIA,

2002, p. 108, Livro V, VIII, 2). Na mesma obra, Eusébio cita Orígenes para afirmar que

Mateus “publicou para os fiéis procedentes do judaísmo” (CESAREIA, 2002, p. 137, Livro

VI, XXV, 4).

Para além disso, algumas evidências internas do próprio livro corroboram tal

possibilidade. A linguagem, a forma, as categorias de pensamento, a citação de costumes

judaicos sem explicações (Ex.: Mt 15.2 com Mc 7.2) e a ênfase no Antigo Testamento

demostram que o leitor estava bem familiarizado com o conteúdo. De fato, em Mateus,

há uma forte dependência da religiosidade judaica e um estreito vínculo com a Lei

mosaica (Mt 5.19; 23.3). Em sua escrita, Mateus pressupõe que o leitor conhece bem os

diferentes grupos religiosos de Israel (fariseus, saduceus etc.) e as expressões aramaicas

104 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


comuns apenas aos judeus (5.22, 27.6). Diferentemente dos outros evangelistas, Mateus

utiliza a expressão “Reino dos Céus” (33x) ou “Reino” (15x) em vez de “Reino de Deus”

(4x), afinal os judeus tinham sérias restrições em pronunciar o nome de Deus.

Mateus também faz uma série de citações reflexivas que se baseiam em alguns

acontecimentos da vida de Jesus, estabelecendo uma direta relação com o AT e as suas

promessas. Aliás, conforme pontua Hale (2001), existem mais de cem citações (40 diretas

e 61 alusões) do Antigo Testamento na obra, antecedida pela expressão “está escrito”.

Nessa perspectiva, procurando deixar claro esse vínculo entre os testamentos, que

converge no fato de que o Cristo dos Evangelhos é realmente o cumprimento das

promessas das Escrituras hebraicas sobre o Messias, Mateus usa frequentemente a

expressão “para que se cumprisse” em sua obra. Por isso, como diz Fluck (2020, p. 34),

“Mateus interpreta as Escrituras na ótica de profecia e cumprimento”

Vejamos no quadro abaixo uma comparação dessa relação do cumprimento com

o que foi profetizado:

Cumprimento (NT) Profecia (AT)

1.22-23 Is 7.14

2.6 Mq 5.1-3

2.15 Os 11.1

2.17 Jr 31.15

3.3 Is 40.3

4.14-16 Is 8.23 – 9.1

8.17 Is 53.4

105 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


12.17-21 Is 42.1-4,9

13.33-35 Sl 78.2

21.4-5 Is 62.11, Zc 9.9

21.42 Sl 118.22

22.44 Sl 110.1

26.31 Zc 13.7

26.64 Dn 7.13

27.9ss Zc 11.13, Jr 18.2ss

27.34, 48 Sl 69.21

27.35 Sl 22.18

27.39-40 Sl 22.7

27.43 Sl 22.8

27.46 Sl 22.1

27.57-60 Is 53.9

28.19-20 Is 66.18

Quadro 5: cumprimento das profecias.


Fonte: Elaborado pelo Autor

Contudo, Simões ajuda a ampliar a compreensão sobre o público-alvo desse

evangelho ao dizer que o foco principal de Mateus é realmente formado pelos judeu-

cristãos, possivelmente de Antioquia da Síria, mas, que, por se tratar de uma comunidade

de centro urbano, “também havia judeu-cristãos helenistas e, provavelmente, cristãos

procedentes do paganismo” (2017, p. 97). Sem dúvida, podemos dizer que nós também

somos o alvo desse Evangelho.

106 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


4.3 Gênero literário

Em termos literários temos nas mãos um Evangelho que, por si só, já é um gênero

literário específico. Contudo, em termos dos recursos utilizados, Mateus é distinto

quando comparado aos outros sinóticos. Além de desenvolver sua narrativa utilizando

vários recursos de estilo semita, Mateus prefere textos mais breves quando comparados

a Marcos, por exemplo. Segundo Horster (1993, p. 33) trata-se de “uma formulação mais

resumida e mais exata”.

Há, ainda, uma questão de estrutura literária que segundo Horster (1993, p. 32)

se destaca. Para ele, a “característica mais importante do Evangelho de Mateus é a

sequência de discursos”. São textos reunidos intencionalmente pelo autor em sequencias

temáticas que, com o objetivo de ensinar, são transmitidos por meio de sermões

interligados entre si.

Mateus utiliza-se também das parábolas sobre o Reino de Deus (HORSTER, 1993,

p. 31) e estas constituem parte importante de sua estratégia de ensino sobre o Reino.

Na terceira seção da obra (11.2 – 13.53), Mateus dá um grande destaque às parábolas

(8 ao todo), de uma forma simples e em maior conjunto, procurando retratar coisas

comuns da vida cotidiana com os valores eternos do Reino dos céus. Em outras partes,

ele retoma as parábolas a fim de trazer novos ensinamentos aos seguidores de Jesus.

4.4 Estilo

Mateus também aplica seu próprio estilo nas narrativas que apresenta sobre Jesus.

Enquanto Marcos valoriza a ação, Mateus dá um valor superior aos ensinos de Jesus e

107 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


ele organiza esses ensinos em blocos. Tenney (1984) ressalta que os ensinos de Jesus

ocupam três quintos de todo o Evangelho. Normalmente, sua escrita contém narrativas

históricas que geram discursos proferidos por Jesus que se apresentam em sequências

temáticas (Ex.: Sermão do Monte). No quadro abaixo, na secção esboço/estrutura, será

possível perceber esse aspecto. Em semelhança a Marcos, Mateus organiza o seu material

seguindo o mesmo ponto de vista geográfico (Galileia – Região da Galileia – viagem

para Jerusalém – Jerusalém). Após a ressurreição, a aparição de Jesus aos seus discípulos

se dá novamente na Galileia.

Hale (2001, p. 85) destaca uma característica singular nesse Evangelho ao afirmar

que o “estilo claro e explanativo do autor é facilmente adaptado para a leitura pública”.

Tenney (1984) acrescenta a característica mateana de apresentar frases repetidas. Simões

(2017) lembra que são repetições de palavras chaves do texto, como exemplo a palavra

justiça (7x) entre os capítulos 5-7. Entre outras, as palavras mais repetidas são: irmão

(39x), Cristo (16x), recompensa (10x), juízo 12x), justo (17x), mau (26x) etc.

Alguns dizem que esse Evangelho era um lecionário e que, assim sendo, ele tem

por finalidade registrar a vida e o ministério de Jesus com o objetivo de que seja lido

nos cultos (HORSTER, 1993). Há ainda a possibilidade de que exista uma escola teológica

por trás do Evangelho e que, portanto, ele serviu para instruir líderes e mestres da igreja

primitiva. Assim, o que foi ensinado resultou no Evangelho que foi utilizado pela igreja

primitiva na catequese/discipulado dos novos convertidos, em um período de “crescente

separação entre a sinagoga e a igreja” (HALE, 2001, p. 86).

108 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


4.5 Breve estrutura/esboço

Um dos aspectos que se ressaltam na estrutura do Evangelho de Mateus é a sua

divisão em cinco seções, organizada de maneira lógica e sistematizada, por meio de

blocos que contemplam uma narrativa inicial que é seguida por um discurso de Jesus.

No quadro abaixo uma seção será acrescentada ao final apenas para evidenciar o esboço

de todo o livro. Contudo, lembremos que a ênfase está nas cinco seções marcadas pelo

discursos de Jesus.

Normalmente, essas seções terminam com a expressão “quando Jesus acabou de

proferir essas palavras” (7.28, 11.1, 13.53, 19.1, 26.1). Simões (2017) destaca que o uso

desse recurso didático permite concluir o discurso e estabelecer uma transição com o

discurso seguinte.

Alguns sugerem que Mateus fez essa divisão em cinco partes em alusão (e possível

substituição) do Pentateuco, o que parece ser mera especulação, afinal, Jesus cumpriu,

respeitou, ampliou e reinterpretou a Lei mosaica. Como afirma Tenney (1984), no próprio

Sermão do Monte – que é central em Mateus – Jesus valoriza a Lei, mas demonstra que

está acima dela por causa da Sua plena Santidade. Como afirma Fluck (2020, p. 34), “a

lei é resumida por Jesus no Evangelho. Ela é cumprida pela graça de de Deus atuante

no ser humano. Cristo cumpriu a lei por nós”.

Ainda que existam blocos menores de discursos entre os textos mencionados

abaixo, em acordo com Hale (2001) podemos sugerir a seguinte estrutura:

109 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Texto e tema Conteúdo

1. O Reino: sua natureza e características ● Narrativa Introdutória (4.12-25)

(4.12-7.28) ● Discurso (5.1-7.28)

2. Apresentação e propagação ● Narrativa Introdutória (8.1-9.34)

do Reino ● Discurso (9.35-11.1)

(8.1-11.1)

3. A inauguração do Reino ● Narrativa Introdutória (11.2-12.50)

(11.2-13.53) ● Discurso:13.1-53

4. A relação de Jesus para ● Narrativa Introdutória (13.54-17.21)

com o Reino ● Discurso (17.22-19.1)

(13.54-19.1)

5. A última apresentação do Reino ● Narrativa Introdutória (19.2-23.39)

à nação judaica ● Discurso (24.1-26.1)

(19.2-26.1)

6. Paixão, morte, ressurreição e ascensão do ● Narrativas finais (entrega, captura,

Rei julgamento, condenação, morte e

(26.2-28.20) ressurreição de Jesus)

Quadro 6: Texto, tema e conteúdo.


Fonte: Elaborado pelo Autor

Simões (2017) amplia a compreensão do esboço de Mateus ao identificar nos discursos

algumas importantes temáticas. Para ela, o primeiro discurso é marcado pelo Sermão do

Monte (5-7), que evidencia como se deve viver no Reino de Deus. O segundo discurso

é designado de apostólico, pois demonstra a missão dos apóstolos (10). O terceiro

discurso é o das parábolas (13), onde Mateus pretender inserir o leitor na compreensão

110 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


do mistério que é o Reino de Deus. O quarto discurso é sobre a igreja, que nada mais

é que uma agência do Reino de Deus por meio de uma comunidade de irmãos (16, 18).

O quinto discurso é escatológico (24-25), pois tem por foco alertar os discípulos sobre

a parousia, isto é, a volta de Cristo.

4.6 Texto-chave

Mais uma vez, precisamos ressaltar que a escolha de textos-chave se dá apenas

para destacar alguns dos temas principais da obra. Resta óbvio, portanto, que isso não

anula os outros textos aqui ausentes. Sendo assim, entre os textos-chave de Mateus,

podemos destacar os seguintes:

● “— Vocês são o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar

o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens.

— Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada no alto

de um monte.” (Mt 5.13-14, NAA)

● “— Portanto, todo aquele que me confessar diante dos outros, também eu o

confessarei diante de meu Pai, que está nos céus; [33] mas aquele que me negar

diante das pessoas, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus.”

(Mt 10.32-33, NAA).

● “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: — Toda a autoridade me foi dada no

céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os

em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as

coisas que tenho ordenado a vocês. E eis que estou com vocês todos os dias até

111 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


o fim dos tempos.” (Mt 28.18-20)

4.7 Percepção a respeito de Jesus

Para o Evangelista Mateus Jesus é:

● Messias prometido em cumprimento às profecias do AT (16.16),

● Filho de Deus (14.33; 16.16),

● Filho do Homem (16.28),

● Rei que estabeleceu um Reino (2.2; 21.5; 27.11, 37)

● Servo que veio para servir (12.18, 20.28),

● mestre formidável (7.28,29; 8.19),

● profeta que é maior que Moisés (5.22, 28, 32),

● grande intérprete da Lei (5.21, 27, 33, 38, 43).

4.8 Pontos e assuntos principais

De forma assertiva, Tenney (1984) resume que Mateus é o Evangelho dos

discursos, da Igreja e do Rei. De fato, o assunto central do Evangelho de Mateus é Jesus,

aquele que é o Messias e Rei de Israel e que, portanto, o Reino chegou com o seu

Rei (Mt 3.2; 4.17). Assim como os outros Evangelhos, o assunto do Reino predomina a

obra; afinal, “Mateus usou cerca de 50 vezes a expressão ‘reino de Deus’ ou equivalente,

enquanto os outros evangelhos somados não alcançam esta quantidade” (FLUCK, 2020,

p. 37). Preferindo um título específico, Mateus afirma que o Reino dos Céus (33

referências nessa designação) representa o governo soberano de Deus em toda a criação,

que alcança o presente e o futuro (numa perspectiva escatológica que ainda há de se

112 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


consumar), e resulta em uma nova vida de serviço.

Diferentemente de Marcos e o seu segredo messiânico, Mateus queria provar aos

seus leitores que Cristo era o ápice da revelação de Deus e que as inúmeras profecias

do AT estavam se cumprindo em Jesus, o Messias, o Filho de Davi, o Filho de Deus, O

Filho do Homem, o Rei e Salvador. Para ele, Jesus é o Messias prometido a Israel.

Deste modo, o evangelista quer demonstrar, sem deixar dúvida alguma, que em Jesus

há o cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Ele faz isso indicando doze

textos como prova do Antigo Testamento que apontam para Cristo – sua vinda, eu

ministério e seu sofrimento – (1.22; 2.5, 15, 17, 23; 4.14. 8.17; 12.17; 13.35; 21.4; 26.56;

27.9). Tenney (1984, p. 153) destaca que a frase usada na genealogia de Mateus se

assemelha às frases de Gênesis (2.4, 5.1, 6.9), “marcando um estágio no desenvolvimento

da promessa messiânica”.

Mateus toca numa questão sensível para os judeus, pois, para ele, Jesus, é o

grande mestre que cumpriu a lei (5.17), mas a reelaborou para uma lei melhor. Por

isso, como destaca Fluck (2020), a relação entre Jesus e a lei de Moisés se torna um

tema importante do evangelho de Mateus. E a releitura que Jesus faz da Lei é

normalmente acompanhada de um questionamento aos judeus da seguinte forma:

“vocês ouviram o que foi dito?” A resposta dele é acrescida de uma reinterpretação que

se inicia com a sentença “eu, porém, lhes digo” (5.21, 27, 33, 38, 43).

Com esse tipo de argumento, não poucas vezes Jesus teve que lidar com a

indignação dos principais grupos religiosos daquele tempo em Israel. Para tanto,

constantemente, Jesus fez contundentes repreensões aos fariseus. Simões (2017)

113 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


ressalta que Mateus desfere um duro ataque ao judaísmo, por meio de sete “ais” contra

os escribas e fariseus. De fato, Jesus condena veementemente a atitude hipócrita de boa

parte dos religiosos de sua época. Nesse sentido, Mateus procura responder algumas

calúnias levantadas pelos judeus contra a fé cristã, tais quais os fatos relacionados ao

nascimento de Jesus (passando por Moisés e pelo Egisto) e a sua ressurreição.

Diante disso, Mateus também mostra o desprezo dos israelitas em relação a

Jesus. Desde o início (2.1-12) Mateus demonstra a reação contrária dos judeus com o

Messias que chegou. Trata-se de uma rejeição que inicialmente é focada nos líderes mas,

que com o tempo, passa a ser manifestada pelo povo em geral. É por isso que o Reino

não será nacionalista, mas, sim, será formado por discípulos de todas as nações (21.14,

28.22). Assim sendo, em seu próprio ministério público Jesus tratou de ampliar seu

horizonte. De fato, “a fama de Jesus não se limitou à Palestina, mas se estendeu a

Idumeia, Tiro, Sidon (Marcos 3.7-8), Decápolis (Marcos 5.19-20). Dedicar-se aos gentios

foi o programa do ministério de Jesus (Marcos 7.24-30)” (FLUCK, 2020, p. 41).

Mateus também pretende evidenciar os muitos e importantes ensinos de Jesus.

O Evangelho de Mateus procurar mostrar que Jesus era alguém que ensinava muito e

que ele fazia isso por meio dos seus discursos. Entre os diversos assuntos tratados,

alguns já apresentados, destacamos os ensinos sobre a volta de Cristo que, aliás, por

meio do termo parousia, aparece quatro vezes no Evangelho (16x em todo o NT). Outro

assunto bem presente é a justiça, sendo que o próprio Jesus veio para cumprir a justiça.

O termo aparece 7 vezes, já o termo justo aparece 17 vezes e juízo 12 vezes. Para tanto,

o Sermão do Monte (5-7),

114 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


mostra as demandas radicais de Jesus e do reino de Deus. Ele

expressa a justiça e o arrependimento que pertencem ao reino de

Deus. Ele mostra a diferença entre os cidadãos do reino e os que

não são. Somente os que experimentaram o novo nascimento

poderão cumprir as demandas do reino

(FLUCK, 2020, pp. 40-41)

O discipulado é outro tema importante da obra. De fato, nos primórdios da

igreja, o Evangelho de Mateus “formava a base para a instrução sobre as palavras e a

vida de Jesus Cristo” e por isso mesmo, “servia de orientação no preparo dos candidatos

ao batismo” (HORSTER, 1993, p. 31). É nesse Evangelho que temos uma ênfase missional

– a Grande Comissão de Mateus – que estabelece o discipulado como algo central,

afinal, a ênfase no ide deste evangelista está em fazer discípulos (Mt 28.19) para que o

Reino de Deus seja estabelecido não apenas em Israel, mas em todo o mundo, afinal,

como já vimos, neste Evangelho aprendemos que a missão da Igreja “é apresentar a

presença do Reino de Deus entre os seres humanos” (FLUCK, 2020, p. 37).

4.9 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas

Partindo do princípio de que não há uma intenção biográfica na escrita, mas, sim,

uma finalidade clara de discorrer sobre o ministério de Jesus, o foco fundamental de

Mateus é falar sobre o Cristo que, sendo enviado por Deus, nasceu, viveu, morreu e

ressuscitou para salvar os seres humanos. Mateus apresenta tais fatos por meio das

realidades históricas que ele mesmo vivenciou com Jesus. Nessa perspectiva, as

115 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


narrativas históricas que ele utiliza são fundamentais para se provar o que ele quer dizer.

Para além deste propósito fundamental firmado na essência do que é o Evangelho

de Jesus Cristo, podemos considerar os seguintes propósitos específicos (secundários)

no Evangelho de Mateus:

● Propósito litúrgico: muitos acreditam que o Evangelho foi escrito para atender

as necessidades de adoração e leitura pública da igreja do primeiro século. Para

tanto, Mateus escreve um texto fácil de se ler e entender para que se possa ser

usado no culto,

● Propósito querigmático: alguns ressaltam que o texto de Mateus reflete a

pregação apostólica na igreja primitiva, com um interesse claro de evangelização

dos judeus (15.24, 10.5-6), ainda que não exclusivo a eles (8.11, 24.14, 28.19-20),

● Propósito didático: a própria estrutura do Evangelho já reforça sua intenção de

ser um texto para a instrução dos fiéis, afinal, os discursos de Jesus nesse

Evangelho demonstram que o ensino era algo fundamental no ministério de Jesus,

na perspectiva de Mateus. Por isso mesmo, esse Evangelho se caracteriza por

apresentar um conteúdo bem amplo sobre diversos temas da fé cristã (ética,

evangelização, missões, discipulado, disciplina, adoração, escatologia etc.),

● Propósito apologético: é possível também perceber uma intenção apologética

no texto, provavelmente como consequência da tensão crescente entre os judeus

e os cristãos. Ele combate o legalismo farisaico e atesta, já na genealogia do

primeiro versículo que Jesus é um descendente de Abraão e um descendente de

Davi (1.1).

116 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Suas ênfases teológicas são claras:

● Ênfase Cristológica: se ensina sobre Jesus com o intuito de mostrar que Ele era

quem o povo de Israel esperava, isto é, Ele é o Messias, o Rei de Israel, o Filho de

Davi (aparece 9x no texto), que é um título messiânico (1.1; 12.23; 15.22; 21.9,15).

Intencionalmente, a árvore genealógica começa em Abraão, para evidenciar a

ascendência de Cristo com aquele que deu início à história de Israel e às

promessas de Deus, e com Davi, que também descendente de Judá, foi o glorioso

Rei de Israel. Mas depois, quase que como uma substituição ao Filho de Davi, a

ênfase recai sobre outro título, isto é, Jesus é o Filho de Deus (aparece 8x). Esse

é o título mais importante que Mateus utiliza em sua obra junto com o título de

Senhor, que aparece dezenas de vezes no texto.

● Ênfase Soteriológica: Há no texto uma tensão entre o particularismo e a

universalidade. Na perspectiva do particularismo, a abordagem sobre a salvação

se restringe a Israel (10.5-6; 15.24,26). Opostamente, na perspectiva do

universalismo, a abordagem sobre a salvação contempla a todos (incluindo,

inclusive Raabe e Rute, que eram duas gentias na genealogia,(13.38, 24.14, 28.19).

● Ênfase eclesiológica: diferentemente de qualquer outro evangelista, em Mateus

temos alguns ensinos sobre a igreja. De fato, somente nesse Evangelho

encontramos declarações específicas sobre o tema fundamental que estabeleceu

a constituição da igreja e a forma como ela deveria ser (16.18; 18.15-20).

● Ênfase escatológica: Mateus faz um significativo ensino sobre as últimas coisas,

dedicando dois capítulos para o assunto (24-25). Para além disso, muitos aspectos

117 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


que ele apresenta sobre o assunto são de exclusividade dele.

4.10 Assuntos exclusivos

Ainda que reproduza boa parte de Marcos e tenha textos em comum com Lucas,

Mateus também tem uma ampla exclusividade quando comparada aos outros

evangelhos. São eles:

● 1.20-24 – A visão de José

● 2.1-12 – A visita dos magos

● 2.13-15 – A fuga para o Egito

● 2.16 – A matança dos inocentes

● 9.27-31 – A cura dos dois cegos

● 9.32-33 – A cura do mudo endemoniado

● 13.24-30, 36-43 – A parábola do joio

● 13.44 – A parábola do tesouro escondido

● 13.45-46 – A parábola da pérola

● 13.47-40 – A parábola da rede

● 17.24-27 – A moeda na boca do peixe

● 18.23-35 – A parábola do credor incompassivo

● 20.1-16 – A parábola dos trabalhadores na vinha

● 21.28-32 – A parábola dos dois filhos

● 25.1-13 – A parábola das dez virgens

118 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● 25.14-30 – A parábola dos talentos

● 27.3-10 – A morte de Judas

● 27.19 – O sonho da mulher de Pilatos

● 27.52 – A ressurreição dos santos

● 28.12-15 – O suborno dos guardas

● 28.19-20 – A comissão batismal

4.11 Algumas curiosidades

Simões (2017) ressalta o fato de que na genealogia de Mateus aparecem o nome

de várias mulheres (Tamar, Raabe, Rute, Maria e Betseba, esta última de forma implícita),

sendo que algumas eram pagãs ou tinham um comportamento reprovável. Fluck (2020,

p. 38) ressalta esse papel importante das mulheres ao lembrar que elas “foram as

primeiras a ficar sabendo da ressurreição de Jesus e a receber o envio a propagar a

vitória sobre a morte. [...] Jesus envia, portanto, “a boa notícia a seus discípulos por meio

das mulheres”.

Fluck (2020) também ressalta que, diferente de outros evangelistas, Mateus

apresenta detalhes biográficos de forma distinta (2.6ss; 21.5, 27.9). Entre outros aspectos,

o uso da expressão “Pai” que Jesus faz em relação a Deus nos Evangelhos é também

ressaltado em Mateus com o intuito de revelar a Deus verdadeiramente como um Pai

que protege emocional e socialmente seus filhos e que também provê suas necessidades

(alimentação, vestuário, vida etc.). Trata-se de um Deus não autoritário, mas próximo e

ínitmo.

119 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


As bem-aventuranças, presentes no Sermão do Monte, no primeiro discurso de

Jesus (5.1-12) contrariam a suposta sabedoria do mundo. A mensagem das bem-

aventuranças demonstra a radicalidade de pertencer ao Reino de Deus. Trata-se de uma

questão ética fundamental que extrapola o seu tempo e alcança a todas as gerações.

4.12 Conclusão

Mateus apresenta, pelo menos, quatro características próprias que evidenciam sua

intenção de escrita. Ele procura estabelecer um elo entre o AT e o NT, dando ênfase na

realeza e nos ensinos de Jesus. E ainda, já faz os apontamentos iniciais daquilo que viria

a constituir, em Pentecostes, a igreja de Jesus.

Nesse sentido, podemos concluir que o propósito de Mateus é apresentar Jesus

como o grande Messias, o Filho de Deus, o verdadeiro Rei Prometido de Deus e esperado

tantos anos pelos judeus. E ele faz isso por meio do seu tema principal que é o Reino

dos Céus que tem Jesus como o seu Rei.

120 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


121 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC
5

O Evangelho de Lucas

5.1 Pressupostos iniciais

Como bem afirma Hale (2001, p. 103), o Evangelho de Lucas “é um dos mais belos

livros já escritos”. Sem dúvida, o terceiro Evangelho é singular. É uma obra bela,

completa, que resulta de um trabalho cuidadoso de um autor que contempla várias

características primordiais. Lucas é um exímio historiador, um distinto investigador e um

detalhista observador. De fato, esse Evangelho apresenta algumas peculiaridades que o

distinguem dos outros sinópticos e que abrange “todos os fatos de maior relevo” no

ministério de Jesus (TENNEY, 1972, p. 178). Na obra de Lucas podemos captar a própria

personalidade do mestre e de seu ensino, afinal, o evangelista contempla de forma

sensível alguns temas que os outros não se preocupam.

Ainda de forma introdutória, uma questão a ser ressaltada é que esse texto não

pode ser analisado de forma isolada. Há uma unidade literária na obra produzida pelo

evangelista, ou seja, os livros bíblicos de Atos dos Apóstolos e do Evangelho de Lucas

constituem uma única obra em dois volumes. No próprio livro de Atos, o autor faz

menção sobre a existência de uma obra anterior (1.1), procurando, assim, estabelecer

uma continuidade daquilo que estava escrevendo. Portanto, ambas as obras estão

entrelaçadas entre si e uma análise mais acurada deve contemplar os dois textos.

122 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


No Evangelho, Lucas apresenta o ministério de Jesus; em Atos, ele apresenta a

ação ministerial sendo realizada por meio dos apóstolos e da igreja. Nesse sentido, Hale

(2001, p. 104), com propriedade, afirma que “juntos, os dois relatam os dois estágios do

cristianismo”. Não obstante, é mais especificamente sobre o evangelho de Lucas que

vamos estudar nessa unidade. Objetivamente, vamos discorrer sobre questões de autoria,

data e local de escrita, propósito e mensagem, público-alvo, estilo, esboço, entre outras

questões especificas sobre esse Evangelho.

5.2 Autoria

Ainda que possa parecer algo repetitivo, precisamos reiterar que o terceiro

Evangelho, assim como os demais, não apresenta de forma explicita quem é o seu autor.

Trata-se, portanto, de uma autoria anônima, pois não há nenhuma informação no próprio

livro que esclareça sua origem. Mas isso não é um problema em si, pois, como já

constatamos, esse é um padrão comum entre os evangelistas.

Como lembra Tenney (1972), precisamos partir do pressuposto que esse autor

tinha uma alta capacidade literária e uma boa preparação intelectual. Era “um homem

culto, conhecedor do Antigo Testamento e considerado bom historiador e escritor”

(SIMÕES, 2017, p. 132). Deste modo, desde o segundo século acredita-se que Lucas, o

médico que era o companheiro de Paulo em boa parte das viagens missionárias e que,

igualmente, é apresentado pelo apóstolo nas suas cartas (Cl 4.14; Fm 24; 2Tm 4.11), seja

o autor desse Evangelho. Tenney (1972) ressalta que esse Lucas era um gentio que fazia

123 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


parte dentre os primeiros convertidos de Antioquia e que ele havia se convertido em

um tempo aproximado que pode chegar até uns quinze anos após o Pentecostes (At 2).

Tal afirmativa não significa que discordâncias sobre essa autoria não tenham

surgido. De fato, mais recentemente alguns questionaram a autoria lucana afirmando

que seria improvável que um personagem sem muita proeminência no cenário do NT

seja um autor tão profícuo como se constata na maior obra do NT que é Lucas-Atos.

Sendo assim, se quisermos manter a posição ortodoxa que atribui a Lucas a autoria

desse Evangelho, sob uma perspectiva histórica, precisamos ouvir a tradição da igreja e

analisar algumas possibilidades que apontam para a autoria do médico amado.

Sob a premissa da tradição da igreja temos algumas inferências sobre a autoria

do terceiro Evangelho. Eusébio, bispo em Cesareia, na obra “História Eclesiástica” escrita

no século IV, cita Irineu (130-202 d.C., bispo, teólogo, um dos Pais da Igreja e

considerado pai da ortodoxia cristã) que escreveu por volta de 185 d.C., quando diz que

“Lucas, por sua parte, o seguidor de Paulo, colocou em livro o Evangelho que este havia

pregado” (CESAREIA, 2002, p. 108, Livro V, VIII, 3). Em outro momento, o próprio Eusébio

reforça a autoria de Lucas. Hale (2001) cita que Tertuliano (160-220 d.C., teólogo,

apologista-polemista, escritor e um dos Pais da Igreja) e Origenes (185-253 d.C., teólogo,

filósofo, um dos Pais da Igreja) afirmam a mesma coisa. Aliás, Tenney (1972) diz que

Tertuliano citou esse Evangelho como sendo de Lucas mais de quinhentas vezes.

No Cânon de Muratori, que é um fragmento antigo, escrito por volta de 170 d.C.,

e que apresenta uma cópia da lista mais antiga que se reconhece dos livros do Novo

Testamento que eram utilizados pela igreja no final do século II e que coincidem com

124 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


quase todos os livros atuais do Novo Testamento, temos a seguinte afirmativa citada na

obra de Hale:

O terceiro livro dos Evangelhos é o segundo Lucas, aquele médico

que, após a ascensão de Cristo, quando Paulo o havia levado como

companheiro em sua viagem, o compôs em seu próprio nome, com

base em relatos. Ele não viu o Senhor na carne, mas, conforme pode

traçar o curso dos acontecimentos, ele os escreveu. Assim também

ele iniciou sua história com o nascimento de João (HALE, 2001, p.

104).

Nos primeiros séculos a aceitação desse Evangelho como de autoria de Lucas é

tão grande que até mesmo Marcião, considerado pela ortodoxia cristã como um herege

que criou seu próprio cânon com os livros que ele concordava, usou apenas o terceiro

Evangelho – ainda que de forma editada – em sua obra.

Para além da história, podemos inferir alguns aspectos a partir das informações

que o NT nos apresenta sobre esse evangelista (Cl 4.14; Fm 24; 2Tm 4.11). Desse modo,

sobre o próprio Lucas, sabemos que ele tinha um contato expressivo com os discípulos

cristãos da primeira geração e uma proximidade significativa com o próprio apóstolo

Paulo. Nesse sentido, Hale (2001) afirma que é justamente esse companheirismo com

Paulo que apresenta um argumento de maior peso quando se atribui a autoria da obra

Lucas-Atos ao próprio Lucas.

125 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Tenney (1972), Horster (1993) e Hale (2001) lembram que o uso do pronome “nós”

em quatro momentos do livro de Atos (16.10-17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1-28.16),

demonstra que o autor dessa obra em dois volumes foi uma testemunha ocular apenas

a partir do Concilio de Jerusalém (At 15) e que dependeu de outras fontes para narrar

os acontecimentos anteriores. Ora, é exatamente isso que Lucas diz em seu prólogo

introdutório-explicativo do Evangelho (1.1-4).

Tenney (1972) e Hale (2001) também acreditam que Lucas seja esse o autor que

é, ao mesmo tempo, o companheiro de Paulo pelo “fator eliminação”. Dito de outra

forma, entre todos os citados companheiros de Paulo em suas viagens – do qual se

entende que um deles é o autor de Lucas-Atos que usa o pronome “nós” – Lucas é,

indiscutivelmente, o mais (e talvez, o único) provável. Enquanto todos os outros

companheiros de Paulo são eliminados por uma razão ou outra, apenas Lucas permanece

entre as probabilidades. Como afirma Tenney (1972, p. 182), entre os companheiros de

Paulo, “nenhum preencheu os requisitos senão Lucas”.

Para além disso, considerando que ele era um médico (Cl 4.14) e que ele é o único

que tem essa profissão citada no NT, uma análise detalhada do vocabulário do terceiro

Evangelho constatou que o autor, em contraste com outros escritores do NT, utiliza

muitos termos comuns apenas aos médicos em sua escrita (4.38; 5.18,31; 7.10; 8.44;

18.25; 21.34). A comparação se deu a partir da análise de outras obras antigas, escritas

por outros médicos que também utilizaram a língua grega (HALE, 2001). No entanto,

pesquisas mais recentes apontaram para o fato de que essa evidência não se confirmaria

126 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


de forma tão clara, pois outros autores antigos que não são médicos também utilizaram

expressões da área.

Todavia, uma coisa é clara: quando se compara Lucas com os outros autores do

NT, ele usa essas expressões de forma bem mais abundante e com muito mais habilidade

técnica do que qualquer outro autor neotestamentário. Até mesmo quando se compara

os relatos dos outros evangelistas nas mesmas situações de cura, Lucas se sobressai no

uso de termos médicos. Ele manifesta muito interesse no uso desses termos em vários

momentos (4.38; 5.18,31; 7.10; 8.44; 21.34 etc.). Quando afirma, por exemplo, que é mais

fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de

Deus, Mateus (19.24) e Marcos (10.25) se referem a uma agulha de coser no texto grego,

enquanto Lucas (10.25) utiliza um termo grego para a agulha de um cirurgião. A

diferença é óbvia e não parece ser mero acaso.

Sob uma perspectiva teológica, outra razão para acreditarmos na autoria lucana é

que o autor do evangelho tem uma afinidade significativa com a teologia paulina. Essa

percepção encontra respaldo na tradição quando ouvimos Eusébio de Cesareia dizer que

“Paulo costumava mencionar o Evangelho de Lucas sempre que, escrevendo, dizia como

se tratasse de um evangelho seu: segundo meu Evangelho” (CESAREIA, 2002, p. 53, Livro

III, IV, 7). Como exemplo, considerando o chamado de Paulo aos gentios, constatamos

na obra de Lucas alguns aspectos que evidenciam uma ênfase semelhante àquilo que

Paulo escrevia.

Entre outros exemplos, assim como Paulo, o autor desse Evangelho é enfático ao

falar de Jesus como o Kyrios (Senhor) de todos (HORSTER, 1993). Por isso, conforme

127 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


afirma Hale (2001), podemos destacar a universalidade da salvação (Lc 4.27; 24.47), a

ênfase sobre a necessidade da fé (Lc 8.12; 18.8), a importância dada às mulheres (1.26-

38; 7.37; 10.38-42 etc.), a grande importância do amor de Deus pelos pecadores (Lc

15.11ss) e a consequente salvação para eles (Lc 19.9). Portanto, pelo fato de ser um

gentio convertido – possivelmente de Antioquia –, a ênfase dada por ele ao tema pode

evidenciar sua autoria. Hale (2001) ainda lembra que cerca de cem palavras utilizadas

por Paulo são encontradas em Lucas-Atos.

Diante destes fatos, resta-nos aceitar as evidências das Escrituras e da história da

igreja, reconhecendo a autoria de Lucas, que “foi o primeiro grande historiador

eclesiástico e apologista literário do Cristianismo” (TENNEY, 1972, p. 183).

5.3 Data e local da escrita

Não temos informações suficientes nos livros que nos façam ter exatidão sobre a

data de composição de cada obra bíblica. Quando se sugere algo, trata-se, portanto, de

uma tentativa aproximada que normalmente se baseia em questões teológicas, históricas

etc. que envolvem o texto. Nesse caso, quando sugerimos uma data para o terceiro

Evangelho, partimos do pressuposto que Lucas e Atos formam uma única obra em dois

volumes e que, resta óbvio, a escrita do Evangelho deve preceder o livro histórico.

Lembremos, nesse interim que, diante da conclusão abrupta de Atos, esse livro deve ter

sido escrito antes do fim da primeira prisão de Paulo em Roma (cerca de 67 d.C.). Além

disso, Lucas tem por base o Evangelho de Marcos, escrito entre 64/65 d.C.,

provavelmente, e esse aspecto também deve ser considerado.

128 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Como tudo é muito especulativo, Hale (2001) lembra que temos estudiosos mais

conservadores que sugerem uma data precipitada entre 60-64 d.C. e outros bem

progressistas que indicam uma composição apenas no segundo século. Parece-nos que

ambas as hipóteses são improváveis diante dos fatos históricos e teológicos que se

apresentam na obra Lucas-Atos.

Como já se constatou de forma consistente nas unidades anteriores e que se trata

de algo fundamental que se impõe na tentativa de situar uma data para escrita do

terceiro Evangelho, é o fato provável de que a composição dessa obra acontece depois

da escrita de Marcos, mas não muito distante dela, pois Lucas tem por base o que

Marcos escreveu. Mais que isso, parece-nos que Lucas depende de Marcos em boa parte

de sua narrativa. Outrossim, Lucas também não menciona em sua obra completa – Lucas-

Atos – alguns fatos históricos importantes que aconteceram no ano 70 d.C. e que um

pesquisador detalhista como ele não deixaria de fora.

Dito isso, devemos ouvir os estudiosos que servem de base nessa obra. Tenney

(1984), desconsiderando totalmente a dependência de Marcos, sugere que Lucas

escreveu em torno de 60 d.C., o que nos parece bem improvável. Horster rejeita uma

escrita tardia e sugere que o Evangelho tenha sido escrito em meados dos anos 60 d.C.

Hale (2001), por sua vez, sugere algo em torno do ano 70 d.C. Simões (2017) e Fluck

(2020) acreditam que a obra teve sua redação entre 80 e 90 d.C., o que parecer ser

tardio demais. Diante das sugestões dos diferentes comentaristas e levando em

consideração nossa percepção do contexto histórico, sociocultural e teológico da escrita

de Lucas-Atos, temos, provavelmente, uma data próxima e posterior ao ano 65 d.C., sob

129 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


um contexto bem semelhante ao de Mateus, em que a separação entre o judaísmo e

cristianismo é cada vez mais crescente; porém, trata-se de um tempo que ainda não

alcançou a destruição de Jerusalém pelos romanos no ano 70 d.C. Os textos de caráter

escatológico que parecem sugerir que Lucas já tinha passado pelo desastre da destruição

de Jerusalém em 70 d.C. são mais proféticos do que descritivos. Se de fato Lucas tivesse

narrado tais fatos, como argumentam alguns biblistas, a verdade é que estes estariam

bem incompletos, pois não descrevem tudo o que de fato aconteceu e que certamente

interferiram na vida da comunidade cristã primitiva. Como Lucas era rigoroso e detalhista,

é improvável que ele não tenha se atentado a fatos tão importantes como a destruição

do Templo de Jerusalém, por exemplo.

Diante de tantas dúvidas quanto à data de composição, também existem várias

especulações quanto ao lugar de escrita desse Evangelho. As sugestões, afirme-se, bem

especulativas, giram em torno da Acaia, de Roma, de Cesareia e da Antioquia da Síria.

O que é certo é que Lucas escreveu essa obra fora da Palestina com um foco em leitores

cristãos-gentios (TENNEY, 1984; HORSTER, 1993; HALE, 2001). De forma distintiva aos

outros Evangelhos, em Lucas temos mais informações sobre a fonte de suas pesquisas.

Afinal, Lucas afirma, de forma explicita e intencional, que seu Evangelho resulta de um

trabalho sério de investigação que considerou as diversas fontes orais e escritas que já

circulavam (1.1-4). Já que ele não participou diretamente dos acontecimentos, ele

pesquisou e considerou os materiais existentes à época, bem como utilizou os

depoimentos daqueles que estavam presente durante os fatos ocorridos no ministério

de Jesus.

130 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Para tanto, com a finalidade de descrever o ministério de Jesus, no Evangelho, e

os primeiros acontecimentos da igreja, em Atos, ele se baseou na transmissão das

testemunhas oculares e dos ministros da palavra (1.2) que, como sabemos, são

essencialmente os apóstolos. Para ser um apóstolo era necessário ter andado com Jesus

(At 1.21-22) e resta óbvio que eles eram os único capazes de relatar com exatidão o que

tinham vivido e visto em Jesus (1Jo 1.14). Afinal, “no início, a tradição dos apóstolos foi

transmitida oralmente. Muitos então, tentaram preparar um relato baseado na tradição

dos apóstolos” (HORSTER, 1993, p. 43).

Assim sendo, para além de fontes orais e escritas diversas, Lucas pode ter recebido

informações diretamente de Paulo e de outras testemunhas e ministros que poderiam

ser Pedro, João, Tiago (irmão de Jesus) etc. Essas informações podem ter sido repassadas,

por exemplo, quando o próprio Lucas acompanhou Paulo em suas visitas a Jerusalém

ou até mesmo durante a prisão de Paulo em Cesareia. Nessa perspectiva, Eusébio de

Cesareia registra:

No que se refere a Lucas, também ele, ao começar seu Evangelho


expõe de antemão o motivo pelo qual o compôs. Como muitos
outros já tinham se ocupado com demasiada precipitação a fazer
uma narrativa dos fatos de que ele mesmo estava bem informado,
sentiu-se obrigado a afastar-nos das suposições duvidosas dos
outros, e transmitiu-nos por meio de seu Evangelho o relato correto
de tudo aquilo cuja verdade ele conheceu bem aproveitando a
convivência e o trato com Paulo, assim como a conversação
com os demais apóstolos (CESAREIA, 2002, pp. 65-66, Livro III,
XXIV, 15 – grifo nosso)

131 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Em síntese, portanto, podemos dizer que a fonte de Lucas é semelhante às fontes

dos sinóticos de forma geral. Sua primeira fonte é o Evangelho de Marcos, que, para

Simões (2017), constitui o alicerce da obra lucana. De fato, Lucas repetiu 330 versículos

de Marcos (diminuídos para cerca de 300 em Lucas). Das 10.650 palavras de Marcos

7.040 são encontradas em Lucas. Não obstante, o evangelista descreve seu Evangelho

seguindo a mesma ordem de Marcos. Contudo, nem sempre ele segue à risca o que

Marcos escreveu, pois o que está em cena é a sua própria personalidade e intenção

teológica. Assim sendo, “a sensibilidade lucana transparece nas cenas em que o

evangelista modifica e adapta suas fontes (sobretudo Marcos) de acordo com a

finalidade de sua obra” (SIMÕES, 2017, p. 125).

Outra fonte importante desse Evangelho é o documento “Q”, afinal, cerca de 220-

230 versículos (20% do total) foram identificados com o documento Q, formados,

basicamente, pelos discursos de Jesus (ensinos), conforme nos afirma Hale (2001).

Contudo, a pesquisa de Lucas foi tão eficaz que ele tem uma fonte própria que

contempla cerca de 30 a 40% do seu Evangelho. São fatos inéditos que não estão

presentes nos outros Evangelhos. Trata-se da Fonte “L”, que possivelmente representa

uma tradição palestina sobre Jesus, isto é, um ponto de vista judaico-cristão, talvez de

Jerusalém mesmo (HALE, 2001). É bem provável que essa fonte seja oral, afinal, ela

apresenta um forte estilo e vocabulário próprio do evangelista. Dito de outra forma, é

algo bem característico de uma originalidade lucana.

Por fim, há também uma fonte exclusiva significativa que é a narrativa do

nascimento e infância de Jesus nos dois primeiros capítulos da obra. Ainda que seja

132 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


exclusivo à Lucas, essa seção não é normalmente colocada como parte da Fonte “L”, pois

tem estrutura e estilo diferentes. Hale (2001) aponta que estudiosos acreditam se tratar

de uma fonte escrita, em hebraico ou aramaico.

5.4 Público-alvo

Em seu prólogo, Lucas é claro ao apresentar seu destinatário. Trata-se de Teófilo

(1.3), que tem “um nome composto por duas palavras gregas (theo + filos) e que significa

‘amigo de Deus’” (SIMÕES, 2017, p. 140). Partindo do pressuposto de que se trata, de

fato, de uma pessoa real, Horster (1993) sugere que ele poderia ser um homem culto,

influente, instruído em palavras e na fé em Cristo, ainda que não se tenha convicção se

era um cristão. Assim sendo, Lucas escreve para confirmar os fatos sobre Jesus e

fortalecer a fé de seu leitor, ou seja, “ele precisava de mais conhecimentos que o

formassem e o convencessem da verdade” (TENNEY, 1972, p. 180). Portanto, o que estava

em foco era o pleno conhecimento da verdade histórica sobre Jesus e o que ele fez.

Hosrter (1993) ainda cogita a possibilidade de que Teófilo era um funcionário

romano que buscava respostas sobre a fé em Cristo. Tenney (1972) também ressalta tal

possibilidade ao destacar que esse Teófilo era um homem de alta categoria e que o

pronome de tratamento “excelentíssimo” que antecede seu nome só poderia ser utilizado

para funcionários ou membros da aristocracia romana. Quem sabe, sugerem Tenney

(1972) e Simões (2017), Teófilo poderia ser até mesmo o patrocinador da obra. Se assim

o fosse, pode ser que ele “representa um público bem mais amplo que necessitava de

aperfeiçoamento na fé” (SIMÕES, 2017, p. 140).

133 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Tais aspectos, portanto, não excluem a possibilidade que, desde a composição, o

autor tenha os cristãos-gentios também como alvo de sua escrita (HORSTER, 1993;

SIMÕES, 2017). A tradição da igreja afirma tal fato. Eusébio de Cesareia, na obra “História

Eclesiástica” cita Orígenes para afirmar que “o terceiro é o Evangelho de Lucas, o que

Paulo elogiou e que ele fez para os que vinham dos gentios” (CESAREIA, 2002, p. 137,

Livro VI, XXV, 6). Deste modo, “o destinatário do Evangelho segundo Lucas é também

todo aquele que acolhe a fé em Jesus Cristo e tem sede de conhecê-la por meio dos

fatos narrados pelo evangelistas” (SIMÕES, 2017, p. 140).

5.5 Gênero literário

Sem querer ser repetitivo, importa-nos lembrar que, assim como ocorreu com os

outros livros já contemplados nas unidades anteriores, Lucas também tem um gênero

literário específico, isto é, trata-se de um Evangelho. Os textos que compõem os

Evangelhos são formados por uma coleção de ensinamentos de Jesus que tem o

propósito principal de anunciar que, por meio de Cristo, há uma boa notícia de Deus

para o mundo. Entender os Evangelhos como um gênero literário, significa conhecer o

conteúdo mais necessário para se interpretar toda a Bíblia.

Contudo, os evangelhos também se utilizam de recursos literários distintos para

apresentar a sua mensagem. Entre outros, destacamos parábolas, cânticos, poesias,

histórias, diálogos e declarações de personagens, provérbios, citações do AT (diretas e

indiretas), genealogias, narrativas de milagres, narrativas de histórias da infância de Jesus

e outras narrativas em geral. Lucas utiliza muito desses recursos.

134 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Segundo Tenney (1972), esse Evangelho é o mais literário de todos. De fato, Lucas

é um historiador cuidadoso, que faz um trabalho investigativo primoroso, com muito

rigor e atenção na descrição dos detalhes. Consequentemente, essa obra é a mais longa

entre os Evangelhos. Aliás, quando se referimos à quantidade de texto, Lucas é o maior

autor do NT, pois a ele devemos a obra Lucas-Atos. Em relação ao Evangelho, mais

especificamente, a obra de Lucas tem 96 páginas no texto grego, enquanto Mateus, por

exemplo, tem 87 páginas (HORSTER, 1993).

Seu foco é a narrativa histórica de forma ordenada e, por isso mesmo, ele se

caracteriza por ser predominantemente histórico. Ele faz isso detalhando nomes, datas,

locais etc. Deste modo, “ele foi mais econômico na transmissão de palavras de Jesus do

que narrativa dos fatos” (HORSTER, 1993, p. 41).

Sendo um escritor gentílico com foco nos leitores de fala grega, também não usa

uma única palavra no hebraico. A exceção a isso se dá apenas nos primeiros dois

capítulos que, resultantes de uma fonte exclusiva e específica, traz uma forma de

linguagem mais semita. Como exemplo, o cântico de Maria (Lc 1.47-55), chamado de

Magnificat, o cântico de Zacarias (Lc 1.68-79), chamado de Benedictus e o cântico de

Simeão (Lc 2.29-32), chamado de Nunc dimittis, têm uma linguagem semelhante aos

Salmos. Nesse sentido, ressalte-se que entre os recursos literários utilizados por Lucas,

quatro belas canções enriquecem essa narrativa (1.47-55; 1.68-79; 2.14; 2.28-32).

135 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


5.6 Estilo

Lucas tem um estilo literário bem mais refinado (HORSTER, 1993), pois utiliza um

vocabulário rico e diversificado. Simões (2017, p. 126) diz que Lucas, de fato,

“desenvolveu um texto riquíssimo em variação de palavras”. Hale (2001, p. 103) ressalta

que “a extensão incomumente ampla de vocabulário, a excelência de gramática e alta

qualidade de estilo mostram que a obra de Lucas é digna de ocupar um lugar respeitável

entre os gigantes literários de todos os tempos”.

Diferentemente de Marcos, que tem um estilo rápido e Mateus que tem um estilo

discursivo, o estilo literário do Evangelho de Lucas é mais sofisticado. O próprio prefácio

explicativo (1.1-4) foi designado como “uma perfeita joia de arte grega” (HALE, 2001, p.

103). Deste modo, ele não apresenta palavras semitas (ou hebraicas) e se concentra mais

na narrativa do que na transmissão das palavras de Jesus. Com base em seu caráter de

pesquisador detalhista, ele apresenta uma riquíssima tradição exclusiva, encontrada

apenas em suas observações. Esse aspecto é, sem dúvida, um estilo diferenciado da

obra.

Quanto à apresentação do texto, de forma semelhante a Marcos e Mateus, Lucas

organiza o seu material seguindo o mesmo ponto de vista geográfico (Galileia – Região

da Galileia – viagem para Jerusalém – Jerusalém). Ainda assim, Lucas faz certas

adaptações à essa logica geográfica.

A Galileia ganha um destaque especial, pois o próprio ministério de Jesus começa

num lugar excluído pela elite religiosa da Judeia. A Galileia era um lugar cheio de

carências espirituais e sociais (Lc 4.14-19), formada por gente simples que era vista com

136 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


certo preconceito pelos judeus. Em outro momento, sua ênfase especial na obra aparece

na parte central, na seção onde encontramos uma espécie de relato da viagem de Jesus

(capítulos 10-19). Por fim, diferentemente dos outros dois evangelistas, Lucas conclui sua

obra com o Cristo ressuscitado em Jerusalém porque, a partir deste ponto, o foco

missional é dado em Atos, com o objetivo de alcançar o mundo todo (Lc 24.46-49, At

1.8)

Considerando sua historicidade, Lucas estabelece uma relação entre a história de

Jesus e a história do mundo (HORSTER, 1993). Como exemplo, ele faz questão de

mencionar alguns momentos históricos com os fatos marcantes do ministério e da vida

de Jesus. Em 2.1 ele situa a data de nascimento de Jesus, em 3.1 ele apresenta o contexto

político no momento do nascimento de João Batista e em 23.4, 14, 20, 22, 47 ele faz

uma relação entre o Cristo que é julgado e o estado romano que o julga.

5.7 Breve estrutura/esboço

Lucas começa sua narrativa em um prólogo, com a finalidade de evidenciar o

material que ele tinha à disposição. Nesse interim, ele também discorre sobre o objetivo

e os métodos utilizados na escrita, afirmando que utilizou diversas fontes, que podem

ser orais e escritas. De forma especial, ele assegura que se firmou na tradição dos

apóstolos, que eram testemunhas oculares dos fatos que ocorreram “entre nós”. Diante

dessa explicação inicial, esse Evangelho é único no NT, pois ele intenciona dar

137 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


confiabilidade aos seus relatos diante de possíveis informações parciais ou truncadas

que existiam a respeito de Jesus (TENNEY, 1972).

Nesse sentido, Horster (1993, p. 42) afirma que “ele se aprofundou no assunto,

testou tudo minuciosamente e depois registrou suas conclusões num relato bem

ordenado”

Na comparação com Marcos e Mateus, que registram muitas coisas da mesma

forma que Lucas, a parte central de Lucas resulta mais abrangente (9.51—19.27). Nesse

trecho ele destaca o caminho de Jesus para Jerusalém, como um tempo de preparo para

o sofrimento. Muito do que é enfatizado por Lucas está nesse trecho. Nas outras partes

encontramos uma ordem da tradição apostólica semelhante à de Marcos e Mateus.

Após a narrativa exclusiva do nascimento e da infância de Jesus nos dois primeiros

capítulo e, não obstante, seguindo a tendência entre os sinóticos, Lucas apresenta um

esboço semelhante à estrutura de Marcos na forma como ordena a narrativa do seu

material. Entretanto, em um momento ou outro, intercala essa narrativa com os materiais

das fontes “Q” e “L”. Numa perspectiva mais teológica, “o material de Lucas está

organizado em volta do conceito central de Jesus como membro da humanidade que

viveu a vida perfeita e representativa do Filho do Homem pelo poder do Espírito Santo”

(TENNEY, 1972, p. 185).

O evangelho é dividido em 24 capítulos, com uma possível subdivisão em cinco

sessões:

Texto Conteúdo

138 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Introdução 1.1-4

O nascimento de Jesus e seus eventos 1.5 – 4.13


extraordinários

O Ministério de Jesus na Galileia 4.14 – 9.50

O Ministério de Jesus na Pereia 9.51 – 19.28


(relato de viagem)

O ministério de Jesus em Jerusalém 19.29 – 24.53


(a paixão de Cristo)

Quadro 7: Subdivisões
Fonte: Elaborado pelo autor

5.8 Texto-chave

Como já falamos nas unidades anteriores, precisamos reiterar que a escolha de

textos-chave ocorre tão somente para ressaltar alguns dos assuntos mais importantes

da obra. Deste modo, tais escolhas não excluem ou limitam a importância dos outros

textos presentes em todo o Evangelho. Assim sendo, entre os textos-chave de Lucas,

podemos destacar os seguintes:

· “O anjo, porém, lhes disse: — Não tenham medo! Estou aqui para lhes trazer
boa-nova de grande alegria, que será para todo o povo: é que hoje, na cidade
de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2.10-11, NAA)

139 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


· “Porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado.”
E começaram a festejar” (Lc 15.24, NAA)
· “Porque o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (Lc 19.10, NAA)

5.9 Percepção a respeito de Jesus

Para o Evangelista Lucas Jesus é:

● O Messias (2.11, 4.41, 9.20, 20.41, 24.26 etc.)

● O homem cheio do Espírito Santo (1.15; 3.22; 4.1, 14, 18; 10.21)

● O descendente pro metido da linhagem de Davi (1.27; 1.32; 2.4, 11; 3.31-

32; 18.38; 20.41)

5.10 Pontos e assuntos principais

Nesse evangelho, de forma distinta e especial, constatamos que os principais

assuntos contemplados por Lucas estão relacionados ao amor que Jesus tem pelos

grupos desprezados e marginalizados da sociedade. Por meio de uma personalidade

compassiva e misericordiosa, Jesus é aquele que vai ao encontro dos pecadores

assumidos e de outros que são assim rotulados pela sociedade (Lc 5.1-11; 7.36-50;

15.1-32; 18.9-14; 19.1-10 etc.). Além de salvá-los, Jesus comia com eles e os chamava

para que o seguissem (5.27-31; 7.48-50; 19.7; 22.61-71; 23.42)

140 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Os samaritanos, tão odiados pelos judeus, também são o alvo de seu interesse

(Lc 10.25-37; 17.11-19) e mais que isso, “Lucas apresentou o samaritano como alguém

que manifesta concretamente uma misericórdia que expressa justiça” (FLUCK, 2020, p.

52). Apesar disso, os samaritanos não acolheram a Jesus (9.52-56).

Nesse Evangelho, em contraposição aos demais sinóticos, ressalta-se também a

atenção que Jesus dá às mulheres (Lc 7.12,15; 8.1-5; 10.38-42; 23.27-31). Simões (2017,

pp. 135, 151) ressalta que “Lucas é o único evangelista que menciona a companhia

feminina de Jesus (8.1-3)” e que “as mulheres são mais mencionadas do que qualquer

outro texto do Novo Testamento”. Fluck (2020, p. 48) acrescenta que “Jesus teve entre

seus seguidores várias mulheres, e Lucas é o evangelista que mais fala a favor da mulher”.

De fato, no terceiro Evangelho receberam uma atenção especial as seguintes mulheres:

Maria, Isabel, Ana, Maria, Marta, viúva de Naim, mulher pecadora e aquelas que proviam

sustento para Jesus e seus seguidores.

Para além da atenção e valorização à mulher, em Lucas elas profetizam (Ana),

sustentam o ministério de Jesus (várias), eram reconhecidas como discípulas e eram alvo

da cura (sempre que um homem é curado, uma mulher também é), elas também

evangelizam e proclamam (anunciam a ressurreição aos homens). Como bem lembra

Fluck (2020, p. 51), “as mulheres são as últimas a sair do túmulo de Jesus e as primeiras

a retornar a ele”. É interessante notar que Jesus aparece primeiro a elas, após a

ressurreição, tendo inclusive seus nomes citados, afinal, os homens tinham fugido e se

escondido. Por isso, Tenney (1972) reforça que Lucas utiliza a palavra “mulher” em 43

vezes, enquanto Mateus e Marcos juntos utilizam apenas 49 vezes.

141 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Em síntese, para Lucas, Jesus é o Salvador de todas as pessoas (19.10). Aliás,

entre os sinóticos, só em Lucas aparece os termos salvador e salvação (HALE, 2001). E

essa salvação é destinada para todas as pessoas, em todas as camadas da sociedade:

rico/pobre, judeu/gentio, sacerdote, samaritano, fariseu, publicano. Até mesmo as

crianças têm um destaque especial. Nesse sentido, Jesus se interessa nas relações

sociais, normalmente realizada com pessoas menosprezadas (10.25-37, 17.11-19).

Como exemplo, os pobres e aqueles que são oprimidos têm um lugar especial

nesse Evangelho (4.18-19; 12.13-21; 16.19-31; 21.1-4). Alguns chegam até a denominar

Lucas como o evangelista dos pobres. Nesse sentido, Fluck (2020, p. 48) diz que Lucas

sublinha essa identificação da vida de Jesus com os pobres”. Assim, Lucas os percebe

como os “destinatários privilegiados do Reino” (SIMÕES, 2017, p. 134). Nessa perspectiva,

algumas parábolas exclusivas de Lucas (cerca de 7 ou 8) tratam do tema da pobreza.

Simões (2017) descreve que entre os pobres existiam três categorias de pessoas

naquela época. Em primeiro lugar tinham (1) aqueles que tinham todo tipo de carências,

por serem miseráveis, mendigos, famintos, humilhados, aleijados, coxos, mancos, viúvas

necessitadas, mulheres estéreis etc. (1.48-53; 6.21; 14.13-21; 16.20-22; 18,22; 19.8; 21.3).

Essas pessoas constituam um grupo privilegiado da obra de salvação descrita por Lucas.

Em segundo lugar (2) existiam aqueles que foram perseguidos e se tornaram miseráveis

por causa da fidelidade ao chamado de Cristo (6.2-23) e, por fim, em terceiro lugar (3)

existiam aqueles que renunciaram a tudo e escolheram uma vida com restrições porque

decidiram seguir a Jesus. Nesse grupo estão os discípulos (12.15-21, 31).

142 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Por sua vez, Lucas também mostra a atitude crítica de Jesus em relação aos ricos

e às riquezas. Como afirma Horster (1993), nesse Evangelho, Jesus não critica tanto a

exploração, mas a própria posse em si, pelo fato de que as pessoas buscam a realização

de suas vidas na riqueza (6.20; 12.13-21; 16.1-9; 16.19-31). Nesse sentido, Simões (2017,

p. 125) destaca que “o desapego às posses é uma particularidade do material lucano”.

Para além desses aspectos mais amplos, Lucas acentua que Jesus se interessa

pelo indivíduo. Como exemplo, personagens como Zacarias, Isabel, Maria, Marta e

Maria, Zaqueu, Levi etc. sempre aparecem. Para além disso, Jesus vai ao encontro do

indivíduo para manifestar misericórdia e compaixão a eles. Como exemplo, temos o

relato exclusivo do Samaritano (10.25-37) e do filho perdido que tem um pai amoroso

(15.11-32). Algo especial é o cuidado amoroso de Jesus para com dois discípulos que,

entristecidos e desesperançados, iam para Emaús (24.13-35). Depois do maior evento do

cristianismo – morte e ressurreição – Jesus ainda busca dois indivíduos que não têm

destaque algum no cenário do Novo Testamento.

Em termos práticos da vida cristã Lucas destaca o papel da oração (3.21; 5.15-16;

6.12; 9.28-36; 9.18-22; 10.21; 11.1-4; 22.39-46; 23.34,46 e outros) e o lugar do júbilo,

louvor e alegria na caminhada cristã (1.14, 44, 47; 10.21; 6.21,23; 15.23,32).

Considerando ainda a influência paulina exercida sobre Lucas, “a doutrina tem relevo no

terceiro Evangelho” (TENNEY, 1972, p. 189). A natureza de Cristo (1-2), a deidade de

Jesus (1.35, 4.41, 9.35), a atuação do Espírito Santo (4.1, 14) e a salvação oferecida por

Jesus aos perdidos se destacam (15; 19.10).

143 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


5.11 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas

Os evangelistas são mais que meros contadores das histórias que descrevem o

ministério de Jesus. Em seus textos, eles manifestam seus propósitos teológicos. Nessa

perspectiva, como afirma Horster (1993, p.44), “o tema central do terceiro Evangelho é

Jesus, o Senhor”. Por isso, em seu Evangelho, Lucas tem como propósito central

apresentar a Jesus como o Senhor, o Kyrios (2.10; 4.21, 5.8; 7.13; 10.1,41; 22.61 etc.) e o

Salvador. Há, portanto, uma salvação oferecida à todas as pessoas. Para tanto, podemos

destacar os seguintes propósitos:

● Propósito catequético: Seja quem for esse Teófilo, Lucas quer garantir que a

instrução anteriormente repassada sobre quem é Jesus e salvação que ele oferece

seja validada com os dados que ele apresenta. De forma geral, Lucas procura

auxiliar as comunidades cristãs a encontrarem segurança e confiança na jornada

cristã.

● Propósito histórico: Lucas tem o propósito de descrever os fatos de um ponto

de vista histórico com a intenção de que o leitor – Teófilo – “tenha plena certeza

das verdades em que foi instruído” (1.4). A história é o veículo para se contar os

fatos e a verdade dos acontecimentos importa, pois o objetivo final de Lucas é

teológico.

● Propósito organizacional: Com a intenção teológica que pretende averiguar a

“certeza das verdades” apresentadas, Lucas, diferentemente das muitas narrativas

existentes em sua época, quer dar um relato ordenado e organizado, ou seja, ele

faz uma “exposição em ordem” (1.3) e, por isso mesmo, há uma sequência lógica,

144 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


bem planejada e estruturada, dos acontecimentos. Até mesmo a estrutura/esboço

já analisada anteriormente converge sempre para esse propósito.

● Propósito apologético: Diante das diferenças do exclusivismo judaísmo para o

cristianismo imparcial, que se acentuava cada vez mais nesse tempo (cerca de 70

d.C.), Lucas quer demonstrar a continuidade histórica entre ambos, ao mesmo

tempo em que justifica como a separação ocorreu. Para ele, Jesus era o Messias

prometido que, mesmo rejeitado pelos judeus, se identificou já no início (4.21) e

estendeu seu plano de salvação a todos os povos, sem distinção.

● Propósito legal: Segundo Hale (2001), Lucas também tenciona mostrar que o

cristianismo não representa qualquer perigo ao estado romano e que todo tipo

de insurreição e agitação política advém dos judeus. Lucas mostra que a missão

de Jesus é apolítica (4.16-19). Por todo o texto aparecem indícios desta tentativa

de demonstrar legalidade e já ao final, no contexto dos julgamentos antes da

cruz, Jesus é absolvido pelos romanos, depois de ter sido acusado pelos judeus.

É como se ele tentasse mostrar que os romanos não concordavam com a

crucificação e que, por isso, Jesus era inocente daquilo que os judeus o acusam

(23.4, 14, 20, 22, 47), conforme diz Horster (1993).

Sem perder o vínculo estreito com os propósitos mencionados acima que, aliás,

poderiam ser acrescidos por outros, existem, igualmente, algumas ênfases teológicas

que se ressaltam na narrativa lucana:

● Ênfase soteriológica: De forma fundamental, Lucas quer mostrar como a obra

salvadora de Deus em Jesus Cristo ultrapassa todas as barreiras raciais, religiosas,

145 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


sociais e políticas. Trata-se de uma salvação universal tanto em seu alcance quanto

na sua intenção. Portanto, essa salvação não é exclusiva aos judeus. Deste modo,

personagens estrangeiros fazem parte natural da narrativa lucana, tais quais

Naamã, viúva de Sarepta, Samaritano etc.

● Ênfase pneumatológica: Lucas é o autor neotestamentário que mais dá ênfase

ao Espírito Santo, desde a mensagem dada à Maria até as últimas palavras de

Jesus na cruz (1.15, 35, 41, 67; 2.25-27; 4.1,14; 5.17; 11.13; 24.44-49). O próprio

Jesus é guiado e conduzido pelo Espírito Santo (4.1, 18). Além disso, “Lucas fala

de estar cheio do Espírito Santo (Lc 1.15, 41, 67). Jesus experimenta a plenitude

do Espírito (Lc 4.1), recebe seu poder (Lc 4.14) e ensina sobre ele (Lc 11.13; 12.10;

21.15), prometendo-o aos discípulos (Lc 12.11-12), que deviam pedir pelo

Espírito(Lc 11.13). Jesus foi ungido pelo Espírito para ser poderoso em palavras e

obras (Lc 24.19)” (FLUCK, 2020, pp. 53-54). Existem 17 referências ao Espírito Santo

na obra (Mateus tem 12, Marcos tem 6).

● Ênfase escatológica: considerando que os cristãos de segunda geração estavam

enfrentando o dilema da suposta demora da volta de Jesus, Lucas procura ajustar

a compreensão dos fatos escatológicos de forma diferente a Marcos e Mateus.

Para Lucas, o tema do fim não é tão urgente, ainda que ele não deixe de falar

que o dia da parousia chegará (3.9, 17; 10.9, 11; 18-7-8; 21.32). Semelhante a

Mateus, Lucas tem um importante discurso escatológico no capítulo 21, dos

versículos 7 ao 36.

146 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● Ênfase missiológica: desde o início Lucas dá ênfase à missão. Nesse Evangelho,

Jesus é o missionário que veio realizar a missão de Deus, conforme o profeta

Isaias havia profetizado (Lc 4.16-19). Essa missão é ampla, abrangente e holística,

pois alcança a todos os seres humanos em todas as suas necessidades (físicas,

emocionais, espirituais). Em sua obra completa (Lucas-Atos), o evangelista amplia

a perspectiva da missão. No Evangelho Jesus cumpre a missão e tanto em Lucas

– na seção em que descreve a missão dos setenta aos gentios no capítulo 10 – e

em Atos a igreja é chamada a dar continuidade a essa missão.

5.12 Assuntos exclusivos

Como já afirmamos anteriormente, Lucas tem muito material exclusivo. Apesar de

relacionarmos a maioria abaixo, é bom lembrar que “há muitas outras peculiaridades em

Lucas, que são demasiadamente pormenorizadas e demasiadamente numerosas para se

catalogar aqui” (TENNEY, 1972, p. 185).

Entre o material exclusivo temos:

● 1.26-56 – 2.1-52 - Narrativa do nascimento e da infância de Jesus

● 1.5-25 – Nascimento de João Batista

● 3.1-2 – data do início do ministério de João Batista

● 3.23-38 – Genealogia e idade de Jesus quando foi batizado

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● 4.16-30 – Pregação em Nazaré

● 5.1-11 – A chamada de Pedro

● 6.24-26 – Ais contra os ricos

● 7.11-17 – A ressurreição do filho da viúva de Naim

● 7.41-43 – Parábola do credor com dois devedores

● 8.1-3 – As mulheres que serviam a Jesus

● 10.25-37 – Parábola do Samaritano

● 10.38-42 – Marta e Maria

● 11.5-8 – A parábola do amigo que incomoda

● 12.13-22 – A parábola do rico tolo (ganância do homem rico)

● 12.35-40 – A parábola do servo vigilante

● 12.41-48 – A parábola do mordomo prudente

● 13.6-9 – A parábola da figueira estéril

● 13.10-17 – A cura de uma mulher encurvada em um sábado

● 14.1-6 – A cura de um homem hidrópico

● 14.7-14 – Os primeiro lugares na festa

● 14.15-24 – A parábola da Grande Ceia

● 14.28-30 – A parábola da construção da torre

● 14.31-32 – A parábola do rei que vai para a guerra

● 15.8-10, 11-32 – Parábolas da dracma perdida e do filho perdido

● 16.1-13 – A parábola do administrador infiel

● 16.19-31 – A história do rico e do Lázaro

148 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● 17.7-10 – A parábola dos primeiros lugares

● 17.11-19 – Cura dos 10 leprosos

● 18.1-8 – A parábola do juiz iníquo

● 18.9-14 – A parábola do Fariseu e do Publicano

● 19.1-10 – A história de Zaqueu

● 19.11-27 – A parábola das dez minas

● 19.39-44 – O choro de Jesus por Jerusalém

● 22.15-18, 27-38 – Palavras de Jesus na última ceia

● 22.49-51 – a cura da orelha do servo do sumo sacerdote

● 23.6-16 – Jesus diante de Herodes Antipas

● 23.27-32 – Conversa com as mulheres no caminho para o Gólgota

● 23.40-43 – Palavras do ladrão na cruz

● 24-13-35 – O diálogo com os discípulos no caminho de Emaús

● 24.36-49 – A aparição aos 11 apóstolos em Jerusalém

● 24.50-53 – Ascensão próximo a Betânia

5.13 Algumas curiosidades

Hale (2001) faz uma referência à obra “Prológo Anti-Marcionista ao Evangelho” –

que foi uma resposta aos erros de Marcião – em que se afirma que Lucas ficou com

Paulo até o martírio, serviu ao Senhor sem cessar e era cheio do Espírito Santo, era

solteiro e não teve filhos, vindo a morrer com a idade de 84 anos na Beócia.

149 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Para ressaltar que Cristo realmente irrompeu a realidade humana para viver como

homem na história, Lucas descreve sua genealogia em Adão, o primeiro homem. A

ênfase está na descendência humana e não na linhagem étnica (Abraão) e ou real (Davi).

As parábolas escolhidas por Lucas e que são exclusivas a ele tem a intenção de

evidenciar que a missão de Jesus alcança aos gentios (TENNEY, 1972). Contudo, mesmo

que seu público-alvo prioritário sejam os gentios, Lucas procura mostrar que Jesus é o

Messias enviado por Deus e que nEle as Escrituras (AT) se cumprem perfeitamente (Lc

24.25-27, 44). Mais que isso, Jesus é o hermeneuta que explica as Escrituras aos discípulos

que iam para Emaús e ao círculo apostólico, mas é, igualmente, a chave hermenêutica

para se entender plenamente toda a Escritura Sagrada.

Fluck (2020, p. 54) ainda destaca que “o Evangelho de Lucas manifesta uma

compreensão específica da história, uma vez que o tempo de Jesus é diferente do de

Israel (Lc 16.16-17: a Lei e os profetas vigoraram até João Batista, sendo a partir de Jesus

anunciado o Evangelho do reino de Deus)”. Para tanto, o evangelho lucano tem uma

divisão em três partes aproximadamente iguais e assim, para o evangelista, a história de

Deus com a humanidade também é dividida em três grandes épocas:

● A época do AT, que também pode ser denominada a época da lei e dos

profetas;

● A época do ministério de Jesus (Lc 16.16 cf Mc 11.12) e

● A terceira grande época, a época da igreja de Jesus, como a descreve Atos

dos Apóstolos.

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E, talvez, seja bem por esse olhar ampliado da história que Lucas escreveu dois

volumes de uma mesma obra. De forma organizada, ele conseguiu contar a história de

Jesus e a história da igreja sem perder o vínculo com a história de Israel e a história do

mundo.

5.14 Conclusão

O Evangelho de Lucas é riquíssimo. A obra produzida por Lucas retrata, sem

dúvida, o empreendimento literário mais audacioso no contexto da igreja primitiva. De

forma singular, Lucas é chamado de historiador justamente “porque narra a história da

salvação dentro da história humana” (SIMÕES, 2017, p. 124). De fato, sem a obra dele,

não teríamos muitas e preciosas informações históricas sobre o ministério de Jesus.

Constata-se, assim, a importância do trabalho sério e dedicado desse evangelista ao

pesquisar, compilar, escrever e nos apresentar o terceiro Evangelho.

Lucas tomou a humanidade de Jesus, o seu ministério, sofrimento, morte e

ressurreição, como também a propagação do evangelho de Jerusalém até Roma, e fez

de tudo o tema de um relato geral. O evangelho é a primeira parte desse relato geral.

Todavia, como vimos, uma das grandes verdades de Lucas é que Deus não terminou sua

obra em Jesus, mas continua através da Igreja (descrita em Atos). E assim, a missão da

igreja está indissoluvelmente ligada à missão de Jesus.

Referências: Bíblia e sua história

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6

O Evangelho de João

6.1 Pressupostos iniciais

Já discorremos sobre os Evangelhos Sinóticos e constatamos que apesar de cada

autor destacar um aspecto ou outro de forma individual, eles possuem muita semelhança

nas narrativas em que apresentam o ministério de Jesus. Agora, entretanto, vamos

analisar um Evangelho diferenciado dos outros. De fato, o quarto Evangelho é diferente

dos Sinóticos, pois destaca apenas alguns atos de Cristo. Por sua vez, a ênfase desse

Evangelho está nos sinais e nas declarações que revelam Deus por meio de Jesus Cristo

(HORSTER, 1993).

Por este motivo, como afirma Hale (2001), esse Evangelho é o mais sublime. Seu

caráter teológico é incomparável. Sua mensagem, simples e objetiva, que revela quem

Jesus é o que Ele fez por nós, com base em seu amor, tem levado milhares de pessoas

a aceitarem a fé em Cristo. Talvez, poderia se dizer que João, sendo o último Evangelho

escrito, é também aquele que interpreta Jesus de forma distinta e singular. Nessa obra,

Jesus não é apenas o Filho de Deus; Ele é o próprio Deus. Porém, isso não quer dizer

que a historicidade esteja ausente nos diversos relatos. Pelo contrário, João é bem

histórico em sua narrativa sobre Jesus, sobre o Seu ministério na terra e sobre as pessoas

com as quais Ele se encontrou.

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Dito isso, uma ressalva se faz necessária. Apesar de ser diferente de Mateus,

Marcos e Lucas, a verdade é que esse Evangelho não foi escrito para contrariar os

Sinóticos; ele apenas os complementa de forma especial, pois ele tem uma intenção

teológica clara e consistente em sua narrativa. Ele é o Evangelho da fé, que tem como

propósito fundamental exercitar a crença em Jesus, o Cristo, naqueles que lerão as suas

páginas (20.31).

Esses aspectos serão estudados nessa unidade. Para além disso, de forma objetiva,

vamos entender o porquê desse Evangelho não ser considerado um sinótico, tentando

perceber o que o distingue dos demais. Vamos ainda discorrer sobre questões de autoria,

data e local de escrita, propósito e mensagem, público-alvo, estilo, esboço, entre outras

questões especificas sobre esse Evangelho.

6.2 Autoria

De forma semelhante ao que já se discorreu em relação aos três primeiros

Evangelhos, aqui também não há uma informação explicita no livro de quem é o autor.

Trata-se, portanto, de uma autoria anônima. Além disso, para dificultar a questão,

ocorreram muitos debates na história da igreja sobre o autor do quarto Evangelho e

essas disputas continuam acirradas até hoje nos ambientes acadêmicos. Na maioria das

vezes, temos sérias divergências sobre quem é, de fato, o autor dessa obra.

Alguns defendem que devemos nos importar mais sobre o conteúdo e menos

com a autoria. Porém, ainda que haja certa verdade nisso, não podemos ignorar o fato

de que tentar descobrir o autor também seja algo importante, afinal, se esse autor foi

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uma testemunha ocular do ministério de Jesus, o valor histórico e teológico do livro é

muito maior; porém, se foi desenvolvido por um escritor desconhecido do segundo

século, a questão torna-se outra (HORSTER, 1993).

De forma resumida, Hale (2001) descreve o que se diz sobre a autoria desse

Evangelho. Inicialmente ele afirma que uma parte dos estudiosos mais modernos

preferem acreditar que o apóstolo João não é o autor desse Evangelho e o máximo que

aceitam é que talvez ele esteja por trás da tradição que originou esse livro. Outros

acreditam que um certo ancião, também de nome João, que viveu em Éfeso no final do

primeiro século seja o seu autor. Há ainda alguns que sugerem outros nomes como João

Marcos, Lázaro ou um João qualquer. Por outro lado, existem aqueles que, partindo de

um pressuposto mais conservador, acreditam que existem evidências suficientes para se

creditar a autoria ao apóstolo João, mesmo que ele tenha utilizado um amanuense 1

(um secretário) nessa composição.

Dito isso, o que podemos fazer? Inicialmente precisamos entender que para se

tentar descobrir o autor, algumas evidências podem e devem ser consideradas, tanto em

seu aspecto interno (o texto) quando em seu aspecto externo (a história). E ainda que

não tenhamos um resultado absoluto, podemos inferir boas possibilidades sobre essa

autoria.

Sob uma perspectiva ortodoxa e histórica, afirma-se que João, um dos doze

apóstolos de Cristo, é o autor do quarto Evangelho. Irineu (130-202 d.C., bispo, teólogo,

um dos Pais da Igreja e considerado pai da ortodoxia cristã) escreve: “Depois disso João,

o discípulo do Senhor, que tinha reclinado ao lado dele, ele mesmo publicou o evangelho

156 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


enquanto estava na Ásia” (HORSTER, 1993, p. 61). O testemunho de Irineu é importante,

visto que ele foi um discípulo de Policarpo (69-155 d.C., bispo em Esmirna no século II)

que, por sua vez, foi discípulo do próprio João. Por meio de Policarpo existia, portanto,

um vínculo direto com o passado apostólico de João.

[1] Assim como Tércio foi para Paulo (Rm 16.22) e Silvano foi para Pedro (1Pe 5.12)

No Cânon de Muratori, que é um fragmento antigo, escrito por volta de 170 d.C.,

e que apresenta uma cópia da lista mais antiga que se reconhece dos livros do Novo

Testamento que eram utilizados pela igreja no final do século II e que coincidem com

quase todos os livros atuais do Novo Testamento, temos a afirmativa que o quarto

Evangelho foi escrito por João, um dos doze discípulos.

Eusébio de Cesareia acrescenta que o apóstolo João é o autor da obra e que

deveria ficar “reconhecido como autêntico seu Evangelho, que é lido por inteiro em

todas as igrejas sob o céu” (CESAREIA, 2002, p. 64, Livro III, XXIV, 2). Hale (2001)

acrescenta que Tertuliano, Clemente de Alexandria, Origenes, entre outros nomes de

expressão do cristianismo dos primeiros séculos asseguram a autoria joanina. E

acrescente-se, nenhum autor ortodoxo dos primeiros séculos negou tal autoria. Mais

que isso, “todo o testemunho da Patrística, desde o tempo de Irineu é

preponderadamente a favor da autoria joanina” (TENNEY, 1984, p. 194). Aliás, não apenas

entre os ortodoxos, mas até mesmo autores gnósticos que emergiam à época atribuem

a autoria a João.

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Nessa perspectiva, um fato importante também se ressalta. Por causa de seu

conteúdo, esse Evangelho foi amplamente utilizado como base dos ensinos heréticos do

gnosticismo no segundo século. Se o autor fosse um João qualquer, certamente os

primeiros líderes rejeitariam tal escrito, pois anular a autoria joanina beneficiaria a

ortodoxia cristã diante da heresia gnóstica que se alastrava. Porém, por que o

cristianismo ortodoxo continuou atribuindo a autoria do quarto Evangelho ao apóstolo

João quando poderia se livrar dele diante das heresias que eram ensinadas? Por que

defenderia a autoria apostólica de um Evangelho tão diferente quando comparado aos

outros? Ora, como afirma Hale (2001), a resposta para ambas as questões parece óbvia:

é porque esse livro foi, de fato, escrito por João.

Em uma releitura da obra de B. F. Westcott, Hale (2001) ainda descreve várias

argumentos com sustentação histórica e arqueológica – que para ele são irrefutáveis –

sobre a autoria joanina desse Evangelho. Junto a eles, Tenney (1984) faz argumentações

semelhantes. Vejamos:

● O autor desse Evangelho é um judeu: o autor conhece os costumes judaicos, a


expectativa messiânica, a rixa com os samaritanos etc. A base Escriturística desse
autor é o AT (Escritura Hebraica) na própria língua hebraica (e não na Septuaginta,
como preferem os Sinóticos). O livro em si tem uma estrutura literária hebraica.
● O autor desse Evangelho é um judeu da Palestina: o autor descreve fatos,
lugares, cidades, geografia, topografia, acontecimentos e relacionamentos
políticos, sociais e religiosos que tinham relação apenas com quem estava bem
familiarizado com a Palestina antes do ano 70 d.C.

158 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● O autor desse Evangelho é um judeu da Palestina que foi testemunha ocular
do ministério de Jesus: a forma de relatar os fatos, os cenários, as pessoas, os
detalhes etc. evidenciam que se trata de alguém que estava bem presente durante
os acontecimentos. Em João 1.14 e 19.35 o autor utiliza um tempo verbal que dá
a entender que está presente. Portanto, não era apenas um relato com base
documental; era uma experiência real e pessoal. Talvez, seja por isso que, em
certos momentos, as narrativas apresentam detalhes que fortalecem a participação
do autor durante os eventos (2.6; 4.6; 12.3 etc.)

Parece-nos que, de fato, o autor pode ter sido uma testemunha ocular, ou seja,

demonstra ser alguém que, em seu relato, está descrevendo coisas que realmente viu e

que não apenas recebeu de alguém. Ao final da obra, esse Evangelho dá uma espécie

de pista que pode nos ajudar a construir um quebra-cabeça. De fato, o autor é

apresentado em uma narrativa singular, quando o próprio Jesus ressuscitado vai ao

encontro de sete dos discípulos. Nesse cenário, no último capítulo, entre os versículos

20 a 24, afirma-se que o autor é um certo discípulo “a quem Jesus amava”. Em uma

leitura cuidadosa do quarto Evangelho, constatamos que essa expressão “a quem Jesus

amava”, referindo-se aparentemente a um dos seus discípulos, aparece outras vezes no

texto (13.23; 19.26-27; 20.2; 21.7, 20).

Constatamos que esse discípulo era também um dos mais próximos a Jesus, ou

seja, ele estava entre os amigos mais reservados e sempre fazia parte do círculo

relacional mais íntimo do mestre. Como sabemos, João, junto com seu irmão Tiago e

Pedro, formavam esse pequeno grupo. Principalmente nas narrativas dos Sinóticos,

percebemos que, sempre que Jesus buscava por uma companhia ou precisava de

159 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


testemunhas, esses três apóstolos o acompanhavam. Como exemplo, eles estavam no

evento da Transfiguração (Mt 17.1-8), na ressurreição da filha de Jairo (Lc 8.51), no Jardim

das Oliveiras quando Jesus foi preso (Mc 13.33) etc. Aliás, mesmo após a ascensão de

Jesus, Pedro e Tiago continuaram juntos (At 3.11, 4.13, 8.14; Gl 2.9).

Na última Ceia, o discípulo a quem Jesus amava havia se reclinado sobre o mestre

(13.23, 21.20). Parece também ter sido ele quem, por ser alguém conhecido do sumo

sacerdote, estava presente durante o julgamento de Jesus (18.15-16). De forma corajosa

e diferente dos outros, esse discípulo estava presente na crucificação (19.26) e procurou

ressaltar que a sua presença, como uma testemunha ocular dos fatos, atestava a

veracidade do que aconteceu com Cristo no Calvário (19.32-37). Esse mesmo discípulo

ficou responsável por cuidar de Maria, a mãe de Jesus, após a morte do nosso Senhor

(19.26-27) e junto com Pedro, foi o primeiro a receber a notícia da ressurreição e a correr

para o local a fim de ver o túmulo vazio (20.2-8).

Ainda no último capítulo (21.1-14), num momento posterior à ressurreição, o

Evangelho apresenta um cenário em que alguns discípulos estavam pescando junto ao

Mar de Tiberíades. O texto informa que eram apenas sete, e não os doze, e afirma que

entre estes estavam presentes Pedro, Tomé, Natanael, João e Tiago (dois filhos de

Zebedeu). Infelizmente, o texto não cita o nome dos outros dois discípulos que também

estavam lá. A narrativa, porém, acrescenta que “o discípulo a quem Jesus amava” estava

presente e foi o primeiro a reconhecer a Jesus (21.7).

Agora, vejamos: como já afirmamos, o Evangelho descreve (em 21.20-24) que esse

“discípulo a quem Jesus amava” é o próprio autor da obra. Do mesmo modo, quando

160 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


relacionamos todos os textos apresentados acima, conseguimos perceber que esse

discípulo amado só pode ser um dos doze, afinal ele estava na última Ceia (13.23) e na

última pescaria (21.1-14). Não obstante, como em ambos os cenários apenas Jesus e os

apóstolos estavam presentes, qualquer hipótese de autoria fora do círculo apostólico

pode ser descartada.

De forma progressiva, também sabemos que esse discípulo amado era um dos

três amigos mais íntimos de Jesus entre os apóstolos. Resta-nos, assim, Pedro, Tiago e

João. Por eliminação, descartamos Tiago, que foi martirizado logo no início da igreja (At

12.2) e também o próprio Pedro, pois, a mesma narrativa que afirma que o autor é o

discípulo amado informa, ao mesmo tempo, que Pedro está diante dele, o que exclui a

possibilidade de uma autoria petrina (21.20). Mais que isso, não há qualquer indício

histórico e literário sobre tal probabilidade autoral.

Todavia, depois de todas essas deduções, o fato que chama a atenção é que as

inúmeras referências demonstradas acima, que falam do “discípulo a quem Jesus amava”,

não citam diretamente o nome do apóstolo João. Mas, parece-nos que isso não é um

problema, afinal, em nenhum momento do quarto Evangelho o nome dele é

mencionado. Diferentemente, essa ausência nominal não ocorre na narrativa dos

Sinóticos, afinal, a ênfase a João (junto a Pedro e Tiago) é evidente nos outros

evangelistas (18 citações). Por inferência, parece-nos, então, que o autor prefere não

citar seu nome em seu próprio relato, ainda que faça questão de afirmar que “o seu

testemunho é verdadeiro” (21.24, NAA).

161 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Diante de tantos aspectos, como afirma Horster (1993, p. 62), o que podemos

aceitar, ainda que com vários questionamentos, é que no máximo “o texto original do

Evangelho vem de João, o filho de Zebedeu”, ainda que não se deva ser ignorada a

hipótese de que, em sua redação final, essa obra pode também ter sido “desenvolvida

para a forma em que hoje encontramos o Evangelho por um aluno de João”. Apesar

disso, mesmo que não tenhamos plena convicção sobre quem é o discípulo a quem

Jesus amava e como esse processo de composição de fato ocorreu, olhando para o

quarto Evangelho e para a tradição histórica da igreja, parece-nos óbvio que o autor é

realmente o apóstolo João.

Sobre sua origem, sabemos apenas que ele era filho de Zebedeu, irmão de Tiago,

e possivelmente sócio de Pedro e André (Mc 1.19-20). Ele era da região da Galileia e foi

um dos primeiros a seguir Jesus; aliás, talvez seja por isso mesmo que, intencionalmente,

tenha descrito episódios do início do ministério de Jesus que os Sinóticos não

apresentaram (TENNEY(, 1984). Pode ser também que tenha sido um primo de Jesus,

sendo Salomé, a mãe de João, uma irmã de Maria, a mãe de Jesus (Mt 27.56, Mc 15.40,

Jo 19.25). Ele foi incluído na lista dos doze (Mt 10.1-2) e também foi o último

sobrevivente entre os apóstolos. Segundo a tradição da igreja, depois da prisão na Ilha

de Patmos, ele se estabeleceu em Éfeso; lá envelheceu e também lá morreu (CESAREIA,

2002).

162 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


6.3 Data, local e fontes de escrita

Não diferente das divergências na questão de autoria, a tentativa de se estabelecer

uma data para a escrita desse Evangelho também é controversa. Aqueles que, por

exemplo, não aceitam a autoria joanina dessa obra, sugerem uma datação tardia – já no

segundo século –, porém, os argumentos que apresentam, sejam teológicos, históricos

ou redacionais, se mostram cada vez mais inconsistentes (HALE, 2001). Outros, mais

conservadores, situam a escrita antes do ano 70 d.C., com certa antecedência ou mesmo

dependência dos Evangelhos Sinóticos.

No entanto, se considerarmos a perspectiva da tradição, segundo Eusébio de

Cesareia em sua obra “História Eclesiástica”, “os três evangelhos anteriormente escritos

já haviam sido distribuídos para todos, inclusive para o próprio João, e diz-se que este

os aceitou e deu testemunho de sua veracidade” (CESAREIA, 2002, p. 65, Livro III, XXIV,

7). Assim sendo, ainda que tenhamos apenas hipóteses, parece-nos que ambas as

sugestões são extremadas.

Uma coisa é certa: a descoberta de um manuscrito (Papiro P52), com porções do

texto do Evangelho de João (18.31-33, 37-38), provavelmente escrito entre 100 e 160

d.C., evidenciam o fato de que, conclusivamente, a redação inicial do Evangelho é bem

anterior, afinal, esse fragmento foi encontrado no Egito. Deve-se, portanto, ter levado

um tempo considerável entre a escrita, o compartilhamento, a chegada e a utilização

desse manuscrito num lugar tão distante de seu possível lugar de origem e de maior

difusão.

163 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Nesse sentido, Hale (2001) oferece uma solução, sugerindo que o Evangelho teve

suas origens antes do ano 70 d.C., mas, porém, teve sua publicação apenas depois da

morte de João que, por ser o mais jovem entre os apóstolos e de acordo com a tradição

da igreja, pode ter falecido de morte natural, em 103 d.C. na cidade de Éfeso, quando

tinha cerca de 94 anos.

Já Horster (1993), quando considera os argumentos de vários pesquisadores,

comenta sobre o Evangelho ter sido escrito em meados dos anos 80-90 d.C. Mas, ao

final de sua análise, recomenda que seria melhor se a data de composição da obra

ficasse em aberto e que não deveríamos desconsiderar datas mais antigas dentro do

primeiro século. Tenney (1984), também sem definir uma data, acredita que a obra foi

escrita no fim do primeiro século e Fluck (2020) sugere uma data semelhante, perto do

ano 100 d.C. Como se constata, é realmente muito difícil definir essa data. Creio que

podemos ficar com algo próximo entre 70 e 100 d.C.

Na igreja primitiva acreditava-se que João, já idoso, escreveu e/ou “ditou” o

Evangelho para um amanuense (um secretário) em Éfeso, na Ásia. Tenney (1984, p. 197)

contribui ao afirmar que, de fato, esse Evangelho “parece ter sido escrito num ambiente

gentílico, pois as festas e os costumes dos judeus são explicados em benefício daqueles

que não estavam familiarizados com elas (Jo 2.13; 4.9; 19.31)”. Sendo assim, outros

lugares possíveis, por vezes considerados na história, tais quais Alexandria no Egito ou

Antioquia da Síria, são descartados pela maioria dos estudiosos (TENNEY, 1984;

HORSTER, 1993; HALE, 2001; FLUCK, 2020).

164 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Em relação às fontes de pesquisa, a questão também não é fácil de se resolver.

Afinal, as fontes utilizadas nos Sinóticos são, em tese, mais fáceis de ser percebidas e

compreendidas. Diferentemente da relação sinótica, constamos que há pouca

dependência dessa obra em relação aos outros três Evangelhos, afinal, cerca de 90% de

João é exclusivo (HALE, 2001). A exceção se dá nas seguintes narrativas: (1) multiplicação

dos pães em 6.1-15, (2) Jesus anda sobre o mar (6.16-21), narrativa do julgamento, morte

e ressurreição de Jesus (18.1 – 20.23, com exceções intercaladas). Alguns pesquisadores

até chegaram a propor certa semelhança do texto de João com 12 versículos de Marcos,

mas já se constatou que não são hipóteses consistentes e convincentes.

Hale (2001), citando um trabalho de H. E. Dana (1940) descreve a possibilidade de

que tenhamos duas tradições paralelas que serviram de fontes para os evangelistas; uma

é da região da Galileia e outra da Judeia. Se isso for verdade, Marcos e Mateus seguiram

a tradição da Galileia, Lucas contemplou a ambas (e talvez mais) e João, por sua vez,

baseou-se na tradição da Judeia. Ainda que seja apenas uma hipótese, há certa

razoabilidade nessa afirmação.

Sob uma perspectiva histórica, numa citação anterior de Eusébio de Cesareia,

transpareceu-se a ideia de que João conhecia os sinóticos e os aprovou. Contudo,

intencionou escrever e ressaltar aspectos que os outros evangelistas não trataram. Isso

parece ser verdadeiro, tanto nos assuntos que priorizou quanto na ordenação geográfica

que aplicou em sua narrativa, pois o foco de João está na Judeia e não tanto na Galileia

como descreveram os sinóticos.

165 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Horster (1993, p. 49), por exemplo, propõe uma visualização do texto a partir das

viagens realizadas por Jesus entre a Galileia e a Judeia. Aliás, ressalte-se que é por meio

dessa narrativa mais cronológica de João que podemos descobrir que Jesus exerceu seu

ministério público por cerca de 3 anos. Vejamos:

Local Referência

Galileia 2.1-2

1º período em Jerusalém (1ª Páscoa) 2.13

Galileia 4.1 – 4.43

2º período em Jerusalém 5.1

Galileia (2ª Páscoa) 6.1; 7.1

3º período em Jerusalém (Festa dos 7.2, 8, 10


Tabernáculos)

4º período em Jerusalém (3ª Páscoa) 11.55; 12.1; 18,28

Quadro 8: Local e Referência.


Fonte: Elaborado pelo Autor

Por isso, ainda que existam algumas resistências, parece-nos que João, de fato,

trilhou um caminho com tradições e fontes independentes. E assim, concluímos que

outras fontes, não necessariamente vinculadas aos Sinóticos, foram utilizadas por João

em sua obra. Além disso, é claro que devemos lembrar e considerar o fato de que o

próprio apóstolo João foi uma testemunha ocular e ele mesmo pode ter isso uma fonte.

166 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


6.4 Gênero literário

Como já afirmamos, repetidamente, por si só, esse livro faz parte de um gênero

específico designado como “Evangelho”. Trata-se uma produção literária que tem por

finalidade apresentar Jesus, a sua vida, a sua obra e a sua mensagem. Entretanto, como

também é comum nos demais Evangelhos, dentro desse gênero podemos encontrar

subgêneros, tais quais: relatos, história de milagres, histórias de chamados, histórias de

conflitos, histórias de testemunhos, história da paixão, discursos etc.

O texto está em grego, porém o autor, por vezes, utiliza recursos linguísticos

próprios da língua hebraica. Como exemplo, ele utiliza os vocábulos Rabi (1. 38; 3.2),

Rabôni (20.16), Messias (1.41; 4.25), Cefas (1.42), amém (25 vezes no texto), hosana

(12.13), maná (6.31, 49) etc. Não obstante, esses termos semíticos são traduzidos na

maioria das vezes no próprio texto. Seguindo uma aproximação ao AT, aparecem na

narrativa alguns simbolismos, principalmente para se referir a Jesus. Por meio de uma

mensagem figurada em que o autor utiliza aspectos importantes para Israel, Jesus é

apresentado como o pão, como a luz, como a água, como o pastor etc.,

Horster (1993), reitera ainda que João apresenta os discursos de Jesus de forma

diferente dos Sinóticos. Segundo ele, “temos no evangelho de João, a pregação de Jesus

em uma linguagem que era adequada aos leitores de fala grega. Mesmo assim, o autor

manteve o estilo de Jesus, que correspondia a forma oriental de desenvolver o

pensamento” (HORSTER, 1993, p. 51)

Nessa perspectiva, parece-nos que João utiliza uma forma não ocidental de se

organizar e transmitir uma ideia. De fato, parece-nos que as ideias são algumas vezes

167 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


repetidas e, aliás, Jesus retorna a elas quando acha que deve fazê-lo, mesmo que já

esteja em outro assunto. Em síntese, poderíamos dizer, então, que João escreve de uma

forma cíclica e nem sempre retilínea e objetiva. Por causa disso, alguns chegaram a

sugerir que o texto deveria ser reorganizado (veja na seção das dificuldades, abaixo).

6.5 Estilo

Como afirma Tenney (1984, p. 193), embora possua algumas similaridades com os

Sinóticos, o Evangelho de João “é completamente diferente na estrutura e no estilo”. De

fato, essa é uma característica que diferencia esse Evangelho. Há uma intenção e uma

seleção de conteúdo que o autor pretende transmitir e isso se ressalta de uma forma

clara e fácil de se perceber. Assim sendo, o Evangelho de João exige uma leitura

cuidadosa e reflexiva, principalmente pelo caráter teológico que nele se ressalta. Como

exemplo, quando João descreve os milagres, ele se concentra mais no significado do

que ocorreu e não tanto na realização do milagre em si.

Deste modo, poderíamos dizer que João escreveu de modo independente em

relação aos outros evangelistas. Porém, em sintonia com a tradição da Igreja e como

bem ressalta Fluck, também pode-se pressupor que o evangelista “teve conhecimento

do conteúdo dos outros evangelhos” (2020, p. 75).

De forma singular, este Evangelho apresenta afirmações contundentes a respeito

da divindade de Jesus que “dizem respeito principalmente a Sua Pessoa e não à doutrina

ética do Reino” (TENNEY, 1984, p. 193). É por isso que o ápice do seu discurso está na

sentença afirmativa de sua origem e identidade quando diz “EU SOU”. Além dos

168 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


discursos, os sinais são fundamentais nessa narrativa. Por isso, a forma como descreve

o início do ministério de Jesus, por exemplo, é ressaltada por meio da realização de seu

primeiro milagre (primeiro sinal), num casamento (2.1-12).

Essa diferença de estilo se destaca também na forma de apresentar o texto. Esse

Evangelho parece ter sido organizado para dar mais valor aos dados históricos, indicando

interessantes detalhes em relação a nomes e locais da Palestina daquela época

(HORSTER, 1993). João se preocupa em descrever detalhes que os outros não se

importam. João fala de lugares que outros não mencionam. Em seu estilo, João quer

mostrar que Jesus, de fato, é um ser histórico que irrompeu na história para viver uma

vida entre as pessoas da Palestina daquela época.

No aspecto geográfico, o texto de João está organizando de forma diferente.

Enquanto os sinóticos descrevem apenas uma possível viagem de Jesus, da Galileia para

Jerusalém, João apresenta mais viagens. De fato, no Evangelho de João ele faz pelo

menos três ou quatro visitas a Jerusalém. Enquanto os Sinóticos se concentram na

Galileia, João dá maior evidência ao que ocorreu em e ao redor de Jerusalém por ocasião

das festas judaicas. Aliás, alguns chegam a dizer que Jesus adotava até mesmo um estilo

diferente de ensinar quando estava em Jerusalém, que era a capital e o centro teológico

de Israel.

Junto a esses aspectos de caráter histórico e geográfico podemos acrescentar o

caráter biográfico. Porém, não no sentido historiográfico atual, pois João não quer contar

tudo da vida das pessoas. Ainda assim, nessa obra, João dá mais valor ao contato de

Jesus com o indivíduo e dá menos importância ao contato com a multidão. Nesse

169 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


sentido, Tenney (1984, p. 203) afirma que “a relação pessoal de Jesus com o homem é

posta em relevo em João. Vinte e sete entrevistas são anotadas, umas extensas e outras

breves”.

Distintamente, João é bem detalhista em descrever e fazer distinção entre as

pessoas (1.40, 44; 6.71; 11.16; 13.2, 26; 14.22; 20.24; 21.2). É por isso que também

podemos conhecer melhor tantos personagens que aparecem no ministério de Jesus,

entre os quais: o religioso Nicodemos, a mulher samaritana, a mulher adúltera, o cego

de nascença, o governador Pilatos, as amigas Maria e Marta etc.

No aspecto gramatical, o Evangelho apresenta um grego simples, sem erros, com

vocabulário pequeno, sentenças simples, com pano de fundo semítico nas frases e

expressões utilizadas. (HORSTER, 1993). Trata-se de um texto bem característico da

influência judaica palestina, sem perder, é claro, a influência judaica helenística. No

aspecto literário, o texto apresenta longos ensinamentos e discursos, em especial no que

Jesus diz sobre si mesmo, mas não descreve as parábolas como Mateus, por exemplo

(FLUCK, 2020; TENNEY, 1984).

6.6 Texto-chave

Como já falamos nas unidades anteriores, precisamos reiterar que a escolha de

textos-chave ocorre tão somente para ressaltar alguns dos assuntos mais importantes

da obra. Deste modo, tais escolhas não excluem ou limitam a importância dos outros

textos presentes em todo o Evangelho. Assim sendo, entre os textos-chave de João,

podemos destacar os seguintes:

170 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● “Jesus respondeu: — Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim jamais terá

fome, e quem crê em mim jamais terá sede” (6.35, NAA).

● “De novo, Jesus lhes falou, dizendo: — Eu sou a luz do mundo. Quem me

segue não andará nas trevas; pelo contrário, terá a luz da vida” (8.12, NAA).

● “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará, sairá e

achará pastagem” (10.9, NAA).

● “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem,

assim como o Pai me conhece, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida

pelas ovelhas” (10.14-15, NAA)

● “Então Jesus declarou: — Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em

mim, ainda que morra, viverá. [26] E todo o que vive e crê em mim não

morrerá eternamente. Você crê nisto?” (11.25-26, NAA)

● “Jesus respondeu: — Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem

ao Pai senão por mim” (14.6)

● “ — Eu sou a videira, vocês são os ramos. Quem permanece em mim, e eu,

nele, esse dá muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada”

(15.5).

● “Estes, porém, foram registrados para que vocês creiam que Jesus é o

Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome”

(20.31, NAA).

171 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


6.7 Esboço

Como é possível perceber abaixo, “a estrutura do Evangelho de João é tão simples

que aquele que o lê dificilmente a perderá” (TENNEY, 1984, p. 200). De fato, trata-se de

um esboço simples e objetivo, com o foco estabelecido em levar os leitores a

conhecerem a Jesus, que é o Cristo e o Filho de Deus (20.31).

Conteúdo Texto

O Filho de Deus é revelado 1

O Filho de Deus é aclamado 2–6

O Filho de Deus sofre oposição 7 – 12

O Filho de Deus triunfa 13 – 21

Quadro 9: Conteúdo e texto.


Fonte: Elaborado pelo Autor

Da mesma forma, simples e objetiva, a Bíblia de Estudo Plenitude também sugere

o seguinte esboço com o foco no ministério de Jesus:

Conteúdo Texto

Prólogo 1.1-8

O ministério público de Jesus 1.19-12.50

O ministério de Jesus aos discípulos 13.1-17.26

Paixão e ressurreição de Jesus 18.1-21.23

172 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Quadro 9: Conteúdo e texto.
Fonte: Elaborado pelo Autor

6.8 Percepção a respeito de Jesus

Para o evangelista João Jesus é:

● O Deus que se tornou homem (1.1, 14; 20.28)

● O Filho de Deus que se relaciona singularmente com o Pai (10.30, 14.9)

6.9 Pontos e assuntos principais

Para se entender os pontos e assuntos principais desenvolvidos no quarto

Evangelho, precisamos considerar o ambiente histórico em que eles se apresentam. De

início, podemos estabelecer que esse cenário se dá em Jerusalém a partir de uma

realidade religiosa do Judaísmo daquela época (HALE, 2001). Não obstante, é claro que

não havia um único Judaísmo, pois como boa parte dos movimentos religiosos, nele

coexistiam diversas correntes.

Nesse sentido, ainda que em menor quantidade de citações se comparado aos

Sinóticos, o texto de João é caracterizado por uma certa influência do AT, tanto por

meio de citações diretas ou de alusões mais amplas (1.45; 2.22; 10.34). Por meio de

tipologias, interessa ao evangelista demostrar que Jesus é o Messias e que nele se

cumpriu todo o AT (1.29 e 19.36 relacionado a Ex 12.45, entre outros). Para além do

aspecto escriturístico, entretanto, podemos constatar a relação desse Evangelho com o

Judaísmo em três outras perspectivas, pelo menos, como discorrem Horster (1993) e

Hale (2001).

173 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Primeiramente, há uma relação dos assuntos tratados por João com o judaísmo

rabínico (7.25-31, 40-44; 12.34). Esse movimento judaico está basicamente centralizado

na Sinagoga e no Sinédrio, mas o Templo também pode ser considerado. Lembremos

que estas instituições foram apresentadas na primeira unidade. Em João, Jesus estabelece

constantes controvérsias com os membros do Sinédrio (3.1; 7.45-52; 9.28-29; 11.45-53)

e em muitos casos o assunto gira em torno da tradição rabínica (5.10-18, 37-47; 7.15-

24; 8.13-19; 10.31-38). A própria autoidentificação de Jesus como o “Eu Sou” (4.26; 6.20,

35, 41. 48, 51; 8.13, 24, 28, 58; 10.7, 9, 11, 14; 11.25; 14.6; 15.1), que teologicamente se

remetia à identificação do Deus do AT, vai de encontro (e confronto) ao judaísmo

rabínico.

Em segundo lugar, o texto de João reflete o judaísmo palestino, que pode ser

melhor compreendido por meio de alguns grupos religiosos e sectários do tempo de

Jesus. As evidências históricas e documentais evidenciam que os essênios – que já foram

apresentados na primeira unidade – possuem um estilo de vida que se assemelha, em

alguns aspectos, ao pensamento apresentado no Evangelho de João. Como afirma Hale

(2001), há uma certa expectativa apocalíptica presente nesses grupos que se manifestam,

algumas vezes, na narrativa joanina (Filho do Homem: 1.51, 3.13-14; Reino: 3.3-5, 18.36;

Juízo: 5.27-29; Tribulação: 16.33; Ressurreição: 11.23-26). Junto com Lucas, João também

demonstra o interesse de Jesus pelos samaritanos, que formavam um grupo étnico

odiado e rejeitado pelos judeus (4.1-30). Mais que isso, “João destaca que o Evangelho

reconcilia e que a missão de Jesus começa pelo mais difícil: quem os judeus menos

apreciavam” (FLUCK, 2020, p. 76).

174 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Em terceiro lugar temos o judaísmo helenístico, que se apresenta por meio de

uma tentativa de integração da visão de um mundo exclusivista judaico com a

cosmovisão predominante da época, isto é, o helenismo. Alguns, como Horster (1993)

chegam até a tentar manter um vínculo mais filosófico entre os dois mundos,

principalmente em relação ao prólogo que discorre sobre o Logos (1.1-4). Contudo, Hale

(2001) aponta que essa relação se deu mais no tipo de vocabulário utilizado por João

em seu Evangelho e nas formas de pensamento dos gregos que dominavam muitos

aspectos da cultura e da língua do mundo naquela época.

Há ainda uma questão importante que, possivelmente, contempla os leitores do

Evangelho de João e que, por assim ser, constituem um perigo à fé. Sabe-se que o

gnosticismo influenciou muito fortemente o mundo a partir do segundo século. Contudo,

na literatura joanina – e até mesmo em outros livros do NT –, por vezes, parece

transparecer que a doutrina gnóstica que se solidificou mais tarde teve seu início, ainda

que de forma incipiente, já no primeiro século. Nesse sentido, conforme afirma Hale

(2001, p. 160), “o quarto Evangelho parece ter estado familiarizado com algumas das

ideias elementares do gnosticismo” e assim “o desafio do movimento gnóstico judaico

teve impacto mais forte sobre o autor (HORSTER, 1993, p. 55).

É por isso que, João, por vezes, parece querer corrigir os erros desse proto-

gnosticismo que apregoava uma dualidade entre o mundo físico e o espiritual, entre o

bem e o mal. Nessa concepção, para os gnósticos seria impossível que um Deus bom,

que é espírito, tomasse a forma física humana, que é má. Se Jesus fosse homem não

poderia ser divino e vice-versa. Deste modo, João mostra que o Logos -– que é o Criador

175 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


e o Salvador – se encarnou em Jesus (1.1,9,10,14) e que o seguidor de Jesus é chamado

a não fugir do mundo (17.5), mas servir nele como Cristo o fez (13.1-20). Aliás, de forma

bem mais ampla, se comparado aos Sinóticos, João dá ênfase ao mundo (Kosmos),

citando-o para se referir às pessoas ou à criação em mais de cinquenta ocasiões.

Nessa perspectiva, diferente dos outros evangelistas, João não descreve o

nascimento de Jesus, mas estabelece sua origem antes de todas as coisas. Na narrativa

joanina, Jesus é eterno (1.1-2) ao mesmo tempo em e é terreno (1.14). Para provar tal

fato, o livro destaca sete sinais (milagres) e sete declarações (discursos), indicando, assim,

quem é Jesus. Como já afirmado, nas sete declarações o próprio Jesus faz questão de

utilizar a expressão “EU SOU”, evidenciando assim sua origem e seu relacionamento com

o Pai. Como reitera Fluck (2020, p. 79) “as declarações de Jesus sobre quem ele é são

sumários da teologia da revelação em João; são o Evangelho em miniatura, [são] imagens

cristológicas” e constituem, assim, uma forma especial e distinta de Jesus se revelar e se

auto anunciar.

6.10 Propósitos fundamentais e ênfases teológicas

O Evangelho parece pressupor que os leitores já conheciam os fatos da vida de

Jesus. Por isso, parece que ele foi escrito aos cristãos, judeus e não-judeus, que

estavam sendo influenciados pelo gnosticismo (uma heresia que negava a divindade

e a humanidade de Jesus) ou mesmo daqueles que corriam o risco de rejeitar o Messias

assim como fizeram os líderes religiosos (na maioria das vezes chamados de judeus,

176 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


apenas). Esses leitores precisavam ser realmente ganhos para fé em Jesus, visto que a

vida eterna depende da correta relação da fé em Cristo.

Nesse sentido, o Evangelho de João é diferenciado, pois ele é o único a descrever

qual é o seu propósito verdadeiro, ou seja, João afirma que ““Na verdade, Jesus fez

diante dos seus discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes,

porém, foram registrados para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus,

e para que, crendo, tenham vida em seu nome” (Jo 20.30-31, NAA). Tenney (1984) afirma

que três palavras devem receber melhor atenção, a saber: sinais, creiam e vida. Os sinais

mostram quem Jesus é e o poder que Ele tem; a crença é um reconhecimento e uma

entrega total da pessoa a esse Cristo e a vida é o resultado de tudo o que o crente

recebe por meio da salvação. Esses três aspectos relacionados por toda a obra apontam

para a organização, o assunto e o propósito central da escrita desse Evangelho.

Hale (2001) destaca uma dúvida em relação ao tempo verbal da expressão

“creiam”, pois os diferentes manuscritos apresentam duas possibilidades de tradução: (1)

para começar a crer ou (2) para continuar crendo. Se o primeiro caso for o correto, o

propósito é de evangelizar os não-cristãos; se o segundo estiver certo, o propósito é de

fortalecer a fé dos cristãos. Tenney (1984, p. 198) simplifica afirmando que o mais

importante é que o ato de crer em Cristo “implica em um processo contínuo de fé,

envolvendo também o progresso”.

Contudo, o cerne do texto é o que mais importa, ou seja, Jesus, aquele mesmo

que nasceu como homem em Nazaré, é o Messias (1.41; 4.25), é o Cristo (forma grega

para Messias), é o Filho de Deus! E crer nele é o alvo de todo leitor, seja judeu ou não.

177 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


É preciso que todos “venham ver” (1.39, NAA), para assim, crer e receber a vida eterna.

Considerando que a expressão “crer” aparece 99 vezes no Evangelho (HALE, 2001), não

há dúvidas que João tem como foco esse pressuposto. Fluck (2020, p. 77) complementa

que “a mensagem de João também é diferenciada: ele não apresenta o chamado ao

arrependimento, mas, sim, a afirmação de que a fé verdadeira, acompanhada por

obediência, significa transformação na vida”

É por isso que, diferentemente dos Sinóticos, “este Evangelho é fortemente

teológico, e discute particularmente a natureza da Sua pessoa e o significado da fé nEle”

(TENNEY, 1984, p. 193). Assim sendo, para levar seu leitor a crer e ter uma vida

transformada, de forma proposital João apresenta algumas provas: Jesus realiza 7 sinais

miraculosos, revelando a sua natureza e origem, e, igualmente, faz 7 declarações, em

que advoga para Si a deidade, quando afirma “EU SOU”, que, como se sabe, era uma

expressão utilizada pelo próprio Deus no Antigo Testamento (Ex 3.14). Senão, vejamos:

● AS SETE DECLARAÇÕES

o “Eu sou o pão da vida” (6.35)

o “Eu sou a luz do mundo” (8.12; 9.5)

o “Eu sou a porta” (10.7, 9)

o “Eu sou o bom pastor” (10.11)

o “Eu sou a ressurreição e a vida” (11.25)

o “Eu sou o caminho, a verdade, e a vida” (14.6)

o “Eu sou a videira verdadeira” (15.1)

● OS SETE SINAIS

178 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


o A transformação da água em vinho, em Caná (2.1-10)

o A cura do filho do funcionário do rei (4.46-54)

o A cura do enfermo (paralítico) em Betesda (5.1-9)

o A multiplicação de pães e peixes (6.1-13)

o Jesus caminhando sobre o mar da Galileia (6.16-21)

o A cura do cego de nascença (9.1-12)

o A ressurreição de Lázaro (11.1-46)

Tenney (1984, p. 198) acrescenta que “estes sinais se deram precisamente nas

áreas em que o homem é incapaz de efetuar qualquer mudança de leis ou condições

que afetem sua vida”. De fato, por meio delas Jesus evidencia seu poder sobrenatural.

Para além disso, João também apresenta, pelo menos, cinco ênfases teológicas e todas

elas não são independentes uma da outra. Elas estão relacionadas entre si e só podem

ser percebidas nesse vínculo necessário do texto como um todo. São elas:

● Ênfase Cristológica: Jesus é o Filho de Deus do início (1.1-14) ao final do

Evangelho (20.31). Essa será inclusive a razão para a morte de Jesus (19.7).

Em complemento a essa ideia, vários outros textos discorrem sobre o

assunto com a finalidade de demonstrar a plenitude de Jesus como Filho

de Deus que tem um relacionamento especial com o Pai (1.3, 17, 41, 49;

3.8, 23; 4.9,15). A expressão “EU SOU” utilizada por Jesus e os sinais

miraculosos realizados por ele apenas ratificam seu messianismo e filiação

divina. Para além disso, o assunto teológico primário de João é a atuação

179 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


do Pai no Filho, como alguém que participa da própria natureza do Pai (Pai

– patér – aparece 121 vezes em João). Há uma unidade perfeita do Pai e

do Filho em ação no mundo. Devemos lembrar ainda que “em João, Theós

(Deus) ocorre 82 vezes relacionado à Cristologia” (FLUCK, 2020, p. 78) e que

o Filho é preexistente eterno com o Pai (1.1, 14).

● Ênfase pneumatológica: A presença e o papel do Espírito Santo se

ressaltam nesse Evangelho de forma especial e em vários momentos (1.32-

33; 3.5-8, 34; 7.39; 14.15-31; 15.26; 16.4-15; 20.22). O Espírito é Aquele que

desce sobre Jesus, é quem batiza, é quem convence do pecado, é dado

sem medida aos que creem, é Aquele que habita no crente, é o Consolador,

é a companhia que atuará nos fiéis a partir da ausência corporal de Cristo

e é o Espírito da verdade que guiará as pessoas à verdade e a Jesus.

Lembremos, inclusive, que boa parte dos textos sobre o Espírito estão

inseridos no contextos das palavras de despedida de Jesus. Por fim, vale

lembrar que há mais do que uma ênfase no assunto, afinal, “a divindade

do Espírito Santo é testemunhada no Evangelho de João” (FLUCK, 2020, p.

84).

● Ênfase soteriológica: João apresenta três aspectos que se ressaltam em

sua visão soteriológica. (1) Em primeiro lugar ele destaca a universalidade

da salvação (3.16; 4.42), ou seja, a salvação é suficiente para todas as

pessoas e é eficiente para aqueles que creem. (2) Em segundo lugar, João

180 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


mostra a importância da morte substitutiva de Jesus (1.29; 3.6; 6.51) e, em

terceiro lugar (3), João dá um grande valor ao chamado à fé (3.16, 36; 5.24;

6.40.47). Essa fé se manifesta pelos conceitos crer e reconhecer, crer e

confessar, sempre lado a lado. Enquanto a salvação é destinada a todos,

ela alcança apenas ao indivíduo que crê.

● Ênfase eclesiológica: Não há citações diretas sobre a igreja, pois diferente

de Mateus, o termo ekklesia não aparece. Porém, é certo que quem lê com

atenção os capítulos 10; 15; 17; 20.19-23 e 21 perceberá que, de fato, o

conceito eclesiológico já está presente, ainda que de forma incipiente. Ele

é o pastor com um rebanho e a videira com os ramos. Antecipadamente,

ele ora por seus seguidores para que sejam unidos e, por fim, Ele os envia

para a missão depois de soprar sobre eles o Espírito

● Ênfase escatológica: A escatologia presente está em constante tensão com

a escatologia futura. Como afirma Fluck (2020, p. 82), o “evangelista tem

um “pensamento bitemporal”, e a salvação tem dimensões presentes e

futuras”. Como exemplo, em João 5.24 aquele que crê já tem a vida eterna;

porém, em João 6.40, apesar de também crer, essa pessoa será ressuscitada

apenas no último dia. Mas isso não é uma contradição; trata-se do conceito

“já e ainda não”, que também aparece nos textos de Paulo, por exemplo.

Por fim, a volta de Cristo é reafirmada por meio de sua parusia (21.22),

quando os crentes reencontraram com o seu Senhor, isto é, Jesus, enquanto

outros ressuscitarão para o juízo (5.29)

181 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● Ênfase apologética: Se o texto realmente tem em mente os leitores que

podem estar sendo influenciados por uma espécie de gnosticismo

embrionário, de fato, João procura defender a verdadeira forma de se crer

em Jesus, que é terreno (humano) e espiritual (Deus) ao mesmo tempo (1.1,

14; 20.31). Os falsos ensinos recusavam a encarnação do Cristo preexistente

e da corporeidade do Filho de Deus, afirmando que ele apenas tinha uma

aparência humana. Com isso, negavam o aspecto salvífico da vida e da

morte de Jesus. O Evangelho de João, por sua vez, afirmava a unidade

indissolúvel do Jesus terreno com o Cristo celestial (1.14; 6.51-58; 19.34-

35).

6.11 Assuntos exclusivos

João é um livro em que é examinado quem Jesus realmente é. Desde o início, é

mostrado que Jesus é muito mais do que um ser humano; ele é Deus, e sempre foi Deus.

A manifestação do Verbo no início (1.1-18) tem a intenção de mostrar a preexistência

de Cristo e a maravilhosa graça manifesta por meio da encarnação. João é singular nessa

forma de apresentar Jesus aos seus leitores.

Do mesmo modo, os sete sinais miraculosos e as sete declarações revelatórias

constituem aspectos exclusivos que são enfatizados por João. Para além disso,

caracterizando a diferença dos Evangelhos Sinóticos com o quatro Evangelho,

constatamos que o uso de determinadas expressões são também diferentes. Lembremos

182 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


ainda que dos 7 milagres, 5 são exclusivos de João. A exclusividade desse Evangelho

também pode ser percebida na seguinte afirmação:

É possível que o Evangelho de João tenha sido escrito como uma tentativa

conscienciosa de completar os relatos correntes da vida e obra de Jesus

que tinham encontrado expressão escrita nos Evangelhos Sinóticos

canônicos. Ninguém pode afirmar dogmaticamente que João conhecesse

e lesse Mateus ou Marcos ou Lucas. No entanto, a omissão geral do

ministério da Galileia, a quase total falta de parábolas, a referência

definida à escolha dos milagres (20.30) e a ligação de alguns dados

históricos de João com os Sinóticos fazem pensar que o autor se esforçava

por dar ao publico novas informações que não tinham sido usadas antes

nas obras já descritas (TENNEY, 1984, p. 205)

Nessa perspectiva, devemos lembrar que os Sinóticos utilizam termos que

parecem ser cruciais ao Evangelho, mas João utiliza pouco ou mesmo não as utiliza em

momento algum. Hale (2001) cita alguns exemplos destes termos mais ausentes: reino,

demônio, povo, poder, compaixão, evangelho, orar, pregar, parábola, publicano etc.

Porém, a verdade é que João também utiliza termos fundamentais ao Evangelho com

certa regularidade e que, por sua vez, não estão presentes ou não são abundantes nos

Sinóticos. Segundo Hale (2001) são eles: amor, verdade, saber, mundo, vida, luz,

Consolador etc. Essa percepção aponta para a singularidade desse Evangelho e para a

complementariedade dele em relação aos Sinóticos.

183 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


6.12 Algumas dificuldades

Numa leitura simples não encontramos qualquer problema com o conteúdo do

Evangelho de João. Contudo, algumas supostas dificuldades sobre a unidade textual do

Evangelho de João foram levantadas por pesquisadores. Para esses, a forma como o

Evangelho se apresenta hoje não seria a forma como ele realmente foi escrito. Hale

(2001) resume dois tipos principais de dificuldades nesse sentido, a saber: para alguns,

(1) existem textos que estão “fora de lugar” na narrativa, ou seja, são supostos

deslocamentos e (2) existem textos que não constam nos manuscritos mais antigos e,

por isso, alguns sugerem que foram textos inseridos posteriormente.

Em relação aos deslocamentos, Hale (2001, p. 151) apresenta a questão dizendo

que, em tese, “há vários lugares onde pareceria que a sequência de eventos e

pensamentos seria melhorada se houvesse uma reorganização do texto”. Alguns chegam

a sugerir que pudesse ter ocorrido uma troca de folhas no trabalho dos copistas; já,

outros, sugerem que as diferentes fontes utilizadas podem ter causado a confusão ou

que mesmo uma revisão redacional posterior – talvez, elaborada por um discípulo de

João – tenha contribuído para isso. Há ainda alguns que sugerem que João escreveu por

partes e com constantes interrupções e isso pode ter levado à inserção de novos textos

sem a necessidade de reescrever toda a obra.

Entre esses textos “problemáticos”, destacamos apenas alguns junto com Horster

(1993) e Hale (2001):

● 3.22-30: poderia ser melhor “encaixado” depois de 2.12,

184 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● Capítulos 5-6: No final do capítulo 4 e no início do capítulo 6 Jesus está na Galileia;

porém, nos capítulo 5 e 6 ele está na Judeia. Por isso, alguns perguntam se os

capítulos não foram trocados, já que a mudança de local de Jerusalém para a

Galileia acontece sem aviso ou explicação.

● 7.15-24: parece ser uma extensão da discussão do capítulo 5,

● 10.19-29: parece dar continuidade ao argumento do capítulo 9,

● Capítulos 15-17: por fim, alguns também afirmam que esses capítulos parecem

ser um acréscimo posterior ao final do discurso em 14.31.

Hale (2001) rejeita essa questão de deslocamento de texto em João, afirmando

que qualquer tentativa de realocação, conforme sugeriram os críticos, são ambíguas,

subjetivas, equivocadas e arbitrárias, pois foram baseadas em argumentações frágeis e

sem sentido, que apenas mutilariam o Evangelho, e não o reorganizariam como afirmam.

Para Hale (2001) a estrutura proposta por João no formato atual é contínua, sim, pois

ela está coerente com o pensamento e a intenção teológica (e não cronológica ou

geográfica) do autor.

Uma questão mais complicada é o texto entre 7.53 e 8.11. De fato, esse texto –

da mulher adúltera – não consta nos manuscritos mais antigos do NT e, por isso, pode

mesmo ter sido acrescentado ao Evangelho de João a partir de outras fontes. Contudo,

ainda que seja um acréscimo, precisamos lidar com o texto como ora o recebemos. E

aliás, devemos considerá-lo canônico como a igreja o considerou. Afinal, mesmo que

tenha sido acrescentado posteriormente, o episódio realmente pode (e deve) ter

acontecido e o relato não muda alguma coisa na forma como Deus se revelou. Além

185 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


disso, a autenticidade do texto também é reforçada pelas alusões de alguns textos

patrísticos nos primeiros séculos.

Outro problema ocorre com o capítulo 21, como lembra Hoster (1993). Para

muitos, esse capítulo parece ser um epílogo de outro autor, já que em 20.30-31 é feito

o encerramento do Evangelho. Devemos nos atentar para o fato de que em 21.24 a mão

de alguém que ajudou o autor é evidente. Contudo, ainda que seja um epilogo posterior,

não há nada no texto que altere a forma de Jesus se revelar aos seus apóstolos. Por fim,

reitero que entendo ser esse um texto do próprio autor, ainda que ele tenha utilizado

um amanuense para escrever em seu lugar.

6.13 Algumas curiosidades

O Evangelho de João contém alguns dos versículos mais conhecidos e dos temas

mais recorrentes de toda a Bíblia. Não é por acaso que o grande tema de João é o

AMOR (3.16). Aliás, esse tema permeia toda a obra. Vejamos o contexto entre os

capítulos 13-17 de João, quando os discípulos estavam ansiosos com a possibilidade de

perder Jesus e estavam preocupados com o que aconteceria com eles na ausência do

mestre. Em sua resposta a esta ansiedade, Jesus estabelece a maneira sobre como eles

conseguiram continuar: amando uns aos outros e, assim, apoderar-se dos laços de amor

que, por meio de Jesus, nos une ao Pai

Alguns, erroneamente, afirmam que pelo estilo de escrita (escrevendo sobre “os

judeus” e sobre as autoridades religiosas que se opuseram a Jesus), João parece ser

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antissemita. Ledo engano, afinal, João e Jesus eram judeus e ele mesmo relata que

muitos judeus creram (11.45; 12.11,42).

Por fim, devemos lembrar que João foi um dos poucos junto a Cruz e um dos

primeiros a ver o túmulo vazio, e apesar de ser posteriormente reconhecido como o

discípulo do amor, ele foi antes tratado por Jesus em relação ao seu temperamento

explosivo (Mc 3.17, Lc 9.52-54).

6.14 Conclusão

Em sua narrativa, seletiva e intencional, João tem um propósito e por isso mesmo,

ele tem um estilo próprio (20.30-31). Esse Evangelho se destina a todos que querem

refletir com maior profundidade a respeito de Jesus. Por isso, é mais do que um relato

do que Jesus fez. Bem mais que isso, é uma afirmação poderosa e profunda sobre quem

Ele é. Por ser amigo de Jesus, João passou muito tempo com Ele. E por isso sua

mensagem é clara: Jesus é o Filho de Deus (Mt 17.5 – João estava lá).

Só podemos concluir ressaltando o quanto esse Evangelho é singular, ao ponto

de que, se citarmos alguns versículos isolados, facilmente eles serão reconhecidos. Como

exemplo, João 3.16 é o que muitos chamam de resumo de toda a Bíblia. E seu Evangelho

também se resume nesse amor de um Deus que se encarnou, morreu em nosso lugar,

para que pudéssemos crer nEle e receber a vida (3.16; 20.31)

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Unidade Revisional 2
Nas três unidades finais desta disciplina aprendemos alguns aspectos destacados

abaixo:

Unidade 4

● O Evangelho de Mateus foi o mais utilizado em comparação com todos os outros.

Ele é o Evangelho que mais influenciou a primeira geração de cristãos

● Mateus é uma referência acadêmica e teológica sobre a pregação de Jesus

● O livro de Mateus também não temos informações sobre quem, de fato, é o autor.

Trata-se, portanto, de uma autoria anônima

● Mesmo que tenhamos algumas dúvidas sobre a autoria, esse Evangelho é

reconhecido pela tradição da igreja como resultado do trabalho de Mateus,

também chamado Levi, que foi um dos doze apóstolos de Jesus

● Pode ser que em uma forma anterior, o Evangelho de Mateus tenha sido

elaborado em hebraico/aramaico

● A data da escrita do Evangelho de Mateus é incerta; contudo, podemos situar a

escrita do Evangelho escrito Mateus em uma data aproximada entre os anos 65-

70 d.C.

● Acredita-se que Mateus tenha escrito o Evangelho em algum lugar da Palestina,

possivelmente na cidade de Antioquia da Síria, que era um lugar estratégico e

importante para o cristianismo

● As fontes de escrita de Mateus são: obra de Marcos, Fonte “Q” e Fonte “M”, que

190 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


se caracteriza por ter material exclusivo de Mateus

● O público-alvo de Mateus é possivelmente formado pelos judeu-cristãos,

possivelmente de Antioquia da Síria

● Mateus estabelece uma relação direta com o AT e as suas promessas

● Como todos os quatro primeiros livros do NT, Mateus faz parte de um gênero

específico designado de Evangelho. Ainda assim, ele se utiliza da outros recursos

literários que o ajudam a transmitir sua mensagem.

● Mateus utiliza-se também das parábolas, que constituem uma parte importante

de sua estratégia de ensino sobre o Reino de Deus

● Mateus dá um valor superior aos ensinos de Jesus e ele organiza esses ensinos

em blocos

● Mateus organiza o seu material seguindo o mesmo ponto de vista geográfico

(Galileia – Região da Galileia – viagem para Jerusalém – Jerusalém). Após a

ressurreição, a aparição de Jesus aos seus discípulos se dá novamente na Galileia

● Um dos aspectos que se ressaltam na estrutura do Evangelho de Mateus é a sua

divisão em cinco seções, organizada de maneira lógica e sistematizada, por meio

de blocos que contemplam uma narrativa inicial que é seguida por um discurso

de Jesus. Normalmente, essas seções terminam com a expressão “quando Jesus

acabou de proferir essas palavras”

● Para o Evangelista Mateus Jesus é:

1. O Messias prometido em cumprimento às profecias do AT (16.16),

2. O Filho de Deus (14.33; 16.16),

191 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


3. O Filho do Homem (16.28),

4. O Rei que estabeleceu um Reino (2.2; 21.5; 27.11, 37)

5. O Servo que veio para servir (12.18, 20.28),

6. O mestre formidável (7.28,29; 8.19),

7. O profeta que é maior que Moisés (5.22, 28, 32),

8. O grande intérprete da Lei (5.21, 27, 33, 38, 43).

● Os assuntos e pontos principais de Mateus são:

1. Jesus é o Messias Prometido de Israel

2. Jesus é o Rei de Israel e implantou o Reino dos Céus

3. Jesus, é o grande mestre que cumpriu a lei (5.17), mas a

4. reelaborou para uma lei melhor

5. Jesus fez contundentes repreensões aos fariseus

6. Jesus é desprezado pelos israelitas

7. Jesus apresenta importantes ensinos

8. O discipulado é um tema importante

● Os propósitos fundamentais de Mateus são: litúrgico, querigmático, didático e

apologético.

● As ênfases teológicas de Mateus são as seguintes: Cristológica, Soteriológica,

Eclesiológica e escatológica

● Mateus procura estabelecer um elo entre o AT e o NT, dando ênfase na realeza e

nos ensinos de Jesus. E ainda, já faz os apontamentos iniciais daquilo que viria a

constituir, em Pentecostes, a igreja de Jesus.

192 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


● O propósito de Mateus é apresentar Jesus como o grande Messias, o Filho de

Deus, o verdadeiro Rei Prometido de Deus e esperado tantos anos pelos judeus.

E ele faz isso por meio do seu tema principal que é o Reino dos Céus que tem

Jesus como o seu Rei.

Unidade 5

● O Evangelho de Lucas é um dos mais belos livros já escritos, é uma obra bela,

completa, que resulta de um trabalho cuidadoso de um autor que foi um exímio

historiador, um distinto investigador e um detalhista observador

● Há uma unidade literária na obra produzida por Lucas, assim, os livros de Atos

dos Apóstolos e do Evangelho de Lucas constituem uma única obra em dois

volumes. No Evangelho, Lucas apresenta o ministério de Jesus; em Atos, ele

apresenta a ação ministerial sendo realizada por meio dos apóstolos e da igreja

● O terceiro Evangelho, assim como os demais, não apresenta de forma explicita

quem é o seu autor. Trata-se, portanto, de uma autoria anônima, pois não há

nenhuma informação no próprio livro que esclareça sua origem

● O autor desse Evangelho tinha uma alta capacidade literária e uma boa

preparação intelectual. Era um homem culto, conhecedor do Antigo Testamento

e considerado bom historiador e escritor

● Ainda que algumas discordâncias sobre essa autoria tenham surgido, desde o

segundo século acredita-se que Lucas, o médico que era o companheiro de Paulo

em boa parte das viagens missionárias, seja o autor desse Evangelho. A tradição

da igreja e as evidencias internas do próprio texto corroboram com essa

193 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


possibilidade o Sob uma perspectiva teológica, outra razão para acreditarmos na

autoria lucana é que o autor do evangelho tem uma afinidade significativa com a

teologia paulina

● Quando sugerimos uma data de escrita para o terceiro Evangelho, partimos do

pressuposto que Lucas e Atos formam uma única obra em dois volumes e que,

resta óbvio, a escrita do Evangelho deve preceder o livro histórico.

● Diante da conclusão abrupta de Atos, esse livro deve ter sido escrito antes do fim

da primeira prisão de Paulo em Roma (cerca de 67 d.C.). Além disso, Lucas tem

por base o Evangelho de Marcos, escrito entre 64/65 d.C., provavelmente, e esse

aspecto também deve ser considerado

● Diante das sugestões dos diferentes comentaristas e também levando em

consideração uma percepção do contexto histórico, sociocultural e teológico da

escrita de Lucas-Atos, temos, provavelmente, uma data próxima e posterior ao

ano 65 d.C.

● Ainda que não se tenha convicção do local de onde Lucas escreveu, é certo que

Lucas escreveu essa obra fora da Palestina com um foco em leitores cristãos-

gentios

● Em Lucas temos mais informações sobre a fonte de suas pesquisas. Afinal, Lucas

afirma, de forma explicita e intencional, que seu Evangelho resulta de um trabalho

sério de investigação que considerou as diversas fontes orais e escritas que já

circulavam (1.1-4)

● As fontes de Lucas são: obra de Marcos, a Fonte “Q”, a Fonte “L” (exclusiva a

194 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Lucas) e uma fonte exclusiva significativa que é a narrativa do nascimento e

infância de Jesus nos dois primeiros capítulos da obra

● Lucas é claro ao apresentar seu destinatário. Trata-se de Teófilo (1.3), que tem

“um nome composto por duas palavras gregas (theo + filos) e que significa ‘amigo

de Deus’”, que pode ser uma pessoa real (um homem culto, um funcionário

romano, um patrocinador da obra etc.)

● Além disso, o autor tinha em mente os cristãos-gentios também como alvo de

sua escrita

● Lucas também tem um gênero literário específico, isto é, trata-se de um

Evangelho. Ainda assim, ele se utiliza da outros recursos literários que o ajudam

a transmitir sua mensagem. Entre outros, destacamos parábolas, cânticos, poesias,

histórias, diálogos e declarações de personagens, provérbios, citações do AT

(diretas e indiretas), genealogias, narrativas de milagres, narrativas de histórias da

infância de Jesus e outras narrativas em geral o Seu foco é a narrativa histórica

de forma ordenada e, por isso mesmo, ele se caracteriza por ser

predominantemente histórico

● Lucas tem um estilo literário bem mais refinado, pois utiliza um vocabulário rico

e diversificado. É um texto riquíssimo em variação de palavras e com excelência

de gramática e alta qualidade de estilo

● Diferentemente de Marcos, que tem um estilo rápido e Mateus que tem um estilo

discursivo, o estilo literário do Evangelho de Lucas é mais sofisticado o Lucas

organiza o seu material seguindo o mesmo ponto de vista geográfico (Galileia –

195 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Região da Galileia – viagem para Jerusalém – Jerusalém). Aliás, a Galileia ganha

um destaque especial, pois o próprio ministério de Jesus começa num lugar

excluído pela elite religiosa da Judeia

● Considerando sua historicidade, Lucas estabelece uma relação entre a história de

Jesus e a história do mundo

● Para o Evangelista Lucas Jesus é:

1. O Messias (2.11, 4.41, 9.20, 20.41, 24.26 etc.)

2. O homem cheio do Espírito Santo (1.15; 3.22; 4.1, 14, 18; 10.21)

3. O descendente prometido da linhagem de Davi (1.27; 1.32; 2.4, 11; 3.31-32;

18.38; 20.41)

● Os pontos e assuntos principais de Lucas são: amor que Jesus tem pelos grupos

desprezados e marginalizados da sociedade, pelos pecadores assumidos e de

outros que são assim rotulados (os samaritanos, as mulheres por exemplo).

● Para Lucas, Jesus é o Salvador de todas as pessoas. Até mesmo as crianças têm

um destaque especial. Por isso, Jesus se interessa muito nas relações sociais,

normalmente realizada com pessoas menosprezadas. Por isso, os pobres e aqueles

que são oprimidos têm um lugar especial nesse Evangelho o Lucas também

mostra a atitude crítica de Jesus em relação aos ricos e às riquezas, destaca o

papel da oração e o lugar do júbilo, louvor e alegria na caminhada cristã

● Os propósitos fundamentais de Lucas são: catequético, histórico, organizacional,

apologético e legal.

● As ênfases teológicas são: Soteriológica, Pneumatológica, Escatológica e

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Missiológica

● A obra produzida por Lucas retrata, sem dúvida, o empreendimento literário mais

audacioso no contexto da igreja primitiva. De forma singular, Lucas é chamado

de historiador justamente “porque narra a história da salvação dentro da história

humana”

Unidade 6

● O Evangelho de João é diferente dos Sinóticos, pois destaca apenas alguns atos

de Cristo. Por sua vez, a ênfase desse Evangelho está nos sinais e nas declarações

que revelam Deus por meio de Jesus Cristo

● Seu caráter teológico é incomparável e sua mensagem, simples e objetiva, que

revela quem Jesus é o que Ele fez, com base em seu amor, tem levado milhares

de pessoas a aceitarem a fé em Cristo.

● Talvez, por ser o último Evangelho escrito, João é também aquele que interpreta

Jesus de forma distinta e singular. Nessa obra, Jesus não é apenas o Filho de

Deus; Ele é o próprio Deus

● Apesar de ser diferente de Mateus, Marcos e Lucas, a verdade é que esse

Evangelho não foi escrito para contrariar os Sinóticos; ele apenas os complementa

de forma especial, pois ele tem uma intenção teológica clara e consistente em

sua narrativa.

● Ele é o Evangelho da fé, que tem como propósito fundamental exercitar a crença

em Jesus, o Cristo, naqueles que lerão as suas páginas (20.31).

● Não há uma informação explicita no quarto Evangelho sobre de quem é o autor.

197 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Trata-se, portanto, de uma autoria anônima. Além disso, para dificultar a questão,

ocorreram muitos debates na história da igreja sobre o autor desse Evangelho e

essas disputas continuam acirradas até hoje

● De um lado, estudiosos modernos preferem acreditar que o apóstolo João não é

o autor desse Evangelho e o máximo que aceitam é que talvez ele esteja por trás

da tradição que originou esse livro.

● Outros acreditam que um certo ancião, também de nome João, que viveu em

Éfeso no final do primeiro século seja o seu autor. Há ainda alguns que sugerem

outros nomes como João Marcos, Lázaro ou um João qualquer.

● Por outro lado, existem aqueles que, partindo de um pressuposto mais

conservador, acreditam que existem evidências suficientes para se creditar a

autoria ao apóstolo João, mesmo que ele tenha utilizado um secretário nessa

composição

● Para tentarmos encontrar o autor, algumas evidências podem e devem ser

consideradas, tanto em seu aspecto interno (o texto) quando em seu aspecto

externo (a história). Em ambos os casos, João, um dos doze apóstolos é o

candidato mais provável, afinal, entre os cristãos dos primeiros séculos e até

mesmo entre movimentos heréticos gnósticos, João é reconhecido como o autor

do quarto do Evangelho

● Não diferente das divergências na questão de autoria, a tentativa de se

estabelecer uma data para a escrita do quarto Evangelho também é controversa.

Diante dos fatos históricos e teológicos analisados, podemos ficar com uma data

198 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


aproximada entre 70 e 100 d.C.

● Na igreja primitiva acreditava-se que João, já idoso, escreveu ou ditou o Evangelho

para um amanuense (um secretário) a partir de Éfeso, na Ásia

● Diferentemente da relação sinótica, constamos que há pouca dependência dessa

obra em relação aos outros três Evangelhos, afinal, cerca de 90% de João é

exclusivo

● Há a possibilidade de que existam duas tradições paralelas que serviram de fontes

para os evangelistas: uma é da região da Galileia e outra da Judeia. Se isso for

verdade, Marcos e Mateus seguiram a tradição da Galileia, Lucas contemplou a

ambas (e talvez mais) e João, por sua vez, baseou-se na tradição da Judeia

● Tanto nos assuntos que priorizou quanto na ordenação geográfica que aplicou

em sua narrativa, o foco de João está na Judeia e não tanto na Galileia como

descreveram os sinóticos.

● Não temos muitas informações sobre o público-alvo do Evangelho de João, mas

é bem possível que o público-alvo da escrita eram os leitores gentílicos

● João quer que seus leitores creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e assim

tenham vida em seu nome (20.31). Se esse propósito está relacionado ao público-

alvo, o mais correto é partir do pressuposto que o foco está, na verdade, nos

leitores – quer sejam judeus, quer sejam gentios – que poderiam estar sendo

influenciados pela heresia gnóstica.

● Por si só, esse livro faz parte de um gênero específico designado como

“Evangelho”. Trata-se uma produção literária que tem por finalidade apresentar

199 |Evangelhos Sinóticos e João - FVC


Jesus, a sua vida, a sua obra e a sua mensagem. Entretanto, como também é

comum nos demais Evangelhos, dentro desse gênero podemos encontrar

subgêneros, tais quais: relatos, história de milagres, histórias de chamados,

histórias de conflitos, histórias de testemunhos, história da paixão, discursos etc.

● Em seu estilo, João escreve de uma forma cíclica e nem sempre retilínea e objetiva;

é uma forma oriental e não ocidental de transmitir a mensagem

● O Evangelho de João exige uma leitura cuidadosa e reflexiva, principalmente pelo

caráter teológico que nele se ressalta. Ele reforça a divindade de Jesus por meio

de 7 declarações “Eu Sou” e as confirma por meio de 7 sinais miraculosos

● Em seu estilo, João quer mostrar que Jesus, de fato, é um ser histórico que

irrompeu na história para viver uma vida entre as pessoas da Palestina daquela

época.

● No aspecto geográfico, o texto de João está organizando de forma diferente.

Enquanto os sinóticos descrevem apenas uma possível viagem de Jesus, da Galileia

para Jerusalém, João apresenta mais viagens. De fato, no Evangelho de João ele

faz pelo menos três ou quatro visitas a Jerusalém

● No aspecto gramatical, o Evangelho apresenta um grego simples, sem erros, com

vocabulário pequeno, sentenças simples, com pano de fundo semítico nas frases

e expressões utilizadas

● Para o evangelista João Jesus é:

1. O Deus que se tornou homem (1.1, 14; 20.28)

2. O Filho de Deus que se relaciona singularmente com o Pai (10.30, 14.9)

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● Os pontos e assuntos principais desenvolvidos no quarto Evangelho, estão

pautados no ambiente histórico que se dá em Jerusalém a partir de uma realidade

religiosa do Judaísmo daquela época. Esse judaísmo não é unanime, e se

apresenta em três níveis, pelo menos: judaísmo rabínico, palestino e helenístico.

Além disso, a heresia gnóstica estava aparecendo, ainda que de forma incipiente

● Entre os propósitos fundamentais, constatamos que João foi escrito aos cristãos,

judeus e não-judeus, que estavam sendo influenciados pelo gnosticismo

● O Evangelho de João é diferenciado, pois ele é o único a descrever qual é o seu

propósito verdadeiro, ou seja, João afirma que “Na verdade, Jesus fez diante dos

seus discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes,

porém, foram registrados para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de

Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome” (Jo 20.30-31, NAA)

● As ênfases teológicas do quarto Evangelho são: Cristológica, Pneumatológica,

Soteriológica, Eclesiológica, Escatológica e apologética

● João é um livro em que é examinado quem Jesus realmente é. Desde o início, é

mostrado que Jesus é muito mais do que um ser humano; ele é Deus, e sempre

foi Deus. A manifestação do Verbo no início (1.1- 18) tem a intenção de mostrar

a preexistência de Cristo e a maravilhosa graça manifesta por meio da encarnação.

João é singular nessa forma de apresentar Jesus aos seus leitores.

● Algumas supostas dificuldades sobre a unidade textual do Evangelho de João

foram levantadas por pesquisadores. Para esses, a forma como o Evangelho se

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apresenta hoje não seria a forma redacional como ele realmente foi escrito.

Entretanto, rejeitamos essa questão de deslocamento de texto em João, afirmando

que qualquer tentativa de realocação, conforme sugeriram os críticos, são

ambíguas, subjetivas, equivocadas e arbitrárias, pois foram baseadas em

argumentações frágeis e sem sentido, que apenas mutilariam o Evangelho, e não

o reorganizariam como afirmam

● Há também a possibilidade, indicada por alguns pesquisadores, que o texto entre

7.53 e 8.11 e o capítulo 21 foram acrescidos, pois enquanto a primeira referência

de fato não está presente nos manuscritos mais antigos, o último capítulo tem

fortes indícios de realmente ter sido escrito posteriormente por um amanuense.

● O Evangelho de João contém alguns dos versículos mais conhecidos e dos temas

mais recorrentes de toda a Bíblia. Não é por acaso que o grande tema de João é

o AMOR

● Em sua narrativa, seletiva e intencional, João tem um propósito e por isso mesmo,

ele tem um estilo próprio (20.30-31). Esse Evangelho se destina a todos que

querem refletir com maior profundidade a respeito de Jesus. Por isso, é mais do

que um relato do que Jesus fez. Bem mais que isso, é uma afirmação poderosa e

profunda sobre quem Ele é. Por ser amigo de Jesus, João passou muito tempo

com Ele. E por isso sua mensagem é clara: Jesus é o Filho de Deus

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Atividades de Aprendizagem

1. Sabemos que Deus conduziu a história para revelar seu Filho no tempo certo. A
história do mundo, entre o final do AT e o início do NT, convergiu para um
momento significativo e por isso, diante de tudo o que vimos, de fato, Jesus não
poderia ter nascido em qualquer época. Ele teve um tempo específico para nascer
e Deus, em sua infinita sabedoria, preparou tudo para que o Verbo se encarnasse
no tempo certo. Qual nome a Bíblia dá para esse tempo?

a. Convergência dos tempos


b. Plenitude dos tempos
c. Fim dos tempos
d. Amplitude dos tempos

2. Temos quatro Evangelhos na Bíblia. Destes, três são reconhecidos como


Evangelhos Sinóticos. O que a designação “sinótico” significa?

a. Vistos de um ponto de vista paralelo; são dois olhares


b. Vistos de um ponto de vista incomum; são olhares diferentes
c. Vistos de um ponto de vista em comum; um mesmo olhar
d. Vistos de um ponto de vista duvidoso; mas um mesmo olhar

3. O público-alvo do Evangelho de Marcos são:

a. Os gentios, possivelmente os romanos


b. Os judeus, possivelmente os galileus
c. Os gentios, possivelmente os gregos
d. Os judeus, possivelmente os samaritanos

4. Entre os propósitos do Evangelho de Marcos podemos afirmar que dois deles


são os seguintes:

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a. Teológico e Pneumatológico
b. Teológico e Evangelístico
c. Cristológico e Pneumatológico
d. Cristológico e Evangelístico

5. Entre os lugares mais prováveis de onde Mateus escreveu seu Evangelho


podemos supor que em:

a. Alexandria, no Egito
b. Jerusalém em Israel
c. Antioquia da Síria
d. Éfeso, na Grécia

6. Depois de comparar os estilos de escrita dos Evangelhos, podemos afirmar que:

a. Mateus dá um valor superior aos ensinos de Jesus e ele organiza esses ensinos
em blocos
b. Marcos dá um valor superior aos ensinos de Jesus e ele organiza esses ensinos
em blocos
c. Lucas dá um valor superior aos ensinos de Jesus e ele organiza esses ensinos
em blocos
d. João dá um valor superior aos ensinos de Jesus e ele organiza esses ensinos em
blocos

7. Sob uma perspectiva teológica, uma razão para acreditarmos na autoria de


Lucas é justamente porque ele trata de temas escritos por outro autor do NT e
que, de certa forma, o influenciou em sua obra. Senso assim, podemos afirmar
que:

a. O autor do evangelho tem uma afinidade significativa com a teologia mateana


b. O autor do evangelho tem uma afinidade significativa com a teologia joanina
c. O autor do evangelho tem uma afinidade significativa com a teologia petrina
d. O autor do evangelho tem uma afinidade significativa com a teologia paulina

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8. Qual é o Evangelho que procura informar o seu leitor sobre suas fontes de
pesquisa?

a. Mateus
b. Lucas
c. Marcos
d. João

9. O Evangelho de João possui muitas diferenças em relação aos outros


Evangelhos. Entre essas diferenças, qual aspecto abaixo é um importante diferencial da
obra joanina?

a. Caráter teológico, pois ele é altamente Cristológico


b. Caráter humanista, pois ele é profundamente antropológico
c. Caráter prático, pois ele é intensamente evangelístico
d. Caráter doutrinário, pois ele é significativamente instrutivo

10. Entre os pressupostos internos e externos que nos ajudam a identificar a


possível autoria do quarto Evangelho, podemos assegurar que o autor dessa obra era:

a. Um judeu palestino que foi uma testemunha ocular do ministério de Jesus


b. Um judeu gentílico que foi uma testemunha ocular do ministério de Jesus
c. Um judeu palestino que pesquisou muito sobre o ministério de Jesus
d. Um judeu gentílico que pesquisou muito sobre o ministério de Jesus

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Gabarito
Atividades de aprendizagem - Unidade revisional 2

1. B 6. A
2. C 7. D
3. A 8. B
4. D 9. A
5. C 10. A

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bíblica do Brasil, 2009

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