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LECTIO DIVINA

Reflexões
sobre a Leitura Orante da Bíblia
para
os irmãos e as irmãs da Família Carmelitana

1. Um pouco de história

A Lectio Divina é a leitura crente e orante da Palavra de Deus. Na sua origem, ela nada mais é que a leitura

que os cristãos faziam da Bíblia para animar sua fé, esperança e amor. Ela é tão antiga quanto a própria Igreja,

que vive da Palavra de Deus e dela depende como a água da sua fonte (DV 7.10.21). Inicialmente, não era uma

leitura organizada e metódica, mas era a própria vida cristã que se transmitia, de geração em geração.

A Lectio Divina nasce da certeza de fé de que a Palavra não está longe de nós, mas está ao nosso alcance.

“Ela está está na tua boca e no teu coração, para que a ponhas em prática” (Dt 30,14). O objetivo da Lectio

Divina é o objetivo da própria Bíblia: “Comunicar a Sabedoria que leva à salvação pela fé em Jesus Cristo” (2 Tim

3,15); “instruir, refutar, corrigir, formar na justiça e, assim, qualificar o homem de Deus para toda boa obra” (2 Tim

3,16-17); “proporcionar perseverança, consolo e esperança” (Rom 15,4); ajudar-nos a aprender dos erros dos

antepassados (cf 1 Cor 10,6-10). Ela espera alcançar o que Jesus prometeu: “O Espírito vos recordará tudo que

eu disse e vos introduzirá na verdade plena” (Jo 14,26; 16,13).

A expressão Lectio Divina vem de Orígenes, um exegeta do século IV. Ele diz que, para ler a Bíblia com

proveito, é necessário um esforço de atenção e de assiduidade: “Cada dia de novo, como Rebeca, temos de

voltar à fonte da Escritura”. E o que não se consegue com o próprio esforço deve ser pedido na oração, “pois é

absolutamente necessário rezar para poder compreender as coisas divinas”. Deste modo, assim ele conclui,

chegaremos a experimentar o que esperamos e meditamos. Nestas reflexões de Orígenes temos um resumo do
que vem a ser a Lectio Divina.

A Lectio Divina tornou-se a espinha dorsal da Vida religiosa. Em torno da Palavra de Deus, ouvida,

meditada e rezada, surgiu e se organizou o monaquismo do deserto. As sucessivas reformas e transformações

da Vida Religiosa sempre retomavam a Lectio Divina como a sua marca registrada. As Regras de Pacômio,

Agostinho, Basílio e Bento fizeram da leitura da Bíblia, junto com a liturgia e o trabalho manual (Ora et Labora), a

tríplice base da Vida Religiosa.

A sistematização da Lectio Divina em quatro degraus como nós a conhecemos hoje em dia veio só no
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século XII. Por volta do ano 1150, Guigo, um monge cartuxo, escreveu um livrinho chamado “A Escada dos

Monges”. Na Introdução, antes de expor a teoria dos quatro degraus, ele se dirige ao “caro irmão Gervásio” e diz:

“Resolvi partilhar com você algumas das minhas reflexões sobre a vida espiritual dos monges. Pois você conhece

esta vida por experiência, enquanto eu só a conheço por estudo teórico. Assim, você poderá ser juiz e corretor

das minhas considerações”. Guido quer que a teoria da Lectio Divina seja avaliada e corrigida a partir da

experiência e da prática dos irmãos.

Em seguida ele introduz os quatro degraus: Leitura, Meditação, Oração e Contemplação. Na descrição

destes quatro degraus, Guigo sintetiza a tradição que vinha de longe e a transforma em instrumento didático de

leitura para servir de instrução aos jovens que se iniciavam na vida monástica.

No século XIII, os Mendicantes criaram um novo tipo de Vida Religiosa, mais inserida no meio dos

“menores” (pobres). Também eles fizeram da Lectio Divina a fonte inspiradora do seu movimento renovador. A

vida e os escritos dos primeiros franciscanos, dominicanos, servitas e carmelitas não deixam dúvida sobre este

ponto. Na Regra do Carmo, escrita por Santo Alberto, Patriarca de Jerusalém, transparece como, no passado, os

primeiros Carmelitas, fiéis a esta longa tradição, procuravam alimentar sua vida com a leitura e a meditação da

Palavra de Deus.

Houve em seguida um longo período em que a Lectio Divina arrefeceu. A leitura da Bíblia não era

fomentada, nem mesmo na Vida Religiosa. Santa Terezinha, por exemplo, não tinha acesso ao texto integral do

Antigo Testamento. Insistia-se na “leitura espiritual”. Era o infeliz efeito da contra-reforma na vida da Igreja. O

medo do protestantismo fez perder o contacto com a fonte! O Concílio Vaticano II retomou a tradição antiga e, no
seu documento Dei Verbum, recomenda com grande insistência a Lectio Divina (DV 25).

A Lectio Divina reapareceu de maneira nova, sem rótulo e sem nome, na leitura que os pobres das

Comunidades Eclesiais de Base fazem da Bíblia. Ultimamente, ela recomeçou a ser cultivada e estudada com

maior afinco entre os religiosos. Seria tão bom se nós, religiosos e religiosas, tivéssemos a humildade do monge

Guigo e fôssemos dizer ao povo das Comunidades: “Resolvemos partilhar com vocês algumas das nossas

reflexões sobre a vida espiritual. Pois vocês conhecem esta vida por experiência, enquanto nós a conhecemos

mais por estudo teórico. Assim, vocês poderão ser juizes e corretores das nossas considerações”.

2. O desafio para nós Carmelitas

Hoje, nós, irmãos e irmãs Carmelitas, estamos diante de um desafio. A vida de oração nos faz sentir a

necessidade da leitura orante da Bíblia. Além disso, o povo nos pede orientação sobre como ler a Bíblia. Quer

alimento sólido para a sua vida espiritual e para a vivência do seu compromisso como cristãos. Muitas vezes,

porém, não sabemos o que responder à pergunta do povo. Não fomos habituados a fazer leitura orante de Bíblia.
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Não sabemos bem como fazer “Lectio Divina”

As dificuldades são muitas. A necessidade pastoral nos leva a ler a Bíblia mais para os outros do que para

nós mesmos. Por falta de tempo não conseguimos parar, para que a Palavra de Deus possa penetrar em nossas

vidas. Muitas vezes, nossa leitura é mais estudo e discussão do que meditação e oração. A secularização nos faz

perguntar: “Para que a Bíblia? Outros livros são melhores e ajudam muito mais!” Um certo racionalismo e uns

restos de fundamentalismo nos incomodam com perguntas do tipo: "Será que aconteceu mesmo? Como Deus

pôde permitir isto?" Tudo isto dificulta a tranquila atenção à Palavra de Deus.

Reaprender a Lectio Divina é tarefa urgente, para que possamos ser fiéis ao que Deus, a Regra e o povo

pedem de nós hoje. É como consertar as vêias por onde corre o sangue que nos mantém em vida. Este livro quer

ser uma ajuda.

3. Rumo e resumo deste livro

Para entender o que a Regra ensina sobre a Lectio Divina, não basta reaprender o exercício dos quatro de-

graus, por mais importante que seja. A árvore do Carmelo não é uma árvore isolada. Ela faz parte de uma

floresta. A Lectio Divina só cresce e produz os seus frutos quando integrada dentro do conjunto mais amplo da

Tradição. A Lectio Divina é muito mais do que só uma técnica de leitura. É uma atitude de vida. É uma maneira

de olhar para a Bíblia, de situar-se na Tradição e de viver o carisma do Carmelo.

Neste livro vamos situar a Lectio Divina dentro da grande Tradição, para que apareça toda a sua riqueza e

alcance para a nossa vida. Vamos bater em várias portas, onde temos a certeza de encontrar uma palavra

segura para orientar-nos na leitura fiel da Palavra de Deus:

Vamos iniciar nossa reflexão interrogando a Regra, fonte comum da nossa tradição e espiritualidade, para

saber como e o que ela ensina sobre a “Lectio Divina”. Em seguida, orientados pela Regra, vamos interrogar a

Tradição viva do Povo de Deus que hoje se manifesta sobretudo no meio dos pobres. “Ouvir o que o Espírito diz

às Igrejas”. Queremos saber o que os pobres nos têm a dizer sobre a leitura da Palavra de Deus.

Em terceiro lugar, vamos ver como a própria Bíblia lê a Bíblia. A Bíblia, ela mesma, nasceu de um processo

constante de leitura e de releitura. Veremos os principios que orientavam esta releitura e a atitude interpretativa

que estava na sua origem. Isto poderá servir de orientação para a nossa leitura orante, pois ninguém melhor que

a própria Bíblia para nos dizer como se deve ler a Bíblia. Em quarto lugar, vamos ler os evangelhos para saber

como Jesus lia a Palavra de Deus, como nela buscava luz e força para a sua missão, e como ele abria as

Escrituras para os discípulos.

Em quinto lugar, vamos interrogar nosso passado como religiosos e religiosas. Desde o começo, a Lectio
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Divina foi a espinha dorsal da Vida religiosa. Veremos de perto os quatro degraus tais como foram elaborados

pelo monge cartuxo no século XI: lectio, meditatio, oratio e contemplatio. Em sexto lugar, vamos perguntar à

Igreja, ao Magistério, como se deve ler a Bíblia, qual o ensinamento que ela e a sua Tradição secular têm para

nos oferecer e nos orientar.

No fim, depois desta longa caminhada pela Tradição de ontem e de hoje, voltamos para casa, para o

Carmelo, e veremos como nós, fiéis a esta tradição, devemos ler a Bíblia e quais as conclusões que podemos

tirar de tudo isto para a nossa vida1.

CAPÍTULO 1

A REGRA DO CARMO LÊ A BíBLIA


O quadro de referência da leitura orante no Carmelo

1. Como e o que a Regra recomenda sobre a leitura orante da Bíblia

Direta ou indiretamente, a Regra de Santo Alberto recomenda, por nove vezes, a leitura da Bíblia:

1. Capítulo IV. Ouvir a Sagrada Escritura durante as refeições:


O alimento que receberem deve ser compartilhado numa refeição comum, ouvindo alguma leitura da Sagrada

Escritura, onde isso puder ser observado comodamente.

2. Capítulo VII. Meditar dia e noite a Lei do Senhor:


Cada um permaneça em sua cela ou perto dela, meditando dia e noite na Lei do Senhor e mantendo o espírito

alerta por meio de oraçöes,a não ser que esteja ocupado em outros justos afazeres.

3. Capítulo VIII. Rezar os Salmos(horas canônicas):


Os que sabem rezar as horas canônicas com os clérigos, as recitarão conforme as instruçöes dos Santos Padres e

o costume aprovado pela Igreja.

4. Capítulo X. Participar diariamente da Eucaristia:

1Neste livro foram reutilizados vários escritos e estudos feitos anteriormente e publicados em outro lugar:
Capítulo 1: do livro em honra de Joaquim Smet;
Capítulo 2: de um estudo para o CEBI “Um balanço de vinte anos de Leitura popular da Bíblia”;
Capítulo 3: de um artigo sobre a Releitura dentro da Bíblia em Estudos Bíblicos;
Capítulo 4: do livro sobre Jesus para o mês da Bíblia de 1995;
Capítulo 5: do livro para Joaquim Smet, reutilizado no Projeto “Tua Palavra é Vida” vol 1;
Capítulo 6: do estudo feito para a reunião do Conselho das Províncias, realizada em Salamanca;
Capítulo 7: do folheto da CRB, anteriormente feito para o INTERCAB.
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A capela deverá ser construída no meio das celas. Nela, todos os dias pela manhã, os frades deverão reunir-se

para participar da solene celebração Eucarística, onde isso não for muito incômodo.

5. Capítulo XIV. Ter pensamento santo (que é fruto da leitura orante):


O peito deve estar protegido por santos pensamentos, pois está escrito: O pensamento santo te protegerá

6. Capítulo XIV. A Palavra deve habitar na boca e no coração:


Na boca e no coração tenham sempre a espada do espírito que é a Palavra de Deus.

7. Capítulo XIV. Agir sempre de acordo com a Palavra de Deus:


Tudo que deve ser feito, seja feito na Palavra do Senhor.

8. Capítulo XV. Ler com frequência as cartas de Paulo.


Vocês devem seguir o ensinamento e o exemplo do apóstolo São Paulo, pois, por sua boca, Cristo nos fala, e ele

nos foi dado por Deus como pregador e doutor dos gentios na fé e na verdade. Se seguirem a ele, não podem errar.

9. Capítulo

1. As duas portas

Por meio destas recomendaçöes, a Regra mostra duas portas, pelas quais a Palavra de Deus deve entrar na vida

dos Carmelitas:

1. A porta da leitura pessoal: meditação na cela(VII), ruminação da Palavra que desce da boca para o

coração(XIV), produz pensamento santo(XIV) e leva a agir em tudo conforme a Palavra de Deus(XIV).

2. A porta da leitura comunitária: ouvir juntos a Palavra no refeitório, durante as refeições (IV), e na capela

durante a celebração da Eucaristia(X). Não se sabe se naquele remoto início lá no Monte Carmelo o Ofício Divino já era

comunitário(VIII).

2. Os quatro degraus

Nas recomendações da Regra transparece também a pedagogia que os Carmelitas usavam para aprender e

assimilar a Palavra de Deus em suas vidas. Nela reconhecemos os quatro degraus da Lectio Divina tal como esta foi

sistematizada no século XI. Na prática que se reflete na Regra, estes quatro degraus não existem separados, mas

formam uma indivisível unidade:

1. Lectio. Antes de mais nada, a Palavra deve ser ouvida ou lida: tanto em comum, no refeitório(IV), na

Eucaristia(X), no Ofício Divino(VIII), como em particular, na cela(VII).


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2. Meditatio. Em seguida, a Palavra lida e ouvida deve ser meditada e ruminada. Esta meditação deve ser feita

dia e noite, sem cessar, sobretudo na cela(VII). Por meio desta meditação (ruminação), a Palavra desce da boca para o

coração(XIV) e produz pensamentos santos(XIV).

3. Oratio. A Palavra, uma vez ouvida e meditada, deve ser envolvida pela oração, deve tornar-se oração: tanto no

Ofício Divino(VIII) e na Eucaristia(X), como na Cela, onde o Carmelita deve vigiar em oraçöes, dia e noite(VII).

4. Contemplatio. Esta leitura produz o seguinte resultado: a Palavra de Deus invade o pensamento(XIV), o

coração(XIV) e a ação e, assim, tudo é feito na Palavra do Senhor(XIV).

3. Fiel à Tradição

A Lectio Divina marcava o início da vida dos primeiros Carmelitas, não apenas como um exercício ascético de

leitura, mas sim como uma atitude de vida pela qual aqueles monges se situavam dentro do grande rio da Tradição.

A Regra se apresenta como uma norma de vida que prolonga a própria Bíblia e que tenta sistematizar o

ensinamento dos Santos Padres(Prólogo). Ela pede para que a leitura seja feita de acordo com as instruções dos

Santos Padres e os costumes aprovados pela Igreja (VIII), pela tradição litúrgica(X) e pela prática secular da Lectio

Divina.

Além disso, os estudos feitos mostraram, que os primeiros Carmelitas procuravam assumir na sua vida o ideal da

renovação da Igreja da época. O quadro de referência ou o esquema de fundo que está por baixo da parte central da

Regra reproduz e atualiza o modelo da comunidade dos Atos. Este era o modelo que na época orientava e animava as

comunidades que procuravam renovar-se. Chegando na Europa, fiéis à sua inspiração original, os Carmelitas não

assumem a forma antiga da vida monacal, mas sim a da vida mendicante. Esta nova forma de vida se reflete na

redação final da Regra, aprovada por Inocêncio IV em 1247.

2. A maneira como a Regra usa e lê a Bíblia

A Regra do Carmo não só recomenda a leitura da Bíblia, mas também a pratica e dela é o resultado. Ela é, ao

mesmo tempo, fonte e fruto da Lectio Divina. É o que nos mostra a maneira como ela usa e lê a Bíblia.

Quando dizemos “Autor”, pensamos tanto em Santo Alberto como nos primeiros carmelitas. Foi Alberto que

assinou a Regra e assumiu a sua autoria. Mas o próprio texto se refere ao “propositum”, apresentado ao Patriarca pelos

carmelitas. Ou seja, no uso que a Regra faz da Bíblia transparece como os nossos primeiros irmãos carmelitas liam a

Bíblia. Destacamos quatro pontos:

1. Familiaridade, liberdade, fidelidade


O “Autor” da Regra conhecia a Bíblia de memória e a assimilou em sua vida a ponto de já não distinguir entre

as suas próprias palavras e as palavras da Bíblia. Ele exprime o seu próprio pensamento com frases tiradas da Bíblia. É
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difícil saber exatamente quantas vezes a Regra usa a Bíblia para descrever a “vitae formula” dos primeiros Carmelitas.

Alguns acham que é mais de cem vezes! O autor usa a Bíblia sem citar, cita sem verificar, junta e separa as frases

como e quando quer, muda e adapta conforme lhe parece útil, como se fosse a sua própria palavra 2. Esta maneira de

usar a Bíblia é fruto de longa e assídia leitura, marcada pela familiaridade, pela liberdade e pela fidelidade.

2. Continuação atualizada do Novo Testamento

A Regra de Santo Alberto se apresenta como uma norma de vida em continuidade com a Bíblia, sobretudo

com o Novo Testamento. É como se fosse uma nova carta paulina ao lado das outras cartas que Paulo escreveu para

as comunidades. Como se fosse uma releitura da carta aos Hebreus.

3. As figuras bíblicas de Elias e Maria

Embora, no capítulo 15, ela manifeste uma certa preferência pelas cartas do Apóstolo Paulo, a Regra do

Carmo usa, cita e evoca, sem distinção, tanto o Antigo como o Novo Testamento. É curioso: a recomendação explícita

de ler as cartas de Paulo não chegou a marcar a espiritualidade da Família carmelitana. A sua espiritualidade continuou

centrada em torno das figuras de Elias e Maria,ambas da Bíblia,unindo o Antigo e o Novo Testamento,o masculino e o

feminino.

4. Viver em Obséquio de Jesus Cristo

O objetivo, a partir do qual e em função do qual a Regra usa e lê a Bíblia é a preocupação de viver em

obséquio de Jesus Cristo, expressa no Prólogo. O quadro de referências dentro do qual ela lê a Bíblia é o desejo de

imitar a comunidade ideal dos primeiros cristãos, que transparece ao longo dos capítulos VII a XI. Era este também o

quadro de referências que, naquele início do Século XIII, animava a renovação da igreja. “Renovar-se”- “Seguir Jesus”

Concluindo. O ensinamento que a Regra nos dá não está só naquilo que ela ensina sobre a leitura da Bíblia, mas

também na maneira como ela mesma usa a Bíblia. Ela soube encarnar a Palavra de Deus a ponto de assumí-la como

sua. Parafraseando a expressão do apóstolo Paulo(Gál 2,20) os primeiros carmelitas poderiam dizer: "Nós falamos pela

Regra a vocês, mas já não somos nós, é a Palavra de Deus que fala por nós!"

Este é o quadro de referências, o parâmetro, dentro do qual a Regra de Santo Alberto apresenta e ensina a

leitura orante da Bíblia para a Família Carmelitana. Como já dissemos anteriormente, o Carmelo não é uma exeção.

Faz parte de grande Tradição. Por isso, para entender o que a Regra entende quando fala da Lectio Divina, não basta

o exercício dos quatro degraus, mas será necessário situá-los dentro da Tradição, como parte integrante da Igreja que

se renova.

Em cada um dos capítulos que segue, será acentuado algum aspecto da Lectio Divina, para que apareça todo o

seu alcance para nós hoje e nos mostre como “meditar dia e noite na Lei do Senhor”.

2 Cfr Artigo em Carmelus sobre o uso da Bíblia na Regra


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CAPÍTULO 2

OS POBRES LÊEM A BÍBLIA


"Ouvir o que o Espírito diz às Igrejas"3

1. “Tudo seja feito na Palavra de Deus!”(XIV)

A grande novidade eclesial deste fim de milênio é o reencontro dos pobres com a Palavra de Deus.

Ninguém sabe explicar direito como foi que aconteceu. De repente, desde os anos sessenta para cá, cresceu

o interesse dos pobres pela Bíblia como nunca antes em toda a história, sobretudo na América Latina. Se

alguém, quarenta anos atrás, tivesse feito uma profecia e apresentado uma descrição minuciosa da leitura que

o povo das Comunidades de hoje faz da Bíblia, ninguém teria acreditado! Sim

A Bíblia está sendo usada para tudo: orações e preces, cursos e concursos, treinamentos e retiros,

reuniões e encontros, celebrações e vigílias, sermões e discursos, catequese e novenas, teatros e drama-

tizações, músicas e benditos, contos e cantos, gincanas e charadas, luta sindical e organização de greves,

construção de capelas e mutirão para construir barracos, crítica ao clero e revisão da própria vida, reunião de

política e comício de partido, luta pela terra e defesa do índio, cartas de apoio e manifestos contra as

injustiças, procissão da Padroeira e passeata para exigir os direitos, luta pela saúde do povo e esforço para

voltar aos remédios caseiros, terço de Nossa Senhora e Mês de Maio, educação em família e educação

popular de base, clubes de mães e organizações de bairro, invasão de terra e romarias, luta de operários e

piquete nas portas das fábricas, jejum de protesto e resistência contra pistoleiros, manifestações em frente à

delegacia de polícia e apoio aos presos políticos, manifestações ecológicas em defesa do meio ambiente e

defesa dos Direitos Humanos, etc. Realmente, o povo das Comunidades usa a Bíblia para tudo!

A intenção desta lista tão longa não é enumerar algumas coisas curiosas que o povo anda fazendo com
a Bíblia. Pelo contrário! Queremos é chamar a atenção para uma coisa muito importante: os pobres sabem

misturar a Palavra de Deus em todas as coisas da sua vida. E nela encontram a força para caminhar e não

desanimar na luta! É um uso da Bíblia muito semelhante à própria Regra de santo Alberto, que soube

misturar a Palavra de Deus em tudo e que recomenda à Família Carmelitana: “Que tudo seja feito na Palavra

de Deus!” Esta presença tão forte da Bíblia na vida das Comunidades revela alguns pontos sobre a Lectio

Divina que merecem a nossa atenção.

3 O conteudo deste capítulo vem, em parte, da experiência própria e, em parte, das experiências
compartilhads no encontro internacional da Federação Biblica Católica Mundial, realizado em Bogotá em 1990,
onde estavam reunidas pessoas de todos os Continentes: Europa, Ásia, Africa, América do Sul e do Norte,
Austrâlia.
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2. Luz, Força, Autoridade

Na interpretação que os pobres fazem da Bíblia existe uma novidade de grande alcance. Novidade

antiga que retoma alguns valores básicos da Tradição.

1. A Bíblia como luz que faz enxergar melhor

O povo está descobrindo que a Palavra de Deus está não só na Bíblia, mas também na vida. "Deus fala

hoje, misturado nas coisas!" Descobre que o objetivo principal do uso e da leitura da Bíblia não é interpretar a

Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda da luz que vem da Bíblia. Gera aos poucos uma atitude

contemplativa.

Ao ler a Bíblia, o povo tem nos olhos os problemas da realidade dura e sofrida da sua vida. A Bíblia

aparece como um espelho daquilo que hoje se vive. O povo descobre que se pisa o mesmo chão, ontem e

hoje. Estabelece, assim, uma ligação profunda entre Bíblia e vida. Acontece uma iluminação mútua: a Bíblia

esclarece a vida, e a vida esclarece a Bíblia.

A partir deste ligação entre Bíblia e vida, os pobres fazem a descoberta, a maior de todas: "Se Deus

esteve com aquele povo no passado, então Ele está também conosco. Se escutou o clamor daquele povo,

escuta também o nosso! Se libertou a eles, está também conosco na luta que fazemos para libertar!"Aqui está

a raíz da Teologia da Libertação.

O povo começa a imitar a Jesus e aos Profetas. Cria consciência crítica e descobre as falhas que

existem na sociedade, na igreja, na vida da Comunidade e na sua própria vida pessoal e fami-liar. Descobre a

sua missão. Surge a profecia com coragem de denunciar. Muita gente entrou no movimento popular, no

sindicato ou na política por causa da consciência nova que neles brotou a partir da leitura comunitária da

Bíblia.Descobrem a dimensão profética da contemplação!

2. A Bíblia como força que faz agir melhor

Dificilmente o povo das Comunidades faz reunião de Bíblia sem oração ou sem canto. Eles sabem e

sentem que sem a ajuda do Espírito e sem este ambiente comunitário de fé, não é possível descobrir o
sentido que o texto tem para nós hoje. O "sentido" da Bíblia não é só uma mensagem que se capta com a

razão. É também um "sentir", uma consolação, uma força, um conforto que é "sentido" com o coração.

A Bíblia entra na vida do povo como uma Boa Notícia que atrai os pobres e lhes revela a presença
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libertadora de Deus. A Bíblia, a Palavra de Deus, que antes ficava longe, agora chegou perto! E junto com a
Palavra de Deus, o próprio Deus chegou perto! O Deus Libertador! Nasce uma nova força: "Se Deus é por

nós, quem será contra nós!". Esta convicção de fé é fonte de coragem para muita gente e os sustenta na luta!

É como um novo começo da vida. Uma ressurreição!

Os próprios pobres se encarregam de divulgar esta Boa Notícia, pois ela os confirma na caminhada e

alimenta neles a esperança. Por isso, a procura da Bíblia é tão grande. Milhões de exemplares em poucos

anos em toda a América Latina! O que era misterioso e inacessível, começou a fazer parte da vida quotidiana

dos pobres.

3. A Bíblia como autoridade que faz decidir melhor

A Bíblia já não é vista pelo povo como um livro estranho que pertence só ao clero, mas sim como o
nosso livro, "escrito para nós que tocamos o fim dos tempos"(1 Cor 10,11). Como um livro que traz um recado

de Deus! A Bíblia é aceita como Palavra de Deus. Por isso é um livro que tem autoridade. Esta autoridade,

porém, não vem através de uma imposição de fora, mas sim através da experiência pessoal e comunitária da

fé.

A Bíblia não só é luz que faz enxergar. É também força e autoridade para levar as pessoas a tomarem

decisões na vida. Quando alguém consegue mostrar que aquilo que ele diz está na Bíblia, a conversa está
encerrada. Todos aceitam. Esta fé de que a Bíblia é Palavra de Deus é anterior a todo trabalho que fazemos.

Se não existisse esta fé, nosso método de trabalho teria que ser totalmente diferente.

3. O método dos pobres

Na leitura dos pobres, apesar das diferenças próprias de cada país ou região, existe um método, cujas

características básicas são comuns a todos e do qual podemos aprender. Um método é muito mais do que só

umas técnicas e dinâmicas. É uma atitude que se toma frente à Bíblia e frente à própria vida. O método dos

pobres é muito simples. Ele se caracteriza por estes três critérios:

1. Os pobres levam consigo, para dentro da Bíblia, os problemas da sua vida. Lêem a Bíblia a partir da
sua luta e da sua Realidade.

2. A leitura é feita em Comunidade. É, antes de tudo, uma leitura comunitária, uma prática orante, um

ato de fé.
3. Eles fazem uma leitura obediente: respeitam o Texto e se colocam à escuta do que Deus tem a dizer,

dispostos a mudar se Ele o exigir.

Estes três critérios (Texto, Comunidade, Realidade) articulam-se entre si em vista do mesmo objetivo:
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escutar Deus hoje. Através desta prática dos pobres das Comunidades Eclesiais de Base, prática tão simples

e tão profundamente fiel à mais antiga Tradição da Igreja, o Espírito de Deus chama nossa atenção para dois

elementos muito importantes da leitura cristã da Bíblia, que nós tínhamos esquecido ou negligenciado: 1. partir

da realidade; 2. criar um ambiente comunitário e orante de fé.

Os três aspectos (Texto, Comunidade, Realidade) são como tres objetivos da mesma atitude inter-

pretativa frente à Bíblia. Entre os três existe uma dinâmica interna que marca a história do processo da
interpretação popular dos últimos anos. Tudo começou, anos atrás, com a vontade de conhecer o texto da

Bíblia. A vontade de conhecer o texto da Bíblia levou a conviver em comunidade. Conviver em comunidade

levou a olhar a realidade e a querer servir ao povo. Servir ao povo, por sua vez, está levando muitos a desejar

um conhecimento mais aprofundado do contexto de origem da Bíblia. E assim por diante. É uma dinâmica que

não termina nunca. Destes tres aspectos um nasce do outro, supõe o outro e leva ao outro. Não importa tanto

a partir de qual dos tres aspectos se inicia o processo da interpretação. Isto depende da situação, da história,

da cultura e dos interesses da comunidade ou do grupo. O que importa é perceber que um aspecto fica

incompleto sem os outros dois.

Geralmente, em todas as comunidades, há pessoas que se identificam com um dos tres aspectos: 1.
As que querem conhecer a Bíblia e que se interessam mais pelo estudo. 2. As que insistem mais na comu-

nidade e suas funções internas. 3. As que se preocupam em servir ao povo e em dar a sua contribuição na

política e nos movimentos populares. Tudo isto produz tensões saudáveis e fecundas. Por exemplo, em
alguns lugares, a prática política mais intensa dos últimos anos está pedindo um conhecimento mais apro-

fundado do texto bíblico e uma vivência comunitária mais intensa da espiritualidade da libertação. Em outros

lugares, a vivência comunitária chegou no seu limite e está pedindo uma ação mais engajada nos movimentos

populares. Com outras palavras, as tensões ajudam a criar um equilíbrio que favorece a interpretação da

Bíblia, e impedem que ela se torne unilateral.

4. Perigo de fechamento

As tensões também podem encerrar em si um risco e levar a um fechamento que absolutiza um

daqueles três critérios, excluindo os outros dois. Por isso, o itinerário da interpretação popular, muitas vezes, é

tenso e conflitivo, com risco de retrocesso. Alguns membros da comunidade, por fidelidade à palavra, querem

avançar e dar um passo adiante. Outros, em nome desta mesma fidelidade, recusam a abertura. É o momento

da crise e é também da graça. Nem sempre vence o grupo que quer avançar.

1. Em torno do estudo da letra. Todos os movimentos pastorais usam a Bíblia e nele se apoiam. Em
nome da Bíblia, os fundamentalistas recusam a interpretação e a abertura para a realidade. Em alguns

lugares, os grupos bíblicos que se fecharam em torno de si mesmos e em torno da letra da Bíblia, tornaram-se
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os grupos mais conservadores da paróquia. O próprio exegeta pode correr o perigo de fechar-se dentro do

estudo liberal e até progressita do texto bíblico.

2. Em torno do comunitário. Muitos movimentos se fecham no comunitário, no místico, no

carismático, e recusam a abertura para a realidade e para o político. Eles se abrem para o serviço aos pobres

(e muito), mas não numa linha de transformação e de libertação.

3. Em torno do social e do político. Existe o fechamento do lado oposto, embora com menor

frequência. A comunidade alcança um grau de serviço mais comprometido e de consciência política mais

clara. Percebe como o comunitário, o pessoal e o devocional podem ser manipulados com relativa facilidade

pela ideologia dominante, e conclui que estas coisas não contribuem tanto para a transformação. Por isso, ela

corre o perigo de fechar-se no social e no político.

Embora compreensíveis, fechamentos assim são trágicos, pois nenhum dos tres alcança o “sentido

sozinho. Para superar este perigo, é importante manter um ambiente de diálogo. Pois onde a palavra humana

circula com liberdade e sem censura, a palavra de Deus gera liberdade.

5. Novidade e alcance da leitura popular da bíblia

Seguem aqui os pontos que, de uma ou de outra maneira, procuram sinalizar e resumir a novidade da

interpretação popular e o seu alcance para um conhecimento mais aprofundado da Lectio Divina:

1. O objetivo da leitura da Bíblia não é buscar informações sobre o passado, mas sim clarear o

presente com a luz da presença do Deus-conosco, Deus Libertador. É interpretar a vida com a ajuda da Bíblia.

Olhando pela janela da Bíblia, descobriram nela um espelho!

2. O sujeito da interpretação não é o exegeta. Interpretar é uma atividade comunitária em que todos

participam, cada um a seu modo e conforme a sua capacidade, inclusive o exegeta e o clero. A interpretação

não é uma atividade só intelectual, mas é todo um processo de envolvimento e participação da Comunidade:

trabalho e estudo de grupo, leituras pessoais e comunitárias, teatro, canto e música, celebrações, orações,

recreios, etc Por isso, é importante ter nos olhos não só a fé da comunidade, mas também fazer parte efetiva
de uma comunidade viva e buscar o sentido comum aceito por esta comunidade, o “sensus ecclesiae”.

3. O lugar social de onde se faz a leitura ou a interpretação é a partir dos pobres e dos marginalizados.

Isto modifica o olhar. Muitas vezes, por falta de uma consciência social mais crítica, o intérprete é vítima de

preconceitos ideológicos e, sem se dar conta, usa a Bíblia para legitimar o sistema de opressão que

desumaniza.Os primeiros Carmelitas liam a Bíblia a partir dos “menores”.


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4. Leitura libertadora e ecumênica. Leitura ecumênica não quer dizer que católicos e protes-tantes

discutem as suas divergências para chegar a uma conclusão comum. Isto pode e deve ser uma consequência.

O mais ecumênico que temos é a vida que Deus nos deu. Em muitos lugares, esta vida corre perigo, pois já

não é vida, seja pelo excesso de consumismo e secularização, seja pelo excesso de opressão e de

exploração. Leitura ecumênica é interpretar a Bíblia em defesa da vida e não em defesa das nossas

instituições e confissões religiosas. Ora, na atual situação em que vivem os pobres, uma leitura em defesa da

vida, necessariamente deve ser libertadora.

Deste modo aparecem com maior clareza a função e os limites da Bíblia. A Bíblia não é fim em si

mesma, mas está a serviço da interpretação da vida. Sozinha ela não funciona, nem consegue abrir os olhos,

pois o que abre os olhos é a partilha do pão, o gesto comunitário. A Bíblia deve ser interpretada dentro de um

processo mais amplo, que leva em conta a comunidade e a realidade. A Bíblia é como o coração: fora do

corpo da comunidade e da vida do povo morre e faz morrer!


CAPÍTULO 3

A BÍBLIA LÊ A BÍBLIA
A Dinâmica da leitura orante

Grande parte da Bíblia é fruto de um esforço constante de reler e de reinterpretar o passado a fim de

saber como "escutar hoje a voz de Deus"(Sl 95,7). Em momentos de crise, de escuridão e de perda de rumo, o

povo sempre voltava às suas origens para nelas descobrir luzes que lhe pudessem devolver a identidade, para

encontrar motivações mais profundas que o ajudassem a atravessar o deserto, e para juntar pedras que

contribuissem para construir um novo projeto. Sim

Para entender o processo da releitura dentro da Bíblia, não basta estudar o fenômeno literário que

aparece na superfície (pelo qual certas palavras do passado são retomadas e reutilizadas em épocas

posteriores). E' necessário situar este fenômeno dentro do processo mais amplo da caminhada do povo de

Deus. Só assim a releitura que a Bíblia faz da Bíblia revela a sua importância e a sua atualidade, e se torna

espelho crítico da leitura que nós hojes fazemos da Bíblia.

1. A motivação da Lectio Divina: o desafio da novidade e do fracasso

Hoje como ontem, vivemos num contexto de desafio. Certezas antigas estão sendo abaladas. Nunca

em toda a história humana apareceu tanta novidade, de uma só vez e em tão grande escala, como neste final

de século. Ao mesmo tempo, nunca houve tanto fracasso e degradação da vida, tanta exploração e tanta
repressão, tanta pobreza, tanta miséria e morte! Como ler e interpretar estes sinais dos tempos? A fé nos diz
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que Deus está presente e atuante nesta novidade. Mas é uma presença tão nova e tão escondida que não a

percebemos por ora. Como ler e interpretar a Bíblia, para que ela nos ajude a descobrir nesta novidade a

Palavra viva de Deus e a transformá-la em Boa Nova? Este é o desafio que leva à leitura, tanto hoje como na

época do cativeiro da Babilônia.

O cativeiro da Babilônia foi a maior crise da história do povo de Deus. Perderam tudo que, até àquele

momento, tinha sido o apoio da sua fé: a Terra, cuja posse era a expressão da fidelidade de Deus às suas

promessas; o Templo, onde Deus morava no meio de seu povo; os Reis que,em nome de Deus, guiavam o

povo. Tudo foi destruido! A própria identidade do povo quebrou como um prato que cai no chão. O povo ficou

perdido: sem poder, sem privilégio, sem rumo, disperso. O cativeiro foi a experiência da escuridão (Lam 3,2.6),

do nada, do cáos: trevas, águas, deserto(Gn 1,2). Deus parecia ter rejeitado seu povo para sempre(Lam 3,43-

45).

Jerusalém estava destruída. Suas muralhas, desmanteladas, sem porta. Cidade aberta, sem possi-

bilidade de defesa. A terra já tinha sido distribuída e estava parcialmente ocupada por outros (Jer 39,10).

Outras pessoas já estavam fazendo culto no lugar do antigo templo(Jer 41,5). Os que tinham voltado do exílio

já não tinham Rei. Não tinham poder político nem militar para mudar a situação. Eram apenas um pequeno

grupo religioso, sem nenhuma importância, perdido no império imenso dos persas. Culto, terra, cidade, rei... já

não eram só deles! Querendo ou não, eles eram obrigados pelas circunstâncias a conviver com os outros

povos. Não havia outra alternativa viável para poder sobreviver. Esta era a realidade dura e inegável: uma

situação de cativeiro e de diáspora. Vista com os olhos antigos do tempo dos reis, esta situação era um

fracasso inaceitável.

Nesta situação, já não havia mais palavra que pudesse dar uma esperança. As antigas palavras,

transmitidas oralmente de geração em geração, já não eram capazes de interpretar os acontecimentos. Deus

parecia ter perdido o controle do mundo. O novo dono era a Babilônia que dizia: "Por todo sempre hei de ser

senhora. Eu sou, e fora de mim não há nada!"(Is 47,7.8). Como hoje, depois da queda do muro de Berlim, tudo

mudou! A ruptura com o passado parecia total e o povo dizia: "Deus nos abandonou"(Is 49, 14). A filha de Sião

ficou viuva(Lam 1,1), perdeu o marido, ficou sem Deus(Sl 22,2;Is 40,27). "Acabou-se minha esperança que

vinha de Deus"(Lam 3,18) "Já não sei mais o que é ser feliz"(Lam 3,17). A crise não era em torno de uma ou
de outra verdade, mas em torno da raiz de todas as verdades: Deus está ou não está no nosso meio? Por isso,

as antigas palavras sobre Deus e a sua presença perderam a sua relevância. A lâmpada da palavra santa do

passado continuava pendurada na parede da vida, mas por falta de força já não acendia nem clareiava. O

exílio apagou a luz!

Mas Deus não tinha abandonado seu povo(Lam 3,31). Ele continuava presente com o mesmo amor
15

de sempre(Is 49,15), não só no povo, mas também no mundo ao redor, onde estavam ocorrendo mudanças

profundas com a chegada de Ciro, o rei dos persas(Is 45,1-7; 41,2-5). Ao povo, porém, faltavam os olhos para

percebê-lo(Is 42,18-20; 43,8). Como ajudar o povo a descobrir a Boa Nova desta presença de Deus na vida?

Presença tão nova e tão escondida que era difícil percebê-la e aceitá-la(Is 45,15; 52,14-53,1).

2. A semente da Lectio Divina: uma a nova experiência de Deus

No meio daquele povo machucado e desintegrado do exílio viviam os discípulos de Isaías. Mesmo

sem os apóios tradicionais da fé, eles não desistiram de crer. A crise, em vez de levá-los à perda da fé, foi

ocasião de purificação e de renascimento. Eles redescobriram a novidade da presença escondida de Deus e

conseguiram transformá-la em Boa Nova para o povo. O alcance desta nova experiência de Deus ainda

transparece nas imagens que eles criaram. De um lado, imagens familiares que revelam um novo relacio-

namento pessoal com Deus: Deus é pai(Is 63,16; 64,7); é mãe(Is 46,3;49,15; 66,12-13); é padrinho 4(Is 41,14;

43,14; 44,6); é o marido do povo(54,5; 62,5). De outro lado, imagens que revelam uma nova percepção da

presença e atuação de Deus na natureza, na história e na política: Deus é o Criador do mundo(Is 40,28; 51,13;

etc) e do povo(Is 43,15; etc); é o Primeiro e o ûltimo(Is 41,4; 44,6; 48,12). Ele não quer o cáos(Is 45,18-19),

mas o enfrenta e o vence com o poder criador da sua Palavra(Gên 1,3ss; Is 40,8).

Os discípulos procuram comunicar esta experiência ao povo. Apontam a natureza e dizem: "Levan-

tem os olhos e vejam! Quem criou todas estas estrelas?"(Is 40,26). Contam a história do êxodo(Is 43,16-17),

mandam refrescar a memória(Is 43,26) e insistem: "Lembrem-se das coisas que aconteceram muitos anos

atrás!"(Is 46,9) Refletem sobre os fatos da política, onde Ciro estava derrotando Nabucodonosor, e perguntam:

"Quem é que faz tudo isto?"(Is 41,2) E a resposta é sempre a mesma: "E' Jahweh, o Deus do povo, o nosso

Deus!"

Assim, aos poucos, a natureza deixa de ser o santuário dos falsos deuses; a história já não é mais

decidida pelos opressores do povo; o mundo da política já não é mais o domínio de Nabucodonosor. Por trás

de tudo começam a aparecer os traços do rosto de Yahweh, o Deus de sempre.

O mesmo Deus a quem chamam pai, mãe, padrinho, marido, e que enche de sentido a vida pessoal

de cada um, este mesmo Deus, agora, é redescoberto e experimentado como presente em toda parte, como

criador do universo, como o primeiro e o último da história humana. Os discípulos descobrem, assim, de

maneira nova e surpreendente, que Jahweh, o Deus dos pais, é Deus-conosco, em toda parte! Deus ultra-

passou os limites do território, do templo, da raça. E' o Deus de todos!

4 A palavra pEadrinho traduz a palavra hebraica go'el que tem várias traduçöes possíveis: vingador, consolador(paráclito), redentor,
libertador, salvador, defensor, advogado. O go'el é o que alarga os laços de família e socorre nos momentos difíceis(cf Lev 25,23-55).
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Mas descobrem também que a casa preferida de Deus é e continua sendo no meio do seu povo

oprimido: "Eu estou contigo!"(Is 41,10). "Tu tens muitos valor para mim, eu te prezo, eu te amo. Troco tudo por

ti!"(Is 43,4). "Deus não se encontra a não ser no meio de ti"(Is 45,14). E' lá no meio dos pobres que Ele se

esconde(Is 45,15), e é lá que Ele deve ser procurado(Is 55,6).

Diante desta presença tão vasta de Deus na vida, no universo, na história, na política, no próprio

povo, os discípulos gritam: "Cegos, olhem! Surdos, ouçam!"(Is 42,18) O povo deve abrir os olhos e acolher o

seu Deus que vem avançando vitorioso: "Eis aqui o Senhor Yahweh! Ele vem com poder!"(Is 40,9-10) Esta é a

Boa Nova que os discípulos anunciam ao povo: "Teu Deus reina!"(Is 52,7). "Não estão vendo?"(Is 43,19) E
para que o povo descubra e assuma a sua nova missão, os discípulos o ajudam a reler o passado e o presente

e a entendê-los de um modo diferente. Sem a experiència de Deus, a releitura não teria acontecido nem teria

tido o resultado que teve.

3. O coração da Lectio Divina: uma nova leitura do passado

A nova experiência de Deus deu olhos novos para reler e entender melhor o que Deus fez e ensinou

no passado. De um lado, ajudou-os a perceber os erros e as limitações, dentro das quais eles mesmos tinham

sido aprisionados pela ideologia dominante do tempo dos reis. De outro lado, foi fonte de luz e de criatividade

para repensar, um por um, todos os valores do passado, libertá-los das limitações e dos erros, adaptá-los à

nova situação. Deste modo, abriram o caminho para a redescoberta da própria identidade e missão na nova

situação do cativeiro e da diáspora.

Eis alguns exemplos de como os discípulos de Isaías releram ou reinterpretaram os grandes valores

do passado. E' aqui que tocamos o coração da releitura:

1. O povo de Deus já não é uma raça, pois os estrangeiros podem fazer parte dele(Is 56,3. 6-7). Esta
abertura representa uma volta às origens. O povo que saiu do Egito não era uma raça, mas sim um grupo de

tribos marginalizadas e oprimidas, unidas entre si na luta pela libertaçäo das garras do faraó. Havia até

egípcios no meio deles( ). Eles se constituiram povo através da nova fé em Jahweh e através da nova

organizaçäo social e comunitária que era exigência e expressäo desta fé em Jahweh.

2. O templo já não será só para os judeus, mas será “Casa de oração para todos os povos da terra”(Is

56,7). O culto que nele se realiza será universal e os estrangeiros dele participarão(Is 56,6-7). E o que mais

chama a atenção é que o sacerdócio já não será só de Levi ou de Sadoc, mas também dos estrangeiros(Is

66,21). Admitir a possibilidade de se abrir o sacerdócio para estrangeiros era, naquele tempo, o mesmo ou até

mais inovador do que admitir hoje a possibilidade da ordenaçäo sacerdotal para as mulheres.
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3. O Reino já não será a monarquia de Davi, limitada a um território, mas sim o reino universal do

próprio Deus que assumiu o seu poder e começou a reinar(cf Is 52,7; 43,15). Também aqui os discípulos de

Isaías voltam às origens e retomam o ideal que já vinha desde o tempo dos Juízes:"O Rei de Israel é

Jahweh!"(cf Jz 8,23; 1 Sam 12,12; 8,7). Jerusalém já não será a capital de Judá, mas sim o centro do mundo

para onde convergem todos os povos(Is 60,1-7).E o título de Ungido (isto é, Messias) já não é o título do rei

davídico, mas sim de Ciro, o rei dos persas(Is 45,1). O povo inteiro recebe o mesmo título(cf Sl 105,15). Ciro

também é chamado pastor(Is 44,28).

4. A eleição deixará de ser um privilégio. O povo eleito é eleito não porque é melhor que os outros,

nem para ser exaltado e privilegiado, mas sim para prestar um serviço em nome de Deus a todas as nações. O

povo deve ser servo e cumprir uma missão de justiça. Deve ser "luz das nações"(Is 42,1-9;49,6).

5. A lei de Deus já não é o caminho exclusivo de Israel, mas será procurada e observada por todos os

povos que nela encontram luz para a sua caminhada(Is 2,2-5). Zacarias diz que muitas nações virão até

Jerusalém para "aplacar a face de Jahweh"(8,22). A face de Jahweh é aplacada pela observância da lei(Zac

8,22-23). A pureza já não virá da observância humana, mas sim da aceitação divina, pois Deus aceitará como
puros os sacrifícios dos pagãos, "exatamente como os filhos de Israel costumam trazer a oblação à casa de

Jahweh em vasos puros"(Is 66,20; cf Mal 1,11).

Nestes poucos exemplos transparece a coragem e a abertura que os discípulos tiveram para re-
pensar e reler o passado. Imitaram Deus. Souberam ser criativos! Fiéis à verdadeira Tradição, ultrapassaram

as fronteiras do tradicional e sonharam com um mundo novo. Queriam tudo novo: novo céu e nova terra(Is

65,17), novo êxodo (Is 43,16-20; cf 41,18-20) nova aliança(Is 54,10; 55,3; 61,8), novo povo (Is 43,21), novo

coração e novo espírito(Ez 36,26), nova lei impressa no coração(Jer 31,33). "As coisas antigas já se

realizaram, agora vos anuncio estas coisas novas!"(Is 42,9; cf Apc 21,5).

4. O resultado da Lectio Divina: uma nova leitura do presente

Com esta visão do passado nascida da experiência de Deus, a novidade da situação presente já

podia ser acolhida como filha em casa sem o risco de ser condenada, em nome da tradição, como estranha,

bastarda e herética. Mas nem todos eram capazes de acompanhar os discípulos nesta releitura do passado,

tão aberta para o novo que estava acontecendo. Todos viam os fatos, mas nem todos percebiam o seu

alcance(Is 42,20). Eram como cegos(Is 42,18-19). Fechavam-se no passado e, por isso, tornavam-se
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incapazes de perceber a novidade de Deus acontecendo na história. Por isso, os discípulos chamavam a

atenção e diziam: "Não fiqueis a lembrar coisas passadas, nem vos preocupeis com acontecimentos antigos.

Eis que vou fazer uma coisa nova. Ela já vem despontando! Não estão vendo?"(Is 43,18-19). A novidade de

Deus que vinha chegando do futuro era mais antiga do que o passado defendido pelos outros. Fidelidade e

liberdade caracterizama nova leitura do passado, pela qual palavras-chaves e valores centrais do passado são

retomados em épocas posteriores.

É com este novo olhar, recebido da experiência de Deus e da nova leitura do passado, que os discí-

pulos tentam entender a situação dolorosa que o povo estava vivendo naquele momento. O que fazer: ignorá-

la, combatê-la ou assumí-la? Vista com os olhos antigos do tempo dos reis, esta situação era um fracasso

inaceitável. Houve várias tentativas (fracassadas) para voltar ao passado e restaurar a monarquia. Os

discípulos, porém, esclarecidos pela nova experiência de Deus e orientados pela nova leitura do passado,

viram nesta situação de cativeiro e de diáspora o início de uma nova etapa. Em vez de lamentar o passado

que perderam, saudaram o futuro que acabava de nascer com tanta dor de parto. Não fizeram nenhum esforço

para reeditar a monarquia com queriam Zorobabel e Ageu, mas despertaram para a nova missão do povo no

mundo.

O vento da tempestade sacode a flor, espalha a sua semente e prepara, assim, uma nova floração.

Do mesmo modo, os fatos violentos do exílio sacudiram o povo, espalharam-no como semente pelo mundo e o

prepararam para uma nova missão: ser luz das nações. Deus tirou a sua vinha do canteiro protegido da

Palestina(Is 5,1-2; Sal 80,9-17) e plantou-a no mundo para ser servo de Deus para todos os povos(Is 41,8;

42,1.6; 49,6) e "fonte de bênção para todas as famílias da terra"(Gn 12,3).

Deste modo, iluminado pela luz da experiência de Deus e pelas profecias do passado, a situação de

cativeiro e de diáspora, que parecia um golpe de morte no povo, tornou-se apelo de Deus e anúncio de es-

perança e vida nova. Foi assim que Jesus fez a releitura de "Moisés e dos Profetas" no caminho de Emaús. A

Cruz, sinal de morte e motivo de descrença e desespero, tornou-se sinal de vida e de ressurreição(cf Lc

24,27).
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5. Concluindo

A Lectio Divina não é apenas um exercício de leitura que retoma ou reinterpreta algumas palavras do

passado, mas tem a ver com o próprio processo de crescimento e libertação do povo e com a sua caminhada

através da história.

A Lectio Divina ajuda a realizar a obrigação que temos de: 1. captar e experimentar a novidade de

Deus presente na história humana; 2. verbalizá-la e transformá-la em Boa Nova para o povo; 3. encarná-la e

expressá-la em novas formas de vida de tal maneira que, por meio dela, o povo possa perceber, novamente, o

seu alcance para a vida e despertar para a sua missão.

O passado é como uma fonte. A releitura não nega o passado, mas procura desobstruir a fonte, para

que a sua água possa jorrar novamente e matar a sede do povo. O passado, na sua originalidade, é sempre

novo e atual. E' água cristalina da fonte. Tem uma riqueza inesgotável. E' como a velha árvore do fundo do

quintal que nunca envelhece, pois, todo ano, fornece frutos novos! Como já dissemos, a novidade de Deus que

vem chegando do futuro, é mais antiga que o passado defendido pelos tradicionalistas.

Nova experiência de Deus, nova leitura do passado, nova consciência da realidade: são os três polos,

inseparavelmente unidos entre si, que geraram e continuam gerando a releitura das palavras sagradas que

nos vem do passado.


CAPÍTULO 4

JESUS LÊ A BÍBLIA
A chave da Escritura: “Elas falam de mim!”

O grande conflito de Jesus com as autoridades religiosas da época foi em torno da correta leitura e

interpretação da Bíblia. Repetidamente, ele é acusado de ser infiel à Escritura e de transgredir a Lei de Moisés

tal como esta era interpretada pela Tradição dos Antigos(Mc 2,24; 7,5). Mas Jesus usa a mesma Bíblia para

legitimar sua ação contrária à ação dos que o acusavam(Mc 2,25-26; Jo 5,39. 45-47; 8,37-41). Este uso

diferente da Bíblia foi um dos motivos mais fortes que levou os adversários a procurar a morte de Jesus(Mc

14,60-64). è o que nos impressiona

Não é possível ver todos os aspectos da maneira como Jesus usava a Bíblia. Veremos aqueles

pontos que melhor nos orientam a entender o sentido da Lectio Divina para a nossa vida.

1. O ambiente de oração em que Jesus cresceu


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1. O ritmo diário na família

Nas famílias, o povo rezava três vezes ao dia: de manhã, ao meio dia e à noite. Eram os três

momentos em que se oferecia o sacrifício no Templo. Assim, a nação inteira se unia diante de Deus. Eles

rezavam o seguinte:

* As 18 bênçãos (de manhã, à tarde e à noite)


* O Shemá, composto de três benditos e três leituras(de manhã e à noite)
1. Um bendito ao Deus Criador que cria o povo
2. Um bendito ao Deus Revelador que elege o povo
3. Tres leituras:
Dt 6,4-9: receber o jugo do Reino
Dt 11,13-21: receber o jugo da Lei de Deus
Nm 15,37-41: receber a consagração
4. Um bendito ao Deus Redentor que liberta o povo
* Tudo misturado com Salmos

2. O ritmo semanal na sinagoga

Nos Sábados, o povo se reunia na sinagoga para rezar, ouvir as leituras da Bíblia e discutir as coisas

da vida da comunidade. Havia um esquema fixo para as leituras da Lei de Moisés. A leitura dos profetas

dependia da escolha do momento(Lc 4,17).

3. O ritmo anual no Templo

Era baseado no ano litúrgico com suas festas. Cada ano, o povo tinha que fazer três romarias a Je-

rusalém para visitar o templo(Ex 23,14-17). Além disso havia as visitas ao templo ligadas aos acontecimentos

da vida: apresentação dos primogênitos(Lc 2,22), entrega das primícias e dos dízimos(Ne 10, 36. 38), etc.

Casa-Família, Sinagoga-Comunidade, Templo-Povo. Criava-se assim um ambiente familiar e comu-

nitário empregnado de oração. Algumas características deste ambiente:

1. Eles aprendiam de memória os salmos, como hoje se aprendem de memória os cânticos. Nos

benditos que cantavam, evocavam os acontecimentos mais importantes do passado. Isto ajudava a não perder

a memória nem a identidade.

2. A expressão corporal. Ela aparece muito nos salmos e contribuia para se criar um ambiente de

oração. Por exemplo, procissão(Sl 95,2), prostração, inclinação e genuflexão(Sl 95,6), estender as mãos(Sl

63,5), “orientação” na direção do Templo que ficava no Oriente(Sl 138,2), etc

3. Dimensão mística e criativa. A oração era o momento para cada um viver a união com Deus. Não era

um lugar só de repetir preces já existentes. Cada devia aprender a formular sua própria prece. Jesus aprendeu

e transmitiu para nós o Pai-Nosso.

É neste ambiente que Jesus "crescia em sabedoria, graça e tamanho diante de Deus e dos homens"

(Lc 2,52). É onde, "desde pequeno", aprendeu as Sagradas Escrituras(2 Tm 3,15; 1,5). Onde aprendeu de me-

mória os salmos e a história do seu povo. Onde participava das romarias e procurava estar na casa do Pai(Lc
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2,42). Onde aprendeu a passar as noites em oração(Lc 5,16; 6,12).

É importante a comunidade criar o seu ritmo de vida empregnado de oração, ritmo diário, semanal e

anual. Este ritmo é um sustento para as pessoas, contanto que não se torne rotina e imposição.

2. A Oração na vida de Jesus

Os primeiros cristãos, sobretudo Lucas, conservaram uma imagem de Jesus orante, que vivia em contato

permanente com o Pai. De fato, a respiração da vida de Jesus era fazer a vontade do Pai. Em vários momentos ele

aparece rezando, sobretudo nos momentos decisivos de sua vida. Eis alguns deles. Você pode completar a lista:

* Aos doze anos de idade, lá no Templo, na Casa do Pai(Lc 2,46-50).

* Na hora de ser batizado e de assumir a missão, ele reza(Lc 3,21).

* Na hora de iniciar a missão, passa quarenta dias no deserto(Lc 4,1-2).

* Na hora da tentação, ele enfrenta o diabo com textos da Escritura(Lc 4,3-12).

* Na hora de escolher os doze Apóstolos, passa a noite em oração(Lc 6,12).

* Diante da revelação do Evangelho aos pequenos, ele reza: “Pai eu te agradeço!”(Lc 10,21)

* Na cura do surdo-mudo, olhou para o céu e gemeu(Mc 7,34)

* Na hora de ressuscitar Lázaro, ele reza: “Pai eu sei que sempre me ouves!”(Jo 11,42-44)

* Tem o costume de participar das celebrações nas sinagogas nos sábados(Lc 4,16)

* Participa das romarias ao Templo de Jerusalém nas grandes festas(Jo 5,1).

* Reza antes das refeições(Lc 9,16; 24,30).

* Procura a solidão do deserto para rezar(Mc 1,35; Lc 5,16; 9,18).

* Rezando, desperta vontade de rezar nos apóstolos(Lc 11,1).

* Rezou por Pedro para ele não desfalecer na fé(Lc 22,32).

* A pedido das mães dá a bênção às crianças(Mc 10,16).

* Na crise sobe o Monte para rezar(Lc 9,28).

* Celebra a Ceia Pascal com seus discípulos(Lc 22,7-14).

* Na hora da despedida reza a oração sacerdotal(Jo 17,1-26).

* Ao sair da Ceia para o Horto reza salmos com os discípulos(Mt 26,30).

* Na hora da agonia no horto ele reza:"Triste é minha alma"(Mc 14,34; cf Sl 42,5.6).

* Na angústia da agonia pede aos três amigos para rezar com ele(Mt 26,38).

* Na hora de ser pregado na cruz, pede perdão pelos carrascos(Lc 23,34).

* Na cruz solta um lamento:"Meu Deus! Por que me abandonaste?"(Mc 15,34; Sl 22,2)

* Na hora da morte, ele reza: "Em tuas mãos entrego meu espírito!"(Lc 23,46; Sl 31,6)
22

* Jesus morre soltando o grito do,pobre(Mc 15,37).

Nos momentos difíceis da sua vida, Jesus rezava os Salmos. Por ex., na agonia do Horto ou na hora de

morrer. Sua vida era uma oração permanente. Ele dizia: "Eu a cada momento faço o que pai me mostra para

fazer!"(Jo 5,19.30) A ele se aplica o que diz o Salmo: "Eu sou oração!"(Sl 109,4)

3. Jesus usou e rezou os salmos

Para os judeus era importante "rezar como Davi rezou" Para nós cristãos, o importante é "rezar como

Jesus rezou" e, assim, criar em nós os sentimentos que animaram Jesus durante a sua vida(Fl 2,5).

Os evangelhos nos apresentam Jesus usando e rezando os salmos. Pelo simples fato de Jesus usar a

frase de um salmo, este salmo se ilumina e recebe um novo sentido. É como o fio que leva a força até à

lâmpada e a acende. E o salmo, assim iluminado, ajuda a entender melhor quem é Jesus. Eis uma lista de

alguns salmos usados por Jesus.

1. Jesus rezou os salmos

1. "Em tuas mãos": Lc 23,46 Sl 31,6

2. "Meu Deus!" Mc 15,34 Sl 22,2

3. "Triste alma" Mc 14,34 Sl 42,5.6

2. Jesus ensina usando os salmos

1. Tristes ficam alegres Mt 5,5 Sl 126,5

2. Pobres possuirão a terra Mt 5,4 Sl 37,11


3. Coração puro vê a Deus Mt 5,8 Sl 24,3-4

4. Montanha de Deus Mt 5,34 Sl 48,3

5. Pai vê no segredo Mt 6,4 Sl 139,2-3

6. Não se preocupar Mt 6,25 Sl 127

7. Afastai-vos de mim Mt 7,23 Sl 6,9

8. Caminho mau se perde Mt 7,13 Sl 1,7

9. Pássaro tem ninho Mt 8,20 Sl 83,4

10.Não machucará os pés Mt 4,6 Sl 91,11-12

3. Jesus usa os salmos nas discussöes com os judeus

1. Adulam com a boca Mt 15,8 Sl 78,36

2. Da boca das crianças Mt 21,16 Sl 8,3

3. Pedra rejeitada Mt 21,42 Sl 118,22


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4. O Senhor disse ao meu S. Mt 22,44 Sl 110,1

O fato de Jesus usar e rezar os salmos revela o valor dos mesmos. Eles os rezava nas horas mais

difíceis da sua vida. Não rezava só os salmos, fez também outras orações e chegou a fazer novos salmos

(p.ex., o Pai Nosso). Isto mostra que o livro dos salmos não tem nem pretende ter o monopólio da oração. Ele

oferece uma ajuda, serve de modelo e provoca a criatividade.

Se Jesus usou e rezou os salmos, é por que eles expressavam o seu sentimento e a sua doutrina.

Por isso os primeiros cristãos usavam e rezavam os salmos com tanta frequência. Era uma maneira de se

identificar com Jesus diante do Pai e de ter em si os sentimentos que o animavam(Fl 2,5)

4. Jesus se orienta pela Bíblia para a sua Missão

Muitas vezes, não é possível discernir se o uso que os evangelhos fazem do Antigo Testamento vem

do próprio Jesus ou se é uma explicitação dos primeiros cristãos que, assim, procuravam expressar o alcance

da sua fé em Jesus. Seja como for, é inegável o uso constante que Jesus fazia da Bíblia. Uma simples leitura

dos evangelhos faz ver como ele se orientava pela Escritura para a realizar sua missão. São sobretudo as

profecias do Servo de Isaías e do Filho do Homem de Daniel, que orientaram Jesus na realização da sua

Missão.

1. Jesus, o Servo de Javé

Na hora do batismo, Jesus tem uma profunda experiência de Deus, e ouve do Pai esta palavra: “Tu

és o meu Filho, em ti tenho o meu prazer”(Mc 1,11). É a profecia do Servo de Javé que aqui o orienta e lhe

aponta o caminho(Is 42,1-9). Na medida em que fica mais claro que a resistência dos judeus contra a

pregação de Jesus vai resultar na sua condenação e morte, nesta mesma medida Jesus se agarra na profecia

do servo e por ela se orienta. Por meio dela orienta também os discípulos que não conseguem compreender

como o messias possa sofrer. Na sinagoga de Nazaré, ele apresenta sua plataforma de ação com textos do

Profeta Isaías,onde este apresenta o Servo. Respondendo a João Batista, cita textos do mesmo profeta. João

Batista queria saber se Jesus era o Messias ou se deviam esperar por outro. Como resposta recebe uma frase

tirada do profeta Isaías. Ela serve como luz para poder entender o alcance messiânico da atividade de

Jesus(Mt 11,2-6).

2. Jesus, o Filho do Homem

É o título que Jesus mais usa para designar sua missão(Mc 8,38; 9,9.31; 10,33.45). Vem de Daniel que

descreve os impérios dos Babilônios, Medos, Persas e Gregos. Estes quatro impérios tem aparência de “animais

monstruosos”(Dn 7,3-8). São impérios animalescos, brutais, deshumanos! Em seguida, aparece o Reino de Deus que
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tem a aparência de um Filho de homem. Ou seja, é um reino humano, que promove a vida(Dn 7,13-14). O Filho do

Homem que recebe o poder e o reino é um símbolo para indicar o Povo de Deus, “o Povo dos Santos do Altíssimo”(Dn

7,27; 7,17-18). Os Santos do Altíssimo são os que foram perseguidos pelos grandes impérios animalescos(Dn

7,21.25). A figura do Filho do Homem representa a esperança destes perseguidos. A missão que ele recebe é a

missão de todo o Povo de Deus, a saber, realizar o Reino de Deus que é um reino humano, um reino de gente, reino

que não persegue, mas sim promove a vida.

Jesus se apresenta como Filho do Homem no momento em que começa a ser perseguido pelo Império

deshumano, tanto do governo como da religião. Assumindo este título, ele assume a missão de realizar o Reino de

Deus que é um reino humano sem opressão e sem perseguição. E ele assume esta missão não sozinho, mas junto
com todo o Povo de Deus. Apresentando-se aos discípulos e ao povo como Filho do Homem, ele está dizendo:

“Venham comigo! Vamos juntos realizar a missão que Deus nos entregou! Esta missão não é só minha. Ela é de todos

nós!”

4. Jesus relê o passado do seu povo

No conflito com as autoridades em torno da leitura da Escritura, a ação de Jesus tinha dois

aspectos: um para desfazer as interpretações erradas, e outro para apresentar uma interpretação correta.

Deste modo, despertava a memória do seu povo e lhe revelava o projeto de Deus.

A grande briga de Jesus não foi com os romanos. Foi com os líderes religiosos do seu próprio povo que

tinham em mãos as chaves do Reino. Eles não entravam, nem deixavam o povo entrar(Mt 23,13). O povo andava

curvado sob o peso de uma infinidade de normas e leis(Mt 11,28). A força da sua vida estava emperrada, impedida de

manifestar-se por causa destas observâncias religiosas que nada tinham a ver com Deus. Elas impediam de perceber

e de saborear o Reino presente no meio do povo(Lc 17,20.21; Mc 1,15). Eis algumas das denúncias que Jesus fêz à

religião do seu tempo:

* Desautorizou o ensino dos escribas sobre a vinda de Elias(Mc 9,11) e sobre a descendência davídica do messias(Mc

12,35-37). Criticou a ganância deles e a vontade que tinham de aparecer em público e de ocupar os primeiros

lugares(Mc12,38-40).

* Tornou desnecessária e inútil a legislação sobre a pureza legal, defendida sobretudo pelos fariseus, e anunciava

uma nova maneira de se conseguir a pureza(Mc 7,1-23).

* Criticou a inversão da observância do sábado, e colocou-o, novamente, a serviço da vida(Mc 2,27). Chegou a sugerir

que proibir uma cura por causa do preceito do sábado era o mesmo que matar uma pessoa(Mc 3,4).

* Corrigiu a lei dos Dez Mandamentos e deu-lhe um novo objetivo que ia além da justiça praticada pelos fariseus(Mt

5,20-48). Para Jesus, toda a legislação do Antigo Testamento tinha por objetivo educar para a prática perfeita do
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amor(Mt 7,12)

* Deslocou as fronteiras do povo de Deus, pois na sua comunidade acolhia publicanos, pecadores, leprosos, pos-
sessos, doentes, prostitutas. Jesus mudou o conceito de próximo. Para ele, “próximo” não é só aquele que faz

parte da minha igreja, do meu movimento, mas sim todo aquele do qual eu me aproximo!(Lc 10,19-37).

* Criticou e relativizou o Templo, expulsando os vendedores(Mc11,15-19) e dizendo que Deus podia ser adorado em

qualquer lugar(Jo 4,20-24).

Por meio destes e outros gestos de denúncia, Jesus fazia estremecer as pilastras da religião oficial,

incomodava os que estavam bem instalados, e atraía sobre si o ódio dos líderes religiosos da época.

A crítica e a denúncia eram apenas um lado da ação de Jesus. O outro lado era o desbloqueio da vida que

estava emperrada. Jesus queria que o povo voltasse às suas raízes e redescobrisse sua vocação como povo de

Deus. Ajudou-o a perceber o que Deus queria quando o chamou para ser o seu povo eleito. Pela sua prática e pelas

suas palavras, Jesus foi fiel ao Antigo Testamento e dele revelou o sentido verdadeiro ao povo. Eis alguns pontos:

1. Retomou o Projeto da Criação. Deus criou a vida e a abençoou. Jesus retomou a vida como primeiro

valor(Jo 10,10). Deus a criou humana. Jesus foi humano, tão humano, como só Deus pode ser humano! Deus criou o

ser humano à sua imagem e semelhança e o criou homem e mulher. Jesus tirou o privilégio do homem frente à mulher

e restabeleceu a igualdade entre homem e mulher como imagem de Deus(Gn 1,27; Mt 19,4-8).

2. Retomou o Projeto da Vocação de Abraão. Abrão foi chamado para ser fonte de bênção para todos os

povos(Gn 12,1-3) Jesus enviou os discípulos para todos os povos(Mt 28,19; Mc 16,15). Ele não quer um povo fechado

sobre si mesmo, nas suas observâncias, separado dos outros, mas sim um povo servidor, aberto para todos(Mc

10,45).

3. Retomou o Projeto do Êxodo. Desde o começo, os cristãos entenderam a ação de Jesus como um novo

êxodo. Como Moisés, ele veio para libertar os pobres da opressão(Lc 4,18), sendo ele mesmo o novo Cordeiro Pascal

imolado(1 Pd 1,19; Jo 1,29;19,36), que abriu a passagem (páscoa) deste mundo para o Pai(Jo 13,1).

4. Retomou o Projeto da Lei de Moisés. Jesus deu uma nova interpretação à Lei de Deus, dada a Moisés no

Monte Sinai: "Antigamente foi dito, mas eu lhes digo"(cf Mt 5,21.27.31.33. 38. 43). Queria levar o povo a redescobrir

que o objetivo da Lei é o amor ao próximo(Mt 7,12; 5,17-19; Mc 12,28-34), qualquer que seja o próximo(Lc 10,36-37).

Criticado, Jesus respondia: "Não pensem que vim revogar a Lei. Não vim revogar mas sim completar"(Mt 5,17).

5. Retomou o Projeto dos Profetas. Jesus foi reconhecido pelo povo como o profeta que devia vir ao mundo(Jo

6,14; Mt 14,5; 21,11; Lc 7,16). Como os profetas, restabeleceu os direitos dos pobres e denunciava as injustiças. Ele
mesmo orientou-se pelo projeto expresso nos Cantos do Servo de Javé, chamado por Deus para ser Luz das
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nações(Lc 4,18-21 e Is 61,1-2).

6. Retomou o Projeto da Aliança. Jesus instaurou a “nova aliança”(Lc 22,20), anunciada por Jeremias(Jer

31,31), e proclamou o Ano Jubilar, “um ano de graça da parte do Senhor”(Lc 4,18), para poder recomeçar tudo de

novo! Restabeleceu a Aliança entre Deus e seu povo e dela revelou o verdadeiro sentido.

7. Retomou o Projeto do Reino de Deus. Desfeito pela incompetência dos reis e pelo nacionalismo estreito dos

líderes, o projeto do Reino foi retomado por Jesus que dele fez o centro da sua pregação(Mc 1,14-16).

Aqui transparece a nova maneira de ler a Bíblia que Jesus procurava transmitir aos discípulos(Lc 24,44-48).

A Bíblia aparece como um espelho, onde o povo se descobria a si mesmo e onde se encontrava com o seu passado.

Jesus despertava a memória do povo: “Ele é o profeta que deve vir!” (Jo 6,14). Por isso, o escutavam com prazer(Mc

12,37).

Jesus via o desastre do povo se aproximando por causa da incompetência dos líderes. Fêz o possível

para provocar uma mudança e evitar a destruição(Lc 19,41-44). O que Jesus queria era fazer com que a fé em

Deus fosse novamente um motivo de alegria para o povo, uma fonte de resistência contra a ameaça dos

poderes da morte.

5. No Caminho de Emaus (Lucas 24,13-35)

O texto apresenta Jesus como intérprete da Escritura e, assim, orienta os leitores como devem ler a

Bíblia. O processo de interpretação seguido por Jesus tem três passos:

1º Passo: partir da realidade(cf Lc 24,13-24)

Jesus encontra os dois numa situação de medo, de fuga e dispersão, de descrença e desespero. Os

discípulos estavam fugindo. As forças de morte, a cruz, tinham matado neles a esperança.

Jesus se aproxima e caminha com eles, escuta a conversa e pergunta: "De que estão falando? Por

que estão tristes?" A ideologia dominante os impedia de enxergar. "Nós esperávamos que ele fosse o

libertador, mas..."(Lc 24,21).

O primeiro passo é aproximar-se das pessoas, escutar a realidade, os problemas; ser capaz de fazer

perguntas que ajudem o povo a olhar a realidade com um olhar mais crítico.

2º Passo: usar a Bíblia(cf Lc 24,25-27)

Jesus usa a Bíblia não para dar uma aula sobre a Bíblia, mas para iluminar o problema que fazia
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sofrer os dois; para esclarecer a situação que estavam vivendo; para situá-los dentro do projeto de Deus, e

mostrar que a história não tinha escapado de mão de Deus.

O segundo passo é este: com a ajuda da Bíblia, transfor-mar a cruz, sinal de morte, em sinal de vida

e de esperança. Aquilo que impede de caminhar, torna-se força na caminhada e luz no caminho.
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3º Passo: partilhar na comunidade(cf Lc 24,28-32)

A Bíblia, ela por si, não abre os olhos. Apenas faz arder o coração(Lc 24,32). O que faz enxergar, é a

fracção do pão, o gesto comunitário da partilha. No momento em que é reconhecido, Jesus desa-parece. Pois

eles mesmos experimentam a ressurreição e renascem.

O terceiro passo é este: saber criar um ambiente de fé, de fraternidade e de partilha, onde possa

atuar o Espírito que nos faz entender o sentido das coisas que Jesus falou.

O resultado Ressuscitar e voltar para JerusalémLc 24,33-35)

Tudo mudou. Eles mesmos ressuscitaram! Os dois criam coragem e voltam para Jerusalém, onde

continuam vivas as forças de morte que mataram Jesus. Coragem, em vez de medo. Retorno, em vez de fuga.

Fé, em vez de descrença. Esperança, em vez de desespero. Consciência crítica, em vez de fatalismo frente ao

poder. Liberdade, em vez de opressão. Numa palavra: vida, em vez de morte! Em vez da má noticia da morte

de Jesus, a Boa Notícia da sua Ressurreição!

CAPÍTULO 5

OS RELIGIOSOS LÊEM A BíBLIA


A Lectio Divina: espinha dorsal da vida religiosa

Os quatro degraus da Lectio Divina

Eis como Guigo, o cartuxo, introduz e descreve os quatro degraus: “Certo dia durante o trabalho

manual, quando estava refletindo sobre a atividade do espírito humano, de repente se apresentou à minha
mente a escada dos quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração, a contemplação. Essa é a

escada dos monges, pela qual eles sobem da terra ao céu. É verdade, a escada tem poucos degraus, mas ela

é de uma altura tão imensa e inacreditável que, enquanto a sua extremidade inferior se apoia na terra, a parte

superior penetra nas nuvens e investiga os segredos do céu”. Submeteu a Gervásio

Depois disto Guigo mostra como cada um desses degraus tem a propriedade de produzir algum efeito
específico no leitor da Bíblia. Em seguida, ele resume tudo: “A Leitura é o estudo assíduo das Escrituras,

feito com espírito atento. A Meditação é uma diligente atividade da mente que, com a ajuda da própria razão,

procura o conhecimento da verdade oculta. A Oração é o impulso fervoroso do coração para Deus, pedindo

que afaste os males e conceda as coisas boas. A Contemplação é uma elevação da mente sobre si mesma
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que, suspensa em Deus, saboreia as alegrias da doçura eterna”.

Nesta descrição, Guigo sintetiza a tradição que vinha de longe e a transforma em insrumento de
leitura para servir de instrução aos jovens que se iniciavam na vida monástica. Por meio destes quatro

degraus, ele procura iniciar os jovens num processo que os leve a atingir o que diz a Escritura: “A Palavra está

muito perto de ti: na tua boca e no teu coração, para que a ponhas em prática”(Dt 30,14). Na boca, pela
leitura; no coração, pela meditação e pela oração; na prática, pela contemplação.

Nem sempre é fácil distinguir um degrau do outro. Por exemplo, o que alguns autores afirmam da
leitura, outros o atribuem à meditação, e assim por diante. A causa desta falta de clareza está na própria

natureza da Lectio Divina. Trata-se de um processo dinâmico de leitura, em que as várias etapas nascem uma

da outra. É como a passagem da noite para o dia. Na hora do amanhecer, alguns dizem: “É noite ainda!”

Outros dizem: “O dia já chegou!”

Além disso, trata-se de quatro atitudes permanentes. A atitude da leitura, por exemplo, continua

também durante a meditação. As quatro atitude existem e atuam, juntas, durante todo o processo da Lectio

Divina, embora em intensidade diferente conforme o degrau em que a pessoa ou a comunidade se encontra.

O importante, nesta nossa reflexão, é que apareçam as características principais de cada uma destas quatro

atitudes que, juntas, integram a Lectio Divina.


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A Leitura: Conhecer, respeitar, situar

A leitura é o primeiro passo para se conhecer e amar a Palavra de Deus. Não se ama o que não se

conhece. É também o primeiro passo do processo da apropriação da Palavra: ler, ler, ler! Ler muito para
familiarizar-se com a Bíblia; para que ela possa tornar-se nossa palavra, capaz de expressar nossa vida e

nossa história, pois “ela foi escrita para nós que tocamos o fim dos tempos”(1 Cor 10,11).

A Leitura é uma atividade elementar: ler, pronunciar bem as palavras, se possível em voz alta. Este

primeiro passo é muito importante e muito exigente. Não pode ser feito de maneira superficial.

Pela Leitura frequentamos a Bíblia como se frequenta um amigo. Há uma semelhança muito grande

entre a maneira de se conviver com as pessoas e o povo e com a Bíblia. Os dois exigem o máximo de aten-

ção, respeito, amizade, entrega, silêncio, escuta. Os dois, tanto o povo pobre como a Biblia, não se defendem
logo quando são agredidos ou manipulados, mas os dois acabam vencendo o agressor pelo cansaço. A leitura

da Bíblia ajuda a criar em nós os olhos certos para ler a vida do pvo e vive-versa.

A leitura, assim como a convivência com o povo pobre, não pode depender do gosto do momento,

mas exige da pessoa uma determinação constante e contínua. A leitura deve ser perseverante e diária. Exige

ascese e disciplina. Não pode ser interesseira, mas deve ser desinteressada e gratuita, em vista do Reino e

do bem do povo.

A leitura é ponto de partida, não é ponto de chegada. Prepara o leitor e o texto para o diálogo da

meditação. Para que a meditação não seja fruto de uma fantasia irreal, mas tenha fundamento no texto e na

realidade, é necessário que a leitura se faça com critério e atenção. “Estudo assíduo feito com espírito atento”,

dizia Guigo. Através de um estudo imparcial, a leitura impede que o texto seja manipulado e reduzido ao

tamanho da nossa idéia, e faz com que ele possa ser parceiro autônomo no nosso diálogo com Deus, pois ela
estabelece o sentido que o texto tem em si, independente de nós. Assim, a leitura cria no leitor uma atitude

crítica, criteriosa e respeitosa diante da Bíblia. É aqui, na leitura, que entra a contribuição da exegese para o

bom andamento da Lectio Divina.

A leitura entendida como estudo crítico ajuda o leitor a analisar o texto e a situá-lo em seu contedxto

de origem. Esse estudo tem três níveis:

a) Literário: aproximar-se do texto e, através de perguntas bem simples, analisar o seu tecido: quem?

o que? onde? por que? quando? como? com que meios? como o texto se situa dentro do contexto literário do

livro de que faz parte?


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b) Histórico: através do estudo do texto atingir o contedto histórico em que surgiu o texto ou em que

se deu o fato narrado pelo texto, e analisar a situação histórica em dimensões como : econômica, social,

política, ideológica, afetiva, antropológica e outras. Trata-se de descobrir os conflitos que estão na origem do

texto ou nele se refletem para, assim, perceber melhor a encarnação da Palavra de Deus na realidade

conflitiva da história humana, tanto deles como nossa.

c) Teológico: descobrir, através da leitura do texto o que Deus tinha a dizer ao povo naquela situação

histórica; o que Deus significava para aquele povo; como ele se revelava; como o povo assumia e celebrava a

Palavra do Senhor.

O estudo científico do texto não é o fim da leitura. É apenas um meio para se chegar ao fim. A

intensidade do uso da exegese na Lectio Divina depende não do exegeta, mas das exigências e circun-
stâncias dos leitores. O objetivo da leitura é este: furar a parede da distância entre o ontem do texto e o hoje

da nossa vida, a fim de poder iniciar o diálogo com Deus na meditação. Parede de pedra exige uma broca

mais resistente do que parede de taipa. Mas o objetivo é o mesmo: furar a parede. Não se usa broca de

mármore para furar parede de papelão! Qual a broca que fura essa parede da distância no tempo? De um

lado, é “o estudo assíduo, feito com espírito atento”(Guigo). De outro, é “a própria experiência adquirida da

vida”(Cassiano). Paulo VI dizia que se deve “procurar uma certa conaturalidade entre os interesses atuais

(hoje) e o assunto do texto (ontem), para que se possa estar disposto a ouví-lo (diálogo)”(25.9. 1970). Às

vezes, a Lectio Divina não traz resultado e o texto não fala, não por falta de estudo, mas sim por falta de

aprofundamento crítico da nossa própria experiência de vida, hoje.

A leitura, quando bem feita, ajuda a superar o fundamentalismo. O fundamentalismo é uma grande

tentação que se instalou na mente de muita gente. Ele separa o texto do resto da vida e da história do povo e

o absolutiza como a única manifestação da Palavra de Deus. A vida, a história do povo, a comunidade, já não

teriam mais nada a dizer sobre Deus e a sua Vontade. O fundamentalismo anula a ação da Palavra de Deus

na vida. É a ausência total de conciência crítica. Ele distorce o sentido da Bíblia e alimenta o moralismo, o

indiviudlaismo e o espiritualismo na interpretação. É uma visão alienada que agrada aos opressores do povo,

pois ela impede que os oprimidos tomem consciência da iniquidade do sistema montado e mantido pelos
poderosos. Superar o fundamentalismo só é possível à medida que, através da leitura, o leitor consiga ver o

texto dentro do seu contexto de origem e, ao mesmo tempo, perceber nele o reflexo da situação humana, que

hoje vivemos.

Qual o momento de se passar da leitura para a meditação? É difícil precisar o momento exato em que

a natureza passa da primavera para o verão. É diferente a cada ano, em cada país. Mas existem alguns
critérios. O objetivo da leitura é ler e estudar o texto até que ele, sem deixar de ser ele mesmo, se torne
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espelho de nós mesmos e nos reflita algo da nossa própria experiência de vida. A leitura deve familiarizar-nos

com o texto a ponto de ele se tornar nossa palavra. Cassiano dizia: “Penetrados dos mesmos sentimentos em

que foi escrito o texto, nos tornamos, por assim dizer, os seus autores”. E aí, como que de repente, nos damos

conta de que, por meio dele, Deus está querendo falar conosco e nos dizer alguma coisa. Neste instante,

dobramos a cabeça, fazemos silêncio e abrimos o ouvido: “Vou ouvir o que o Senhor nos tem a dizer!”(Sl
85,9). É nesse momento que a leitura se transforma em meditação e que se passa para o segundo degrau da

Lectio Divina.

A meditação: ruminar, dialogar, atualizar

A leitura respondeu à pergunta: “O que diz o texto em si?” A meditação vai responder à pergunta: “O

que diz o texto para mim, para nós?” Dentro da dinâmica da Lectio Divina, a meditação ocupa um lugar

central. A questão que se coloca daqui para a frente é esta: o que é que Deus, através deste texto, tem a dizer

hoje a nós carmelitas que, para obedecer à voz do Evangelho, consagramos nossa vida a Deus e ao povo? A
meditação indica o esforço que se faz para atualizar o texto e trazê-lo para dentro do horizonte da nossa vida

e realidade, tanto pessoal como social. O texto que foi “escrito para nós”(1Cor 10, 11) deve também falar para
nós. “Oxalá ouvíssemos hoje a sua voz!(Sl 95,7)

Guigo dizia: “A meditação é uma diligente atividade da mente que, com a ajuda da própria razão,

procura o conhecimento da verdade oculta”. Qual é esta verdade oculta? Através da leitura descobrimos como

o texto se situava no contexto daquela época, qual a posição que tomava nos conflitos, qual a mensagem que

tinha para o povo. De lá para cá a situação mudou, o contexto é outro, os conflitos são diferentes. No entanto,

a fé nos diz que esse texto, apesar de ser de outra época e de outtro contexto, tem algo a nos dizer hoje. Nele

deve existir um valor permanente que quer produzir no presente a mesma conversão ou mudança que

produziu naquele tempo. Ora, a verade oculta de que falava Guigo é este valor permanente, esta mensagem
que lá existe para o nosso contexto e que deve ser descoberta e atualizada pela meditação. Como fazer

maditação?

Uma primeira forma de se realizar a meditação é sugerida pelo próprio Guigo. Ele manda usar a

mente e a razão para poder descobrir a verdade oculta. Entra-se em diálogo com o texto, com Deus, fazendo

perguntas que obrigam a usar a razão e que procuram trazer o texto para dentro do horizonte da nossa vida.

Medita-se refletindo, interrogando: o que há de semelhante ou de diferente entre a situação do text e a nossa

de hoje? Quais os conflitos de ontem que existem hoje? Quais dentre deles são diferentes de hoje? O que a

mensagem deste texto diz para a nossa situação? Que mudança de comportamento ele sugere para mim que

vivo aqui neste lugar? Em que ponto ele nos condena? O que ele quer fazer crescer em mim, em nós?

Outra maneira de se fazer a meditação é repetir o texto, ruminá-lo, mastigá-lo até descobrir o que ele
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tem a nos dizer. É o que Maria fazia quando ruminava as coisas em seu coração(Lc 2,19.51). É o que

recomenda o salmo ao justo: “Meditar dia e noite na Lei do Senhor”(Sl 1,2). É o que Isaías define com tanta

precisão: “Sim, Javé, o teu Nome e a tua lembrança resumem todo o desejo da nossa alma”(Is 26,8). Após ter
feito a leitura e ter descoberto o sentido que o texto tem em si é bom procurar resumir tudo numa frase, de

preferência do próprio texto bíblico, para ser levada conosco na memória e ser repetida e mastigada durante o

dia, até se misturar com o nosso próprio ser. Através dessa ruminação, nós nos colocamos sob o julgamento

da Palavra de Deus e deixamos que ela nos penetre, como espada de dois gumes(Hb 4,12), pois água mole

em pedra dura tanto bate até que fura! “Ela vai julgando as disposições e intenções do coração. E não há

criatura oculta à sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar

contas”(Hb 4,12-13). Nós religiosos nos escondemos, muitas vezes, atrás de máscaras e ídolos, ideologias e
convenções, doutrinas repetidas e tradições humanas(cf Mc 7,8-13). Pela meditação ou ruminação, a Palavra

de Deus vai entrando aos poucos, vai tirando as máscaras, vai revelando e quebrando a alienação em que

vivemos, devolvendo-nos a nós mesmos, para que nos tornemos uma expressão viva da Palavra ouvida,

meditada e ruminada.

Cassiano aponta outro aspecto importante da meditação, como consequência da ruminação. Ele diz:

“Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, já não percebemos o texto como algo que só ouvimos, mas

sim como algo que experimentamos e tocamos com nossas mãos; n\ao como uma história estranha e

inaudita, mas como algo que damos à luz desde o mais profundo do nosso coração, como se fossem senti-
mentos que formam parte do nosso ser. repitamo-lo: não é a leitura que nos faz penetrar no sentido das

palavras, mas sim a própria experiência nossa adquirida anteriormente na vida de cada dia”(Collationes X,11).

Aqui já nem parece haver mais diferença entre Bíblia e vida, entre a Palavra de Deus e a nossa palavra. Ora,

conforme Cassiano, é nesta quase identificação nossa com a palavra da Bíblia que está o segredo da

percepção do sentido que a Bíblia tem para nós. Cassiano diz que a percepção do sentido do texto não vem

do estudo, mas da experiência que nós mesmos temos da vida. O estudo coloca os fios, a experiência a
adquirida gera a força, a meditação aperta o botão, faz a força correr pelos fios e acende a lâmpada do texto.

Tanto o fio como a força, ambos são necessários para que haja luz. A vida ilumina o texto, o texto ilumina a

vida.

Numa palavra, tendo a vida nos olhos, descobrimos na Bíblia o reflexo daquilo que nós mesmos

estamos vivendo. A Bíblia torna-se o espelho do que se passa na vida e no coração de todos. Assim, pela
meditação, descobrimos que a Palavra de Deus se encarna não só naquelas épocas do passado, mas

também hoje, para poder estar conosco e nos orientar na caminhada:

A meditação também aprofunda a dimensão pessoal da Palavra de Deus. Uma palavra tem valor não

só pela idéia que comunica, mas também pela pessoa que a pronuncia e pela maneira como é pronunciada.
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Na Bíblia, quem nos dirige a Palavra é Deus, e Ele o faz com muito amor. Uma palavra de amor desperta

forças, libera energias, recria a pessoa. Meditando a Palavra de Deus, o coração humano se dilata até adquirir

a dimensão do próprio Deus, que pronuncia a Palavra. Aqui aparece a dimensão mística da Lectio Divina. Um

lavrador de Pernambuco dizia: “Fui notando que se a gente vai deixando a Palavra de Deus entrar dentro da

gente, a gente vai se divinizando. Assim, ela vai tomando conta da gente e a gente não consegue mais

separar o que é de Deus e o que é da gente . Nem sabe muito bem o que é Palavra dele e palavra da gente. A

Bíblia fez isso em mim!”(Por trás da Palavra, nº 46(1988)28).

A meditação aprofunda também a dimensão poética da Palavra de Deus. Uma palavra é um meio

para transmitir uma idéia. As palavras, tanto as nossas como as da Bíblia, dirigem-se, em primeiro lugar, à

razão, que pode captar as idéias. Mas uma palavra não é só veículo de idéias. Tem também outras
dimensões. Ela possui uma força poética (no sentido literal: poesia vem do grego poein, fazer). Não só diz,

mas também faz! Faz o que diz! No estudo da Bíblia, geralmente, só nos preocupamos em descobrir a idéia, a

mensagem da Palavra de Deus. A Lectio Divina procura atingir e ativar também as outras dimensões. Ela é

mais completa. O seu resultado é mais amplo.

Pela leitura se atinge a casca da letra e se tenta atravessá-la para, na meditação, atingir o fruto do

espírito(S.Jerônimo). O Espírito age dentro da Escritura(2 Tim 3,16). Através da meditação, ele se comunica a

nós, nos inspira, cria em nós os sentimentos de Jesus Cristo(Fil 2,5), ajuda-nos a descobrir o sentido pleno

das palavras de Jesus(Jo 16,13), faz experimentar que sem ele nada podemos fazer(Jo 15,5), ora em nós

com gemidos inefáveis (Rom 8,26) e gera em nós a liberdade(2 Cor 3,17). É o mesmo espírito que enche a

vastidão da terra(Sb 1,7). No passado ele animava os Juízes e os Profetas. No presente, ele nos ajuda a

descobrir o sentido profético da história do nosso povo, que se organiza e luta por uma sociedade mais justa.
A meditação nos ajuda a descobrir o sentido espiritual, isto é, o sentido que o Espírito de Deus quer comunicar

hoje à sua igreja através do texto da Bíblia.

A meditação é uma atividade pessoal e também comunitária. A partilha do que cada um sente,

descobre e assume no contato com a Palavra de Deus é muito mais do que só a soma das palavras de cada

um. A busca em comum faz aparecer o sentido eclesial da Bíblia e fortalece em todos o sentido comum da fé.

Por isso é tão importante que a Bíblia seja lida, meditada, estudada e rezada não só individualmente, mas

também e sobretudo em comum. Pois trata-se do livro de cabeceira da Igreja, da Comunidade.

Qual o momento de se passar da meditação para a oração? Não é fácil dizer quando, exatamente,

uma pessoa passa da juventudade para a idade adulta. Mas existem alguns critérios. A meditação atualiza o

sentido do texto até ficar claro o que Deus está pedindo de nós, religiosas e religiosos Carmelitas. Ora,

quando fica claro o que Deus pede, está chegando momentro de se perguntar: “E agora o que vou eu dizer a
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Deus? Assumo ou não assumo?” Quando fica claro o que Deus pede, fica clara também a nossa incapacidade

e a nossa falta de recursos. É o momento de súplica: “Senhor, levanta-te! Socorre-nos!”(Sl 44,27) Quando fica

claro que Deus nos interpela através do irmão explorado e necessitado e que ele ouve o grito dos pobres, está

chegando o momento de unir nossa voz ao grito dos pobres, para que Deus, finalmente, ouça o seu grito e
venha libertar o seu povo. Com outras palavras, a meditação é semente de oração. Basta praticá-la e ela, por

si mesma, se transforma em oração.

3. A Oração: suplicar, louvar, recitar

A atitude de oração está presente desde o começo da Lectio Divina. No início da leitura invoca-se o

Espírito Santo. Durante a leitura sempre aparecem pequenos momentos de oração. A meditação já é quase

uma atitude de oração, pois, por si mesma, se transfomra em prece. Mas dentro da dinâmica da Lectio Divina,

apesar de tudo ser regado com oração, deve haver um momento especial, próprio para a prece. Esse
momento é o terceiro degrau, o da oração. Através da leitura procuramos descobrir: “O que o texto diz em

si?”. A meditação aplica a leitura à nossa vida: “O que o texto diz para mim, para nós?” Até agora era Deus

quem falava. Chegou o momento da oração propriamente dita: “O que o texto me faz dizer, nos faz dizer a

Deus?”

A atitude de oração diante da Palavra de Deus deve ser como aquela de Maria que disse: “Faça-se

em mim segundo a tua Palavra”(Lc 1,38). A palavra que Maria ouviu não era uma palavra da Bíblia, mas sim

uma palavra percebida nos fatos da vida, por ocasião da visita do anjo. Maria foi capaz de percebê-la, porque

a ruminação(cf Lc 2,19.51) tinha purificado o seu olhar e o seu coração. Os puros de coração percebem a

ação de Deus nos fatos(cf Mt 5,8). Rezando e cantando(cf Lc 1,46-56), eles a encarnam na vida.

A atitude de oração deve ser realista e não ingênua, o que se alcança pela leitura. Deve nascer da

experiência do nosso nada e dos problemas reais da vida, o que se alcança pela meditação. Deve tornar-se

uma atitude permanente de vida, o que se alcança na contemplação.

A oração, provocada pela meditação, inicia por uma atitude de admiração silenciosa e de adoração ao

Senhor. A partir daí brota a nossa resposta à Palavra de Deus. Desde os tempos do Novo Testamento, os

cristãos descobriram que nós não sabemos rezar como convém. É o próprio Espírito que ora em nós (Rom

8,26). Quem melhor fala a Deus é o próprio Deus. Por isso, a oração dos Salmos ainda é a melhor oração. O

próprio Jesus usou frequentemente os salmos e oraçãos da Bíblia. Ele é o grande cantor dos

salmos(S.Agostinho). Com Ele e nEle, os cristãos prolongam a Lectio Divina pela oração pessoal, pela oração

litúrgica e pelas preces da Igreja.

Nesta grande comunhão eclesial é importante que a Palavra de Deus suscite em nós, religiosos e
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religiosas, uma intensa vida de oração individual. Dependendo do que se ouviu da parte de Deus na leitura e e

na meditação, a resposta pode ser de louvor ou de ação de graças, de súplica ou de perdão, pode até ser de

revolta ou de imprecação, como foi a resposta de Jó, de Jeremias e de tantos Salmos. Como na meditação, é

importante que esta oração espontânea não seja só individual, mas também tenha sua expressão comunitária

em forma de partilha.

A oração, provocada pela meditação, também pode ser recitação de preces já existentes. Neste ponto

o Ofício Divina presta uma grande ajuda. Ele espalha a leitura através das horas do dia. Infelizmente, a

Liturgia das Horas que, nos primeiros séculos, alimentava a oração pessoal do Povo de Deus ficou restrita aos

monges e clérigos. O monge ouvia a palavra de Deus, memorizava-a e levava-a consigo para ruminá-la nos

intervalos, durante o trabalho manual. Além disso, uma das primeiras tarefas do monge, ao entrar no mosteiro,

era decorar os salmos para que servissem de porta-voz e apoio no seu diálogo com Deus.

Hoje em dia, já não podemos repetir o esquema dos antigos monges. Os tempos mudaram. Fica,

porém, a inspiração, o modelo e o desafio: decorar algum salmo para as horas de precisão; carregar consigo

alguma frase da Bíblia para ruminá-la ao longo do dia, nos intervalos, durante o trablho, no ônibus, no roçado;

criar um esquema de vida, adaptado ao nosso modo de viver, que alcance o mesmo objetivo.

Além do que já vimos, a Lecio Divina procura acentuar um outro aspecto muito importante da oração,

a saber, a sua ligação bem concreta com a vida, com a caminhada e a luta do povo. Este assunto delicado e

difícil exige uma beve reflexão para situá-lo.

A Palavra de Deus vale não só pela idéia que transmite, mas também pela força que comunica. Não

só diz, mas também faz. Um exemplo concreto é o sacramento: a palavra “Isto é meu corpo” faz o que diz. Na

criação, Deus fala e as coisas começam a existir(Sl 148,5; Gn 1,3). O povo judeu, muito mais do que nós hoje,

tinha sensibilidade para valorizar estes dois aspectos da palavra e mantê-los unidos. Eles diziam na língua
deles dabar, rbd, o que significava, ao mesmo tempo, palavra e coisa diz e faz, anuncia e traz, ensina e

anima, ilumina e fortalece, luz e força, Palavra e Espírito. Ora, a Lectio Divina que tem suas raízes no povo
judeu, também valoriza os dois aspectos e os mantém unidos. Pela leitura procura descobrir a idéia, a

mensagem, que a palavra transmite e ensina. Pela meditação e sobretudo pela oração, ela cria o espaço onde

a Palavra faz o que diz, traz o que anuncia, comunica sua força e nos revigora para a caminhada. Os dois

aspectos não podem ser separados, pois ambos existem unidos na unidade de Deus, no seio da Santíssima

Trindade. Desde toda a eternidade, o Pai pronuncia sua Palavra e coloca nela a força do seu Espírito. A

Palavra se fez carne em Jesus, no qual repousa a plenitude do Espírito Santo.

Infelizmente, na prática pastoral, estes dois aspectos da Palavra estão separados. De um lado, os

movimentos carismáticos; de outro lado, os movimentos de libertação. Os carismáticos têm muita oração, mas
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muitas vezes carecem de visão crítica. Às vezes, não fazem a leitura como deve ser feita: não situam o texto

dentro do seu contexto de origem e, por isso mesmo, tendem para uma interpretação fundamentalista,
moralizante e individualista da Bíblia. Por isso, a sua meditação e oração, muitas vezes, carecem de

fundamento real no texto e na realidade. Os movimentos de libertação, por sua vez, tem muita consciência
crítica, fazem boa leitura mas, às vezes, carecem de perseverança e de fé, quando se trata de enfrentar

situações humanas que, dentro da análise científica da realidade, em nada contribuem para a transformação

da sociedade. Às vezes, eles têm uma certa dificuldade para enxergar a utilidade de longas horas gastas em

oração sem resultado imediato. A Lectio Divina, quando bem conduzida nos seus vários passos, talvez possa

ser uma ajuda para corrigir estas falhas e aproximar o que não deveria estar separado.

Finalmente, na oração reflete-se ainda o itinerário pessoal de cada um no seu caminhar em direção a

Deus e no seu esforço de esvaziar-se de si para dar lugar a Deus, ao irmão, ao pobre, à comunidade. É aqui

que se situam as noites escuras com suas crises e dificuldades, com seus desertos e tentações, rezadas,

meditadas e enfrentadas à luz da Palavra de Deus, como Jesus fazia(cf Mt 4,1-11).

Qual o momento de se passar da oração para a contemplação? Aqui não há resposta. A contem-

plação é o que sobra nos olhos e no coração, depois que a oração terminou. Ela fica para além do caminho da

Lectio Divina, pois é o seu ponto de chegada. Por ser o ponto de chegada é também ponto de partida de um
novo começo de leitura, meditação, oração. A contemplação é como a fruta da árvore: já estava dentro da

semente. Vai crescendo aos poucos, amadurecendo lentamente.

4. A contemplação: enxergar, saborear, agir

A contemplação é o último degrau da Lectio Divina. É o seu ponto de chegada. Cada vez, porém, que

se chega ao último degrau, este se torna patamar para um novo começo. E assim, através de um processo
sempre renovado de Leitura, Meditação, Oração, Contemplação, vamos crescendo na compreensão do

sentido e da força da Palavra de Deus. Nunca se chegará ao ponto de poder dizer: “Agora realizei todo o
objetivo da Palavra de Deus na minha vida!”, pois sempre haverá pela frente uma leitura mais penetrante, uma

meditação mais exigente, uma oração mais engajada, uma contemplação mais transparente. Até todos os

véus cairem, até que a realidade toda seja transformada e chegue a plenitude do Reino. Mas até lá, ainda

resta um longo caminho(1 Rs 19,7).


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A contemplação reune em si todo o caminho percorrido da Lectio Divina. Até agora, você se colocou

diante de Deus, leu e escutou a palavra, estudou e descobriu o seu sentido. Com ele você se comprometeu e

começou a ruminá-lo para que entrasse na dinâmica da sua própria vida e passasse da cabeça para o

coração. Você transformou tudo isto em oração diante de Deus como projeto para a sua vida. O sal da palavra

desapareceu na sua vida e lhe deu um novo sabor. O pão da palavra foi mastigado e lhe deu força para uma

nova ação. Agora, no fim, tendo tudo isto na mente e no coração, você começa a ter um novo olhar para

observar e avaliar a vida, os fatos, a história, a caminhada das comunidades, a situação do povo, os pobres. É
o olhar de Deus sobre o mundo, que assim se comunica e se esparrama. Este novo olhar é a contemplação.

Novo olhar, novo sabor, nova ação! Ela envolve todo o ser humano.

Santo Agostinho dizia que, através da leitura da Bíblia, Deus nos devolve o olhar da contemplação e

nos ajuda a decifrar o mundo e a transformá-lo, para que seja novamente uma revelação de Deus, uma
teofania. A contemplação assim entendida é o contrário da atitude de quem se retira do mundo para poder

contemplar a Deus. A contemplação como resultante da Lectio Divina é a atitude de quem mergulha dentro

dos fatos para descobrir e saborear neles a presença ativa e criativa da Palavra de Deus e, além disso,

procura comprometer-se com o processo de transformação que esta Palavra está provocando dentro da
história. A contemplação não só medita a mensagem, mas também a realiza; não só ouve, mas coloca em

prática. Não separa, mas une. Diz e faz. Ensina e anima. É luz e força.

Para os fundamentalistas, a Palavra de Deus está só e unicamente na Bíblia. O mundo, a vida, a

história, tudo isto é antro de perdição. Só se salva quem aplica a Palavra da Bíblia na sua vida e se afasta do
mundo, da política, da luta do povo, dos problemas do bairro, etc. A contemplação corrige este defeito dos

nossos olhos e nos converte. Faz descobrir que não é Deus que está ausente da realidade. Somos nós que

não percebemos a sua presença! Nós é que somos cegos(cf Is 42,19). A Lectio Divina pinga um colírio, abre

os olhos dos cegos e faz enxergar. Tira o véu e ajuda a descobrir o desenrolar do Projeto de Deus dentro da

história que hoje vivemos. Leva a perceber como Cristo, centro de tudo, nos faz passar do nosso antigo

testamento para o Novo Testamento. Faz descobrir o sentido das coisas e convida a pessoa comprometer-se
com o Reino. Guigo tem várias descrições da Contemplação. Ele diz: “A leitura busca a doçura da vida bem-

aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede e a contemplação a saborea. A leitura leva a comida

sólida à boca, a meditação a mastiga, a oração prova o seu gosto e a contemplação é a própria doçura que

alegra e recria. A leitura atinge a casca, a meditação penetra no miolo, a oração formula o desejo e a

contemplação é o gosto da doçura já alcançada”. O que mais chama a atenção nos escritos de Guigo é a sua

insistência em descrever a contemplação como uma saborosa curtição da doçura que existe na Palavra de

Deus. Na contemplação, ao que tudo indica, a experiência de Deus suspende tudo, relativiza tudo e, como

que por um instante, antecipa algo da alegria que Deus preparou para aqueles que o amam(1 Cor 2,9).
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Guigo diz as coisas com as palavras do século XII. Um agricultor disse as mesmas coisas com as

palavras do povo nordestino do século XX: “Quando eu fui começando essa caminhada aqui na Escola

Bíblica, eu fui vendo e sentindo que a Bíblia não é brincadeira. Que ela muito exige da gente. Exige que a

gente vive o que a gente ouve, lê e vai aprendendo. Aí eu achei que não ia aguentar a barra. Eu pensei em

deixar a Escola Bíblica. Aguentei mais um pouco e aí fui notando que se a gente vai deixando a Palavra de

Deus entrar dentro da gente, a gente vai se divinizando. Assim ela vai tomando conta da gente e a gente não

consegue mais separar o que é de Deus e o que é da gente. Nem sabe muito bem o que é Palavra dele e

palavra da gente. A Bíblia fez isso em mim. Aí eu não consegui deixar a Escola Bíblica”(Por trás da Palavra

46(1988)28). Nestas palavras tão simples está descrito todo o processo da Lectio Divina. E está descrito de

um jeito de fazer inveja ao próprio Guigo! Saborear a doçura (exigente) do Senhor e curtir a alegria da sua

presença é o que se vê acontecer aqui, na vida deste agricultor. Como ele há muitos milhares. A
contemplação é o que se vê acontecer nas Comunidades. Apesar de toda a luta, sofrimento, derrota,

enganação, pobreza, fome, doença, o que mais chama a atenção é a alegria do povo. Alegria, apesar de tudo!

É a promessa de Jesus que se realiza: “Ninguém vai conseguir tirar a alegria de vocês!”(Jo 16,22) Alegria que

nasce da fé na presença de Deus em todas as horas. Nasce da esperança de, um dia, vencer na luta e de

melhorar este mundo. Diz o canto: “Nossa alegria é saber que um dia todo esse povo se libertará, pois Jesus
Cristo é o Senhor do mundo, nossa esperança realizará!” A contemplação é tudo isto!

A contemplação como ponto final da escada é patamar para um novo começo. É como subir numa

torre muito alta. Você alcança o primeiro patamar por uma escada de três lances: leitura, meditação, oração.

Na janela do primeiro patamar, você descansa e contempla a paisagem. Depois você continua a subida até o

segundo patamar por uma outra escada também de três lances: leitura, meditação, oração. Na janela do

segundo patamar você desacansa mais um pouco e contempla, de novo, a mesma paisagem. Ela ficou mais

bonita! Dá vontade de subir mais para observá-la melhor. E assim você vai subindo, sempre mais, num

processo que não termina nunca. Vai lendo sempre, a mesma Bíblia, olhando sempre a mesma paisagem. À

medida que sobe, a visão se aprofunda, a paisagem fica mais ampla, mais real. Você enxerga a sua casa, o

seu povoado. Encontra lá no meio a sua vida, a história de suas andanças. E assim vai subindo, junto com os

companheiros, trocando idéias, ajudando-se uns aos outros para não deixar ninguém para atrás. E assim

vamos subindo, até que cheguemos a contemplar a Deus face a face(1 Cor 13,12) e, em Deus, os irmãos, a
realidade, a paisagem, numa visão completa e definitiva. A contemplação é tudo isto e muito mais! “Muita luz,

nuvem limpa, pé de pau florido, e o povo alegre, cantando... Eu acho que é um pedacinho da ressurreição,

mesmo em sonho. A gente acordado não dá pra ver esse desafogo da ressurreição porque tem sempre as

sombras do sofrimento e da luta... Vai demorar.... Mas um dia eu sei que a ressurreição da felicidade, melhor

que o sonho, vai chegar pro povo... Um dia a ressurreição vai baixar no nosso chão...” Palavras de um

pedreiro! Demos graças a Deus!


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CAPÍTULO 6

A IGREJA LÊ A BÍBLIA
A Leitura fiel

A fidelidade à Igreja, à Tradição e ao Magistério é tão importante para a interpretação da Bíblia quanto a raíz para

a árvore. Sem ela, a árvore morre. Mas raíz é para ficar debaixo da terra. O mais importante não é citar o Magistério, mas

sim obedecer(Mt 21,28-32). Muita gente não leu nem conhece as Encíclicas sobre a interpretação da Bíblia. Não importa.

O que importa é ter uma atitude interpretativa que seja fiel à Tradição da Igreja e .

Apresentamos aqui dez normas hermenéuticas que, ao longo dos séculos, animaram e orientaram a leitura orante

da Bíblia na Igreja. Elas são como que um resumo dos critérios que devem orientar a Lectio Divina. Estas normas foram

tiradas, em grande parte, do Documento Conciliar Dei Verbum(DV). Também utilizamos outros documentos e encíclicas.

1. Crer que a Bíblia é Palavra de Deus(DV 11)


É o que mais caracteriza a leitura cristã da Bíblia. É por ser Palavra de Deus que a Bíblia tem aquela autoridade.

A Palavra de Deus, porém, não está só na Bíblia. Deus também fala pela vida, pela natureza, pela história(DV 3). A

leitura da Palavra escrita da Bíblia ajuda a descobrir a Palavra viva de Deus na vida.

Por ser Palavra de Deus, a Bíblia, quando ”lida e interpretada naquele mesmo Espírito em que foi escrita”(DV 12),

comunica a luz e a força deste mesmo Espírito aos que a lêem. Por isso, a Palavra de Deus tem força para realizar o que

transmite(DV 21).

O povo cristão procura e encontra na Bíblia "o conhecimento de Deus e do homem e o jeito pelo qual o justo e

misericordioso Deus trata com os homens" (DV 15). A Lectio Divina faz com que o modo de pensar de Deus, aos poucos,

se torne o nosso modo de pensar. Por isso mesmo, ela ajuda a descobrir e quebrar em nós as falsas ideologias, e

contribui para que aprendamos a olhar a vida com os olhos de Deus.

2. É Palavra de Deus em linguagem humana(DV 12)


A linguagem usada por Deus para comunicar-se conosco na Bíblia é em tudo igual à nossa linguagem, menos no

erro e na mentira. Por isso ela deve ser interpretada com a ajuda dos critérios que se usam para interpretar a linguagem

humana: crítica literária, pesquisa histórica, etnologia, arqueologia, etc (DV 12; Pio XII 20).

Sob a pressão dos problemas que questionam a fé surgem sempre novos métodos de análise dos textos bíblicos.

O Papa João Paulo II, no seu discurso à Pontifícia Comissão Bíblica(1989) reconheceu a legitimidade do uso destes

métodos.Ele disse:”A grande variedade dos métodos pode, por vezes, dar a impressão de uma certa confusão. Mas

também tem a vantagem de nos fazer perceber a inesgotável riqueza da Palavra de Deus” A própria Pontifícia Comissão

Bíblica no seu mais recente documento analisa e avalia estes vários métodos. Ao mesmo tempo, é bom ter consciência

clara dos limites de cada método.


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3. Deus se revela a si mesmo na sua Palavra(DV 20)


Antes de ser um catálogo de verdades, a Bíblia é a revelação da graça e da misericórdia de Deus (DV 2). Ele nos

amou primeiro! Para os pobres e oprimidos, esta revelação significa, desde sempre, que Deus se inclina para escutar o

seu clamor e estar com eles na sua aflição, para caminhar com eles e libertá-los do cativeiro(Ex 3,7-8; Sl 91,14s).

O objetivo primeiro da Bíblia é ajudar-nos a descobrir na vida esta presença amiga de Deus e experimentar o seu

amor libertador. Este é o cerne de toda a revelação expresso no Nome YHWH, Deus-Conosco. A leitura da Bíblia

funciona como um colírio que vai limpando os olhos. Devolve o olhar da contemplação que nos foi roubado pelo pecado

(St Agostinho).

Esta revelação e experiência de Deus são fruto, ao mesmo tempo, da graça de Deus e do esforço humano. De

um lado, a revelação que Deus faz de si mesmo provoca nossa colaboração e participação e exige observância da

Aliança. De outro lado, ela “nos faz participar dos bens divinos que superam inteiramente a capacidade da mente

humana”(DV 6). Eficência e gratuidade, luta e festa, natureza e graça, ambos se misturam na caminhada conflitiva em

direção a Deus. Este olhar libertador, nascido de Deus, liberta e abre o sentido da Bíblia.

4. Jesus é a chave principal da Sagrada Escritura(DV 2.4.16) Jesus é o centro, a

plenitude e o objetivo da revelação que Deus vinha fazendo de si desde o Antigo Testamento(DV 2.3.4.15.16.17). “Os

livros do Antigo Testamento adquirem e manifestam sua plena significação no Novo Testamento e, por sua vez, o

iluminam e explicam”(DV 16). Sem o Antigo Testamento não se entende o Novo, e sem o Novo não se entende o Antigo.

A experiência viva de Jesus na comunidade é a luz nova nos nossos olhos para poder entender todo o sentido do

Antigo Testamento(DV 16). Cristo está como que do nosso lado, olhando conosco para o Antigo Testamento, clareando-o

com a sua luz.

Tudo isto tem uma atualidade muito grande. Não se trata só de descobrir como os primeiros cristãos souberam

encontrar as figuras de Jesus no Antigo Testamento(DV 15). Trata-se sobretudo de fazer hoje o que eles fizeram, a

saber: descobrir como o nosso “antigo testamento”, isto é, a nossa história pessoal e comunitária, está sendo empurrada

pelo Espírito de Deus para a vida plena em Cristo. A conversão para Cristo tira o véu dos olhos e faz entender o sentido

da Bíblia e da vida(2 Cor 3,16).

De um lado, a Bíblia ajuda a entender e a aprofundar aquilo que estamos vivendo em Cristo. De outro lado, nossa

vida e nossa prática nos ajudam a entender melhor o sentido cristológico da Escritura. Antigamente, este sentido era
chamado de “sentido espiritual”. Isto é, o Espírito nos ajuda a descobrir o sentido que o texto antigo tem para nós hoje.

Também era chamado “sentido simbólico”, pois unia (sum-ballo) a vida e a Bíblia.

5. Aceitar a lista completa dos livros(DV 16)


Existem duas listas de livros inspirados: a lista judaica, que compreende o que nós chamaos o Antigo

Testamento, e a lista cristã, que compreende os livros do Antigo e Novo Testamento. Aceitar a lista completa é aceitar a
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unidade dos dois Testamentos e admitir que uma e mesma economia divina une os dois Testamentos num único projeto

de salvação e de libertação, projeto que só se revela plenamente na medida em que o Antigo passa a ser Novo.
Esta passagem começou no momento da Ressureição de Jesus e ainda não terminou. A cada momento novos

povos, novas pessoas e novos setores da nossa vida pessoal e comunitária vão entrando no “Caminho”(At 9,2;
18,25.26). Esta passagem, páscoa, do Antigo para o Novo, envolve tudo e todos, pois tudo foi criado por Deus para

Cristo(Cl 1,16). Assim, cada pessoa, cada grupo, comunidade, povo ou nação tem o seu Antigo Testamento, tem a sua

história de salvação e deve fazer a sua passagem para o Novo, isto é, deve aprofundar a sua vida até descobrir lá na

raíz, a presença amiga e gratuita de Deus, empurrando tudo para a plena vida em Cristo.

A Bíblia com seus dois Testamentos é norma, é cânon, dado por Deus, para ajudar-nos no discernimentos e na
realização desta nossa páscoa de salvação e de libertação. "Renovar" é fazer com que o Antigo se torne Novo.

6. A Bíblia é livro da Igreja(DV 21)


Quando nos reunimos em torno da Palavra de Deus, formamos como que um pequeno santuário ou sacrário, tão

santo quanto o sacrário que conserva o Corpo de Cristo. Os inúmeros pequenos santuários que, assim, se espalham

pelo mundo, sobretudo entre os pobres, são as pontas finas e frágeis da raiz que dão força e vigor à árvore da Igreja.

Estes pequenos santuários em torno da Palavra de Deus são o lugar, onde a Igreja nasce como a água da sua fonte. Na

Igreja existem o Livro e o Cálice(João XXIII), a Palavra de Deus e o Corpo de Deus(DV 21).

A Bíblia não é, em primeiro lugar, um livro de piedade indiviual, nem uma cartilha de transformação social, mas é

o livro de fé da comunidade. A Palavra de Deus gera a comunidade. Interpretar a Palavra de Deus não é a atividade

individual do exegeta que estudou um pouco mais que os outros, mas é e deve ser uma atividade comunitária em que

todos participam, cada um a seu modo com os seus dons, inclusive o exegeta.

Deste modo, surge e cresce o sentido comum, aceito e partilhado por todos. É o “sensus ecclesiae”, o “sensus

fidelium”, o “sentido de fé da Igreja”, com o qual todos se comprometem como se fosse com o próprio Deus. Este “sentido

de fé da Igreja”, quando partilhado por todos nos Concílios e expresso pelo Magistério, cria o quadro de referência dentro

do qual se deve ler e intepretar a Bíblia.

7. Levar em conta os critérios da fé(DV 12)


Não basta a razão para poder captar todo o sentido que a Bíblia tem para a nossa vida. É necessário levar em

conta também os critérios da fé e ler a Bíblia “naquele mesmo Espírito em que foi escrito”(DV 12). Os critérios da fé são
três: "Atender com diligência ao conteudo e à unidade de toda a escritura, levada em conta a Tradição viva da Igreja toda

e a analogia da fé"(DV 12). Ou seja: (1) levar em conta a "Unidade de toda a Escritura", isto é, a Visão Global da Bíblia;

(2) a Tradição viva dentro da qual ela foi gerada e transmitida; (3) a vida da Igreja dentro da qual e em função da qual a

Bíblia é lida e interpretada. Os três têm o mesmo objetivo: descobrir o sentido pleno da Escritura, impedir que o seu uso

seja manipulado, e evitar que o texto seja isolado do seu contexto e da tradição que o gerou e transmite.
1. A unidade de toda a Escritura. A Bíblia é um conjunto, onde cada livro, cada frase tem o seu lugar e a sua
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função para nos revelar o Projeto de Deus. As suas várias partes são como tijolos numa grande parede: juntos formam o

desenho do Projeto de Deus. O princípio da Unidade da Escritura proibe isolar textos, arrancá-los de seu contexto e

repetí-los como verdades isoladas e absolutas. Um tijolo só não faz a parede. Um traço só não faz o desenho. A Bíblia

não é um caminhão de tijolos, mas uma casa onde se pode morar.


2.A Tradição viva da Igreja. A Tradição envolve a Bíblia antes, durante e depois. Antes de ser escrita, a Bíblia era

narrada. Foi sendo escrita dentro de um processo de transmissão das histórias e tradições do povo. No fim, uma vez

escrita, continuou e continua sendo sendo transmitida de geração em geração, até hoje. Ou seja, o texto bíblico não caiu

pronto do céu, mas nasceu de dentro de uma situação concreta e em função dela. Como tal deve ser lida e vivida.
3. Levar em conta a analogia da fé. O texto deve ser lido não só dentro do conjunto da Bíblia, nem só dentro do

conjunto da Tradição, mas também dentro do conjunto atual da vida da Igreja. Deve obedecer não só às exigências de fé

de ontem, mas também às exigências de fé de hoje. A fidelidade à Palavra exige que ela se torne contemporânea dos

homens de hoje(Paulo VI). Isto é, deve levar em conta as dificuldades que o homem moderno tem para crer.

8. Levar em conta os Critérios da Realidade(Paulo VI)


Os critérios da realidade situam-se em dois níveis: a realidade do tempo em que foi escrita a Bíblia (Pio XII), e a

realidade do povo que hoje lê a Bíblia(Paulo VI). Ambas têm as suas exigências que devem ser levadas em conta na
interpretação. Usando os critérios da realidade, descobrimos o chão comum humano que une o povo de Deus de hoje e o

povo de Deus da Bíblia numa mesma situação diante de Deus, e cria assim a abertura para se perceber o alcance do

texto para a nossa realidade.


1. A realidade do tempo em que foi escrita. Isto é, “o intérprete deve transpor-se com o pensamento àqueles

tempos antigos do Oriente”(Pio XII). Com a ajuda das ciências, ele estabelece o sentido-em-si do texto e o prepara para

que o leitor possa descobrir nele o sentido que lá existe para nós. Ou seja, ele estabelece “uma certa conaturalidade

entre os interesses atuais e o assunto do texto, para que se possa estar disposto a ouví-lo” (Paulo VI).
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2. A realidade do povo que hoje lê a Bíblia. A Bíblia nasceu da preocupação do povo de reencontrar, na realidade

conflitiva de cada época, os sinais da presença e do apelo de Deus. Por isso, o próprio Jesus explicou a Bíblia partindo

da realidade e dos problemas dos dois discípulos de Emaús: “De que vocês estão falando?”(Lc 24,17). Não basta o

intérprete expor o sentido histórico do texto. Ele deve expô-lo também “em relação do homem contemporâneo”(Paulo VI).

Isto significa levar em conta a realidade que hoje nos envolve e ter uma visão crítica desta realidade, para não ser vítima

da ideologia dominante.

9. Leitura Orante da Bíblia(DV 25)


"A Sagrada Escritura deve ser lida naquele mesmo Es-pírito em que foi escrita"(DV 12). Pois a descoberta do

sentido não depende só da força da inteligência, mas também da ação do Espírito que só se consegue pela força da

oração(Lc 11,13).

Neste ponto, a leitura do povo das Comunidades Eclesiais de base nos dá uma lição. Eles envolvem a sua leitura

pela oração e pelo canto e criam, assim, um ambiente comunitário de fé, onde o Espírito pode atuar, agir livremente e

revelar o sentido que o texto antigo tem para nós hoje.

Concretamente, isto significa que se deve criar um ambiente de silêncio, de escuta e de partilha e, ao mesmo

tempo, ter uma preocupação constante em aprofundar a vida do povo com seus problemas e permitir que as alegrias e

tristezas do povo estejam em nossa mente e no nosso coração.

10. Toda a interpretação a serviço da Evangelização(JP II)


A exegese não tem finalidade em si mesma, mas está a serviço da vida e da missão da Igreja. A missão

proincipal é a evanagelização, o anúncio da Boa Nova de Deus(Mc 1,14). "Na Igreja, todos os métodos de interpretação

devem estar, direta ou indiretamente, a serviço da evangelização"(J.Paulo II). Para que isto possa acontecer, são

necessárias duas coisas: 1. Durante todo o tempo da leitura da Bíblia ter presente a realidade do povo a ser

evangelizado. 2. Para que a nossa comunidade seja realmente evangelizadora deve permitir que a Palavra a transforme

em amostra viva do Evangelho que anuncia. Toda a nossa vida deve ser alimentada e permeada pela Palavra de Deus a

ponto de “iluminar a mente, fortalecer a vontade e inflamar o coração”(DV 23).

A Bíblia nos foi dada para que povo descubra a presença viva e libertadora de Deus em sua vida. Esta é a Boa

Nova que, cada vez de novo, em todas as épocas da história, temos a obrigação de descobrir, de assimilar, encarnar e

anunciar. É o que os pobres estão fazendo e ensinando na Igreja de Deus.

CAPÍTULO 7

O CARMELO LÊ A BÍBLIA
“Meditar dia e noite na lei do Senhor”

Depois desta longa viagem pela tradição e pela Bíblia, voltamos para casa. Vamos agora recolher os dados e
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sintetizá-los, para que iluminem e animem a nossa leitura orante da Palavra de Deus e nos ajudem a viver o

evangelho de acodo com o rumo dado pela Regra do Carmo.

1. A mística que deve animar a leitura orante da Bíblia no Carmelo

1. Ao iniciar a Leitura Orante da Bíblia, você não vai estudar; não vai ler a Bíblia para aumentar o seu

conhecimento nem para preparar algum trabalho apostólico; não vai ler para ter experiências extraordinárias.

Mas vai ler a Palavra de Deus para escutar o que Deus lhe tem a dizer, para conhecer a Sua Vontade e, assim,

"viver melhor em obséquio de Jesus Cristo"(Pról.). Em você deve estar a pobreza; deve estar também a
disposição que o velho Eli recomendou a Samuel: "Fala, Senhor, que teu servo escuta!" (1S 3,10). Deve estar

a mesma atitude obediente de Maria diante da Palavra: “Faça-se em mim segundo a Tua Palavra!”(Lc 1,38).

2. Poder escutar a Deus não depende de você nem do esforço que fará, mas só e unicamente de Deus, da

Sua decisão gratuita e soberana de entrar em contato com você e de fazer com que você possa ouvir a Sua

voz. O ponto de partida da leitura orante deve ser a humildade. Saber recolher-se à sua própria insignificância

e dignidade. Para isto é necessário que você se prepare, pedindo que Ele mande o seu Espírito. Pois sem a

ajuda do Espírito de Deus, não é possível descobrir o sentido que a Palavra de Deus tem para nós hoje(cf Jo

14,26; 16,13; Lc 11,13).

3. É importante criar um ambiente adequado que favoreça o recolhimento e a "escuta" atenta da Palavra de

Deus. Para isto você deve construir a sua cela, dentro e ao redor de você, e "permanecer dentro dela"(VII),

durante todo o tempo da Lectio Divina. Com muita insistência, a Regra recomenda o silêncio(XVI). E lembre-

se: uma boa e digna posição do corpo favorece o recolhimento da mente.

4. Abrindo a Bíblia, você deve estar bem consciente de que está abrindo um livro que não é seu, mas da

comunidade. Fazendo a sua Leitura Orante, você está entrando no grande rio da Tradição da Igreja que

atravessa os séculos. A Leitura Orante é o barquinho que te carrega pelas curvas deste rio até o mar. O clarão

luminoso que nos vem do mar já clareiou a "noite escura" de muita gente. Mesmo fazendo sozinho a sua

Leitura Orante da Bíblia, você não está só, mas estará unido aos irmãos e às irmãs carmelitas que, antes de

você, procuraram "meditar dia e noite na lei do Senhor e vigiar em oraçöes"(VII). São muitos: Brocardo,

Bertoldo, João da Cruz, Teresa de Ávila...Mesmo aqueles que não sabiam ler o texto escrito, mas sabiam ler o

texto da vida, dos acontecimentos, do rosto dos irmãos e das irmãs.


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5. Uma leitura atenta e proveitosa da Bíblia tem três passos. Ou seja, do começo ao fim, ela deve estar

marcada pelas três atitudes fundamentais: Lectio, Meditatio, Oratio:

1º PASSO ou ATITUDE: Leitura: Antes de tudo, você deve ter sempre a preocupação de investigar: "O

que o texto diz em si?". Isto exige que faça silêncio. Dentro de você tudo deve silenciar (XVI), para que nada o

impeça de escutar o que texto tem a dizer, e para que não aconteça que você leve o texto a dizer só aquilo que

você gosta de escutar.

2º PASSO ou ATITUDE: Meditação: Você também deve ter sempre a preocupação de se perguntar: "O

que o texto diz para mim, para nós?" Neste segundo passo, você entra em diálogo com o texto, para que o

sentido se atualize e penetre a sua vida de carmelita hoje. Como Maria, rumine o que escutou(Lc 2,19.51), e

"medite na Lei do Senhor"(VII), para que, assim, "a Palavra de Deus habite abundantemente na sua boca e no

seu coração" (XIV).

3º PASSO ou ATITUDE: Oração: Além disso, você deve estar sempre preocupado em descobrir:"O que

o texto me faz dizer a Deus?" É a hora da prece, o momento de "vigiar em oraçöes"(VII). Até agora, Deus falou

para você; chegou a hora de você responder a Ele(VIII).

6. O resultado, o 4º passo, o ponto de chegada da Leitura Orante é a CONTEMPLAÇÃO. Contemplação

* é ter nos olhos algo da "sabedoria que leva à salvação"(2T 3, 15);

* é começar a ver o mundo e a vida com os olhos dos pobres, com os olhos de Deus;

* é você assumir sua própria pobreza e eliminar do seu modo de pensar aquilo que vem dos poderosos;

* é tomar consciência de que muita coisa, da qual você pensava que fosse fidelidade a Deus, ao Evangelho e

à Tradição da Ordem, na realidade nada mais era do que fidelidade a você mesmo e aos seus próprios

interesses e idêias;

* é saborear, desde já, algo do amor de Deus que supera todas as coisas;

* é mostrar pela sua vida que o amor de Deus se revela no amor ao próximo(IX, XIV);

* é dizer sempre: "faça-se em mim segundo a tua Palavra"(Lc 1,38).

Assim, "tudo o que deve ser feito, será feito de acordo com a Palavra do Senhor"(XIV).

7. Para que a sua Leitura Orante não fique entregue só às conclusöes dos seus próprios sentimentos,

pensamentos ou caprichos, mas tenha firmeza maior e seja realmente fiel, é importante você levar em conta

três exigências fundamentais:

1ª EXIGÊNCIA: confrontar o resultado da sua Leitura com a comunidade a que você pertence(XI), com a

fé da Igreja viva. Do contrário, poderia acontecer que o seu esforço não o leve a canto nenhum(Gál 2,2).

2ª EXIGÊNCIA: confrontar aquilo que você lê na Bíblia com a realidade que hoje vivemos. O confronto

da sua fé com a realidade levou o povo de Deus a criar as tradiçöes que até hoje são visíveis dentro da Bíblia.

O confronto do ideal contemplativo da nossa Ordem com a realidade dos "menores" (os pobres da época)
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levou os primeiros Carmelitas a assumir a Vida Mendicante. Quando a Lectio Divina não alcança o seu objetivo

na nossa vida, a causa nem sempre é falta de oração, falta de atenção à fé da Igreja, ou falta de estudo crítico

do texto. Muitas vezes, é simplesmente falta de atenção à realidade nua e crua que hoje vivemos. Quem vive

na superficialidade, sem aprofundar sua vida, não pode atingir a fonte de onde nasceram os Salmos, dizia

Cassiano.

3ª EXIGÊNCIA: confrontar as conclusöes da sua leitura com os resultados da exegese bíblica que

investiga o sentido da Letra. A Lectio Divina - é verdade - não pode ficar parada na Letra. Ela deve procurar o

sentido do Espírito(2 C 3,6). Mas querer estabelecer o sentido do Espírito sem fundamentá-lo na Letra é o

mesmo que construir um castelo no ar(St.Agostinho). É cair no engano do fundamentalismo. Hoje em dia, em

que tantas idéias novas se propagam, é muito importante ter bom senso. O bom senso se alimenta do estudo

crítico da Letra. Para não errarmos neste ponto, a Regra nos recomenda o exemplo do Apóstolo Paulo(XV).

8. O Apóstolo Paulo dá vários conselhos de como ler a Bíblia. Ele mesmo foi um bom intérprete. Eis algumas

das normas e atitudes recomendadas e observadas por ele:

* considere-se destinatário do que está escrito, pois tudo foi escrito para a nossa instrução(1 Cor 10, 11; Rm

15,4); a Bíblia é o nosso livro;

* procure ter nos olhos a fé em Jesus Cristo, pois é só pela fé em Jesus que o véu cai e que a Escritura

revela o seu sentido e nos comunica a sabedoria que leva à salvação(2 Cor 3,16; 2 Tim 3,15; Rm 15,4);

* lembre-se: Paulo falava de "Jesus Cristo Crucificado"(2 Cor 2,2), "escândalo para uns e loucura para

outros"; foi este Jesus que lhe abriu os olhos para perceber a Palavra viva no meio dos pobres da

periferia de Corinto, onde a loucura e o escândalo da cruz estavam confundindo os sábios, os fortes e os

que pensavam ser alguma coisa neste mundo(1 Cor 1,21-31);

* misture o eu e o nós; nunca só o eu, e nunca só o nós! O apóstolo também misturava, pois recebeu sua

missão da comunidade de Antioquia e falava a partir dela(At 13,1-3; Gál 2,2);

* tenha presente os problemas da sua vida pessoal, da família carmelitana, das Comunidades, da Igreja e do

povo a que você pertence e serve; foi assim que Paulo relia e entendia a Bíblia: a partir dos problemas do

povo das comunidades por ele fundadas (1 Cor 10,1-13).

9. Ao ler a Bíblia tenha bem presente que o texto da Bíblia não é só uma janela, por onde você olha para saber

o que aconteceu com os outros no passado; é também um espelho, um "símbolo"(Hb 11,19), onde você olha

para saber o que está acontecendo hoje com você(1C 10, 6-10). A leitura orante diária é como a chuva mansa

que, aos poucos, vai amolecendo e fecundando o terreno(Is 55,10-11). Entrando em diálogo com Deus e

"meditando a sua Lei"(VII), você cresce como a árvore plantada à beira dos córregos(Sl 1,3). Você não vê o

crescimento, mas perceberá o seu resultado no encontro renovado consigo, com Deus e com os outros. Diz o

canto: "É como a chuva que lava, é como o fogo que arrasa, Tua Palavra é assim, não passa por mim, sem
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deixar um sinal"

10. Um último ponto a ser levado em conta. Quando você faz Leitura Orante, o objetivo último não é interpretar

a Bíblia, mas sim interpretar a vida. Não é conhecer o conteúdo do Livro Sagrado, mas sim, ajudado pela

Palavra escrita, descobrir a Palavra viva que Deus fala hoje na sua vida, na nossa vida, na vida do povo, na

realidade do mundo em que vivemos (Sl 95,7); é crescer na fé e, como o profeta Elias, experimentar, cada vez

mais, que "Vivo é o Senhor, em cuja presença estou!"(1R 17,1;18,15).

2. Sugestões para orientar a leitura pessoal e comunitária da Bíblia

Leitura pessoal e diária da Bíblia


A atitude do discípulo fiel

“O Senhor me concedeu o dom de falar como seu discípulo, para eu saber levar uma

palavra de conforto a quem está desanimado. Cada manhã Ele me desperta, sim, desperta o

meu ouvido, para que eu O escute como um discípulo"(Is 50,4)

1. Iniciar, invocando o Espírito Santo

2. Leitura lenta e atenta do texto

3. Momento de silêncio interior, lembrando o que leu

4. Ver bem o sentido de cada frase

5. Atualizar e ruminar a Palavra, ligando-a com a vida

6. Alargar a visão,ligando o texto com outros textos bíblicos

7. Ler de novo, rezando o texto e respondendo a Deus

8. Formular um compromisso de vida

9. Rezar um salmo apropriado

10. Escolher uma frase como resumo para memorizar.

"O Senhor Yahweh abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, não recuei. Ofereci o meu dorso aos que me

batiam. O Senhor Yahweh virá em meu socorro. Eis porque não me sinto humilhado. Perto de mim está

Aquele que defende minha causa"(Is 50,4-8).

Leitura orante feita em grupo


Imitar a comunidade dos primeiros cristãos

“Jesus apresentou-se no meio deles e disse: "A Paz esteja com vocês!" Em seguida,

abriu-lhes a mente para que entendessem a Escritura"(Lc 24,36.45). E disse ainda: "O
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Espírito Santo que o Pai vai enviar em meu nome, ele ensinará a vocês todas as coisas e fará

vocês lembrarem tudo o que eu lhes disse. Ele encaminhará vocês para toda a verdade"(Jo

14,26; 16,13).

1. ACOLHIDA, ORAÇÃO

* Acolhida e breve partilha das expectativas.


* Oração inicial, invocando a luz do Espírito Santo.

2. LEITURA DO TEXTO

* Leitura lenta e atenta, seguida por um momento de silêncio.


* Ficar calado, para que a Palavra possa calar em nós.
* Repetir o texto em mutirão, tentanto lembrar tudo que foi lido.
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3. O SENTIDO-EM-SI DO TEXTO

* Trocar impressöes e dúvidas sobre o sentido do texto.


* Se necessário, ler novamente e esclarecer-se mutuamente.
* Um momento de silêncio para assimilar tudo que foi ouvido.

4. O SENTIDO-PARA-NÓS

* Ruminar o texto e descobrir o seu sentido atual.


* Aplicar o sentido do texto à situação que hoje vivemos.
* Alargar o sentido, ligando-o com outros textos da Bíblia.
* Situar o texto no Plano de Deus que se realiza na história.

5. REZAR O TEXTO

* Ler de novo o texto com toda a atenção.


* Momento de silêncio para preparar a resposta a Deus.
* Partilhar em forma de prece as luzes e forças recebidas.

6. CONTEMPLAR, COMPROMETER-SE

* Expressar o compromisso, ao qual a leitura orante nos levou


* Resumir tudo numa frase para levar conosco durante o dia

7. UM SALMO

* Achar um salmo que expresse tudo o que foi vivido no encontro


* Rezar o salmo para encerrar o encontro.

"Todos elevaram a voz a Deus: "Senhor, tu criaste o céu, a terra, o mar e tudo que existe neles. Por meio do

Espírito Santo disseste através do teu servo Davi, nosso pai: 'Por que se amotinam as nações, e os povos

planejam em vão? Os reis da terra se insurgem e os príncipes conspiram unidos contra o Senhor e contra o

seu Messias'. Agora,Senhor,olha as ameaças que fazem e concede que os teus servos anunciem cora-

josamente a tua palavra". Quando terminaram a oração, estremeceu o lugar em que estavam reunidos. Todos,

então,ficaram cheios do Espírito Santo e, com coragem, anunciavam a Palavra de Deus"(At 4,24-31).

3. Reflexões em torno do método a ser usado hoje na Lectio Divina

O método que se adota na leitura da Bíblia é muito mais do que só uma questão de técnicas e dinâmicas. O

método exprime, articula e transmite uma determinada visão da Bíblia e da revelação. Não é qualquer método

que serve. Um bom método nunca pode perder de vista o objetivo a que deve servir. O objetivo último da

leitura da Bíblia é sempre o mesmo: com a ajuda da Bíblia descobrir, assumir e celebrar a Palavra de Deus que

existe em nossa vida hoje.


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A prática secular da Igreja mostra que, para se poder atingir este objetivo, são necessários dois movimento
simultâneos: um de hoje para ontem; outro, de ontem para hoje. O de hoje para ontem procura investigar o

sentido literal, a letra, a história, até atingir o chão comum da problemática humana. Neste primeiro movimento
usam-se os critérios da razão e da ciência. A exegese presta aqui uma grande ajuda. O movimento de ontem

para hoje procura descobrir o sentido espiritual, o Espírito, a mensagem, a dimensão teologal, isto é, aquilo

que Deus nos tem a dizer hoje por meio daquele texto de ontem. Neste segundo movimento usam-se os

critérios da fé. O ambiente comunitário de oração presta aqui uma grande ajuda e favorece a descoberta do
sentido espiritual. Letra e Espírito são como corpo e alma. A interpretação não acontece sem os dois.

Estes dois movimento estão bem presentes na Lectio Divina, do começo ao fim. O movimento de hoje para
ontem se faz sobretudo através da Leitura e da Meditação. O movimento de ontem para hoje se faz sobretudo

através da Meditação e da Oração. A Contemplação é o resultado da união dos dois.

A tradição da Igreja e a prática das Comunidades dos pobres mostraram ainda, que a leitura deve partir de três
preocupações básicas: a) levar em conta a realidade humana de hoje com seus problemas e desafios que

questionam a fé e ameaçam a vida; b) ter nos olhos a fé da comunidade que nos faz entrar em comunhão com

o mesmo Deus que, no passado, guiou seu povo e a ele se revelou em Jesus Cristo; c) ter um grande respeito
pelo texto da Bíblia, evitando qualquer tipo de manipulação ou redução do seu sentido. Só assim a leitura

possibilita e alimenta o nosso diálogo com Deus.

A Lectio Divina leva em conta estas três preocupações: através da leitura, leva a sério o texto; através da

meditação, parte da realidade e para ela volta; através da oração, mantém viva a fé da comunidade. A

contemplação é o resultado que se obtém quando se é fiel a essas três preocupações.

Quem leu o que escrevemos até agora, deve ter percebido a diferença entre a leitura que aqui se recomenda e

a Lectio Divina recomendada por Guigo. Guigo, por exemplo, não manda fazer reunião para rezar juntos, nem

pede para investigar a dimensão econômica, social, política e ideológica da Bíblia. Ele não dá atenção à

história da Europa do século XII como nós damos hoje atenção à história dos nossos povos. Por que esta

diferença no método? Por que os esquemas e conselhos dados não seguem simplesmente os quatro degraus

sugeridos e recomendados por Guigo: leitura, meditação, oração, contemplação?.

Há algumas diferenças fundamentais entre a Lectio Divina recomendada por Guigo e a que nós fazemos hoje.

Essas diferenças não nos permitem transpor sem mais os quatro degraus para orientar as nossas reuniões de

hoje. Se fizêssemos isso, seráimos infieis ao próprio Guigo e à tradição.

No Século XII, a Lectio Divina, recomendada por Guigo, estava integrada no ritmo diário da vida dos monges e

do próprio povo da época, vida marcada pelo ambiente comunitário da oração litúrgica e pela realidade dura do
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trabalho para sobreviver. O lema deles era Rezar e Trabalhar. “Ora et Labora”. Com outras palavras, aqueles

três ângulos ou preocupações de que falamos anteriormente, a saber, respeito pelo texto da Bíblia, ambiente

comunitário de fé e de oração, e realidade dura da vida do povo, já existiam integrados e interligados no ritmo

diário da vida deles. Já estavam nos olhos quando começavam a ler a Bíblia. Por isso, Guigo não se

preocupou em trazer a realidade do povo para dentro da Lectio, nem mandou fazer reunião para rezar juntos.

Peixe que vive na água não se preocupa com a água, pois ela está presente em tudo que vive e faz. Peixe

tirado fora da água, a primeira coisa de que precisa para poder viver é da água. Do contrário morre!

Ora, a Lectio Divina, quando tirada fora deste contexto dos mosteiros e da vida do povo da Idade Média e

transportada para dinamizar encontros bíblicos de um grupo de carmelitas do Século XX, a primeira coisa de
que ela precisa para poder ser verdadeira Lectio Divina é do “Ora et Labora”, isto é, do ambiente comunitário

de fé e de oração e da realidade dura do trabalho e da vida do povo. Do contrário, não funciona e acaba

morrendo. Sem este contexto do “Ora et Labora”, já não seria aquela recomendada por Guigo. Ora, são

exatemente estes os dois elementos que os pobres retomaram na leitura da Bíblia. Eles souberam recuperar o

que nós, religiosos, tínhamos esquecido. A prática da leitura dos pobres é a versão melhorada e atualizada da

prática secular da Lectio Divina.

Uma última observação. Guigo na sua sabedoria bem prática nada mais fez do que sistematizar em quatro

degraus o processo normal de uma leitura proveitosa da Bíblia. Quem quer ler a Bíblia com proveito, o que

deve fazer? O bom senso e a prática secular do povo de Deus, desde o Antigo Testamento, respondem o

seguinte:

Primeiro, você deve ler e reler o texto, cada vez de novo, até entender o que está escrito. É a leitura! Em

seguida, deve assimilar o que leu, repetí-lo de memória, com a boca, e ruminá-lo até que, da boca e da

cabeça, passe para o coração e entre no ritmo da própria vida. É a meditação! Depois, você deve reagir diante

da mensagem que captou e responder a Deus se aceita ou não, e pedir a Ele que o ajude a praticar o que a

sua Palavra pede. É a oração!. Por fim, o resultado da leitura que fica nos seus olhos o ajudará a enxergar o

mundo de maneira nova e a saborear melhor as coisas de Deus e da vida. É a contemplação! Este é o

caminho óbvio. Não há outro. Por isso, a Lectio Divina continua atual até hoje.

Com outras palavras, os quatro degraus não são técnicas de leitura, mas sim etapas do processo normal da

assimilação da Palavra de Deus na vida. Não são normas para orientar nossas reuniões comunitárias

semanais em torno da Bíblia, mas sim atitudes básicas que todos devemos ter sempre diante da Palavra de

Deus. Elas devem estar presentes tanto na leitura individual como na leitura de grupo, tanto na prática simples

dos pobres, como no estudo científico dos exegetas.


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4. Esquema de textos bíblicos sobre o Profeta Elias e Maria

Textos sobre o Profeta Elias

1. 1 Reis 17,1-6:
"Vai para o outro lado do Jordão!"
A Palavra de Deus intervem e manda partir

2. 1 Reis 17,7-16:
"Dá-me um pouco de pão"
A partilha produz abundância de bens

3. 1 Reis 17,17-24:
"Realmente, tu és um homem de Deus!"
O profeta é instrumento de vida

4. 1 Reis 18,1-19:
"Tu és o flagelo do povo!"
Quem é o culpado dos males que afligem o povo?

5. 1 Reis 18,20-40:
"Até quando andam dos dois lados?"
Sempre de novo, escolher o Deus da vida

6. 1 Reis 18,41-46:
"Suba mais uma vez até o cimo do monte!"
Os pequenos sinais que alimentam a esperança

7. 1 Reis 19,1-8:
"Basta! Quero morrer!"
A crise que revela as falhas escondidas

8. 1 Reis 19,9-14:
"Zelo zelatus sum! - A brisa leve"
Deus se faz presente, onde não o esperávamos

9. 1 Reis 19,15-21:
"Vai e unge Eliseu como sucessor!"
Saber transmitir o carisma à geração futura

10. 1 Reis 21,1-26:


"Roubaste e agora mataste!"
Ganância produz injustiça

11. 2 Reis 1,1-16:


"Homem de Deus! Desce da montanha!"
Que a vida tenha valor para você!

12. 2 Reis 2,1-7:


"Os filhos dos profetas"
Não deixarei de acompanhar você!

13. 2 Reis 2,8-18:


"Quero que me dês o duplo espírito!"
O espírito de Elias repousa sobre Eliseu

14. Eclias 48,1-14:


"Sua palavra ardia como uma tocha"
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Na palavra de Elias age a Palavra de Deus

Textos sobre Maria, a Mãe de Jesus

1. Lucas 1,26-38: A Anunciação


"Faça-se em mim segundo a tua palavra!"
Abrir-se, para que a Palavra de Deus se encarne

2. Lucas 1,39-56: A Visitação


"Bemaventurada aquela que acreditou!"
Reconhecer a Palavra de Deus nos fatos da vida

3. Mateus 1,17-25: Maria e José


"Não tenha medo de receber Maria como esposa"
Acolher a Palavra também quando que não é esperada

4. Lucas 2,1-20: O Nascimento


"Ela meditava sobre os fatos em seu coração"
Os marginalizados reconhecem e acolhem a Palavra

5. Lucas 2,21-32: A Apresentação


"Meus olhos viram a tua salvação!"
Os muitos anos de vida purificam os olhos

6. Lucas 2,33-38: Simeão e Ana


"Uma espada vai atravessar sua alma"
Ser cristão, ser sinal de contradição

7. Mateus 2,1-12: Os Magos do Oriente


"Vimos a sua estrela no Oriente, e viemos..."
Reconhecer o salvador num menino

8. Mateus 2,13-23: A Fuga para o Egito


"O rei quer matar o menino"
Começa o novo e definitivo ëxodo

9. Lucas 2,39-52: Aos doze anos no templo


"Então, não sabiam que devo estar com o Pai?"
A obediência leva a desobedecer

10. João 2,1-12: As bodas de Caná


"Façam o que ele mandar!"
O que fizeram com o vinho que sobrou?

11. Lucas 11,27-28: O Elogio à mãe


"Feliz o ventre que te carregou!"
Feliz quem ouve e pratica a Palavra

12. João 19,25-30: Ao pé da cruz


"Eis aí o seu filho! Eis aí a sua mãe!"
Na hora da morte nasce vida nova

13. Atos 1,12-14: No Cenáculo


"Assíduos na oração, junto com as mulheres"
A primeira comunidade: semente e ideal

14. Apoc 12,1-17: O grande sinal no céu


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"Uma mulher revestida do sol"


A Vida frágil vence o poder da morte

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