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A história ou a leitura do tempo
ENSAIO GERAL
Roger Chartier
Tradução
Cristina Antunes
2ª edição
autêntica
Copyright© 2007, Editorial Gedisa, S.A.
Copyright desta edição© 2009 Autêntica Editora LTDA.
TITULO ORIGINAL
La historia o la lectura dei tiempo
PROJETO GRÁFICO DA CAPA
Diogo Droschi
TRADUÇÃO
Cristina Antunes
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Tales Leon de Marco
REVISÃO
Cecília Martins
Ana Carolina Uns
EDITORA RESPONSÁVEL 7 Nota prévia
Rejane Dias
Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico. 11 A história, entre relato e conhecimento
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, 17 A instituição histórica
seja por meios mecânicos, eletrônicos. seja via cópia
xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. 21 As relações no passado.
História e memória
AUT(NTICA EDITORA
Rua Aimorés, 981, 8° andar . Fu ncionários 24 As relações no passado.
30140-071 . Belo Horizonte . MG
Tel: (55 31 ) 3222 68 19 História e ficção
TELEVENDAS: 0800 283 13 22
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Em 1994, foi publicado um segundo livro meu reunidos neles respondia a um esforço para
em português no Brasil: A ordem dos livros. Lei situar as mudanças que a entrada na cultura
tores, autores e bibliotecas na Europa entre os sé digital impõe a uma história de longa duração
culos XIV e XVIII. É também uma obra muito da cultura escrita. Tratava-se, então, de refletir
importante para mim porque foi o ensaio com sobre os desafios do presente, pois se consta
o qual comecei a definir o campo de trabalho ta uma nova definição dos papéis das antigas
que é ainda o meu hoje em dia. Em A ordem formas da comunicação (palavra viva, escrita
dos livros tratei de vincular várias aproximações manuscrita, publicação impressa), requerida
até então separadas: a crítica textual, a história pela importância_ cada dia mais forte de uma
do livro e a sociologia histórica da cultura. Nele, nova modalidade de composição, transmissão
propunha algumas questões que continuam me e apropriação do escrito (e também das ima
acompanhando; entre elas as modalidades his gens da palavra e da música). A invenção da
tóricas da construção da figura do autor e o pa escrita no mundo da oralidade, a aparição do
pel das várias maneiras de ler no processo que códice no mundo dos rolos ou a difusão da
dá sentido aos textos, assim como a diferença imprensa no mundo do manuscrito obrigaram
entre as bibliotecas de pedra e as bibliotecas de a semelhantes, se não idênticas, reorganiza
papel (quando a palavra designa uma coleção
ções das práticas culturais (CHARTIER, 2002a;
impressa), uma diferença que ilustra a tensão
2003a). Recordá-lo não significa que a história
entre o desejo de universalidade que conduz ao
se repita, e sim destacar que esta pode buscar
sonho de uma biblioteca que abarque todos os
conhecimentos e ajudar a compreensão críti
livros que foram escritos (ou, com Borges, que
ca das inovações do presente, as quais, por sua
poderiam sê-lo) e que requer - diante do temor
do excesso - escolhas e seleções, multiplicando vez, nos seduzem e nos inquietam.
se, assim, os extratos e as antologias. Ao apresentar as transformações que sofreu,
Ainda que os historiadores tenham sido nestes últimos 30 anos, a disciplina a que per
sempre os piores profetas, certamente, no en tenço - a história -, este novo livro (sugerido
tanto, podem ajudar a compreender as heresias primeiro pela editora espanhola Gedisa para
acumuladas que fizeram de nós o que somos seu projeto Visión 3X) me dá a oportunidade
hoje. Foi essa a certeza que fundamentou ou de continuar com uma reflexão que comecei em
tros livros meus: A aventura do livro: do leitor um livro publicado em 1998 e traduzido para
ao navegador. Conversações com Jean Lebrun o português em 2002 - A beira da falésia -, no
(1998a); Os desafios da escrita (2002b) e Formas qual tratava de responder a uma questão que
e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apro naquele momento obcecava os historiadores: a
priação (2003a). A série de ensaios e diálogos de uma suposta "crise da histórià:
11
entre o passado tal como foi e a explicação his buindo a ela um regime específico de conhe
tórica que o sustenta. nto? A "verdade" que produz é diferente
Essa interpelação suscitou uma profunda que produzem o mito e a literatura? Sabe-se
preocupação, já que, durante muito tempo, a ue essa é a posição muitas vezes reafirmada por
história havia esquivado sua pertinência à clas ,yden White, para quem o conhecimento que o
se dos relatos e havia apagado as figuras próprias urso histórico propõe, visto que é "uma for
de sua escritura, reivindicando seu cientificismo. de operação para criar ficção': é da mesma
Assim, quer se trate de uma recopilação de exem m que o conhecimento que dão, do mundo
plos à moda antiga, quer se ofereça como conhe u do passado, os discursos do mito e da ficção.
cimento de si mesma na tradição historicista e mesmo modo, sabe-se que, contra essa dis
romântica alemã, quer se proclame "científicà: a ,lução da condição própria do conhecimento
história não podia senão recusar pensar-se como histórico, se reafirmou vigorosamente a capaci
um relato e como uma escritura. A narração dade de saber crítico da disciplina, apoiada em
não podia ter uma condição própria, pois, con uas técnicas e operações específicas. Em sua
forme os casos, estava submetida às disposições slstência tenaz à "maquina de guerra céticà'
e às figuras da arte retórica, ou seja, era consi pós-modernista do "giro linguístico" ou do "giro
derada como o lugar onde se revelava o sentido retórico': Carlo Ginzburg lembrou várias vezes
dos próprios fatos ou era percebida como um que, na posteridade da retórica aristotélica, pro
obstáculo importante para o conhecimento ver va e retórica não são antinômicas, mas, antes, es
dadeiro (HARTOG, 1994). Só o questionamento tão indissociavelmente ligadas e que, de mais
dessa epistemologia da coincidência e a tomada mais, desde o Renascimento a história soube
de consciência sobre a brecha existente entre o laborar as técnicas eruditas que permitem se
passado e sua representação, entre o que foi e o parar o verdadeiro do falso. Daí sua firme con-
que não é mais e as construções narrativas que se lusão: reconhecer as dimensões retórica ou
propõem a ocupar o lugar desse passado permi narrativa da escritura da história não implica,
tiram o desenvolvimento de uma reflexão sobre de modo algum, negar-lhe sua condição de co
a história, entendida como uma escritura sempre nhecimento verdadeiro, construído a partir de
construída a partir de figuras retóricas e de es provas e de controles. Por isso, "o conhecimen
truturas narrativas que também são as da ficção. to (mesmo o conhecimento histórico) é possí
Daí deriva a questão principal em que se ba vel" (GINZBURG, 1999, p. 25).
seou o diagnóstico de uma possível "crise da his Todas as tentativas de refundação epistemo
tórià' nos anos 1980 e 1990. Se a história como lógica do regime próprio da cientificidade da
disciplina de saber partilha suas fórmulas com história, distinto, por sua vez, das verdades da
a escritura de imaginação, é possível continuar ficção e da linguagem matemática das ciências
seu objeto. Mesmo que aproximadas dessa ma Nesse sentido, o real é ao mesmo tempo o objeto
neira, a memóna e a história continuam sendo : o fiador do discurso da história. Hoje em dia,
incomensuráveis. A �,e�stemologia da verdade contudo, muitas razões ofuscam essa distinção
que rege a operação hist&iográfica e o regime da 1 áo clara. A primeira é a evidenciação da força
crença que governa a fidelidade da memória são das representações do passado propostas pela
irredutíveis, e nenhuma prioridade, nem supe literatura. A noção de "energià: que tem um
rioridade, pode ser dada a uma à custa da outra. papel essencial na perspectiva analítica do New
Sem dúvida, entre história e memória as rela l listoricism, pode ajudar a compreender como
ções são claras. O saber histórico pode contribuir algumas obras literárias moldaram, mais pode
para dissipar as ilusões ou os desconhecimentos rosamente que os escritos dos historiadores, as
que durante longo tempo desorientaram as me representações coletivas do passado (GREEN
mórias coletivas. E, ao contrário, as cerimônias f3LATT, 1988, p. 1-20). O teatro, nos séculos XVI
de rememoração e a institucionalização dos lu e XVII, e o romance, no século XIX, se apode
gares de memória deram origem repetidas vezes raram do passado, deslocando para o registro
a pesquisas históricas originais. Mas não por isso da ficção literária fatos e personagens históricos
memória e história são identificáveis. A primeira e colocando no cenário ou na página situações
é conduzida pelas exigências existenciais das co que foram reais ou que são apresentadas como
munidades para as quais a presença do passado tais. Quando as obras estão habitadas por uma
no presente é um elemento essencial da constru força em particular, adquirem a capacidade de
ção de seu ser coletivo. A segunda se inscreve na "produzir, moldar e organizar a experiência co
ordem de um saber universalmente aceitável, letiva mental e físicà' (GREENBLATT, 1988, p. 6) - e
"científico': no sentido de Michel de Certeau. entre essas experiências se computa o encontro
As relações no passado. com o passado.
A título de exemplo, vejamos as histories ou
História e ficção
peças históricas de Shakespeare. No fólio de
Entre história e ficção, a distinção parece cla 1623, que reúne pela primeira vez, sete anos de
ra e resolvida se se aceita que, em todas as suas pois da morte de Shakespeare, 36 de suas obras,
formas (míticas, literárias, metafóricas), a ficção a categoria de histories, situada entre as comedies
é "um discurso que 'informà do real, mas não e as tragedies, reúne dez obras que, seguindo a or
pretende representá-lo nem abonar-se n.ele': dem cronológica dos reinados, conta a história da
enquanto a história pretende dar uma represen Inglaterra desde o rei João até Henrique VIII,
tação adequada da realidade que foi e já não é. excluindo da categoria outras histories, as dos
heróis romanos ou príncipes dinamarqueses e 11, mesmo tempo que deixa ver a figura car-
escoceses, situadas na categoria tragedies. Os 11,,vi1lesca, grotesca e cr uel de uma impossível
editores de 1623 transformaram em uma histó d:idc do ouro: a de um mundo ao revés, sem
ria dramática e contínua da monarquia inglesa ri lura, sem moeda, sem diferenças (CHAR-
obras escritas em uma ordem que não era a dos 1'11\R, 2006). De modo que a história das histo-
reinados, mas, antes, se incluem entre as obras 1 i,·s se baseia na distorção das realidades his
mais representadas e mais publicadas antes do t 1'!1 icas narradas pelos cronistas e propõe aos
fólio de 1623. De modo que é certo que, como �spcctadores uma representação ambígua do
declara Hamlet (Hamlet, II, 2), os atores "são p;1ssado, habitada pela confusão, pela incerte-
o compêndio e a crônica do mundo" e que as íl e pela contradição.
obras históricas moldaram, para seus especta Uma segunda razão que faz vacilar a distin-
dores e leitores, representações do passado mais �•'º entre história e ficção reside no fato de que
vivazes e mais efetivas que a história escrita nas a literatura se apodera não só do passado, mas
crônicas que os dramaturgos utilizam. também dos documentos e das técnicas encarre
Essa história representada nos cenários dos ;ados de manifestar a condição de conhecimen-
teatros é uma história recomposta, submetida l o da disciplina histórica. Entre os dispositivos
às exigências da censura - como demonstra a da ficção que minam a intenção ou a pretensão
ausência da cena da abdicação de Ricardo II nas de verdade da história, capturando suas técnicas
três primeiras edições da obra - e está muito de prova, deve-se colocar o "efeito de realida
aberta aos anacronismos. Assim, na sua ence de" definido por Roland Barthes ([1968] 1984)
nação da revolta de Jack Cade e seus artesãos de como uma das principais modalidades da "ilu
Kent em 1450, como aparece na segunda parte são referencial". Na estética clássica, a categoria
de Henrique VI, Shakespeare reinterpreta o fato do "verossímil" assegurava o parentesco entre
atribuindo aos rebeldes de 1450 um modo de o relato histórico e as histórias fingidas, já que,
falar milenarista e igualitário e ações violentas, segundo a definição do Dictionnaire de Furetie
destrutivas de todas as formas de cultura escrita re, de 1690, a história é "descrição, narração das
e de todos os que a encarnam, que os cronistas, coisas, ou das ações como ocorreram ou como
no mais, associavam, com menor radicalização, podiam ocorrer': De modo que o tempo designa,
com a revolta de Tyler e Straw de 1381. O re em conjunto, "a narração contínua e encadeada
sultado é uma representação ambivalente ou de vários fatos memoráveis que sucederam em
contraditória da revolta de 1450 que recapitula uma ou em várias nações ou em um ou em vá
as fórmulas e os gestos das revoltas populares, rios séculos" e "as narrações fabuladas porém
31
A instituição histórica
30 A história ou a leitura do tempo
Do social ao cultural
�
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risco é o de uma definição imperialista da cate disciplina ou do campo em que se inscreve e em
goria que, ao identificá-la com a própria histó suas relações com as outras criações estéticas ou
ria, conduz à sua dissolução. intelectuais e as outras práticas que lhe são con
Essa dificuldade encontra sua causa funda temporâneas.
mental nas múltiplas acepções do termo "cultu A segunda família de definições da cultura
rá: que podem se distribuir esquematicamente se apoia na acepção que a antropologia simbó
entre duas famílias de significados: a que desig lica oferece da noção - e em particular Clifford
na as obras e os gestos que, em uma sociedade Geertz (1973, p. 89): "O conceito de cultura que
dada, se subtraem às urgências do cotidiano e eu defendo [ ...] denota um padrão de significa
se submetem a um juízo estético ou intelectual dos transmitido historicamente, incorporado
e a que aponta as práticas comuns através das em símbolos, um sistema de concepções herda
quais uma sociedade ou um indivíduo vivem e das expressas em formas simbólicas, por meio
refletem sobre sua relação com o mundo, com das quais os homens comunicam, perpetuam
os outros ou com eles mesmos. e desenvolvem seu conhecimento e suas ativi
A primeira classe de significados leva a cons dades em relação à vidà'. Portanto, a totalidade
truir a história dos textos, das obras e das prá das linguagens e das ações simbólicas próprias
ticas culturais como uma história de dimensão de uma comunidade constitui sua cultura. Daí
dupla'. É o que propõe Carl Schorske (1979, p. a atenção que os historiadores mais inspirados
XXI-XXII): "Já o historiador procura situar pela antropologia dedicam às manifestações co
e interpretar o artefato temporalmente, num letivas nas quais se enuncia, de maneira paro
campo no qual se cruzam duas linhas. Uma xística, um sistema cultural: rituais de violência,
linha é vertical, ou diacrônica, com a qual ele ritos de passagem ou festas carnavalescas.
estabelece a relação de um texto ou um sistema Conforme suas diferentes heranças e tradições,
de pensamento com expressões anteriores no a história cultural privilegiou objetos, âmbitos e
mesmo ramo de atividade cultural (pintura, po métodos diversos. Enumerá-los é uma tarefa im
lítica, etc.). A outra é horizontal, ou sincrônica; possível. Mais pertinente é, sem dúvida, a identi
com ela o historiador avalia a relação do con ficação de algumas questões comuns a esses enfo
teúdo do objeto intelectual com as outras coisas ques tão distintos. A primeira se relaciona com a
que vêm surgindo, simultaneamente, em outros necessária articulação entre as obras singulares e
ramos ou aspectos de uma culturá: De modo as representações comuns ou, dito de outra for
que se trata de pensar cada produção cultu ma, o processo pelo qual os leitores, os especta
ral simultaneamente na história do gênero, da dores ou os ouvintes dão sentido aos textos (ou às
duçõ es e as p ráticas mais comuns da cultura es e ntre a o bra em sua essência e os acidentes que
Do social ao cultural 41
40 A história ou a leitura do tempo
se referir, de forma separada ou simultânea, à que inscrevem a invenção literária ou intelectual
materialidade do objeto, à grafia das palavras, nos discursos e nas práticas do mundo social,
às regras de pontuação ou aos próprios enun tornando-a possível e inteligível. O cruzamen
ciados (GRAZIA; STALLYBRASS, 1993). Porém, to inédito de enfoques temporalmente distantes
sempre existem também múltiplos dispositivos uns dos outros (a crítica textual, a história do
(filosóficos, estéticos, jurídicos) que se esforçam livro, a sociologia cultural), porém unidos pelo
para reduzir essa diversidade, pressupondo a projeto de uma nova história cultural, acarreta
existência de uma obra idêntica a si mesma, à um desafio fundamental: compreender como as
margem de sua forma. Em vez de tratar de se apropriações concretas e as invenções dos lei
apartar dessa irredutível tensão ou de resolvê-la, tores (ou dos espectadores) dependem, em seu
o que importa é identificar a maneira como ela conjunto, dos efeitos de sentido para os quais
se constrói em cada momento histórico. E, em apontam as próprias obras, dos usos e signifi
primeiro lugar, nas e pelas próprias obras, ou cados impostos pelas formas de sua publicação
ao menos algumas delas que se apoderam dos e circulação e das concorrências e expectativas
objetos e das práticas da cultura escrita de seu que regem a relação que cada comunidade man
tempo para transformá-los em recursos estéti tém com a cultura escrita.
cos movidos por fins poéticos, dramáticos ou
narrativos. Os processos que conferem existên
cia ao escrito em suas diversas formas, públicas
ou privadas, efêmeras ou duradouras, também
se convertem no próprio material da invenção
literária (CHARTIER, 2005).
Produzidas em uma ordem específica, as
obras fogem delas e adquirem existência ao re
ceber as significações que seus diferentes pú
blicos lhes atribuem, às vezes em muito longa
duração. Portanto, o que se tem de pensar é a ar
ticulação paradoxal entre uma diferença - aque
la pela qual todas as sociedades, com modali
dades variáveis, separaram um âmbito concreto
de produções textuais de experiências coletivas
ou de prazeres estéticos - e dependências - as
Do social ao cultural 43
42 A história ou a leitura do tempo
Discursos eruditos
e práticas populares
45
e os tempos das censuras e das pressões que a Nessa brecha se insinuam as reformulações, os
condenam e a desmantelam (BuRKE, 1978). desvios, as apropriações e as resistências (de
Sem dúvida, devem-se suavizar ou rechaçar CERTEAU, [1980] 1990). E, pelo contrário, a im
distinções tão categóricas. Em primeiro lugar, posição de disciplinas inéditas, a insinuação de
está claro que o esquema que opõe o esplendor novas submissões, a definição de novas regras
e a miséria da cultura popular não é próprio da de conduta sempre devem ceder ou negociar
idade moderna. Acha-se nos historiadores me com as representações arraigadas e as tradições
dievali stas, que designam o século XIII como o partilhadas. Portanto, é inútil pretender identi
tempo de uma aculturação cristã destruidora ficar a cultura, a religião ou a literatura "popu
das tradições da cultura popular laica dos sécu lar" a partir de práticas, crenças ou textos que
los XI e XII. Caracteriza, desse modo, o movi seriam específicos delas. O essencial está em ou
mento que, entre 1870 e 1914, fez passar as so tro lugar, na atenção sobre os mecanismos que
ciedad es ocidentais de uma cultura tradicional, fazem os dominados interiorizarem sua própria
campesina e popular para uma cultura nacional, inferioridade ou ilegitimidade e, contraditoria
homogênea, unificada e solta. E supõe-se que mente, sobre as lógicas graças às quais uma cul
um contraste similar distingue, no século XX, tura dominada consegue preservar algo de sua
a cultura das massas imposta pelos novos meios coerência simbólica. A lição vale tanto para o
de comunicação de uma antiga cultura comuni confronto entre os clérigos e as populações ru
tária e criadora. Como a fênix, a cultura parece rais na velha Europa (GINZBURG, 1976) como
renascer de suas cinzas depois de cada um de para as relações entre vencedores e vencidos no
seus desaparecimentos. O verdadeiro problema mundo (GRUZINSKI, 1988).
não é, pois, datar o desaparecimento irremediá Daí se depreende o principal desafio que
vel de uma cultura dominada, por exemplo, em se apresenta à história cultural: como pensar a
1600 ou 1650, mas sim compreender como, em articulação entre os discursos e as práticas. O
cada época, tecem-se relações complexas entre questionamento das velhas certezas adotou a
formas impostas, mais ou menos restritivas, e forma do "giro linguístico': que se baseia em
identidades salvaguardadas, mais ou menos al duas ideias fundamentais: a de que a língua é
teradas (DAVIS, 1975). um sistema de signos cujas relações produ
A f9rça dos modelos culturais dominantes não zem, por si mesmas, significados múltiplos e
anula o espaço próprio de sua recepção. S empre instáveis, fora de toda intenção ou de qualquer
existe uma brecha entre a norma e o vivido, controle subjetivo; e a de que a "realidade" não
o dogma e a crença, as normas e as condutas. é uma referência objetiva externa ao discurso,
'"""'
Outra questão de nosso presente, menos
aguda há dez anos, é a das mutações que im
põem à história o ingresso na era da textuali
dade eletrônica. O problema já não é o que,
classicamente, vinculava os desenvolvimentos
da história séria e quantitativa com o recurso ao
computador para o processamento de grandes
quantidades de dados, homogêneos, repetidos
e informatizados. Agora se trata de novas mo
dalidades de construção, publicação e recepção
dos discursos históricos (CHARTIER, 2004).
A textualidade eletrônica de fato transfor
ma a maneira de organizar as argumentações,
históricas ou não, e os critérios que podem mo
bilizar um leitor para aceitá-las ou rejeitá-las.
Quanto ao historiador, permite desenvolver
demonstrações segundo uma lógica que já não
é necessariamente linear ou dedutiva, como é a
que impõe a inscrição, seja qual for a técnica, de
um texto em uma página. Permite uma articu
lação aberta, fragmentada, relacional do racio
cínio, tornada possível pela multiplicação das
ligações hipertextuais. Quanto ao leitor, agora a
validação ou a rejeição de um argumento pode
se apoiar na consulta de textos (mas também de
imagens fixas ou móveis, palavras gravadas ou
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composições musicais) que são o próprio objeto prova e as modalidades de construção e valida
de estudo, com a condição de que, obviamente, ção dos discursos de saber.
sejam acessíveis em forma digital. Se isso é as Um exemplo das novas possibilidades aber
sim, o leitor já não é mais obrigado a acreditar tas tanto para a consulta de corpus de docu
no autor; pode, por sua vez, se tiver vontade e mentos como para a própria construção de
tempo, refazer total ou parcialmente o percurso uma argumentação histórica é a dupla publica
da pesquisa. ção (impressa, nas páginas da American Histo
No mundo dos impressos, um livro de his rical Review, e eletrônica, no site da American
tória supõe um pacto de confiança entre o his Historical Association) do artigo que Robert
toriador e seu leitor. As notas remetem a docu Darnton (2000) dedicou às canções subversi
mentos que o leitor, no geral, não poderá ler. vas recolhidas pelos espiões da polícia do rei
As referências bibliográficas mencionam livros nos cafés parisienses do século XVIIl. 4 A ver
que o leitor, na maioria das vezes, não poderia são eletrônica oferece ao leitor o que o impres
encontrar senão em bibliotecas especializadas. so não pode lhe dar: uma cartografia dinâmica
As citações são fragmentos recortados por dos lugares onde são cantadas as canções, os
mera vontade do historiador, sem possibilida informes da polícia que recolhem as letras sub
de, para o leitor, de conhecer a totalidade dos versivas, o corpus de canções e, graças à gra
textos de onde foram extraídos os fragmentos. vação feita por Hélene Delavault, a escuta dos
Esses três dispositivos clássicos da prova da textos tal como os ouviram os contemporâneos.
história (a nota, a referência, a citação) estão Assim se estabelece uma relação nova, mais com
muito modificados no mundo da textualidade prometida com os vestígios do passado e, possi
digital a partir do momento em que o leitor é velmente, mais crítica com respeito à interpre
colocado em posição de poder ler, por sua vez, tação do historiador.
os livros que o historiador leu e consultar por Ao permitir uma nova organização dos dis
si mesmo, diretamente, os documentos anali cursos históricos, baseada na multiplicação
sados. Os primeiros usos dessas novas modali das ligações hipertextuais e na distinção en
dades de produção, organização e certificação
tre diferentes níveis de textos (do resumo das
dos discursos de saber mostram a importân
conclusões à publicação dos documentos), o
cia da transformação das operações cognitivas
livro eletrônico é uma resposta possível, ou ao
que implica o recurso ao texto eletrônico. Aqui
menos apresentada como tal, à crise da edição
há uma mutação epistemológica fundamental
que transforma profundamente as técnicas da 4 Ver tambem a página web da AHR: www.historycooperative.org/ahr.
'""'-'
65
e que, em suma, gravitam em tomo delà: Hoje relações de dominação: "É preciso entender por
se pode propor três questões a esse modelo das acontecimento não uma decisão, um tratado,
durações superpostas e heterogêneas. Em pri · um reino, ou uma batalha, mas uma relação de
meiro lugar, são tão irredutivelmente diferentes forças que se inverte, um poder confiscado, um
umas das outras? Não se há de considerar, como vocabulário retomado e voltado contra seus uti
faz Paul Ricreur em Temps et récit (1983, p. 189), lizadores, uma dominação que se enfraquece, se
que "a própria noção de história de longo termo distende, se envenena e uma outra que faz sua
deriva do acontecimento dramático, no sentido entrada, mascarada. As forças que se encontram
que acabamos de dizer, isto é, de acontecimen em jogo na história não obedecem nem a uma
to-armado-na-intrigá: e que, por isso, os três destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso
tempos braudelianos estão estreitamente vincu das lutas. Elas não se manifestam como formas
lados e remetem a uma mesma matriz tempo sucessivas de uma intenção primordial; como
ral? O tempo longo do Mediterrâneo deve ser também não têm o aspecto de um resultado.
compreendido como uma grande trama, cons Elas aparecem sempre na álea singular do acon
truída segundo as fórmulas narrativas que re tecimento" (FOUCAULT, [1971] 1970-1975, p.
gem o relato do acontecimento e que articulam 148). Se bem que o acontecimento, nessa leitura
as temporalidades construídas do relato com o nietzschiana, seja aleatório, violento e inespera
tempo subjetivo do indivíduo. Na escritura do do, não designa a espuma dos fatos, e sim as rup
historiador, o tempo do mar e o tempo do rei se turas e as descontinuidades mais fundamentais.
constroem segundo as mesmas figuras. Por último, pode-se considerar as temporali
Portanto, deve-se delimitar o "acontecimen dades como externas aos indivíduos, como me
to" à sua definição tradicional, a que o vincu didas do mundo e dos homens? Pierre Bourdieu,
la ao tempo curto, às decisões conscientes, ao nas Méditations pascaliennes (1997, p. 265), fri
político? Em um ensaio dedicado a Nietzsche, sa com insistência que a relação com o tempo
Michel Foucault associa estreitamente uma é uma das propriedades sociais mais desigual
crítica devastadora da noção de origem a uma mente distribuídas: "Seria preciso descrever as
reformulação do conceito de acontecimento. diferentes maneiras de se temporalizar, referin
Para ele, a brutalidade do acontecimento deve do-as às suas condições econômicas e sociais de
se situar não nos acidentes no decorrer da his possibilidade': Ser dono de seu próprio tempo,
tória ou das escolhas dos indivíduos, mas sim controlar o tempo dos demais ("o todo-podero
no que aparece aos historiadores como o me so é aquele que não espera e que, ao contrário,
nos "factual': a saber, as transformações das faz esperar" [BouRDIEU, 1997, p. 302]), não ter
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76 A história ou a leitura do tempo
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cortes, as academias) e a seus temas, técnicas e retórica.
Recordando e deslocando essas questões clássicas,
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este ensaio destaca três problemas mais recentes: 1)
A concorrência para a representação do passado entre
j
a investigação e a escritura históricas; 3) A construção
da relação entre as experiências do tempo e a construção
do relato histórico.
. � ISBN 978-85-7526-393-8
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