Você está na página 1de 57

8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.

pdf

MARTA MARIA CHAGAS DE CARVALHO

A ESCOLA E 

A REPÚBLICA 
E OUTROS 
ENSAIOS

 ESTUDOS CDAPH 
S é r ie H i s t o r i o g r a f i a
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E APOIO À PESQUISA  
EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO - CDAPH

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 1/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

U N I V E RGilberto
Reitor: S I D A DGonçalves
E SÃ O F RGarcia,
A N C I SC O
OFM
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação
Coordenação: Alexandrina Monteiro
Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação -CDAPH
Coordenação: Maria Cristina Cortez Wissenbach
Conselho Editorial:
Ana Waleska Mendonça Luciano Mendes de Faria Filho
Carlos Roberto Jamil Cury Luis Felipe Serpa

Clarice NunesTeixeira Lopes


Eliane Marta Marcos CezarChagas
Marta Maria de Freitas
de Carvalho
Helena M. B. Bomeny Rogério Fernandes
 José Gonçalves Gondra Zaia Brandào
Lúcia Lippi Oliveira

371.2 Carvalho. Marta Maria Chagas de.


C325e A escola e a República e outros ensaios / Marta Maria
Chagas de Carvalho. -- Bragança Paulista : EDUSF, 2003.
355 p. (Estudos CDAPH. Série historiografia)

1. Educação. 2. República. 3. Política educacional.


4. Escola nova. 5. Brasil. 6. Modernidade pedagógica.
1. Título. II. Série.

Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias do Setor de Processamento


Técnico da Universidade São Francisco

Correspondências para:
Núcleo de Distribuição e Divulgação -EDUSF
Av. São Francisco de Assis, 218
C EP 12916-900 Bragança Paulista - SP
E-mail: distribuicao-divulgacao@saofrancisco.edu.br
http://www.saofrancisco.edu.br/publicacoes
Tel.: ( I I ) 4034-8092 Fax: ( I I ) 4034-8044

Todos os direitos autorais são reservados à Editora Universitária São Francisco - ED USF

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 2/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

APRESENTAÇÃO

Este livro reúne trabalhos de história da educação produzidos  


entre 1988 e 2002. Tem 4 partes e, com exceção do capítulo 42 da  
Parte 4, texto inédito, reúne dois tipos de publicação. Artigos  
publicados em periódicos especializados (com exceção de dois deles,  
publicados originalmente como capítulos de livros) compõem as
partes 2, 3 e 4. Um livrinho publicado em 1989 pela Editora 
Brasiliense, na coleção Tudo é História,  A Escola e a República , 
compõe a lâ Parte. Produzido para integrar uma coleção dirigida a um  
público não especializado, está esgotado há muitos anos, mas vem  
sendo muito utilizado em cursos universitários de Graduação e Pós-  
Graduação por estudantes que se têm valido de cópias xerográficas  
dele. Considerando a sua forte articulação temática com o restante dos  
ensaios desta coletânea, resolvi integrá-lo nesta publicação. Por causa da
sua grande aceitação pelo público universitário, optei por reproduzi-lo  
 
sem outra alteração senão aquela resultante de sua republicação em  
uma coletânea. Assim disposto, o livrinho funciona com o espécie de 
enquadramento temático e referencial periodizador do recorte que  
presidiu à seleção dos ensaios que integram a 2~  parte do livro.
Nesses ensaios, figuras muito conhecidas como Fernando de  
Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho são personagens que
insistentemente protagonizam o relato e invadem a cena de outros  
protagonistas, figuras menos célebres, como Vicente Licínio Cardoso, 
Edgar Süssekind de Mendonça, Sampaio Dória, Oscar Thompson,  
João Hippolyto de Azevedo e Sá, Everardo Backeuser, Alba Canizares  
Nascimento, Femando de Magalhães e muitos outros. Como  
personagens, todos eles dramatizam temas, levantam questões e  
tensionam a narrativa. Mas, se a expectativa do leitor for a de  
encontrar nos ensaios aqui reunidos qualquer tipo de conhecimento  
biográfico, sua leitura será certamente deceptiva. A montagem da  
cena, a aparição dos personagens e a dramatização de seus discursos  
obedecem, no caso, a outra lógica: a de reconstituição de um campo de  
consenso atravessado por tensões em que o personagem funciona  
como ponto de condensação de temas pojêmicos e recurso analítico de  
explicitação de diferenças, de elucidação de significações e de

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 3/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

H fe p A  Escola e a República e Outros Ensaios  11

INTRODUÇÃO

A escola foi, no imaginário republicano, signo da instauração  


da nova ordem, arma para efetuar o Progresso. Na sociedade excludente  
que se estruturou nas malhas da opção imigrantista, nos fins do século  
XIX e início do XX, a escola foi, entretanto, facultada a poucos. Nos  
anos 20, na avaliação da República instituída feita por intelectuais que  
se propõem a  pensa r   o Brasil, a política republicana é acusada de ter  
relegado ao abandono “milhões de analfabetos de letras e de ofícios”, 
toda uma massa popular, núcleo da nacionalidade. Esta legião de 
excluídos da ordem republicana aparece então como freio do Progresso, a  
^ impor sua presença incômoda no cotidiano das cidades. A escola foi, em  
conseqüência, reafirmada como arma de que dependia a superação dos  
entraves que estariam impedindo a marcha do Progresso, na nova ordem  
que se estruturava. Passa, no entanto, a ser considerada “arma perigosa”,
exigindo a redefinição de seu estatuto como instrumento de dominação.  
Este texto realiza um percurso por esse processo de  
redefinição do estatuto da escola na ordem republicana. Centra-se, 
pira isto, na elucidação do projeto político-pedagógíco formulado nos  
anos 20, ao calor do chamado entusiasmo pela educação. A partir da  
avaliação da República instituída, que informou este projeto, o texto se  

detém
fim do numa
século,leitura
para, da
em ação reformadora
seguida, registrar de Caetano de Campos,
o deslocamento que sofrenoa  
questão educacional no final da década de 1910. Finalmente, exibe o  
novo deslocamento que se produz no discurso pedagógico a partir de  
meados da década de 20, interpretando-o como repolitização do  
campo educacional, expresso num ambicioso projeto de reforma  
moral e intelectual.
Em seu percurso, o texto recusou a doutrina do transplante  
cultural, acionada com freqüência na historiografia sobre educação
no Brasil, para explicar o abismo que efetua - pelo confronto entre 
 
ideolog ias e fatos - entre projetos lidos com o propostas de 
democratização da sociedade pela escola e a realidade educacional.
Descartando essa doutrina por sua capacidade de tudo explicar e,  
portanto, nada   explicar, o texto deixa como sugestão a novas  
investigações em história da educação brasileira uma perspectiva de
/>Jl
http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 4/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

12  MartaMaria Chagas de Carvalho

análise que de
descarte
idéias aestrangeiras
tentação, sempre recorrente, inconseqüentes
de entender a
importação como mimetismos  
que atestariam a fragilidade das classes dominantes ou de fração delas  
na formulação e imposição de projetos políticos de seu interesse.

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 5/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios 13

CAPÍTULO 1

A DÍVIDA REPUBLICANA1

Sedimentou-se nos anos 20, entre intelectuais que se  


aplicavam a pensar o Brasil e a avaliar a República instituída, a crença  
de que na educação residia a solução dos problemas que identificavam.
Esse entusiasmo pela educação condensava expectativas diversas de  
controle e modernização social, cujajbrmulação mais acabada se deu  
no âmbito do nacionalismo que contamina a produção intelectual do  
período. Nesse âmbito, o papel da educação foi hiperdimensionado:  
tratava-se de dar forma ao país amorfo, de transformar os habitantes 
em  povo, de vitalizar o organismo nacional, de constituir a nação. Nele  
 
se
umforjava projeto político
informe autoritário:
e plasmável,educar era obra de moldagem de
povo, matéria conforme os anseios de Ordem  
e Progresso de um grupo que se auto-investia como elite com  
autoridade para promovê-los. jx
Perpassava fortemente o imaginário desses entusiastas da  
educação o tema da amorfia. Referido ao país, marcava-o como  
nacionalidade em ser   a demandar o trabalho conformador e  
homogeneizador da educação. Referido às populações brasileiras,  
proliferava em signos da doença, do vício, da falta de vitalidade, da
degradação e da degenerescência. O trabalho é, nessas figurações,   
elemento ausente da vida nacional. As imagens de populações doentes, 
indolentes e improdutivas, vagando vegetativamente pelo país, somam-se  
às de uma população urbana resistente ao que era entendido como  
trabalho adequado, remunerador e salutar. Imigrantes a fermentar de  
anarquia o caráter nacional e populações pobres perdidas na vadiagem  
impunham sua presença incômoda nas cidades e comprometiam o que
se propunha como “organização do trabalho nacional”.  

1O texto que compõe esta primeira parte do livro foi originalmente publicado  
em 1989, na coleção Tudo é História da editora Brasiliense, com o lítulo A 
Escola e a República. Cf. CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A Escola e
a República.  São Paulo: Brasiliense, 1989 (Col. Tudo é História, 127).
http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 6/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

14  Marta Maria Chagas de Carvalho

 Regenerar   as populações brasileiras, núcleo da nacionalidade,


tornando-as saudáveis, disciplinadas e produtivas, eis o que se 
esperava da educação, erigida nesse imaginário em causa cívica de  
redenção nacional. Regenerar o brasileiro era dívida republicana a ser  
resgatada pelas novas gerações.
A questão da organização do trabalho nacional formulava-se  
em termos diversos daqueles que haviam predominado no fim do 
século. As teses racistas, que haviam sido articuladas em defesa da 
imigração, embasando práticas excludentes da participação do liberto
no mercado de trabalho dos setores mais dinâmicos da economia  
 
nacional, são agora reformuladas. Se a cor da pele permanecia  
assombrando os novos intérpretes do Brasil que entram em cena nos  
anos 20, ganhava força entre eles a idéia de que a educação era fator 
mesológico determinante no aperfeiçoamento dos povos, sobrepujando  
os fatores raciais. As imagens do negro e do mestiço como “vadio” 
continuam a inquietar esse imaginário, mas deixam de ser o signo de
uma incapacidade inamovível para o trabalho livre. O liberto e seus 
descendentes permanecem estigmatizados como criaturas primitivas e 
por isso propensas à vadiagem. Mas esta passa a ser também o  
resultado da incúria política de abolicionistas e republicanos que não  
os teriam adestrado para as imposições da liberdade. Era o que, em  
193 I, Fernando Magalhães - ilustre médico carioca que desde os anos 
20 se engajara na campanha de regeneração nacional pela educação -  
lastimava, ao escrever que o país não se preparara

 para o dia seguinte da liberdade que despovoaria os campos  


 pelo delírio dos libertados, meio inconscientes, cujo  
 primitivism o os manteria na escravidão social, ainda hoje não  
abolida. A displicência dos governos despreocupou-se de  
defender o trabalho livre, garantia da produtividade nacional,  
  
no momento em que a alucinação da alforria houvesse, como
houve, de se encaminhar para a vadiagem. A palavra dos
 pregadores da abolição, se proclamou criaturas livres, não as  
adestrou para as imposições da liberdade.   (A Escola Regional)

Por sua vez, o imigrante não era mais marcado no imaginário  


dessas novas elites pelos signos da operosidade, vigor e disciplina que

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 7/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

[ e aRepública e Outros Ensaios  15

haviam enleado os promotores da imigração no fim do século XIX,  


^Iil^efitando-lhes os sonhos de Progresso. Tais sonhos, articulados 
^ política de exclu são do liberto, na expectativa racista e
 jizadora de que a tão decantada op erosidad e do imigrante 
isse por erradicar a vadiagem nacional, ruíam agora. As greves  
^operárias marcavam a figura do imigrante como presença também  
mpômoda a “fermentar de anarquia o caráter nacional”, como  
lastimava o mesmo Magalhães:

 Parecia o Brasil pagar duramente o pecado da  


escravidão prolongada. Ao cabo de quase 50 anos, permanece  
a preocupação angustiosa pelo destino da massa popular,  
núcleo da nacionalidade e da democracia, incapaz de servir   
as suas responsabilidades e arriscada de se falsific ar nas  
correntes imigratórias ferm enta das de indisciplina.{  ibidem)

A preocupação angustiosa pelo destino da massa popular  


encenava, no discurso de Magalhães, a crítica ao citadismo e ao  
industrialismo de importação, conseqüências de mentalidade verbalista  
cega ao país real e fascinada com fórmulas e costumes estrangeiros:

O exemplo de outros países de costumes e tradições  


diferentes contaminou de suntuosidade o regime, criando o  
  
novo problema, o Citadismo, atraindo para os centros de
 grande torvelinho provincianos e sertanejos, crentes no
milagre da vida fácil,   (ibidem)

A industrialização era “fenômeno de importação onde a terra 


definha de emigração”. O antídoto desses males era a “educação do povo  
sertanejo desprotegido”, que o fixasse no campo. Não são apenas, dizia,

as riquezas materiais que se ocultam no interior do país: são  


as suas forç as vivas, as suas forç as morais, únicas capazes de  
dominar a dissolução dos centro, urbanos ostentosos e  
anarquizados.   (ibidem)

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 8/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

16  Marta Maria Chagas de Carvalho

Desta perspectiva, organizar o trabalho nacional era, sobretudo


- com o concurso de uma escola que dissemin asse “não o perigoso 
conhecimento exclusivo das letras, mas a consciência do dever  
do m iciliário” - fixar o homem no campo, de modo a conter os fluxos,  
migratórios para as cidades e a vitalizar a produção rural. Neste caso, o  
resgate do que se considerava uma dívida republicana fazia-se como  
proposta agrarista: “o que não foi feito oportunamente sê-lo-á agora e 
o trabalhador rural, livre, criará o cidadão útil, votado à propriedade do  
seu-recanto” (ibidem).
Outro era o teor da dívida republicana a ser resgatada, segundo  
Vicente Licínio Cardoso, intelectual que cunhou a expressão  pensar o 
 Brasil   nos anos 20. Propunha que se revisse a historiografia  
estabelecida sobre o advento do regime republicano, criticando-lhe a 
desconsideração dos fenômenos sociais e econômicos, postos em jogo  
com a emancipação dos escravos. No seu entender, tal desconsideração  
não somente impedia a compreensão adequada do processo que conduzira
à Proclamação da República, como também induzia a uma percepção   
equivocada dos problemas que barravam a efetiva republicanização do  
país. Entendendo democracia como organização social do trabalho livre e 
república como a forma política de tal organização, Licínio julgava  
que a República brasileira não se havia ainda efetivamente implantado,  
dado o estado de desorganização do trabalho nacional. Desorganizada  
 
adoseconomia rural para
emancipados com aosAbolição, teria havido
centros urbanos”, “um verdadeiro
determinando êxodo
a oferta do  
“braço operário barato”. Disto teria decorrido “uma organização  
urbana artificial”, que funcionava como “uma válvula de descarga  
aberta, atraindo continuamente o elemento rural emancipado para os  
bairros fabris das grandes capitais”. O fenômeno se lhe afigurava  
como conseqüência de um processo inadequado de transição da 
economia agrícola fundada na escravidão para a fase industrial do 
operário urbano livre:

Sem capitais fáce is como a França e a Inglaterra, sem  


o artificio técnico em abundância como a Alemanha e outros  
 países, sem carvão na medida de suas necessidades e sem a  
indústria de ferr o organizada, o Brasil, como a Rússia, não  
 podia resolver o pro blema gravíssim o da transição agrícola,

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 9/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 10/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

18  MartaMaria Chagas de Carvalho

crescimento industrial, de modernização agrícola, de reordenação


política, de saneamento e educação.  
A seção “A Defesa Nacional”, publicada de julho de 1927 a 
agosto de 1928 em  A Bandeira,  era uma publicação militar já existente  
desde 1911.0 grupo militar ligado à revista tivera origem em 1906, na  
política do Marechal Hermes da Fonseca de modernizar o exército  
enviando jovens oficiais para servirem arregimentados no exército  
alemão. Com a vinda da Missão Francesa, em 1920, os militares  
ligados à revista ampliaram sua concepção de defesa nacional. 
Segundo José Murilo de Carvalho, o que “existia na área se baseava  
num conceito estreito de defesa que se limitava quase que só à 
proteção de fronteiras do Sul e do Sudoeste”. Com a vinda da Missão,  
amplia-se a noção, “incluindo a mobilização de recursos humanos,  
técnicos e econômicos” que abrangiam “todos os aspectos relevantes  
da vida do país, desde a preparação militar propriamente dita até o  
desenvolvimento de indústrias estratégicas como a siderúrgica”
(“Forças Armadas na Primeira República”).  
Os signos de progresso de  A Bandeira   estavam a serviço de 
um projeto de modernização nacional articulado com essa concepção  
de defesa nacional. E neste quadro que a educação ganha estatuto de 
peça fundamental de uma política de valorização do homem como  
fator de produção e de integração nacional. A superação do isolamento  
das diversas regiões brasileiras pelo desenvolvimento dos meios de 
comunicação e transporte; sua integração num circuito que garantisse a 
circulação dos bens materiais e culturais constituindo um grande  
mercado nacional; a modernização da agricultura; o desenvolvimento  
industrial com ênfase na indústria de base; a dinamização do homem  
como fator de produção por políticas sanitárias e educacionais  
integram-se num projeto de maximização e integração dos recursos  
nacionais subordinados à concepção de defesa nacional referida.
Vicente Licínio Cardoso não integrava os órgãos técnicos e
diretores do Club,  como Ferdinando Labouriau, Mário de Brito e Paulo  
Ottoni de Castro Maya, seus companheiros da Escola Politécnica e de  
campanha educacional. Foi, entretanto, por ocasião de sua posse como  
professor naquela escola, festejado por  A Bandeira  como figura- 
símbolo da mentalidade H.B. (Homem Bandeirante) nela propagandeada.  
Suas formulações sobre o Brasil coadunavam-se com o nacionalismo

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 11/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 19

da revista, pela larga utilização que fazia de metáforas energéticas e


pela valorização de medidas de organização e integração nacioi-ais. O   
processo de transição para o trabalho livre aparecia-lhe marcado por  
“perdas sociais de energias gastas em atritos passivos violentíssimos”, 
abalando, por isso mesmo, “a saúde da própria sociedade”. Nesse  
diagnóstico, a educação era o instrumento que permitiria “transformar, 
sem coação, a energia potencial do homem em energia cinética”. 
“Trabalho”, escrevia Licínio, “é um complexo: energia, ação e 
produção. Complexo é o conjunto de condições que uma sociedade  
deve satisfazer para o estabelecimento desta organização do trabalho  
livre do homem: Instrução (Energia); Liberdade (Ação); Ordem  
(Produção).” (ibidem) O papel da instrução nas sociedades era o “do  
condutor, do transmissor pelo qual é possível a transformação da  
energia potencial do homem em energia cinética”. Insuflando,  
despertando, desenvolvendo as energias potenciais dissimuladas pela  
ignorância, a instrução era o “veículo que permite a transformação
deles em energias atuais, cinéticas, donde consequentemente, em   
resultado, o próprio trabalho amplificado” (ibidem).
Pensando o Brasil com apoio em modelos organicistas,  
Vicente Licínio Cardoso concluía faltar-lhe “coesão, densidade social  
(...) peças de ligação imprescindíveis, tecidos sociais econômicos  
fundamentais (...) órgãos aparelhados que (...) pudessem facilitar a 
unidade nacional almejada jje um organism o de flex ibilidade social
escassa, perdendo energias - já de sinal cultivadas - em atritos e 
resistências passivas formidáveis” (ibidem). O Brasil era um “organismo  
de vida estéril”, sem “continuidade de seiva”, “ritmo de vida”, 
“seqüência de energia”. Os “milhões de analfabetos de letras e ofrios”, 
que “vegetavam”, desamparados, nos “latifúndios enormíssimos do país”, 
eram “peso morto” a consumir as escassas energias do incipiente  
organismo nacional, retardando perigosamente a marcha do Progresso.
Um catastrofismo semelhante sobressalta o imaginário dos  
entusiastas da educação. Ressoa nele, como um alarma, o lema de  
Euclides da Cunha: “Progredir ou desaparecer”. Fala-se insistentemente  
em crise, em horas gravíssimas, significando-se algum enorme perigo que 
ameaça o país se suas elites não superarem o pessimismo, a passividade e 
a indiferença, lançando-se à campanha de regeneração nacional pela 
educação. “Vitalizar pela educação e pela higiene” - prescrevia Miguel

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 12/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

20  Marta Maria Chagas de Carvalho

Couto, personagem-símbolo do entusiasmo pela educação - “toda essa 


gente reduzida pela vérmina a meio homem, a um terço de homem, a um  
quarto de homem” era a única “salvação” (No Brasil só há um problema  
nacional - a educação do povo). A incumbência de educar os “sub- 
homens” era alçada por Fernando Magalhães à missão sagrada a ser  
executada “à beira do abismo, ante o precipício”.
Cobrava-se então o preço da incúria política dos republicanos:  
a massa popular, o núcleo da nacionalidade, esses milhões de analfabetos 
de letras e ofícios relegados a condições subumanas de vida maculav am a
assepsia burguesa de que vinham sendo tecidos os sonhos de Progresso na   
República. O pesadelo pode ser descrito citando-se o higienista  
Belisário Penna, que em 1912 fora encarregado por Oswaldo Cruz de  
fazer um inventário das condições de saúde de populações sertanejas e 
que se integrara na campanha educacional nos anos 20:

 
3/4 dos brasileiros vegetam miseravelmente nos
latifúndios e nas favelas das cidades, pobres párias que, no
 país do nascimento, perambulam como mendigos estranhos,  
expatriados na própria pátria, quais aves de arribação de  
região em região, de cidade em cidade, de faze nd a em  
 fazenda, desnutridos, esfarrapados, famintos, ferr etea dos com  
a preguiça verminótica, a anemia palustre, as mutilações da  
lepra , as deformações do bócio endêmico, as devastações da  
  
tuberculose, dos males venéreos e da cachaça, a inconsciência
da ignorância, a cegueira do tracoma, as podridões da bouba,
da leishmaniose, das úlceras fragedêm icas, difundindo sem  
 peia s esses males.   (A Escola Regional)

Regenerar essa massa popular era tarefa compartilhada por  


agraristas, como Magalhães, e industrialistas, como Vicente Licínio,  
típicos defensores do velho  e do novo,  que alguns historiadores têm
afirmado estarem em total polarização no período. As diferenças de  
diagnóstico e de terapêutica eram unificadas por sua subordinação a 
um interesse comum: o de minimizar os efeitos, tidos como perniciosos, 
dessa massa popular no cotidiano das cidades. Deter os fluxos  
migratórios para a cidade, promovendo política agrarista de fixação do  
homem no campo por intermédio da escola, ou dinamizar a economia

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 13/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escolae a Repúblicae Outros Ensaios 21

de base industrial, por medidas educacionais que incorporassem levas de 


 
ociosos
comum: oaoequacionamento
sistema produtivo, eramurbana,
da questão projetos com um denominador
a estruturação de esq jemas  
de controle que viabilizassem, no espaço da cidade e no tempo da 
produção-expropriação capitalista, o disciplinamento das populações  
resistentes, na vadiagem ou na anarquia, à nova ordem que se  
implantava.
A empresa regeneradora não era fácil. O balanço feito da  
República instituída era, para Licínio e para a autodenominada  
“geração dos homens nascidos com a República”, a que ele pertenceu,
 
pessimista:

 A grande e triste surpresa de nossa geração fo i sentir   


que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na  
certeza de que j á tínhamos vencido certas etapas. A educação,  
a cultura ou mesmo um princípio de experiência, nos tinham  
 
revelado a pátria como uma terra em que a civilização já
resolvera de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a
tragédia da nossa alma fo i sentir quanto de falso havia nessas  
 suposições. O tempo nos preparava uma volta implacável à  
realidade. E essa realidade era muito outra, muito outra, do  
que aquela a que o nosso pensamento nos preparara e que a  
imaginação delineara.
 Encontramo-nos bruscamente, ao abrir os olhos da  
razão, pera nte uma pá tria ainda po r faze',', ainda informe,
ainda tolhida em sua ação e sem vitalidade, sem alma, sem
  
ideal, uma pátria que o lirismo tinha decantado em cores  
 fa ls as e de que a indiferença agora sorria ou o pessim ismo  
negava grosseiramente.  (A Margem da República)

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 14/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 23

CAPÍTULO 2

A ESCOLA MODELAR 

Proclamada a República, a escola foi, no Estado de São Paulo,  


o emblema da instauração da nova ordem, o sinal da diferença que se  
pretendia instituir entre um passado de trevas, obscurantismo e  
opressão, e um futuro luminoso em que o saber e a cidadunia se
entrelaçariam trazendo o Progresso. Como signo da instauração da 
nova ordem, a escola devia fazer ver. Daí a importância das  
cerimônias inaugurais dos edifícios escolares. O rito inaugural repunha  
o gesto instaurador. A fala de Cesário Mota na inauguração do edifício  
da Escola Normal Caetano de Cam pos, em 1894, é paradigmática:

... o historiador, fitando o passado inteiro de nossa pátria, 


querendo sopesar o grandioso progresso de nosso Estado,
 precisando de avaliar a sua extensão, conhecer-lhe a base, os
  
lados, os vértices, há de forçosam ente tomar como pon to  
culminante, ponto de prova, ponto de triangulação, ponto que  
denote a reunião de todos os lados do polígono social, no  
início da República em São Paulo , a Escola Normal que ora  
 se inaugura.

E prosseguia:
 Não porq ue tenha este palácio as grandes cintilações  
artísticas que orgulham os arquitetos, os pintore s de todos os tempos ”, 
mas porque no edifício celebrado “a grandeza, a majestade do  
 sim ples ” simbolizava a ‘fo rça de uma idéia elevaaa'1'’:  a instrução do  
povo. “ Ponto culminante de nossa arquitetônica", o edifício revelava “a  
altura em que a República colocou desde o início o problema da  
instrução”. A “nobreza ” das suas linhas demonstrava a crença de que  
não haveria mais nobre profissão que aquela que se incumbe de 
“preparar cidadãos pa ra a sustentação, defesa e engrandecimento de  
uma pátria livre ”. Sua “ vastidão ” denotava o gesto do Governo,  
convidando utodas as aptidões, todas as fortunas, todas as idades,  
todos os sexos, todas as vocações pa ra virem sagrar-se aqui sacerdotes

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 15/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

24  MartaMaria Chagas de Carvalho

da religião do saber, em que nós democratas fund am os as nossas  


ardentes esperanças de prosperidade da pútria e de glória para a  
 República.

A visão do luminoso templo laico levantado com recursos que 


o Império havia destinado à construção de uma catedral, contrapunham-se  
visões tenebrosas da escola na velha ordem: “casas sem ar e luz, 
meninos sem livros, livros sem método, escolas sem disciplina, mestres  
tratados como párias ”. No retrato da educação no Império, a falta de 
recursos “ trazia a de estímulos, o desânimo, e a escola pública era, em  
 gera l, a penitenciária do menino, e o ga nha-pão do mestre ”. Dessas  
escolas não se poderia obter nem educação cívica, nem “preparação  
 para satisfazer as necessidades da vida ou para desempenhar as  
 fu nções sociais, que o regime representativo exige ”, nem “ preparo da  
mentalidade infantil para receber as idéias que por ampliação se lhe  
deveriam incutir nos anos superiores”.  Por isso, resolvido o problema  
econômico, o social e o político, o governo republicano ter-se-ia  
voltado para o da instrução. O edifício que então se inaugurava era a
resposta dos governos republicanos a uma sociedade inteira que,  
 
cansada de enviar os filhos ao estrangeiro “ para mendigar o saber que   vi 
aqui não se podia obter ”, e entristecida em ver os cárceres repletos,  
teria bradado com Goethe: “Luz! Luz! Mais Luz\ ”
Para fazer ver, a escola devia se dar a ver. Daí os edifícios  
necessariamente majestosos, amplos e iluminados, em que tudo se  

dispunha em exposição permanente. Mobiliário, material didático,


trabalhos executad os, atividades discentes e docentes - tudo devia ser 
dado a ver de modo que a conformação da escola aos preceitos da  
pedagogia moderna evidenciasse o Progresso que a República instaurava.
Aquilo que num imaginário fortemente impregnado pelo  
positivismo era tido como dogma da constituição dos povos modernos
- conhecer para vencer   - era o desafio lançado à República. Sem 
 
preparo intelectual,
compilados por João ponderava Caetano denenhum
Lourenço Rodrigues, Campospovo
em estaria
documentos
apto 
para as conquistas do Progresso. Facultadas à Humanidade pela  
Ciência, tais conquistas desembocavam na revolução “ prodigiosa ” que 
o século vinha realizando.

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 16/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e aRepública e Outros Ensaios 2.S

Educar era a aspiração uníssona que se levantava em todos os  


países. Não bastava, contudo, ensinar: era preciso saber ensinar. Não  
poderia haver ensino produtivo sem a adoção de métodos que estariam
transformando em toda a parte o destino das sociedades. A educação  
do homem moderno exigiria uma soma de conhecimentos que 
resultavam “ sinteticam ente das noções enciclopédicas hauridas em  
diversos ramos de estudo ”. Como era impossível “ ensinar às crianças  
tudo quanto pode ser necessário à vida ”, tornava-se praticável dar à 
inteligência um grau de maturidade que preparasse suficientemente o  
homem novo para entrar na vida social “cow  seguros capitais para o 
êxito”.  Dos métodos bem entendidos e bem praticados é que poderia
 
sair “o cérebro adaptado à conquista da verdade”. Por isso, insistia  
Caetano de Campos em discurso aos professores, em 1890:

... quando um país quer dar a medida de seu progresso, do 


alcance de suas instituições, do valor de sua raça, aponta o  
número de suas casas de ensino e abre-lhes as portas como  
que dizendo: Vede como se aprende!

A montagem do sistema público de ensino paulista no início  


da República, sob a ação reformadora de Caetano de Campos' levou às  
últimas conseqüências o primado da visibilidade. E que, fazendo a 
educação do homem novo depender de novos métodos e processos de 
ensino e o domínio desses métodos e processos da experiência de vê-  
los em execução, essas iniciativas republicanas organizaram-se em  
tomo da instituição da Escola Modelo. A escola em que se aprende a  
ensinar, dizia Caetano de Campos em Carta à Imprensa, “é  
necessariamente uma escola prática e longa ”, pois não seria possível  
“ser mestre em tais assuntos sem ter visto fa ze r e sem ter fe ito p or si”.  
Toda erudição seria de pouco proveito para os mestres se não fossem  
“ver como as crianças eram manejadas e instruídas”.
Na Escola Modelo, instituição que deveria ser o “ coração do 
 Estado ”, revelar-se-ia, “ aos olhos dos futuro s professores, o mundo,
novo para eles, do ensino intuitivo”.  Os processos intuitivos, que    
estariam em constante aperfeiçoamento na Alemanha, na Suíça e nos  
Estados Unidos, eram a base do ensino moderno. Seu merito, “a  
cultura intensiva do espírito, o aproveitamento de todos os detalhes,

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 17/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

26  MartaMaria Chagas de Carvalho

 
 
cada cousa em cada hora, o alimento intelectual o mais completo,
dado na proporção da receptividade psicológica ” (Discurso aos
 pro fessorandos).   Disciplina do espírito pela seleção e dosagem  
adequada dos “fa to s que devem ser explicados ” à psicologia infantil, o 
ensino intuitivo repetia “o processo que instruiu a humanidade inteira  
em sua vida intelectual - a intuição ” (Memória apresentada em 1891  
ao Governo do Estado).  Marcava-se com o signo do novo opondo-se  
aos processos que haviam caracterizado a educação na velha ordem:

 Dantes, enchia-se a cabeça do aluno com uma série  


interminável de definições por meio duma instrução imbuída  
na memória à fo rç a de repetições, tantas vezes reproduzidas  
quantas eram necessárias para que o fa to aí permanecesse  
(...) Modernamente , o pedagogo atua de outro modo.  
Coleciona previamente os fatos que devem ser explicados,  
 
coordena-os tacitamente em seu gabinete, numa sucessão
lógica que é muitas vezes o segredo de todo o sucesso do
ensino; apresenta-os depois à apreciação do aluno, atendendo  
 sempre à sua capacidade atual, à sua idade, à sua agudeza de  
espírito e outras condições psicológicas que ele, professor , 
estuda em cada aluno,  (ibidem)

Formar o pedagogo moderno consistia em fazê-lo ver os novos  


métodos em funcionamento, pois seria “inútil pensar em adquirir sem
 
ter visto p r a t i c a r  M as como fazê-lo sem mestres que já tivessem  
visto fazer e feito por si? A solução era mandar vir do estrangeiro  
mestres hábeis nessa especialidade e, com eles, profuso material  
didático adequado às exigências da “modernapedagogia”.
A importação de mestres foi resolvida pela contratação de  
professoras já radicadas no Brasil, mas formadas nos Estados Unidos.  
A importação de material didático foi possibilitada pelo Governo e
suplementada por alguns empréstimos feitos à Escola Americana. Um   
então aluno da Escola Normal, João Lourenço Rodrigues, deixou seu 
depoimento:

O edifício constava de dois corpos ligados por um  


corredor, mas, a princípio, dele só fo i aproveitado o

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 18/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 27

 pavimen to superior. O corpo da fr ente fo i ocupado p ela seção  


masculina, a cargo de Aíiss Browne; no corpo do fundo fo i
 
instalada a seção feminina, confiada a D. Ma ria Guilhermina.  
Completa a instalação das classes e bem encaminhado o  
trabalho de sua organização, os alunos e alunas do 3a ano  
 puderam enfim começar os exercícios práticos de ensino. A  
 princípio deviam limitar-se a observar e a anotar as suas  
observações. Entre o que lhes fo i dado a ver e as suas  
  
reminiscências, ainda recentes, da escola régia tradicional, o
contraste não podia ser mais flagrante. A mobília, cedida pela
 Escola Americana, era nova e envernizada; o aspecto das  
classes, munidas do material necessário para a prática do  
ensino intuitivo, causava excelente impressão. Notava-se por   
toda a parte ordem, asseio e não falta va nem mesmo i nota  
artística de algumas jarra s de flores, alinhadas sobre as  
 
mesas. O ambiente não podia ser mais sugestivo. As crianças,
que outrora fug iam com horror da escola, eram agora as
 primeira s a chegar. Pudera! A imobi'idade de outrora, que as  
 fa zia morrer de tédio, sucediam agora, alternando com lições  
curtas, exercícios de marcha e canto, que imprimiam à vida  
escolar um tom.  (Um Retrospecto)

Exímias na arte de ensinar, as professoras contratadas para a 


Escola Modelo não tiveram, entretanto, muito êxito na exposição dos  
princípios que norteavam sua prática aos alunos da Escola Normal. O  
mesmo João L. Rodrigues recordava:

 As aulas das escolas modelos não podiam começar   


desde logo, em razão das obras que estavam sendo executadas  
no prédio da Rua do Carmo. (...) O Dr. Caetano de Campos  
 
entendeu que as duas professoras poderiam aproveitar 
utilmente o seu tempo dando às duas classes do terceiro ano
algumas aulas teóricas, que serviriam para traçar a  
orientação do ensino nas esperadas escolas modelos. No dia  
marcado para o primeiro encontro, os alunos, reunidos numa  
das salas de aula, as esperavam com grande curiosidade.  
 Depois do toque da sineta, as duas entraram, acom panhadas

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 19/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

28  Marta Maria Chagas de Carvalho

do Diretor, muito 'sorridentes, a desfazerem-se em mesuras e  


cortesias. Feita a apresentação, o Dr. Campos retirou-se e D.
 Maria Guilhermina iniciou sua exposição inaugural. Estava
  
visivelmente intimidada e, talvez por isso, não conseguiu dar a  
essa exposição a clareza que fo ra para desejar. Os ouvintes  
ansiavam por conhecer as diretrizes essenciais da nova  
 pedagogia e D. Maria Guilhermina, perdendo-se em minúcias,  
deixou essas diretrizes na penumbra. Por muito bem informada  
 
que se revelasse em processos de ensino, parecia ser dessas
 pessoas que não sabem elevar-se da noção da árvore à noção
da flores ta: era dispersiva. ( ... ) Miss Browne fo i mais feliz:  
não conhecendo bem a língua, fic o u dispensada de fa la r e mal   
 se aventurou a alguns monossílabos,  (ibidem)

A inépcia das professoras não era, contudo, relevante para os  


propósitos republicanos de Caetano de Campos. O sistema público de
ensino paulista montava-se, como já foi sublinhado, sob o primado da 
visibilidade. Ver para reproduzir os procedimentos vistos e dar a ver sua 
prática como modelo de outras era o que se propunha aos futuros mestres.  
E que a Pedagogia dos “ processos intuitivos ” era uma arte da minúcia,  
da dosagem, da gradação, que se queria fundada na observação de cada  
aluno, na experiência de cada situação, na concatenação minuciosa dos  
conteúdos de ensino pacientemente isolados e colecionados no cultivo de 
cada faculdade da criança numa ordenação que se pretendia fundada na
 
natureza. Seria por meio desses processos, “sem o descuido de um 
instante, que a criança, graças à sua natural atividade ”, tornava-se 
“produtiva em vez de vadia, amiga da verdade e induzida a procurá-la  
 por hábito, porque tudo o que sabe deve a seu próprio esforço, muito  
apta para a conquista das noções, porque aperfeiçoaram-lhe os  
 sentidos e com eles a aquisição de i d é i a s tornava-se também “ hábil e  
 
 fecunda, porque só se lhe deu o que ela podia receber; porque o que
 se lhe deu tinha a medida na sua pró pria psicologia, e tudo o que
adquiriu estava baseado na form ação do seu caráter, na justiça das  
coisas ...” (Carta à Imprensa).
Colhendo nas ciências naturais “ os elementos de disciplina  
menta\ ” que fez seus, a “ intuição como método pedagógico ” era a 
pedra de toque na organização do sistema de ensino paulista. Era, como já

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 20/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 29

se observou aqui, a possibilidade de recapitular, no indivíduo, “o  

Era, por isso, a possibilidade de conquistar para o indiviVuo os   


 processo que instruiu a humanidade inteira em sua vida intelectuaF\

benefícios que a Ciência trouxera para a Humanidade e, por meio  


deles, as condições para o exercício da cidadania. Já que a mudança ae  
regime havia entregue “cro povo a direção de si mesmo ”, nada era mais  
urgente, ponderava Caetano de Campos em  Mem ória   apresentada ao  
Governador Jorge Tibiriçá, que “ cultivar-lhe o espírito, dar-lhe a  

 
elevação moral de que ele precisa, formar-lhe o caráter para que
 saiba querer ” . Num regime em que “o  príncipe é o p o \ o” e em que  
não haveria porque zelar pelo “ interesse de uma fam ília privilegiada ”, 
o povo só poderia guiar-se pela “ convicção científica ”, tomando  
realidade o  self-government.   Para o Governo, educar o povo era um  
dever e um interesse. Interesse “ porque só é independente quem tem o  
espírito culto, e a educação cria, avigora e mantém a posse da  
liberdade”. Tal interesse não se restringia ao ensino primário. Se este  

  
era importantíssimo por desenvolver na criança “o hábito de refletir 
antes de enunciar, a ciência de aproveitar o tempo (...) e sobretudo o
amor ao trabalho ”, isto não seria suficiente para formar cidadãos. Para  
tanto se impunha que o ensino fosse, tanto quanto possível, “completo,  
inteiro em todos os conhecimentos indispensáveis à vida, enciclopédico  
 por assim dizer, j á que nosso viver social na atualidade envolve-nos  
em contingências oriundas de toda sorte de noções científicas ”. Não  
era admissível “apagar o fac ho que deve conduzir a criança para o
 grande templo da vida ”, terminado o ensino primário. Não quando os    
primeiros anos de escolaridade já tivessem desenvolvido na criança o  
hábito de pensar e sua curiosidade já houvesse sido despertada. Os  
conhecimentos científicos ministrados na escola secundária deveriam  
ser a base da educação. O conhecimento do mundo físico constituía-se  
na “melhor disciplina mental ” , assim como o hábito de experimentar  

era garantia de “ form


Fornecer talação de um homem apto em todos os sentidos ”.
ensino inteiro, completo, de base científica,  
condição efetiva da cidadania plena, é o que se entendia como tarefa  
republicana. Isto porque era a redenção da Ciência que a República  
devia trazer ao povo:

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 21/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

30  Marta Maria Chagas de Carvalho

 No século em que vivemos, todas as liberdades fora m  


conquistadas pela ciência. Só esta
coisas, só esta separa o jo io do
desvenda a realidade das
trigo, só esta nobilita o
  
homem, só esta combate, resiste e vence.  (Discurso aos  
professorandos)

Era preciso “afastar o sofisma, rechaçar o preconceito, fustigar o 


obscurantismo, seja qual fo r sua p r o c e d ê n c ia O que implicava o 
povo ser “ instruído largamente, proficientemente, como quem precisa
 governar-se a si, e poder governar outros povos, se a ocasião o  
exigir ” (Memória apresentada ao Governador). A disseminação desse  
ensino de base científica, entretanto, demandava o estabelecimento  
prévio de novas escolas-modelo, de 22 e 32 graus, anexas à Escola  
Normal, em que pudessem ser vistos os novos processos de ensino.  
Antes de criar as escolas secundárias adequadas a esses graus escolares  
 
superiores, que
era preciso preparar empregam
os professores,
parafamiliarizando-os
a obtenção da com  
“os
 processos os naturalistas verdade
c i e n t í f i c a Havia “ muito que fa zer na criação de bons moldes, muito 
livro a escrever, muita noção a a d q u i r i r A cidadania efetiva dos 
brasileiros ficava postergada para o futuro, na tessitura dos moldes  
pedagógicos com que a República se anunciava. Caetano de Campos  
dizia: “Epreciso não perder tempo porque devemos andar devagar 

* *

As profissões de fé dos republicanos paulistas não podem  


deixar de ser referidas à opção política da grande lavoura cafeeira pela  
imigração. Só desta forma os projetos de um Caetano de Campos e de  
tantos outros republicanos que, eloqüente e reiteradamente, afirmaram  
com palavras e atos sua fé no poder liberalizador e democratizador da
educação podem ter sua extensão aquilatada. A pergunta que fica ao  
nos depararmos com o imaginário pedagógico republicano é: Quem,  
nesse imaginário, é o cidadão que a República tem o dever   e o 
interesse  de educar?
Em estudo sobre o negro no imaginário das elites brasileiras  
no século XIX, Célia Azevedo mostra como se consolidou na

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 22/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A>Escola e a República e Outros Ensaios 31

Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, no início da década  


de 80, o imigrantismo. Acompanhando os debates parlamentares nos 
anos 70 e 80, a autora mostra como o

imigrantismo, bem como a form ulação correspondente de seu  


ideário racista, emerge tal qual uma arma ou insirvmento  
 político manejada contra os negros, adversários temidos do  
cotidiano passado, presente e futuro, e cuja resistência  
 
disseminada, e por isso mesmo difícil de ser coibida,
objetivava-se de alguma forma neutralizar, substituindo-os por 
uma massa de imigrantes brancos.  (Onda Negra Medo Branco)

As medidas tomadas para sustar a “onda negra” - “ imagem  


vívida do temor suscitado pela multidão de escravos transportados do  
norte do país para a província no decorrer das décadas de 1860 e 
 
1870” (ibidem) -   bem como para promover a imigração eram
veementemente defendidas nos debates parlamentares por insistente  
caracterização do negro como raça inferior, incapaz para o trabalho,  
propensa ao vício, ao crime e inimiga da Civilização e do Progresso. A  
partir do início da década de 80, quando o imigrantismo se consolida,  
o tema do aproveitamento do nacional, intensamente debatido dentro e  
fora do Parlamento durante todo o século, é posto de lado. A 
imigração européia é, então, a alternativa escolhida, ''''dando vazão aos  
 sonhos de trocar o negro pelo branco, de transformar a ‘raça brasileira’ 
e, no caso de São Pàulo, de valorizar as tão decantadas qualidades  
’viris’ dos paulistas, tornando-a, no futuro, uma província branca,  
capacitada, conseqüentemente, para um franc o progresso e  
desenvolvimento” (ibidem). Assim, o imigrantismo propunha não  
somente a troca do negro pelo branco nos setores fundamentais da 
produção, como também arquitetava um projeto de regeneração e 
capacitação para trabalho, cujo instrumento era a miscigenação de que se
esperava um desejado branqueamento moralizador das populações negras.  
É dominante na historiografia educacional o recurso à figura  
do transplante cultural   como um lugar-comum, que explica um abismo  
alegado entre os bons propósitos ilustrados de uma elite convencida do  
poder democratizador e liberalizador da educação e os resultados  
efetivos desses propósitos. Os projetos dessas ilustres elitçs não se

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 23/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 24/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 33

universos - o dos cidadãos e o dos sub-homens - funcionando com o  

dispositivo de produção/reprodução da Campos


dominação social.porSe uma
cidadania plena só era para Caetano de facultada  
ensino inteiro, completo, de base científica e se a generalização deste  
ensino ficava postergada para um futuro remoto na dependência de  
morosas providências pedagógicas, fica a questão: o que tornava  
possível este vagar?

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 25/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios 35

CAPÍTULO 3

O FREIO DO PROGRESSO

O vagar com que Caetano de Campos marcava seu paciente  


trabalho de reformador não tem lugar na linguagem de cifras e na  
urgência das metas que caracterizam o relatório apresentado em 1918 
por Oscar Thompson, Diretor-Geral da Instrução Pública do Estado de
São Paulo, ao Secretário do Interior, Rodrigues Alves:  
 A evolução do ensino público paulista, j á no que toca  
aos seus métodos educativos, j á no que se refere à sua difusão  
 por todos os 196 municípios do Estado, acresceu ao estudo  
 grandes e importantes problemas que exigem solução pronta e  
rápida: 232.621 crianças freqüen tara m escolas em 1918;  
247.543 em idade escolar não freqüentaram escolas públicas
ou particulares conforme atesta a estatística.
 
Que fa ze r para educar esses milhares de menores que,  
crescendo analfabetos, constituirão elementos negativos do  
nosso progresso?

O analfabetismo passava a ser a marca da inaptidão para o  


Progresso. Era ele a causa da existência das populações que
“mourejavam no Estado, sem ambições, indiferentes, de todo em todo,    
às cousas e homens do Brasir   (ibidem). Produz-se, assim, um  
deslocamento no discurso educacional: um novo personagem irrompe, 
um brasileiro doente e improdutivo, peso morto a frear o Progresso,  
substitui a figura do Cidadão abstrato, alvo das luzes escolares. O novo  
cidadão não é mais invocado para oficiar no augusto templo da  

Ciência.ABasta-lhe
perguntaagora o manejo cívico do alfabeto.é respondida por
formulada pelo Diretor-Geral  
Sampaio Dória em carta aberta. O futuro reformador da instrução  
pública paulista em 1920 justificava as medidas que preconizava,  
reiterando as razões para a extinção do analfabetismo:

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 26/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

36   Marta Maria Chagas de Carvalho

 Hoje não há quem não reconheça e não proclame a  


 
urgência salvadora do ensino elementar às camadas
 populares. O maior mal do Brasil contemporâneo é a sua
 porcentagem assombrosa de analfabetos. (...) O monstro  
canceroso, que hoje desviriliza o Brasil, é a ignorância crassa  
do povo , o analfabetismo que reina do norte ao sul do país,  
esterilizando a vitalidade nativa e poderosa de sua raça.

 
como “aAquestão
alfabetização do por
nacional povo apresentava-se
excelência ”. É quepara Sampaio deDória
o imigrante que 
os republicanos históricos haviam esperado o aprimoramento da “ raça 
brasileira ” era visto agora como ameaça ao “caráter nacional”. Só  
resolvendo o problema do analfabetismo é que o Brasil poderia  
“assimilar o estrangeiro que aqui se instala em busca da fortu na  
esquiva".  Não haveria como fugir ao dilema: ou o Brasil manteria “o  
cetro dos seus destinos, desenvolvendo a cultura dos seus filhos ”, ou 
seria “dentro de algumas gerações absorvido pelo estrangeiro que
 para ele aflui”.  Reintroduzia-se, assim, a questão do aproveitamento    
do chamado elemento nacional. Em estudo sobre a formação do  
mercado de trabalho livre em São Paulo, Lúcio Kowarick observa que  
o tema da valorização da desacreditada mão-de-obra nacional é 
retomado num momento em que, com a Primeira Grande Guerra, os  
fluxos imigratórios contínuos sofrem brusco corte. Além disso, as 
greves operárias do fim da década de 10 destroem os m itos da tão
decantada operosidade do imigrante que haviam embalado o imaginário 
das elites paulistas no fim do Império e início da República.
O programa educacional desta revalorização concentrou-se  
inicialmente na alfabetização. A partir de meados da década de 20, 
esse programa é redefinido ao calor da campanha de regeneração  
nacional promovida pela Associação Brasileira de Educação (ABE),  
 
fundada no Rio de Janeiro, em 1924. Paraoos
‘ feentusiastas da alfabetização
educação que
nela se aglutinaram, era preciso combater tichismo da  
intensiva”, valorizando-se o que se entendia por “educação integral”. 
Em ambas as formulações, entretanto, o mesmo deslocamento discursivo.  
A figura do Cidadão abstrato, dominante na retórica dos republicanos  
históricos, é substituída pela imagem de um brasileiro improdutivo,  
doente e ignorante, que urge regenerar com o recurso da escola.

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 27/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a Repúblicae Outros Ensaios 37

0 projeto de Sampaio Dória, ideólogo da Liga Na cionalista de 


São Paulo, não se limitava, contudo, à alfabetização. A escola primária
de objetivos modestos e de duração reduzida que sua reforma implantou  
em São Paulo deveria, enfatiza Heládio Antunha, funcionar como:

1- instrumento de aquisição científica, como aprender   


ler e escrever; 2a educação inicial dos sentidos, no desenho,  
no canto e nos jog os; 3a educação inicial da inteligência, no  
 
de logicidade; 4~ educação moral e cívica, no escotismo,  
estudo da linguagem, da análise, do cálculo e nos exercícios
adaptado à nossa terra e no conhecimento de tradições e  
 grandezas do Brasil; 5a educação fís ica inicial, pela ginástica,  
 pelo escotismo e pelos jogos.   (A Reforma de 1920)

Mesmo a Liga Nacionalista, cujas campanhas de alfabetização se  


atrelavam à luta pelo alistamento eleitoral e pelo voto secreto, não  
descurava de iniciativas de educação cívica  de modo a garantir a
qualidade do voto e, concomitantemente, a propalada regeneração   
do caráter nacional.
Apesar disto, a prioridade da difusão do ensino sobre questões  
atinentes à sua qualidade é legível na urgência das metas e no roteiro  
das cifras que determinam a lógica da Reforma. O sistema escolar era  
racionalizado de modo a conciliar a alegada exigüidade de recursos  
financeiros governamentais'às metas democráticas de generalização
dos benefícios escolares. No confronto dos números, era construído o  
dilema: dar uma escola de 4 anos a alguns, excluindo os outros, ou  
generalizar o ensino elementar de 2 anos a todos. A Reforma opta pela  
segunda via. As medidas que adota para erradicar o analfabetismo são  
arroladas por Heládio Antunha:

(a) a radical modificação efetuada nos níveis inferiores do  


  
ensino público (art. I a), com a redução do ensino prim ário a
dois anos e a conseqüente criação do ensino médio de dois
anos de duração, correspondendo aos 3a e 4a anos primários,  
então extintos;
(b) a redução da obrigatoriedade e gratuidade da freq üênc ia  
escolar primária. As crianças legalmente obrigadas a

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 28/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

38  MartaMaria Chagas de Carvalho

 freqüentar o curso prim ário de dois anos passam a ser apenas  


as de 9 e 10 anos de idade;
(c) a taxação do curso médio;
(d) a unificação das escolas isoladas ao tipo único de dois  
anos;
(e) a redistribuição de professores de 3~ e 41 anos, que  
 ficavam em disponibilidade, para as novas classes  
alfabetizadoras de 1~ e 2~ anos a serem formadas;

 
(f) o desdobramento das escolas isoladas e também do
trabalho do professor das escolas em que fo ss e excessiva a
matrícula e no caso de não haver condições para a existência  
de dois professores;
(g) isenção dos pobres das taxas em todos os graus do ensino;
(h) a   “proscrição  ” escolar às crianças de 7 e 8 anos. As  
crianças dessa idade deixavam de ser obrigadas à freqüência  
escolar e, mais do que isso, não lhes seria permitido o ingresso
 
nas escolas públicas antes de completarem 9 anos de idade;
(i) a criação de duas mil escolas isoladas.  (A Reforma de 1920)

Estas medidas foram acompanhadas de outras, voltadas para o 


que era entendido como nacionalização do ensino. A questão  
comportava dois aspectos distintos, embora solidários: tratava-se, por 
um lado, de “ abrasileirar os brasileiros ” mediante a alfabetização e a 
educação moral e cívica e, por outro, de integrar o imigrante
estrangeiro. Neste segundo aspecto, o escotismo foi incentivado,  
 juntamente com outras medidas de formação cívica. Mas a iniciativa  
mais relevante neste caso foi a intervenção nas escolas estrangeiras.  
Novas disposições legais prescreviam que respeitassem os feriados  
nacionais, ministrassem o ensino em vernáculo, incluíssem no 
currículo o ensino de Português, Geografia e História do Brasil por 
professores brasileiros natos e ensinassem os cantos nacionais nas
classes infantis. Além disso, essas escolas deveriam abrir-se à inspeção 
do Estado e fornecer-lhe os dados estatísticos solicitados.
Com a derrogação da Reforma em 1925, a reorganização do 
ensino paulista fez-se sob o signo da volta ao passado, de retomada 
dos padrões que haviam prevalecido no início da República e que a 
Reforma mutilara. Era reabilitado o modelar sistema de ensino paulista

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 29/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 39

montado a partir das meticulosas providências de Caetano de Campos  


e dos que imediatamente sucederam a ele. O primado da qualidade 
impunha-se à prioridade concedida à difusão do ensino. Será uma  
mudança de ênfase como esta que permeará o discurso educacional  
dominante na segunda metade da década de 20. Nesta redefinição de  
prioridades, teve importantíssimo papel a Associação Brasileira de  
Educação (ABE), fundada, como já foi dito, em 1924.
Sediada originalmente no Rio de Janeiro, a ABE foi projetada 
como organização nacional. Seus organizadores esperavam que em
cada Estado brasileiro fossem criados núcleos similares ao instalado  
no Distrito Federal. A ação local desses núcleos deveria ser integrada  
por Conferências Nacionais realizadas anualmente, de forma que o 
debate e a troca de informações pudessem constituir a Associação  
como “ órgão legítimo de opinião das classes cultas ” em matéria  
educacional. Embora tenha malogrado o objetivo de organizar os  
núcleos es+aduais, a AB E consolidou-se com o entidade nacional quando,
a partir de 1927, passou a promover as projetadas Conferências  
Nacionais. Isto é testemunhado por Fernando de Azevedo que, ao  
descrever o movimento educacional na década de 20, põe em relevo o  
papel da ABE em sua dinamização e expansão, afirmando que sua  
importância residiu em ter funcionado como “fo rç a de aglutinação ” 
dos esforços esparsos dos educadores que se vinham empenhando na 
reforma dos sistemas estaduais de educação:

Congregando os educadores do Rio de Janeiro, pondo-  


os em contacto uns com os outros, abrindo oportunidades  
 para debate largo sobre doutrinas e reformas, freqüentemen te  
de um conteúdo intelectual confuso e contraditório, e  
convocando para congressos ou conferências de educação ”,  a 
ABE teria sido "um dos instrumentos mais eficazes de difusão  
 
do pensamento pedagógico europeu e norte-americano e um
dos mais importantes, se não o maior centro de coordenação e
de debates para o estudo e solução de problemas educacionais,  
ventilados po r todos as form as, em inquéritos em com unicados  
à imprensa, em cursos de fér ias e nos congressos que  
 pro moveu nas capitais dos Estados.  (A Cultura Brasileira)

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 30/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

40  MartaMaria Chagas de Carvalho

Em especial, as Conferências Nacionais, aproximando 


educadores de todos os Estados e congregando-os em diferentes centros
culturais do país, teriam propiciado o que chamou dz^m arc ha resoluta 
 para uma política nacional de educação.''''   (ibidem)
Em discurso-programa da Associação Brasileira de Educação,  
Heitor Lyra da Silva, apontado como principal idealizador e organizador  
da entidade, afirmava em 1925:

 
 
Creio interpretar a maioria senão a totalidade dizendo
que não temos o fetichismo da alfabetização intensiva e que
estamos convictos, salvo pequenas divergências secundárias, de  
que o levantamento do nível popular tem que repousar sobre  
tríplice base: moral, higiênica e econômica, o que significa que  
 sem a cultura das qualidades do caráter, sem a melhoria das  
condições de saúde da massa da população e sem uma racional   
organização do trabalho é utopia esperar que a alfabetização  
 
rápida e quase instantânea, se possível, viesse a transformar 
 para o bem as atuais condições do nosso país.   (Discurso)

Para os organizadores da ABE, era necessário, como pontuava  


Azevedo Sodré em conferência por ela promovida em 1925:

... convencer a nossa gente de que, ao contrário do que 

 
habitualmente se afirma, não cabe ao analfabetismo a culpa
do atraso , do desgoverno, da anarquia e dos muitos males que
ajligem nosso país.

Antes seriam ...

mais nocivas, culpáveis e condenáveis as elites mal   


 preparadas que nos governam e as legiões sempre crescentes  
de semi-alfabetos que as sustentam.

Segundo Sodré, os analfabetos eram “obreiros pacíficos e 


conformados ao progresso nacionaT\   Se era verdade que “produziriam 
mais, com menos esforço ”, se fossem instruídos, era entretanto 
“preferível que fosse m analfabetos ”, porque “os iletrados adultos que

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 31/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 41

trabalham, produzem, não fa ze m revoltas, não perturbam , nem  


anarquizam o nosso meio”.  A solução apresentada pretendia-se
estritamente pedagógica, propondo-se como ampliação do âmbito   
formativo da escola. Era preciso, ao invés de “ apressadamente ensinar  
a ler, escrever e contar aos adultos iletrados” - coisa de má pedagogia -  
“cuidar seriamente de educar-lhes os filhos fazendo-os freqüentar   
uma escola moderna que instrui e moraliza, que alum ia e civiliz a”.
A partir do trabalho de Jorge Nagle,  Educação e Sociedade na  
 Primeira República,  tornou-se impossível referir-se ao movimento
educacional do período sem utilizar a nomenclatura que criou para  
expressar os momentos distintos desse movimento com suas  
características: entusiasmo pe la educação e otimismo pedagógico.
O entusiasmo pela educação caracterizar-se-ia pela importância  
atribuída à educação, constituída como o maior dos problemas nacionais, 
de cuja solução adviria o equacionamento de todos os outros. O  
otimismo pedagógico manteria, do entusiasmo,  a crença no poder da 
educação, não de qualquer tipo de educação, enfatizando a importância
 
da nova pedagogia na formação do homem novo. Na passagem do  
entusiasmo para o otimismo se teria produzido no movimento uma  
crescente dissociação entre problemas sociais, políticos e econômicos  
e problemas ped agógicos. ,.
Existe para Nagle uma anterioridade temporal do entusiasmo  
pela educação em relação ao otimismo pedagógico. Entretanto, n?o  
considera relevante o critérío cronológico na distinção entre os dois
movimentos. Exemplo disto é que toma o discurso de Miguel Couto na 
ABE, em 1927,  No Brasil só há um pro blema nacional, a educação do  
 povo,   como caso mais típico do entusiasmo pela educação. A leitura  
que Vanilda Paiva faz do texto de Nagle estabelece um limite temporal  
rígido: até 1925, estaríamos diante do entusiasmo pela educação; a 
partir de então, do otimismo. Leia-se o que escreve:

Com o nacionalismo dos anos 10 voltam à baila os


ideais republicanos e democráticos, aos quais se ligim os
  
anseios de universalização do ensino elementar e de ampliação  
das oportunidades educacionais pa ra o povo. Organizam-se  
as 'lig a s”, em cujos programas sempre estão presentes  
reivindicações relativas à instrução popular... Este nacionalismo

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 32/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

42  MartaMaria Chagas de Carvalho

 
 
educacional
ensino, está que se manifesta
ligado ao problemana luta pela democratização
da ampliação das bases do
de
representação eleitoral, pois na medida em que grupo  
industrial urbano pretende a recomposição do poder político  
dentro do marco da democracia liberal o caminho mais  
 seguro era o da difusão do ensino.(...)
O entusiasmo pela educação que se manifesta através  
da mobilização em fa vo r da difusão do ensino elementar e que  
através da ampliação do número de votantes, iniciada em  
está ligado às tentativas de recomposição do poder político

meados da década de 10, não sobrevive com o mesmo caráter  


logo após os primeiros anos da década seguinte, quando fo i se 
tornando claro pa ra os grupos em luta pelo po der que, através 
da educação, a  , conquista da hegemonia política era  
 pro blemática e dem andava muito tempo... Os políticos  

 
efetivamente interessados na conquista do poder abandonam
este campo de luta, deixando-o aos diletantes da educação e
entregando-se às conspirações de revolta armada.  (Educação  
Popular e Educação de Adultos)

Em Vanilda, Miguel Couto é o principal representante desse  


diletantismo. Paralelamente a essa sobrevivência do entusiasmo como  
diletantismo, teriam surgido os profissionais em educação, representantes  
do otimismo pedagógico. Tais profissionais

reuniram-se numa Associação Brasileira de Educação (ABE),  


 fundada por Heitor Lyra em 1924, a fim de defender seu  
campo de trabalho... Era a prim eira sociedade de  
 profissionais da educação com caráter nacional e sua  
atuação, principalmente através das Conferências Nacionais  
 
de Educação promovidas a partir de 1927, contribuiu no
 sentido da difusão dos ideais e princípios da Escola Nova e do
“otimismo ped agógico” em geral. (...) Durante os anos vinte,  
 pass ada a fa se do "entusiasmo pela educação  ”, dominam as  
idéias de tecnificação pedagóg ica de form a quase absoluta e  
uniforme em todo o país, graças à ABE.  (ibidem)

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 33/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 43

 
educação”0 àstexto de Vanilda
“tentativas Paiva amarra
de recomposição o político
do poder “entusiasm o pela
através da 
ampliação do número de votantes iniciada em meados da década de 10”. 
Ter-se-ia aí um momento em que educação e política estavam vinculadas.  
A partir de meados da década de 20, esse vínculo desapareceria, dando  
lugar a um enfoque técnico da questão educacional.
Questiona-se aqui esta tese de Vanilda Paiva. Primeiramente,  
porque o grupo que compunha os órgãos diretores da Associação  
dificilmente pode ser qualificado de  profissionais   em educação. Nele
predominaram médicos, advogados e sobretudo engenheiros, professores  
da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, cujos interesses e campo de 
trabalho abrangiam questões de siderurgia, urbanismo, economia  
política, finanças, política, astronomia, física etc. Em segundo lugar,  
porque tal grupo guardou do entusiasmo  a priorização da educação  
como grande problema nacional, cuja solução transformaria política,  
social e econo micam ente o país. Em terceiro - razão principal -
porque a ênfase do grupo na qualidade do ensino em detrimento da 
simples difusão da escola - o que faria deles otimistas -   não foi 
decorrente de razões pedagógicas, mas  políticas.   Dependendo de sua  
qualidade,  a educação foi explicitamente valorizada, como  
instrumento político de controle social.
Depois de realçar a vinculação original das preocupações  
 
educacionais “com asdotentativas
número dedevotantes”,
recomposição do Paiva
poderapresenta
político
através da ampliação Vanilda  
o que considera uma causa da dissociação progressiva entre as  
preocupações políticas e educacionais: é que “foi se tornando claro  
para o grupo em luta pelo poder que, através da educação, a conquista  
da hegemonia política era problemática e demandava muito tempo”. 
Os “políticos efetivamente interessados na conquista do poder” teriam  
abandonado o “campo de luta” educacional, “entregando-se às  
conspirações de revolta armada”, como já se leu.
A história da fundação e da organização da Associação  
Brasileira de Educação não confirma essas afirmações. Sua fundação  
resultou do malogro na organização de um partido político, por causa  
da precipitação de um dos organizadores que, em julho de 1924,  
acreditando no sucesso da revolução paulista, chegou a entrar em  
contato com os revolucionários. Além disso, parcela significativa dos

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 34/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

44  Marta Maria Chagas de Carvalho

fundadores da Associação - a se crer na veracidade das acusações que 


determinaram a prisão de alguns deles - esteve envolvid a em 
movimentos militares. Finalmente, cerca de metade dos integrantes  
dos órgãos diretores da Associação foram os fundadores e organizadores  
do Partido Democrático do Distrito Federal, tendo composto a cúpula  
do partido nos anos de 1927 e 1928. Dois deles chegaram mesmo a 
eleger-se intendentes municipais nas eleições de 1928 e, segundo  
informação de Paulo Nogueira Filho, estreitamente vinculado ao grupo, 
foi o desaparecimento deste, num desastre de aviação em 1928, que
inviabilizou o Partido Democrático do Distrito Federal.  
A significação disso não extrapolaria a simples retificação do  
relato de Vanilda Paiva se fosse possível sustentar que o grupo aglutinado  
na ABE na década de 20 era apenas um grupo remanescente do  
entusiasmo pela educação, convencido da importância da simples  
difusão do ensino sem qualquer restrição ao conteúdo da educação a 
 
ser difundida.
Lyra Este não é chamara
o caso, como
de já se afirmou.da
A crítica ao que
Heitor da Silva “fetichismo alfabetização  
intensiva” era mesmo um dos pontos consensuais entre os integrantes  
da Associação, constituindo-se, ao que parece, como um dos mais  
importantes móveis da fundação da entidade.
Muito esclarecedora, a respeito, é a informação de Mattos 
Pimenta. Pertencia à Comissão Executiva de Partido Democrático do  
Distrito Federal em 1927 e 1928 e era muito identificado com  
intelectuais do Conselho Diretor da ABE, participantes, nesses anos,
daquela Comissão. Segundo ele, o Partido fora organizado a partir da  
avaliação de que a Revolução de 1924 em São Paulo falhara em razão  
da inexistência de uma opinião pública que desse sustentação à tomada  
do poder pelas armas. Isto implicava, a seu ver, deslocar a ênfase que  
vinha caracterizando as campanhas de alfabetização no período -  
amp liação do número de eleitores - para questões de organização  do  
eleitorado. Estas abrangiam a formação de uma opinião pública e, para
tanto, partido e sistema educacional eram propostos como instrumentos  
principais. Isto sugere que o abandono da ênfase na difusão do ensino,  
registrado por Vanilda Paiva, não significou uma despolitização do  
campo educacional mas, ao contrário, sua politização em novos  
termos. Compreender este desdobramento requer que se compreenda o  
aparecimento do entusiasmo pela educação e sua transformação no

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 35/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 45

otimismo pedagógico em termos que possibilitem evidenciar o sentido  


da repolitização operada.
A ampliação do número de eleitores, a erradicação da  
ignorância como instrumento de qualificação do voto consciente, a  
formação e organização de uma opinião pública são objetivos que, em  
maior ou menor grau, aglutinam na ABE os intelectuais dedicados ao  
estudo e à propaganda da causa  educacional. Mas o que os aglutinava  
era, fundamentalmente, o projeto político de uma  grande reform a de  
costumes   que ajustasse os homens - com o afirmaria Lcurenço Filho
em 1935, referindo-se à trajetória da ABE - “a novas co nd içõe s e 
valores de vida, pela pertinácia da obra de cultura, que a todas as  
atividades impregne, dando sentido e direção à organização de cada  
povo”. A proposta de uma educação integral , resultante da subordinação  
da difusão do ensino a razões técnicas ou estritamente pedagógicas  
que determinassem sua qualidade, era uma das respostas políticas  
ensaiadas por setores da intelectualidade brasileira na redefinição dos  
esquemas de dominação vigentes.

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 36/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 47

CAPÍTULO 4

A REFORMA MORAL E INTELECTUAL

As principais iniciativas que notabilizaram a Associação  


Brasileira de Educação nos anos 20 foram marcadas como  
acontecimentos cívicos: a propaganda que se fez de'as, os rituais que  
as constituíram colocaram a Associação como obra cívica de que
dependia a redenção do país. As Conferências Nacionais não foram   
somente instâncias de debate, mas eventos que funcionaram como  
propaganda da causa educacional. Nelas, discursos e rituais 
representaram a ABE como congregação de homens de elite,  
esclarecidos, bem intencionados e devotados ao equacionamentu das  
mais graves questões nacionais. Nesta prática, operavam mecanismos  
de
eramconstituição e validação
relativizadas da campanha
ou mesmo apagadaseducacional. Divergências
na generalidade das  
proclamações em que o civismo era o campo consensual de atuação.  
Amalgamando ou diluindo divergências, atraindo adeptos, a campanha  
cívica tinha importância em si mesma, sendo ela própria parte  
essencial do projeto de reforma moral e intelectual em que se engajava  
a ABE. Produzindo o que se entendia como uma taineana temperatura  
moral,  era processo em curso de erradicação do que se identificava  
como uma das principais eausas da crise nacional: o ceticismo, o
individualismo, a apâtia das elites políticas, cegas à importância da  
 
educação. Promover uma reforma da mentalidade dessas elites,  
convencendo-as da necessidade de regenerar pela educação as  
populações brasileiras, moldando-as como povo saudável e produtivo,  
era o que se esperava da campanha educacional.
Máquina persuasiva, o discurso cívico da ABE opera  
maniqueistamente, produzindo imagens da realidade brasileira que
opositivamente se interqualificam. O presente é reiteradameníe  
condenado e lastimado, sendo caracterizado de modo a fundamentar  
temores de catástrofes iminentes, que atingirão o país se a 
campanha educacional não obtiver os resultados desejados. Ao  
futuro insistentemente se alude como dependente de uma política  
educacional: futuro de glórias ou de pesadelos, na dependência da ação

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 37/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

48  Marta Maria Chagas de Carvalho

diretora de uma elite que direcione, pela educação, o processo de  


transformação do país. Na oposição construída por imagens de um país 
presente condenado e lastimado e de um país futuro desejado é que se  
constitui a importância da educação como espécie de chave mágica  
que viabilizará a passagem do pesadelo para o sonho. Neste espaço é  
que se inscreve o entusiasmo pela educação de que a ABE é ao mesmo  
tempo conseqüência e principal foco de irradiação.
No discurso cívico da ABE, a figura de um brasileiro doente e 
indolente, apático e degenerado, alegoriza os males do país. Transformar
essa espécie de Jeca Tatu em brasileiro laborioso, disciplinado, saudável e  
produtivo era o que se esperava da escola.
As práticas discursivas das organizações cívico-nacionalistas  
que proliferam no país nos anos 10 e 20 têm merecido pouca atenção  
dos historiadores. Interpretado como palavrório vazio, ausência de  
ideologia, ritual esvaziado, o discurso cívico não é analisado enquanto  
prática. Com isto, perde-se a possibilidade de identificar não somente 
estratégias organizacionais de grupos interessados em ampliar seu  
campo de atuação, como também os objetos de intervenção constituídos  
por tais estratégias. E muito tênue a diferença entre a prática dessas  
organizações cívicas e a que caracterizou as associações de profissionais,  
como médicos, educadores, engenheiros e higienistas, que na década  
de 20 se organizaram por meio de inúmeros congressos e conferências  
em tomo de questões eleitas como pontos privilegiados de intervenção.  
Nelas, inúmeros rituais, conformavam tais questões co m o causas
cívicas, validando objetos e técnicas de intervenção e credenciando   
seus agentes. Nesta situação é que se dá a montagem de diversos  
dispositivos de controle, ordenação, regulação e produção do cotidiano  
das populações pobres. O reformador social - cuja presença mercante 
na década de 20 só recentem ente tem sido registrada e analisada - tem 
nessas organizações o seu lugar de emergência. Nelas é que tais  
reformadores se credenciam como colaboradores indispensáveis e
eficientes na invenção e no aprimoramento de dispositivos de dominação.  
A Associação Brasileira de Educação foi uma dessas  
organizações. Nela, um grupo de intelectuais se auto-representou  
como elite que deveria dirigir por intermédio da educação o processo de 
transformação do país. Sua prática constituiu como objetos de  
intervenção política a ignorância, o vício, a doença e a indolência das

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 38/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios 49

populações brasileiras. E, no processo de debates desencadeado nas  


Conferências Nacionais, tal prática credenciou os agentes e as ,técnicas
 
de intervenção preconizadas. A ABE funcionou assim como instância  
de organização e credenciamento de reformadores sociais, produzindo  
um espaço de ação política - o do técnico - que seria gradativamente 
alargado no interior da burocracia estatal, principalmente a partir de  
1930. Mas funcionou também como instância de disseminação de um  
 saber   sobre o social, de marcada configuração autoritária, em que o  
povo brasileiro é figurado como matéria informe e plasmável pela ação de
uma elite que projetava conformá-lo a seus anseios de Ordem e Progresso.  
A implantação de hábitos de trabalho e o cultivo da operosidade  
como valor cívico eram pontos essenciais da “ grande reforma de  
costumes” referida por Lourenço Filho. Segundo ele, deveria ajustar os  
homens a “novas condições e valores de vida”. O ajustamento dependia  
de uma remodelação e reestruturação do aparelho escolar. Mas dependia  
 
também dona que Gustavo
invadidaLessa entendia como “organização da
resistência” cidade pela fábrica. Referindo-se a Londres, dizia  
ele em 1930:

 Há mais de um século, quando a cidade começou a se  


industrializar, nela despertaram os mesmos valores que hoje  
vemos afluir no Rio de Janeiro: miséria em vasta escala,  
 superlotação nas habitações, fa cilid ade de contágios em  
  
doenças, degradação dos padrões de moralidade. Mas a raça
inglesa soube suscitar então os leaders enérgicos que ela tem
 produzido em todas as emergências, não só religiosos como  
leigos. Foi-se organizando a resistência, foram-se constituindo  
inúmeras sociedades privadas pa ra lutar contra a miséria físic a  
e moral   ...  Está claro que os males não fo ram extintos, mas  
opôs-se à sua violenta invasão a muralha de aço da solidarie

dade humana.  (“O papel dos grupos familiares na educação”)


A remodelação e a reestruturação do sistema escolar era tema  
dos debates que se constituíram como objetivo central da ABE, com  
vistas à formulação e implementação de uma política nacional de 
educação. Mas a organização da resistência nos termos descritos por 
Gustavo Lessa era o que definia a atuação da entidade no Rio de

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 39/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

50  Marta Maria Chagas de Carvalho

Janeiro. Nesta espécie de cruzada moral, inúmeros rituais cívicos,  


propostos como iniciativas que expandiam o raio de influência da
 
escola na moralização dos costumes da cidade, absorviam os intelectuais  
engajados na ABE. Cuidados com a formação cívica apareciam a eles  
como garantia do “trabalho metódico, adequado, remunerador e salutar”, 
de “disciplina consciente e voluntária e não apenas automática e  
apavorada”, como também da “ordem sem necessidade do emprego da 
força e de medidas restritivas ou supressivas da liberdade.” (Solução de 
um problema vital)  Tais cuidados deveriam necessariamente incorporar-
se ao que se preconizava como educação integral,  em oposição ao que  
se entendia por instrução pura e simples.  Amplamente forjada por rituais 
de constituição de corpos saudáveis e de mentes e corações  
disciplinados, a educação cívica era garantia de que a educação não 
viesse a tomar-se fator de desestabilização social. Porque a instrução  
pura e simples era, como a entendia Heitor Lyra da Silva, “uma arma”  
 
e, “como medidas
requeria toda arma”, “perigosa”. Colocá-la
que preparassem nas mãos
quem a recebesse da população
“para manejá-la  
benfazejamente para si e para os outros” (Missão Educacional). 
Educação do sentimento, dos gestos, do corpo e da mente, assim se  
diferenciava a educação integral preconizada da instrução pura e 
simples, arma perigosa. Era esse poder disciplinador atribuído à 
educação prescrita que fazia com que a questão da organização do  
trabalho no país - tema que avulta, com o já se viu no primeiro 
capítulo, nas avaliações que a geração de 20 faz da República
instituída - depend esse fundamentalmente dos recursos educacionais.
 
O tema da organização do trabalho é sempre referido no  
discurso da ABE como questão incontroversa, cuja estrita nomeação é  
dotada da magia da argumentação irrecusável na defesa da importância  
da educação. Embora seja por isso difícil precisar o que se entendia  
pela formulação, é possível afirmar que significava um conjunto de 
dispositivos que distribuem, integram, dinamizam, aparecendo com
referenciais diversos. Referida à escola, a expressão designa medidas  
de racionalização do trabalho escolar sob o modelo da fábrica, tais  
como: tecnificação do ensino, orientação profissional, testes de 
aptidões, rapidez, precisão, maximização dos resultados escolares etc.  
Designa também o funcionamento da escola na hierarquização dos  
papéis sociais, formando elites condutores e povo produtivo. Referida

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 40/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios 51

ao país, a expressão designa um conjunto de dispositivos de integração  


nacional (como os propostos pelo Club  dos Bandeirantes do Brasil) e de  
distribuição ordenada das populações por diversas atividades produtivas.  
Referida às populações pobres, aparece como disciplinamento, pela  
distribuição regrada das populações em espaços adequados, pela  
regulamentação controlada do lazer e do trabalho. Nesta acepção,  
englobava medidas destinadas a atenuar conflitos de classe e a aumentar a 
produtividade do trabalhador, envolvendo questões de saúde e de moral, 
com o objetivo de adequar a vida cotidiana do operário às exigências
do trabalho industrial na ordem capitalista.  
O tema deve sua circulação na ABE à predominância de 
engenheiros. Defendendo medidas de organização do trabalho de que  
seriam os executores, eles se auto-representavam como “desejosos do  
bem moral e material dos seus auxiliares” (leia-se “operários”, mas, ao  
mesmo tempo, “cuidadosos da finalidade dos empreendimentos  
entregues à sua direção.” (O Mundo Contemporâneo e a Engenharia)  
O trabalho organizador do engenheiro implicava observação minudente e 
apontava para um grande número de providências que extrapolavam a 
vida no interior da fábrica. O engenheiro deveria

notar o homem que está fatig ad o ou mal empregado, para lhe  


dar um trabalho menos penoso ou mais conveniente; o homem  
que está doente e vai contaminar seus camaradas para dirigi-  
decente pa ra sua fam ília; o homem que se quer instruir e,  
lo ao dispensário; cr homem sem teto, e facilitar-lh e a casa

 para tanto lhe dar os meios; o homem que desejasse aproveitar  


 seus momentos de fo lg a e lhe pro piciar um jardim ,  (ibidem)

Representando seu papel como o de “conduzir homens ”, os  


engenheiros deveriam ser “os bons irmãos dos jovens operários e, por 
isso, velar não só pela higiene do corpo, suas vestes, seus costumes,
como pelas funções morais” (ibidem).  
A referência ao tema traduziu-se, em alguns casos, na  
valorização dos métodos da chamada pedagogia moderna enquanto  
possibilidade de realização, no meio escolar, das novas máximas  
organizadoras do trabalho industrial. A idéia de que aqueles motodos  
permitiriam conseguir melhores resultados com menos esforços, à

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 41/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

52  MartaMaria Chagas de Carvalho

semelhança dessas máximas, determinou o crivo principal de valorização  


das inovações pedagógicas: sua maior eficiência comparativamente
à chamada pedagogia tradicional. Providências como testes, organização  
de classes homogêneas, atendimento aos interesses e habilidades  
individuais dos alunos eram, dessa perspectiva, valorizadas. Lourenço  
Filho, por exemplo, em artigo de 1929 sobre “A Escola Nova”, 
apontava duas tendências principais na pedagogia moderna, referindo-  
se a uma delas como “taylorismo na escola”: abrangendo “inovações  
 
ou
da sistemas que visam dar maior rendimento
essaescolar do ponto de vistaa
organização das classes ou cursos”, tendência encararia  
escola “como a produção das modernas indústrias, que deve ser rápida, 
precisa, com perdas mínimas de energia e pessoal”. As propostas  
pedagógicas de Claparède, por exemplo, eram interpretadas como  
reflexo da “necessidade de classificação menos empírica dos alunos”, 
decorrente da dificuldade que no ensino escolar comum representava a 
“heterogeneidade da classe entregue a um só professor”. Para 
Claparède, segundo Lourenço Filho, não seria apenas necessário
respeitar a diferenciação quantitativa: “O menino não é só mais capaz   
ou menos capaz em relação à idade. Cada criança apresenta capacidades  
específica: é observadora ou reflexiva; intelectual ou técnica”. Disto  
decorreria a “correspondente necessidade de especialização do trabalho  
e conseqüente classificação escolar”. A escola sob medida de Claparède  
seria a expressão desta necessidade, propondo-se não somente a 

hierarquizar, mas a diferençar também.


A concepção da escola como meio a ser organizado por máximas 
similares às da racionalização do trabalho industrial não significou  
apenas valorização de providências do tipo aludido. Tal concepção  
também funcionou como crivo de avaliação do alcance pedagógico de  
propostas mais globais que visavam redefinir o processo mesmo do  
ensino, a natureza da relação professor-aluno. Valorizando a liberdade  
do educando, Barbosa de Oliveira, por exemplo, prescrevia-lhe  
limites, de modo que ela não resultasse em “ um esforço inútil e um
tempo perdido ”. Para ele, o trabalho infantil nas escolas deveria ser  
 
organizado de modo a “ guiar a liberdade para que o máximo de 
 fr u tos ” fosse “ obtido com um mínimo de tempo e esforço perdidos .” (A 
Unificação da Escola Normal)  Isto significava não somente prescrever 
normas de organização das atividades escolares, mas também postular

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 42/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 43/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

54  Marta Maria Chagas de Carvalho

proposta, como fez a Segunda Conferência, tentando preservar a 


autonomia estadual e aprovando a realização de um acordo entre os  
governos estaduais e Federal que assentasse um “ plano de educação
moral teórica e prática em todas as escolas normais brasileiras,   
integrando as mesmas finalidades humanas e nacionais.” (Anais da  
Segunda Conferência Nacional de Educação)   O que importava era 
assegurar que “ um espirito comum, um estado de ânimo acionar’’'    
impregnasse, pela ação desses “ organizadores da alma popular ”, o 
trabalho escolar.

O tema da organização do trabalho condensava também


expectativas de fixação do homem ao campo, “organizando” desta forma 
as populações. Nesta acepção, a máxima “O homem certo no lugar certo” 
significava não a adequação do trabalhador a uma determinada ocupação  
industrial, mas expectativas quanto a uma distribuição “racional” da 
população pelas atividades rurais e urbanas. Assim pensada, a questão  
traduzia-se na valorização da chamada Escola Regional. Nesta acepção, o  
tema tinha conotações românticas de idealização utópica da vida 
campestre. Imagens da honradez, da simplicidade, da saúde figuravam
virtudes rurais, por oposição idílica a representações da cidade como  
 
vício, corrupção e insalubridade. A escola rural era uma espécie de 
antídoto largamente receitado contra o “ congestionamento das cidades ” 
e “o  pauperismo urbano com seus perniciosos efeitos .” (A Educação  
Rural) Abrir-se ao influxo da vida campestre era o que se propunha  
como recurso disciplinar da escola rural. Quanto à escola adaptada ao  
meio urbano, era comum a expectativa de que viesse “ combater, ou
 pelo menos atenuar em seus efeitos morais, essa vida tumultuosa,  
corrosiva, ávida de prazeres ”, com os recursos oferecidos pela  
moderna pedagogia (A Escola Ativa nos Centros Urbanos).
A regionalização como instrumento de alteração que Fernando  
Magalhães entendia por “distribuição humana desordenada” não poderia, 
entretanto, comprometer a função homogeneizadora da escola. No  
 
programa nacionalista
da regionalização coma oelaque
reservado, era necessário
se propunha conciliar
como função vantagens
essencial da 
escola primária: “a homogeneização necessária dos indivíduos como  
membros de uma comunhão nacionaP\   na formulação de Lourenço 
Filho. A escola de civismo deveria garantir a unidade política do país  
inculcando “em todas as crianças brasileiras idéias e sentimentos

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 44/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 AEscola e a República e Outros Ensaios 55

necessários à própria existência da nacionalidade ” (A Uniformização  


do Ensino no Brasil).
A nostalgia romântica da sociedade agrária que perpassa o
discurso dos apologistas da escola rural não era partilhada por todos os  
 
organizadores da ABE. Para o grupo de Vicente Licínio Cardoso e 
Ferdinando Labouriau, a cidade não se apresentava como signo da 
dissolução, mas, ao contrário, como emblema do Progresso. Foi,  
entretanto, aquela nostalgia que imprimiu sua marca na atuação da ABE  
na cidade do Rio de Janeiro. Essa nostalgia não deve iludir: ao formular-  
se como valorização de determinados comportamentos, funcionava como
proposta de disciplinamento adequada ao mundo da fábrica. Idealizações 
utópicas das virtudes moralizadoras da vida campestre equivalem, desta  
perspectiva, aos signos futuristas de dinamismo com que se enaltecia o  
modo de vida moderno de que a cidade é o palco. O bucolismo era  
encenado articulando projeto de disciplinamento das populações urbanas  
sob o "molde das virtudes “higiênicas” de que o trabalhador rural 
idealizado era o protótipo. Asseio, Temperança, Laboriosidade - virtudes 
higiênicas que, nessas idealizações, somente a vida rural poderia propiciar
- eram virtudes capazes de produzir corpos e mentes disciplinados no  
mundo da fábrica. Equivaliam, como se disse, aos signos modemizadores  
com que um novo ritmo de vida era proposto, ritmo de que a máquina  
era a metáfora e o modelo a regular o cotidiano das populações urbanas.
A atuação da ABE na cidade do Rio de Janeiro modulou-se  
principalmente como resistência moralizadora ao mal urbano. Pregações, 
festas pedagógicas, comemorações cívicas, controle do lazer por
procedimentos vários, constituição de Círculos de Pais destinados a 
 
ampliar o raio de influência da escola, medidas de proteção à Infância
- tais iniciativas tinham com o denominador comum o emp enho na 
moralização dos costumes citadinos. A elas somente se contrapunham  
as promovidas pela Seção do Ensino Superior do Departamento  
carioca da AB E - seção em que se aglutinava o grupo de Labouriau -  
em que a tônica era a promoção de cursos e conferências de alta
cultura , numa tentativa de demonstração prática da viabilidade do    
ensino universitário no país. Mas a presença de expressivo número de  
militantes católicos na Associação deu à entidade o caráter de  
resistência moral referido. É por isso interessante reter a especificidade  
do caráter que esse grupo dava à sua atuação.

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 45/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

56  Marta Maria Chagas de Carvalho

Em julho de 1929, Fernando Magalhães, líder do grupo católico  


sediado na ABE carioca, submete ao Conselho Diretor da Associação  
um  pro jeto de organização social   cometido por D. Amélia de Rezende  
Martins, a ser desenv olvid o com o A ção Social Brasileira. A autora já  
fizera sentir sua presença'no círculo da ABE propondo, em 1927, na  
Primeira Conferência Nacional de Educação, que o ensino religioso  
fundado na doutrina católica integrasse o programa das escolas  
oficiais. Mais tarde, em 1931, D. Amélia também seria a responsável pela  
área social da Liga de Defesa Nacional, a convite do mesmo Fernando
Magalhães, então presidente do órgão. D. Amélia, contudo, não integrava 
os órgãos diretores da Associação, nem se destacava como sócia atuante.
Submetido à apreciação do Conselho, o projeto foi agraciado  
com um voto de apoio à idéia “ generosa e útiP\  A maior parte do  
Conselho subscreveu, em agosto de 1929, os estatutos da Ação Social  
Brasileira, sociedade civil por eles instituída com sede no Rio de Janeiro,  
 
 
"tendo aproveitando,
 Brasil, por objetivo auxiliando,
coordenar eampliando
desenvolver toda a Ação
e completando Social no
as iniciativas
 já existentes, especialmente em beneficio da educação e da assistência ”.
Mesmo que se tenha em conta uma provável condescendência  
do Conselho às boas intenções de D. Amélia, o projeto referido  
interessa aqui por hiperbolizar o tipo de redução de cunho moralista  
operada na identificação do que é nomeado questão social   e na 
constituição concomitante de um campo de ação educacional, permitindo 
elucidar o significado das práticas da ABE na cidade do Rio de Janeiro.
Montado como enumeração e exemplos de ação benemérita, o  
documento pretendia estar apresentando uma solução global para a 
chamada questão social. Curiosamente, entretanto, justapunha sugestões  
de divertimentos “sociais” e “populares”, com os quais D. Amélia,  
apaziguando sua aflição de observadora preocupada, esperava solucionar  
o ócio inoperante do operário e a dissolução dos costumes da alta  
 
sociedade. Destanamaneira,
medidaa em
leitura
que donão
projeto produz um princípio
efeito de
incongruência, obedece a um  
hierárquico de ordenação e adequação discursivas: D. Amélia dispõe  
seu texto quase que por livre associação, de modo que um enunciado  
como “As mães não sabem que divertimentos proporcionar aos  
rapazes pa ra afastá-los das mesas de jogo, dos bilhares públicos, do  
cabaret, do mau cinema, de tudo mais que não preciso citar, de todas

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 46/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios 57

as diversões, enfim, verdadeiras escolas do vício...”  coexiste ccm  


as sarjetas continuam cheias de folh as e pap éis que vão entupir os
 
raios com a primeira chuva ”, “é impraticável e esfalfante, a meu ver,  
 para o professorado daqui, com o nosso clima deprimente, levar   
turmas de alunos a visitar fábricas, museus, jardins zoológicos,  
observatórios etc”  e “Os literatos enchem as nossas livrarias de uma  
literatura perversa”  ou, ainda, “A Ação Social terá em vista ampliar   
 sempre os seus fins, cuidará da questão dos prisioneiros, onde o  
 
 problema não estiver ainda resolvido, e auxiliará, por exemplo, com
 seus film s, as Academias Superiores de Ciências e Artes e também a
Saúde Pública ”.
Na dispersão desses objetivos, configura-se uma proliferação  
de questões que estariam a exigir solução urgente, segundo D. Amélia.  
A organização da Ação Social Brasileira pretendia superar a situação  
de impotência em que se encontravam as senhoras beneficentes:

 As fe sta s de caridade caíram em desuso, ninguém  


mais se interessa por essas miscelâneas, que dão um trabalho  
insano para serem organizadas e estão irremediavelmente  
 sujeitas à mais severa crítica. Os chás j á estão cansando,  
muita gente deles se esquiva, e muita gente lamenta não po de r   
 fa zer outro tanto. A festa da flo r já está muito explorada,  
apresentando grandes desvantagens, e vai caindo, pela sua  
 
repetição, na antipatia do público, que se enerva de ter que
 parar, em seu caminho, e abrir a carteira. As tômbolas e as
quermesses já fizera m seu tempo e hoje só dão resultado em  
centros menores. 0 que resta pa ra fa ze r viver as obras sociais?

Em sua falta de coesão e efeito ridículo, o documento oe D.  


Amélia exibe-se à leitura como espécie de rata de um bom tom  
discursivo presente nos mecanismos de censura de discursos mais
elaborados. Nestes, a disposição do que se diz prevê adequação à 
recepção, impedindo que, nesta, a “verdade” do discurso possa ser  
comprometida ao evidenciar-se em sua mera particularidade. Desta  
maneira, espécie de lapso discursivo cuja inépcia faz ver o recalcado  
de outros discursos mais elaborados, o documento de D. Amélia  
permite ler o que se pretendia apto.  Por seu caráter de coisa secundária,

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 47/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

58  Maria Maria Chagas de Carvalho

explicita seus limites não só de coisa mal feita e mal conseguida mas, 
principalmente, os limites dos vários elementos de que se apropria e 
que, articulados sem inépcia, constituíam ajusta medida, o tom certo e  
verossímil do bom senso educacional.
Na apresentação que fez do projeto ao Conselho, D. Amélia de 
Rezende Martins iniciava atribuindo à Associação Brasileira de Educação  
o caráter de organização de finalidade similar à da que pretendia criar:

 
O empreendimento que apresento ao vosso estudo não
é mais uma fundação p ara cuidar das mesmas coisas d 2 que já
 se ocupam algumas das nossas organizações sociais, entre as  
quais avulta, com brilho intenso, a A.B.E. (...) As Senhoras  
 são as mesmas que trabalham na A.B.E., como nas escolas,  
como nas demais obras sociais de caráter particular, como em  
instituições de caridade ... A A.B.E., que reúne a nata da  
 
 soberbos, que já se vão realizando aos poucos. (...) Mas o que 
nossa intelectualidade, está no seu papel, levantando planos
 prega a Associação Brasileira de Educação tem que ser  
realizado em grande escala. E   que pretende fazer a Ação  
0

Social Brasileira...

Atribuindo à ABE finalidade similar à do seu projeto - que 


pretendia propor meios mais eficientes que chás, quermesses, tômbolas,  
rifas, festas da flor e atividades congêneres na prestação de serviços de
 
benemerência - D. Amélia evidenciava 0  caráter de obra assistencial 
que, segundo ela, algumas de suas integrantes emprestavam à Associação.  
Suas palavras confirmam impressão, que fica da leitura das atas do  
Conselho Diretor, dos Boletins da ABE e da revista Schola, órgão 
oficial da Associação em 1930-1931, de que a atuação de um grupo  
significativo de mulheres na entidade se fez como ação assistencial.
Prosseguindo sua exposição ao Conselho, D. Amélia
encarregava-se de interpretar algumas das iniciativas da Associação,  
apresentando uma leitura possível de uma dessas iniciativas: seu 
compromisso com a chamada questão social.

 A A.B.E., por exemplo, guiará a educação social do  


operariado, pelo seu Círculo de Pais: a Ação Social Brasileira

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 48/57
I

8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios  59

 
 
 proporcionará um teto
em casas de caixas aos infelizes
de querosene, que vegetam
cobertas nasde
de folhas favelas,
zinco,
verdadeiros aglomerados de tocas ignóbeis, torpes espeluncas,  
verdadeiros antros de miséria fís ica e moral, onde pululam as  
crianças enfezadas e imundas   ... O Círculo de Pais, em boa  
hora lembrado pela A.B.E. e po sto em prática por i/iuitas  
escolas do Distrito Federal, acordará nos pa is de fam ília seus  
deveres pa ra com os filhos, interessá-los-á nos trabalhos  
 
escolares, tornando prestigiados os professores. Poderemos,
entretanto, acreditar que o Círculo de Pais proporcionará
ocupação aos filh os para as horas de lazer ? Pais e mães têm  
 seus dias tomados pela s ocupações que lhes garantem a  
 subsistência, e o que farão crianças fo ra do horário escolar?  
Será essa a hora, será esse o lugar da Ação Social Brasileira,  
que proporcionará diversões inocentes, jogos recreativos e  
 
 para os operários, o que lhes distrairá o espírito, afastando-os 
instrutivos ou brinquedos profissionais, organizando, também,
das tavernas, uma vez terminadas as horas serviço, o que se  
dá ainda com o sol de fora.

Voltada para obra caritativa que objetivava contemplar o  


operariado com formas outras de lazer, desviando-o da taverna e  
quantos outros espaços perniciosos houvesse, à proposta de D. Amélia  
não faltava o interesse de realizar tanta obra com a finalidade de evitar
o que temia como iminente acirramento da questão social : “Não temos 
 
ainda organizada entre nós a questão sociar.   Parecia-lhe que, em  
outros países, havia “ tanta perturbação" porque não teriam acordado 
"em tempo para cuidar problema tão temeroso”  antes que este se  
avolumasse mais. A questão se lhe afigurava como “um form igueiro  
que atacamos aqui e ele irrompe mais longe”.  Era necessário, por isso,  

reunir forças num momento em que “o mundo, convulsionado pelo


espírito de desordem, sente o angustioso desejo de organização”.  Era   
preciso, dizia enfeixando Mussolini na ordem do discurso, imitá-lo: 
"pelo seu prestígio pessoal, diretamente encaminha toda a atividade,  
toda a iniciativa italiana”.  Por isso, propunha que se cuidasse de  
“nossa organização social antes que o descalabro, que nos ameaça,  
chegue a ponto de perturbar a nossa vida econômica, como está

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 49/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

60  MartaMaria Chagas de Carvalho

 sucedendo em outras terras, com as greves sucessivas”. Era necessário, 


por isso, antecipar-se ao “ perig o ”: "Se temos levantes gastamos rios de
dinheiro para sufocá-los”. Seria “mais fá cil prevenir do que remediar   
Calculando que a diferença entre a obra caritativa que se  
antecipava ao perigo e a repressão armada era, talvez, apenas uma questão  
de economia doméstica do país, D. Amélia deslocava abruptamente o 
referencial de seu discurso para a enumeração de “descalabros” de  
todo tipo: crianças gritando pelas ruas e quebrando vidraças; varredores 
 
que não sabemmoças
interessantes; o seu serviço;
de boa crianças da alta
família que se sociedade
degradam sem diversões
a cada dia; 
adolescentes que se perdem nas mesas de jogo ou na cocaína; operários  
que trocam família pela taverna; crianças a dizer inconveniências e a sujar 
calçadas; vitrines, postais e manequins, “tudo exposto com o maior  
atrevimento”; filmes imorais; artistas perversos; professores que 
ganham menos que porteiros; tarjetas postais imorais que vêm da  
Espanha; lares desfeitos; escolas sem material didático adequado;  
circos de cavalinhos com palhaços repugnantes... Contra tão proliferante
perigo, D. Amélia propunha um rol de medidas do tipo: “publicação de 
 
 jogos escola res, instrutivos e recreativos, e de livros de caráter 
educativo em geral”; “publicação de revista para a mocidade escolar”; 
“museu escolar”; “cinema escolar e instrutivo”; “centro de investigação  
pedagógica, científico e artístico”; “diversões para crianças e mocidade,  
para operários e suas famílias”; “exercícios de educação física pela 
ginástica e jogos esportivos”; “música por artistas, amadores e crianças”;
“cursos de artes plásticas”; “comemorações das datas nacionais e festas  
tradicionais”; “feira de diversões”; “colônias de férias”, “vida ao ar 
livre”; “banhos de mar”; “práticas higiênicas” e “todos os ramos das  
obras sociais, educacionais e de assistência”.
Tais prescrições são risíveis, apresentando-se como um 
amontoado heteróclito. Não são inocentes: na sua minuciosa  
insignificância, evidenciam forte expectativa de disciplinamento  
abrangente do cotidiano, na medida em que se exibem como recursos  
de controle da ocupação do tempo livre do operário e do ócio da “alta  
sociedade”, no espaço da cidade.
Reordenação do espaço e redistribuição do tempo, intervenção  
no cotidiano, as receitas de D. Amélia não dispensavam o recurso  
sensibilizad or, persuasivo,, de g osto naturalista, que constituía o

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 50/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios 61

operariado como animalidade e seu modo de vida como sujeira, doença  


e vício. Erradicar “formigueiros pululantes”, “torpes espeluncas”,
“antros de miséria física e moral”, “tocas ignóbeis”, “infelizes que  
vegetam nas favelas”, “crianças enfezadas e imundas” era a missão  
que se propunha à beneficência, sem dispensar, evidentemente, o 
concurso da escola e da polícia. Operando por justapo sição de 
referências e por sua livre associação, o discurso de D. Amélia produz  
um efeito de expansão do significado dessas imagens para a cidade  
 
como um todo. Prisioneiro do imaginário
a sociedadepaturalista, o discurso cpera
uma interpretação em que toda é contaminada pela sujeira,  
pela doença e pelo vício. Nela, a imoralidade da “alta sociedade” 
aparece como sintoma da contaminação da sujeira e da doença operária.  
A imoralidade dos costumes citadinos passa a ser, desta maneira, o  
ponto de incidência principal do “ projeto de organização sociaF'1 de  
Amélia de Rezende Martins. Proporcionar bons “divertimentos  
populares” fornecendo “exemplos de trabalho, de educação e de 
m o r a r   e organizar “divertimentos sociais ” para os filhos da “ alta
 sociedade ” eram, neste sentido, medidas que se equivaliam na 
 
tentativa de “evitar que rios de dinheiro corram para dominar  
levantes e rios de sangue brasileiro encharquem nosso solo”.
Nas iniciativas que marcaram a presença da ABE na cidade do  
Rio de Janeiro na década de 20, evidencia-se propósito similar ao de  
D. Amélia: o de tornar mais abrangente e eficiente a ação escolar no 
disciplinamento do cotidiano- citadino. Tais iniciativas, de que são
exemplares as Semanas de Educação dos anos 20, consistiram em  
práticas comemorativas diversas que foram montadas como celebração  
de condutas ideais na escola, no lar, no trabalho, postulando a 
necessidade da Higiene, da Aplicação, do Devotamento, da Ordem.
A eficiência pedagógica das comemorações festivas escolares  
era, no circulo educacional, a razão de existência de tais práticas, uma  
vez que, na esteira de Gustave Le Bon, entendia-se a educação como  
mecanismo de fazer passar atos do domínio do consciente para o do  
inconsciente.
O valor educativo das festas era, por exemplo, enfatizado por  
Lourenço Filho que, na qualidade de Diretor da Instrução Pública do  
Ceará, determinava em instrução aos professores:

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 51/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

62  Marta Maria Chagas de Carvalho

 As simples comemorações, as fe sta s só valem pelo  


  
caráter educativo de que se revistam, isto é, pe la influência
que possam ter sobre a alma infantil, antes de tudo, e pela
influência que possam ter sobre o meio social em que  
 fu ncio nar a escola.

Educando “ pela representação ou evocação de fa to s dignos de 


 ser imitados ”, as festas forneciam às crianças “oportunidade para gravar, 
indelevelmente, muitas lições proveitosas”. Nelas, a criança começaria
a “ sentir o efeito da sanção social sobre seus atos, pelos aplausos ou   
 sinais de enfado e de críticg que percebe: sente que há um público, um  
conjunto de pessoas que louvam ou reprovam ”. Em muitos casos, as 
festas poderiam “ ter também uma influência direta sobre o espírito  
dos pais".  Quando isto não ocorresse, as festas teriam pelo menos  
influência indireta sobre eles, “elevando a escola e o papel do professor ”.
 
Como lições
as comemorações vividas,  pelas quais o aluno teria o maior iníeresse,
festivas, como as Semanas de Educação, eram incorpo
radas na prática do círculo da ABE ao repertório de medidas inovadoras  
com que se pretendia assegurar maior eficiência ao trabalho escolar.
A introdução de inovações pedagógicas não era dissociável  
dos padrões de etiqueta que modulavam a vida social da ABE. Freqüentar  
ou proferir conferências sobre modernos métodos de ensino, visitar  
exposições pedagógicas, participar de palestras nas quais se relatavam  
inúmeras viagens ao Exterior, recepcionar visitantes estrangeiros, manter
 
correspondência com organizações internacionais, promover espetáculos  
eram acontecimentos sociais equivalentes aos inúmeros jantares  
promovidos pela ABE no  Jock ey Club  Rio ou aos muitos chás dançantes  
e sessões festivas incluídos nos programas das Conferências Nacionais.
A programação das Semanas de Educação na década de 20  
consagrava a cada dia um tipo de celebração: do Mestre, do Lar, do 
Trabalho, da Saúde, da Fraternidade e outros arquétipos. Assim,
palestras, festas, prêmios, competições, inaugurações, exposições eram 
organizados em diversas escolas e locais públicos, cultuando signos de  
autoridade e hierarquia e ritualizando, no espetáculo cívico, modelos  
de comportamento exemplar. Valores burgueses encenados como  
normas disciplinadoras do corpo e do espírito sacralizavam o Lar, a 
Escola, o Mestre, o Dever, a Saúde, fazendo dessas essências objetos

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 52/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A Escola e a República e Outros Ensaios 63

de comemoração programados para dias inteiros. A formação de  


hábitos saudáveis era objeto de atenções especiais. A saúde não era
somente um dos temas preferidos das preleções cívicas nas festividades,   
como também objeto de celebração em inúmeras competições esportivas 
oferecidas em espetáculos como modelos exemplares de comportamento. 
O esporte e a vida saudável simbolizavam a energia, o vigor, a força, a  
operosidade, signos de progresso inscritos no corpo que conhece o  
movimento adequado e útil para cada ato. Preceitos de higiene eram  
divulgados em palestras e folhetos ou constituídos, ainda, pelo
incentivo à organização de Pelotões de Saúde, em preceitos cívicos de  
bom comportamento. O escotism o - fusão exemplar de vida saudável 
e moralizada - era iniciativa que contava com todo o apoio da A3E .
Dar publicidade a modelos de comportamento estabelecendo-  
se padrões que incidiam sobre a vida familiar, as relações de trabalho e  
o lazer no cotidiano urbano foi o denominador comum das práticas  
 
comemorativas da modelares.
expostos são ações ABE carioca.
Seu Nelas,
campo como um museu,
de recorte, os objetos
a pluralidade dos  
comportamentos humanos. A coleção exposta, um conjunto restrito de  
comportamentos tipificados. O efeito geral dessas práticas é, assim, a 
exposição de ações exemplares de uma norma da excelência.
A exposição de ações exemplares dá-se como programação de  
festividades, como roteiros de visitações a objetos oferecidos em  
espetáculo. A ação pode ser diretamente exposta - é o caso, por 
exemplo, da montagem de espetáculos de ginástica, de que participam
 
crianças de diversas escola s - ou indiretamente exposta, quando se 
tematiza, em discursos dados em espetáculo, o que é agir bem na  
escola, no trabalho ou no lar.
As ações expostas à visitação nas programações festivas  
promovidas pela Associação são construídas como objetos exemplares  
pela abstração de todo elemento particularizante que as possa relativizar  
enquanto comportamento simplesmente possível e/ou desejável em
determinada situação e/ou sob certas condições. Sua referência ao  
vivido dá-se como operação de confinamento do cotidiano em espaços  
idealizados: o Lar, a Escola, o Trabalho, objetivados e expostos também,  
no caso, como sínteses ideais das ações que harmonicamente os  
constituem. A operação é hábil: o espectador eventualmente cativo dos  
modelos oferecidos é instado a localizar-se num desses espaços, i<eles

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 53/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

64  Marta Maria Chagas de Carvalho

encontrando a cena indispensável para o sentido de suas ações. 


Constituídos como lugares de inclusão do indivíduo, o Lar, a Escola e  
o Trabalho o são, também, pela mesma operação, como instâncias 
excludentemente formadoras do social. Produz-se uma representação  
do social como idealidade reguladora: lugares sociais têm sua 
configuração delineada idealmente, de modo que neles possam ser  
situados os indivíduos particulares, como adequação a um tipo, e de 
modo que outros lugares - com o a rua ou o botequim, por exem plo -  
sejam expurgados na representação que simultaneamente os inclui.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANAIS DA SEGUNDA CONFERÊNCIA NACIONAL DE 


EDUCAÇÃO. In:  Minas Gerais,  Órgão Oficial dos Poderes do Estado,  

Belo Horizonte, 1928.


ANTUNHA, Heládio.  A instrução pública no Estado de São Paulo.  A 
Reforma de 1920. São Paulo: Faculdade de Educação - USP, 1976 
(Estudos e Documentos, 12).
AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra medo branco -  O Negro  
no Imaginário das Elites. Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
 
AZEVEDO,
1943. Fernando de.  A cultura brasileira.  Rio de Janeiro: IBGE,

BACKEUSER, E. “A escola ativa nos centros urbanos”. In:  A Escola 


 Regional.   Rio de Janeiro: Biblioteca da Associação Brasileira de  
Educação, 1931.
BOSI, Alfredo. “A escravidão entre dois liberalismos”.  Estudos 
 Avançados.   São Paulo: IEA/Codac - USP, v. 2, n. 3, set.-dez. 1988.
CARDOSO, Vicente Licínio. “À Margem da República”. In: LEÃO  
CARNEIRO et al.  A margem da história da República  (Ideais, crenças  
e afirmações. Inquérito por escritores da geração nascida com a  
República). Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1928.
CARVALHO, José Murilo de. “Forças armadas na Primeira República: o  
poder desestabilizador”. In: FAUSTO, Bóris (Org.).  História Geral da

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 54/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

 A'Escola e a República e Outros Ensaios 65

Civilização Brasileira.  Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977 [O Brasil 


Republicano-Sociedade e Instituições (1889-1930)], v. 2, t. III.
COUTO, Miguel.  No Brasil só há um problema nacional:   a educação do  
povo. Rio de Janeiro: Tip. Jornal do Comércio, 1927.
DÓRIA, Sampaio. “Carta aberta ao Dr. Oscar Thompson, em resposta  
ao ofício sobre como resolver, nas condições atuais, o problema do  
analfabetismo”.  Anuário do Estado de São Paulo.  São Paulo: Augusto  
Siqueira & Cia., 1918.
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem   (A Origem do Trabalho  
Livre no Brasil). São Paulo: Brasiliense, 1987.
LESS A, Gustavo. “O papel dos grupos familiares na educação”. Schola 
(Órgão da ABR). Rio de Janeiro: ABE, ano I, n. 7, agosto de 1930.
LOURENÇO FILHO, M. B. “As festas escolares”.  Revista da Socie
 
1924.de Educação.  São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., v. II, n. 4, fev.
dade

 ______. “A uniform ização do ensino no Braiil” .  Educação.  Órgão da


Diretoria-Geral da Instrução Pública e da Sociedade de Educação de  
São Paulo, São Paulo, v. II, n. 3, março 1928.
 ______. “A Escola N ova”.  Educação , Órgão da Diretoria-Geral da
Instrução Pública do Estado de São Paulo, São Paulo, v. VII, n. 3, jun. 
1929.
 ______ . “Discurso ria Abertura da VII Conferência Nacional de
Educação” CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 7, 1935.  
 Anais...  Rio de Janeiro: ABE, 1935.
MAGALHÃES, Fernando. “A emancipação mental do Brasil pelo  
ensino rural”. In:  A Escola Regional.  Rio de Janeiro: Biblioteca da 
ABE/Imprensa Nacional, 1931.
MARTINS, Amélia Resende.  Ação social brasileira.  Rio de Janeiro: 
Ed. do Autor, 1929.
NAGLE, Jorge.  Educação e sociedade na Primeira República , São  
Paulo: EPU; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1974.
OLIVEIRA, C. A. Barbosa de. “A unificação do Ensino .Normal”.

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 55/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

66  Marta Maria Chagas de Carvalho

Tese apresentada à Segunda Conferência Nacional de Educação.  


 Jorn al do Comércio , Rio de Janeiro, 18 nov. 1928.
 ______ . UA Escola Regional nos seus aspectos urbanos, Rural,
Marítimo e Fluvial”.  A Escola Regional.  Rio de Janeiro: Biblioteca da 
Associação Brasileira de Educação/Imprensa Nacional, 1931.
 ______. O mundo contemporâneo e a engenharia   (Ensaio ético-
filosófico sobre esta profissão). São Paulo, 1934 (Separata do Boletim  

do Instituto de Engenharia)
PAIVA, Vanilda Pereira.  Educação po pular e educação de adultos:  
Contribuição à História da Educação Brasileira. São Paulo: Edições  
Loyola, 1973.
PENN A, Belisário. “A educação rural - O problema brasileiro e sua 
enorme importância social e econômica”.  A Escola Regional,  Rio de 
Janeiro: Biblioteca da Associação Brasileira de Educação/Imprensa  
Nacional, 1931.
 ______. “Solução de um problema vital”. In: ALBERTO, Armanda
Al varo et al.  A Escola Regional de Meriti.  Rio de Janeiro: CBPN/Inep, 
1968.
PIMENTA, Mattos.  Pelo Brasil.  Rio de Janeiro: Pongetti & Cia., 1928.
RODRIGUES, João Lourenço. Um retrospecto  (Alguns subsídios para a 
história pragmática do ensino público em São Paulo). São Paulo: Instituto
Anna Rosa, 1930.  
SILVA, Heitor Lyra da. “Discurso-programa da Associação Brasileira  
de Educação, pronunciado a 19 de novembro de 1925”. In:  In Memoriam 
 Heitor Lyra da Silva,  Rio de Janeiro: Mendonça Machado & Cia, s/d.
 _____ . “Missão educacional”. In: ALBERTO, Armanda Álvaro et al.
 A Escola Regional de Meriti.   Rio de Janeiro: CBPN/lnep, 1968.

SODRÉ, A. A. de Azevedo. O problema da Educação Nacional.   Rio  


de Janeiro: Tip. Jornal do Comércio, 1926.
THOMPSON, Oscar. “Relatório apresentado ao exmo. Sr. Dr. Secretário  
do Interior por Oscar Thompson, Diretor-Geral da Instrução Pública”. 
 Anuário do Ensino do Estado de São Paulo.  São Paulo: Augusto  
Siqueira & Cia, 1918.

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 56/57
8/19/2019 CARVALHO, Marta - A escola e a república2.pdf

PARTE 2

O TERRITÓRIO DE CONSENSO 
E A DEMARCAÇÃO DO 
PERIGO: LIMITES POLÍTICOS 
DA INOVAÇÃO

http://slidepdf.com/reader/full/carvalho-marta-a-escola-e-a-republica2pdf 57/57

Você também pode gostar