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.CADERNOS O INFANTIL

Uma experiência em
pedagogia de projetos
....~ .....,,,
--
CADERNO ~-

1
- -
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-
---:::·---
~

INFANTIL

Lúcia Lima -da Fonseca


~
~
-
Susana lla~I V'itira C111ha

3ª Edição .
~~ Editora
V Mediação
O Universo da Sala de Aula é
uma publicação que vem dar
um colorido especial aos
Cadernos Educação Infantil.
Os volumes 1 a 6 dessa coleção
tratam de concepções teóricas e
metodológicas que embasam
uma prática educativa de
respeito à ~riança em
seu tempo e espaço,
sugerindo aos educadores
observá-la, sem vigiá-la,
"iluminando-se por elas".
Coerente a essa concepção,
alguns autores desses cadernos
vêm se referindo à Pedagogia
de Projetos, no sentido da
organização de um trabalho
interdisciplinar, onde o papel
do professor é o de mediador, Uma experiência em
partindo da criança e a
provocando a novas pedagogia de projetos
descobertas.
O Caderno 7 vem justamente
concretizar esses caminhos
teóricos sugeridos, trazendo
um relato vivo e dinâmico de
um semestre de atividades CADERNO INFANTIL
numa escola infantil.
Lúcia, uma jovem e já
experiente educadora, brinda-
nos com um recorte de sua
experiência como professora no
CID (Centro Integrado de
Desenvolvimento), trabalhando Lúcia Lima da Fonseca ·
com crianças de 4 a 6 anos.
A autora permite que se
percorra, com ela e sua turma,
o desenrolar dos projetos
pedagógicos, vivendo os
nahuais conflitos cognitivos e
•1
1. ~ Editora ·
Mediação
Copyright© by Editora Mediação 1999

Coordenação Editorial:
Jussara Hoffmann

Revisão do Texto:
Rosa Suzana Ferreira

Capa e Editoração Eletrônica:


Uiadia Rocha

Impressão:
Evangraf

F676u Fonseca, Lúcic~ Lima da


O universo da sala de aula: uma experiência em pedago-
gia de projetos/Lúcia Lima da Fonseca. - Porto Alegre:
Mediação, 1999. À minha família,, em especialao meupai eà minha
100 p. (Cadernos Educação Infantil, v. 7) mãe,,pelas oportunidades epelo apoio.
A todos do Centro Integrado de Desenvolvimento/
1. Educação infantil. 2. Ensino pré-escolar. 3. Ensino de Ci- em especialà Chefia eà Lia que sempre acredita-
ências. 4. Construção do conhecimento - Criança. 5. Projeto raininvestiram e apostaram na minha fonnaçãoe
pedagógico; I. Título. II. Série. na elaboração desteprojeto.,
À Beatriz e à Cláudia que através das supervisões
CDU 373.2
contribuírampara que este trabalho se co.f!cretizas-
Catalogação na publicação. se com êxito.,
Bibliotecária Maria Amazilia Penna de Moraes Ferlini - CRB-10/449 Àfanaína/ Femanda e Daniela/ colegas eparceiras
com quem esta.beleci trocas sigllificativas,,
•Os desenhos e as fotos da capa e das aberturas são das crianças do Centro Integrado de Desenvolvimento/ Às crianças do nívelintegrado e e~ que são os
CID, em atividades orientadas pela autora. A colocação das fotos e desenhos foram gentilmente autorizadas
pela instituição e pelos pais.
verdadeiros autores desta história/ e aos seus
•Os desenhos da capa são da autoria do Rafael e da julia. familiarespela confiança.
À Susana pela orientação/ supervisão e respeito ao

•1
I,~ Editora
Mediação
Av. Independência, 944 - Independência
trabalho.

CEP 90035-072 - Porto Alegre - RS


Fone/Fax: (51) 311-7177
·site: www.mediacao.com.br - e-mail: mediacao@zaz.com.br

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Sumário

Apresentação ..................................................... 7

Contextualização da escola e da turma


1. A escola ..................................................................................... 11
2. A tunna ..................................................................................... 13
3. O universo da sala de aula ........................................................ 16
4. O dia dojomal ........................................................................... 20

1 a semana de atividades
5. A Semana da Pátria no context.o do PrQjeto Universo .................. 27
6. A visita ao planetário ................................................................. 31
7. A chegada de Vinícíus ............................................................... 32

2ª e 3ª semana de atividades
8. Caça ao tesouro ......................................................................... 37
9. Finalmente, o tesouro ................................................................ 40
10. Semana Farroupilha .................................................................. 42

4ª a 6ª semana de atividades
11. A preservação da natureza começa com a separação do lixo ...... 4 7
12. Ainda... o lixo ............................................................................ 50
13. Quando alguém tem uma doença grave ............: ......................... 52
14. Diferenças ................................................................................. 56

7ª a 9ª semana de atividades
15. Comemorações do dia da criança: acantonamento ..................... 61
16. Show de mágica ......................................................................... 66
1 7. Halloween ................................................................................. 68
10ª a 12ª semana de atividades
18. Preservação ou destruição ......................................................... 75 Apresentação
19. AMatemática ............................................................................. 77
20. A visita dos dinossauros ....................................................... ·· · ·· 80
21. Refletindo sobre a construção da escrita ................................... 82
- Professora, como que tu disse que a Terra tá lá no céu se nós
22. Inter-relação a partir da preservação da natureza ...................... 84 estamos aqui em baixo?

Fim de semestre - Se nós não estamos dentro da Terra, mas sim em cima, como é
23. A chave do saber ....................................................................... 89 que a gente não cai?
24. Crescimentos ............................................................................. 92
25. Caminhada do grupo .............. , .................................................. 93 Partindo destas indagações, tão comuns em crianças de 4 a 6
anos, Lúcia, professora do CID (Centro Integrado de Desenvolvi-
Referências Bibliográficas ............................... 99
mento - Porto Alegre/RS) e estagiária do 8º semestre do Curso de
Pedagogia FACED / UFRGS - Habilitação Pré-escola, foi constru-
indo sensivelmente seu Projeto Pedagógico desenvolvido no pe-
ríodo de agosto a dezembro de 1998.
Como orientadora de Lúcia, tive o prazer de acompanhá-la
nesta caminhada de descobertas no UNIVERSO DA SALA DE
AULA. Uma jornada que não ficou restrita ao espaço físico da
sala ou da escola, mas vendo o conhecimento ~xpandir-se através
das galáxias com Lirax e Vegaluz no Planetário da UFRGS, com
os dinossauros gaúchos, com a chegada de um aluno de
Florianópolis, com as questões de vida/morte do AVC do avô de
Érika, com a preservação e destruição da natureza, com o show
de mágica, com o "acantonamento", entre outros tantos conteú-
dos e temas sonhos e vivências que foram surgindo em momen-
tos variados do cotidiano desta classe de Educação Infantil.
Seu trabalho foi sendo construído e estruturado em sintonia
com o grupo de crianças, conforme os interesses delas e as leitu-
ras que Lúcia realizava. Destas leituras atentas, sobre o conheci-
mento e as hipóteses levantadas pelas crianças, foi sendo
estruturado um projeto de trabalho que abarcava o que elas sabi-
am e o que elas deveriam saber sobre o mundo.
A preservação/ destruição do planeta foi o Projeto- Mãe, no
sentido de que a partir dele outros projetos se configuraram, o
r
1

"pano de fundo" onde todos "costuravam" as hipóteses indivi-


duais e grupais com os objetos dos conhecimentos socioculturais
e científicos acumulados pela humanidade. Num sentido figura-
do, era como uma linha (in)visível sendo tramada por todos no
"pano de fundo". Ora , Lúcia estava com os instrumentos: agu- Contextualização da escola
lhas e linhas (referencial teórico, conteúdos e encaminhamento
de propostas pedagógicas). Ora, as crianças é que traziam linhas
eda turma
com cores e texturas diferentes (conteúdos emergentes e situa-
ções de ensino-aprendizagem) para compor este lindo e variado
bordado.
A riqueza deste "bordado" reside tanto em sua flexibilidade
(advindas das observações e avaliações permanentes das situa-
ções que se apresentavam ) , quanto na abertura para temáticas
muitas vezes delicadas de serem tratadas na Educação Infantil,
como por exemplo a morte, a alma, o finito e o infinito ...
Lúcia, com seu olhar atento e escuta sensível e minuciosa das
crianças, munia-se de sua agulha lúdica/prazerosa e "costura-
va" a morte física com a germinação das plantas, com o
desmatamento do planeta, ou com o Halloween ou com a coleta
seletiva do lixo orgânico e inorgânico.
Convido os leitores e leitoras a percorrerem as linhas
multicoloridas que compõem esta urdidura. Certamente, " ...nin-
guém estará igual ao que era antes ... ", como diz Lúcia ao referir-
se à construção do conhecimento-das crianças. Após a leitura deste
relato de estágio, os educadores infantis não serão os mesmos,
pois terão participado de uma caminhada sensível no UNIVER- A twma: pausa parafoto
SO DA SALA DE AULA e poderão, quem sabe, acrescentar no-
vas tramas ao seus próprios teares.
Observar não é invadir o ·espaço do outro,
Susana Rangel Vieira da Cunha sem pauta, sem planejamento, nem devolução, e,
Professora Assistente na Área de Educação Infantil muito menos sem encontro marcado ...
FACED /UFRGS Observar uma sit1!'<1fão pedagógica é ol~á-la, fitá-la
. mira-la, para ser iluminada por ela.
Observar um.a situação pedagógica não é vigiá-la,
mas sim fazer vigília por ~la, isto é, estar e
perman_ecer aco~dado por ela, na cumplicidade da
construçao do pro1eto, na cumplicidade pedagógica.
(Madalena Freire We.ffort, 1996: 14)
1
A escola

O Centro Integrado de Desenvolvimento (CID) é uma escola


e uma clínica que atua com Educação Infantil (Berçário e Níveis)
~Ensino Fundamental (1 ªsérie). Foi fundada em 1990 e sua filo-
sofia de trabalho é a integração de crianças com necessidades
educativas especiais na escola regular. Cabe ressaltar que na. épo-
ca não existia legislação que permitisse este tipo de integração
em creches e pré-escolas, foi preciso criar um projeto que foi ana-
lisado e aprovado pela Secretaria da Saúde e Juizado de Meno-
res.
Por se tratar de um projeto pioneiro é constantemente anali-
sado, repensado e aprimorado pela equipe de profissionais do
CID. Atualmente a clientela-alvo são todas as crianças ditas nor-
mais e as crianças com necessidades educativas especiais que te-
nham condições de interagir em um grupo.
As crianças com necessidades educativas .especiais que che-
gam até o CID passam por uma triagem realizada pela terapeuta
ocupacional e pela psicopedagoga que, em encontros com a cri-
ança e com os familiares, verificam se há possibilidade de ingres-
sar na escola e em qual turma. Se verificam que não há possibili-
dade de a criança entrar para a nossa proposta pedagógica, indi-
cam outras escolas e/ ou um acompanhamento terapêutico.
O CID parte do pressuposto de que todos· os envolvidos no
processo pedagógico são sujeitos da sua história, seres singulares
e que como tal devem ser valorizados e respeitados. Para tanto as
turmas (tanto de Educação Infantil quanto do Ensino.Fundamen-
tal) têm no máximo 14 crianças, com isto o trabalho tornar-se mais
autêntico, mais próximo do que é desejo/necessidade daquele
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grupo e de cada um dos seus integrantes.
,,1
Por acreditar que a integração somente se efetiva quando há
uma equipe preparada para lidar com as diferenças, o centro re-

...l...._
12 Lúcia Lima da Fonseca
O universo da sala de aula 13
aliza um trabalho conjunto entre os professores e os técnicos dá constantemente através das supervisões. Os Conselhos de Clas-
(terapeutas ocupacionais, psicopedagoga, psicanalista, se são. semestrais e envolvem todos os profissionais que têm al-
fonoaudióloga e nutricionista) como forma de subsidiar e sus-
gum hpo de contato com a turma, principalmente a professora,
tenfar o trabalho de sala de aula. Esta interlocução se dá através
os professores de aulas especializadas e as supervisoras. A partir
de reuniões setorizadas, reunião geral e de supervisão periódica das discussões do Conselho de Classe, as professoras elaboram
dos professores com a psicanalista e com a psicopedagoga. Neste Parecere~_Descritivos de seus alunos, que são entregues aos pais
espaço de supervisão, é possível trabalhar sobre os impasses do
em re~mao de turma. Nesta reunião é apresentado o trabalho
cotidiano, sobre o movimento do grupo, de cada aluno em parti-
~ue f01 ~esenvolvido no semestre e é também um espaço de
cular e da própria professora, sendo possível assim que esta te- mtegraçao entre pais e professores.
nha um olhar constantemente renovado frente às situações diári-
as.
Outro aspecto fundamental na estrutura do CID é o de reco- 2
nhecer os limites do trabalho de sala de aula. Portanto indicamos A turma
que os alunos com necessidades educativas especiais tenham tam-
bém algum tipo de atendimento clínico individual, pois este con- . A turma em questão chama-se Nível Integrado C e D. No iní-
tribui para o seu desenvolvimento global e para a melhor inser- c1~ do ano, eram duas turmas distintas, o Nível Integrado C e 0
ção da criança na sala de aula. Atualmente os profissionais da Nivel Integrado D, mas devido a um remanejamento interno op-
equipe técnica que assessoram o trabalho pedagógico desenvol- t~n:~s por unir. as du~s turmas como forma de aumentar as pos-
vido na escola também atuam clinicamente, atendendo a cliente- s1b1hdad~: de mteraçao, uma vez que eram dois grupos peque-
la do CID e também pacientes particulares. nos. A umao das turmas se deu em maio e a partir de então trata-
se de um único grupo.
Proposta pedagógica A faixa etária das crianças é de 4 a 6 anos, ou de desenvolvi-
mento global referente a estas idades. Atualmente conta com 12
A proposta pedagógica da escola está fundamentada nas con- cri~nças: Amanda, Carina, Clara, Erika, Gustavo, Julia, Luiz
cepções construtivistas/interacionistas do desenvolvimento e con- Felipe, Rafael, Renata, Roberto, Sofia, Vinicius.
templa a Pedagogia de Projetos. Os projetos permitem um traba- , Renata e Vinicius são crianças com necessidades educativas
lho de forma interdisciplinar, abrangendo as diferentes áreas do especiais. Rena ta tem seqüelas de hidrocefalia, sendo que não
conhecimento e percebendo as relações entre elas. escuta de um ouvi~o nem enxerga de um olho, o que comprome-
O planejamento contempla todos os envolvidos no processo. te a sua concentraçao em sala de aula. Já freqqenta escola há três
O papel do professor é de mediar e também de acrescentar algo anos, sendo es~e .ºprimeiro ano que está aqui no CID. Acompa-
mais do que é dado inicialmente, como forma de enriquecer o nh~ todas ~s atividades ~a rotina, sejam elas livres ou dirigidas, e
trabalho e suscitar discussões. esta evoluindo no que diz respeito à participação efetiva nos tra-
A proposta pedagógica prevê ainda que cada turma conte com balhos d~, sala de ~ul~. Tem ~te1:1dimento clínico com psicóloga e
uma aula especializada, sendo que o turno da manhã tem Educa- fonoaud10loga; nao sao profiss10nais do CID, mas nós já entra-
ção Musical e o turno da tarde tem Educação Física ou mos em contato com a clínica para formalizai: reuniões de "troca"
Psicomotricidade Relacional. com a escola.
A avaliação do processo e do envolvimento de cada aluno se Vinicius veio de Florianópolis e está freqüentando a turma

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14 Lúcia Lima da Fonseca · O universo da sala de aula 15
desde o início de setembro; Ele apresenta uma lesão cerebral, em Como são crianças que têm acesso a uma" cultura diversificada,
nível de corpo caloso, o que compromete o seu desenvolvimento logo passamos a trabalhar com enciclopédias, livros científicos,
global. Já freqüentava escola e realizava atendimentos clínicos fitas de vídeo e informações via Internet.
anteriormente. Aqui está tendo atendimentos clínicos com Os focos do projeto foram os seguintes: a imensidão do Uni-
terapeuta ocupacional, fonoaudióloga e fisioterapeuta. Os aten- verso e as Estrelas; o Sol é uma Estrela; o Sistema Solar; a origem
dimentos de T.0. e Fono são realizados no CID e a proposta é que da Terra (visão científica e cristã); os primeiros habitantes da Ter-
um dos atendimentos de T.O. seja feito em sala de aula, para con- ra, Dinossauros. Atualmente o foco é a preservação da natureza e
tribuir com o processo pedagógico. o nosso país Brasil.
A integração destas duas crianças é algo que está sendo Este é um projeto a longo prazo, mas não é o único trabalho
construído pelo grupo, existem diversos momentos de interação desenvolvido pela turma. Diversos outros assuntos permeiam a
no "brincar", mas não são predominantes. Renata busca os sala de aula, principalmente as datas comemorativas, mas que
subgrupos que se formam nos momentos livres, mas nem sem- são desenvolvidas com menor intensidade.
pre consegue participar realmente da brincadeira que está sendo Segue em anexo um texto que eu escrevi sobre o desenvolvi-
formulada, seja ela de faz-de-conta ou de jogos com regras. Quan- mento do projeto no primeiro semestre.
do não consegue se inserir por não aceitar o papel que os outros
lhe delegam na brincadeira, nem verbalizar esta insatisfação, re- A rotina
corre à professora dizendo que "ninguém deixa ela brincar". Pro-
curo mediar as situações principalmente no sentido de fazê-la Das 7h às 8h30min é feita a recepção no salão da escola com
perceber a brincadeira e buscar como se inserir. Nos jogos com as outras duas turmas da manhã. Neste espaço de tempo, as cri-
regras que eu participo também fica mais tranqüila a inserção, anças que vão chegando podem pegar algum jogo ou livro na
pois fico retomando as regras constantemente. sala. Este é um momento em que a maioria da turma ainda não
Vinicius ainda está adaptando-se ao ambiente e à turma, sen- chegou; as crianças começam a chegar a parti.r das 8h.
do que estão acontecendo as primeiras brincadeiras conjuntas e As 8h30min entramos para a sala. O momento inicial é de
eu ainda estou conhecendo-o e observando as diversas situações organização das mochilas e entrega das cadernetas. Normalmen-
em que se coloca (ou não) para poder mediá-las. te realizamos jogos coletivos até às 9h quando acontece o lanche.
Após o lanche, é o momento de atividades dirigidas, que nor-
Projeto: "O universo" malmente inclui a roda e um trabalho coletivo e/ou individual.
Este momento dura das 9h15min até lüh ou 10h30min, depen-
Este projeto está sendo desenvolvido pelo grupo desde o iní- dendo do dia e da atividade. ·
cio do ano, sendo constantemente reorganizado e reformulado, a Segue o momento de pátio ou atividades livres no salão (em
partir das descobertas e do que mais interessa ao grupo no mo- dias de chuva), até cerca de llhlSmin, quando retornamos à sala,
mento. para higiene e almoço.
O projeto foi proposto por mim a partir das observações do O almoço acontece às llh30min e dura aproximadamente uma
que estava mais evidente nas brincadeiras e nas falas das crian- hora, incluindo a higiene posterior, com escovação de dentes.
ças: situações de vida e de morte, de finito e infinito ... A idéia de 1 O momento posterior ao almoço é de atividades calmas, que
t
trabalhar com o Universo foi aceita pelas crianças que passaram incluem a leitura de histórias, jogos livres ou assistir a vídeos
a contribuir com uma diversidade muito grande de materiais. f (eventualmente).

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16 Lúcia Lima da Fonseca O universo da sala de aula 17

Em cada dia da semana há ainda uma proposta diferenciada: de, pois só conhecedores desta cultura, desta realidade eles po-
Segunda-feira é o dia do trabalho com o jornal. Segue em anexo derão ser agentes de mudança e desenvolvimento. E a partirdes-
um texto que escrevi no final do semestre passado sobre esta ati- ta idéia uma nova pergunta: como conseguir unir o que deseja-
vidade. mos que nossos alunos aprendam, com o interesse e o desejo dos
Na terça-feira acontecem as Aulas de Música, com professor próprios alunos e também com os conteúdos obrigatórios com
especializado, que duram 45 minutos, das lüh às 10h'±5min. que nos deparamos nas escolas?
Na quarta-feira eu tenho supervisão quinzenal com a A partir desta premissa, descrevo um pouco o trabalho que
psicopedagoga, mas como é às 7h não interfere na rotina da tur- vem sendo feito pela turma da qual faço parte como educadora
ma. Estou com um projeto também de caracterizar este dia como. no Centro Integrado de Desenvolvimento, e como venho tentan-
sendo de propostas de jogos envolvendo relações lógico-mate- do responder a estas questões formuladas acima.
máticas. A turma em questão compreende 12 crianças entre 4 a 6 anos.
Quinta-feira é o dia do brinquedo de casa. Além disto é dia A proposta pedagógica da escola contempla a Pedagogia de Pro-
de reunião de professores, ao meio-dia. As crianças neste horá- jetos, na qual "os projetos pedagógicos surgem na relação adul-
rio, das 12h às 13h, ficam com as diretoras da escola, uma vez que to/ criança à medida que o professor é capaz de atribuir significa-
participam da reunião todos os professores, a psicopedagoga e a do à curiosidade despertada por atividades ou assuntos, às per-
psicanalista. guntas feitas, ao que é 'necessário' no seu momento de desenvol-
Sexta-feira é dia em que as crianças podem trazer livros in- vimento." (Hoffmann, 1996: 44) No início do ano, através das brin-
fantis de casa. Normalmente escolhemos um ou d-ois para a leitu- cadeiras e dos questionamentos das crianças, percebi um forte
ra. Neste dia também é realizada a minha supervisão com a psi- interesse nas questões de vida e morte: para onde a pessoa vai
canalista, às llh, assim sendo o almoço deste dia é em conjunto quando morre? O que é alma? Como nascem os bebês? O que é
com a 1ª série. finito e o que é infinito? Como uma coisa pode não ter fim?
A princípio, pensei o quanto seria difícil contemplar estas ques-
3 tões dentro de um projeto de trabalho, por serem muitas delas
questões subjetivas, sem respostas prontas e com diversas inter-
O universo da sala de aula
pretações possíveis. Foi durante uma "roda" em que recorremos
ao dicionário para buscar o significado da palavra infinito que
Quando se pensa em aprendizagem, é preciso deixar claro me veio a idéia de trabalhar com o UNIVERSO, no caso, um exem-
qual nossa concepção sobre este conceito. Segundo Piaget, há uma plo de algo infinito. Este trabalho possibilitaria trabalhar com as
diferença clássica entre desenvolvimento e aprendizagem, na qual questões das crianças de uma forma mais organizada, com um
o primeiro é um processo quase que natural e bem amplo, en- 1 eixo capaz de gerar pesquisas, algumas descobertas e novas in-
quanto que o segundo é algo mais específico. A sala de aula, o terrogações. Partir do amplo para o restrito? ~perguntaram-me
espaço escolar, devido às interações e, principalmente, devido às algumas pessoas. Não, na minha idéia original não;-mas sim con-
1
possibilidades de intervenção do professor, é um local privilegi- templar o desejo das crianças frente a questões que me arrisco a
ado:para que as situações de aprendizagem aconteçam. Mas quais classificar como "as de origem", o que ao mesmo tempo repre-
são elas? O que nós queremos que nossos alunos "aprendam"? sentariam o meu desejo, enquanto educadora daquele grupo, de
Segundo Deheinzelin (1994), é necessário inserir nossos alu- trabalhar com pesquisas, envolvendo-os com atividades para além
nos na cultura, colocá-los em íntimo contato com a nossa realida- 1
dos limites escolares, explorando o que a comunidade tem para
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18 Lúcia Lima da Fonseca O tmiverso da sala de aula 19

contribuir, buscando um conhecimento científico ... Enfim, para- para que as crianças se coloquem nas suas singularidades. Deve-
fraseando Deheinzelin (1994), "juntar a fome com a vontade de mos permitir que as crianças se coloquem dentro do que elas têm
comer". de único, de.especial.
Não é algo muito .complicado para a idade? - foi outra per- Neste sentido, desta~o a importância do espaço de supervi-
gunta que me fizeram. É, é algo muito complicado de se enten- são com o qual posso contar na Escola, no qual a interlocução
der, mas não devido à idade das crianças, mas, sim, por ser um permite uma constante reflexão, leituras e releituras sobre a prá-
assunto dinâmico, difícil, questionável ... tica de sala de aula. Através do debate das situações do cotidia-
Em sala de aula, lancei a proposta, que foi muito bem aceita ( '
no, é possível voltar para a turma com um novo olhar, respeitan-
pelas crianças, e logo passamos a listar as possibilidades de tra- do, compreendendo e trabalhando com a singularidade dos su-
balho deste projeto. As principais foram: jeitos em questão (os alunos, a própria professora e todos os que
- saber o nome dos planetas; fazem parte deste "universo").
- saber mais sobre as estrelas; Nosso trabalho iniciou com a procura de materiais de pesqui-
- descobrir o tamanho da Lua; sa. Os primeiros livros e enciclopédias quem trouxe para a aula
- descobrir o que acontece com a lua de dia e com o sol de foi eu. Logo as crianças começaram a trazer os materiais coletados
noite; em casa, com a ajuda dos pais, que passaram a também investir
- como acontece~
\.
os terremotos, furacões, chuvas, maremo- no nosso projeto, quando perceberam o interesse dos filhos .
tos; As atividades eram de pesquisas, conversas informais, regis-
- como o planeta Terra é dividido. tros através de desenhos e da escrita, painéis.:. Enfim, o projeto
Neste momento, pude perceber a diversidade de concepções estava andando e após centrarmos nossos estudos nas estrelas,
que as crianças apresentavam a respeito destes assuntos. Algu- passamos a enfocar o sistema solar: a importância do Sol, os pla-
mas crianças com idéias bem "científicas", extraídas de progra- netas... ·
mas de TV, como os do canal Discovery ou do Castelo Rá-Tim- Procuro estar atenta a alguns sinais para ayaliar o andamento
Bum, diziam que "estrelas são bolas de fogo", "a Terra está sem- do projeto, sendo que nos momentos informais, nas conversas
pre girando, por isso quando o Sol está iluminando aqui é noite das crianças, colho situações muito interessantes.' Alguns exem-
lá no Japão e quando for dia no Japão será noite aqui" ... Outras plos:
crianças com idéias próprias como "um sobe um desce, um sobe
um desce, troca, troca", referindo-se ao Sol e à Lua. E, ainda, idéi- - Se o Plutão é o planeta mais gelado/ é lá que mora o Papai Noel.
as mais filosóficas como "as estrelas marcam as pessoas que já - Claro que não/ O Papai Noel mora no Pólo Norte que é aqui no
nosso planeta Terra.
morreram" ... - Mas eu vi o Papai Noel de verdade no shoppi:ig.
Saliento que esta diversidade é o que dá vida ao trabalho, é O - Estes dos shoppings não são de verdade...
que permite que haja confronto de idéias, mudanças ou confir- - Prof; como que tu disse que a Terra tá lá no céu se nós estamos
mações de concepções. Este grupo é de 12 crianças, mas poderia aqui em baixo?
ser menor ou maior. Em qualquer grupo sempre vai-se encontrar - Se nós não estamos dentro da Terra/ mas sim em cima/ como é
que a gente não cai?
a heterogeneidade. Aliás, devemos dar espaço para que esta
heterogeneidade apareça. Não existem grupos homogêneos. Se
Este tipo de situação me deixa tranqüila em relação aos efei-
alguém acredita estar frente a um grupo homogêneo, talvez não
tos do projeto. Eu não gostaria que as crianças aceitassem tudo o
esteja conseguindo "ler" o seu grupo ou não está dando espaço
20 Lúcia Lima da Fonseca O universo da sala de aula 21
que nós estamos descobrindo como verdades absolutas, sem ques- que acontecem longe de nós, em outros locais e logo surgiram
tionar, ou sem construir em cima do que estão vendo. Tanto que respostas relacionadas aos meios de comunicação: telefone, jor-
agora que estamos enfocando a origem da Terra, vamos passar nal, televisão ...
para uma discussão bem polêmica, quando confrontarmos a con-
cepção científica com a concepção religiosa, mais especificamen- O jornal
te da Bíblia, sendo que a idéia de trabalhar com a Bíblia surgiu
das próprias crianças. A partir disto, minha proposta foi que trabalhássemos com
Trazer estes recortes da prática de sala de aula, a partir do jornal, para que tivéssemos acesso a diversas novidades. Logo,
projeto Universo, foi uma forma de mostrar como hoje em dia é segunda-feira passou a ser "dia do jornal" e não mais da novida-
preciso trabalhar com as diversas interpretações da realidade, de.
tendo claro que não existem verdades absolutas. E frente a esta A proposta de trabalho com jornal neste semestre foi normal-
forma de perceber os objetos de conhecimento, fica claro também mente a seguinte: olhamos todo jornal, sendo que eu comento
que as conclusões sempre serão pessoais. Cada indivíduo partici- brevemente do que tratam as reportagens, e as crianças escolhem
pante do processo de sala de aula (e incluo aqui o professor) terá qual delas querem que eu leia na íntegra. Algumas vezes eu, in-
o seu crescimento singular. E novamente a questão da tencionalmente, escolho alguma reportagem para ler. A leitura
heterogeneidade aparece. Ninguém estará igual ao que era antes sempre é acompanhada de comentários feitos pelas crianças que,
e nem igual ao seu grupo, o crescimento é pessoal e intransferível. na maior parte das vezes, não conseguem esperar o final da leitu-
ra para falar. Esta característica das crianças é respeitada, sendo
4 que muitas vezes o assunto acaba completamente distorcido do
O dia do jornal original. Porém, em algumas situações, trabalho com reportagens
curtas, fazendo com que o gruyo escute, sem comentários, até o
final. Estes são feitos depois. E importante este processo, pois é
preciso uma postura de ouvinte, para que as crianças consigam
O começo de tudo ...
verdadeiramente concentrar-se no que estão escutando.
Muito interessante de observar é que o interesse das crianças
No CID, as segundas-feiras já são caracterizadas há bastante
por questões" de origem" continua aparecendo fortemente na lei-
tempo por serem "dia da novidade", onde as crianças contam ou
tura do jornal. Os assuntos escolhidos normalmente são sobre nas-
trazem de casa "novidades". Ocorre que, na minha opinião, este
cimentos ou mortes, doenças, personalidades famosas, catástro-
dia estava sendo descaracterizado. As crianças acabavam trazen-
fes em diversas partes do mundo, enfim, sempre sendo possível
do brinquedos ou )foros, ou descrevendo o que haviam feito no
de relacionar com o projeto "O Universo".
final de semana, o que muitas vezes não interessava aos colegas.
Pensei então em uma alternativa para (re)caracterizar este dia.
Um exemplo
Indaguei do grupo o que vinha a ser "novidade" e as respos-
tas ficaram centradas na experiência que já tinham na escola: a
Um assunto que sempre desperta curiosidade nas crianças,
gente traz uma coisa para mostrar para todo mundo ou conta
em especial nos meninos, é o futebol. Com as 'reportagens da Copa
uma coisa que fez no final de semana. Persisti questionando o
do Mundo foi possível trabalhar uma série de questões, desde
que mais seria novidade, como nós ficamos sabendo de coisas
regras do futebol até as diversas competições que existem. Neste
22 Lúcia Lima da Fonseca O universo da sala de aula 23
caso, trabalhamos com a idéia de campeonato regional, nacional mais sobre o maremoto e também para começarmos a manusear
e mundial, sendo preciso dar uma idéia da divisão mundial. "Ci- diferentes jornais e revistas, investigando, comparando e classifi-
dade", "estado", "país" ainda são noções muito abstratas para as cando.
crianças. Procurei informar, usando os exemplos das próprias
crianças e ilustrando com mapas e o globo terrestre. Alguns exem- Novas possibilidades
plos: Amanda mora em outra cidade, São Leopoldo. Os avós da
Erika, da Carina e do Rafael também moram em outras cidades, Outra forma de trabalhar com o jornal é deixar que as crian-
respectivamente Cachoeira, Ijui e Caxias do Sul. As praias fre- ças identifiquem e classifiquem o assunto das reportagens, usan-
qüentadas no verão por todos são também em outras cidades. do os recursos que estão disponíveis: fotos, símbolos e também
Todas estas cidades fazem parte do nosso estado Rio Grande do os textos, que algumas crianças já aventuram-se em tentar deci-
Sul, mas existem cidades em outros estados que também fazem frar. Este trabalho ainda foi pouco explorado com a turma, o que
parte do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro, Maceió, ... Sofia nas deve ser intensificado.
férias foi para outro país, Uruguai; também os pais da Erika via-
jam bastante para outros países. Como é possível perceber, um
assunto puxa outro e, quando nos damos conta, nem lembramos
mais como tudo começou. Agora, no segundo semestre, com as
reportagens sobre a eleição de governadores e presidente da re-
pública novamente será possível enfocar as diversas divisões
políticas que existem ...

As crianças interiorizam a atividade ...

Outro exemplo interessante mostra como as crianças já ad-


quiriram o hábito de usar o jornal como recurso para terem aces-
so à informações de algo acontecido recentemente.
No dia seguinte aos noticiários de televisão mostrando a des-
truição provocada pelo maremoto acontecido na Nova Guiné, as
crianças trouxeram diversas dúvidas principalmente sobre as cau-
sas de um maremoto. Investigamos nas enciclopédias, mas tive-
mos acesso ao assunto de uma forma ampla: o que são maremo-
tos e quais as causas. O grupo manifestava desejo de ler mais
sobre aquele maremoto, saber o que havia sido destruído, quantas
pessoas haviam morrido, e referiram que estas informações, por
serem recentes, só poderiam ser encontradas no jornal.
Fomos até a banca de jornal e compramos dois diferentes jor-
nais, uma Zero Hora e um Correio do Povo. Realizamos as duas
leituras, que se complementavam, o que serviu para sabermos
1 g semana de atividades

Copa do Mundo: dia dejogo do Brasil

À primeira vista poderíamos dizer que a Terra


sempre foi como é neste momento presente;
no entanto os homens pensaram que a Terra era
quadrada, que o sol girava em torno dela,
mais tarde que, ao contrário, a Terra é que gira em
torno do Sol e, mais recentem~nte,que a Terra
faz parte de um universo em expansão.
Estas diferentes concepções sobre o nosso planeta
correspondem a diferentes modos de ser dos homens:
o homem contemporâneo não é o mesmo que o homem
medieval. As conseqüências das diferentes concepções
dos homens ao longo da história são visíveis sobre
a super:ficie da Terra: arranha-ééus e aviões eram
inconcebíveis até o final do século passado.
(Monique Deheinzelin, 1996: 15)
5
A Semanada
Pátria no contexto
do Projeto Universo

, A questão de que moramos num país chamado Brasil veio à


tona durante a Copa do Mundo, também, anteriormente, quando
delimitamos os assuntos do projeto Universo apareceu a questão
da divisão terrestre (vide contextualização da turma). Outro as-
sunto que está presente nas leituras de jornal (que acontecem às
segundas-feiras) são as reportagens de diferentes cidades, esta-
dos ou países, que sempre procuro contextualizar, utilizando prin-
cipalmente o globo terrestre e o mapa do Brasil. Atualmente, com
o início da propaganda política, novamente o assunto da divisão
do país é trazido, desta vez através dos seus dirigentes, neste caso
Governadores e Presidente da República.
Frente a esta realidade, considerei importante o trabalho so-
bre a Semana da Pátria, mesmo sendo algo que não surgiu espon-
taneamente nas falas das crianças. Mas, tratándo-se de um co-
nhecimento social, é preciso que ele seja transmitido, pois não há
como interiorizá-lo pela construção; é algo que já está dado, é
arbitrário.
O trabalho teve início na roda de terça-feira (01/09) quando
eu questionei quem sabia de uma data comemorativa que estava
próxima e que devido a ela não teria aula na segunda-feira, 07 de
setembro. Sofia sabia que era "a semana do Brasil". A bandeira
nacional logo foi lembrada por todos e a relação com a seleção
brasileira de futebol e a copa do mundo foi imediata. Para as
crianças, a bandeira e o hino existem para os jogos de futebol. É
difícil desfazer esta imagem, frente a uma realidade em que so-
mente nestes casos é que aparecem os símbolos nacionais nos
meios de comunicação, na mídia. Há uns cinco anos atrás, a rela-
ção seria com Ayrton Senna, na época dos Jogos Olímpicos a rela-
28 Lúcia Lima da Fonseca · O universo da sala de aula 29
ção é com os esportes de uma forma mais ampla, mas os símbolos muitos olhares divertidos e risadas: Ora, ser filho do Brasil!
nacionais estão normalmente relacionados com algum represen- Outro aspecto trabalhado foi quanto ao respeito ao escutar o
tante ilustre que está fora do Brasil. hino. As pessoas ficam de pé com as mãos ao longo do corpo, o
Ao longo da conversa, Amanda disse que ? hino é tocado que novamente foi relacionado aos jogadores de futebol, como é
11
em algumas formaturas" e este foi um gancho i~por~ante par~ possível verificar neste diálogo:
que eu pudesse falar sobre o uso dos símbolos nac10nais em ceri-
mônias aqui dentro do nosso país mesmo, como forma de mos- - Eu acho que os jogadores do Brasil cantam o hino de mãos
trar que nós gostamos e admiramos o país em que nascemos e dadas.
- Não! Eles entram de mãos dadas e depois soltam para cantar o
moramos. hino.
No dia seguinte, li um trecho de um livro de Estudos Sociais - É! Uns fazem assim. (Mostrando a mão no peito)
falando a respeito de o Brasil ter sido colônia de Portugal eA qu~,
no dia 7 de setembro de 1822, foi proclamada a Independencia Isto tudo culminou com uma mini-hora cívica realizada na
do Brasil, isto é, o Brasil passou a ser um país livre, e é esta data sexta-feira: todos de pé, em posição de respeito, de frente para a
ue é comemorada nesta semana todos os an~s. Não é algo tran- bandeira, escutamos e cantamos o hino. Também nesta ocasião,
1
qüilo para as crianças compreend~rem, ma~ e fu~damental que já em roda, mais informalmente, escutamos o Hino à Bandeira.
elas comecem a ouvir falar sobre isto. A discussao que prosse- Ainda na sexta-feira, um outro aspecto do tema "Brasil" foi
guiu foi a respeito dos índios que moravam aqui antes de virem abordado: eu trouxe um mapa do Brasil e perguntei o que era, o
os homens brancos para cá, "os malvados homens brancos, que que foi respondido em coro, pois em diversos outros momentos
vieram roubar tudo dos índios", na fala de Carina. já recorremos a mapas e globos. Numa relação proposta por mim
Ainda trabalhamos sobre o que é uma bandeira, procurando entre a bandeira e o mapa, surgiu que o mapa é como se fosse
0 significado no dicionário e relacionando com outras bandeiras uma foto tirada de muito longe. "Lá do espaço?" - perguntou
que conhecemos: do Grêmio, do Inter, do PT. .. Sofia. E quando falei que a bandeira, ao contrário do mapa, era
Com relação ao hino nacional, o Rafael lembrou os acordes, algo que havia sido criada por alguém e que cada cor tinha um
de posse de uma corneta imaginária e tocando-a e~ alto e boi:; significado especial, as crianças se interessaram muito, querendo
som, porém, ninguém sabia cantá-lo. Ao escutar.º hi~~ ~odos Jª saber os significados e também quem criou a bandeira, algo que
se acharam autorizados a cantar, sendo que mmto dificilmente pretendo pesquisar e levar na próxima semana.
uma só das palavras era cantada correta. Trabalhei com as crian- Com o mapa, conversamos sobre as divisões de estados e ci-
ças, então, a importância de procurar ouvir com atenção p~ra com- dades e retomamos uma relação que sempre é feita quando surge
preender a letra. Sei que há um agravant.e.neste caso,.pms as ~x­ o assunto: a Amanda mora em outra cidade, São Leopoldo, mas
pressões usadas no hino não são usuais dificultando amda mais a dentro do mesmo estado, Rio Grande do Sul; a Erika está de féri-
compreensão. Por exemplo, "impávido colosso" se as ~rianças as na casa dos avós, em Cachoeira do Sul, outra cidade também
cantarem certo ou errado não vai ajudar na compreensao, mas do Rio Grande do Sul( ... ) e um elemento novo nas nessas desco-
novamente afirmo que é importante ir-se familiarizando com esta bertas, o Vinícius, colega novo, morava em Florianópolis,
letra, que os acompanhará o resto da vida. Quando realizei a lei~ "Floripa" como diz ele, que é outra cidade que fica em outro esta-
tura pausada visando a uma melhor compreensã? ~a let~a, f01 do, Santa Catarina. Estas retomadas são muifo importantes, pois
possível conversar a respeito de que na letra º.Brasil e considera- os conceitos de cidade, estado, país não se dão facilmente e vári-
do a terra-mãe e quem nasce aqui são os seus filhos, o que causou as vezes aparecem comentários sobre Caxias do Sul ser um outro
~>
·'1.
O universo da sala de aula 31
30 Lúcia Lima da Fonseca
ção brasileira de futebol e Ronaldinho. São nossos símbolos, e
estado ou de o Uruguai fazer parte do Brasil. nós, cidadãos brasileiros é que vamos continuar escrevendo esta
As~inalamos no mapa onde Porto Alegre está e fiz~mos toda história, pois os símbolos estão dados, mas a seqüência da histó-
a trajetória: estamos na cidade de Porto Alegre, ~ue fie~ dentro ria não ...
do estado Rio Grande do Sul, que faz parte do pais Brasil.
Ao longo da semana, montamo~ um ~ural ~obre a Se1:'-ana
da Pátria no salão da escola. O que e possivel deixar encammha- 6
do é a retomada do assunto na terça-feira após o feriado, e a in- A visita ao planetário
serção da questão da eleição, este sim um as.~unto que está na
boca de todos. Um pouco mais a longo prazo, Jª pensar na Sema- Quinta-feira, dia 03 / 09, fomos assistir a um programa no pla-
na Farroupilha, elaborando um trabalho semelhante, com o netário, uma visita que está sendo cogitada pela turma desde
enfoque estadual. . . , março, como é possível perceber na contextualização, e que só
Com relação aos conhecimentos sociais e a forma de abo:da- agora foi possível colocá-la em prática. Mesmo que o assunto que
los em turmas de educação infantil, o Programa de Expansao e está circulando mais fortemente na turma não seja mais sobre o
Melhoria da Educação Pré-escolar de São Paulo cita: espaço, este foi um assunto que não se esgotou. Acredito que é
fascinante sempre, portanto não tive receio de fazer esta progra-
Para que o aluno tenha condições de relacionar diferentes mação, apesar de deslocada.
aspectos da sua realidade social, bem como compreender a
A preparação da ida ao planetário deu-se vários dias antes,
dinâmica das relações sociais que se estabelecem dentro e fora
da escola e perceber-se enquanto sujeito delas, é precis~ situ- com as combinações de praxe: estar sempre com o grupo, ter cui-
ar essa realidade historicamente. Embora a compreensao das dado pois não se anda na rua correndo ou gritando, e outras des-
transformações sociais exija formas muito com~lexas de rac~­ te tipo, que sempre é preciso retomar. Outro aspecto foi conver-
ocínio, é possível iniciar um trabalho com as crianças da pre- sar sobre a projeção que é feita no escuro. Todo mundo deve estar
escola nessa direção, procurando deixar mais clara entre elas
a definição que os grupos sociais fazem da sua própria iden-
preparado para não se assustar. Se alguém se séntir inseguro pode
tidade, construída na relação com os outros. ( ... ) O constante procurar a professora. Neste sentido, foi bem interessante que
ir e vir das partes de uma dada realidade para o todo, e do antes de o programa começar, ainda com a sala com claridade, o
todo para as partes, que implica lidar com espaços -~tempos responsável pela projeção explicou o funcionamento de todos os
diferentes, dá margem ao estabelecimento de um dialog~ do equipamentos e as sensações que provocam nas pessoas (parece
presente com o passado e deste com o futuro. Isto permite a
que o prédio está se movendo ... ). Foi interessante por um lado,
superação do conhecimento fragmentado, do senso comu~ e
do tratamento da área baseado em conteudos predetermina- para tranqüilizar a todbs, mas não por outro, P.Orque ele se alon-
dos, tornando possível o desvendamento de conflito~ e a pe~­ gou demais nas explicações (mais ou menos quinze minutos) e as
cepção do que muda e do que permanece nas relaçoes soci- crianças já estavam inquietas nas cadeiras.
ais. (São Paulo, 1994: 37) O programa era Lirax e Vegaluz, a história de um habitante
de uma estrela que vem visitar a Terra, fascina-se com a água,
A partir disto é possível pensar na relevância de trabalhar algo que não conhece e faz uma viagem no espaço, levando con-
com símbolos da nossa nação, que de certa forma representam sigo uma terráquea. Eles vêem a Terra do esp.aço (por isto a rela-
para muitos adultos, que viveram o regime mil~tar, al?o de ~mpo­ ção da Sofia quando falávamos sobre mapas), explicam o dia e a
sição e de contrariedade, mas que na verdaçie s_ao mu_ito mais que noite, pisam na lua, mostram as constelações e muito mais ... O
símbolos de uma fase de autoritarismo, ou mmto mais que a sele-
r
32 Lúcia Lima da Fonseca · O universo da sala de aula 33
programa tem 48 minutos de duração e todas as crianças ficaram especiais, uma vez que uma lesão no cérebro, em nível de corpo
atentas. O único que precisou de um colinho para ficar mais se- caloso, gerou desorganização motora e um atraso global de de-
guro foi o Luiz Felipe que é o caçula da turma (tem 4 anos e 4 senvolvimento.
meses). De volta à escola, nas conversas, as crianças salientaram Segunda-feira, primeiro dia do Vini na escola, foi marcado
a vista noturna de Porto Alegre, que aparece no programa, e as que ele chegasse às 10 horas. Como na roda ele ainda não estava
constelações como sendo as partes mais interessantes. Foram unâ- presente, conversei com o grupo, contando da chegada de mais
nimes em eleger o raio (um clarão que dá de repente no meio da um colega. A reação foi de vibração, as crianças passaram a can-
escuridão) como o único momento de medo ("Me segurei forte tar: "Parabéns pra nossa turma, parabéns pra nossa turma, para-
na cadeira ... "; "Senti só um pouquinho de medo, mas nem fechei béns para o Vinícius, parabéns pra nossa turma ... " e também a
os olhos ... "; "Meus olhos ficaram doendo ... ") E foram unânimes fazer relações numéricas: "Eram 11 crianças mais a professora,
também em eleger o discurso a parte chata do passeio. Discurso então 12 pessoas, agora vai ficar 13 pessoas, 12 crianças mais a
foi como elas chamaram a conversa inicial que eu já citei, e neste prof", disse o Roberto.
caso eu também concordei, pois foi realmente cansativo. Quando ele finalmente chegou, todos logo quiseram se apre-
Dentro o que mais chamou a atenção das crianças, destacam- sentar, mostrar a sala, os brinquedos ... Foram ótimos na recep-
se as constelações, "os desenhos que eles fizeram com as estrelas, ção. Vinícius chegou alegre, com bastantes expectativas em rela-
até um barco!", como disse Rafael. Isto demonstra que apesar do ção à sua nova escola. A adaptação foi muito tranqüila. No pri-
fascínio que as descobertas e os conhecimentos científicos geram, meiro dia ficou em torno de 1 hora e 30 minutos, no segundo,
a fantasia e o lúdico têm o seu lugar assegurado nas vivências ficou 3 horas e, a partir de quarta-feira, já estava fazendo horário
destas crianças. normal: chegando às 8 horas e indo embora passando das
12h30min.
Em torno dos cinco anos a criança é altamente fantasiosa e Ele está em fase de exploração do material, dos jogos, does-
mágica, confere vida, movimento, alma, vontade e poder a
todas as coisas do universo. Os animais, as árvores e os obje-
paço; o tapete com estrada para os carrinhos o .fascinou. O que eu
tos andam, falam, cantam, dançam, têm poderes ilimitados e percebi nesta semana foi um movimento no sentido de conhecer
características humanas.(Rodrigues apud Est. R.G.S.: 20) e explorar o lugar. Porém a aproximação com os colegas não é
buscada na maior parte das vezes. Esta integração vai depender
Assim, de acordo com a citação acima, é bastante natural para muito da minha mediação, pelo que eu pude perceber.
as crianças que das estrelas sejam feitos os mais diversos dese- Um aspecto positivo foi que ele participou de todos os mo-
nhos. mentos da rotina propostos nestes dias. Sua preferência foi jogar
futebol no pátio, mas entrava de volta para a sala sem resistênci-
7 as, participava das rodas, ficando atento aos assuntos que tratá-
A chegada de Vinícius vamos, inclusive comentando algumas coisas como o fato de ter
ganho da mãe uma bandeira do PT (quando conversávamos so-
bre a Bandeira do Brasil), ou dizendo que "o Ronaldinho é do
Esta semana ainda outro acontecimento de muita importân-
Brasil", ou ainda comentando que tinha um gato, mas ele preci-
cia para o grupo foi a chegada de Vinícius, um menino que mora-
sou ficar em Floripa, quando apareceu um gato no livro de histó-
va em Florianópolis e mudou-se com a família para Porto Alegre.
rias que estávamos lendo na sexta-feira.
Vinícius é uma criança de 6 anos com necessidades educativas
Nos momentos livres, os colegas procuram inseri-lo no con-
r
f

34 Lúcia Lima da Fonseca


texto, mostrando os jogos e convidando-o para brincar, porém
ele prefere buscar o seu jogo na estante. Alguém chega até ele,
brinca um pouco, depois vai buscar outro grupo, num movimen-
to normal de horário livre.
O único comentário até agora em relação a sua dificuldade 2!! e 3 !! semana de atividades
motora se deu na roda, quando Renata insistia para que ele sen-
tasse "de pernas de índio". Então eu comentei com o grupo que
ele tinha alguma dificuldade para caminhar e para realizar al-
guns movimentas,~e que então, ele ia sentar-se como sentisse
melhor. O grupo aceitou este fato. Eu sei que as crianças ainda
estão num processo de adaptação ao novo colega e que outras
perguntas ou comentários podem surgir ao longo do tempo. O
importante é ter a clareza de responder às questões de forma sim-
ples e objetiva.
A respeito do período de adaptação, Jane Felipe salienta:

É preciso considerar que tanto pais, mães, responsáveis,


quanto as professoras e atendentes, passam por um período
de adaptação frente àquela criança que chega na instituição.
É preciso aprender a olhar, a perceber quais são as suas carac-
terísticas, seu jeito de ser e de se relacionar com o novo ambi-
ente que agora passará a freqüentar, bem como a maneira
como interage com os colegas e com as pessoas que a cuidam
e educam. (Craidy, 1998: 12)

Assim, apesar de a adaptação do Vinícius estar se dando de


forma tranqüila, visto que ele não apresentou resistências, nem
chorou, nem precisou da presença da mãe em sala, é preciso estar Júlia: anave da caça ao tesouro
atenta, pois a adaptação é muito mais que isso: é conhecer o lugar
e as pessoas deste lugar para poder estabelecer um vínculo efeti-
vo. Também eu e os demais alunos precisamos conhecê-lo mais, Em contato com realidades fictícias, a
para que realmente haja uma integração. No meu caso, é preciso criança apropria-se do caráter simbólico da linguagem
e aprende a estabelecer paralelos entre afantasia
uma observação atenta e uma aproximação através dos diversos
presente nos contos infantis e populares e aspectos da
momentos da rotina, pois só assim poderei perceber como medi- realidade tal como ela a compreende. (...} É pela magia
ar as situações visando ao seu desenvolvimento. e fabulação, principalmente, que a criança na fase pré-
escolar interpreta as causas e efeitos vigentes nas
relações do homem com o universo ántes de dipor de
recursos para compreendê-lo de forma objetiva.
(São Paulo, 1994: 41)
8
Caça ao tesouro

Esta semana começamos a trabalhar com o livro Caça ao Te-


souro, que conta a história de um grupo de crianças que, seguin-
do as pistas para encontrar um tesouro, passam por diferentes
lugares e por várias situações de destruição da natureza. Ao final
da história, o "tesouro" é o nosso planeta Terra.
A história vem ao encontro do trabalho desenvolvido pela
turma, que, ao centralizar os estudos do Universo no planeta Ter-
ra, passa a enfocar questões de importância e preservação da na-
tureza. A forma utilizada para a leitura foi a divisão em capítu-
los, sendo possível, assim, comentar e registrar cada etapa da caça
ao tesouro propriamente dita.
Uma questão possível de trabalhar, a partir qe uma parte do
livro que fala das queimadas e dos desmatamentos, foi a impor-
tância das árvores. Na concepção das crianças, as árvores forne-
cem alimentos, que são as frutas, e também ~atéria-prima para
diversas construções humanas, que é a madeira. A partir destes
comentários eu falei um pouco sobre o principal papel das árvo-
res para o meio ambiente que é a renovação do ar; expliquei que
as folhas das árvores purificam o ar que nós respiramos e que, se
não existissem mais árvores, também não seria mais possível as
pessoas respirarem. Frente à perplexidade das crianças, falei que
era possível continuar usando a madeira das árvores, mas tendo
o cuidado de preservar algumas áreas de floresta e também reali-
zando reflorestamento, isto é, plantando outras árvores.
Perguntei aos alunos se hoje em dia haveria a possibilidade
de não usar mais a madeira das árvores, e se seria possível conti-
nuar vivendo sem cadeiras e mesas, por exemplo. A resposta em
coro foi "não". Isto demonstra duas características típicas do pen-
samento pré-operacional, a centração e o egocentrismo, onde a
criança não consegue perceber outros aspectos da realidade, ou
38 Lúcia Lima da Fonseca
r
!

O universo da sala de aula 39


outra realidade, que não a sua. mente o que desenhou. São fases bem diferentes dó desenvolvi-
Outra possibilidade a partir do trabalho com o livro está sen- .mento gráfico. Assim:
do explorar a imaginação e a criatividade das crianças na hora de
realizar os registros em forma de desenho ou pintura. As propos- Estas explorações, envolvendo a motricidade fina nas ati-
tas de registros foram feitas no final dos comentários sobre a lei- vidades de expressão, resultam um sem-número de produ-
tura e foram bastante diferenciadas. Ex: desenha o que é para ti o ções gráfico-plásticas. Para além de tudo o que dizem por si
m.es~~s e representam para as crianças - imaginação,
tesouro, sem comentar com os colegas, para que depois nós veja- cnahv1dade, ludicidade, concentração, avaliação crítica dos
mos o que cada um pensou, ou, se tu fosses procurar o tesouro processos de construção e dos produtos acabados,
quem tu levarias junto nesta aventura? Desta forma procurei abrir intencionalidade, destreza, etc ... - vão ainda abrindo cami-
espaço para que cada criança pudesse se imaginar participando nho para que os sujeitos que desenham, recortam e bordam
da história e sendo alguém significativo naquele contexto. Algu- estejam à vontade para escrever - outro registro gráfico ao
qual as crianças podem ter acesso, caso isso seja um desejo
mas crianças conseguiram entrar na proposta e usando a ou uma necessidade apontada por elas, junto aos adultos.
criatividade realizar produções bem próprias, outras ficaram mais (Gabriel Junqueira Fº et al in Craidy, 1998: 58)
presas ao contexto do livro, como é possível verificar nestes exem-
plos: Julia pintou ela mesma, a Erika, o Rafael e o Pedro na má- Portanto, trata-se de dois momentos distintos do desenvolvi-
quina fantástica indo procurar o tesouro, enquanto Amanda pin- mento ~ráfico ~ amb.os de fundamental importância para o de-
tou a menininha da história. senvolvimento mfanhl, devendo ser valorizados como tal. No caso
Outro fato interessante de observar é que devido à faixa etária do Luiz Felipe; eu posso mediar algumas situações, fazendo-o
e a turma (4 a 6 anos) há uma diferença significativa nas produ- dar-se conta de diversas possibilidades de detalhes que ele pode
ções gráficas. Por exemplo, Roberto (Sa 9m), antes de começar o acrescentar na sua construção.
seu trabalho, elabora-o mentalmente e na execução é bastante
meticuloso, sendo que o resultado final é uma produção "limpa", Para além da caça ao tesouro ...
o que torna possível a qualquer pessoa perceber sua intenção ao
observar o desenho. Já o Luiz Felipe (4a 4m), com um traçado Esta semana continuamos trabalhando sobre o Brasil em nos-
ainda bastante livre, realiza o seu trabalho verbalizando o tempo sas rodas de conversa, retomando o que as crianças tinham assis-
todo sobre o que está desenhando, e o resultado é uma produção tido na televisão sobre as comemorações de 7 de setembro e
muito colorida mas impossível de observar o que ele quis repro- enfo~ando outros aspectos, principalmente o fato da eleição para
duzir. Outra diferença significativa durante a produção destas Presiden~e da República, prevista para outubro. As crianças têm
duas crianças é que para o Roberto já há bastante forte um con- o conheci~e~to de que o Presidente atual é o F~rnando Henrique
ceito de "erro". Quando ele erra por não conseguir fazer o traça- e que o propno Fernando Henrique é candidato, juntamente com
do como havia imaginado ou por borrar a folha, não consegue o Lula. Ev~ntualmente citam também o nome do Enéias, como
sair daquela situação chateando-se muito e pedindo outra folha outro candidato.
ou virando e recomeçando o trabalho do outro lado. Eu penso Rea~i~amos ~m painel com os diversos materiais de campa-
que este realismo que o Roberto tem está ligado ao fato de querer nha pohh~a trazidos pelas crianças; neste momento não propus
deixar registrado algo de forma a que todas as pessoas compre- qualquer tipo de separação, havia material de todo tipo de candi-
endam este registro. Já o Luiz Felipe está construindo algo com dato (presidente, governador, deputado federal e estadual e se-
muito significado instantâneo, mas que nem ele sabe posterior- nador). Posteriormente acredito que seja uma possibilidade de
40 Lúcia Lima da Fonseca · O universo da .sala de aula 41
classificação, mas o enfoque principal do trabalho será a eleição - Se a você Ínteressa
de presidente e de governador. O tesouro encontrar
Vá correndo e bem depressa
No espaço procurar.

9 O fato de terem descoberto a pista foi fundamental para as


crianças, que estavam sentindo-se como participantes daquela
Finalmente, o tesouro história e não só como ouvintes. Isto demonstra que a nossa "
novela" ficou gostosa quando passou a gerar expectativas e a ser
esperada com entusiasmo a cada dia. Segundo Abramovich:
A atividade com o livro Caça ao Tesouro continuou por toda
semana. A sistemática do trabalho prosseguiu com leitura, deba- Estamos falando de literatura, de ficção, de histórias, onde
se aborda um - ou vários problemas - que a criança pode estar
te e registro. E, cada vez mais por dentro do enredo da história, atravessando ou pelo qual pode estar se interessando ... De uma
as crianças tornaram-se mais participativas. leitura que não é óbvia, discursiva ou demonstrativa do tal
As pistas que iam sendo encontradas ao longo da trajetória tema ... Onde ele flui natural e límpido, dentro da narrativa -
dos personagens estavam escritas em forma de verso: que evidentemente não tratará apenas disso.(1993: 99)

Se a você interessa Assim, o tesouro era o tema central da história, muito espera-
O tesouro encontrar do pelas crianças. Porém não era o único atrativo do livro, o que
Vá correndo e bem depressa, .. foi sendo evidenciado aos poucos. Se nos primeiros dias da histó-
Na floresta procurar. ria as crianças pediam que eu lesse até o fim logo, isto se transfor-
(Os versos continuam trocando-se a expressão sublinhada por: mou em: "Quantas pistas a gente vai descobrir hoje, prof?"
No pântano/No rio/No mar/Na montanha/Na cidade/No es- (Carina)
paço) Mas era preciso chegar ao tesouro e isto aconteceu na quinta-
feira:
-Lá pela 3a pista, as crianças já sabiam o verso de cor e levan-
Lá estava, bem na frente deles, redonda, deslumbrante na
tavam hipóteses de qual seria o próximo lugar. Quando foi a 7a e sua cor azul, a coisa mais maravilhosa que eles já tinham visto.
última pista eu retomei um dado do início do livro: os persona- A emoção era tanta que nem conseguiam falar. Ficaram um lon-
gens viajavam em uma máquina fantástica que "andava na terra go tempo em silêncio, observando, admirando ... E todos tive-
melhor que automóvel, na água melhor que navio, no ar melhor ram a certeza de que não podia existir nada mais precioso do
que aquilo. O tesouro era a TERRA. (Iacocca e Iacocca, 1998:
que avião. Além disso, apertando alguns botões ela até virava
46-7)
submarino ou foguete espacial." (p:6) Perguntei de qual forma a
máquina ainda não havia funcionado, o que foi respondido em A reação das criança~ foi um misto de surpresa-e decepção,
coro: " foguete". E para onde é que vão os foguetes? - Para o afinal de contas o tesouro que a maioria tinha imaginado ainda
espaço?, respondeu e perguntou ao mesmo tempo a Sofia. E, frente na semana passada tinha a ver com ouro, pedras preciosas e coi-
a minha confirmação, todos vibraram e passaram a recitar o sas do gênero. Havia uma fantasia enorme em torno do tesouro,
versinho: que de certa forma não correspondeu à realidade.
42 Lúcia Lima da Fonseca O universo da sala de aula 43

Iniciamos uma conversa sobre o porquê de se passar por tan- versas em grande grupo, procurei mapear que concepções as crian-
tos lugares para se descobrir este tesouro, e as crianças trouxe- ças tinham sobre o assunto. O que apareceu de forma predominante
ram dados importantes como "existem muitos lugares bonitos na é que "era a semana do gaúcho". Mas o que é gaúcho?
Terra, é o único planeta que tem pessoas (referência aos nossos
-Gaúcho é usar bota e bombacha. (Gustavo)
estudos anteriores, sobre os planetas do sistema solar), é também -E tem a prenda que usa vestido rodado e comprido. (Clara)
o único planeta que tem água (referência ao programa assistido
no planetário), tem muito lixo na Terra, tem que cuidar da Ter- Pela fala das crianças percebi que a imagem que elas tinham
ra ... " era um esteriótipo, uma vez que a maioria não tem contato com
Assim foram-se dando conta da relevância de aspectos trazi- Centros de Tradições; a Semana Farroupilha era vista como uma
dos no decorrer da história e a decepção foi desaparecendo tam- possibilidade de usar uma "fantasia", como se fosse carnaval.
bém. Um retorno importante neste sentido foi o da mãe da Como tema de casa para terça-feira, as crianças levaram esta in-
Amanda que comentou comigo na sexta-feira que, no meio da dagação do que é ser gaúcho. Na roda seguinte, então, foi possí-
tarde, Amanda lembrou e foi contar com os olhos brilhando que vel trabalhar a idéia que ser gaúcho é independente do tipo de
o tesouro era a Terra. roupa que estamos usando. Quem nasceu no Rio Grande do Sul é
Na sexta-feira retomei com o grupo os lugares pelos quais os gaúcho e vai continuar sendo sempre.
personagens da história haviam passado e propus que cada cri- E, desta vez por causa da Semana Farroupilha, voltamos ao
ança imaginasse um outro lugar, fizesse um desenho deste lugar assunto das divisões do país Brasil em estados e cidades. Con-
e criasse o seu verso. Assim novamente pude dar espaço à versamos sobre que cidades nós conhecemos que fazem parte do
criatividade, para que cada um elaborasse a sua produção singular. Rio Grande do Sul, e que portanto são "cidades gaúchas". Um
Também deixamos encaminhadas duas atividades para a pró- suporte para este trabalho foi trazer para a sala de aula o mapa
xima semana, dando continuidade ao assunto PRESERVAÇÃO brasileiro e fazer a identificação do RS, de Porto Alegre dentro do
DA NATUREZA: convidamos os alunos da la série para vir con- RS, das praias ...
versar conosco sobre a separação e reciclagem do lixo (assunto Pela observação do mapa as crianças também fizeram diver-
que esta turma está trabalhando), sendo que a partir daí preten- sas relações, como quantos estados o Brasil tem, qual é o maior e
do que a turma comece a separar o lixo na sala de aula. Também o menor, porque da diferença de tamanhos. Devido a este inte-
relacionado a isto, no dia 23/09, assistiremos a um teatro de bo- resse, o mapa ainda está na nossa sala e pretendo deixá-lo expos-
necos com a peça "A História de Artur", toda construída com to enquanto perceber o interesse das crianças.
sucata. Em seguida participaremos de uma oficina com sucata Outro trabalho foi sobre a indumentária gaúcha, onde eu ex-
para a produção de bonecos e brinquedos coordenada pelo gru- pliquei que isto é uma tradição, e que por máis que hoje em dia
po de teatro Divina Comédia. i tão seja mais tão usada a pilcha, esta ficou sendo a característica
do gaúcho. Aproveitamos também para fazer a diferenciação en-
10 tre a roupa de caipira que se usa nas festas junirras e a pilcha
Semana Farroupilha gaúcha. O caipira é típico do interior paulista, e mais uma vez
fomos nós para o mapa verificar onde é que ficava São Paulo ...
O assunto Semana Farroupilha mobilizou o grupo, que nas con- Frente a este trabalho que aconteceu bastante informalmente
versas informais já o comentava há bastante tempo. Nas nossas con- durante a semana, destaco a importância de, aos poucos, ir dan-
do significado a estes acontecimentos sociais:
44 Lúcia Lima da Fonseca
r
Ao partir das experiências do cotidiano, busca-se oferecer
à criança oportunidade de identificar diferentes aspectos das
relações sociais que aí se estabelecem, o que lhe propicia con-
dições de ir construindo uma visão de conjunto da 4!! a 6!! semana de atividades
realidade.(São Paulo, 1994: 42)

A experiência na pré-escola pode servir como ponto de par-


tida para a compreensão da sociedade mais ampla: os costu-
mes e estilos de vida de diferentes grupos; as tradições, o
folclore e outras produções culturais; a composição étnica da
população, as formas de governo de diferentes povos ... (São
Paulo, 1994: 42)

A partir daí torna-se mais coerente usar determinada roupa Renata: sua tunna
ou tomar chimarrão na hora da festa, mas sabendo-se pelo menos
vagamente o porquê disto tudo.
A comemoração que a escola organizou aconteceu na sexta-
feira, com um churrasco ao meio-dia, antecedido de roda de chi-
marrão e de músicas tradicionalistas. As crianças vieram todas
caracterizadas e passaram a manhã comparando qual era o vesti-
do mais rodado, qual o chapéu mais legal e assim por diante,
demonstrando que a fantasia ainda está em primeiro plano. Os
conhecimentos ainda vão ser interiorizados, transformados, apri-
morados, mas com certeza a "bagagem" que cada criança traz Gustavo: amigospreferidos
sobre o mundo social em que vive cresceu um pouquinho nesta
semana.
Todo ser humano sente necessidades que
precisam ser satisfeitas, tem objetivos a serem
atingidos, sonha projetos a serem coloca-
dos em prática, qualquer que seja seu nível intelectual,
seu tipo de personalidade, seu grau de cultura.
Ele sente necessidade de eliminar ou de
reduzir desc~nfortos e dtficuldades, tais como afame,
o cansaço, a insegurança, a raiva, a carência.
Precisa também satisfazer sua necessida-
de de sucesso, afeto, repouso e outras mais.
(Otto Marques da Silva in
Mantoan, 1997: 154}
r
1

11
A preservação da
natureza começa com
a separação do lixo!

A ênfase do trabalho desta semana foi a separação do lixo,


dando continuidade ao assunto da preservação da natureza. O
"lixo" passou a interessar o grupo há mais tempo, quando a tur-
ma da primeira série iniciou uma campanha sobre a importância
da separação do lixo em toda a escola e veio até a nossa sala dei-
xar um cartaz explicativo. Aproveitei então a finalização do tra-
balho com o livro Caça ao Tesouro, que deixou a "mensagem" da
importância da preservação da natureza, para iniciar o processo
de separação do lixo na turma.
O primeiro passo foi investigar as concepções que as crianças
já apresentavam sobre o que é lixo seco e lixo orgânico, como
separar e porquê separar. A grande maioria das famílias separa o
lixo em casa, então foi tranqüilo nomear que #po de lixo é orgâ-
nico e que tipo de lixo é seco. Sofia também falou que o lixo seco
"vai para a reciclagem", mas sem saber o que é a tal reciclagem.
Para esclarecer esta e outras dúvidas, convidamos o pessoal
da la série para vir até a nossa sala nos contar um pouco do que
eles já descobriram. Foi bem interessante este processo, pois, nor-
malmente, quando queremos saber algo, buscamos nos livros,
jornais e enciclopédias, mas ainda não tinha vindo alguém falar
sobre algo que sabe mais do que nós. E o mais legal é que este
"alguém" são colegas de escola, bem familiarizados com o gru-
po, que brincam junto no pátio e fazem outras atividades conjun-
tas. Segundo Paulo Freire "ninguém aprende sozinho, os homens
aprendem em comunhão". (Apud Becker e Franco, 1998)
O que eles nos contaram foi sobre o destino do lixo orgânico e
do lixo seco, sobre a importância da separação e da reciclagem e
sobre as usinas de reciclagem.
48 Lúcia Lima da Fonseca
Algo que suscitou interesse e dúvidas no grupo foi sobre a
origem do papel, pois, na concepção das crianças, se ele é feito de
r · O universo da sala de aula
de forma divertida, prendendo a atenção das crianÇas. Ao final
todos puderam manusear e verificar do que eram feitos os perso-
49

tronco de árvores, deveria ser sempre marrom. Conversamos um nagens e o cenário da história e imediatamente iniciou-se a "ofi-
pouco sobre as diversas pigmentações e fiquei de trazer material cina".
sobre a origem do papel, para trabalharmos na próxima semana. . Num primeiro momento houve euforia, à medida em que cada
Erika falou sobre um vídeo do Castelo Rá-Tim-Bum que fala so- criança buscava as melhores sucatas para a sua construção. Pos-
bre a origem do vidro e ficou de trazê-lo para assistirmos. teriormente, quando "a poeira baixou", cada um foi investindo
Ainda antes de iniciar a separação do lixo em sala, fizemos no seu plano de construção, buscando outras sucatas e, princi-
uma simulação, onde as crianças divididas em dois grupos sepa- palmente, buscando formas para prender, colar, grudar as peças.
raram diversas figuras, previamente selecionadas, classificando- Neste momento é que a intervenção do adulto é muito importan-
as em lixo seco ou orgânico. Os cartazes ficaram expostos na sala. te, pois, frente à idéia pronta, muitas vezes a criança se frustra
Estes cartazes serão um suporte importante, uma vez que asco- por não conseguir prender como queria as peças da sua constru-
res usadas para escrever "lixo seco" e "lixo orgânico" foram as ção, o que gera desmotivação. O que o pessoal do teatro e nós,
mesmas usadas nos dois castos de lixo, facilitando assim esta "lei- professoras, procuramos fazer foi assessorar o uso da cola e do
tura". durex e também propor soluções alternativas frente a alguns con-
Mas o lixo seco pode ter outro destino: as sucatas, que estão flitos. Assim:
sempre presentes nas vidas das crianças, que são alicerces para
simbolizações, brinquedos ... Para divulgar ainda mais esta outra O professor precisa ser ativo demonstrando mobilidade e
possibilidade, convidamos um grupo de teatro para apresentar flexibilidade ao propor as atividades que possibilitem a seu
aluno inventar, descobrir ou reconstruir. A mobilidade é im-
um teatro de bonecos, todo construído com sucata. Depois reali- portante porque, para observar as crianças no seu trabalho e
zamos uma oficina de sucata com os alunos das turmas da ma- estar disponível para interagir, questionar, encorajar e pro-
nhã, unindo ainda mais os laços inter-turmas. por, o professor deve se movimentar.no meio delas e partici-
Mesmo antes da atividade, sua preparação foi um momento p~r de .suas atividades. ( ... ) A preocupação do professor, no
bastante rico para o grupo. Organizamos as sucatas da nossa" cai- d1~-a-d1a da pré-escola, deve ser a de pôr à disposição das
crianças os materiais, de facilitar as suas atividades, de res-
xa", verificando se estavam em condições de serem usadas. Tam- ponder às necessidades afetivas, de favorecer a interação en-
bém verificamos o que cada aluno trouxe da sua casa e a "histó- tre elas, de ajudá-las a resolver os seus conflitos e de criar
ria" de juntar sucatas para aquele momento: "A minha mãe tirou ocasiões favoráveis ao seu desenvolvimento. (RS, 1986: 40)
todas as pastas de dentes das caixas ... " (Renata) Após, passamos
a organizar uma outra caixa, com acessórios como tesouras, co- Os resultados foram castelos, princesas, guerreiros, aviões,
las, durex, palitinhos, botões ... Também purpurina que foi um trens, naves espaciais ... que foram expostos no salão. Achei bas-
pedido da Carina, logo incorporado por todas as meninas. Orga- tante significativo o fato de o Roberto ter feito um berço com um
nizar previamente, assim como organizar posteriormente o ma- bebê dentro, sendo que nesta semana ele soube que a sua ma-
terial de determinada atividade, contribui para que as crianças drasta está grávida. O combinado foi que cada aluno poderia le-
sejam os sujeitos daquela situação, com possibilidades de inter- var o seu trabalho para casa naquele mesmo dia, pois estavam
ferir sobre ela, uma vez que participam de todas as fases de sua tod?s ansiosos por isto. Por este motivo a exposição não durou
execução. mmto ...
O teatro foi curto, apresentado com uma linguagem clara e Como seqüência do trabalho, na semana que vem continuar-
50 Lúcia Lima da Fonseca
r · O universo da sala de aula 51
mos selecionando o lixo da sala de aula e, na sexta-feira levare- nos bairros Bom Fim ou Rio Branco); a Amanda também mora no
mos o lixo seco aos tonéis destinados a ele que se encontram na bairro Rio Branco, mas de São Leopoldo. "-É o mesmo bairro da
Redenção, isto porque o caminhão do lixo reciclável passa no Erika e do Roberto? Nããão!"
bairro aos sábados pela manhã, sendo impossível de ser presen- Esta semana, ainda, efetivamos a separação do lixo na nossa
ciada a coleta do lixo pelo grupo. sala e pedimos também que a professora que ocupa a mesma sala
Também, nesta sexta-feira, as crianças levaram para casa um no turno da tarde separasse com os seus alunos. Diversas foram
"tema", investigando a rua e o bairro que moram e em que dias e as situações em que alguém com um objeto para colocar no lixo
horários é a coleta do lixo seco e a do lixo orgânico. Este tema eu parava na frente dos dois cestos e ficava pensando e olhando os
propus com a intenção de encaminhar o assunto para a próxima cartazes para verificar qual o cesto certo. Os colegas vendo al-
semana e também pensando em um aluno especificamente, o guém hesitando, logo ajudavam dizendo de que lixo se tratava.
Vinícius. Eu percebo que ele ainda não está integrado ao assunto O lixo seco ficou acumulado na sala durante toda semana. Na
que a turma está trabalhando, não se detendo muito nos horários sexta-feira, o propósito era levá-lo até os tonéis de separação da
dirigido's da rotina. Porém, algo que o impressionou é que, desde Redenção. Antes disso propus que verificássemos que tipo de lixo
que ele se mudou, o caminhão do lixo passa à noite, ao contrário tínhamos produzido e que o separássemos.
de sua residência antiga, em Florianópolis, quando passava pela Para nossa surpresa, ao manipularmos o conteúdo das duas
manhã. Penso que é uma possibilidade, através de algo que cha- sacolas de lixo, havia muita coisa melecada e suja, pois muitas
mou sua atenção, de uma inserção mais significativa no grupo. embalagens não tinham sido lavadas após o uso. Frente às care-
tas de nojo das crianças, perguntei se aquele lixo estava realmen-
12 te limpo.
Ainda... o lixo
-Nããão!
- Ainda é possível que este lixo seja usado na reciclagem?
A primeira atividade da semana envolvendo o assunto da pre- -Nããão!
servação da natureza, especificamente do destino do lixo, foi a - Sim/ é possível,, mas para isto nós vamos ter que limpá-lo.
retomada do tema de casa: uma pesquisa perguntando em que
rua e bairro a criança mora, se há coleta seletiva, quais dias da Peguei um balde e um pano e passamos a lavar o que ainda
coleta de lixo orgânico e qual dia da coleta de lixo seco. Percebi era possível de ser aproveitado. A atividade logo virou festa, as
que o processo foi realmente envolvente para as crianças. Amai- crianças divertiram-se bastante no meio daquela molhaçada. Mas
oria escreveu com a ajuda dos pais as respostas e participou efe- o mais interessante foi vivenciar na prática o porquê da impor-
tivamente da roda de segunda-feira. Todos têm coleta seletiva de tância de lavar as embalagens antes de colocá4as no lixo seco.
lixo, mas na casa da Amanda o caminhão de lixo seco não passa, Fui relembrando as crianças durante a atividade o que nós já sa-
há um local onde os moradores podem levar o lixo. A partir disto bíamos sobre as usinas de reciclagem. As pessoas que trabalham
contei a minha experiência de verão: na praia, há um posto de lá precisam constantemente fazer uma re-separação,íazer justa-
troca de lixo seco por mudas de plantas. mente o que nós estávamos fazendo.
Algumas relações interessantes que foram estabelecidas a Após, com o lixo limpo reorganizado em duas sacolas, uma
partir desta atividade: as crianças que moram no mesmo bairro destinada a papéis outra a plásticos (não tínhamos vidro nem
têm a coleta do lixó nos mesmos dias (a maioria das crianças mora metal), fomos até a Redenção para depositar nossas sacolas nos
tonéis. Porém ... não achamos os tonéis. Os floristas nos informa-
r
.

· O universo da sala de aula 53


52 Lúcia Lima da Fonseca
ram que os tonéis mudaram de local na Redenção, mas não sabi- se, nem minimamente. Frente a estas situações chora muito, iso-
am para onde. Frente a esta realidade deixamos as sacolas em lando-se do grupo.
tonéis simples e retornamos para a escola. Não considerei a ativi- A minha posição é de estar atenta às situações conflitantes,
dade frustrada, pois o mais importante foi a sistematização da podendo acolher Erika, apontando as possibilidades de resolu-
separação e a vivência. ção, mas principalmente dando um colo, desviando o foco de aten-
ção, conversando sobre a situação do avô, o que ela está sentin-
Dado que ser humano e cultura são mutuamente do ... "Eu fico triste porque ele é o meu vô, mas a minha mãe fica
constitutivos, é certo que a criança que nasce recebe de ime- mais triste, porque é o pai dela". Assim:
diato todo o impacto das conotações culturais de sua socie-
dade, ao mesmo tempo em que tem, potencialmente, o poder
para contribuir na transformação da sociedade. ( ... ) Assim, Podemos levar a sério seus medos, suas preocupações e
podemos conhecer os fatos do mundo que vivemos exercen- seus problemas e dedicar-lhes nossa atenção. Às vezes, tudo
do sobre ele a nossa ação mental, possível pelas informações o que podemos fazer é estar com elas quando estão infelizes
culturais estruturantes e pela construção de estruturas lógi- ou indispostas e fazer-lhes companhia. Não podemos sempre
cas - aspectos solidários e indissociáveis, tanto para Jean aplacar uma dor ou desfazer uma má experiência. Mas, pelo
Piaget, como para Lev S. Vygotsky. (Deheinzelin, 1996: 24-5) menos, especialmente se a criança estiver de fato abalada, po-
demos dar-lhe toda nossa atenção.(Miller, 1992: 59-60)

l3 Justamente, pelo fato de a criança estar necessitando de uma


Quando alguém atenção especial, estar mais frágil que o comum em um momento
tem uma doença grave ... que toda família está abalada, torna-se fundamental que ela en-
contre amparo e proteção no ambiente escolar. Primeiro, porque
adultos distantes do problema podem falar dele com mais tran-
Erika está com o avô muito doente, pois após um Acidente
qüilidade e, segundo, porque é natural que a criança não queira
Vascular Cerebral ficou bastante tempo em perigo de vida e em
separar-se dos pais neste momento de angústiá, tornando a per-
coma. Atualmente apresenta um quadro clínico estável, está, se-
manência escolar mais sofrida.
gundo a família, lúcido, mas sem movimento corporal e sem fa-
A mãe de Erika comentou comigo que comprou juntamente
lar. Nesta semana foi para casa, onde foi adaptada uma cama
com a menina um livro tratando sobre "quando alguém tem uma
hospitalar e contratadas enfermeiras para os três turnos do dia.
doença grave" e eu sugeri que ela mandasse o livro para a escola,
Esta situação já se estende há mais de um mês, sendo que nas
pois trabalharíamos em grande grupo. E foi o que aconteceu na
primeiras semanas Erika ficou com os pais em Cachoeira do Sul,
sexta-feira.
cidade onde moram os avós. Retornou a Porto Alegre e à escola
O momento em que trabalhamos com o Íivro foi rico em
na semana passada, mas com a família toda muito apreensiva e
interações e trocas. Fui fazendo a leitura e abrindo simultanea-
emotiva, como fica qualquer família em circunstâncias como esta.
mente os espaços para que as crianças pudessem falar das suas
Percebo que Erika está refletindo nas suas atitudes a situação
experiências neste sentido. Todos têm uma história para contar,
de angústia que está vivendo. Uma criança que freqüenta o CID
de um familiar próximo que precisou ir para o hospital e depois
desde bebê e que sempre foi bastante independente, resolvendo
melhorou e inúmeras histórias de parentes, principalmente avós,
diversas situações com autonomia e com características de lide-
que já morreram. Muitas vezes estas situações aconteceram antes
rança frente à turma, está frágil, não conseguindo resolver qual-
mesmo de as crianças nascerem, mas elas têm conhecimento, pois
quer conflito com os colegas e também não conseguindo frustrar-
54 Lúcia Lima da Fonseca
perguntam sobre os seus avós e escutam a "história" do que acon-
r · O universo da sala de aula
por isso é tão comum vê-lo cair no pátio, ou apoiar-se em alguém
55

teceu. Eu percebo como é importante as crianças saberem desta para conseguir sentar em roda, ou empurrar a mesa e não a ca-
história, de saberem que tiveram um avô, ou um "bisa", que ti- deira quando quer se levantar.
nha um nome, um jeito de ser, eram parecidos com alguém que Seguindo, o livro tratava das internações hospitalares e foi a
elas conhecem (comprovar através das fotos que aquela pessoa vez de a Renata se identificar, contando que precisou ir para o
existiu, sim). Assim, vão construindo suas referências, sua iden- hospital para se operar, e que tinha vomitado. Contei para o gru-
tidade. po que a Rê nasceu com o céu da boca aberto, diferente da maio-
O livro mostra as diversas mudanças por que todas as pesso- ria das pessoas e que fez uma cirurgia corretiva. Ela ficou espan-
as passam. Mostra que todas as pessoas são diferentes, todos sen- tada de eu saber isto, pois quando aconteceu a cirurgia ela fre-
tem alegria, tristeza, raiva, ciúme e que é normal ter estes senti- qüentava uma outra escola.
mentos. E fala sobre as doenças, as que são "do lado de fora" e as Desta forma o assunto ampliou-se, sendo possível trabalhar
que são "do lado de dentro". Ainda fala sobre as doenças co- com as diversas realidades. Foi importante para Erika, que pôde
muns, crônicas, congênitas, contagiosas, graves e terminais. verificar que situações conflitantes e difíceis acontecem com to-
Fomos conversando sobre o que é uma doença comum (ex. dos, foi muito importante para Rena ta poder falar sobre sua "his-
gripe, resfriado ... ), doença crônica (ex. asma, doenças do cora- tória difícil", foi importante para cada um que contou uma histó-
ção ... ), mas quando fomos falar sobre as doenças contagiosas, para ria familiar ou pessoal, também para o Vinícius que viu sua difi-
exemplificar, as crianças disseram câncer. Seguiu-se então toda culdade sendo compreendida pelo grupo. Enfim, a cada nova
uma explicação que câncer não é contagioso, portanto podemos página do livro abria-se um leque de possibilidades e, justamen-
conviver, abraçar e beijar alguém que tenha câncer, sem correr o te por isso, esta atividade se estendeu por bastante tempo. Quan-
risco de termos esta doença. Muitas crianças tinham exemplos de do percebi que o grupo estava se dispersando, contei rapidamen-
pessoas com câncer na família e que acabaram falecendo, talvez te do que tratava o livro até o final e combinei com a Erika que o
por isso fizeram esta relação. Contei que já existem muitos trata- trouxesse novamente, para continuarmos esta exploração.
mentos para o câncer, que pessoas que se tratam podem ficar boas,
mas que ainda acontece de muitas pessoas morrerem desta doen- Esperar pelo momento certo, ser receptivo às aberturas da
ça. Enquadramos câncer em doenças graves e/ ou terminais e criança são provavelmente os melhores métodos, uma vez
exemplificamos as doenças contagiosas como catapora e saram- concluída a principal tarefa de abordar a triste questão e
explicá-la. De fato, com qualquer tipo de desgraça, essa é uma
po. política geral segura. Quer o acontecimento infeliz tenha sido
Mas ainda tinha mais um tipo de doença, as congênitas e o um acidente, uma operação, um luto, um divórcio ou qual-
exemplo surgiu na hora: o João, que freqüenta a la série, e tam- quer outro desastre familiar, é melhor di-scuti-lo no ritmo da
bém a Ana Paula, que freqüenta o Nível III, são crianças que não criança.( ... ) Superar uma coisa como esta leva um longo tem-
caminham, devido à Paralisia Cerebral. As crianças não domi- po para uma criança de quatro anos, exatamente como leva
para pessoas mais velhas. Ouve-se dizer: Oh, eles esquecem
nam esta nomenclatura, mas sabem que eles nasceram sem a pos-
tão depressa, mas a experiência comum nos ensina que isto
sibilidade de caminhar e, por isso, hoje em dia, usam cadeiras de não é realmente verdade. Antes que as crianças possam se-
rodas para se locomoverem. Nesta circunstância, em que faláva- pultar uma experiência dolorosa e levar avante suas vidas
mos das dificuldades e das possibilidades destes dois colegas, eu tem de haver esse processo de assimila~ão.(Miller, 1992: 84-5)
dei também o exemplo do Vinícius, que tem a possibilidade de
caminhar, mas não consegue se equilibrar tão bem quanto nós, e
56 Lúcia Lima da Fonseca
r
1
· O universo da sala de aula 57

14 das pessoas que estavam ali, como são, o que é possível de des-
Diferenças crever sobre o aspecto físico e também sobre as roupas que estão
usando. Fui direcionando a observação para que as crianças se
dessem conta de alguns aspectos. Ex: É possível ver as orelhas da
Aprender a ver significa perceber significativamente as di-
ferenças, gerando relações entre variedades complexas.( ... ) E
Julia? Não, por causa do cabelo que tapa. Mas do Roberto dá para
a palavra passa também a nomear essas relações, ampliando ver. O casaco com gola em formato "V" da Carina permite que
em novas categorias e classificações, num proces.so c?nsta~te vejamos a camiseta que ela tem por baixo, mas o moleton da
de semelhanças e diferenças.(Mirian Celeste Martins, m Freire, Amanda não. E, assim por diante, falamos sobre cor e compri-
1996: 34) mento dos cabelos, sobre cor da pele ("Ninguém da nossa turma
Aproveitando o trabalho com o livro "Quando algu~m ten; é bem branco, né 'pro', só quem é, é a Julia lá do berçário"), sobre
uma doença grave" enfocamos nesta semana outra questao que e as roupas, sobre os acessórios, como tiaras, brincos, passadores,
trazida nele. O fato de cada pessoa ser diferente da outra e que óculos ...
todos nós sofremos mudanças constantes, portanto cada pessoa Ao final da roda a proposta de registro foi que cada criança
também é diferente do que ela própria era há um tempo atrás. escolhesse uma parte da turma, isto é, alguns colegas para dese-
Aproveitei este tema, que semana passada só haví~mos comenta- nhar. Propositalmente não pedi que registrassem a turma toda,
do sem aprofundar, mas que tinha gerado interesse, para propor para não ficar um trabalho massante, apenas para cumprir tarefa.
algumas atividades de observação e registro em forma de dese- Assim, foi possível fazer uma seleção e cada um desenhar o que
nho. lhe é mais marcante na turma, qualquer que seja o motivo. Os
Após uma conversa sobre as vantagens e desvantagens de trabalhos foram, na sua maioria, realmente significativos. E o re-
não sermos mais bebês, propus que as crianças se desenhassem sultado final foram produções detalhadas, onde era possível re-
quando eram bebês e como são agora. Muitos d~senharam sim- conhecer quem eram as crianças nos desenhos, e a prof (eu!) tam-
plesmente duas figuras humanas de tam~nhos difere:ites, s~ndo bém que era reconhecida não só por ser maior que as crianças,
que este critério "tamanho" era a única cmsa que os diferenciava. mas pelas roupas que estava usando.
Tive a oportunidade de conversar com alguns alunos sobre os Considero importante salientar que o desenho da Renata foi
desenhos, questionando tamanho de cabelo, cor de olhos, etc.
um dos mais significativos que ela já fez em sala de aula, desde
Assim, de acordo com Moll e Barbosa: que entrou no grupo. Muitas figuras humanas, com detalhes que
ainda não haviam aparecido nos seus desenhos, também uma pre-
Ao professor compete, após fazer a sua avaliação do traba-
lho da criança, refletir sobre o que pode fazer para que esta ocupação com as cores, demonstrando o quanto o trabalho foi
criança possa continuar, com maior desenvoltura, seu pro- forte para ela.
cesso de construção cognitiva. É a partir desta reflexão que Outra proposta da semana foi um jogo de trilha, onde as "ca-
ele não só poderá dar continuidade ao seu diálogo com a cri- sas" eram rostos com diferentes expressões e todas as regras do
ança como também poderá repensar seu planejamento de lon-
jogo formuladas a partir destas expressões. Ex: "Está triste? Avance
go prazo. (ln: Becker e Franco, 1998: 105)
duas caras para se animar"; ou, "Que cansado! Fique uma vez
No dia seguinte, eu trouxe para a sala, no horário da roda, sem jogar para descansar". O jogo foi importante por diversas
um grande espelho e propus que nos olhássemos atentamente, razões: jogamos em grande grupo respeitand'o regras, trabalha-
cada um para si mesmo (e por isso o espelho) e para cada um do mos com noções elementares lógico-matemáticas, mas o que con-
grupo. O trabalho prosseguiu com uma conversa sobre cada uma siderei fundamental foi quando as crianças começaram ,a olhar
58 Lúcia Lima da Fonseca
mais atentamente para as expressões e comentar sobre elas. Ex:
"O triste parece que está brabo. 'Pro', por que tu não fez umas
lágrimas nele?" Assim estavam atentos a possíveis formas de
sentimentos e de registros dos mesmos.
Ainda foi significativo o trabalho de literatura (acontece sem- 7!! a 9!! semana de atividades
pre às sextas-feiras) onde a Amanda trouxe um, livro ~~ntando a
história de um menino com saudades da avo que Jª morreu,
relembrando situações que ele e a avó viveram juntos. Após uma
conversa sobre a situação da morte que foi o que ficou mais forte
para o grupo, também chamei atenção para as diversas formas
de expressão facial que apareciam. Ex: o menino e a avó alegres
no meio das borboletas, os dois assustados quando as lagartas
invadiram a casa e o menino triste porque a avó morreu. Propus
que as crianças escolhessem uma cena da histó:ia _rara des~nhar, O acantonamento
salientando as expressões das pessoas. A ma10na das cnanças
optou por dividir a folha de desenho em duas ou três partes, para
poder desenhar mais de uma cena.
Ao refletir sobre o andamento da semana, nesta proposta de
possibilitar que cada um se perceba enquanto único, singu~ar e
que também perceba da mesma forma as pessoas que o rodeiam,
considero apropriado o que Mirian Celeste Martins traz sobre o
educador:
O papel do educador é vital como mediador, como fazedor
de boas perguntas que instiguem o olhar curioso. Também
como criador de vínculos e de um clima pedagógico que per-
mita a expressão também esteriotipada, superando o medo
do aluno de 'falar bobagem', organizando a subjetividade in-
dividual como ampliadora do conhecimento que se constrói
no grupo, que se constrói no confronto com o outro que faz
descobrir o que sabe e o que ainda não sabe. Também como Nestafaixa etária (3 a 6 anos), usufruindo das
provocador de desafios para encontrar novas respostas, tor-
conquistas realizadas até então, as crianças encon-
nando visíveis para o aluno o significado de zonas de desen-
volvimento ainda potenciais.(In Freire, 1996: 35)
tram-se necessitadas e desejosas de novos e mais
complexos desafios. São eles a alavanca para o
Acredito que este olhar curioso que tanto desejamos que nos- eterno conhecimento, o vento da busca que nunca
sos alunos tenham, nós (educadores) devemos ter ao lidar com termina. São eles que transformam -os saberes
adquiridos em outros saberes, que possibilitam o
eles, um olhar não só curioso, mas um olhar de acolhimento, para
encontro com o inusitado, a .constatação dos
permitir que as crianças expressem tudo o que sentem, e um olhar próprios limites e a superação de hipóteses,
investigativo e que aposta nas capacidades dos alunos, para pro- medos, preconceitos e dificuldades.
por situações conflitantes, que gerem crescimento. (Gabriel, Gládis e Susana in Craidy, 1998: 54-5)
15
Comemorações do dia
da criança: aca_ntonamento

A opção da escola para as comemorações do Dia da Criança


fo~ que cada turma fizesse uma comemoração própria, env~lven­
do algum aspecto do projeto em andamento e que todos partici-
passem de um show de mágicas no dia 22 de outubro.
O Nível Integrado C e D há bastante tempo vem falando em
fazer um acantonamento - acampamento em local fechado. Reto-
mei a idéia com o grupo, combinando que esta seria a comemora-
ção de nossa turma. As datas escolhidas foram 16 e 17 de Outu-
bro, pelo fato de ser o final de semana que não teria nem feriado
nem eleição, prevendo assim que eu poderia contar com o maior
número possível de crianças participantes.
Nas diversas conversas a respeito da programação, as crian-
ças manifestavam desejo de trazer um bichinho de pelúcia para a
hora de dormir. Acordamos que sim, cada um poderia levar um
bichinho ou algo do gênero. A alimentação também foi previa-
mente combinada, portanto escolhemos um cardápio contemplan-
do os gostos em geral. E as atividades incluíam a observação do
céu com telescópio, o desfile de pijamas e uma fita de vídeo para
a hora de dormir. Cada criança queria sugerir o filme ou trazê-lo
da sua casa, mas combinamos que seria surpresa, .que seria uma
escolha minha.
Preparativos todos prontos, convites enviados para as casas e
uma semana de muitas explicações para os pais e listas e listas de
recomendações: uma não podia molhar a cabeça, outra não po-
dia tomar Nescau, outro tinha remédio de hora em hora ... Escu-
tei atentamente a tudo e garanti que em qualquer situação atípica
os pais seriam chamados imediatamente. Garanti para os pais
que este era um momento de confraternização e de alegria, não
sendo dé· forma nenhuma momento de pressão ou de tristeza.
62 Lúcia Lima da Fonseca
· O W1iverso da sala de aula 63
Com relação a esta situação, percebo claramente que as crianças
cujas famílias ficaram seguras e confiantes participaram numa A vida c~op~rati~~ da sala de aula, e da escola, e a priori-
boa, já as duas crianças que as mães ficaram inseguras e apreen- dad': ~onfenda a p~a~1ca ~a elaboração e conduta de projetos
sivas, na última hora acabaram não participando da programa- exphcttamente defm1dos Juntos permitem, de uma maneira
ção. Souza ao abordar o assunto a criança na escola, traz a se- exempl_ar, que a criança viva seus processos autônomos de
guinte contribuição: aprendizado e se insira num grupo e num meio considerados
como estrutura ~':e estimula, que exige, que valoriza, que
provoca ,contrad1çoes e conflitos e que cria responsabilida-
Entretanto, em nosso entender, é preciso considerar tam-
d~s .. (... )E permitir a ~rianças que construam o sentido de sua
bém algumas situações relativas ao ambiente doméstico, que
ahvt~ade de ª!uno. E aceitar que um grupo viva com suas
tem como núcleo a maneira como a família conduz o proces-
so de desenvolvimento emocional e de independização da a!egn~s, ~ntus1asmos, conflitos, choques, com sua experiên-
cta propna e todos lentos caminhos que levam às realizações
criança. Muitas famílias, inconscientemente, sabotam esse
complexas. CTolibert, 1994: 20-1)
processo através de condutas de superproteção que originam
padrões regressivos, impedindo uma satisfatória adaptação
da criança à escola. Em geral, tais condutas produzem um Material da escola encaminhado aos pais
alto nível de ansiedade de separação na criança, fazendo com
que ela não consiga desligar-se dos pais. Aliás, temos consta- CONVITE
tado que tal acontece principalmente em virtude das dificul-
dades dos próprios pais em separar-se dos filhos.(Souza, 1992: Oz:tubro/ m_ê~ das crianças ! E para comemorai; o CID está orga-
142) mzando atiVJdades especiais/ valorizando o trabalho que cada
turma vem desenvolvendo.
Finalmente, na sexta-feira, cada criança que chegava trazia O Nível !ntegrado C e p com o projeto Universo/ está traba-
todos os seus apetrechos, mostrava para os outros ... Estavam lhando simultaneamente com o sentido amplo do Universo (es-
excitadíssimos! O dia demorou a passar... mas quando chegou a pa.ço/ planetas/ estrelas/ Sol Lua .. .) e com o //Universo// de cada
cnança/ envolvendo suas relações sociais/ escolares/ sua cultu-
hora, tudo foi festa. O banho em conjunto, a organização dos ra ...
colchonetes, o lanche. (comeram superbem), as brincadeiras, o O ~cantonamento vem com a proposta de unir tudo isso/ 0 de-
desfile de pijama, o baile, o vídeo ... O único imprevisto foi que se;o d~ a_ventura e a possibilidade de observar 0 céu e descobrir
não houve possibilidade de observamos o céu. Eu acho que fi- peculiar:dad~s das estrelas e da Lua. Imdará ao cair da tarde de
quei mais frustrada do que as crianças. Quando fomos deitar para sexta-(eira/ dia 16 de Outubro e irá até o meio da manhã de sába-
do/ dia 17. O r?teiro com maiores informações segue em anexo.
ver o vídeo já era tarde e estavam todos bastante cansados. Al- O valor por cnança são R$ 3/00.
guns já dormiram antes de a televisão ser desligada e a maioria 4 P_ara fech_ar as comemorações/ um Mágico fará uma apresen-
dormiu logo depois de o filme acabar. Duas meninas demoraram ta~ao esp~c!ª! para todo o CID. Será dia 22 de Oútubro/ quinta-
mais para dormir, mas à meia-noite estavam todos dormindo. E /eira/ no mic10 da tarde. As crianças que freqüentam a escola no
dormiram até de manhã! Acordaram aos pouquinhos e começa- turno da manhã são convidadas a permanecerem no CID até l 6h
quando será o término da atividade. O ingresso são R$ 3/00. /
mos a organizar tudo. As crianças participaram intensamente de Como fo;m~ de melhor organizar estes momentos/ peçó-que os
todos os momentos, inclusive da organização final. resf!on5!veis por cada criança mandem escrito no caderno a au-
De acordo com Jolibert, acredito que este acantonamento foi tonzaçao para que participem do Acantonamento e do Show d
um projeto-empreendimento, todo ele organizado pelas crianças, Mágica e o dinheiro correspondente no valor tot/J.I de R$ 6 OO at.:
quarta-feira/ dia 14 de Outubro. / e
e posto em prática com sua participação.
64 Lúcia Lima da Fonseca · O universo da sala de aula 65

ACANTONAMENTO
DEPOIMENTO
DATA: 16 e 17 de outubro de 1998.
A idéia do acantonamento surgiu na turma de uma forma bas-
O que é preciso levar: - pijama e chinelo ou pantufa tante informaljá há meses. Aliás, acantonamento significa acam-
- travesseiro e cobertor ou edredom pamento em um lugar fechado, sob um teto. E nada melhoi; nes-
- uma muda de roupa e toalha ta primeira experiência, que este lugar tenha sido a escola, um
- um bichinho de pelúcia ou um brinquedo especial (para a hora espaço familiar para as crianças.
de dormir) . Tudo foi novidade. Os preparativos duraram semanas e as famí-
O que é opcional levar: - colchonete ou saco de_ dornpr lias foram 100%, uma vez que apoiaram e "deram corda"para a
- CDs de músicas variadas: Chíquititas/ Xuxa/ Eliana/ E o tchan. .. nossa idéia. As crianças preparando as roupas, os bichinhos de
- Lunetas/ binóculos pelúcia, os CDs, e eu organizand!J o que seria o cardápio, qual
seria a programação etc, etc, etc. Eu imaginava que alguém daria
ROTEIRO DE ATIVIDADES: para trás na última hora, alguém choraria de madrugada, preci-
saríamos (nós, adultos) passar a noite em claro. Mas que nadai
Dia 16 de Outubro Dos doze alunos do Nível Integrado C e D foram dez, um núme-
J9h - Observação do céu com telescópio e registro ro que considero significativo, e ainda mais um emprestado de
20h-Banho outra turma.
20h30mín - Desfile de Pijamas, jantar (sanduíche de atum/ san- A noite começou com o banho (há registro em vídeo, e vale a
duíche de presunto e queijo /suco, sobremesa de bombons pena) seguido de danças e brincadeiras com o microfone até a
biss) e baile hora do jantar. la surpresa boa: comeram superbem.
21h30 min - Vídeo surpresa e Nescau quentinho Nossos planos foram atropelados pelo mau tempo, pois uma das
programações era a observação do céu com telescópio. Não foi
Dia 17 de Outubro possível, mas pela primeira vez vimos as estrelinhas (star fixs)
8h30min - Café da manhã: Nescau ou café com leite /pão com da sala brilharem de ve;:dade.
geléia ou margarina e queijo/ maçã e banana/ Organização das Seguiu-se mais um momento de folia e já pra léf de cansados
mochilas e do ambiente fomos deitar para ver vídeo e /'acalmar a galera'~ Em torno de
JOh - Término do Acantonamento, hora de ir embora (os pais ou llh30min/ ao final do desenho do vídeo, já tinha gente dormin-
responsáveis buscam as crianças no CID) do e até à meia-noite todos estavam //apagados'~ 2a surpresa
boa: todos dormiram a noite toda. É claro que a cada suspiro ou
Observações: mexida nos edredons, ou até mesmo /~anho falado'~ eu acorda-
" As crianças que ficam na escola nos dois turnos já vêm pela va/ dava uma olhada geral, cobria um ou outro e voltava a dor-
manhã com a mochila preparada. Os pais podem vir dar um mír.
tchau no final da tarde, antes das 19 horas. De manhã cedo ao acordar me aventurei a dizer //tudo deu cer-
"As crianças que só freqüentam a escola pela manhã devem che- to'~ Nova maratona: trocas de roupas, café da manhã, mochilas
gar para o acantonamento entre 18h30min e 19h. . / a postos para esperar os pais. E mais bagunças/ com certeza.
" Qualquer recomendação especial sobre alguma criança (rem~­ Quando o pessoal foi embora/ apesar de estar cansada, achei que
dío, alimentação.. .) deve ser feita previamente para a prof Lu- tinha passado rápido demais.
cia. Foi uma experiência e tanto/ qize contou com a colaboração fun-
"Os país ou responsáveis devem estar em local onde possam ser damental da Cheila, da Lia e da fana, parceiras na hora da folia e
localizados, através do telefone, pois se houver qualquer even- na hora da organização. E .. no que depender de mim este não
tualidade entraremos em contato imediatamente. será o único acantonamento do CID, mas sim o primeiro de mui-
"Durante todo o tempo do acantonamento estarão aqui na esco- tos!
la Cheíla, Lia, fanaina e Lúcia. LÚCIA
· O universo da sala de aula 67
66 Lúcia Lima da Fonseca
mágico ficou nela; transformou a Amanda em coelha/ colocando
16 um pano pintado de coelha na frente dela; a Lia desfilou e guar-
Show de mágica dou o guarda-chuva, mas esqueceu de falar ABRACADABRA e
saiu o pano do guarda-chuva; o mágico botou um monte de pa-
pel na boca e depois tirou.
Seguindo as comemorações do Dia da Criança, nesta semana
a ênfase foi o Show de Mágicas. Fizemos um trabalho na turma Desta forma foi possível um trabalho e uma contextualização
anterior à apresentação, imaginando quais seria~ a~ mágica_s da atividade, que não ficou solta na rotina, teve todo um preparo
apresentadas. Foi um momento precioso, pois a maiona das cri- e uma retomada.
anças tinha a certeza de que o mágico faz na verdade ;ruques, Como as atividades em comemoração ao Dia da Criança es-
que ele não conta para ninguém como é que se faz. Porem, toda tão muito presentes na turma, deixamos um pouco de lado os
esta certeza não fez com que a situação do mágico perdesse o nossos projetos em andamento. Aproveito para salientar um mo-
brilho aos olhos das crianças, estavam todas ansiosas, aguardan- mento que sempre é muito rico na nossa rotina semanal: o dia do
do ... brinquedo de casa, às quintas-feiras. As crianças trazem muitos
Organizamos um texto a partir das nossas conversas prévias: brinquedos diferentes, o que enriquece os momentos de brincar.
Se nos outros dias da semana as crianças brincam com jogos de
O gue é um mágico? encaixe, com quebra-cabeças, com construções coletivas, nas quin-
- E uma pessoa que faz truques. Guarda todos os segredos/ só ele
tas-feiras os jogos são mais simbólicos, devido ao aparato que os
sabe os segredos dos truques. .
O que a gente acha que o mágico vai fazer aqw no CID: . cerca.
- Pedir um participante/ pôr numa caixa e fazer desaparecer,pedir
um participante para cortar no meio; transforma~ uma pessoa No espaço criado para as interações criança-criança, elas
numa galinha; fazer um coelhinho vir da cartola; tirar um passa- fazem tentativas de formular um enredo comum para a brin-
rinho da cartola; botar um pano na cartola e quando tirai; vai cadeira, confrontando seus desejos e representações, de modo
sair um monte de panos. a constituir novas maneiras de agir. Grádativamente, com a
maior experiência na criação de situações imaginárias na brin-
Após o show tivemos a possibilidade de retomar este es,cr~to cadeira, passam a ter maior controle sobre o enredo, poden-
verificando se aconteceu a mágica esperada ou se alguma magica do planejá-lo e distribuir os papéis com maior facilidade. Ao
fazer isso utilizam as capacidades simbólicas de representa-
foi parecida com o que as crianças tinham previsto. C?mo a_s ção da realidade que estão construindo. (São Paulo, 1994: 19)
mágicas, apesar de não serem as esperad~s (aque~as ~escritas aci-
ma), foram muito impressionantes, as crianças nao ficaram frus- Assim as brincadeiras de casinha, de ani~ais, de viagens
tradas. E, após conversarmos bastante e tentarmos, sem sucesso, mirabolantes são mais freqüentes nestes dias, quando há a união
descobrir como o mágico tinha feito, listamos o que para cada dos brinquedos trazidos de casa com os que estão à disposição na
um foi mais marcante: escola. Nesta quinta, as meninas fizeram um grande instituto de
beleza, onde se maquiaram, se pentearam e fizeram as unhas. Os
O Rafa tomou água/ depois ele tirou /por aquF'. Fizeram uma
torneira invisível; o mágico botou um pano no ouvido da Erika e meninos aproximaram-se, observaram o que se passava, mas ne-
tirou do bumbum do Henr.ique; a palhacinha fez a brincadeira nhum arriscou-se a entrar na brincadeira. Eles preferiram a cons-
de estourar o balão na cadeira; a Sofia pintou o retrato do palha- trução de grandes estradas para os seus carros.
ço com o dedo e apareceu tudo pintado; o mágico amarrou a
palhacinha e os panos voaram sozinhos e também o casaco do
· O universo da sala de aula 69
68 Lúcia Lima da Fanseca
A decoração, as fantasias e o medo
O brincar, numa perspectiva sociocultural, define-se por
uma maneira que as crianças têm para interpretar e assimilar O assunto Halloween estava nas conversas tanto oficiais como
o mundo, os objetos, a cultura, as relações e os afetos das
informais já há mais tempo, mas se intensificou no início desta
pessoas. Por causa disso, transformou-se no espaço caracte-
rístico da infância para experimentar o mundo adulto, sem semana. As crianças falavam das suas fantasias e demonstravam
adentrá-lo como partícipe responsável. (Wajskop, 1995: 66) uma grande curiosidade pela que eu e os demais profissionais
usaríamos. Como nós - adultos - combinamos de também nos
caracterizar, este foi um fator de motivação para as crianças.
17 Renata, por diversas atitudes e falas que venho observando,
demonstra ser uma criança muito calcada no real, não conseguindo
Halloween em diversas situações desprender-se e simbolizar. Foi assim tam-
bém em relação ao Halloween. A cada novo comentário ela mos-
Nesta semana o Halloween movimentou toda a Escola. Foi trava-se assustada "mas por que as bruxas vão vir aqui?" Frente
uma promoção da la série, que está estudando a cultura norte- a esta situação fui trabalhando com o grupo que as pessoas iam
americana dentro da aula especializada de Língua Inglesa, e que fantasiar-se de bruxas, mas que não deixariam de ser elas mes-
elaborou um projeto sobre o tema. Fizeram uma proposta de ati- mas. ( "Se eu colocar um chapéu de bruxa, roupa de bruxa, sapa-
vidades e divulgaram nas demais turmas do CID. Ainda em "Mês tos de bruxa viro bruxa?) Isto, que para os outros alunos era algo
da Criança" aproveitamos para fechar as comemorações de Ou- bem resolvido, foi ficando mais tranquilo para ela, que inclusive
tubro. _ optou por vestir-se de bruxa, mesmo quando foi combinado que
As atividades da nossa turma eram a sessão de vídeo "Con- poderia ser outra fantasia.
venção das Bruxas" na 4a feira, dia 28/10 e, fantasiados, pedir Na Sa feira, quando o salão começou a ser decorado com teias
doces e balas nas casas de alunos que moram perto do CID na 6a de aranha, árvores assustadoras, abóboras e coisas do gênero,
feira, dia 30/10. "Doces ou travessuras" era a frase dita pelos Renata teve uma recaída, perguntando o porque de já decorar o
grupos ao chegar em uma casa. A travessur~ co.mb.inada pelas salão se o Halloween seria só no dia seguinte. Levei-a no salão e
crianças, caso alguém não tivesse doces para distnbmr, era correr falei que era para que todos vissem que éramos nós que estáva-
por dentro da casa, gritando e assombrando a todos. ,No grupo mos arrumando tudo, não se tratava de nada fantástico. Isto tam-
que eu acompanhei, uma mãe optou por travessuras, so par~ ?ro- bém foi importante, pois na 6a feira ela era uma das bruxinhas
vocar o grupo e permitiu que as crianças colocassem em pratica a mais animada, sem medos ou receios. Reflito sobre este episódio,
travessura; após deu os doces. Em outra casa, a mãe pergunt~u a partir de uma citação de Abramovich:
qual seria a travessura e, ao tomar conhecimento do que sena,
preferiu logo dar as balas e pirulitos. Tudo estava pré-combinado Pois imaginar é também recriar a realidade. Pois é só estar-
com as famílias e foi uma atividade ótima. Todos voltaram para o mos atentos ao nosso processo pessoal, às nossas__relações com
CID com muitas balas nos saquinhos (cada um costurou previa- os outros e com o mundo, à nossa memória e aos projetos,
para compreender que a fantasia é uma forma de ler, de per-
mente o seu saco de balas e doces), cansados e com fome. ceber, de detalhar, de racioinar, se sentir... o quanto a realida-
A partir desta programação, diversas foram as possibilida- de é um impulsionador (e dos bons!!!) para desencadear nos-
des de exploração, sendo que destaco as seguintes: sas fantasias ... (1993: 138)
70 Lúcia Lima da Fonseca · O universo da sala de aula 71
O trabalho a partir dos medos e receios ajudou Rena ta não só moração proposta em outras Escolas Infantis (as situações comen-
para que ela compreendesse e participasse ativamente do tadas nas reuniões de estágio). Enquanto alguns lugares organi-
Hallowen. Espero que esse trabalho venha a refletir-se de forma zam agendas superlotadas de eventos para todo o mês de Outu-
positiva em outras situações do cotidiano da aluna. bro, cada turma do CID teve apenas três atividades especiais, em
três semanas diferentes. Do início do mês até o dia 16/10, cada
A situação de leitura turma organizou uma atividade relacionada ao projeto ou ao in-
teresse do grupo (no nosso caso o acantonamento), no dia 22/10
Na aula especializada de Música, as atividades de todo o mês houve a apresentação do Show de Mágicas, e no dia 30/10, o
centraram-se em histórias de terror musicadas e cheias de sons. Halloween. Isto permitiu que estas atividades fossem antecedi-
As crianças ao retornar para a sala de aula me re-contavam as das e retomadas pelas turmas, não as deixando "soltas". O mês,
histórias, demonstrando o quão significativas eram. Este recontar assim como em outras escolas, deu uma desestruturada nos pro-
foi um ótimo exercício de linguagem expressiva do grupo, que jetos (o nosso da preservação da natureza parou, literalmente),
queria me transmitir os mínimos detalhes da história, com o má- mas permitiu outros trabalhos a partir das atividades propostas
ximo de fidelidade. Se uma criança encabeçava a narrativa, logo nas comemorações.
era interrompida por outra que lembrava de algum detalhe. Al- Acredito que o fundamental para que estas atividades sejam
guns queriam logo contar o desfecho, mas eram detidos por ou- significativas é que o professor e os próprios alunos possam par-
tros mais minuciosos. Também foi possível perceber a interpreta- ticipar do planejamento delas, para que tenham uma
ção pessoal da história, pois, ao recontar, as crianças o faziam intencionalidade educativa. Isto não quer dizer que tudo tenha
através da sua ótica. De acordo com Deheinzelin: que estar relacionado aos projetos da turma ou que tenha um
porquê (Vamos à Ospa porque estamos estudando música ouva-
Neste momento o texto torna-se polissémico: cada leitor nle mos ao circo porque estamos estudando animais ... ) Mas, se sur-
coloca múltiplos sentidos, uma vez que nenhum bom texto diz
uma única coisa, é 100% interpretável. Nas frestas de um texto
gir algo a partir de uma atividade extra, que exista um tempo e
interessante cada leitor situa sua própria imaginação; ao fazê-lo uma disponibilidade do educador em investir nisto junto com as
torna-se, na leitura, uma espécie de co-autor. (1994: 67) crianças; quem sabe até surge um novo projeto.

Dentro do que traz esta citação e partindo do pressuposto de


que leitor não é só quem lê através dos seus olhos. "Quando o
professor lê um texto para as crianças, estas são tão leitores quan-
to o professor - uma vez que ler não é decifrar o código alfabético
e sim extrair significado de um texto escrito" (Deheinzelin,
1994:66), este tipo de atividade contribui para que estas crianças
sejam, desde já, bons leitores.

Uma reflexão sobre as atividades especiais de outubro

Fazendo uma breve reflexão sobre as comemorações do Dia


da Criança, fica impossível não fazer uma relação com a come-
1 O!! a 12!! semana de atividades

Rafael.preservação e
destruição

Edka:preservaçãoe
destruição(uma queimada)

Os seres humanos levaram milhares de


anos para dar nome a todas as-Plantas e
animais da criação, e ainda não
terminaram essa tarefa. E uma vida intei-
ra parece um tempo bem curto
para se aprender todos esses nomes.
(Jostein Gaarder, 1997: 13)
18
Preservação ou destruição

Durante esta semana, retomamos alguns pontos importantes


do projeto, no que diz respeito à preservação da natureza. Ao
relembrar o que exploramos sobre o assunto, fica mais evidente
para as crianças o estudo do lixo e suas possibilidades, como a
separação, a utilização de sucatas e a reciclagem, que, além de
preservar os recursos naturais do nosso planeta, diminui os
"lixões" e também dá emprego nas usinas de reciclagem. Mas
tudo isso é uma realidade distante para as crianças - até para
muitos adultos - e por isso não é fácil mudar alguns hábitos. Um
exemplo é que o lixo continua sendo separado em aula pelos alu-
nos, inclusive com uma certa facilidade, mas gestos simples como
lavar o pote de iogurte antes de colocá-lo junto ao "lixo seco" não
acontecem a não ser quando lembrados por mim.
Então, nesta retomada, procurei dar ênfase a diversas ques-
tões de preservação, tentando desta forma ampliar esta visão mais
ecológica dos alunos.
Trouxe para a sala diversas reportagens retiradas da revista
VEJA, tratando de situações de preservação ou de destruição da
natureza. Eram reportagens sobre animais em extinção, áreas pre-
servadas, queimadas ... Selecionei trechos de cada uma das repor-
tagens, li para o grupo e conversamos a respeito, sendo que ao
final montamos um painel classificando-as em PRESERVAÇÃO
ou DESTRUIÇÃO.
Após o painel pronto, pedi que as crianças definissem as duas
palavras, o que não foi fácil. Como as crianças. só conseguiam dar
exemplos, buscamos no dicionário o significado de preservação e
destruição e acrescentamos no nosso painel.
76 Lúcia Lima da Fonseca · O universo da sala de aula 77

Ainda uma outra relação possível foi o número de reporta- Relacionando a experiência de sala de aula com o trecho cita-
gens sobre preservação e o de destruição que havia no nosso pa- do é possível perceber quantos "conceitos" foram trabalhados.
inel: Primeiramente os conceitos de preservação e destruição, ou me-
- Como o número de reportagens de destruição é muito lhor, neste caso a compreensão veio antes da conceitualização, o
maior do que o de preservação, a que conclusão podemos che- que sem dúvidas é a melhor forma de trabalhar algo novo. No
gar? caso dos conceitos de macho, fêmea, fecundação, estes já eram
- Que existem mais situações de destruição do que de pre- conhecidos, mas foram ampliados relacionando-os a todos os
servação!.. animais. E também os seres humanos vistos como animais foi uma
- E o que isto significa? ... ge:µeralização importante para o conceito de animais.
Outra conversa que fluiu foi sobre os animais extintos ou em
extinção. Tratamos do que é preciso para que nasça um animal: É possível constatar que o ponto de vista de Vygotsky é
que exista um pai e uma mãe, ou um macho e uma fêmea que que o desenvolvimento humano é compreendido não como a
acasalem, que cruzem, que transem para que haja fecundação. decorrência de fatores isolados que amadurecem, nem
"Assim como nós, porque nós também somos animais." tampouco de fatores ambientais que agem sobre o organismo
Portanto, se matarem os machos e as fêmeas não haverá pos- controlando seu comportamento, mas sim através de trocas
sibilidade de nascerem novos filhotes, e a espécie deixará de exis- recíprocas que se estabelecem durante toda vida, entre indi-
tir. Neste momento a comparação foi com os dinossauros que já víduo e meio, cada aspecto influindo sobre o outro. (Rego,
existiram e não existem mais. 1995: 95)
A partir desta cadeia de relações que estabelecemos, saliento
a definição de "conceito" a partir dos postulados de Vygotski: 19
A Matemática ...
Na perspectiva vygotskyana, os conceitos são entendidos
como um sistema de relações e generalização contidos nas O autor (Piaget) sugere que as primeiras experiências de
palavras e determinados por um processo histórico cultural: matemática na escola devem estar baseadas na ação da crian-
são construções culturais, internalizadas pelos indivíduos ao ça, na utilização de material concreto, de modo a favorecer o
longo de seu processo de desenvolvimento. Os atributos ne- pensamento intuitivo. No seu ponto de vista, o ensino da ma-
cessários e suficientes para definir um conceito são estabele- temática deve consistir num diálogo entre os conhecimentos
cidos por características dos elementos encontrados no mun- informais que a criança adquiriu na vida e as novas tarefas de
do real, selecionados como relevantes pelos diversos grupos abstração e formalização com as quais se defronta-... (Golbert,
culturais. É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve 1997: 11)
que vai lhe fornecer, pois, o universo de significados que or-
dena o real em categorias (conceitos), nomeadas por palavras Partindo desta premissa é que as atividades matemáticas pro-
da língua desse grupo. (in Rego, 1995: 28) postas às quartas-feiras são sempre concretas e com um caráter
78 Lúcia Lima da Fonseca 'O universo da sala de aula 79
lúdico, que as caracterizam como jogos, de acordo com os própri-
os alunos.' desenvolvimento proximal define aquelas funçõe-s que ainda
Nesta semana, a atividade foi com materiais construídos: cai- não amadureceram, que estão em processo de maturação ...
xas (foram utilizadas caixas de fósforo Fiat Lux) com uma divi- Deste modo, pode-se afirmar que o conl'.ecimento adequado
são interna e uma abertura nesta divisão, com dez bolitas dentro, do desenvolvimento individual envolve a consideração tanto
possibilitadas, pela abertura, de circular por dentro de toda cai- do nível de desenvolvimento real quanto do potencial. (1995:
73-4) '
xa.
Em grande grupo mostrei a caixa por dentro, coloquei as dez De acordo com o exposto e refletindo sobre esta situação es-
bolitas e fechei-a. Sacudi a caixa e abri de um dos lados: "-Se pecífica, as crianças que ainda não têm formados os conceitos
deste lado aparecem quatro bolitas, quantas bolitas tem do outro matemáticos para a compreensão dp jogo são levadas a pensar
lado?" Jogamos algumas vezes assim em grande grupo, após for- sobre eles e colocá-los em relação. E as crianças que já têm uma
mamos três grupos, cada um com a sua caixa. maior construção neste sentido precisam retomar o processo para
Deixei que os grupos explorassem o material e jogassem sozi- poder falar sobre ele. Assim todos têm a possibilidade de "cres-
nhos por um tempo. Durante a exploração em grande grupo e cer", sem que haja qualquer distinção entre as partes envolvidas.
Seguindo a descrição do jogo, aos poucos fui me aproximan-
depois nos pequenos grupos, percebi clara!llente que algumas
do de cada um dos grupos conversando com os seus componen-
crianças já têm o conceito de todo e de partes formado, outras tes, jogando algumas vezes com eles e, após isto tudo, lançando
não. Fiz um "troca-troca" nos grupos, formando-os proposital- um desafio, colocando mais duas bolitas na caixa. Agora o total
mente com crianças em diferentes fases desta construção. Ore- passa a ser doze, obrigando as crianças a se reorganizarem neste
sultado foram momentos de conflito, pois mesmo as crianças que novo todo, para poderem fazer as relações com as partes.
já têm a noção do conceito sentem a necessidade de comprovar E ainda realizamos a representação do jogo .no papel (como
concretamente, até para mostrarem às outras, que têm hipóteses normalmente acontece), onde as crianças desenhavam a caixa com
diferentes, que elas que têm razão. sua divisão, representavam as bolitas, na disposição que queri-
Através desta interação entre as crianças verifico uma possi- am e, ao lado, com numerais identificavam o total da caixa, se
dez ou doze.
bilidade de trabalho da zona de desenvolvimento proximal, um
conceito de Vygotski que é explicado por Rego: São necessárias muitas ações sobre os objetos e reflexões
sobre estas ações para que o conceito de número seja consti-
A distância entre aquilo que ela (a criança) é capaz de fazer tuído, para que a criança seja capaz de entender o número
como uma classe de unidades equivalentes e seriadas, na
de forma autônoma (nível de desenvolvimento real) e aquilo medida em que são diferentes uma das outras. (Golbert,
que ela realiza em colaboração com os outros elementos de 1997: 42)
seu grupo social (nível de desenvolvimento potencial) carac-
teriza aquilo que Vygotsky chamou de zona de desenvolvi-
mento potencial ou proximal. Neste sentido, o desenvolvi-
mento da criança é visto de forma prospectiva pois a zona de
. O universo da sala de aula 81
80 Lúcia Lima da Fonseca
20 cie de Dinossauro pequeno, isto é possível de observar pelo fós-
sil; já o Dicinodonte é um dino de grande porte, pois se o dente é
A visita dos dinossauros
daquele tamanho ... imagina a boca, e a cabeça! As fotos mostram
a cabeça de um Rex e também a reconstituição de uma perna tam-
Estava tudo certo para que nesta semana continuássemos o
bém de Rex o que levou as crianças imaginarem que os
trabalho sobre a consciência ecológica, quando surgiu uma pos-
sibilidade de voltar um pouco nos nossos estudos e retomarmos Dicinodontes talvez fossem de um tamanho aproximado com o
6 tema dos dinossauros. Isto porque uma mãe da escola, que é dos Rex.
geóloga, sabendo que tínhamos trabalhado com o assunto e ten- A foto do dinossauro fossilizado ainda no ovo fez retornar a
do à disposição alguns fósseis, nos ofereceu este material para c~nversa sobre as condições necessárias para nascer e também as
ficar "nos visitando" por toda semana. Não pensei duas vezes e formas de nascer, se pela barriga da mãe ou através de ovos. Tam-
aceitei. Primeiro porque é uma possibilidade rara termos contato bém retornaram para as conversas as hipóteses de por que os
tão próximo com fósseis pré-históricos, portanto deveria ser apro- dinossauros deixaram de existir.
veitada independente do projeto em andamento. Segundo, por-
Muito interessante foram algumas conversas informais das
que o tema dinossauros mobiliza o grupo, traz a possibilidade de
lidar com o fantástico, o desconhecido, com os medos, com os crianças sobre o assunto. Em uma delas uma criança fez uma es-
tamanhos, as proporções. E, por último, porque existem diversas pécie de charada para um pequeno grupo." - O que os carnívo-
relações possíveis de serem feitas entre os dinossauros e a consci- ros comiam? - CARNE, né! - Mas, que carne? - e frente a um
ência ecológica. pequeno silêncio ela mesma respondeu: - De dinossauros, né! Não
O material consistia em um fóssil de plantas, mais especifica- existiam outros animais ou pessoas para eles comerem". Outra
mente samambaias; um fóssil de um peixe pré-histórico; um fós- criança olhando a foto em que a perna do dinossauro aparece do
sil de um tronco, um dente fossilizado de um Dicinodonte e um lado de um homem (mais ou menos três vezes Il).enor que a perna
fóssil de um Mesossaurio, aparecendo a coluna vertebral, alguns
do dino) concluiu ser bom que homens e dinossauros nunca vi-
ossos e uma pata. Também havia quatro fotos, um texto sobre os
vessem juntos. " - Não ia dar certo!"
dinossauros no Rio Grande do Sul e o desenho da reconstituição
dos Mesossaurios, dos Cinodontes e dos Dicinodontes.
_ Se refletirmos sobre as observações infantis e suas explica-
O que mais chamou a atenção do grupo foi o fato de aqueles çoes acerca do mundo ao seu redor, bem como sobre a manei-
fósseis serem aqui do RS e aqueles dinossauros terem vivido re- ra como hipotetizam as formas pelas quais ele funciona, fica-
almente aqui em nosso estado. Este dado gerou algumas curiosi- r:_mos _surpresos com a variedade e a ri.queza das inquieta-
dades a respeito de fatos que não havíamos explorado quando çoes e interpretações produzidas. (... )No afã explicativo, for-
trabalhamos sobre o assunto. Principalmente se aqui no RS vivi- ma básica de relacionar-se com o mundo, a criança constrói
representações e elabora conceitos decorrentes da sua
am os "pescoçudos" e as espécies como a "Saura" (do filme Em int~ração com os objetos, do convívio com as outras pessoas,
Busca do Vale Encantado). De acordo com o texto, a resposta é de informações veiculadas através dos meios de comunica-
negativa pois os principais dinossauros do RS eram os ção e de imagens que capta visualmente. A partir daí ela estabe-
Mesossaurios, os Cinodontes e os Dicinodontes. Apesar da frus- lece noções originais onde se misturam, s:le um lado a fantasia e
tração desta resposta, o texto e as fotos deram subsídios para com- o pensamento mágico e, de outro, tentativas de formulação ló-
gica criadas a partir de experimentações elementares e/ ou diá-
parações interessantes. As principais: o Mesossaurio é uma espé-
82 Lúcia Lima da Fonseca . O universo da sala de aula 83

logo com diferentes pessoas. Tal processo de apropriação ativa organizar algo mais concreto, para servir de material de análise.
de explicações socialmente já constituídas faz com que a crian- Para tanto comecei nesta semana a realizar algumas propostas
ça estabeleça aos poucos um saber reflexivo sobre os elementos individuais e outras em grupo, para ter dados mais precisos. É
envolvidos nas situações: quem ou que são eles, como se relaci-
onam, por que o fazem? (São Paulo, 1994: 29-30) preciso ter claro que:

Concordo com o citado acima, pois no primeiro contato com A passagem de um nível a outro, no processo de alfabeti-
zação, origina-se da tomada de consciência pelo aluno da in-
os fósseis as crianças se mostravam amedrontadas, como se hou-
suficiência das hipóteses até então por ele formuladas para
vesse algo a mais do que o mostrado ali, era toda a fantasia e o explicar a leitura e a escrita. Queremos assinalar com isto que
medo do desconhecido vindo à tona. Mais familiarizados, quan- a passagem de um nível cognitivo para outro mais elevado
do alguém vinha até a nossa sala para ver os fósseis (foi a atração não se dá porque foi atingido certo patamar de conhecimen-
da escola) faziam questão de mostrar, explicar o que sabiam e de tos tido como definitivo e estável. Ao contrário, a passagem
posarem como os grandes entendidos no assunto. Nas conversas, se dá porque se esbarrou num obstáculo - 'A consciência nas-
ce do obstáculo' (claparede). Este obstáculo é a consciência
como as citadas acima, também percebo a apropriação daqueles de uma ignorância, a de que foram feitas hipóteses insufici-
novos conhecimentos e as constantes relações com o mundo atu- entes, as quais não explicam a realidade a contento. Estas hi-
al. Percebo que é difícil imaginar o mundo naquela época, fica póteses se chocam com a explicação da realidade veiculada
mais fácil para as crianças imaginarem os dinossauros hoje em na cultura disponível. A ignorância, segundo Sara Pain, não é
dia: "Acho que ele era do tamanho do CID. Não, do tamanho do o não saber; é o saber equivocado que se mistura com o saber
ajustado ou adequado.(Grossi, 1990: 63)
prédio do Rafa ... "
Na próxima semana, trabalharemos com um livrinho que veio Primeiramente propus o teste das quatro palavras e uma fra-
junto com o material dos dinossauros, onde será possível relacio- se, que foi individual, e após, em outro dia, a proposta foi o dese-
nar isto tudo com a questão da preservação. nho e a escrita de uma casa e uma casinha.
Quanto aos resultados dos testes já realizados é claro que há
21 muita disparidade, uma vez que há uma diferença significativa
Refletindo sobre a de idades e de desenvolvimento, de uma forma geral. Mas, nas
construção da escrita ... crianças mais velhas que foram o foco principal das minhas in-
vestigações percebi que estão trabalhando muito bem com a idéia
Tendo em vista que o conselho de classe da turma já está pró- da letra, ou do conjunto de letras, correspondendo a um som.
ximo (será no dia 25/11) e que algumas crianças estão indo em 99 Principalmente, estão se questionando e comparando a escrita
para a primeira sérte, considero importante levar para o conselho produzida por eles como socialmente aceita. Es1e é um caminho
e registrar nos pareceres descritivos em que etapa da construção importante para que haja uma construção significativa para cada
da escrita e do número a criança se encontra. Com relação ao nú- um.
A posição epistemológica de base, hoje, é a d.e. que "apren-
mero, já estou colhendo dados, nos trabalhos das quartas-feiras, de-se resolvendo problemas". Portanto, o que leva uma cri-
que me permitem esboçar algumas hipóteses em relação a cada ança à estabilidade da escrita é o seu enfrentamento com um
criança. espaço de problemas referentes à escri,ta, que sejam capazes
Mas, na escrita, apesar de usá-la muito freqüentemente em de ser por ela trabalhados, isto é, que estejam à altura de sua
sala aproveitandv as hipóteses das crianças, senti necessidade de capacidade de compreendê-los e que sejam sócio-afetivamente
ricos de sentido e valor para ela. (Grossi, 1990: 14)
84 Lúcia Lima da Fonseca ·O universo da sala de aula 85
22 pre que surge o tema, mesmo que em segundo plano, ele torna-se
Inter-relação a partir preponderante nas falas e dramatizações das crianças.
da preservação da natureza Abramovich assim se expressa sobre o assunto:

E a morte, como é explicada, colocada, na nossa literatura


Nesta segunda-feira, a leitura do jornal nos possibilitou reto- infantil? O tema ainda é pouco explorado, como se as pessoas
mar o assunto Preservação X Destruição, isto porque duas repor- temessem tocar nele, como se a morte não fizesse [arte da
tagens tratavam de temas relativos à preservação da natureza. vida, como se a criança não se defrontasse com ela ... Ao nível
Durante a discussão, retomamos o painel, verificando em qual do que acontece no mundo, ela é informada o tempo todo: de
q~e há guerras, bombardeios, epidemias disto ou daquilo,
divisão (preservação ou destruição) aquelas reportagens deveri- aodentes, atentados terroristas neste avião ou naquela cida-
am ser fixadas. No caso específico de um artigo sobre a limpeza e de, tiroteios com a polícia, falecimento desta ou daquela cele-
preservação de um arroio, esta ação foi necessária devido ao fato bridade, deste ou daquele vizinho ... Sem contar que as pesso-
de o arroio estar muito poluído e ser depósito de lixo. Por este as de qualquer idade podem falecer por doença ou acidente a
motivo as crianças consideraram que a reportagem deveria ser qualquer instante. Ou seja, dum jeito ou de outro, a morte faz
parte das lamentações, faz parte das indignações. (p. 111)
classificada de destruição. Seguiu-se toda uma retomada para que
a ação que está sendo feita agora pela população fosse levada em
Concordo que a questão da morte é fortemente vinculada
conta pelos alunos.
nos meios de comunicação, mas não acho que na literatura ela
Ainda na roda, surgiu o assunto "queimada" devido a uma
seja deixada de lado. Os contos de fadas, principalmente, trazem
reportagem que já estava no painel e as crianças relacionaram
fortemente a morte como parte dos seus enredos. Outras históri-
com o filme "Bambi", onde acontece uma situação de queimada.
Combinamos de ver o filme. Marquei para o próximo dia de chu- as infant~s, clá~sic~s ou não, também retratam a questão. Apesar
de Bambi e Rei Leao serem produções em vídeo é possível tecer o
va e, coincidência ou não, choveu na Terça-feira. Julia e Sofia trou-
mesmo comentário: nos dois, a morte traz deses~rutura, tristeza e
xeram o filme e foi preciso fazer Uni-duni-tê para decidir qual o
um novo rumo para os personagens que ficaram ... Bem como na
filme veríamos. Parecia que se tratavam d dois filmes diferentes,
vida reaL
mas na verdade as duas queriam que fosse valorizada a lembran-
E, por falar em literatura x vídeo, a Clara trouxe no dia se-
ça e o interesse delas.
guinte um livro com a história do Bambi, só que não a versão da
Ao fazer a retomada do filme, verificamos que este inicia
Disney. Foi um outro momento para verificar as diversas versões
com o nascimento do Bambi, mostra fatos importantes de sua
que pode ter a mesma história. Verificamos questões em comum
trajetória de vi~a e acaba quando o personagem principal "casa"
e questões distintas nos dois Bambis. .
e tem filhotes. E a tal questão do ciclo da vida, também mostrada
Mas a questão do Bambi surgiu inicialmente devido ao as-
no filme do Rei Leão. Estabelecemos esta relação e surgiram mui-
sunto sobre preservação da natureza e posteriormente fizemos
tos comentários sobre semelhanças e diferenças entre os dois fil-
toda a retomada neste sentido. O bosque onde se pass_a a história
mes.
do Bambi era cheio de vida, com muitas árvores e muito verde
O filme também suscitou outros comentários, em especial a
respeito da queimada e sobre a morte da mamãe do Bambi. Com . com diferen~es animais, que encontravam ali tudo o que pr~­
cisavam para viver. O primeiro sinal da destruição foi com os
relação a esta questão da morte, é possível perceber como ela é
caçadores, e com a queimada o bosque foi destruído, os animais
algo que chama atenção do grupo de uma forma geral, pois sem-
tiveram que fugir e muitos morreram. Também ficou escassa a
86 Lúcia Lima da Fonseca
comida para os sobreviventes. Portànto, aparece claramente a si-
tuação antes e depois da ação do homem.
Dentre os diversos desdobramentos que o filme proporcio-
nou, ainda mais um merece destaque: é a questão do simbolismo
x realidade. Percebo que as crianças ainda têm a questão simbóli- Fim de semestre
ca muito forte, mas sentem a necessidade de marcar o que é fan-
tasia e o que é realidade. De acordo com Oliveira e Bossa, "As
características mágicas e anímicas decrescem com a capacidade
de a criança ver a realidade de forma menos subjetiva e mais
objetiva". (1994: 35)
Assim, é claro para todos que os animais não se comunicam
utilizando a fala, como se fossem humanos. (Há um tempo atrás
iriam ao Zoológico e ficariam espantados pelo fato de estes ani-
mais não falarem ... ) Apesar disto as crianças continuam a gostar
muito e referir os filmes em que isto acontece. Mas se os animais
não falam, as crianças tinham um conceito de que eles não sen-
tem necessidades, que não são capazes de gostar de alguém, que
não correm risco de se machucar, de fraturar um membro, de
adoecer...
A partir do exemplo de alguns colegas que têm bichinhos
de estimação (são poucos os que têm, a grande maioria mora em
apartamento), foi possível explorar mais esta questão, ressaltan-
do que os animais têm necessidades que precisam ser supridas,
como alimentação e água, são capazes de demonstrar alegria (sur-
giu o exemplo do cachorro que abana o rabo) e podem machucar- Sofia: crescimentos...
se ou adoecerem. Falamos também sobre a profissão Médico Ve-
terinário, que nada mais é do que médico de animais. Portanto, o
filme também serviu para desvendarmos alguns mitos. Enquanto a inteligência se propõe a apro-
priar-se do objeto conhecendo-o, generalizando-o, inclu-
indo-o em uma classificação, o desejo se proporia a
apropriar-se do objeto, representando-o. Igualmente, na
medida em que se apreende o objeto do conhecimento,
aumenta-se o desconhecimento, constata-se com a
ignorância, surgem novas perguntas, continuando-se
assim a busca de novos conhecimentos. Ambos
circuitos, o do desejo e o da inteligência,
enfrentam-se com afalta, com a carência.
(Alicia Fernándes, 1990: 74-5}
23
A chave do saber

O que ocorreu de mais relevante nesta semana surgiu de


uin momento bastante informal, o momento do lanche. O lanche
que é servido às nove horas para as crianças normalmente é algu-
ma fruta. Existem crianças que utilizam o cardápio da escola e
outras que trazem lanche de casa. No caso das crianças que tra-
zem lanche de casa, as famílias são orientadas a seguirem a mes-
ma linha de cardápio oferecido na escola.
Segunda-feira, enquanto o lanche da escola era melancia, o
lanche que o Vinícius trouxe de casa era uva. Ocorreu que o Vini
não estava demonstrando interesse palas uvas, pois comeu uma
e não quis mais. Estava de olho comprido para os pedaços de
melancia. Também se deu o contrário. Somente Sofia tinha gosta-
do do lanche. Os demais estavam interessadíssimos nas uvas.
Propus a troca, ou melhor, que os lanches pudessem ser compar-
tilhados, o que gerou contentamento.
O primeiro comentário que cabe aqui é o contante olhar aten-
to do educador e a flexibilidade necessária ao lidar com situações
de rotina. Lidar com todas as situações da rotina, inclusive o lan-
che, abrindo o espaço e muitas vezes coordenando-o, para que
este não seja sempre igual, não seja apenas um .cumprir de obri-
gações, para que seja um momento de possibilidades ...

Rotina aqui é entendida como a expressão do pulsar do


coração (com diferentes batidas rítmicas) vivo do grupo. Ro-
tina entendida como a cadência seqüenciada de atividades
diferenciadas, que se desenvolvem num ritmo próprio, em
cada grupo. (Weffort, 1992: 15)

Normalmente, a regra na nossa sala é não haver trocas de


90 Lúcia Lima da Fonseca O universo da sala de aula 91
lanches, isto porque, historicamente, as crianças que os traziam Foi um ritual: comparar a areia do pátio com a tera comprada,
de casa, em muitos momentos, se vangloriavam deste fato e, em passar as sementes de mão em mão, procurar potes adequados,
outros momento, quando o lanche do CID era considerado mais furá-los ...
gostoso do que o seu, pediam o da escola. A forma de dis~iplin~r Plantamos ... e agora. Acredito que o tempo mais difícil de
esta relação foi não abrir possibilidades de trocas. Mas a situaçao suportar é este anterior ao nascimento. E, ainda por cima, uma
descrita acima tem um caráter bem particular, até mesmo porque chuva inundou os nossos potes. Conversamos diariamente sobre
ninguém me pediu para realizar a troca, o desejo foi algo que eu as possibilidades de as plantinhas nascerem ou não. E fechou a
li nos olhares. E foi muito bom permitir a troca, até mesmo pelo semana sem que nossa plantação desse sinal de vida!
que veio depois... . . Refletindo sobre esta situação, remeto ao que Deheizelin con-
No decorrer do lanche, percebi a mesa ficando demasiadamente sid~ra:
suja, e não só isso, estava acontecendo algo, um mov~me1:1-to entre as
crianças que eu não estava compreendendo. Questionei-as e, para A natureza do conhecimento humano é inventiva, cons-
minha surpresa, estavam juntando semestes - das duas frutas -para trutiva. Nela as informações não são pré-fixadas, mas funci-
onam como pilares que geram transformações. Assim, a cha-
plantar no pátio. Conversamos um pouco e eu tentei desencorajá-las
ve do saber são as transformações geradas pela capacidade
devido ao fato de a areia não ser propícia e não haver um espaço inventiva das pessoas - qualquer que seja sua idade, diga-se
reservado, livre da interação das próprias crianças. Nada feito, fo- de passagem.( ... ) Assim, a imagem que temos do mundo é
ram para o pátio e plantaram assim mesmo. fruto da criação e combinação de esquemas do nosso pensa-
Encarei a situação como propícia para sairmos um pouco mento, das nossas formas de representá-lo. Quando conse-
dos animais (nosso foco da semana passada) e darmos espaço guimos operar mentalmente sobre o mundo, isto é, refletir
com autonomia a respeito de suas conformações, então pos-
nas nossas pesquisas, discussões e descobertas para estes outros suímos a chave do saber, temos a possibilidade de transformá-
seres vivos, as plantas. Os animais, as plantas, os seres humanos, lo. (Deheizelin, 1994: 10-11)
os dinossauros, todos fazem parte de uma grande classe na natu-
reza, os seres vivos. A separação que fazemos ao estudá-los, nem Acredito que as situações de sala de aula refletem muito o
sempre ajuda na compreensão, portanto, nesta s~mana, trabalha- que diz esta citação, principalmente quanto a operar mentalmen-
mos com as plantas, mas fica, como encaminhamento para a pró- te sobre o mundo, pois em diversas situações ao longo do ano
xima, o trabalho com os seres vivos de forma geral. fizemos isto juntos, e hoje em dia vejo as crianças com autonomia
Voltando ao fato da plantação, no retorno à sala de aula, neste sentido.
após o pátio, retomamos o que tinha ocorrido, e eu propus que E, falando também em transformação, nesta semana todos os
plantássemos alguma semente em potes na sala de aula, para que alunos da escola fizeram um trabalho para participar de um concur-
pudéssemos acompanhar o seu desenvolvimento. Conversamos so interno (para escolher a capa do convite do evento para os pais de
e listamos as condições necessárias para que as plantas nasçam e fechamento do ano) e o tema dos trabalhos foi a transformação. Con-
cresçam: terra, água, nem de mais e nem de menos, iluminação versamos em turma antes da elaboração dos trabalhos e. surgiram
solar, nem de mais e nem de menos. ótimas idéias de como desenvolver o tema: a criança crescendo, as
No dia seguinte, eu ainda nem tinha me organizado para fases da lua, mudança no corte do cabelo, a queda dos dentes de
efetivar a plantação, Julia trouxe de casa alguns grãos de feijão e leite ... Isto também reflete o quanto as crianças estão conseguindo se
sementes de alface. Fui em busca da terra preta enquanto as cri- colocar e subjetivar as questões que lhes são apresentadas ...
anças estavam em aula de música e plantamos logo em seguida.
92 Lúcia Lima da J<onseca O universo da sala de aula 93

24
acidente, quais eram as brincadeiras perigosàs. Nisto surgiu que
Crescimentos ... estas brincadeiras perigosas (descer o escorregador de pé, esca-
lar a estrutura dos balanços, andar de pé pela gangorra ... ) eram
Semana atípica, não houve um processo contínuo, pois teve muito legais e que as crianças não queriam deixar de fazê-las.
conselho de cli;lsse na 4a feira, precisei me ausentar durante duas Combinamos que, em algumas ocasiões, quando estivermos
horas na Sa feira e houve o aniversário da Erika na 6a feira. sozinhos no pátio (sem outras turmas) e que eu estiver bem pró-
Os feijões e as alfaces nasceram! Constatação principal da se- xima deles, estas brincadeiras poderão acontecer. Em outras oca-
mana e um cuidado diário de observar e regar nossas "planti- siões, não. Assim construímos uma regra de grupo contemplan-
nhas". Trouxemo-las para a sala de aula diversas vezes e inclusi- do o desejo das crianças e, ao mesmo tempo, que respeitasse a
ve registramos, através de desenho, como está o desenvolvimen- minha exigência, que tinha por objetivo a segurança das crianças.
to agora. Combinamos registrar de semana em semana, para ter- De acordo com Junqueira Filho:
mos bem presente o crescimento.
Na sala de aula, encontro de múltiplas, diferentes e diver-
Noções relacionadas à transformação de elementos, obje- sas possibilidades a serem administradas por todos nela en-
tos, situações, que aproximem as crianças da idéia de causali- volvidos, feixes elas em cada um de seus componentes, a se-
dade, podem ser estabelecidas quando, através de observa- rem gerenciadas individual e coletivamente, indicando na sua
ções, de fotografias ou de experimentos, elas constatam as conjugação, nas relações entre elas, o posicionamento políti-
transformações provocadas por diversos elementos do meio co e a consciência possível daquele grupo específico para con-
externo: a chuva, o vento, o sol, assim como o tempo, o ho- duzir o ato educacional, a relação tecida dia a dia na sala de
mem e a interação entre os elementos. (São Paulo, 1994: 36) aula será tanto mais viva quanto possível se organizada con-
siderando a plena realização de trocas das diversas possibili-
dades entre seus participantes.(1996: 32)
Assim, um fato que foi facilmente observável foi a ação do
sol, uma vez que foi uma semana muito quente e seca. Regáva-
mos diariamente e no dia seguinte a terra encontrava-se seca, como
25
se não tivesse sido molhada há semanas. Fizemos toda uma reto- Caminhada do grupo
mada sobre a importância do sol para o nosso planeta, algo que
havíamos estudado lá no início do projeto, por volta do mês de Essa é uma história que iniciou em março deste ano quando
abril. se estabeleceram os primeiros contatos entre as crianças e delas
Mas houve um outro fato marcante na semana. Quarta-fei- comigo. A ansiedade de um início de ano é algo_inerente ao pro-
ra, no pátio, a Carina descendo o escorregador em pé desequili- cesso, se as crianças ficam na expectativa de quais serão os cole-
brou-se e caiu, batendo a cabeça que cortou e precisou levar pon- gas, quem será a professora ... Nos professores há um interesse na
tos. Toda a história de sangue, choro, ida para o hospital, retorno história anterior dos seus alunos para mapear possibilidades para
no dia seguinte com o curativo mobilizou bastante o grupo. o ano. Isso traz reflexos para o início do processo, que-se dá real-
Foi uma situação propícia para falarmos sobre cicatrizes e cada mente quando acontecem as primeiras interações e passamos a
um poder mostrar a sua, uma na testa, outra no braço, outra na investir nessa relação: única e singular.
perna. Quem não tinha uma tratou de inventá-la. Na construção da nossa história, passamos por vários mo-
Mas a conversa não ficou por aí, discutimos o que gerou o mentos diferentes. Momentos estes de agitação, produção, dis-
94 Lúcia Lima da Fonseca . O universo da sala de aula 95

cussão, exploração, conflitos, vibrações, descobertas, emoções e características pessoais tanto físicas como subjetivas e o respeito
muito mais. Estes relacionados tanto ao aspecto cognitivo como a estas características. Respeitar cada um como é, respeitar a for-
ao afetivo e social. ma como cada um lida com os seus desafios foram aspectos que
O projeto Universo foi o aspecto centralizador desta rela- contribuíram para que este seja um grupo sólido, seja um grupo
ção. Ele percorreu o ano todo conosco, permitindo assim que não de verdade, independente da idade ou da fase do desenvolvi-
perdêssemos a noção do grupo frente a qualquer eventualidade. mento por que cada um esteja passando.
Assim fizeram parte do nosso ano a união de turmas no mês de Neste verdadeiro quebra-cabeça é preciso deixar claro que
maio, a saída de duas crianças, a entrada de outras duas ... Situa- o rumo das investidas do grupo foi sendo decidido por todos de
ções imprevisíveis mas muito comuns num ambiente dinâmico, acordo com o andamento das situações em sala de aula, os refle-
como uma turma de Educação Infantil. A partir das transforma- xop da situação familiar de cada um e dos acontecimentos do
ções, conseqüentemente maiores trocas foram ocorrendo, novos mundo. Mas sempre com uma intencionalidade educativa, com
conflitos, diferentes regras, novas necessidades, intervenções ora uma proposta a mais, com ampliação dos assuntos. Percebi que
centralizadas na professora, ora de criança para criança, parceri- as ciências tanto físicas, biológicas, como sociais estavam com o
as se modificaram, novas çuriosidades e interesses ... seu espaço garantido em aula, pois eram mola propulsora do pro-
Se no primeiro semestre a ênfase foi para as descobertas re- jeto Universo, foco de nossas descobertas e investidas. A língua
lativas ao aspecto infinito do Universo, a imensidão do cosmos, o materna também muito presente nas discussões orais, nos dife-
Sol, o sistema solar e seus planetas, neste 2º semestre rentes portadores de textos utilizados, nas pesquisas, nos regis-
aprofundamos diversos estudos sobre a Terra, parafraseando Ruth tros individuais e coletivos ... A literatura com um espaço especi-
Rocha: "Azul e Lindo, Planeta Terra, Nossa Casa". al, pois utilizamos textos científicos, informativos e literários, es-
Pesquisamos e estudamos desde situações pré-históricas como miuçando-os, compreendendo-os e reescrevendo-os ou escreven-
os dinossauros até situações de poluição e destruição, estas bem do a partir deles. As artes presentes nas constantes relações
pós-modernas. Destaco aqui o papel fundamental do lixo: lixo entre os desenhos, as pinturas, as fotografias, as diversas for-
orgânico, lixo seco, sucata ... E, o principal, o que nós podemos mas de comunicar algo, as propostas artísticas élentro do projeto
fazer para contribuir com isso tudo: a sepáração em sala, a utili- e também independente dele, no pintar pelo pintar, desenhar pelo
zação da sucata e a reciclagem! desenhar, sem que algo tenha que ser necessariamente o tema
Outro aspecto explorado pela turma sempre que surgiu a central. E, na matemática, diversas relações lógicas eram feitas a
possibilidade foi a divisão terrestre. As datas comemorativas como qualquer momento, aproveitando situações diversas, principal-
Independência do Brasil, Semana Farroupilha e ainda a Eleição mente as cotidianas.
para Presidente da República e Governador do Estado foram Por uma necessidade minha, sistematizei melhor a questão
aproveitadas neste sentido. País, estado, cidade, foram palavras da matemática na turma, criando oficinas semanais, onde atra-
que passaram a fazer parte do nosso vocabulário, apesar de nem vés de jogos aprofundamos relações de conjuntos, atributos dos
sempre bem empregadas ou compreendidas. Para tanto o mapa e objetos, classificações e seriações, noção de número ~ quantida-
o globo foram nossos aliados. E, ainda por cima, tem uma tal de, e até mesmo algumas relações de adição e subtração. Como
história de pólo norte e pólo sul... são momentos de jogos coletivos, cada criança trabalha os seus
Outra situação que nos envolveu ba,stante foram as mortes. conceitos, relacionando-os com os conceitos cios colegas, preci-
E com a morte veio a vida! Todas as formas de v~da, e.11os seres sando justificá-los e muitas vezes coloçando-os em cheque, o que
humanos teve destaque o aspecto único dia vida de cada um, as permite uma reformulação e um crescimento. Ainda existem os

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96 Lúcia Lima da Fonseca
· O universo da sala de aula 97
registros, onde após as vivências práticas, cada um representa no sempre preocupado que cesto de lixo usar. Roberto muito ligado
papel, utilizando símbolos. . no seu crescimento pessoal, marcado pela troca dos dentes, algo
Assim, de acordo com o descrito, acredito que o q~e que também marcou forte em Renata. E Sofia sempre atenta na
Deheinzelin chama de Objetos Sociais do Conhecimento a ma- relação entre Brasil e Uruguai e todos os pontos de concordância
temática, as ciências, a língua portuguesa e as artes- estão sendo e discordância possíveis.
explorados no decorrer do processo. - · Estas são marcas de quão singular é o processo, o que signifi-
E o brincar... o lúdico é o que há de mais precioso nesta faixa ca para um pode passar desapercebido por outro. Mas o mais
etária e precisa ter o seu espaço garantido na Educação Infantil. importante é que ninguém fecha o ano da mesma forma como o
Assim, nas situações diárias de brinquedo livre é que fica possí- iniciou. O crescimento físico, as mudanças e o aprimoramento
vel perceber o ,que está sendo forte no momento para cada uma dos conceitos, os que deixamos de lado e os que incorporamos ...
das crianças no grupo: se é o que tratamos em aula, se é uma são situações importantes para todos os envolvidos, alunos e pro-
situação familiar, se é uma mudança de estrutura ... Os jogos sim- fessora. Isto é um processo ativo, isto é uma construção!
bólicos estruturam situações de casinhas, de escola, de filmes in-
fantis, de médico. As situações relativas a nascimentos, sexuali-
dade e morte aparecem claramente nestes momentos.
No dia do brinquedo de casa, há toda uma disputa de poder
que estes brinquedos proporcionam nas relações interpessoais, e
surge mais do que nunca a necessidade da intervenção da profes-
sora. E se há crianças que trazem muitos brinquedos para serem
foco de atenção, há as que não trazem nenhum, ou somente u:n;
pequenino, para não correrem o risco de terem que emprestar. E
preciso lidar com tudo isso e achar a intersecção das relações.
E, ainda, as situações relacionadas ao lúdico tiveram uma forte
inserção nas comemorações do dia da criança. No Mágico e no
Halloween os aspectos do fantástico foram fortemente explora-
dos. E o Acantonamento, momento de dormir fora de casa, de
lidar com as reais inseguranças, mostrar-se corajoso e destemido,
foi um sucesso, permitindo a exploração da autonomia de cada
um.
De tudo, ficam as marcas! E se os olhos da Amanda brilham
ao classificar e seriar diferentes objetos das oficinas matemáticas,
Carina é encantada com o fato de a Terra ser somente um pedaci-
nho neste imenso Universo. Clara tem fascínio pelas histórias in-
fantis e Erika pelas histórias científicas. Gustavo e Julia dariam
tudo para serem mosquitinhos na época dos dinossauros, tal a
paixão pelo tema. E Luiz Felipe é mais ligado com os animais
atuais. Rafael, muito ativo na separação do lixo, contagiou Vinícius

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100 Lúcia Lima da Fonseca
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WEFFORT, Madalena Freire. (coord.) Rotma: construção do tem- ~programação cultural
~lançamentos
po na relação pedagógica. São Paulo: Espaço Pedagógico,
~pedidos
1992. ~ cardápios de livros em educação
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afetivos, bem como momentos
de descobertas e produções das
crianças.
O Projeto Universo é o tema
centralizador das relações entre
Lúcia e seus alunos, de onde
decorrem novas atividades,
curiosidades e interesses.
Temas, como a preservação e
destruição das formas de vida,
diferenças entre as pessoas,
morte, são desenvolvidos com
profundidade e vibração por
todos, fazendo-nos perceber o
significativo envolvimento das
crianças num ambiente
educativo que lhes proporcione
desafios, segurança e afeto. ·
O Universo da Sala de Aula
representa uma contribuição
inédita a estudantes e
professores que acreditam
numa ação educativa que
respeite a criança em sua
realidade própria.

Lúcia Lima da Fonseca é


natural de Porto Alegre,
Graduada em Pedagogia
Habilitação Educação Infantil
pelá UFRGS. Atualmente é
professora do CID
(Centro Integrado de
Desenvolvimento),
em Porto Aiegre, onde
desenvolve um trabalho
ped~gógico voltado à
integração de crianças com
1 necessidades educativas
especiais.

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