Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A FLOR E O ESPINHO
A formação brasileira de Sergio Buarque de Holanda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Novembro de 2020
2
A FLOR E O ESPINHO
A formação brasileira de Sergio Buarque de Holanda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Tese de Doutorado
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Agradecimentos
Não é sem algum desconforto que apresento estes agradecimentos, que fatalmente terão
deixado de fora pessoas importantes para a realização desta tese, e que dão uma
apresentação às vezes amplamente insatisfatória das razões da inclusão de seus
destinatários. Agradeço a Luiz Costa Lima, pela orientação e pelo exemplo dificilmente
equiparável de vigor, amplitude de interesses e excelência intelectuais; a Robert
Wegner e Pedro Caldas, pelos comentários e sugestões que me ofereceram no exame
de qualificação; a Leandro Garcia Rodrigues, pela ajuda em localizar textos de Alceu
Amoroso Lima citados na tese (e a Gustavo Silveira Ribeiro, por ter me posto em
contato com Leandro, que de outro modo não conheceria); a Telma Murari, pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Resumo
Palavras-chave
Sergio Buarque de Holanda; Historiografia Brasileira; Literatura Brasileira;
Pensamento Social Brasileiro; Crítica Literária
7
Abstract
Martins, André Jobim. The flower and thorn: the Brazilian education of
Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, 2020. 385p. Doctoral dissertation
– History department, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This dissertation analyses the first phase of Sergio Buarque de Holanda’s writing,
starting from the first critical essays of 1920 through his first book, Roots of Brazil
(1936), focusing on the key concept that articulates his thought during this period: that
of education/culture, taken in the meaning given to it by the German Classical
Humanism of the turn of the nineteenth century (encompassed by the word Bildung).
In the course of this work, as we observe the evolution of the ideas that Sergio Buarque
develops about Brazil and its literature, we also follow the formative process of the
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
critic, historian and essayist himself, through his interactions with the expressions of
Brazilian culture.
Keywords
Sergio Buarque de Holanda; Brazilian Historiography; Brazilian Literature;
Brazilian Social Though; Literary Criticism
8
SUMÁRIO
ABREVIATURAS 9
PRÓLOGO 11
I. ARIEL 24
1. Fanatismo 76
2. Heresia 84
3. Duelo 120
4. Um profeta 143
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
BIBLIOGRAFIA 373
9
Abreviaturas
EC Escritos coligidos (seguido de indicação de volume)
RBC Raízes do Brasil (edição crítica organizada por Pedro Meira Monteiro e Lilia
Moritz Schwarcz, Companhia das Letras, 2016)
Prólogo
A obra de Sergio Buarque de Holanda começa em 1920, com ensaios curtos de crítica
literária publicados na imprensa paulista, e vai se abrir num leque variado de temas e
inscrições disciplinares até a consagração acadêmica do autor como titular da cátedra
de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo, em 1958, quando
defende a tese Visão do paraíso. A partir daí, salvo por textos curtos e por reimpressões
em livro de ensaios anteriores a essa data (é o caso da segunda edição de Cobra de
vidro, em 1978, e de Tentativas de mitologia, em 1979), seus textos se passam a se
circunscrever ao campo historiográfico. Apesar de abarcar textos temática e
metodologicamente muito variados, não haverá grande exagero em afirmar-se que toda
a produção encerrada no período anterior a 1958 pode ser abarcada por uma
impressionante unidade, a unidade de uma ideia fixa de Sergio Buarque: a ideia de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
formação. Instado a apresentar o argumento central desta tese, eu diria que é este: forma
e formação são as categorias condutoras do desenvolvimento intelectual de Sergio
Buarque de Holanda, categorias que nunca saem do limiar de sua atenção como
observador da cultura. Esse argumento quer, antes de mais nada, sugerir uma maneira
de compreender a obra estudada. Os estilos metodológicos (a sociologia, crítica, a
historiografia, e mesmo, se se quiser, o “ensaio”) representam disposições de análise
adotadas pelo autor em diferentes ocasiões, condicionadas por circunstâncias
biográficas e merecedoras, em si mesmas, de atenção. Mas quero propor aqui que, para
se ter uma visão do todo, o que há de realmente essencial está na ideia mesma de forma.
“O essencial de todas as manifestações, das criações originais como das cousas
fabricadas”, escreveu Sergio Buarque no parágrafo conclusivo de seu primeiro livro,
“é a forma” – o grifo é dele. O que o seu olho procura e acha, quando olha para o
mundo, são formas.
Esta tese acompanha aqueles que me parecem ser os momentos decisivos da
trajetória ascendente do desenvolvimento da ideia de forma no pensamento do autor,
assim como de sua sucessiva atualização em contato com seus objetos de estudo.
Algumas escolhas em privilegiar certos materiais foram necessárias, devido à extensão
do conjunto textual analisado e à riqueza do tema. Praticamente não dediquei nenhuma
atenção aos estudos de Sergio Buarque sobre a “expansão paulista”, desenvolvidos a
12
partir do final dos anos 1930 e conhecidos sobretudo pelas partes reunidas nos livros
Monções (1945) e Caminhos e fronteiras (publicado em 1957, embora a maior parte da
pesquisa ali apresentada date de meados dos anos 1940). Não foi por considerá-los de
menor importância ou pertinência para o argumento deste estudo que optei por não
fazer uma análise aprofundada desse complexo de estudos sobre civilização material,
mas apenas porque essa análise me exigiria uma familiaridade com uma bibliografia
etnológica e historiográfica que não possuo e que exigiria um tempo de que não pude
dispor. Também não fiz algo que planejei originalmente, isto é, analisar a produção
crítica de Sergio Buarque de Holanda dos anos 1940 e 1950, o que me deixou muito
contrariado, porque investi alguma energia intelectual e até afetiva na leitura desses
textos, e acredito que teria uma ou duas coisas de interesse a dizer sobre eles a partir
dos argumentos desenvolvidos ao longo da tese, mas percebi, já bem avançada a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
redação dos capítulos que, para fazer justiça a eles, ainda seria preciso mais estudo, ou
então apresentar algo ainda incipiente, de muito menor qualidade do que o resto da
tese. A verdade é que há praticamente uma segunda tese por escrever, que me levaria
aos textos que eu mais ambicionava comentar, mais até, talvez, do que Raízes do Brasil:
Capítulos de literatura colonial e Visão do paraíso. Também foi motivo de frustração
não poder me debruçar com mais calma sobre a dissertação de mestrado Elementos
formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos (1958), o texto que,
em toda a obra de Sergio Buarque de Holanda, é aquele que mais se parece com Raízes
do Brasil e que, ao contrário do que se possa depreender de sua condição inédita e,
infelizmente, acessível apenas por visitas presenciais ao SIARQ da UNICAMP,
mereceria uma reflexão muito mais ampla nos estudos da obra de Sergio Buarque do
que tem sido o caso até o momento. Acredito que uma análise cuidadosa desse texto
alteraria significativamente alguns pressupostos prevalentes na fortuna crítica
buarquiana, especialmente aquele que identifica na consagração acadêmica de Sergio
Buarque um correlato metodológico que poderia ser descrito como o abandono do
“ensaísmo sociológico” supostamente pouco rigoroso praticado em Raízes – existem
mesmo alguns comentários do próprio autor nesse sentido – em proveito da pesquisa
histórica de base científica, movimento que, nessa linha interpretativa, teria sido
influenciado pelo contato de Sergio Buarque com a chamada Escola dos Annales –
13
1
Laura de Mello e Souza já manifestou, em seu posfácio à edição de 2010 de Visão do paraíso, o ponto
de vista de que Sergio Buarque fazia uma publicidade um pouco distorcida de seu grande livro, embora,
salvo engano, a historiadora não mencione o prefácio da segunda edição como um fator (em razão da
crise sanitária de 2020, em meio à qual escrevo este prólogo, não pude consultar novamente este texto
relativamente breve, que cito de memória, mas que influenciou muito minha leitura de Visão e da obra
de Sérgio). MELLO E SOUZA, Laura de. Posfácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do
14
realmente faz do livro uma tese e não uma coleção de comentários, abordada tanto no
primeiro capítulo como no último (“América Portuguesa e Índias de Castela”), fica
relegada a uma observação lateral 2 e o livro é retratado como tendo por “tema” a
“biografia” do mito do paraíso terreal e de sua fortuna na colonização da América pelos
portugueses3. Essa é, talvez, uma das razões de ser de certo ponto de vista corrente
sobre o livro, isto é, de que ele seria diretamente dedicado a uma análise das fantasias
desvairadas dos conquistadores, ou, ainda, de certo imaginário edênico mobilizado
como matriz mítica de discursos nacional-identitários sedimentados na literatura, 4
quando na verdade esses desvarios são sobretudo o pano de fundo a partir do qual
Sergio vai desenhar o fenômeno muito mais sutil e teoricamente estimulante, ainda que
menos sensacional, do realismo português e da visão de mundo nele encerrada. De fato,
Visão pode bem ser lembrado como o livro maior de Sergio Buarque, mas ele nunca
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
será tão lido quanto Raízes. Quanto a Do Império à República e os estudos sobre a
expansão paulista, tenho a impressão de que eles não costumam ser tão intimamente
ligados à imagem que Sergio deixou para a posteridade como autor; talvez a direção da
História Geral da Civilização Brasileira ocupe também um papel destacado em sua
identidade intelectual póstuma, mas trata-se de uma coleção em sua maior parte apenas
coordenada por Sergio. Longe de pretender diminuir a magnitude desse esforço, apenas
pondero que, enquanto não for superado o prestígio social da autoria, dificilmente
alguém que tenha escrito livros tão instigantes como Sergio Buarque poderá ser
lembrado acima de tudo como o organizador de uma grande coleção.
Peço a licença de lançar uma breve anedota autobiográfica em apoio à presente
argumentação: o primeiro livro de Sergio Buarque de minha biblioteca foi Visão do
paraíso, que ganhei de minha mãe, ainda adolescente, em 2006 ou 2007. Eu não era lá
paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
2
“Só depois do século XVI [...] é que a sobriedade e o realismo que pareciam distinguir [...] os escritos
portugueses vão dar lugar a efusões mais desvairadas”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do
paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996,
p. XX.
3
Ibid., p. XVIII.
4
É o caso de pelo menos três dos livros de temática aparentemente semelhante publicado nos Estados
Unidos comentados no prefácio de 1969, como o de Charles Sanford, The quest for Paradise, o de Henry
Nash Smith, Virgin Land, e o de R. W. B. Lewis, The American Adam Innocence. Visão do paraíso, cit.
(Ed. Brasiliense, 1996), p. IX-XI.
15
um rapaz muito livresco, e tenho a lembrança de pegar o volume para ler algumas vezes
e desistir, com meu conceito da minha própria inteligência um pouco abalado, ainda
nas primeiras páginas, chegando, resignado, à conclusão de que o livro era
praticamente ilegível depois de ter me deparado, folheando o miolo, com as longas
citações não traduzidas em francês quinhentista e latim (acredito que a edição mais
recente, que consultei apenas para ler os textos críticos de Laura de Mello e Souza e
Ronaldo Vainfas, e da qual não pude dispor na escrita deste prólogo, já tenha resolvido
esse inconveniente). Só fui de fato enfrentar Visão do paraíso do início ao fim há pouco
tempo, depois de umas três tentativas frustradas já durante o doutorado, sem ter
conseguido passar do primeiro capítulo, que é provavelmente o mais acessível. Quando
a leitura de fato engrenou, me convenci de que seria especialmente enriquecedor para
a pesquisa que eu vinha desenvolvendo investir seriamente na interpretação desse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
momento colossal da obra buarquiana, fazendo dele, quem sabe, um dos objetos
principais da tese. Esta tese foi redigida com a intenção de chegar a esse e a outros
textos posteriores a 1936 (como disse acima: os inéditos de literatura colonial
publicados postumamente, Elementos, e os ensaios críticos sobre Bandeira, Drummond
e Cabral) e ao desenvolvimento de linhas de argumentação como as que acabei de
esboçar, e assim encerrar o ciclo da formação brasileira de Sergio Buarque, tal como o
concebo. Como costuma acontecer nesses casos, o material “preliminar” foi se
mostrando muito mais rico e exigente do que eu inicialmente esperava. Acabou
acontecendo exatamente o que eu queria evitar: este pode parecer um estudo, sim, mais
um, dedicado à interpretação de Raízes do Brasil, e, de fato, não posso negar que ele o
seja.
Gostaria de propor, porém, que, a rigor, se lermos a tese segundo sua lógica
interna, não é exatamente assim. Dediquei praticamente metade deste trabalho a Raízes,
um texto que me parece muito estimulante, e que já foi muito comentado na história da
historiografia, nas ciências sociais e nos estudos literários brasileiros, e por gente muito
mais bem preparada para isso do que eu. Vou dizer como entendo esta tese, e como eu
quero que ela seja lida, embora, naturalmente, eu não tenha o menor controle sobre isso
(e acho mesmo que é bom que seja assim), como aliás a falta de controle de Sergio
Buarque sobre a recepção de sua própria obra demonstra tão dramaticamente.
16
Esta tese não é sobre um livro, mas sobre uma ideia: sobre a formação brasileira,
tal como ela veio a ser pensada por Sergio Buarque de Holanda – como a evolução de
uma forma orgânica, com ritmos vitais, afinidades, antipatias e apetites singulares.
Uma formação que, como ensina a melhor tradição intelectual alemã, a tradição de
Goethe, Schiller e Hegel, só deixa ver sua verdade quando se vê o todo – é uma
formação que exige muito estudo. Uma formação que, atenta à lição da crítica
romântica, exige um engajamento transformador com o mundo e com suas formas,
formas cuja própria intelecção não é presidida por categorias de uma teoria do
conhecimento prévia, mas que, aproveitando a noção de que a própria apreensão do
mundo se dá por uma lógica que não é puramente subjetiva, mas se desenvolve a partir
de estímulos formadores e transformadores atuantes no próprio ato do conhecer. Um
engajamento transformador do mundo e do sujeito: a apreensão das formas forma o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
maior detalhe algumas dessas linhas, e as conclusões a que chegou foram se revelando
cada vez mais amargas.
Quem tenha lido Visão do paraíso, ou então os estudos sobre o arcadismo
publicados postumamente no volume Capítulos de literatura colonial, talvez concorde
comigo quando penso que, ao entrar nas análises mais pormenorizadas da história
brasileira – e estamos falando, nesses dois casos, em história intelectual – Sergio vai
sendo tomado por um indisfarçado rancor pelo que ele percebe como a persistência de
um estilo de pensamento mesquinho, preguiçoso e sem imaginação. Um pensamento
onde o vivido se sedimenta numa organização da experiência que seleciona apenas as
lições mais primárias, incapaz de se sofisticar pelo convívio com o exercício da
faculdade que Sergio, pensador formado no estudo da literatura, considerava uma das
mais importantes da vida mental: a fantasia. Adianto também outra intuição que me
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
parece estar na origem dessa avaliação de Sergio Buarque: pode ser que ele tenha
chegado a essas avaliações geralmente pessimistas da cultura que lhe coube a partir de
seu estudo da poesia contemporânea brasileira. A fase madura desse paciente estudo,
que levou Sergio a escrever alguns de seus melhores textos, como aqueles sobre
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, reunidos
em Cobra de vidro, precede a viagem de Sergio Buarque à Itália nos anos 1950. Foi
nesse período que ele escreveu seus estudos de literatura colonial e onde possivelmente
nasceram alguns argumentos de Visão do paraíso, livro que se vale frequentemente do
conhecimento de tratados poéticos que Sergio talvez tenha estudado sistematicamente
pela primeira vez em Roma, e que fundamentam a sofisticada dissecção do discurso
letrado luso-brasileiro colonial, de onde ele deriva sua exposição das estruturas de
sensibilidade e racionalidade vigentes durante a expansão e consolidação do império
ultramarino português na América 5 . Há algo, acredito, na produção crítica desse
período entre Raízes e o estudo da literatura colonial – crítica na qual é flagrante o
emprego de categorias interpretativas de Raízes do Brasil 6 – que se conecta
5
Há uma argumentação persuasiva em favor dessa hipótese no livro Alegoria moderna, de Thiago
Nicodemo, fartamente amparada em textos de Sergio Buarque e outros documentos relevantes.
NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria Moderna. Crítica Literária e História da Literatura na obra de
Sergio Buarque de Holanda. São Paulo: Unifesp, 2014.
6
Faço um esboço de demonstração desse emprego no epílogo desta tese.
18
agora como analista, afetivo mesmo, depositado por Sergio num material e num
conjunto de questões que ele havia, afinal, escolhido, e que o levaram a alguns juízos
de valor intensamente negativos, manifestos de forma impressionante num crítico
geralmente sóbrio na expressão de seus juízos. Mas, como disse, este trabalho não
chegou a esse ponto da obra estudada e, portanto, antes de qualquer afirmação mais
peremptória, cumpriria averiguar melhor até que ponto isso se sustenta ante uma
investigação mais detalhada desses textos.
***
geralmente um trecho muito curto, às vezes um único verso ou torneio de frase, e vai
puxando fios de referências e ideias que não servem tanto como “mapas de influências”
ou explicações assim derivadas, mas antes como excursões iluminadoras pelas
estruturas de sensibilidade e racionalidade que subjazem ao artefato literário,
aparentemente muito mais simples para o olhar desavisado. Resisto a usar a palavra
“tópica”, porque me parece que, embora esse procedimento parta muitas vezes de um
conhecimento de topoi, ele me parece, na obra madura de Sergio Buarque, mais
complexo do que o termo sugere, indo muito além de um domínio seguro das
convenções estruturantes das práticas letradas das épocas estudadas, mas enxergando
também linhas de continuidade e transformação nessas estruturas, além das suas
consequências para a conformação mental da realidade dos sujeitos históricos atuantes
em cada contexto – isso é especialmente notável na forma como os estudos sobre a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
épica colonial e o arcadismo escritos nos anos 1950 parecem ter sido incitados por
interesses muito mais amplos do que sugeriria inicialmente a sua inscrição mais óbvia,
nem por isso incorreta, no campo da “história literária”. Nem preciso dizer que estou
longe de pretender ter alcançado a excelência do objeto de minha inspiração.
A estrutura da tese é bastante convencional: os textos são analisados por ordem
cronológica de publicação, ordem que parece coincidir, em geral, com a de redação.
Salvo pela discussão do epílogo, não me servi de textos publicados depois da primeira
edição de Raízes do Brasil senão como subsídios à interpretação de outros anteriores;
nisso lancei mão, inclusive, de ensaios que gostaria de ter analisado em maior detalhe,
e que Sergio Buarque escreveu depois de 1936. Naturalmente, foi impossível não os
analisar, de alguma forma, nessa operação. Para facilitar a compreensão do argumento,
isto é, de como a reflexão de Sergio Buarque, sendo ela própria a “forma” que quero
analisar, vai se desdobrando em patamares de crescente complexidade, dividi a tese em
três capítulos. O primeiro trata do que considero ser primeira fase, anterior ao
modernismo, da obra de Sergio Buarque. São textos cuja leitura nem sempre é a mais
gratificante, mas nos quais já aparecem muitas das linhas estruturantes da reflexão
madura de Sergio Buarque. Ali, é especialmente esclarecedora a ligação de um Sergio
Buarque ainda meio adolescente ao ideal “arielista” apregoado por intelectuais
hispano-americanos na virada do Século XX, motivo pelo qual dediquei algum espaço
20
Buarque em sua primeira edição, que foi a que serviu de base à sua elaboração.
É preciso avisar que, mesmo quando os toque, este trabalho não está muito
preocupado com dois assuntos muito comentados na fortuna crítica de Sergio Buarque:
a especialização disciplinar e acadêmica do autor e o conteúdo político de Raízes do
Brasil. Desse último falei com algum detalhe sobretudo porque ele não se exclui de
forma metodologicamente plausível da ideia de formação contida no livro,
especialmente de seu desenvolvimento em seus últimos três capítulos; nesse caso,
porém, o comentário político foi um veículo para a compreensão da formação, que me
parece, aliás, a tônica do próprio livro – na penúltima seção do terceiro capítulo desta
tese, argumento que, nos momentos mais bem-sucedidos da parte “propositiva”
correspondente aos seus dois últimos capítulos, Raízes é um livro endereçado a um
debate onde a política está subordinada uma visão da pedagogia como processo total
da sociedade. Eu teria mesmo preferido evitar ativamente a dimensão política do livro
– como, de certo modo, parece ter sido em certos momentos a disposição do próprio
Sérgio Buarque –, mas isso se revelou incompatível com qualquer honestidade
intelectual.
Um segundo aviso a quem vai ler esta tese se refere a um procedimento
argumentativo aparentemente desviante das boas práticas em pesquisa: de modo geral,
citei comentários à obra de Sergio Buarque, especialmente na parte sobre Raízes do
21
Brasil, apenas quando esses eram diretamente pertinentes ao meu argumento, e, mesmo
nesses casos, nem sempre. Há temas – por exemplo, as filiações teóricas de Raízes –
extensivamente, às vezes até exaustivamente comentados, de modo que pouco
acrescentaria à tese uma revisão de todos comentadores lidos, ao longo da abordagem
de cada questão ou tema (garanto que li muitos, mas sei que estou longe de ter lido
todos; existe praticamente uma indústria acadêmica em torno de Sergio Buarque). Esse
levantamento é válido, mas, no caso da presente tese, atrapalharia o seu andamento e a
tornaria ainda maior do que já está. Não gostaria que isso levasse à impressão de que
não tenho gratidão ou admiração pelo trabalho dos autores que li e não citei, nem que
os considero necessariamente menos importantes do que aqueles com quem vim a
dialogar diretamente. Sem esses leitores, além, naturalmente, daqueles citados, estou
certo de que não teria encontrado um caminho para a compreensão do significado de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
orienta esta tese. Mas, ao mesmo tempo, ele quer lançar uma luz, ainda que indireta,
sobre os conhecidos influxos teóricos que Sergio terá recebido em sua temporada alemã
de 1929-31. Não se trata de uma revisão de pensadores que terão influenciado
diretamente a reflexão de Sergio, ou pelo menos de uma maneira discernível na
superfície do texto de Raízes – isso foi feito, de maneira não exaustiva, no capítulo que
dediquei ao livro – mas de uma tentativa de traçar os contornos de algo muito mais
amplo: o estilo de reflexão implicado naquilo que chamei, neste trabalho, não sem
alguma violência contra suas manifestações individuais, de tradição da Bildung. Esse
campo mais amplo de autores, lugares-comuns e símiles teóricos, que encerra toda uma
epistemologia própria, me parece muito mais decisivo do que qualquer autor particular
para a compreensão de Raízes. O texto, um pouco menor do que os capítulos, pode ser
lido também à guisa de introdução metodológica à tese, pois ele é o resultado de minhas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
O sexto e último aviso diz respeito aos trechos de obras em língua estrangeira
que citei. A regra neste trabalho foi traduzir e, para economia de espaço – pois gostaria
que quem me lê atentasse para argumentos e citações que deixei, por motivos que
variaram de acordo com cada caso, nas notas de rodapé – não reproduzir o original. As
traduções são todas minhas. Conforme é costume no Brasil, não traduzi os textos em
espanhol. Meu domínio do alemão não me basta para ler textos dessa língua no original,
de modo que recorri a versões inglesas, francesas e espanholas, mas, dependendo da
natureza do texto e do trecho, cotejei com o original, destacando algumas expressões,
sempre que me parecesse importante fazê-lo. Algumas vezes fiz pequenos reparos
circunstanciais à versão consultada; sempre que isso tiver acontecido, a diferença entre
a versão consultada e a minha, bem como o original, estão devidamente indicados. Não
me senti inteiramente confiante na qualidade de minha versão dos Studies in Classic
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Ariel
1
Exemplar desse ponto de vista é o posfácio de Evaldo Cabral de Mello a Raízes do Brasil. MELLO,
Evaldo Cabral de. Posfácio: Raízes do Brasil e depois. In: Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 189-193.
2
Excepcionais entre os textos mais conhecidos da fortuna crítica são a dissertação de Conrado Pires de
Castro e a tese de doutorado de Marcus Vinicius Corrêa de Carvalho, possivelmente as mais exitosas
monografias de maior fôlego sobre a crítica modernista de Sergio Buarque. O caminho aqui traçado é
tematicamente aparentado a estes dois trabalhos, inclusive com uma progressão expositiva semelhante
à usada por Carvalho (esp. p. 15-114), mas, como se verá, toca em problemas e diálogos diferentes,
especialmente com relação ao estudo de Castro. Já Carvalho adotou uma abordagem muito mais baseada
em apontamentos biográficos, que não é a do presente trabalho. Seja como for, aqui as questões
suscitadas pelos textos serão significativamente diversas, o que quem conheça esses trabalhos perceberá
ao longo da presente exposição. CASTRO, Conrado Pires de. Com tradições e contradições: as raízes
modernistas do pensamento de Sergio Buarque de Holanda. 2002. Dissertação de mestrado.
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguegem. Campinas, São Paulo.
CARVALHO, Marcus Vinicius Corrêa de. Outros lados. Sergio Buarque de Holanda: crítica literária,
história e política (1920-1940). 2003. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas,
Departamento de História. Campinas, São Paulo.
25
textos, como se verá em breve), e são, ao menos do ponto de vista dos conteúdos das
questões trabalhadas, os sedimentos do pensamento crítico da juventude que presidem
a composição de Raízes do Brasil, bem como de toda a sua produção posterior passível
de inclusão no campo da “história intelectual”, que transita também pela história da
literatura e pela sociologia do conhecimento – quer dizer, Visão do paraíso (1958/9) e
os estudos publicados postumamente em Capítulos de literatura colonial (a primeira
edição é de 1991, mas a redação da maior parte dos textos remonta provavelmente à
primeira metade da década de 1950), além do trabalho muito menos conhecido,
apresentado como dissertação de mestrado à Escola Livre de Sociologia e Política de
São Paulo, intitulado Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos
descobrimentos (1958). Mediada pela literatura, a questão nacional é abordada através
da categoria de forma, e esta, em virtude das circunstâncias de seu aparecimento na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
***
26
Os primeiros textos publicados por Sérgio Buarque de Holanda em jornais, entre 1920
e 1922, talvez não ofereçam grande interesse quando considerados em si mesmos, mas
são bastante esclarecedores no que diz respeito a sua atividade intelectual posterior,
tanto pelas continuidades que apresentam com relação à produção mais relevante
associada ao movimento de renovação estética e cultural propalado a partir da Semana
de Arte Moderna de 1922, quanto em relação a seu livro de estreia, Raízes do Brasil
(1936)3. Pode-se dizer que, em meio a formas de pensamento e expressão juvenis e
pouco desenvoltas – é às vezes ingrata a leitura de alguns desses primeiros textos,
embora devamos sempre ter em conta as poucas “primaveras”4 que contava o autor –
ali já estão presentes algumas preocupações que animam a obra madura de Sergio
Buarque de Holanda. Se ele se tornou um bom crítico e historiador, é em parte porque
já desde cedo começavam a germinar em seu pensamento as questões que viriam a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
3
Não há pretensão de originalidade nessa observação. A conexão entre a produção crítica de juventude
e obras de maturidade já foi notada por alguns estudos de qualidade, entre os quais destacam-se, além
da já citada dissertação de Conrado Pires de Castro, os trabalhos de Antonio Arnoni Prado (“Breve Nota
sobre Sérgio critico” (In: Sérgio Buarque de Holanda. 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1992);
“Raízes do Brasil e o Modernismo”; “Sérgio, Mário e Klaxon”, ambos em Trincheira, palco e letras
(Cosac & Naify, 2004), Flora Süssekind (Em comentário ao texto de Prado; também reproduzido na
publicação do 3º Colóquio UERJ Sergio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Imago, 1992) e Roberto
Vecchi (VECCHI, Roberto. Nossa Revolução: Atlas Intersticial do tempo do fim. In: PESAVENTO,
Sandra Jatahy. Um historiador nas fronteiras. O Brasil de Sergio Buarque de Holanda. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2005). A mais completa análise das linhas de força que vão da crítica do jovem Sergio
Buarque até Raízes é a de Pedro Meira Monteiro, no alentado ensaio que acompanha sua edição anotada
da correspondência entre Sergio e Mário de Andrade. Esse texto se ocupa, contudo, apenas dos textos
publicados a partir de 1922. MONTEIRO, Pedro Meira. “Coisas sutis, ergo profundas”: o diálogo entre
Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. In:_____(Org.). Mário de Andrade e Sérgio Buarque
de Holanda: Correspondência. São Paulo: Cia das Letras; IEB; EdUSP, 2012, p. 165-360. O trabalho
mais completo, salvo engano, dirigido ao todo da produção crítica de Sergio dela se ocupa em
comparação com a obra de Oliveira Lima, e foi empreendido por Antonio Arnoni Prado em Dois letrados
e o Brasil nação (ed. 34, 2014). Nem sempre foi possível, contudo, partilhar aqui das interpretações e
conclusões desse estudo, ainda assim, amplamente esclarecedor. O principal ponto de divergência aqui
está no caráter elitista, aristocratizante mesmo, da crítica do jovem Sergio, analisado a seguir na revisão
do Ariel de Rodó, que é quase completamente ignorado na interpretação um tanto hagiográfica de
Arnoni, sempre tendente a ver em Sergio uma inclinação democrática, progressista e, sobretudo,
vanguardista.
4
A expressão é de Sergio Buarque: “Se o entusiasmo de minhas dezessete primaveras ainda não poluídas
pelo virus das paizões políticas, pudessem [sic] projetar ondas de luz e eloquência sobre estas palavras,
eu ousaria pedir a s. excia. [o presidente Epitácio Pessoa, que havia se manifestado favoravelmente ao
retorno dos restos mortais de d. Pedro II ao Brasil] que estendesse a sua magnanimidade fazendo revogar
o decreto, já sem razão de ser, do banimento à família imperial.” HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Viva
o imperador”. In: COSTA, Marcos (Org.) Sérgio Buarque de Holanda: Escritos coligidos, v. I.
(doravante EC, I) São Paulo: UNESP; Fundação Perseu Abramo 2011, p. 6-7.
27
não podem, portanto, ser desprezados por qualquer análise que se pretenda séria. O
pensamento de Sergio Buarque passa por algumas correções de rumo, mas no geral é
o desenvolvimento e a intensificação de elementos que já aparecem aqui, ainda que em
estado menos desenvolvido.
O primeiro artigo 5 publicado por Sérgio na imprensa merece uma glosa
relativamente minuciosa. Mesmo não sendo um texto particularmente inspirado, ele
contém alguns elementos reveladores do leque de preocupações que moverá o autor ao
longo de toda a sua trajetória de analista da literatura brasileira. O título “Originalidade
literária” antecipa a pergunta em torno da qual gravitará a reflexão de Sergio Buarque
pelo menos até Raízes do Brasil: é possível falar, com propriedade, em algo como uma
cultura brasileira? Seria aquilo que no Brasil se chama de cultura algo realmente
enraizado na realidade local, ou meramente a reprodução de convenções artificiosas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
5
Originalidade literária. In: PRADO, Antonio Arnoni (Org.); HOLANDA, Sergio Buarque de. O
espírito e a letra. Estudos de crítica literária, v. 1 (doravante EL, I), p. 35-41. Originalmente publicado
no Correio paulistano, 22 de abril de 1920.
6
Ibid., p. 35.
28
nos textos citados (no caso de Garcia Calderón, há uma referência a Gonçalves Dias),
Sergio os adapta para avançar sua tese, ou antes sua intuição, pois ela nunca chega a
assumir uma forma bem definida e desenvolvida, de que existiriam características
culturais comuns à totalidade do continente (ou, pelo menos, da sua parte ligada
historicamente à Península Ibérica). Desse modo, seria possível falar em um tipo
cultural “americano”. Vale antecipar que, embora não seja o caso nesse momento
inicial, mais à frente Sergio procurará incluir nessa reflexão os Estados Unidos. O
mesmo ocorrerá, como se verá adiante, no uso que uma passagem importante de Raízes
do Brasil faz de um ensaio de D. H. Lawrence sobre A letra escarlate, cujas
observações sobre “o americano”, leia-se, o estadunidense, serão empregadas sem
qualquer reparo como lastro argumentativo da tese sobre a “cordialidade” brasileira
(Cf. infra cap. III, seção 6, “Demônios e possessos”). Aqui, como a certa altura de
Raízes, fala-se em “americanismo”8 como uma qualidade das expressões das culturas
transplantadas da Europa para a América.
Mas em que consistiria, para este Sergio ainda adolescente, a originalidade
literária de um povo? As indicações deste texto a respeito não são muito esclarecedoras,
7
Ibid., p. 35-6.
8
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasi Rio de Janeiro: José Olímpio, 1936 (Doravante RB),
p. 137.
29
talvez porque as ideias mesmas que o presidem não fossem tão bem pensadas quanto o
autor pretendia. De saída, o que se pode afirmar com segurança é que o jovem crítico
lidava com o pressuposto de que uma literatura nacional é a manifestação da
“consumação espiritual” de uma nacionalidade 9 , ou seja, com uma disposição de
análise fundamentalmente nacionalista, herdeira indireta da ideia alemã nascida ao
final do século XVIII, de que as expressões culturais de cada povo exibiriam um
“espírito” distinto e singular (Volksgeist) 10 . Afirmando seguir os passos de Silvio
Romero, Sergio se pergunta pelo resultado daquilo que um dia apareceria, fatalmente,
como consequência de uma “formação demorada e gradual dos sentimentos”11. Fica
claro, quando lemos na penúltima frase do texto que o Brasil “há de atingir, mais cedo
ou mais tarde, a originalidade literária”12, que, na opinião de Sérgio, esse ponto ainda
não fora atingido.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
É interessante, nesse sentido, verificar como, sob o ponto de vista do que aqui se
compreende como “originalidade”, se apresenta a literatura brasileira pregressa, ou
seja, anterior àquele ano de 1920. Lembrando novamente que Sérgio já aqui parece
sempre inclinado a pensar sobre a literatura brasileira em comparação com a hispano-
americana, é espantoso deparar, no início da consideração da literatura brasileira (os
primeiros parágrafos do texto tratam do livro do peruano García Calderón, em
movimento típico do autor, dado a abordagens oblíquas, quase barrocas, dos objetos de
que tratam seus textos13), com uma das ideias básicas do livro que Sergio escreverá
9
Originalidade literária, cit. p. 41
10
Não há uma referência óbvia para se fornecer aqui. Uma discussão sumária sobre a origem da ideia de
Volksgeist e sua importância para a construção das ciências da cultura pode ser encontrada num ensaio
de Erich Auerbach sobre o tema (The idea of the national spirit as the source of the humanities. In: Time,
history, and literature: Selected Essays of Erich Auerbach. Princeton, NJ: Princeton University Press,
2014, p. 56-63). Entre os textos clássicos da filosofia da Bildung e da ideia de formação nacional, talvez
o mais influente seja a primeira Filosofia da história de Johann Gottfried Herder (Edição consultada:
Another philosophy of history for the education of mankind. Indianapolis, IN: Hackett, 2004). Há
também uma discussão sucinta da origem da ideia do Volksgeist no terceiro capítulo de The roots of
romanticism, de Isaiah Berlin (Princeton: Princeton University Press, 2013, p. 54-78). Menos
concentrada na ideia de Volksgeist, mas imensamente importante no que diz respeito à ideia de forma
como expressão da essência humana, é a discussão sobre formação cultural e literatura nas cartas sobre
A educação estética do homem de Friedrich Schiller (São Paulo: Iluminuras, 1989).
11
Originalidade literária, cit., p. 41.
12
Loc. Cit.
13
É verdade que, antes de meados dos anos 1920, esse método ainda não foi depurado, resultando
frequentemente em textos onde o tema principal fica envolto num cipoal de anotações de menor
importância, ou ocupa espaço reduzido em comparação com “narizes de cera” longos e geralmente
dispensáveis.
30
mais de trinta anos depois, Visão do paraíso: “[o] povo português, menos idealista e,
se quiserem, menos prático que o espanhol, não teve uma visão tão sutil da natureza do
Novo Mundo como aquele”14. Se, em Visão, essa constatação – que, no que diz respeito
ao âmbito “prático”, será invertida em favor do português, mas naquele sentido bem
restrito de um “pedestre realismo” no qual a realidade não é problemática – dará origem
a um extenso e erudito estudo da forma mentis luso-brasileira no período colonial, aqui
ela está a serviço da tese de um déficit em temas locais na literatura brasileira, ao menos
em seus primeiros séculos. Essa seria, na opinião de Sergio (que neste texto parece
tomado por uma devoção juvenil por Silvio Romero, em sua opinião “o maior
historiador da nossa literatura”15), uma condição necessária, mas não suficiente, para a
realização da originalidade literária. Pelo menos, segundo o parecer de Romero,
secundado por Sergio, o romantismo já nos livrara do fantasma da “imitação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
portuguesa”, feito “inestimável”. 16 Adiante-se, aliás, que, anos mais tarde, Sergio
temperará a avaliação do romantismo com um tom muito mais crítico, numa visão da
versão brasileira do movimento conformada num jogo muito mais complexo de
condições de aclimatação do pensamento romântico.
Das três condições necessárias à originalidade, apresentadas ao final do texto, só
da temática se podia dizer que teria florescido de forma minimamente convincente.
Sergio menciona, além da “inspiração em assuntos nacionais” (1), o “respeito das
nossas tradições e a submissão às vozes profundas da raça” (2 e 3)17, platitudes que no
entanto não andam muito longe das imagens organicistas que aparecem como ideal de
cultura em Raízes do Brasil, como o “ritmo espontâneo” e o “mundo de essências mais
íntimas” mencionados ao final do ensaio de 1936. É de interesse notar o elogio que
Sergio faz ao romantismo indianista de Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e
José de Alencar, na medida em que, para o jovem ensaísta, esses autores teriam dado
um primeiro passo na direção do desenvolvimento de uma tradição nacional a partir da
qual se poderia esperar, no futuro, o desenvolvimento orgânico de formas mais ricas –
14
“Originalidade literária”, cit., p. 37.
15
Ibid., p. 38.
16
Ibid., p. 41.
17
Loc. cit..
31
aqui está posto, ainda que implicitamente, o problema da forma e da formação, que é o
que ocupará a melhor parte da obra de Sergio Buarque até o final dos anos 5018.
Conforme o critério temático de originalidade, é da presença da paisagem e dos
temas brasileiros (especialmente os povos indígenas) que se ocupa a rápida resenha de
nossa história literária contida no texto. Mesmo consideradas como obras de pouco
valor para além do critério histórico-nacional, são as epopeias que merecem aqui a
menção de Sergio, começando pela Prosopopeia de Bento Teixeira, tratada com
menosprezo, passando pelo Caramuru de Santa Rita Durão e pelo Uraguai de Basílio
da Gama – obras de que Sergio voltará a se ocupar em maior detalhe nos estudos
inéditos reunidos em Capítulos de Literatura Colonial19, continuando sua busca pelo
ponto de surgimento de uma literatura especificamente nacional e original, embora com
maior senso das especificidades históricas das condições de surgimento e disseminação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
daquelas obras, para não falar do conhecimento muito maior de recorrências de motivos
e outros elementos formais em nossa poesia colonial, que a menção negativa ao
“gongorismo” já antecipa, ainda que discretamente.
Nesses autores coloniais, para o Sérgio de 1920, veríamos, para além do mero
“elogio burlesco e exagerado às nossas riquezas naturais” verificado em épocas
anteriores, os princípios de uma “tendência americanizante” em nossa literatura20. Isto
porque Santa Rita Durão e Basílio da Gama teriam pela primeira vez encontrado no
índio um tema humano local digno da arte poética. O Caramuru e o Uraguai não
chegam a passar por um exame propriamente crítico, mas é de interesse a observação
de que o “indianismo” dessa fase chegou a merecer elogios de escritores portugueses,
mas não foi objeto de reflexão pela geração seguinte de brasileiros. É possível arriscar
18
Para uma exposição concisa do problema, ver ARANTES, Paulo Eduardo. Providências de um crítico
literário na periferia do capitalismo. In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori; ARANTES, Paulo Eduardo. O
sentido da formação. Três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
19
Não deixa de ser curioso que, em seu primeiro artigo, Sergio faça questão de censurar em Sebastião
da Rocha Pita o “estilo ruidoso, impregnado das locuções gongóricas tão apreciadas nos escritos
coetâneos” (ibid., p. 37). Em suas análises da literatura colonial, Sergio Buarque raramente perde a
oportunidade de criticar os “excessos” e “complicações” do Barroco. Aqui, possivelmente se trata de um
eco da visão de Silvio Romero sobre o período: “o cultismo do século XVII produzia por toda parte uma
poesia afetada e falsa, imitação bastarda da greco-romana, determinando uma literatura inteira de
adulações aos reis e aos padres” História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1902, p. 152.
20
“Originalidade literária”, cit., p. 38.
32
21
Apud ARANTES, cit., p. 15.
22
HOLANDA, Sergio Buarque. Suspiros poéticos e saudades. In: O livro dos prefácios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996 (doravante LP), p. 353-370. Ainda se verá, no capítulo III, como a visão de
Sergio Buarque sobre o romantismo tem uma inflexão em Raízes do Brasil, de certo modo relativizada
nesse texto de 1939.
23
“Um centenário”, EL, I, p. 57-59. Originalmente publicado em A cigarra, VII, 140, jul 1920.
33
como um valor em si mesmo: “[s]e não houvesse outros títulos a exibir para que o
centenário do autor da Moreninha seja digno de um povo que se preze de saber cultivar
a memória de seus mortos ilustres, bastaria a glória incontestável de ter lançado os
fundamentos do romance nacional.”26
Voltando ao primeiro artigo, de escopo mais panorâmico, é saliente, talvez até
sintomático, o silêncio que o texto reserva a Machado de Assis e a toda a literatura
posterior a Alencar (lembre-se que o texto é de 1920), numa condenação implícita da
literatura de todo esse período posterior como pouco nacional (novamente, ecoando a
opinião de Romero). Mesmo que consideremos essa interpretação equivocada, deve-se
reconhecer nela alguma coragem e certa consciência da necessidade de rigor e
coerência interna na argumentação crítica, o que não é pouco em se tratando de um
autor tão jovem – acrescente-se, aliás, que, embora Machado seja posteriormente
reconhecido por Sergio como o maior de nossos romancistas, sua própria concentração
na crítica de poesia é possivelmente reveladora de um conceito um pouco reticente da
prosa de ficção brasileira. Se, por um lado, Sergio dedicou ensaios de qualidade e
fôlego a Manuel Bandeira, Dante Milano, João Cabral de Melo Neto e Carlos
24
Ibid., p. 57.
25
Loc. cit.
26
Ibid., p. 59.
34
expressões vagas que, no final do artigo, são apresentadas como condições para a
consumação espiritual da nação. Quando se fala em “tradição” e nas “vozes profundas
da raça” em meio à análise da cultura letrada produzida pelos muito poucos que
poderiam ter produzido uma literatura no Brasil – distantes do universo cultural
popular, numa atitude que, em 1920, se já não era exatamente a mesma, estava muito
longe do que se veria até o final da década – compreende-se mais claramente a
dimensão programática que subjaz ao texto. Trata-se aqui da defesa de um esforço
consciente da parte dos homens de letras para captar uma essência que, sedimentada na
cultura popular, precisaria ser conformada às exigências da “literatura” como arte
governada por convenções de gosto e estilo, endereçada a um público cultivado.
Não se imagine que aqui esteja em ação algum tipo de impulso “democratizante”
da cultura – mesmo porque seria estranho esperar isso naquela conjuntura histórica. O
que se pretende é elevar a cultura letrada a um patamar ao mesmo tempo superior ao
da matéria inculta deixada à disposição do Volksgeist, sem no entanto cair no mero
exotismo, no elogio “burlesco” da cor local, e mantendo igual distância do vício
27
Isso é talvez explicável pelo fato de as novelas de Corpo de baile e o Grande sertão terem aparecido
somente em 1956, ou seja, quando Sergio já havia deixado de escrever regularmente sobre literatura na
imprensa. De todo modo, num curto prefácio de 1980 à Poesia reunida de Ferreira Gullar ele indica,
ainda que indiretamente, que Rosa seria o maior prosador da literatura brasileira contemporânea. “Toda
poesia” (1950- 1980). In: LP, p. 430.
28
Originalidade literária, EL, I, p. 38-9.
35
29
SCHWARZ, Roberto. Os problemas da importação do romance em José de Alencar. In: Ao vencedor
as batatas. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2012.
30
“Originalidade literária”, EL, I, p. 41.
36
O segundo texto publicado por Sergio Buarque compõe, junto com outros seis
artigos seus que apareceriam até agosto de 1920, um bloco de afinidades temáticas e
de perspectiva33 que pode ser chamado de “arielista” por sua ligação ostensiva com um
movimento intelectual latino-americano marcado pela acentuada oposição à cultura dos
Estados Unidos. Além da conexão com o livro Ariel de José Enrique Rodó e com o
universo mais amplo de um excepcionalismo latino de corte aristocrático, encontram-
se nesses textos pressupostos pertencentes a uma visão de mundo razoavelmente bem
definida.
A delimitação dessa fase e o nome que aqui se lhe dá se justificam sobretudo
porque esses artigos, versando sobre assuntos vários, sempre se circunscrevem de
algum modo à órbita da identidade nacional e da necessidade de uma expressão
31
Cf. infra, “Interlúdio”.
32
RODÓ, José Enrique. Ariel, Santa Fe: El Cid, 2003, p.22.
33
São eles: Ariel (Revista do Brasil, V, XIV, mai 1920; EL, I, p. 42-6), Vargas Vila (Correio Paulistano,
4 jun 1920; EL, I, p.47-53), Santos Chocano (A Cigarra, VII, 138 jun 1920; EL, I, p. 54-6), Viva o
Imperador (A Cigarra, VII, 137, jun 1920; EC, I, p. 3-7), A quimera do monroísmo (A Cigarra, jul 1920;
EC, I, p. 8-11) e A bandeira nacional (A cigarra, VII, 142, ago 1920; EC, I, p. 12-4). O único artigo do
período que não se encaixa nessa perspectiva é “Um centenário” (A cigarra, VII, 140, jul 1920; EL, I,
p. 57-9), e trata do centenário de Joaquim Manuel de Macedo e de sua contribuição para o romance
brasileiro. No começo de 1921, aparecem os dois últimos texto igualmente orientados por uma
perspectiva nitidamente influenciada pelo Ariel de Rodó, intitulados “O homem-máquina” (A cigarra,,
VIII, 155, mar 1921) e “A decadência do romance” (A cigarra, VII, 156, 15 mar 1921; EL I, p. 105-
107).
37
34
No artigo sobre Santos Chocano, aparece mais uma evidência de que a antipatia de Sergio Buarque
por certos traços da literatura do Barroco, especialmente na obra de Góngora, não foi adquirida em
leituras de maturidade: embora reconheça em Santos Chocano “um dos mais notáveis temperamentos
artísticos deste continente”, não deixa de lamentar que “suas imagens degenerem frequentemente em
gongorismo”. EL, I, p. 55.
35
Eduardo Prado. A illusão Americana. São Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1902 [1893]. A
influência exercida por Eduardo Prado nessa primeira fase já foi notada por João Kennedy Eugênio em
EUGÊNIO, João Kennedy. Um horizonte de autenticidade. Sergio Buarque de Holanda: Monarquista,
Modernista, Romântico. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio Buarque de
Holanda: Perspectivas. Campinas; Rio de Janeiro: Unicamp; Uerj, 2008, p. 429.
36
Ariel. Revista do Brasil, V, XIV, mai 1920. EL, I, p. 42.
38
brasileira37. E é essa mesma problemática que anima “Ariel” e os outros textos do bloco
“arielista” da crítica do jovem Sergio.
Ante a leitura desses textos, não é difícil notar como a nostalgia do império,
presente ostensivamente em pelo menos quatro deles, articula-se com uma percepção
da proclamação da República e da atmosfera cultural de a partir de 1889 como sintomas
de decadência e inautenticidade culturais – considerando-se a ascendência de Rodó
sobre o texto, provavelmente Sergio opera também uma intensificação do modelo
hispânico de rejeição ao “yanquismo” por meio da circunstância política local, na qual
a monarquia apresentava mais um caminho por onde se distanciar da modernização
como (norte-) americanização. Essa intensificação, por sua vez, tem por trás de si uma
disposição política aristocrática e tendencialmente conservadora. A república, desenho
institucional supostamente “importado” dos Estados Unidos, associava-se, desse ponto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
37
RB, p. 128.
38
Sobre isto, ver Nicolau Sevcenko. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 25-77.
39
Veja-se, a respeito do papel do organicismo na tradição política conservadora, o ensaio de Karl
Mannheim sobre o tema. MANNHEIM, Karl. O pensamento conservador. In: MARTINS, José de Sousa.
Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1986.
39
cultural do mundo hispânico (Ariel contra Caliban, ou, noutros termos, Cervantes,
Lope de Vega e Sor Juana contra o big stick e os rough riders de Teddy Roosevelt). A
isso se somava o ressentimento longamente alimentado contra a leyenda negra,
mobilizada na propaganda de guerra norte-americana, que estimulava assim os
intelectuais criollos a esse curioso impulso de solidariedade com sua antiga metrópole
colonial. Se, na conferência de Dario, não há muito mais do que um chauvinismo
melancólico, no ensaio de Rodó o topos Ariel-Caliban é trabalhado até um nível mais
sofisticado de desenvoltura literária e intelectual. Embora os pressupostos que
acompanham a mobilização do leitmotiv sejam ainda basicamente os mesmos (em
suma, a tese de uma inferioridade irremediável da cultura anglo-saxã, excessivamente
materialista e avessa ao pensamento, a cuja supremacia no presente se opunha uma
esperança quase messiânica no poder redentor da cultura latina), há um tratamento um
pouco mais cavalheiresco da questão:
40
Rubén Dario. El triunfo de Calibán. Revista Iberoamericana, v. 64, n. 184-5, jul-dez 1998, p. 451-
455.
40
***
Vale a pena resenhar com calma algumas das ideias principais do Ariel de José
Enrique Rodó, livro do qual o segundo artigo escrito por Sergio Buarque toma
emprestado o título e que, além de estar por trás de muitas das posições exprimidas na
primeira fase de produção crítica, tem uma importante presença não declarada, mas não
propriamente disfarçada, em Raízes do Brasil, como se verá adiante. Fora as óbvias
diferenças de conteúdo solicitadas pela transposição ao contexto brasileiro, há muito
pouco, nos textos de Sergio aqui denominados “arielistas”, que não se encontre de um
modo ou de outro nas páginas do livro de Rodó. Considerando que o Ariel de 1900 não
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
teve, naturalmente, a mesma recepção no Brasil que viria a ter em países de língua
espanhola, dado o relativo isolamento cultural da cultura brasileira do mundo hispano-
americano, é curiosa a adesão entusiasmada do jovem crítico às ideias de Rodó, bem
como sua intimidade com a produção de vários poetas, ensaístas e críticos da América
de língua espanhola – tema que mereceria uma investigação à parte. Não seria muito
exagerado afirmar que a leitura do Ariel dá a partida num eixo importante da reflexão
de Sergio Buarque até pelo menos meados dos anos 40: o daquilo que Sergio denomina
“americanismo”. Como se sabe, Raízes do Brasil é o resultado de um projeto
inicialmente imaginado pelo autor como uma “teoria da América”42. Essa sugestão um
pouco misteriosa não levará o presente estudo a especulações sobre um “livro nunca
escrito” no qual Sergio Buarque desenvolveria ideias que nunca chegamos a conhecer.
Uma leitura atenta da primeira edição de Raízes do Brasil revela que vários elementos
do que quer que tenha sido a “teoria da América” estão no livro (Cf. infra a seção
41
José Enrique Rodó. Ariel, cit., p. 8.
42
Sergio Buarque de Holanda. Tentativas de mitologia São Paulo: Perspectiva, 1979, p.29-30. O texto
citado é autobiográfico, e Sergio fala em ter descartado a maior parte das “400 páginas” do “calhamaço”,
das quais nada teria sido reaproveitado, salvo dois capítulos de Raízes do Brasil. Considerando o esforço
de Sergio Buarque para se livrar da bagagem “irracionalista” dos seus “Wanderjahre alemães”, é de se
imaginar que a “teoria” era impregnada de um pensamento do qual ele queria se distanciar. A coerência
geral da obra buarquiana impõe alguma prevenção contra especulações de que tal “teoria” fosse algo de
muito diferente daquilo que se veio a conhecer.
41
“Demônios e possessos” do cap. III), e o que quer que tenha sido descartado não deve
ter ido muito além do que veio a ser publicado, uma vez que a busca pelo que seja um
“americanismo” acompanha Sergio desde os textos de juventude até, pelo menos,
meados dos anos 1940, e as ideias de Sergio a respeito não mudam muito ao longo de
sua trajetória, para além da reversão de uma antipatia inicial pela cultura dos Estados
Unidos e da avaliação de que haveria uma diferença inconciliável entre essa e as
culturas ibero-americanas – ambas as reversões já estão presentes na primeira edição
de Raízes do Brasil e são reiteradas mais explicitamente em texto de 1941 incluído em
Cobra de vidro intitulado “Considerações sobre o americanismo” 43.
A presente resenha do Ariel e das ideias implicadas no pequeno mas
influentíssimo livro de Rodó antecipa um tema que ganhará maior desenvoltura na
discussão de Raízes do Brasil: o dos fundamentos conceituais e históricos da ideia –
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
mais preciso seria dizer que se trata de um universo semântico e cultural, dada a sua
complexidade e riqueza de consequências – de formação que nutre a reflexão de Sergio
Buarque sobre a literatura, a cultura e o Brasil. Ariel parece ser, nesse momento, a fonte
mais intensamente aproveitada (mas provavelmente não a única e nem a mais
importante para sua obra posterior) do ideal de formação cultural pelo crítico. A outra,
já notada por outros comentadores, é de extração alemã e tem sua origem na cena
cultural do final do século XVIII, quando nasce o arco histórico que tem sua fases mais
notáveis no humanismo clássico e no chamado historismo alemão: a Bildung. 44 Mas
43
A última ocorrência de uma consideração alentada de Sergio Buarque sobre o assunto é provavelmente
a palestra “O Brasil na vida americana”, proferida em setembro de 1954 (Sergio Buarque de Holanda.
O Brasil na vida americana. In: Vários autores. O Novo Mundo e a Europa. Texto integral das
conferências e dos debates. Sintra: Edições Europa-América, 1969, p. 59-79), mas o último texto escrito
que Sergio considerou apropriado para publicação em livro próprio é “Considerações sobre o
americanismo”, incluído na coletânea Cobra de vidro, mas publicado pela primeira vez no Diário de
notícias de 28 de setembro de 1941. HOLANDA, Sergio Buarque de. Cobra de vidro. São Paulo:
Perspectiva, 2012, p. 23-28. Este livro será referido doravante pela abreviatura CV.
44
Seria possível referir-se, alternativamente, a uma herança da ideia de formação do “romantismo
alemão”, o que não estaria inteiramente incorreto, mas acarretaria o problema da oposição, no interior
desse mesmo debate, entre tendências românticas num sentido mais estrito e a reação “clássica” a elas,
além de outras expressões manifestamente contrárias ao romantismo e que, sob uma definição mais
liberal, não deixariam de ser elas próprias românticas – por exemplo, em Nietzsche, cujos primeiros
livros podem ser lidos como uma apoteose do romantismo. Falar simplesmente no “humanismo clássico”
ou “neohumanismo” alemães parece excessivamente restritivo. Há a solução influente, satisfatória em
seus próprios termos, do importante livro de Friedrich Meinecke sobre a Origem do historismo (México:
Fondo de cultura, 1986), que, no entanto, tem a desvantagem circunstancial de aparentar referir-se
unicamente à filosofia da História ou à epistemologia das ciências históricas e seus desdobramentos na
chamada Escola Histórica Alemã. A solução de Louis Dumont, que em L’idéologie allemande (Paris:
42
nacional – esse detalhe pode ser algo quase inconsciente, mas não é de importância
menor, porque o ideal defendido no livro não faz praticamente nenhum aceno às
culturas pré-colombianas ou africanas. Trata-se fundamentalmente, no Ariel, de uma
glorificação de uma humanidade latina refinada, dotada de uma inteligência
imaginativa especialmente apta à fantasia e à criação literária, afeita a uma versão
atualizada dos códigos cavalheirescos de cortesia, contra o anglo-saxão
irracionalmente materialista e vil alegorizado por Caliban. As insuficiências e limites
desse ideal ficam claras, não apenas pela idealização elitista e implicitamente racista
que o intelectual faz do que seja uma “cultura latino-americana” – que fica
praticamente reduzida ao seu componente europeu, num esquema que contrapõe à
leyenda negra uma imagem propagandística do colonialismo como fase heroica de uma
narrativa de formação comunitária moralmente edificante – mas principalmente, uma
Gallimard, 2013) analisa a Bildung como versão alemã do individualismo moderno, circunscrevendo
pensadores-chave como Herder, Karl Philip Möritz, Goethe, Humboldt e Thomas Mann ao que toca o
tema da formação como educação de si, parece a mais próxima da aqui desejada, embora seja
excessivamente concentrada na dimensão individual da problemática da formação, o que não desmerece
seu estudo, mas seria prejudicial ao que se pretende aqui. Seria possível estender essa tradição, na medida
em que ela se ocupa de um fenômeno que se verifica além da comunidade linguística germânica, a
precursores como Montaigne e Vico, ou ainda, como faz Franco Moretti em sua análise do Romance de
formação, a atualizadores da noção de formação fora da Alemanha, como Stendhal ou Jane Austen. Para
fins de concisão expositiva, usa-se aqui o termo Bildung, mesmo porque a ideia de formação em Sergio
Buarque parece especialmente afinada com as formulações alemãs do conceito. O tema será abordado
de forma um pouco mais alentada abaixo, no “Interlúdio”.
43
vez que não seria muito sensato esperar coisa muito diferente naquele contexto, pelo
fato de seu único motor ser o ressentimento e a impotência diante de mais uma fase de
rebaixamento cultural e político. Isso, é claro, tem muito a ver com um arco histórico
mais amplo do mundo hispânico, que, depois de abrigar, sob certos aspectos, o centro
político e cultural da Europa do reinado de Carlos V até a primeira metade do século
XVII, desde então passava por uma trajetória política e econômica descendente
praticamente ininterrupta, cujos efeitos na cultura não eram, certamente, menos
sensíveis45.
Comparando as bravatas de Dario ou Rodó contra os yankees às reações de um
Herder, de um Schlegel ou de um Goethe aos pensadores das Luzes ou ao prestígio do
classicismo francês, nota-se que o ressentimento e um certo complexo de inferioridade
são traços comuns e igualmente determinantes, mas não se pode afirmar que o ideal de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
45
Uma expressão desse mesmo problema em língua portuguesa, caracteristicamente melancólica e
negativista, é a famosa conferência proferida em 1871 por Antero de Quental no Casino Lisbonense,
Razões da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos.
44
46
Esse duplo isolacionismo não passa despercebido ao próprio Sergio Buarque, que lamenta o
desconhecimento da literatura hispano-americana já em seu texto sobre Santos Chocano (EL, I, p. 54), e
comenta brevemente o divórcio cultural com Portugal após a independência no prefácio a Suspiros
poéticos e saudades (em LP).
47
Ariel, cit., p. 61. Os trechos citados em citação curta são vertidos para o português, para conveniência
de interpolações e paráfrases.
45
Para mostrar ahora cómo ambas enseñanzas universales de la ciencia pueden traducirse
en hechos, conciliándose, en la organización y en el espíritu de la sociedad, basta insistir
en la concepción de una democracia noble, justa; de una democracia dirigida por la
noción y el sentimiento de las verdaderas superioridades humanas; de una democracia
en la cual la supremacía de la inteligencia y la virtud, únicos límites para la equivalencia
meritoria de los hombres, ó reciba su autoridad y su prestigio de la libertad y descienda
sobre las multitudes en la efusión bienhechora del amor.49
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Apesar desse ceticismo, Ariel não chega a propor uma negação frontal da
modernidade e da democracia, mas propõe a criação, no âmbito da cultura, e
especificamente da cultura letrada e literária, uma estratégia de mediação capaz de
conciliar a nova realidade material com a preservação das singularidades das culturas.
Nesse sentido, é como se a cultura anglo-saxã, especialmente sua variante americana,
fosse um extrato sublimado dos motores da modernidade (com o pragmatismo
utilitário, o culto ao trabalho e a coincidência entre valor econômico e valor cultural
que lhe são atribuídos), sem nada de singular a oferecer além da tração que conduz ao
destino moderno. Uma resposta moderadora e humanística a esse ideal deveria ser
formulada pelas culturas latinas; portanto, seria preciso que essas soubessem se
prevenir contra a total descaracterização pelo “calibanismo”. Uma opção,
naturalmente, tentadora, uma vez que o progresso material é praticamente uma
condição de sobrevivência no novo mundo que apresenta como destino inevitável; daí
48
“Toda igualdad de condiciones es en el orden de las sociedades, como toda homogeneidad en el de la
Naturaleza, un equilibrio inestable. Desde el momento en que haya realizado la democracia su obra de
negación con allanamiento de las superioridades injustas, la igualdad conquistada no puede significar
para ella sino un punto de partida. Resta la afirmación. Y lo afirmativo de la democracia y su gloria
consistirán en suscitar, por eficaces estímulos, en su seno, la revelación y el dominio de las verdaderas
superioridades humanas.” (Ibid., p. 57)
49
Ariel, cit., p. 68.
46
Comprendo bien que se aspire a rectificar, por la educación perseverante, aquellos trazos
del carácter de una sociedad humana que necesiten concordar con nuevas exigencias de
la civilización y nuevas oportunidades de la vida, equilibrando así, por medio de una
influencia innovadora, las fuerzas de la herencia y la costumbre – Pero no veo la gloria,
ni en el propósito de desnaturalizar el carácter de los pueblos – su genio personal – para
imponerles la identificación con un modelo extraño al que ellos sacrifiquen la
originalidad irreemplazable de su espíritu; ni en la creencia ingenua de que eso pueda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
50
Ariel, cit., p. 79.
47
tipo que há mais de trinta anos denunciava Georges Sorel em sua terra: “Nas discussões
atuais – dizia o autor das Reflexões sobre a violência – toma-se por base o que produz
um país cuja prosperidade impressiona toda gente – a Inglaterra, a Alemanha, os Estados
Unidos – e descreve-se um dos aspectos da vida desses países-modelos. O talento do
publicista consiste em fazer penetrar no espírito do leitor a ideia de que os costumes ou
instituições que exalta têm um papel preponderante na prosperidade dessas nações: é
claro que nenhuma demonstração absoluta será possível sobre esse ponto. [citação
terminada sem aspas de conclusão]51
dirigiam os norte-americanos. É uma ilusão crer-se que a adoção dele dar-nos-ia o vigor
e a atividade naturais dos yankees. Só o desenvolvimento das qualidades naturais de um
povo pode torná-lo próspero e feliz. [...] Ora, não há quem deixe de admirar o
extraordinário poder de iniciativa, a considerável atividade física, a incomparável força
de organização que caracterizam o povo norte-americano. [...] Caso a civilização yankee
fosse aplicável a nosso país, o seu substractum, o que torna grandiosa sua pátria, nunca
aportaria nas plagas brasileiras, porquanto a índole de um povo não se modifica tão
facilmente à simples ação de agentes externos. [...] Quando muito seguiríamos a regra
geral importando apenas as exterioridades que ela possui [...].53
51
RB, p. 127-8.
52
Cf. Ariel, cit., p. 77-8.
53
Ariel, EL, I, p. 44-5.
54
Ariel, EL, I, p. 44,45.
48
55
Ibid., p. 44.
56
Ariel, cit., p. 26-7.
57
“Pero por encima de los afectos que hayan de vincularos individualmente a distintas aplicaciones y
distintos modos de la vida, debe velar, en lo íntimo de vuestra alma, la conciencia de la unidad
fundamental de nuestra naturaleza, que exige que cada individuo humano sea, ante todo y sobre toda
otra cosa, un ejemplar no mutilado de la humanidad, en el que ninguna noble facultad del espíritu quede
obliterada y ningún alto interés de todos pierda su virtud comunicativa.”, Ibid., p. 27.
49
armoniosa expansión de vuestro ser en todo noble sentido; pensad al mismo tiempo en
que la más fácil y frecuente de las mutilaciones es, en el carácter actual de las sociedades
humanas, la que obliga al alma a privarse de ese género de vida interior, donde tienen
su ambiente propio todas las cosas delicadas y nobles que, a la intemperie de la realidad,
quema el aliento de la pasión impura y el interés utilitario proscribe: ¡la vida de que son
parte la meditación desinteresada, la contemplación ideal, el ocio antiguo, la
impenetrable estancia de mi cuento!58
Rodó parece aliar aqui certa nostalgia do mundo clássico, onde a divisão do
trabalho ainda não implicara uma especialização que impossibilitava essa experiência
da vida como totalidade, remontante ao humanismo clássico alemão – particularmente
exemplar dessa ideia é a Carta VI de Schiller sobre A educação estética do homem -
ao o tradicional menosprezo dos povos hispânicos pelo trabalho, especialmente pelo
trabalho manual59. O tema não é estranho aos leitores de Raízes do Brasil, pois está no
centro do segundo capítulo, “Trabalho & Aventura”. Já no capítulo de abertura,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
58
Ariel, cit., p. 36-7.
59
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1989, p.
60
RB, p. 13.
50
seu potencial mediante o trabalho. Nas palavras de Hegel, “o trabalho forma”61 (ênfase
no original). A aceitação da ausência de aptidão para o trabalho não pode ser, portanto,
uma bandeira de preservação de singularidades culturais, pois, sem trabalho, não há
cultura.
Vale sublinhar aqui, não por ânimo polêmico, mas para reafirmar a importância
e a significação do arielismo na trajetória intelectual de Sergio Buarque, que a presente
interpretação se opõe àquele que é talvez o mais importante estudo de fôlego sobre a
obra crítica de juventude de Sergio Buarque: Dois letrados e o Brasil Nação, de
Antonio Arnoni Prado. O argumento principal da análise de Arnoni sobre a primeira
fase crítica de Sergio Buarque é que, em contraste com a crítica europeizante de viés
lusófilo praticada por Oliveira Lima, que postulava a valorização das raízes
portuguesas como garantia contra a intrusão de elementos locais e populares, Sergio já
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
61
Fenomenologia do espírito, § 195, p. 150. A frase faz parte do famoso trecho sobre a dialética entre o
senhor e o escravo.
62
Dois letrados no Brasil nação, cit., p. 299-241.
51
talvez corretamente, como uma piora nas condições do Estado Brasileiro de exercer
uma soberania relativa na geopolítica mundial. O triunfo definitivo da posição
americanista, com a chancela da dupla Rio Branco-Nabuco, extraída dos quadros
dirigentes da monarquia, a partir de 1905, aplacaria o grosso da oposição à nova
doutrina, que consistia em tentar convencer os Estados Unidos a fazer do Brasil seu
sócio minoritário no exercício da dominação na América do Sul. A partir daí, o “anti-
ianquismo” – cujo principal proponente no Itamaraty era Oliveira Lima, que de todo
modo nunca chegou a ascender ao primeiro escalão do ministério – se sustentava
sobretudo como uma posição estética, que não excluía uma apropriação do “arielismo”,
esse próprio, afinal, um movimento cuja pretensão era literária e pedagógica antes que
política. Note-se, aliás, que uma crítica do imperialismo americano à esquerda, com
implicações radicais na política doméstica, tal como aquela empreendida por Manuel
Bomfim em América latina: males de origem (1905), passa longe desse debate e de
sua aparição nos textos de Sergio Buarque. No caso dele, que se confessa monarquista
em artigos da primeira época, sem se ocupar de assuntos ostensivamente políticos, o
“arielismo” vinha dar verniz literário cosmopolita e passivelmente modernizante a
convicções políticas monarquistas. Esse alinhamento é perceptível com maior nitidez
no artigo “A quimera do monroísmo”, publicado pouco depois de outro, intitulado
“Viva o Imperador”, sobre D. Pedro II, e de outro sobre “A bandeira nacional”, no qual
52
63
“A decadência do romance, EL I, p. 105-107. Artigo originalmente publicado em A cigarra, VII, 156,
15 mar 1921.
64
É notável que, apesar da erudição impressionante do jovem ensaísta, o nível intelectual de seus
comentários cai sensivelmente sempre que ele aborda diretamente o motivo arielista, mesmo em
comparação com outros textos do mesmo período.
53
vigor o seu I must eat my dinner. Não sacrifiquemos porém a essa fome selvagem um
dos alimentos de que tanto carece o nosso espírito! Não, não atiremos pérolas aos
porcos!”65
Em “Ariel”, já na abertura se define a imitação como o principal traço
distinguível da cultura local, ou melhor, explicitando a problemática da formação que
abrange a leitura do Ariel de Rodó, dessa “sociedade em formação que se chama: o
povo brasileiro”66. O principal problema não está tanto, como é o caso para Rodó, na
ameaça substantiva da cultura yankee, mas na própria suscetibilidade, especificamente
brasileira, à sedução dos modelos literários, artísticos e sociais importados. Mesmo
esses poderiam ser incorporados, desde que a leitura fosse feita de forma consequente
e se traduzisse num componente que acrescentasse algo de novo, como se pode
verificar no artigo sobre o escritor colombiano Vargas Vila. Nisso, Sergio demonstra
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
em sua reflexão um refinamento incomum para um autor tão jovem e ainda estreante
no debate público. Note-se, porém, que no texto “A decadência do romance”, há pouco
mencionado, esse raciocínio está ausente e parece descartado pelas opiniões ali
exprimidas, num de muitos casos onde o crítico mostra certa instabilidade, ou até
volubilidade, nos seus pontos de vista.
A análise que Sergio faz de Vargas Vila tem por mote a tese sustentada por
Hippolyte Taine de que o humour da tradição literária inglesa seria incompatível com
a “índole da raça latina” 67 . A obra de Vargas Vila provaria, porém, o erro desse
conceito. Não seria ele um simples imitador, pois exibiria uma “originalidade acima do
vulgar”68. O cultivo de uma forma importada, se realizado de forma original, seria então
admissível e mesmo elogiável. Essa ideia, já ressaltada no princípio do artigo, é
repetida quase que à exaustão, o que não é surpreendente, considerando o quadro mais
amplo dessa primeira fase de sua produção crítica, pautada por uma visão pouco
matizada do problema da originalidade. Mas ela adquire aqui uma ênfase que revela
em Vargas Vila mais um pretexto para a apresentação de uma tese e de um programa
do que um objeto de análise: Vargas Vila “conseguiu um lugar de destaque fora do
65
“A decadência do romance”, cit., p. 106-7.
66
Ariel, EL, I, p. 42.
67
Vargas Vila, EL, I, p. 47.
68
Loc. cit.
54
69
“Vargas Vila”, EL, I, p, 48-52.
70
“O homem-máquina”, In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio Buarque de
Holanda: Perspectivas, cit., p. 561.
71
VINALL, Shirley. Marinetti, Soffici, and French Literature. In: International futurism and literature.
Berlin; Nova York: Walter de Gruyter, 2000, p. 20-22.
55
vida menos intensa do que a deles.”76 Esse apontamento é interessante porque antecipa
a discussão do segundo capítulo de Raízes do Brasil, “Trabalho & Aventura”, onde os
ingleses do século XVI serão incluídos, com alguma audácia, entre os povos
aventureiros, e não entre os trabalhadores. Leia-se parte da passagem depois onde o
argumento aparece, escrita quinze anos depois, para perceber a persistência que essa
ideia terá tido entre os interesses de Sergio Buarque:
O surto industrial poderoso que atingiu a nação britânica no decurso do século passado,
criou uma ideia que está longe de corresponder à realidade, com reação ao povo inglês,
e uma ideia de que os antigos não partilhavam. A verdade é que o inglês típico não é
industrioso, nem possui em grau extremo o senso da economia, característico de seus
vizinhos continentais mais próximos. Tende ao contrário para a indolência e para a
prodigalidade e para a “boa vida”. Era essa a opinião corrente, quase unânime, dos
estrangeiros que visitavam a Grã-Bretanha antes da era vitoriana.77
Para terminar a resenha que se vem fazendo do Ariel e de sua recepção na obra
de Sergio Buarque, será preciso mencionar passagens do livro de Rodó cuja recepção
só aparecerá com maior nitidez em Raízes do Brasil, que poderiam ser deixadas para a
72
“Os poetas e a felicidade”, EL, I, p. 91.
73
“Plágios e plagiários”, EL, I, p. 123.
74
“O gênio do século”, EL, I, p. 111.
75
“Manuel Bandeira”, EL, I, p. 141. Texto originalmente publicado na revista Fon-Fon, 18 fev 1922.
76
“O homem-máquina”, cit., p. 561.
77
RB, p. 22-23.
56
cultura nacional e da ideia de Volksgeist, tal como ela é traduzida no livro de Rodó.
Essa assume, como já se notou anteriormente, contornos geográficos mais alargados
do que a “nação” em sentido político, referindo os povos latino-americanos a um ideal
mais amplo de “latinidade”, que no entanto inclui uma sub-comunidade de língua
espanhola cuja unidade cultural cumpriria cultivar. Independentemente da abrangência
da ideia de cultura que se pretende avançar, o que importa destacar é a noção de que as
expressões espirituais dos indivíduos são abarcadas por uma comunidade mais ampla,
da qual ajudam a compor uma unidade transcendente, que por sua vez seria um dos
diversos elementos do patrimônio cultural da humanidade. Essa ideia, reminiscente,
provavelmente por vias indiretas, da filosofia da História de Herder, aparece formulada
numa passagem específica:
Esse passo do Ariel, que de resto não parece cumprir papel especialmente
importante nesse curto ensaio repleto de torneios retóricos de espírito semelhante, não
seria de maior importância, se não se revelasse, com bastante probabilidade, um
modelo para algumas das palavras enigmáticas, ainda que bastante calculadas, do
parágrafo final de Raízes do Brasil.
78
Ariel, cit., p. 120.
79
RB, p. 161.
58
80
Ariel, cit., p. 95.
81
SCHMITT, Carl. Political romanticism. Cambridge, MA: MIT Press, 1986, p. 100-1.
82
KLAGES, Ludwig. De l’Éros cosmogonique. Paris: L’Harmattan, 2013, p.
59
escudar a alma do fiel dos “afetos” terrenos por meio de um ideal de “constância”
espiritual, uma personalidade no sentido forte, capaz de subjugar os impulsos e
estímulos mundanos83), na Decadência do Ocidente de Oswald Spengler84, e mesmo à
Fenomenologia do espírito de Hegel, onde as figuras da consciência “superam”,
“suprassumem” ou “abolem” umas às outras, progressivamente, a partir do estágio
elementar e imediato da “certeza sensível”, passando pela “percepção”, pelo
“entendimento” pelas fases diversas da “razão”, chegando finalmente ao “espírito”, em
graus crescentes de complexificação dialética do vivido na experiência. Como garantir,
então, que Raízes de fato aproveita o molde de Ariel, que de resto não dá grande
destaque ao dito “sensacionismo” no interior de sua economia argumentativa? Não é
possível responder com total segurança, na ausência de provas documentais positivas,
mas o que leva a uma suspeita razoavelmente fundamentada é a relação que o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
83
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004, p. 108.
84
Conforme passagem citada em nota à página 106 de RB.
60
“a vida em sociedade é [...] uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver
consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.
Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo [...] à parcela social,
periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa85”.
É preciso ressaltar que, em Raízes do Brasil, como de resto já se lembrou, há elementos
remanescentes de um projeto de certa “teoria da América”, e que o adjetivo
“americano” se refere à totalidade dos dois continentes do Hemisfério Ocidental, sem
prejuízo de qualquer parte, seja do Brasil, da hispanoamérica, ou dos países de língua
inglesa ao Norte, como se pode verificar na curiosa observação, feita no último
capítulo, de que “[n]a atividade americana o sangue é quimicamente reduzido pelos
nervos”86, extraída de um ensaio crítico de D. H. Lawrence sobre A letra escarlate de
Nathaniel Hawthorne (em livro cuja ascendência sobre a argumentação de Raízes será
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
85
RB, p. 102-3.
86
RB, p. 137.
61
87
RB, p.114.
88
RB, p. 104.
89
RB, p. 105-6.
90
RB, p. 108
91
RB, p. 127.
62
***
92
RB, p. 118.
93
“O Fausto (A propósito de uma tradução)”, EL, I, p. 77-89. Série de quatro artigos publicada
originalmente em A Cigarra em 15 e 16 nov e 6 e 99 dez 1920.
94
“Os poetas e a felicidade”; “Os poetas e a felicidade – II” ; “Os poetas e a felicidade – III”, EL, I, p.
90-93; 93-98; 99-104. Textos originalmente publicados em A Cigarra, VII, 150,151 e 153, 15 dez 1920,
1 jan 1921 e 1 fev 1921.
63
védicos indianos, acrescentando que eles seriam estranhos aos “primitivos povos
arianos”96. Só na quarta e última parte é que um breve trecho da tradução de Gustavo
Barroso será abordado, em comparação com outras para o português e para o francês.
A terceira seção, apesar de ser talvez a mais disparatada para o contexto de uma resenha
supostamente dedicada à tradução do Fausto por Barroso, é a mais interessante para a
presente análise.
Num plano meramente formal, ela já dá mostras do privilégio que Sergio dará à
história como filtro analítico em seu estudo da literatura. Isso já se mostrava em textos
anteriores, mas aqui é mais saliente, ainda mais porque o estilo da análise já manifesta,
em estado embrionário, um tipo de procedimento que Sergio irá praticar em obras
muito mais sofisticadas, como o prefácio a Suspiros poéticos e saudades, os Capítulos
de literatura colonial e Visão do paraíso. Sergio toma um elemento textual – o
tratamento que um poeta ou uma fonte dá a determinada situação existencial – no caso,
o “pessimismo” – e traça suas origens histórico-culturais de forma especialmente
sensível à continuidade das suas formas de expressão no discurso. Pode-se comparar,
nesse caso, por exemplo, a atribuição algo mecânica do “pessimismo” a povos
“semíticos” ou “arianos” – por oposição àqueles do Norte da Europa – à discussão das
95
“O Fausto”, cit., p. 83.
96
“O Fausto”, cit., p. 83.
64
97
“Suspiros poéticos e saudades”, cit., LP, p. 364
98
“A arcadia heróica”. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. São Paulo:
Brasiliense, 1991, doravante CLC, p. 142-144.
99
Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos. Dissertação de
Mestrado (Ciências Sociais). São Paulo, Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, 1958,
doravante EF.
100
Loc. cit.
101
RB, p. 125.
102
“Suspiros poéticos e saudades”, cit., p. 370.
65
103
“O Fausto”, cit., p. 84.
104
“O Fausto”, cit., p. 78; GRUCKER, Émile. Histoire des doctrines littéraires et esthétiques en
Allemagne. Paris: Berger-Levrault et Cie., 1883, p. XVI.
66
A crítica “romântica” (já antecipada em parte pela Ciência Nova de Vico) toma
a obra de arte como célula básica de significação da existência e de configuração das
épocas históricas. Assim, não há divisão estanque, para além de estilos de exposição e
temário, isto é, de fatores mais ou menos circunstanciais, entre crítica e história. Não
admira, portanto, que o gesto crítico de Sergio já contenha condensado aquele do
historiador. Enquanto, numa ponta, a realidade histórica é invocada como fator
formativo da expressão poética e literária – e dos objetos da cultura em geral, inclusive
os materiais, como se pode notar nos estudos sobre a expansão paulista (de Monções e
Caminhos e fronteiras até O extremo Oeste), esta é construída a partir dos indícios de
uma estrutura de razão e sensibilidade presente na obra de arte e em outras expressões
da cultura, num jogo de influências recíprocas entre forma e vida. A contrapartida
propriamente “crítica” dessa compreensão da conformação histórica das expressões do
espírito ainda é um pouco débil neste primeiro momento, mas pode ser verificada em
105
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras,
2018, p. 48.
106
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, p. 74.
67
sua forma mais acabada tanto nos estudos maduros de história literária (notadamente
os Capítulos de literatura colonial, mas também o já mencionado prefácio de 1939 a
Suspiros poéticos e saudades) quanto nos ensaios críticos sobre Manuel Bandeira,
Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto107. Nessa primeira fase,
esse movimento já se deixa antever, além da terceira parte do ensaio sobre o Fausto,
na série de artigos “Os poetas e a felicidade”, que aproveita a identificação de em certa
tradição cultural “semítica” com uma espécie de “pessimismo” característica da poesia
dos “povos do meio-dia da Europa” e o discute mais longamente, conectando-o com o
tema da morte. O título do ensaio em três partes só fica claro quando se percebe que
ele se desenvolve na forma de uma consideração da atitude de vários poetas diante da
morte como disparadora do juízo emitido pelos poetas sobre o valor (ou não-valor) da
existência terrena.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
O texto divide os poetas entre aqueles que tomam a morte como ocasião
redentora, ou simplesmente negar a importância da vida. Os primeiros seriam
“otimistas”, afinal, veriam a morte como experiência que eleva o homem ao patamar
superior e venturoso da vida eterna – desse grupo fariam parte Victor Hugo, Leconte
de Lisle, André Chenier, Walt Whitman e Baudelaire; já os pessimistas, “que negam
toda a possibilidade da ventura em seu sentido completo”, não só afirmam a vaidade
do mundo terreno como julgam-no como espaço de agruras desilusões108 – entre esses
últimos estaria a maior parte dos poetas portugueses e brasileiros. Aqueles que por
vezes contrariam essa tendência, como Medeiros de Albuquerque, o fazem de forma
inautêntica109. Mas Sergio se empenha em refutar a tese de que o pessimismo lacrimoso
das “cançonetas populares” luso-brasileiras seria expressão de algum caráter nacional
– nesse texto, ele procura remeter o “pessimismo”, novamente, ao componente étnico
semítico e estendê-lo a todo o cristianismo, por ser ele, originalmente, uma religião do
Levante, produto da cultura hebraica. Isso não impede que, como resultado desse fundo
religioso e do intercurso cultural com os árabes, Sergio admita, citando Rubén Darío,
que “os portugueses, esse povo viril, sentem de modo exagerado o sopro da tristeza”,
107
CB, p. 29-44, 151-166, 167-180.
108
“Os poetas e a felicidade – II”, cit., p. 94.
109
“Os poetas e a felicidade – III”, cit., p. 99.
68
o que explica o terem mesmo desenvolvido uma palavra para sua “enfermiza y especial
nostalgia” (palavras de Darío), “um sentimento único, mas cheia de melancólica
doçura: saudade.”110 Essa visão acentuadamente melancólica da vida não corresponde
a uma valorização da morte, da qual os poetas luso-brasileiros raramente falam, mas a
qual devem associar, como o drama simbolista Madame la mort, de Rachilde, “as
formas mais horríveis”, o que explicaria “seu silêncio a respeito”111. Por isso mesmo,
apesar da sua visão igualmente negativa da vida, “os nossos poetas amam a vida com
todas as suas desgraças e mazelas”; alguns teriam chegado à prática, segundo Sergio
excepcional em toda a poesia mundial, do elogio da vida.
Nesse passo do ensaio, o jovem crítico lembra uma pensée de Pascal que
aconselha os homens a evitar o pensamento da morte e, numa transição um tanto
confusa, afirma que os poetas em geral não têm obedecido essa máxima, apenas para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
citar a heroína de Ibsen Hedda Gabbler (“Eu não quero ver nem a doença, nem a
morte”), afirmar que “a maioria dos poetas brasileiros assemelha-se a Hedda Gabbler
no horror à morte” e passar a uma rápida resenha dos momentos em que a poesia
brasileira contrariou essa tendência – é o caso de Álvares de Azevedo e Francisco
Otaviano. Este último seria realmente excepcional em seu desejo de dar “termo às
infelicidades dessa vida”, enquanto o primeiro exibia uma mera tranquilidade diante da
aproximação do fim da vida, sem valorizá-lo como tal. “Nenhum” de nossos poetas,
por outro lado, “chegou a ponto de perder na mocidade todas as esperanças, como
Alfred de Vigny, como Leopardi” 112 . Na terceira parte do artigo, Sergio passa a
diferenciar o pessimismo radical de Vigny e Leopardi da média dos poetas luso-
brasileiros. Em flagrante contradição com o que antes havia posto inequivocamente,
embora de modo pouco direto, Sergio irá afirmar que “nossos poetas, em geral, não são
pessimistas” 113 , assemelhando a visão artística luso-brasileira da vida daquela do
dramaturgo Christian Hebbel. Segundo Sergio, Hebbel, assim como nossos poetas,
acreditava que a dor legitimava e conferia sentido à vida; haveria, portanto, que
valorizar uma para compreender a outra. “Se a vida é só dor e desgosto, se para que ela
110
“Os poetas e a felicidade – II”, cit., p. 95.
111
Ibid., p. 96.
112
“Os poetas e a felicidade – II”, cit., p. 97.
113
“Os poetas e a felicidade – III”, cit., p. 100.
69
exista é necessário que se sofra, que se ‘sinta o frio da desgraça’, então por que essa
revolta contra o destino?”114 Não é certo onde Sergio terá encontrado semelhante leitura
de Hebbel – que, é razoável supor, ele poderia estar citando indiretamente a partir de
algum comentário, do contrário, seria de esperar uma nota de rodapé, pois, nos ensaios
publicados em A cigarra, ele raramente perde a oportunidade de lançar notas para
autorizar suas opiniões com referências.
Se é verdade que esses contrastes se valem de generalizações e caracterizações
por vezes grosseiras ou hiperbólicas, já se pode notar aqui uma sensibilidade refinada
para sutilezas e para um instinto de investigação de elementos mais profundos por trás
de traços superficiais que analistas menos atilados poderiam ter se limitado a constatar,
que consiste num dos pontos fortes de sua produção historiográfica e crítica. Sergio
está começando a desenvolver o espírito crítico e o instinto de investigação que lhe
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
114
Loc. cit.
115
“Plágios e plagiários”, EL, I, p. 116-130; Revista do brasil, v. 18, set 1921
70
enriquecimento progressivo da arte poética. Sergio aborda aqui pela primeira vez, duas
noções que lhe serão especialmente caras na produção crítica posterior: as ideias de
“motivo” e “tópica” trabalhadas como configurações discursivas de situações
existenciais sedimentadas na história literária, que terão papel especialmente destacado
nos estudos reunidos em Capítulos de literatura colonial116 e Visão do paraíso. Escreve
Sergio:
Os combates da Eneida são tomados da Ilíada e as viagens de Enéas são imitadas das de
Ulisses. Macróbio transcreve uma centena quase de passagens da Eneida que foram
traduzidas mais ou menos fielmente de Homero, reconhecendo embora que Virgílio em
alguns deles exprime-se de modo superior ao do imortal poeta grego.”117
emprestados a outro autor, “o plágio não era crime”. Lembra também que, para
Ardengo Soffici, se os grandes clássicos fossem examinados com atenção cuidadosa a
símiles, ideias e pensamentos tomados de empréstimo, de nenhum se poderia dizer que
tenha saído “do âmbito estreito do lugar-comum” 118 . Mesmo reconhecendo a
legitimidade do combate ao lugar-comum, Sergio alerta para o perigo da criação de
novos, como é o caso dos “naturalistas, parnasianos, simbolistas, decadentes e
místicos”, “inovadores inimigos de lugares-comuns” na poesia luso-brasileira 119 .
Finalmente, são discutidos alguns exemplos concretos de possível plágio, chegando-se
à conclusão de que só há plágio quando se reproduz, no empréstimo, a forma, além do
conteúdo. Não é uma conclusão das mais sofisticadas para um texto que chega em
alguns momentos a um nível superior, mas percebe-se uma nítida evolução e uma
ampliação nos horizontes analíticos do crítico, que, nesse momento, está talvez menos
desenvolto no trabalho de seu material por encontrar-se num momento de transição –
note-se que o Sergio conservador e tradicionalista ainda não se metamorfoseou
116
Numa espantosa coincidência, este texto começa pela discussão de uma poesia de Raimundo Correia
acusada de “plágio” de Metastasio, o poeta italiano cuja influência nos “árcades” brasileiros será
detalhadamente discutida nos ensaios de CLC. Coincidência, a não ser, é claro, que Sergio tivesse já
então uma predileção pelo “poeta cesáreo”.
117
“Plágios e plagiários”, cit., p. 121.
118
Ibid., p. 123.
119
Ibid., p. 125.
71
inteiramente no modernista e ainda cita neste texto, entre futuristas, o Rodó que tanto
animara os ensaios de estreia. Não admira que, nesse momento, sua crítica tenha uma
qualidade irregular, não só por falta de desenvoltura, mas pela indeterminação
característica dos períodos de mudança de fase, sendo levado a formular seus
argumentos com ideias desencontradas, quando não contraditórias. Isso se acirrará nos
primeiros textos nos quais aparece mais abertamente uma adesão à vanguarda estética
paulista, aos quais optou-se por dedicar um capítulo próprio. A segurança dos primeiros
textos só voltará algum tempo depois, e a desenvoltura, pode-se dizer que somente nos
textos escritos para a revista Estética, ou talvez um pouco antes. Essa nova fase
propriamente modernista é o objeto das páginas seguintes.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
II
Não pecaria por exagero quem dissesse que o envolvimento de Sergio Buarque com o
movimento artístico e literário “modernista”, num primeiro momento por ele chamado
de “futurista”, proporciona uma revolução em seu pensamento. Revolução,
compreenda-se, em dois sentidos. Primeiro, num sentido mais usual, porque dá-se uma
transformação profunda: reorganizam-se o temário, o escopo de análise e os valores
que orientam sua atividade crítica. Segundo, porque, como costuma acontecer em
revoluções políticas, culturais e sociais históricas, verifica-se, ao termo do processo,
uma retomada, em nova chave, de elementos anteriormente rejeitados1. Pode-se dizer,
esticando um pouco a analogia, que há uma certa reação restauradora: ao final dos anos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
1
A presente interpretação da obra crítica de juventude tem alguns pontos em comum, mas divergências
importantes com outro estudo à disposição sobre o mesmo tema e guiado por preocupações afins ao
deste: e de João Kennedy Eugênio (2008, cit.). Eugênio identifica o romantismo de Sergio como tendo
origem já nos primeiros textos e o modernismo como seu prolongamento natural (p. 434-5). É difícil
discordar da presença de um substrato romântico na primeira fase, principalmente como herança
sedimentada que aqui se veio considerando menos como romantismo do que como uma tradição alemã
de pensamento morfológico e formativo, ligada mais a nomes como Goethe, Schiller e Hegel do que
àqueles autores conhecidos na Alemanha como românticos (os irmãos Schlegel, Novalis, Kleist,
Schelling etc). Mesmo o influxo propriamente “romântico” é apropriado, naquela primeira fase, sob o
aspecto de uma marmórea tradição. Pode-se dizer, talvez, que é um romantismo tornado “clássico” e,
portanto, neutralizado no potencial de rebelião contra os valores convencionais e contra a tradição que
é, afinal, um dos elementos mais costumeiramente associados ao romantismo – tanto daquele original,
o de Rousseau, de Wordsworth e da Frühromantik alemã, como de movimentos neorromânticos mais
recentes, como o surrealismo. Aqui, espera-se que a análise mostre como o modernismo efetivamente
coincidirá, em Sergio Buarque, não tanto com referências românticas individuais, mas sobretudo como
uma atitude intelectual (cf. Schmitt, Political Romanticism, cit.; LÖWY, Michael; SAYRE, Robert.
Revolta e melancolia. O romantismo na contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2014)
que inclui a negação das convenções, o expressivismo subjetivo, o culto à sinceridade, uma
desconsideração pela precisão na expressão dos pensamentos e a ironia – elementos para os quais, de
resto, Eugênio não deixa de atentar, mas aplica sobretudo à fase anterior a 1922, que para ele não
apresenta maiores diferenças com a modernista, a não ser de conteúdo. Como se verá, a presente análise,
que deve muito aos trabalhos de Eugênio, se empenha em avançar uma tese bem diversa.
73
Raízes do Brasil, e mesmo com a crítica literária posterior a 1936, são muito mais sutis,
e talvez até menos decisivas, do que aquelas da fase inicial e (ainda mais) juvenil. O
que não quer dizer, evidentemente, que a fase que se vai analisar agora não seja
essencial à boa compreensão da obra posterior.
Se é verdade que o envolvimento com o modernismo representou para Sergio
Buarque um período de amadurecimento, o mais exato é dizer que foi uma fase de
aprendizado, ou seja, para usar o linguajar de uma obra clássica sobre o tema, de
fruição e superação do erro. 2 Erro, entenda-se não como juízo de valor sobre as
posições tomadas por Sergio, mas como indicativo de que seu envolvimento com o
modernismo resultaria, em grande medida, em frustração. Em relatos retrospectivos
sobre a época, Sergio admite a importância do movimento renovador, mas o trata como
uma época de excessos e inscreve-a sob o signo de um conceito sobre o qual passou a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
2
A frase é de um discurso do abade sobre a educação no Wilhelm Meister de Goethe: “a sabedoria dos
mestres está em deixar que o errado sorva taças repletas de seu erro”. GOETHE, Wolfgang von. Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 470.
74
3
“Poesia e crítica”, EL, I, p. 273-4. Texto originalmente publicado no Diário de Notícias, 15 set 1940.
4
“Perene Romantismo”, EL, I, p. 373-377. Texto originalmente publicado no Correio da Manhã, 19 mai
1946.
5
Ibid., p. 376.
75
6
Essa crítica está amplamente documentada nos textos onde Sergio debate o new criticism e sua
apropriação entre poetas brasileiros, além de sua crítica ao “retorno do poético”, que estão reunidos no
segundo volume de O espírito e a letra. Essa polêmica de Sergio escapa ao problema do presente estudo.
Ela é detalhadamente discutida nos três primeiros capítulos do estudo de Thiago Lima Nicodemo sobre
a crítica de Sergio Buarque nos anos 1950. NICODEMO, Thiago. Alegoria Moderna. Crítica Literária
e História da Literatura na obra de Sergio Buarque de Holanda. São Paulo: Unifesp, 2014.
7
“Viagem a Nápoles”. In: MONTEIRO; EUGÊNIO, Sergio Buarque de Holanda: Perspectivas, cit., p.
565-582.
76
que ele recomende certa “terapêutica” para “curar” o dito romantismo imperante entre
os poetas brasileiros. Ele próprio, não sendo poeta em sentido estrito, defende nesse
texto de 1940 que essas atividades não se distinguem rigorosamente senão num plano
abstrato e teórico.
Mas terapêutica de quê? Ora, ler a produção de Sergio Buarque desde fins de
1921 até meados da década é perceber como, mesmo nos melhores momentos, Sergio
Buarque se entregou de corpo e alma, com pouquíssimas restrições, àquele “culto
exclusivista à espontaneidade, à facilidade”, à “superstição romântica”, à “religião do
movimento”, à “canonização do instante fugidio”, ao “culto do pitoresco, do colorido”,
ao “desprezo do normal pelo acidental e do eterno pelo temporal” pelos quais se deixara
seduzir a cena literária brasileira, começando por São Paulo, à guisa de “renovação” e
oposição ao “academicismo”. Em “Perspectivas” (1925), artigo onde a trajetória
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
1. Fanatismo
8
“O gênio do século”, EL, I, p. 108-112. Texto originalmente publicado em A cigarra, VIII, 167, 1 set
1921.
77
só se mostrará quando Sergio passa a atuar ao lado de Prudente de Moraes Neto como
editor da revista Estética. Essa tomada de consciência ocorrerá em texto a ser analisado
em breve. Desta rejeição inicial do Romantismo histórico, cabe dizer que ela é
característica desse período inicial de transição, no qual é frequente a negação frontal
de posições anteriores, em repentes fervorosos típicos de uma conversão juvenil a um
novo evangelho que precisa ser afirmado e propagado contra todos os elementos
conflitantes, ou mesmo indiferentes, com a doutrina excelente e recém-descoberta. O
sentimento de uma virada revolucionária já se anuncia na epígrafe do ensaio, tomada
do crítico italiano Giovanni Papini, uma das figuras de proa do futurismo italiano:
“bisogna ridiventare un pó barbari – magari un pó beceri – si vogliamo rinovare la
poesia” [é preciso tornarmo-nos um pouco bárbaros – talvez um pouco negros – se
quisermos renovar a poesia]9. O traço vanguardista aqui presente é a crença no poder
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
[O fin de siècle foi] um prelúdio da literatura revolucionária do século XX. Foi uma
consagração maravilhosa das duas grandes qualidades que caracterizam o novo século:
a rebeldia e a contumácia no sentido mais lato, também mais perfeito de fanatismo. Os
modernos têm desprezado sem motivo essa nunca assaz louvada virtude social que é o
fanatismo, a mesma que por si só desculpa e quase santifica os Torquemadas e as
Inquisições.10
9
Ibid., p. 108.
10
Ibid., p. 110
11
“O homem-máquina”, cit., p. 561.
78
que, cinco meses depois, escreve que “[n]ão é aqui o lugar de repetir os ataques
daqueles que veem, numa aglomeração de escolazinhas, um mal. Pensamos antes que
elas são atestado sério de independência de espírito e que embora o gênio nunca
acompanhe as escolas, estas são sempre agentes das grandes ideias”. 12 Nem tudo,
porém, é revolta e negação do passado. “Originalidade” é um valor que, tendo
assinalado a estreia de Sergio na cena literária, permanece em seu horizonte crítico,
conferindo alguma continuidade à sua reflexão. Mesmo assim, já não se trata tanto da
“originalidade” no sentido de “caráter” singular e original em meio ao harmônico
concerto das manifestações literárias mundiais – concepção que não é tanto romântica,
mas antes “clássica” – leia-se a conversa anotada por Eckermann onde Goethe, o
grande nome do classicismo alemão, cunha a noção de Weltliteratur ou “literatura
mundial”13. O que Sergio entende aqui como “originalidade” não é tanto o objetivo de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Resta entretanto ainda muito que fazer. Resta combater toda sorte de imbecilidades que
continuam a infestar a Arte moderna, como sejam o realismo, o naturalismo, o
vulgarismo, a fim de que se possa erguer bem alto o monumento que simbolizará a Arte
12
Loc. cit.
13
ECKERMANN, Johan Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida, 1823-1832.
São Paulo: Unesp, 2016,p. 228-229 (conversa de 31 de janeiro de 1827). Pode-se argumentar que
também os românticos, como os irmãos Schlegel, esposam esse ponto de vista, e mesmo que o tornaram
possível. A partir do ponto de vista de 1920, contudo, trata-se nitidamente de uma visão de prestígio
antigo, esteticamente conservadora e integrante de uma certa “ordem” na visão da história literária.
14
“O gênio do século’, cit., p. 111-2.
15
“Ibid., p. 112.
79
Sergio trata aqui o poeta, como tratará vários do movimento, numa atmosfera de
intimidade – com o poeta paulista, Sergio está, de certa forma, “em casa”, ainda mais
porque este é o começo de seu período de residência no Rio de Janeiro: “há dias falava-
me ele aqui no Rio sobre o perigo das rodinhas literárias”20; “[seus versos] ele próprio
os recita como se estivesse conversando”21. Guilherme, pelo visto, seria um daqueles
que sabiam manter o espírito independente, a personalidade, em superior indiferença
às “escolazinhas com regras fixas e invioláveis”, bem como às “regras consuetudinárias
16
Loc. cit.
17
“Guilherme de Almeida”, EL, I, p. 113-5. Texto originalmente publicado em Fon-Fon, XV, 36, 3 set
1921.
18
Ibid., p. 113.
19
“Guilherme de Almeida”, cit., p. 113.
20
Loc. cit.
21
Ibid., p. 115.
80
sem razão de ser”, seguindo “o natural progresso da poesia”. É o poeta original contra
todo o mundo, até mesmo as vanguardas organizadas, pois essas oprimiriam seu
espírito singular. Almeida, por isso, não chega a ser um “futurista”, é apenas “um
original, um raro, aqui está”22. O atrativo de Guilherme está em fazer “palpitar” nos
seus versos a vida moderna que vive um público que insiste em ser “passadista” em
arte, “como nunca se viu”. O crítico enumera, então essa aparição inédita do “novo”,
típica da fase inicial do modernismo, que hoje já não se deixa ler sem algum fastio: “os
táxis, os telefones, os fox-trots, os jazz bands etc...” Não falta aqui tampouco o orgulho
do paulista que, escrevendo em revista carioca, vem alardear as moderníssimas cenas
da poesia do conterrâneo: “[a] da projeção da luz dos ‘globos cor de lua’ sobre o
asfalto”, passando por entre as sombras das folhas dos plátanos – “lua” que rima com
a “longa perspectiva elétrica da rua”, lê-se no poema citado integralmente na crítica.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
22
Ibid., p. 114.
23
Ibid., p. 114.
24
Ibid., p. 115.
25
“O futurismo paulista”, EL, I, p. 131-3. Artigo originalmente publicado em Fon-Fon, XV, 150, 10 dez
1921.
26
Ibid., p. 131.
81
Atacado pelo sanchopancismo da época, que era o de todas as épocas, exaltado pelos
homens de inteligência e coragem e por alguns snobs imbecis também, o novo
movimento tem naturalmente os seus erros, como todas as grandes reações, mas possui
também a vantagem imensa e inapreciável de trazer algo novo, vantagem que por si só
já o justifica e o torna louvável.28
Aflora aqui, mais uma vez, o orgulho provinciano, tão característico da primeira
fase do modernismo paulista: “Depois de ter revelado um artista de primeira ordem que
é Victor Brecheret, a velha terra dos bandeirantes vai colaborar para o progresso das
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
artes com uma plêiade disposta a sacrifícios para atingir esse ideal”. Enumeram-se,
então os principais nomes da “plêiade”, sempre elogiados, ainda que, justiça seja feita,
depois de chamar de “lindo” o “Juca Mulato”, o crítico tenha a coragem de confessar
sua opinião sobre o romance Laís, de Menotti del Picchia, (“horrível palhaçada”29).
Sobre o amigo Guilherme de Almeida, iniciador de Sergio no novo credo, lê-se que
“está um pouco fora do movimento”, mas que possui uma “visão estética
originalíssima” 30 . O artigo não traz nada de muito novo em relação a “O gênio do
século” (que, como este, sai na revista carioca Fon-fon), repetindo os mesmos lugares-
comuns elogiosos do “novo”, mas é um documento relevante na medida em que se
propõe claramente como uma apresentação entusiasmada dos “modernos” de São
Paulo ao público carioca.
Em fevereiro do ano seguinte ao texto sobre Guilherme de Almeida, a militância
modernista tem seguimento com mais um artigo na Fon-fon, esse sobre Manuel
Bandeira31. Sergio apresenta o poeta pernambucano, com justiça, como o “fundador do
movimento modernista”32. O mais notável deste texto é o seu objeto, ao qual Sergio
27
Loc. cit.
28
Ibid., p. 132.
29
Ibid., p. 132-3.
30
“O futurismo paulista, cit. p. 133.
31
“Manuel Bandeira”, EL, I, p. 141-4. Texto originalmente publicado em Fon-Fon, 18 fev 1922.
32
Ibid., p. 144.
82
voltará depois, com um tino crítico mais apurado do que neste, que não chega a
acrescentar nada de relevante às ideias feitas que caracterizam os outros textos desta
fase. Começando a rápida consideração de Manuel Bandeira por um elogio de sua
capacidade de imprimir em seus versos “um pouco dessa melancolia muito brasileira”
(que deixa ler no verso “O meu carnaval sem nenhuma alegria!...”), volta aos clichês
propagandísticos, louvando a “originalidade” de Bandeira – sua poesia “é, antes de
tudo, sua e só sua”33 – e execrando as produções do passado recente – com A cinza das
horas, em 1917, antes, portanto, dos “futuristas” de São Paulo, Bandeira “deu o
primeiro golpe na poesia idiota da época em que se usava o guarda-chuva, que é
positivamente uma prova evidente do mau gosto estético dos nossos avós” 34 . O
comentário mais interessante desse texto é a aproximação entre a estética de Bandeira
e a de Pallazzeschi, onde, referendando a opinião do antes ridicularizado Ardengo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Soffici, agora apodado de “homem mais inteligente da Itália”, Sergio vê “uma poesia
compreendida como simples capricho, como mera efusão de um estado lírico qualquer
que seja, sem nenhum escopo, sem nenhuma razão de ser nem relação com os valores
sociais correntes”35. É difícil pensar, nos quadros do ataque que Sergio faz no ensaio
de 1940 citado na abertura deste capítulo, num elogio mais romântico do que esse que
ele agora faz de Manuel Bandeira, com quem ele trava aqui seu primeiro contato como
crítico e sobre quem escreverá, também em 1940, um de seus melhores ensaios36, a ser
discutido em detalhe mais adiante, mas onde, lembre-se, os termos do elogio mudam
bastante – lá, Sergio encarece em Bandeira “as qualidades de lucidez, de
discriminação”, “a estudiosa aplicação aos mais complicados problemas da técnica do
verso”, a sua poesia “bem governada”, onde um “censor superficial e desatento falaria
em versatilidade”, qualidades que ele “não partilha, talvez, com nenhum poeta
brasileiro de seu tempo”, e que nesse texto o separam, e até o opõem, ao mesmo
Guilherme de Almeida há pouco elogiado por sua independência e originalidade. Nos
versos de Almeida, o Sergio de 1940 identificará, em comparação que serve para
33
Ibid., p. 142.
34
Ibid., p. 144.
35
Ibid., p. 141-2.
36
“Poesias completas de Manuel Bandeira”, EL, I, p. 276-282. Texto originalmente publicado no Diário
de notícias, 6 out 1940, depois recolhido em Cobra de vidro, 1944; ampliado e publicado como
introdução geral da Poesia e prosa de Manuel Bandeira, 1958.
83
37
“Poesias completes de Manuel Bandeira”, cit., p. 280-282.
38
“Os novos de São Paulo”, EL, I, p. 148-9. Texto originalmente publicado em O mundo literário, 5 jun
1922.
39
Ibid., p. 148.
40
Cf. supra cap. I.
41
“Jardim das confidências”, EL, I, p. 150-1. Texto originalmente publicado em O mundo literário, 5
jul 1922.
42
Ibid., p. 150.
84
dos impressionistas franceses, possuem “das Auge des Geistes” [o olho do espírito],
“quer dizer, o fundamento do expressionismo”. Nos demais artigos do Mundo literário,
Sergio se dedica a propagandear a literatura paulista de nova tendência, entrando até
numa polêmica mordaz contra os “passadistas” que haviam atacado especificamente
Menotti del Picchia. Esses textos limitam-se a reafirmar ou prolongar opiniões e pontos
de vista que aqui já foram citados, demarcando e elogiando a descontinuidade entre os
“novos” e os “passadistas” de São Paulo47.
2. Heresia
43
“O expressionismo”, EL, I, p. 155-158. Texto originalmente publicado em Arte nova, 10 set 1922.
44
Ibid., p. 156.
45
Ibid., p. 156-8.
46
Não há, salvo engano, material documental que permita supor quando exatamente o domínio de leitura
em alemão de Sergio adquiriu o patamar de desenvoltura que se verifica a partir de sua estada alemã.
Múcio Leão escreve numa resenha de Raízes do Brasil que, antes de ir para Berlim em 1929 Sergio
“sabia um pouquinho de alemão (não seria o bastante para confundir Goethe)”, o que no entanto é
contrariado, por exemplo, pela provável leitura das Considerações de um apolítico de Thomas Mann
ainda antes de sua partida (Cf., neste capítulo, a seção 3, “Duelo”). LEÃO, Múcio. “Registro literário”.
Jornal do Brasil, 7 nov 1936.
47
“[O passadismo morreu mesmo]”, EL, I, p. 165-9. Texto originalmente publicado sem título na seção
“S. Paulo” de O Mundo Literário, 5 jul 1923.
85
Bem mais instigante do que todos os textos da década de 1920 comentados até esta
altura é o ensaio sobre André Gide publicado em fevereiro de 1924 48, escritor que
Sergio encontra pela primeira vez e por quem manterá uma predileção especial e
duradoura. Esse texto é o primeiro de maior ambição crítica e fôlego, desde o trio de
ensaios “O Fausto”, “Os poetas e a felicidade” e “Plágios e plagiários”. Ainda não se
pode dizer que o crítico chegou a sua fase madura. Ainda há sinais de que ele ainda não
domina inteiramente o material e sua forma, ainda trai certo tom levemente escolar.
Mesmo assim, quem tenha lido os textos anteriores a este não terá como deixar de notar
que este ensaio já pertence a outro patamar, e a partir deste ponto o nível das críticas,
se não é necessariamente aquele que se atingirá a partir de 1939/40, já se mantém acima
de uma linha mínima de qualidade; a irregularidade e a falta de medida de textos
anteriores não se repetirá. Alguma observação aguda será sempre encontrada daqui em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
48
“André Gide”, EL, I, p. 170-6. Texto originalmente publicado em América brasileira, III, 26, fev 1924.
86
pense-se, aqui, na forte sugestão nietzschiana do título de seu último escrito de fôlego,
o ensaio “O atual e o inatual em Leopold von Ranke”. É verdade que contato de Sergio
com Nietzsche já se denunciava em textos da primeira fase, sobretudo, possivelmente,
por intermédio do crítico dinamarquês Georg Brandes, o primeiro intelectual de algum
prestígio a difundir o pensamento de Nietzsche, e o único que o fez durante a época em
que o filósofo alemão ainda era lúcido50. É Gide, porém que vai acelerar e condicionar
a recepção inicial de Nietzsche pelo crítico brasileiro, pois, como se verá, o
irracionalismo nietzschiano é filtrado pelo misticismo cristão de tonalidade romântica
de Gide – em leitura contrária, certamente, a qualquer que possa ter sido a intenção do
autor do Anticristo. Gide é “anticristão” na medida em que impõe ao cristianismo uma
leitura pessoal e o transforma numa doutrina subjetivista de valorização do desejo e da
vida, da mesma maneira, segundo a opinião de Sergio, que o poeta inglês Robert
Browning: “A ideia de que são nocivas as interdições do Decálogo e de que ‘a força, o
amor e a vontade’ bastam para restringir, suprimir ou substituir aquelas interdições, é
frequente não só na obra do poeta inglês como também na de Gide”51. Esse cristianismo
chega às raias de um relativismo radical, e está bem próximo daquilo que Carl Schmitt,
49
“André Gide”, cit., p. 171.
50
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Apêndice: Uma carta. In: Ecce Homo. Como alguém se torna o que é.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 121-2.
51
“André Gide”, cit., p.172.
87
Logo mais, Sergio volta a comparar Gide com Robert Browning, e dessa
comparação extrai um entendimento mais sutil do francês. Para Browning “o sentido
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
da terra traduz-se num princípio de lucro”54. A atitude de Browning, tal como exposta,
seria a de uma sofreguidão fáustica pela quantidade e pela satisfação dos desejos.
Sergio atualiza a problemática que havia movido o ensaio “os poetas e a felicidade”,
restringindo, com grande proveito, a comparação a dois escritores. Não custa salientar
que ele volta, portanto, à modalidade crítica como exploração dos painéis existenciais
encerrados no texto literário que caracterizará seus melhores ensaios e que já aparecera
de modo algo desajeitado na primeira fase: Sergio lê os poetas e romancistas como
criadores de mundos conformados pela sua arte. A morte é sempre uma presença
destacada, e a poesia é tomada como uma resposta para os seus mistérios e para a
significação da vida e de seu valor – ou seja, daquilo que anos antes era compreendido
como “felicidade”, e que Gide, na esteira de Nietzsche, entenderá ser a busca mesma,
o impulso aspiracional. Esse impulso, porém, admite diferentes configurações: o
“princípio de lucro” eminentemente extensivo e quantitativo de Browning contrasta
com a adoração, por Gide, do instante e da maravilha da vida, intensivos e qualitativos,
de inspiração nietzschiana. O leitor da primeira edição de Raízes do Brasil reconhecerá
aqui, talvez, uma célula originária do contraste entre a “aderência ao mundo” e o “viver
52
Cf. SCHMITT, Carl. Political Romanticism. Cambridge, MA: MIT Press, 1986, p. 7-8;16; 78-108.
53
“André Gide”, cit., p. 172-3.
54
Ibid., p. 175.
88
A única cousa que o detém [a Browning] diante das experiências desta vida, é a
possibilidade de perda, e a sua pergunta constante confunde-se com a do bispo na Bishop
Blougram’s Apology: “Where’s the gain?”. À questão oposta responde um de seus
personagens: “Lose? Talk of loss and I refuse top lead at all.” O seu biógrafo Sutherland
Orr ensina-nos que “ele sempre contava como um dia perdido aquele em que nada
houvesse escrito”. Em outra passagem de sua Life of Robert Browning refere-se à
convicção contínua do poeta de que a sua última obra devia ser naturalmente a melhor
por ser o resultado de uma experiência mental mais completa e de uma prática maior em
sua arte. Esse princípio de lucro “compõe uma das faces mais características de sua
concepção afirmativa da vida[”]. Não é fácil separá-lo do pensamento essencial de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
É significativo, por sinal, que Gide tenha em comum uma certa problemática da
fragilidade do sujeito com o outro grande mestre de Sergio em matéria de moral e
estética, Thomas Mann, que Sergio analisará dez anos depois, em artigo de 193557.
Problemática, de resto, típica da literatura do começo do século XX, mas que nesses
autores toma um complexo de tonalidades e traços semelhantes. O grande tema que
atrai Sergio à ficção de Thomas Mann é o do artista que precisa criar para escapar ao
perigo da desagregação de sua personalidade, ao mesmo tempo que essa criação é um
flerte com o abismo mesmo da desagregação – problema trabalhado nas duas obras que
talvez fossem, àquela altura, as favoritas do crítico, as novelas A morte em Veneza e
55
SPENGLER, Oswald. Decline of the West, v. 1. Form and Actuality. Nova York: Alfred Knopf, 1926,
p. 4; 37-8.
56
“André Gide”, cit., p. 175-6.
57
“Thomas Mann”. In: Raízes de Sergio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 294-7.
Este volume será referido, doravante, pela abreviatura RSBH. Texto originalmente publicado na Folha
de Minas, 25 mar 1935.
89
Tonio Kroger. Numa preleção sobre “A influência em literatura” reunida nos Prétextes
e citada no ensaio de 1924, lê-se que
[E]xatamente hoje, mesmo sem fazer profissão de individualismo, pretendemos ter cada
um a nossa personalidade, e que, mesmo que essa personalidade não seja muito robusta,
mesmo que ela pareça, a nós mesmos ou a outros, um pouco indecisa, cambaleante ou
fraca, o medo de perdê-la nos persegue e arrisca estragar as nossas alegrias mais reais.58
A ironia, a dignidade, a medida, o bom-tom são nele, antes de tudo, os diques de que
carece para conter o encantamento indefinido da música, a decomposição mórbida, o
doce relaxamento sensual, todos os princípios anárquicos e niilistas que procura resolver
pela arte e que, no entanto, transparecem inflexíveis em todas as suas teses.59
Gide, por outro lado, para quem “a contradição ainda é superficial e apenas
sensível”60, parece encontrar uma solução (ou irresolução) menos paralisante, ou, no
mínimo, menos trágica, e, nos termos do texto de 1924, depois resgatados na
comparação com Mann, consegue se inserir no mundo moral com certa liberdade,
aderindo mais ou menos indistinta e plasticamente ao que as afinidades eletivas das
suas profundezas anímicas determinam. Ele logra manter, porém, com o “fio de
Ariadne” do “esforço para a volúpia”, a constância de uma aspiração, pode-se dizer
que fáustica, ainda que com a reserva de que o Fausto goethiano é, ao menos segundo
uma leitura mais convencional, uma personagem muito mais sólida e determinada do
que o eu literário de Gide. Ou ainda, pode-se dizer que o “fáustico” de Gide é uma
58
GIDE, André. De l’influence em littérature. In: Prétextes. Réflexions sur quelques points de littérature
et de morale. Paris: Mercure de France, 1919, p. 16-7.
59
“André Gide”, cit., p. 295-6.
60
Ibid., p. 295.
90
A revista só duraria três números, mas percebe-se nos textos que Sergio nela publicou
como a experiência cumpriu um importante papel em sua formação crítica. No primeiro
número da revista, Sergio assina o ensaio “Um homem essencial”62, dedicado à obra
de Graça Aranha, com um destaque especial para suas recém-publicadas Notas e
comentários à correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco, que o
escritor maranhense havia editado. Graça Aranha, figura de grande importância nos
primeiros tempos do modernismo, 63 emprestava seu prestígio no meio literário à
promoção de Estética, que tinha como inspiração a inglesa Criterion, mas foi nomeada
em cortesia à doutrina filosófica de Graça Aranha, cuja obra principal era a sua Estética
da vida.
Esta análise de Graça Aranha é importante, não apenas como documento do papel
de mediação que o escritor maranhense desempenha na inserção de Sergio Buarque na
cena crítica, mas na mediação que seu pensamento exerce, na formação de Sergio, com
a tradição intelectual brasileira. Não é a primeira vez que Sergio cita Joaquim Nabuco,
mas aqui o autor do Abolicionismo ganha relevo mediante as concepções filosófico-
antropológicas Graça Aranha sobre o Brasil e a modernidade. Ele próprio é, por seu
61
“Thomas Man”, cit., p. 295.
62
“Um homem essencial”, EL, I, p. 179-185. Texto originalmente publicado em Estética, I, 1, set 1924.
63
Cf. MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista. Sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro:
Ponteio, 2016.
91
Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que explica o
fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os prazeres do
rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegantes dos milionários da Sul-
América; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a atração de afinidades
esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa comum origem
europeia. A instabilidade a que me refiro, provém de que na América falta à paisagem,
à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva
humana; que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um de nós foi
vazado a nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência
do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia. As paisagens todas do
Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um
trecho da Via Ápia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do Cais do
Sena à sombra do velho Louvre. No meio dos luxos dos teatros, da moda, da política,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Uma digressão sobre esta passagem será necessária antes de prosseguir à análise
de Graça Aranha. Poucos textos exerceram uma influência mais ostensiva sobre o
modernismo brasileiro. Mário de Andrade fez desse insight nabuquiano o molde
negativo de sua concepção da arte moderna brasileira, apelidando-o de “moléstia-de-
Nabuco”, expressão que empregou em forma escrita pela primeira vez, salvo engano,
em carta de 1924 a Carlos Drummond de Andrade, mas lhe pareceu tão certeira que ele
faria questão de repetir, um ano depois, em entrevista à imprensa carioca65 – motivo a
ser retomado adiante neste capítulo. Nesta passagem de Nabuco, talvez encontrasse,
condensado, o problema da formação brasileira, tal como ele lhe parecia em 1900,
retomando a experiência que tivera na década de 1870 ao visitar a Europa pela primeira
vez. O problema envolve a falta de tradição e de história – ausência figurada na forma
64
NABUCO, Joaqium. Minha formação. São Paulo: Ed. 34, 2012, p. 70-71.
65
FROTA, Leila Coelho (Org.); ANDRADE, Carlos Drummond; ANDRADE, Mário de. Carlos &
Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-
te-vi, 2003, p. 70; “Assim falou o papa do futurismo”, A Noite, 12 dez 1925.
92
que não pode ser vista, senão no Hemisfério Norte. A vida de Macunaíma, vida de
preguiça, é coroada pelo triplo exílio da morte, da distância e da transfiguração em gás
luminoso. O desejo de Macunaíma, de-siderium, a expectativa de um bem que trarão
as estrelas, ficou irrealizado em meio ao des-astre, a obra de estrelas ruins. Morto,
Macunaíma se tornou a própria luz. Mas Macunaíma é uma estrela que não fará nada
por nós – uma estrela que da maior parte do Brasil não se pode ver, mas que ilumina o
“céu da Ática” com o qual sonhava Nabuco. A preguiça de Macunaíma, por sua vez,
tem uma origem mais erudita do que sugere a tonalidade oral e popular de seu bordão
cômico. Preguiça, em português, é como chamamos o que Santo Tomás de Aquino e
os teólogos medievais chamavam de acedia, também traduzido, alternativamente por
“tristeza”, pois tristitia quase se confunde com acedia na argumentação da Suma
teológica de Santo Tomás. Tristeza é o padecimento que, segundo Paulo Prado, no
Retrato do Brasil, livro lançado em fins de 1927, definiria a cultura do país. Em 1928,
Mário de Andrade lançou Macunaíma, livro que dedicou a Paulo Prado.
66
“Assim falou o papa do futurismo”, cit.,
67
O presente sobrevoo de Macunaíma, extremamente sumário, deve muito ao belo ensaio de Alfredo
Bosi: BOSI, Alfredo. Situação de Macunaíma. In: Céu, Inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica.
São Paulo: Ática, 1988, p. 127-141.
93
são “inanis gloria [vanglória ou soberba], invidia, ira, tristitia, avaritia, gula,
luxuria”70. Na argumentação subsequente, porém, tristitia dará lugar a acedia, e terá
sua causalidade definida de modo a autorizar a tradução mais corrente de “preguiça”,
pois, ao trocar tristitia por acedia, alarga-se a possibilidade de atribuição de outros
vícios ao pecado: “todos os pecados que provêm da ignorância podem ser reduzidos à
acídia, à qual se refere a negligência pela qual alguém recusa adquirir todos os bens
espirituais por causa do trabalho”71. Preguiça, portanto, de cultivar a razão que levaria
a uma vida virtuosa. A ligação com a tristitia é explicitada um pouco antes:
Quanto ao evitar o bem por causa de um mal a ele unido, acontece de duas maneiras. Ou
isso diz respeito a um bem pessoal, e então, é a acídia, que se entristece com o bem
espiritual por causa do trabalho corporal adjunto [et sic est acedia, quae tristatur de bono
spiritual, propter laborem corporalem adiunctum]. Ou diz respeito a um bem dos outros
[...], inveja, [...]. Ou acontece com alguma rebelião vingativa, então é a ira.72
68
A edição consultada é AQUINO, Santo Tomás de. Suma teológica, v. 4. I Seção da II Parte – questões
49-114. São Paulo: Loyola, 2005.
69
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 456)
70
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 454).
71
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 457)
72
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 456)
94
73
Cf. STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia. Uma história cultural da tristeza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017, p.15-42
74
O quarto capítulo do Retrato do Brasil, que trata do “Romantismo” como prolongamento no século
XIX de uma predisposição à tristeza já presente em tempos coloniais, reproduz a concepção humoral
com nitidez cristalina. Note-se que em Raízes, que toma emprestada ao Retrato vários elementos formais
e alguns conteúdos, esse argumento será ecoado, ainda que com tintas diferentes e uma fundamentação
diversa. Eis o que Paulo Prado tem a dizer sobre os poetas românticos, que levam ao paroxismo
disposições espirituais que representam o todo da cultura nacional: “O desejo de morrer vinha-lhes da
desorganização da vontade e da melancolia desiludida dos que sonham com o romanesco na vida de
cada dia. E fisicamente fracos pelo gasto da máquina nervosa, numa reação instintiva de vitalidade,
procuravam a sobrevivência num erotismo alucinante, quase feminino. Representavam assim a astenia
da raça, o vício das nossas origens mestiças.” PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
75
Joaquim Nabuco, Minha formação, cit., p. 98.
95
76
RB, p. 3.
77
“Um homem essencial”, cit., p. 180-1.
96
[Em Aranha] o gênio político chega a uma solução oposta [à que Nabuco dá] do
problema, quando diz que a imaginação histórica deprime o homem completo que é para
ele o artista (está claro que o autor se refere à América, onde a história não chega a criar
uma tradição viva como no Velho Mundo). [...] À falta de tradições, que o homem novo
criado na América pelo contato de civilizações milenares com uma natureza entranha
não deve aceitar, resta ao homem americano, e ao brasileiro em particular, a imaginação
estética criada ainda no “inconsciente mítico” onde ainda não foi de todo eliminado o
“terror cósmico”.78
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
É assim que cada personagem encarna, exprime, representa, e não só representa como
traz em si todo um sistema, toda uma sensibilidade ou todo um mundo. Esse processo é
paralelo ao da biologia moderna, representada por von Uexküll e outros, segundo os
quais o indivíduo é inseparável de sua paisagem. É impossível a um artista reproduzir
em um quadro uma árvore deixando de considerar o fundo da tela e só se pode
representar a unidade do quadro com esse conjunto.79
Não custa salientar o aceno que este paragrafo não deixará de sugerir ao leitor
que ainda tiver no limiar de sua memória a frase há pouco reproduzida de Raízes do
Brasil, onde se lê que a cultura brasileira, ou melhor “todo fruto de nosso trabalho ou
de nossa preguiça’”, “participa de um estilo e de um sistema de evoluções naturais a
outro clima e a outra paisagem”. Essa interação entre individualidade e paisagem, ou,
em outras palavras, o mundo, é o móvel de um método crítico que não é governado por
regras a priori de análise, mas faz a análise fluir do objeto analisado ao construir, para
78
“Um homem essencial”, cit., p. 181.
79
Ibid., p. 182-3.
97
80
“Um homem essencial”, cit., p. 183.
81
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Através do espelho: Subjetividade e narrativa em Minha formação,
de Joaquim Nabuco. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 56, out 2004, p. 5-13.
82
“Um homem essencial, cit., p. 185.
83
“Romantismo e tradição”, EL, I, p. 194-200. Texto originalmente publicado em Estética, I, 1, set 1924.
98
O crítico chega a supor [...] que o esplendor do espírito religioso, no sentido dogmático,
não coincide com o esplendor de uma literatura e que, ao contrário, um está na razão
inversa do outro. É possível mesmo que a decadência da religião dogmática, devida à
impossibilidade de exprimir uma realidade religiosa e de satisfazer aos impulsos
religiosos do espírito, seja uma condição indispensável para que a literatura venha a
florescer. É possível que chegue a uma época em que os espíritos mais sutis sejam
levados a ser da Igreja, mas sem pertencerem a ela: precisamente pelo fato de serem
profundamente religiosos, trabalham em completa independência do que passa por
religião em sua época. O romantismo é para ele alguma coisa que sucedeu à alma
84
Ibid., p. 194.
85
“O futurismo paulista”, cit., p. 131.
99
Não é difícil adivinhar a estreita afinidade que essas ideias terão encontrado, aos
olhos de Sergio Buarque, no misticismo subjetivista de inspiração cristã de André Gide,
que não via no Decálogo nenhum impedimento à sua própria ética e privilegiava aquilo
que entendia ser o ensinamento de Cristo ao de Paulo. Continuando sua resenha do
artigo de John Murry, Sergio identifica na independência “renascentista” que permite
ao homem se desamarrar das rígidas doutrinas teológicas medievas a essência da vida
espiritual do moderna:
[O] homem é inevitavelmente levado a procurar por uma compreensão não racional do
mundo. Ele não pode socorrer a si mesmo; ele precisa encontrar a harmonia; ele não
86
“Romantismo e tradição”, cit., p. 196.
87
“Romantismo e tradição”, cit., p. 197.
100
pode viver em rebelião; ele necessita reintegrar-se na vida. Desse modo vemo-lo
prender-se na literatura a esses momentos de profunda apreensão [...]. Essa apreensão
pode ser chamada apreensão mística, e não é um erro afirmar que “a característica
realmente distintiva do movimento romântico é precisamente essa solução mística do
paradoxo”.88
O romantismo teria, portanto, a missão histórica espiritual de dar voz a uma outra
ordem de conhecimento, derivada da “apreensão mística” e regida por necessidades
orgânicas, e não racionais (ou seja, mecânicas):
[Os românticos] sentiam que o mundo exterior não era sujeito à lei racional de
necessidade; era um organismo que eles conheciam tal como conheciam a vida existente
nele. “E há de parecer estranho que a sua apreensão deva ser também [...] uma apreensão
de necessidade: da necessidade: da necessidade de que aquilo que eles [misticamente]
veem deva ser assim e não de outra forma. Mas isso só parecerá estranho porque nós
vivemos hipnotizados pelas palavras e parece-nos difícil imaginar que existam duas
necessidades, assim como dois conhecimentos. Existe a necessidade do mundo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
88
Ibid., p. 199.
89
“Romantismo e tradição”, cit., p. 199-200.
90
Ibid., p. 200.
101
Que dizer sobre as nossas coisas, em quatro conferências apenas, a um público que nos
desconhece? Antes de tudo era preciso iniciá-lo, e Ronald de Carvalho mal teve tempo
para essa iniciação. Daí o resumir-se em seu livro em simples esboços históricos da nossa
vida social e artística, em maior vantagem para quem, como nós, tem tantos historiadores
e tão pouca história.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
O que nos falta – um pouco de espírito crítico – falta também ao livro, que não consegue
colocar homens e fatos à vontade nos seus lugares.92
91
“Ronald de Carvalho: Estudos Brasileiros, Anuário do Brasil, Rio, 1924”, EL, I, p.. 204-6. Texto
originalmente publicado em Estética, II, 1, jan-mar 1925.
92
“Ronald de Carvalho: Estudos Brasileiros, Anuário do Brasil, Rio, 1924”, cit., p. 204.
93
RB, p. 3.
102
de um artista é subjetivo e não objetivo. Está no espírito e não no ambiente das obras
que cria”94.
Mesmo assim, Sergio e Prudente mantêm certa diplomacia quando terminam o
texto distinguindo Ronald positivamente dos outros modernos, que seriam, em sua
maioria, “confusos” 95
. Ronald consegue escapar ao problema por ser, um
“temperamento profundamente clássico”: “Diz tudo o que quer. Só o que quer. Seu
pensamento e sua forma coincidem. Adaptam-se.” O elogio não deixa de ter um lado
menos abonador, pois percebe-se aqui no julgamento crítico a distinção entre clássicos
e românticos, já presente no texto sobre John Murry, sendo os modernistas
caracterizados como românticos e Ronald como clássico. Depreende-se da adesão
romântica de Sergio, que se denuncia mais plenamente em textos posteriores, que
Ronald, se não chega a ser enquadrado como mau poeta, já é compreendido como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
O requinte depravado e histérico do Carnaval não rompe com esse furor místico. Ele se
liberta o mais que pode das influências de alguns poetas que lhe parecem ter sofrido um
pouco de seu mal [a melancolia], para encontrar uma nota inédita na poesia de língua
portuguesa. Nunca se viu num poeta nosso esse refinamento selvagem que demonstram
quase todos os poemas do Carnaval. Nada aparentemente mais longe de certas notações
líricas de Cinza das horas. Sente-se porém que esse chocalho contínuo e bárbaro de seus
novos versos é ainda uma solução lógica de sua maneira inicial. Não encontrando
disposição interior para acompanhar o tumulto dionisíaco que apenas seus olhos sentem,
e incapaz, por outro lado, de se isolar do tumulto, ele participa da vertigem geral sem
apagar entretanto o fundo melancólico de sua inspiração: “O meu Carnaval sem
nenhuma alegria...”97
94
Ibid., p. 205.
95
Ibid., p. 206.
96
“Manuel Bandeira: Poesias. Revista de língua portuguesa, Rio de Janeiro, 1924.”EL, I, p. 207-209.
Texto originalmente publicado em Estética, II, 1, jan-mar 1925.
97
Ibid. p. 208.
103
“carnaval” mais arquetípico: “É impossível não sentir que se a sua tristeza surge
fantasiada em cores bizarras é sempre o seu sentimento profundo – e esse sentimento
é sempre melancólico – que recebe o imprimatur da consciência do artista.”98 No final
do texto Bandeira será comparado a William Blake, embora a obsessão sombria da
morte nunca permitirá ao brasileiro escrever inocentemente como o inglês. Essa
inocência, porém, uma “inocência superior que é a singularidade essencial dos
verdadeiros poetas”, e que talvez não seja imprudente chamar de romântica, é algo que
“nunca, neste país, ninguém exprimiu melhor” do que Manuel Bandeira.99
O segundo número de Estética traz ainda uma resenha de Prudente e Sergio sobre
as Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade100, onde a nota
principal é a falta de rigor formal que os críticos identificam no romance de Oswald.
Pioneiro em técnicas narrativas que começavam a pipocar na Europa – Antonio Arnoni
Prado considera improvável que Oswald tivesse lido o Ulysses, publicado dois anos
antes, quando escreveu seu livro. “A margem que envolve cada episódio”, escrevem os
críticos, “é larga demais para não furtar à narrativa a continuidade e a duração que o
motivo comportava. Em compensação, cada capítulo, cada episódio tomado
98
“Manuel Bandeira: Poesias. Revista de língua portuguesa, Rio de Janeiro, 1924.”, cit., p. 208.
99
Ibid., p. 209.
100
“Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, São Paulo, 1924”, EL, I, p. 210-3.
Texto originalmente publicado em Estética, II, 1, jan-mar 1925.
104
leitor. Não admira, por sinal, que tal possibilidade tenha escapado a críticos burgueses
paulistas, mesmo que eles percebessem os defeitos com que Oswald tingia as figuras
ali pintadas. Aproveitando aqui um insight interpretativo de Luiz Costa Lima sobre as
literaturas periféricas, vale propor a hipótese de que os críticos esperam na estrutura
narrativa a afirmação ou negação de um “pai hierático”, sem que lhes ocorra a
possibilidade do trickster, iniciada no Brasil com Machado, que eles compreendem
simplesmente como um romancista filosofante e melancólico (veja-se o que se diz
sobre Machado no texto sobre Graça Aranha, “Um homem essencial”). Ora, o Miramar
de Oswald, assim como Macunaíma, são documentos exemplares da capacidade da
literatura em se propor como um drible de estruturas de “controle do imaginário”
arquetipicamente patriarcais e ligadas aos centros hegemônicos da cultura – não admira
que a literatura do trickster é onde as expressões intelectuais periféricas conseguem
atingir níveis superiores com mais desembaraço102. Nesse mesmo texto sobre Oswald,
aliás, José de Alencar é louvado como escritor que transpôs a vida brasileira em sua
prosa ao se permitir em seus romances a ousadia de “escrever brasileiro” 103 . Já no
Miramar de Oswald, Sergio e Prudente vão identificar um exercício meramente
101
Ibid., p. 210.
102
Cf. COSTA LIMA, Luiz. O pai e o trickster. In: Terra ignota: a construção de Os sertões. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
103
“Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, São Paulo, 1924”, cit., p. 212.
105
[As personagens que aparecem são] modalidades de um tipo único, o burguês brasileiro,
que pela primeira vez aparece tratado brasileiramente, com bom humor, com caçoada,
mas sem mordacidade, sem sarcasmo. Nenhum comentário ao que ele diz. Nenhum
sinalzinho ao leitor para dizer que “eu não sou assim”. Miramar não desdenha o seu
meio, não afeta superioridade. Aceita-o como ele é, reservando-se o direito de ser
diferente.
Miramar é moderno. Modernista. Sua frase procura ser verdadeira, mais do que bonita.
Miramar escreve mal, escreve feio, escreve errado: grande escritor104
pois esse deveria obedecer “as leis gerais da evolução linguística”, submetendo-se
tendências da linguagem popular em geral, conformando-se com o uso, e não “com a
feição inconfundível de Miramar”. “Os grandes criadores de línguas [...] não são
artistas, são vulgares”, e o erro de Miramar foi querer ser artista, assim, “não será um
criador do brasileiro”, isto é, de um novo idioma ao qual a nova arte deveria se adaptar
em vez de caprichosamente inventar105.
Encontra-se em “Perspectivas”106, ensaio publicado no terceiro e último número
de Estética, o zênite da revolução romântica de Sergio Buarque de Holanda. Este texto
altamente hermético e irônico é onde Sergio Buarque mais parece reproduzir o estilo
do pensamento romântico histórico – isto é, da Fruhromantik. Em seu vaguear
despreocupado mas cheio de sugestões, despreocupado de oferecer qualquer fecho
conclusivo às várias linhas de pensamento lançadas no curso do texto, esse, aliás,
interrompido de forma bastante abrupta, a escrita de Sergio chega a lembrar textos
como o ensaio sobre a incompreensibilidade de Friedrich Schlegel107. Todos os traços
daquela filosofia e daquela epistemologia mística constantes no ensaio sobre John
104
“Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, São Paulo, 1924”, cit., p. 211.
105
Ibid., p. 213.
106
“Perspectivas”, EL, I, p. 214-8. Texto originalmente publicado em Estetica, II, 2, abr-jun 1925.
107
SCHLEGEL, Friedrich. Sobre a incompreensibilidade. Alea: estudos neolatinos, v. 13, n. 2, jul-dez
2011, p. 328-340.
106
Murry reaparecem aqui, mas na voz do próprio Sergio, que as reproduz de modo
pessoal e muito mais sugestivo do que explicativo. Gide também parece exercer certa
ascendência sobre o texto, mas, em movimento típico da melhor escrita de Sergio, há
uma tendência à inversão dos pontos de vista do pensamento incorporado: se Gide se
apresentava como arauto de um cristianismo “cristão” e não paulino, “Perspectivas” é
um texto profundamente imerso numa atmosfera de irracionalidade fervorosa, quase
extática, que reproduz quase que ipsis litteris, no começo, o pensamento de Paulo108.
“A gente começa a admirar-se de que uma porção de civilizações tenha enxergado
incessantemente na letra qualquer cousa não seja uma negação de vida”, lê-se no
parágrafo de abertura de “Perspectivas”, em evocação de 2 Cor 3:6: “a letra mata, e o
espírito vivifica” 109 . A importância desse motivo e das suas consequências para o
pensamento buarquiano solicita, neste ponto uma breve incursão em alguns trechos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
bíblicos110.
A epistolografia paulina parece, por sinal, ter sido um interesse persistente em
Sergio Buarque, que cita a primeira carta aos coríntios em Raízes do Brasil 111 ,
precisamente ao falar da aura religiosa que o trabalho ganha entre os protestantes, em
contraste com os católicos, na operação que inverte, na arquitetura argumentativa do
livro, a análise de Max Weber sobre a ética econômica capitalista, para criar, como que
no seu reverso, o homem cordial. Esse movimento de inversão, mediante o qual uma
divergência originária se desenrola até a configuração de todo um mundo invertido e
governado não exatamente pela desrazão e pela anarquia, mas por todo um conjunto de
108
A filiação paulina de certos momentos decisivos da obra de Sergio Buarque já foi verificada por
Roberto Vecchi, embora referindo-se a outros textos de Paulo e Sergio Buarque (no caso,
Tessalonicenses e “Nossa Revolução”) e procedendo por outras relações e articulações teóricas (no caso,
a noção de “tempo messiânico”, mediada por Walter Bejnamin). VECCHI, Roberto. Nossa Revolução:
Atlas Intersticial do tempo do fim. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um historiador nas fronteiras. O
Brasil de Sergio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p. 170.
109
Empregou-se, nas referências ao corpus paulino, a tradução católica do padre Antonio Pereira de
Figueiredo (Lisboa: Depósito das Escrituras Sagradas, 1927), por ser ela a fonte mais provável de Sergio,
ou, se não, pelo menos por reconstituir a atmosfera textual do discurso paulino e bíblico, tal como Sergio
o teria experimentado em sua formação.
110
O motivo também é mobilizado no segundo estudo de D. H. Lawrence sobre Fenimore Cooper dos
Studies in Classic American Literature, que, como se verá (v. infra, cap. III, seção 6, “Demônios e
possessos”), desempenha um papel importante na montagem da parte final de Raízes do Brasil.
LAWRENCE, D. H. Studies in Classic American Literature. Cambridge: Cambridge University Press,
2014, p. 60.
111
RB, p. 115.
107
16 E batizei também a família de Estéfanas; não sei porém se tenho batizado algum
outro. 17 Porque não me enviou Cristo a batizar, mas a pregar o evangelho; não em
sabedoria de palavras, para que não seja feita vã a cruz de Cristo. 18 Porque a palavra
da cruz é, na verdade, uma estultice para os que se perdem; mas para os que se salvam,
que somos nós, é ela a virtude de Deus. 19 Porque escrito está: destruirei a sabedoria dos
sábios, e reprovarei a prudência dos prudentes. 20 Onde está o sábio? Onde o doutor da
lei? Onde o esquadrinhador deste século? Porventura não tem Deus convencido de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
estultice a sabedoria deste mundo? 21 Porque, como na sabedoria de Deus, não conheceu
o mundo a Deus pela sabedoria, quis Deus fazer salvos os que crescem nele, pela
estultícia da pregação. 22 Porque tanto os judeus pedem milagres, como os gregos
buscam sabedoria; 23 mas nós pregamos Cristo crucificado, que é um escândalo, de fato,
para os judeus, e uma estultice para os gentios; 24 Mas para os que têm sido chamados,
assim judeus como gregos, pregamos Cristo, virtude de Deus, e sabedoria de Deus; 25
pois o que parece em Deus uma estultícia, é mais sábio do que os homens; e o que parece
em Deus uma fraqueza; é mais forte do que os homens. 26 Vede pois, irmãos, a vossa
vocação, porque chamados não foram muitos sábios segundo a carne, não muitos
poderosos, não muitos nobres; 27 mas as coisas que há loucas do mundo escolheu Deus
para confundir os sábios; e as coisas fracas do mundo escolheu Deus, para confundir as
fortes; 28 e as coisas vis e desprezíveis do mundo escolheu Deus, e aquelas que não são
[não existem], para destruir as que são; 29 para que nenhum homem se glorie na presença
dele.
3 Bendito seja Deus, e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo, Pai de misericórdia, e Deus de
toda a consolação, 4 o qual nos consola em toda a nossa tribulação; para que possamos
também nós mesmos consolar os que estão em toda a angústia, pelo conforto com que
também nós somos confortados de Deus. 5 Porque à medida que em nós crescem as
penas de Cristo, crescem também por Cristo as nossas consolações. 6 Porque, se somos
112
Sobre a teoria, ou melhor, teologia política de Paulo, é bastante esclarecedor o comentário Jacob
Taubes a Romanos, bastante influenciado por Carl Schmitt. TAUBES, Jacob. The Political Theology of
Paul. Stanford: Stanford University Press, 2003.
108
113
“14 Mas graças a Deus, que sempre nos faz triunfar em Jesus Cristo e que por nosso meio difunde o
cheiro de conhecimento de si mesmo em todo lugar; 15 Porque nós somos diante de Deus o bom cheiro
de Cristo, nos que se salvam, e nos que perecem; 16 para uns, na verdade, cheiro de morte para morte;
e para outros cheiro de vida para vida. E para estas coisas quem é tão idôneo? 17 Porque não somos
falsificadores da palavra de Deus, como muitos, mas falamos em Cristo com sinceridade, e como parte
de Deus diante de Deus.”
109
havia de perecer; 14 e assim os sentidos deles ficaram obtusos porque até ao dia de hoje
permanece na lição do antigo testamento o mesmo véu sem levantar-se (porque não se
tira senão por Cristo). 15 Pelo que até ao dia de hoje, quando leem Moisés, o véu está
posto sobre o coração deles. 16 Mas quando se converter ao Senhor, será tirado o véu.
17 Ora o Senhor é Espírito; e onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade. 18 Todos
nós pois, registrando à cara descoberta a glória do Senhor, somos transformados de
claridade em claridade na mesma imagem, como pelo espírito do Senhor.
A carta de Cristo não está escrita em letras sobre pedras, mas em espírito sobre
tábuas de carne; ela é o ministério da vida e se opõe ao de Moisés, que foi o da morte.
A glória dos ministérios é tal, porém, que não é possível voltar diretamente os olhos
para o ministro (já não era possível aos filhos de Israel voltar os olhos para Moisés). O
pensamento de Paulo, que se diz incapaz de pensamento próprio (v. 5), é antes um
oferecimento de Deus, que faz de cada coração humano a carta onde escreve suas
palavras de vida. A elaborada sequência de inversões e paradoxos continua no capítulo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
As palavras depositaram tamanha confiança no espírito crédulo dos homens, que estes
acabaram por lhes voltar as costas. A gente começa a admirar-se de que uma porção de
civilizações tenha enxergado incessantemente na letra qualquer cousa não seja uma
negação de vida – negação formal, está claro mas nem por isso menos eficiente. Um
estupendo livro ainda por se escrever: o tratado da história da civilização em que se
considere o esplendor e a decadência de cada povo coincidindo precisamente com a
maior ou menor consideração que a palavra escrita ou falada mereceu de cada povo.
Nada do que vive se exprime impunemente em vocábulos.116
114
“3 E se o nosso evangelho ainda está encoberto, naqueles que se perdem está encoberto; 4 nos quais
o deus deste século cegou os entendimentos dos infiéis, para que lhes não resplandeça o farol do
evangelho da glória de Cristo, o qual é imagem de Deus.”
115
“18 Não atendendo nós às coisas que se veem, mas sim as que se não veem. Porque as coisas visíveis
são temporais. E as invisíveis são eternas.”
116
“Perspectivas”, cit., p. 214.
110
Todos os conceitos da Igreja são reconhecidos pelo que são, a mais maligna falsificação
que há, com o fim de desvalorizar a natureza, os valores naturais: o sacerdote mesmo é
reconhecido pelo que é, a mais perigosa espécie de parasita, a aranha venenosa da vida...
Nós sabemos, nossa consciência sabe hoje – o que valem, para que serviram as
inquietantes invenções dos sacerdotes e da Igreja, com as quais se atingiu esse estado de
autoviolação da humanidade, cuja visão pode causar nojo – os conceitos de “além”,
“Juízo Final”, “imortalidade da alma, a própria “alma”; são instrumentos de tortura, são
sistemas de crueldades, mediante os quais o sacerdote se tornou senhor, ficou senhor...
[...] A quem o cristianismo nega então? O que chama de “mundo”? 117
Quando Nietzsche fala da “aranha venenosa da vida”, ele emprega uma metáfora
que aparece algumas vezes em seu pensamento: a teia da aranha como sistema racional
117
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo e Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras,
2016, p. 43-4.
111
que prende os intelectos como uma armadilha, e sua autora como agente mortífero. O
mais grave do “crime contra a vida” [a ênfase é de Nietzsche] de Paulo foi desalojar o
poder e a grandeza da esfera do sagrado e fazer com que se experimente “como ‘divino’
não o que foi venerado como Deus [no Antigo testamento e no paganismo, presume-
se] e sim como miserável, como absurdo, como nocivo, não apenas como crime contra
a vida”118 [a ênfase é de Nietzsche]. Pouco depois, na seção 51, o filósofo, que continua
sua denúncia de Paulo como fautor da revolução dos ressentidos, manifesta mesmo
uma predileção e certa admiração de inimigo pelo mesmo passo de 1 Cor 1
anteriormente reproduzido (referindo-se especificamente aos versículos 26 a 29):
O cristianismo tem por base a rancune dos doentes, o instinto voltado contra os sadios,
contra a saúde. Tudo que vingou, tudo de orgulhoso, de atrevido, de beleza sobretudo,
faz-lhe mal aos olhos e ouvidos. Mais uma vez recordo as inestimáveis palavras de
Paulo: “Deus escolheu as coisas fracas deste mundo, as coisas loucas deste mundo, as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
coisas vis e desprezíveis deste mundo”: eis a fórmula, in hoc signo venceu a décadence.
– Deus na cruz – [...]119
118
Friedrich Nietzsche, O Anticristo, cit.., p. 55-6.
119
Ibid., p. 61.
120
A relação entre as apropriações de Paulo e Nietzsche por Sergio já foi percebida por Roberto Vecchi,
no texto já citado. Nossa revolução: Atlas intersticial do tempo do fim, cit., p. 170.
121
RB, p. 7.
112
Os homens que sentiram nitidamente essa ausência do princípio de vida, essa atmosfera
irrespirável que nos propõem as formas inteligíveis, já mandam ao diabo tudo quanto
possa preencher um termo, tudo quanto caiba entre as quatro paredes de um pensamento
comunicável ou expresso. A palavra escrita ou falada só se concilia com a dificuldade
vencida, com a energia satisfeita e a paz proclamada depois da guerra. É em vão eu se
tentará atrair a tempestade, invocar o demônio ou realizar o mistério dentro do cotidiano,
quando não se renunciou `virtude ilusória da linguagem dos cemitérios.123
Sergio Buarque continua aqui o jogo com o duplo sentido da palavra “termo” –
“palavra” ou “fim” – que já se anunciava ao falar no “termo” como um “ponto de
ruptura” com a vida, e investe agora de forma explícita contra a razão, pois já as
palavras aqui já não são inimigas da vida apenas enquanto meios de expressão mais ou
menos arbitrários, mas como “formas inteligíveis”. Junto com o racionalismo, a paz é
execrada e a guerra louvada. A “atmosfera” das palavras é descrita como irrespirável;
122
“Perspectivas”, cit., p. 214.
123
“Perspectivas”, cit., p. 214-5.
113
analogamente, mas no extremo oposto, para Paulo, o espírito (sopro, hálito) de Cristo
tem para o cristão “cheiro de vida para a vida” (2 Cor 2:15-17) para quem ainda crê no
“ministério da morte”, “gravado em letras sobre pedras” (2 Cor 3:7), há de ter “cheiro
de morte para morte”, cheiro que deve ser, por certo, irrespirável. O elogio da guerra,
da “dificuldade a ser vencida”, pode remeter tanto a Gide, que diz que “precisamente
o que se procura é que se chama felicidade”124, quanto a Nietzsche, que na segunda
seção do Anticristo dá a seguinte resposta à pergunta “O que é felicidade?”: “O
sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência é superada. Não a satisfação,
mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra; não a virtude, mas a capacidade”.125
Mesmo que o ataque de Sergio às palavras possa parecer um pouco desesperador
(pois o que poderia restar depois de descartada a linguagem?), há, para ele, uma
solução, que passa pelo acesso a um outro mundo, esse inteiramente livre do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
124
“André Gide”, cit., p. 171.
125
Friedrich Nietzsche, O Anticristo, cit,, p. 10-11.
126
“Perspectivas”, cit., p. 215.
114
infiéis, para que lhes não resplandeça o farol do evangelho da glória de Cristo, o qual
é imagem de Deus”) e 2 Cor 4:18 (onde se lê que Paulo não atende “às coisas que se
veem, mas sim as que se não veem. Porque as coisas visíveis são temporais. E as
invisíveis são eternas”).
Em seguida, Sergio Buarque, põe em cena Marcel Proust, que vem lembrar, em
“trecho admirável” do Caminho de Swann, a respeito do conteúdo dos sonhos, que esse
“nos é impossível exprimir e quase proibido constatar, porque, precisamente quando
se tenta dormir, vem-nos a carícia de seu encanto irreal, no instante mesmo em que a
razão nos abandona”127, caímos no sono e somos privados das verdades oníricas. No
parágrafo seguinte, a famosa frase de Hamlet sobre a incapacidade da filosofia (a vã
filosofia, em tradução bastante disseminada de Almeida Garrett e depois difundida no
Brasil por Machado de Assis, que Sergio entretanto não cita, seguindo o original) em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
127
“Perspectivas”, cit., p. 215.
128
“Perspectivas”, cit., p. 216.
115
A “vida”, noção que aparece com uma tonalidade tipicamente nietzschiana, opõe-
se a todo tipo de conhecimento regrado, que desconhece a “singularidade”, que não
conhece uma “continuidade fixa e inalterável” – Gide, para quem uma individualidade
manifesta das mais variadas maneiras era garantida tão somente por um “fio de
Ariadne”, é quem parece fundamentar ao menos parcialmente a crítica à pretensão
científica de reduzir o mundo a unidades estáveis. Quando Sergio afirma não existir
“ciência do particular que estude cada cousa em relação à sua própria singularidade”,
denuncia, num estágio algo incipiente, o progressivo interesse que vai passando a
dedicar a temas históricos, corrigindo um rumo que aqui parecia encaminhá-lo antes
para a arte surrealista ou algum tipo de filosofia mística. A História, afinal, na tradição
alemã, se propõe exatamente como uma forma de conhecimento que faça justiça às
singularidades em seus próprios termos, pretensão que envolve o pensamento alemão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
do século XIX como uma densa atmosfera, mas que pode ser verificada em um de seus
momentos originais e mais pungentes na Outra Filosofia da História de Herder129. Não
foi à toa que Friedrich Meinecke chamou de “historismo” não uma escola histórica
particular, nem mesmo uma época cultural específica, mas todo um paradigma
epistemológico que vê a significação das totalidades nos particulares. A maior parte
das implicações desse estilo de pensamento, muito característico de toda a reflexão de
Sergio Buarque a partir de Raízes do Brasil, não parece, estar, porém, no horizonte
deste texto, ao menos de forma bem refletida.
O que há, por outro lado, é uma alusão à Antígona de Sófocles130, referência que
desempenha papel destacado na montagem do capítulo sobre o “homem cordial”. Em
“Perspectivas”, vamos ler que os homens que se rebelam contra a razão legisladora que
mata as coisas com sua linguagem pouco ciosa do “desenho anguloso das cousas”
obedecem, na verdade, a “leis divinas”, esquecendo-se daquelas “das cidades” e
desejam voltar a um “estado de guerra que não é mais do que uma conformação com
a vida”. A despeito da ênfase num “estado de guerra” vagamente hobbesiano
aparentemente desconectado da problemática do livro de estreia – ideia que, no entanto,
129
HERDER, Johann Gottfried. Another philosophy of history for the education of mankind. In: Another
Philosophy of History and Selected Political Writings. Indianapolis, IN: Hackett, 2004, p. 3-99.
130
Conexão já notada pela análise percuciente de Roberto Vecchi. Nossa Revolução: Atlas intersticial
do tempo do fim, cit., p. 174.
116
131
A expressão é de um dos tópicos que resumem o primeiro capítulo no sumário ao final do livro, RB,
p. 177.
132
RB, p. 93.
133
Ibid., p. 94.
134
“Perspectivas”, cit., p. 217.
117
altamente sugestivo de uma leitura da obra de Freud, que no entanto não parece ser dos
pensadores mais frequentados na reflexão posterior de Sergio Buarque. De todo modo,
na atmosfera surrealista que Sergio parece respirar na elaboração desse texto, a
psicanálise, na forma de uma leitura um tanto enviesada da teoria freudiana do sonho,
era praticamente onipresente. Vale lembrar ainda que há, na biblioteca que Sergio
Buarque legou à Unicamp há um exemplar de 1925, em tradução francesa, de um
ensaio de Freud intitulado Le rêve et son interpretation. Seja como for, o importante
aqui é mostrar como a equivalência que Sergio propõe entre a morte e toda tentativa de
expressão humana minimamente racional, destinada à compreensão por outros, é tão
radical que incide sobre a simplicidade do “desenho regular e monótono” das pinturas
rupestres, de onde fica derivada toda a “tendência dos homens para uma regularidade
abstrata e inânime” – pode-se depreender que Sergio também se insurge aqui contra as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
regras clássicas da arte, que, como a pintura primitiva, participam desse “afã de reduzir
o informe à forma, o livre ao necessário, o informe à regra”135.
O fim do ensaio é marcado por uma resolução provisória do problema da “volta”
dos homens da letra morta das palavras à vida, anunciada na abertura. “Não me cabe
resumir aqui”, escreve o crítico, “todas as perspectivas que esse ponto de vista me
propõe”, e continua com mais duas negativas. A primeira: “[N]ão disse ainda por que
razão os homens começam a procurar a realidade, de preferência na esperança, na
recordação e na ausência e por que muitos deles sem renunciar a essa atitude
conseguiram revogar para uso próprio a lei de aspiração à morte”. A segunda:
“[t]ambém não disse por que a exaltação do particular resolve-se em certos momentos
na anulação de qualquer singularidade, no sentimento da harmonia de todas as
cousas”136. A tripla negação encaminha o ensaio para o fim, sugerindo no entanto que
o crítico teria muito mais a dizer, mas ele abre mão disso, talvez exatamente porque já
espera que o leitor esteja em condição de abrir mão das palavras alheias e permitir-se
o exame próprio de “todas as perspectivas” abertas por esse ponto de vista. O
movimento é análogo ao fecho de uma famosa ficção curta de Hugo von Hofmannsthal,
135
“Perspectivas”, cit. p. 217.
136
Ibid., p. 218.
118
a carta de Lord Chandos a Francis Bacon137. Lord Chandos, um homem nobre de dotes
literários, começa a ter epifanias que o levam a concluir que as palavras são todas
mentirosas – texto aqui citado para fins de iluminação do sentido de “Perspectivas”,
não por atribuir a ele qualquer tipo de ascendência sobre o ensaio de Sergio Buarque:
[T]udo é uma espécie de pensamento febril, mas um pensamento num material mais
imediato, mais fluido e incandescente do que a palavra. É igualmente um turbilhão, só́
que um tal que, diferentemente das palavras da linguagem, que parecem conduzir para
o abismo, esse parece levar de algum modo para dentro de mim mesmo e para o seio
mais profundo da paz.138
levar o missivista para o “outro lado” da razão, Sergio se limita a uma irônica sugestão
de que poderia dizer muito mais, mas calará, mantendo-se fiel ao espírito de sua
descoberta:
137
HOFMANNSTHAL, Hugo. Uma carta. Viso: Cadernos de Estética Aplicada, n. 8, jan-jun 2010, p.
23-33.
138
Ibid., p. 33.
139
Loc. cit.
140
André Gide, Prétextes, cit., p. 181.
119
Se Deus existe, tudo depende dele, e eu não posso fazer nada além de sua vontade. Se
não existe, tudo depende de mim e tenho que afirmar minha independência. Quem vai
provar isso? Eu. Eu não entendo como até agora o ateu poderia saber que Deus não existe
e não se matar imediatamente! Sentir que Deus não existe, e não sentir ao mesmo tempo
que nós mesmos nos tornamos Deus, é um absurdo. Se você sente isso, você é um czar
e, longe de se matar, você viverá no auge da sua glória.141
loucura de Nietzsche, que não precisa se matar, mas apenas enlouquecer para chegar a
um estágio de felicidade. O estabelecimento dessa correspondência – o filósofo ganhou
a partida na qual perdeu a razão porque está louco e está num mundo de felicidade onde
a razão não importa mais, assim como Kirilov supostamente salvaria a humanidade
com seu suicídio – é complementado com uma argumentação que tem correspondência
quase estrita com alguns passos já citados de “Perspectivas”: “Nietzsche quis saber, e
até à loucura; sua clarividência foi cada vez mais aguda, cruel, deliberada. à medida
que ele via mais claramente, ele se inclinava mais para o inconsciente. Nietzsche queria
a alegria a qualquer preço”142. A loucura como forma de conhecimento conformada
com a “vida”, a visão mais clara e aguda como atributo do inconsciente, a violência da
travessia para um “outro lado” (o suicídio ou a loucura): eis a constelação de temas
proposições que movem “Perspectivas” e levam Sergio ao cume de sua peripécia
romântica, posta em movimento pelas figuras inimigas mas igualmente “salvas”, cada
um a seu modo, pelo desvario de visões extáticas que reconfiguram todas as suas
concepções: Paulo e Nietzsche. “Nada mais cômodo”, escreve Sergio na última frase
do ensaio, “que concluir pela vaidade de todos os nossos gestos e pela inutilidade de
141
Ibid., p. 179.
142
Prétextes, cit., p. 181.
120
qualquer atitude – ideia que o Universo nos fornece a troco de um simples bocejo.”143
A ideia é altamente reminiscente de 2 Cor 1:8. Paulo não quer que seus correligionários
de Corinto se desesperem, mas também não deseja que ignorem os próprios repentes
de terror, ou “tribulações”, o que levaria a encarar a vida como algo vão e tedioso:
“Porque não queremos, irmãos, que vós ignoreis a vossa tribulação, que se excitou na
Ásia, porque fomos maltratados desmedidamente sobre as nossas forças, de sorte que
até a mesma vida nos causava tédio.” Ela poderia, ao mesmo tempo, remeter à
valorização da ideia de vida por Nietzsche a partir de suas ideias da morte de Deus e
do “eterno retorno”, ambas lançadas pela primeira vez na Gaia ciência (§125, O homem
louco e §341, O maior dos pesos) e retomados em Assim falou Zaratustra (Prólogo, §
2 e §7 do capítulo “Os sete selos” da terceira parte). Neste último trecho, a confluência
entre a ideia de uma valorização da vida coincidente com o abandono das palavras e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Se algum dia estendi céus serenos sobre mim, e com asas próprias voei em céus próprios:
Se nadei brincando em profundas distâncias de luz, e veio a sabedoria de pássaro da
minha liberdade: –
– mas assim fala a sabedoria de pássaro: “Vê, não existe acima, não existe abaixo! Joga-
te para o lado, para cima, para trás, ó criatura leve! Canta! Não fales mais!
– todas as palavras não foram feitas para os seres pesados? Não mentem as palavras
todas para aquele que é leve? Canta! Não fales mais!” –
Oh, como não ansiaria eu ardentemente pela eternidade e pelo nupcial anel entre os anéis
– o anel do retorno!144
3. Duelo
143
“Perspectivas”, cit., p. 218.
144
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. São Paulo:
Companhia das letras, 2011, p. 222.
121
A partir daí ocorre uma certa correção de rumo que já se verifica no primeiro texto de
importância que Sergio escreve depois deste, “O lado oposto e outros lados”. Para
chegar ao comentário desse ensaio, onde Sergio faz um balanço do modernismo e se
posiciona decisivamente contra certa ala do movimento que lhe parece pautada pela
doutrina antirromântica e oposta ao surrealismo de Tristão de Ataíde, é preciso passar
pelos ensaios do próprio Tristão, aos quais “O lado oposto...” responde. Do contrário,
pouquíssimo se entenderá desse texto que, frequentemente lembrado como um marco
da reflexão buarquiana pela fortuna crítica, raramente é investigado com mais afinco145.
Esses textos também são importantes na medida (surpreendentemente intensa) em que
se fazem sentir em Raízes do Brasil e na crítica posterior de Sergio Buarque. Na
verdade, não é exagero dizer que todos os textos mais relevantes que Sergio escreverá
até sua chegada à Alemanha em 1929 serão pautados, direta ou indiretamente, pelo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
debate intenso que mantém com o Tristão de Athayde. Essa mesma experiência, por
sinal, é um divisor de águas na própria produção crítica do adversário, como se pode
verificar pelo fato de que sua adesão final ao catolicismo será sacramentada pelo texto
que publica ao assumir a direção da revista A Ordem em março de 1929, intitulado
“Adeus à disponibilidade”146, onde Tristão expõe as razões de sua conversão na forma
de uma carta aberta a Sergio Buarque e antecipa todo o programa intelectual
implementado a partir da conversão147. É bom lembrar que, diferentemente do que pode
sugerir a imagem pública que ficou de Sergio Buarque para a posteridade, não se trata
de um debate de um intelectual militante católico contra um ateu ou agnóstico, mas de
um confronto entre uma noção de cristianismo insubordinada aos dogmas eclesiásticos
e uma concepção mais “ordenada” de inspiração escolástica – Tristão não teria se dado
ao trabalho de dedicar tanta energia a esse debate se não reconhecesse em Sergio
145
Deve haver outros, pois a fortuna crítica é vasta e há também os estudiosos da obra de Tristão, mas o
único texto realmente esclarecedor que esta pesquisa teve à disposição foi o de Pedro Meira Monteiro
(“Coisas sutis, ergo profundas”, cit.), dedicado à relação entre Sergio Buarque e Mário de Andrade.
Dentre a produção dedicada exclusivamente a Sergio Buarque de Holanda, o comum é mencionar o texto
sem reconstituir as controvérsias que presidem a sua elaboração. A dissertação de Conrado Pires de
Castro (“Com tradições e contradições”, cit.) se dedica bem mais do que o presente trabalho, que vota
ao autor uma atenção muito parcial, ao pensamento de Tristão de Athayde e sua posição no modernismo,
mas não toca nos textos realmente essenciais a essa polêmica.
146
ATHAYDE, Tristão de. “Adeus à disponibilidade”. A Ordem, v. VIII, n. 1, 15 mar 1929, p. 54-9.
147
RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima: Religião, cultura e Vida Literária. Tese
(Doutorado em Letras). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009, p. 130.
122
alguém que possuía, “como raros, o verdadeiro sentido cristão da vida” e que
“precisaria apenas”, em sua opinião, de “um pouco menos de desespero do homem,
para alcançar também o senso católico que outra coisa não é senão a plenitude cristã”148.
É de se perguntar, por sinal, considerando o volume que o debate assume do lado de
Tristão, e das referências que faz a elementos que o lado de Sergio não chega a exibir
de forma mais ostensiva, se parte considerável do debate não teria se dado em
comunicações diretas, escritas ou até mesmo orais, ou por intermédio de interlocutores
em comum em redes de sociabilidade de intelectuais do Rio de Janeiro dos anos 1920.
Qualquer que tenha sido a extensão privada ou oral do debate, ele oferece uma
boa quantidade de sinais de que os pronunciados traços paulinos de “Perspectivas”
sinalizassem não tanto uma apropriação meramente irônica das escrituras como
pretexto para uma reflexão exclusivamente literária ou artística, mas que, seguindo os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
148
“Adeus à disponibilidade”, cit., p. 56.
149
“Ideias de Hoje. Modernismo não é escola: é um estado de espírito. Entrevista com Prudente de
Moraes, neto e Sergio Buarque de Holanda”, RSBH, p. 73.
123
a posição crítica de Sergio, que Tristão vê como associada a Oswald, é composta por
“O Supra-realismo” 150 , “Literatura suicida” 151 , “A salvação pelo Angélico” 152 e
“Queimada ou fogo de artifício”153. Vale a pena uma discussão mais detalhada dos três
primeiros, sendo “A salvação pelo Angélico” uma polêmica diretamente endereçada
ao terceiro número de Estética e ao ensaio “Perspectivas”. Considerando que os textos
começam a aparecer em junho de 1925, é até possível que toda a série tenha sido
cuidadosamente planejada já com todo, ou a maior parte, do material criticado à mão.
Tristão parecia, pelo menos, ter uma boa ideia da articulação entre a literatura de
Oswald, a crítica de Sergio e o surrealismo (ou, como ele diz, “supra-realismo”)
europeu.
Exatamente como fará o Sergio de 1940 em “Poesia e Crítica”, Tristão de
Athayde identifica no “supra-realismo” um movimento estético romântico e o critica
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
150
LIMA, Alceu Amoroso. “O Suprarrealismo”. In: Estudos literários, v. 1. Rio de Janeiro: Aguilar,
1966, p. 902-914. Texto originalmente publicado em duas partes em O Jornal, 14 e 22 jun 1925.
151
Id., “Literatura Suicida”. In: Estudos literários, cit., p. 914-927. Texto originalmente publicado em
duas partes em O Jornal, 28 jun e 5 jul 1925.
152
Id., “A salvação pelo Angélico”, O Jornal, 4 out 1925.
153
Id., “Queimada ou fogo de artifício?”. In: Estudos literários, cit., p. 994-1000. Texto originalmente
publicado em O jornal, 11 out 1925.
154
“A salvação pelo Angélico”, cit.
124
a Tristão ser a sua recepção crítica por Sergio Buarque – e também por Prudente de
Morais Neto, pois o ataque se dirige também a Estética, e este é junto a Sérgio, como
notado acima, diretor da revista, além de coautor da resenha que nela apareceu do João
Miramar – há um diagnóstico da cultura. Esse diagnóstico é dirigido ao Brasil, mas
tem uma camada local e outra universal: por um lado, o entusiasmo com que Oswald e
os dois jovens críticos se lançam ao surrealismo seria típico do caráter imitativo da vida
intelectual brasileira; por outro, ele exprimiria uma tendência genuína do espírito
moderno, a saber, uma tendência à desagregação, à desordem e à morte, manifesta na
obsessão surrealista pela arte primitiva e pelo sonho. Desse modo, o surrealismo se
apresentaria como uma tendência romântica: o “suprarrealismo”, como Tristão o
chama, é um “[n]eo-romantismo, respondendo, a um século de distância, ao movimento
romântico de 1830”155.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Metódico, Tristão começa por uma avaliação geral do movimento em sua forma
original no contexto europeu. Essa “infecção literária natural”, correspondente ao
“estado de espírito de toda uma época”, é para o crítico um entre muitos episódios da
tendência de anulação do espírito medieval de “diversificação” e “construção”
sistemática corporificado em expressões intelectuais como o Digesto, a Retórica, a
Apologética e a Escolástica156 . Note-se, de passagem, certa correspondência com o
elogio do romantismo feito por John Middleton Murry no artigo parcialmente traduzido
por Sergio no primeiro número de Estética, embora, naturalmente, Tristão veja o
mesmo fenômeno a partir de uma valoração inversa. Interessa, além disso, ressaltar
que, com sua atribuição dessas “formidáveis construções”, originalmente clássicas
(especialmente aristotélicas), ou hebraicas, à Idade Média, Tristão faz da Idade Média,
com seus ideais tomistas de integritas, constantia, claritas, uma espécie de época
clássica par excellence. A reação moderna, cartesiana, contra a Escolástica, de caráter
supostamente monista e “unificador” da “diversidade clássica”, teria trabalhado no
sentido de destruir as “paredes formidáveis” do “edifício” dentro do qual pensava o
homem medieval, para que o homem, agora moderno, pudesse pensar “ao ar livre”. O
mundo moderno, portanto, se caracterizaria por uma “tendência ao amorfo e ao
155
“O Suprarrealismo”, cit., p. 903”.
156
“O Suprarrealismo”, cit., p. 904-5.
125
uma interpretação muito parcial e errada da psicanálise [...]. Para [...] o ponto de vista
estético, o que a psicanálise veio revelar não foi, como querem os supra-realistas, a
predominância do mundo subconsciente, mas apenas a riqueza desse mundo [...]. Acaso
pelo fato de haver jazidas de minério riquíssimas em Minas, segue-se que devemos
cruzar os braços e esperar que, por si só, possa esse minério chegar a ferro ou aço? É
preciso para isso a intervenção da atividade, da inteligência humana. [Do mesmo modo,]
Freud quis mostrar que não havia arbitrariedade no nosso mundo mental. Que tudo se
reportava a dados, rigorosamente certos, a elementos preexistentes em nós mesmos e
que apenas não conseguimos perceber ou os percebemos mal. Através dos sonhos e dos
atos falhos procura ele chegar a uma visão mais lúcida dessa causalidade psíquica. Ora,
como concluir daí que o homem [...] verdadeiro, [...] sincero, seja esse homem das
regiões sombrias?160
Segundo essa interpretação mais conservadora da teoria de Freud (e, a bem dizer,
provavelmente mais fiel à sua intenção), a conclusão a se tirar da interpretação dos
sonhos não é uma entrega programática ao mundo do inconsciente e do predomínio do
“sentimento” em prejuízo da vontade e do esforço de clareza e compreensibilidade,
157
Ibid., p. 906.
158
Ibid., p. 908.
159
Ibid., p. 909.
160
“O Suprarrealismo”, cit., p. 909.
126
161
Ibid., p. 909-10.
162
“O Suprarrealismo”, cit., p. 910.
163
Ibid., p. 911.
164
Ibid., p. 912-3.
127
165
Ibid., p. 913.
166
RB, p. 110.
167
RB, p. 108.
128
O crítico passa, então, a um rápido exame das tendências que acredita estarem na
origem da versão oswaldiana do surrealismo, a saber, o Dada francês e o
expressionismo alemão – este último, lembre-se, tema de entusiasmado artigo de
Sergio Buarque. Menos do que seu conteúdo, o que importa aqui é notar que Tristão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
procura com essa revisão apontar em Oswald o mesmo erro que ele diz combater – isto
é, a imitação servil da estética dos movimentos artístico europeus. Além disso, vale
lembrar que, na análise dos expressionistas, o crítico caracteriza os alemães do pós I
Guerra (que demonstra conhecer sem precisar se valer de traduções) como um “povo
que aspirava aos vermes”, aspiração materializada na arte pelo expressionismo e na
filosofia pelo pensamento de Oswald Spengler 169 , cuja morfologia histórica e
concepção do “Ocidente” como cultura em estágio “decadente” não deixa de marcar
presença em Raízes do Brasil. Terminada essa passagem de crítica genética, Tristão
vai atribuir a Oswald de Andrade o mesmo desejo de negação da civilização numa
apoteose estética “suicida”. Mais interessante do que esse juízo a essa altura bem
previsível é a discussão subsequente sobre o “conceito de imitação”, iniciada com uma
citação ao ideólogo da Action Française Charles Maurras (lembre-se que, em
“Romantismo e Tradição”, onde traduz e comenta Middleton Murry, Sergio começa
por uma referência ao antirromantismo de Pierre Lasserre, também ligado ao grupo) e
procede a uma reflexão sobre as possibilidades de uma arte de expressão nacional no
Brasil:
168
Alceu Amoroso Lima, “Literatura Suicida”, cit., p. 917.
169
“Literatura Suicida”, cit., p. 919.
129
Não façamos como o sr. Oswald de Andrade e seus companheiros, que têm horror à
imitação... e imitam às escondidas. Não. Tenhamos coragem literária suficiente para
dizer bem alto: ainda não podemos prescindir de certa imitação. O Brasil ainda não está
em condições sociais de poder dar origem a uma literatura inteiramente própria e ao
mesmo tempo universal, como pede o sr. Graça Aranha no último de seus discursos
literários. A nossa condição por muito tempo ainda será trabalhar na sombra, em silêncio,
por assim dizer, absorvendo a matéria nacional, plasmando-a – mas sem desfalecimento,
sem renúncia.170
170
Ibid., p. 922.
171
Loc. cit.
172
“Literatura suicida”, cit., p. 922-3.
173
Ibid., p. 923-4.
130
passagem do primeiro parágrafo de Raízes do Brasil, que talvez fique mais clara
quando confrontada com esse trecho de “Literatura Suicida”. Na abertura de Raízes,
vamos ler que “podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de
aspectos novos e imprevistos, elevar até a perfeição o tipo de cultura que
representamos”, mas que esse enriquecimento pela originalidade, ou mesmo a
investigação de “até que ponto podemos alimentar no nosso ambiente um tipo próprio
de cultura” teria por condição inicial que se averiguasse “até onde representamos [...]
as formas de vida, as instituições e a visão de mundo de que somos herdeiros e de que
nos orgulhamos”174.
Seria evidentemente exagerado afirmar que Sergio aderiu sem reservas ao ponto
de vista de seu adversário de 1925, mas é preciso reconhecer que, no trecho citado, ele
está talvez mais próximo de seu crítico Tristão de Ataíde do que de sua própria posição
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
nos anos iniciais de adesão ao modernismo. O que talvez o aproxime de Tristão é, muito
mais do que sua obsessão sistemática e tomista, em tudo avessa ao espírito de Raízes
do Brasil, certa moderação ao espírito romântico que anima sua produção de meados
até o final dos anos 1920. Essa crítica ao romantismo, Sergio ainda não a fez, mas é
exatamente ela que Tristão propõe como anteparo contra os germens de dissolução, na
forma de uma “ida ao clássico” – uma ida e não uma volta, pois, presume-se, Tristão
acredita que a história cultural brasileira nunca teria conhecido um momento
“clássico”.
Que seria, então, esse “clássico”, única esperança contra o “suicídio”
representado por Oswald? Desde o início, Tristão esclarece que “clássico” não é para
ele nenhum “helenismo de papelão”, nenhuma imitação ao pé da letra da Antiguidade
grega e romana, mas uma renúncia à “desordem” 175 . Diferentemente da tradição
iniciada à época de Goethe, Tristão não vê classicismo e romantismo como ideais
opostos, mas como momentos históricos mutuamente dependentes e ciclicamente
sucessivos:
174
RB, p. 3.
175
“Literatura Suicida”, p. 924-5..
131
Só o clássico constrói. E constrói bem, sem negar essas forças de destruição, sem
aniquilá-las. Incorporando-as a si, porém. [...] E daí, uma série de etapas no esforço pelo
clássico – desde o tímido que apenas se defende do veneno romântico, ou o que tenta
construir friamente, [...] até aquele finalmente que alcança a verdadeira incorporação do
confuso ao lúcido, a verdadeira solidez, a verdadeira perfeição humana, o
pressentimento da imortalidade e da universalidade.176
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Definido assim o clássico, Tristão termina seu artigo com uma seção mais
combativa e programática, com prescrições mais precisas para o contexto brasileiro.
176
Ibid., p. 925.
132
Já expus neste mesmo lugar [nos dois rodapés críticos de O Jornal intitulados “O
Suprarrealismo”] o que me parece o erro capital do suprarrealismo, e como ele aparece
como o supremo e efêmero recurso do homem de pensamento covarde, ou desesperado,
ou exausto de hoje. Uma interpretação insinceramente falsa da psicanálise, quando
invoca a esta como sua razão científica. E no fundo, nada mais do que isto: uma
incapacidade de ser homem. Uma subserviência às paixões mais rasteiras. Ao resíduo da
personalidade. À lama do fundo. As bobagens que o suprarrealismo deu como prova de
arte não podem causar surpresa a ninguém. A expressão como lei de mestre, é uma
deglutição mal feita da traduction illégitime de Bergson, a que ele aliás respondeu por
antecipação. A vida é justamente o que se organiza, o que se coordena, o que se
177
“A salvação pelo Angélico”, cit.
178
“A salvação pelo Angélico”, cit.,
133
conforma. O caos não é vida, é simples agitação. A tendência à razão é a lei de insuflação
da vida. E o sono, mais ainda. O sonho pouco tem de autônomo. O sonho é um resíduo
de vida ou uma aspiração à vida. Ele é feito de pedaços desprovidos de vida. O sonho
pouco nos revela do que não esteja na vigília, é uma sombra fugitiva de vida [...].179
destrutivo que, negando as formas, nega também a vida. Toda essa sedução mórbida
seria característica do “velho mundo” exausto da guerra, que no entanto, se tornava
ainda mais agudo na América, pois
nós aqui... o que há de grotesco em nosso caso é isso. Por séculos, nos habituamos a
imitar, a repetir, a refletir docilmente movimentos alheios. A ordem de pensar sempre
nos veio do Velho Mundo. Sempre fomos um Novo Mundo Velho. Sem capacidade de
criar, até hoje, qualquer coisa de irradiante. A não ser secundário e excepcional. Tudo
aliás compreensível, até certo ponto.180
O fecho do artigo atribui a Oswald de Andrade, que afinal é o alvo principal que
se abriga, na visão de Tristão, atrás do escudo crítico de Sergio, uma “fordização da
poesia”, contra a qual Tristão propõe, na mesma linha da “ida ao clássico” defendida
em “Literatura Suicida”, a volta do “predomínio da claridade sobre o obscuro” (em
provável referência àquele passo de “Perspectivas” onde se lê que “só à noite
enxergamos claro”. Esse esforço pela claridade corresponderia a uma impossibilidade,
para aqueles que não têm “Deus” como certeza, de acessar o “divino”. Nessa ausência,
que parece corresponder não tanto ao ponto de vista pessoal do crítico, mas a um
diagnóstico da época, “só uma salvação nos resta: o Angélico.”
179
Loc. cit.
180
“A salvação pelo Angélico”, cit.
134
181
“O lado oposto e outros lados”, EL, I, p. 224-8. Texto originalmente publicado na Revista do Brasil,
15 out 1926.
182
Há também a entrevista que Sergio e Prudente de Moraes Neto concedem ao Correio da Manhã em
19 de junho de 1925, depois, portanto, do primeiro artigo de Tristão sobre “O Suprarrealismo”, e
respondendo, provavelmente, já em atenção a esse texto. Não há ali, porém, uma confrontação realmente
bem pensada com os argumentos de Tristão, nem podia haver, porque esses, naquela altura, apenas
começavam a aparecer. Cf. “Ideias de Hoje. Modernismo não é escola: é um estado de espírito.
Entrevista com Prudente de Moraes, neto e Sergio Buarque de Holanda”, RSBH, p. 70-4.
183
“O lado oposto e outros lados”, cit. p. 224.
184
Ibid., p. 225.
135
elemento a ser apreciado de modo puramente estético e que não comporta nenhuma
conexão com a realidade, já corresponde a um povo “pouco especulativo”, desprovido
da reflexão original que levaria à formação de “formas espontâneas”, compensando
essa falta, portanto, por meio da “adesão a todos os formalismos”186 – formalismos
importados, naturalmente, da Europa. São, aliás, exatamente Ronald e Guilherme de
Almeida que voltarão como maus exemplos de uma poesia formalista e “cordial” no
ensaio de 1940 sobre Manuel Bandeira, onde o primeiro será criticado pela “sabedoria
sentenciosa e asiática” de sua poesia “ajardinada”, e o segundo por sua “caprichosa
música”187 – sinais de que Sergio começa nessa fase uma reflexão que, partindo de
elementos da poesia modernista, constata nos dois “maus” modernistas uma “obra
talhada conforme esquemas premeditados”, deságua em Raízes do Brasil num
desenvolvimento mais sofisticado, como análise de uma racionalidade especificamente
brasileira e de matiz arcaizante, e, depois, será reaproveitada na crítica para contrapor
a “matéria velha” de Ronald e Almeida a Bandeira, um poeta dos “Novos tempos”.
Lembre-se, aliás, que esse procedimento, que não chega a ser surpreendente em um
crítico que desde o princípio parece ter uma atração especial pela poesia, continua a ser
185
Ibid., p. 225.
186
RB, p. 151.
187
“Poesias completes de Manuel Bandeira”, cit., p. 279-80.
136
Nós só seremos deveras uma Raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e
só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente
original e nacional de cultura. O modernismo brasileiro está ajudando a conquista desse
188
No caso dos Capítulos de Literatura colonial, Henrique Estrada Rodrigues encontrou na análise de
Sergio a delicada construção indutiva, a partir das preceptivas poéticas de Gian Vincenzo Gravina e
Giambattista Vico e daquilo que identificou como sua apropriação pelos árcades luso-brasileiros, de uma
“razão conciliatória”, que operaria como anteparo possível à ruptura que a chegada do racionalismo e
das Luzes, no século XVIII, poderia proporcionar num contexto ainda dominado pelas convenções
culteranas e conceptistas do Seiscentos. RODRIGUES, Henrique Estrada. A razão poética: Sergio
Buarque de Holanda e o racionalismo conciliatório. In: SOUZA, Rogério Ferreira de; Gracino Jr, Paulo.
Sociedade em perspectiva: Cultura, conflito e identidade. Rio de Janeiro: Gramma, 2012, p. 55-75.
137
dia. [...] Basta ver a maneira com que já matamos a melancolia de nós mesmos, essa
coisa medonha criada com a realidade ambiente. O modernista brasileiro matou a
saudade pela Europa, a saudade pelos gênios, pelos ideais, pelo passado, pelo futuro, e
só sente saudade da amada, saudade do amigo... O modernista brasileiro vive, não revive.
[I]sto é importante: sentir a beleza natural do Rio de Janeiro. Isso um bife também pode,
mas sentir porém as lutas contra os franceses, Estácio de Sá, Pedro I e a casinha de
Machado de Assis nessa paisagem, meu caro, só brasileiro bem sem moléstia-de-Nabuco
pode sentir. [...] Moléstia-de-Nabuco é isso de vocês andarem sentindo saudade do cais
do Sena em plena Quinta da Boa Vista e é isso de você falar dum jeito e escrever
covardemente colocando o pronome carolinamichaelismente. Estilize sua fala, sinta a
Quinta da Boa Vista pelo que é e foi e estará curado da moléstia-de-Nabuco. Nós já
temos um passado guassú e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar
a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao
presente.189
Se, por um lado, Tristão de Athayde talvez não concorde com o projeto de
abrasileiramento da língua, por outro, reconhecem-se aqui vários dos elementos
defendidos nos ataques de Tristão contra Estética e contra Oswald de Andrade,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
189
“Assim falou o papa do futurismo”. Entrevista de Mário de Andrade ao jornal A noite, 12 dez 1925.
190
“O lado oposto e outros lados”, p. 225-6.
191
“O lado oposto e outros lados”, p. 226.
138
bem-intencionada e que esteja de qualquer modo à altura de nos impor uma hierarquia,
uma ordem, uma experiência que estrangulem de vez esse nosso maldito estouvamento
de povo moço e sem juízo. Carecemos de uma arte, de uma literatura, de um pensamento
enfim, que traduzam um anseio qualquer de construção, dizem. E insistem sobretudo
nessa panaceia abominável da construção. Porque para eles, por enquanto, nós nos
agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem do quê? É indispensável
essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entre nós não é decerto, não pode ser a
nossa ordem; há de ser uma coisa fictícia e estranha a nós, uma lei morta, que
importamos, senão do outro mundo, pelo menos do Velho Mundo. É preciso mandar
buscar esses espartilhos pra que a gente aprenda a se fazer apresentável e bonito à vista
dos outros. O erro deles está nisso de querer escamotear a nossa liberdade que é, por
enquanto pelo menos, o que temos de mais considerável, em proveito de uma detestável
abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido. Não me lembro mais como é a
frase que li num ensaio do francês Jean Richard Bloch e em que ele lamenta não ter
nascido num país novo, sem tradições, onde todas as experiências tivessem uma razão
de ser e onde uma expressão artística livre de compromissos não fosse ousadia
inqualificável. Aqui há muita gente que parece lamentar não sermos precisamente um
país velho e cheio de heranças onde se pudesse criar uma arte sujeita a regras e ideais
prefixados.192
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
192
“O lado oposto e outros lados”, p. 226-7.
139
ser fascinante, quando se lembra da problemática que anima Raízes do Brasil, onde se
lê, no último parágrafo, uma consideração sobre a “organização de nossa desordem”193.
Mesmo quando se lembre que, nesse mesmo passo, essa “organização” deve ser feita
atenta a certo “mundo de essências mais íntimas” e certo “ritmo espontâneo”, para que
não redunde numa “harmonia falsa”194, poucas páginas antes Sergio observa que, com
o emocionalismo espontâneo da “cordialidade”, ou mesmo da “bondade”, não se criam
“bons princípios”, e que “[é] necessário um elemento normativo, sólido, inato na alma
do povo, ou implantado pela tirania para que possa haver cristalização social”195. Uma
nova visita ao primeiro parágrafo do livro deixa ainda mais claro que Raízes do Brasil
não é uma obra insensível a algumas das preocupações do antes execrado “partido da
ordem” e de certa “tradição”.
Lá, afinal, defende-se que um “estudo compreensivo” não pode ignorar que o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Brasil resulta da “transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical e
sub-tropical”, cultura essa que já não é ironizada como “espartilho” ou mão
estranguladora, mas como todo um conjunto de “formas de vida, instituições” e uma
“visão de mundo” que timbramos em manter em “ambiente muitas vezes desfavorável
e hostil”. Portanto, mesmo que possamos “construir obras excelentes” e “enriquecer
nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos”196, não convém esquecer que “todo
fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça participa fatalmente de um estilo e de um
sistema de evoluções naturais a outro clima e a outra paisagem”. Aquela “liberdade”
duramente conquistada, nos termos de “O lado oposto e outros lados”, está aqui
bastante relativizada e até negada, afinal, nos termos do parágrafo seguinte, “antes de
investigar até que ponto poderemos alimentar no nosso ambiente um tipo próprio de
cultura”, seria o caso de “averiguar até onde representamos nele as formas de vida, as
instituições e a visão de mundo de que somos herdeiros” e das quais, para o Sergio de
193
Essa correspondência já foi notada por Pedro Meira Monteiro em Signo e desterro. Sergio Buarque
de Holanda e a imaginação do Brasil. São Paulo: Hucitec, p.106.
194
RB, p. 161.
195
RB, p. 157-8.
196
Note-se aqui a reprodução quase textual do que diz Mário de Andrade no excerto de entrevista
supracitado: “Nós só seremos deveras uma Raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e só
seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de
cultura”.
140
1936, “nos orgulhamos”197. Pode-se especular sobre até que ponto esse “orgulho” não
era visto com ironia, mas não se deve esquecer da observação feita ao final desse
primeiro capítulo, onde se lê uma peremptória declaração de que “a verdade, por menos
sedutora que possa parecer a alguns dos nossos patriotas” – é improvável que a palavra
“patriotas” seja empregada aqui sem malícia – “é que ainda nos associa à Península
Ibérica, e a Portugal especialmente, uma tradição longa e” – palavra dileta do Sergio
Buarque de 1926 como daquele de 1936 – “viva”. Viva o bastante, ele completa, “para
nutrir até hoje uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa.” A frase final
do capítulo é curiosamente reminiscente das considerações de Tristão de Athayde sobre
tipos de “imitação” e “formas”: “Podemos dizer que [de Portugal] nos veio a forma
atual de nossa cultura; o resto foi matéria plástica que se sujeitou bem ou mal a essa
forma”198.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
O contraste entre as passagens serve, por um lado, para mostrar como o problema
da originalidade e da tradição passa por uma ampla revisão na reflexão de Sergio
Buarque, que passa a aderir ao menos em parte a um reconhecimento de valores
tradicionais – que agora já passam por valer como elementos de vida – de uma
valorização, e até obsessão com o problema da forma. Se é certo que o contato mais
intenso com diversas vertentes da filosofia e da literatura alemã irá certamente influir
nessa reconfiguração, não se pode deixar de apontar para a considerável probabilidade
de que alguns desses movimentos foram ocasionados pelo impacto do debate com
Tristão de Athayde, e que Sergio termina o percurso muito mais próximo desse último
do que talvez gostasse de admitir. Se o esforço voluntarista pela criação de uma
“ordem” ainda é visto como negativo, a delegação da manifestação da “vida” ao
expressivismo romântico já não parece se apresentar como solução satisfatória. Essa
passaria, antes, nos termos do parágrafo de abertura, por uma efetivação da
autenticidade nacional que só se poderia efetuar com trabalho sério de pesquisa atenta
aos sedimentos históricos que conformam a alma nacional. Note-se, aliás, que o
“organicismo” e “vitalismo” de Raízes se mostra, pelo cotejo dessas passagens com “O
lado oposto e outros lados”, muito atenuado em comparação com o zênite da revolução
197
RB, p. 3.
198
RB, p. 15.
141
movimento crítico de Sergio exibe aqui, talvez pela primeira vez, um desembaraço e
um espírito polêmico bem característicos dos momentos mais malcriados de sua
produção madura: partindo de distinções extremamente sutis mas penetrantes, ele
demonstra uma inconsistência formal a princípio pouco visível, mas que compromete
toda a doutrina que pretende combater – ele parece acusar Tristão, com sua obsessão
ordeira pela estabilidade, de romantismo, isto é, exatamente daquilo que ele, Tristão,
procurava combater.
Os termos da crítica, por sinal, são, mais uma vez, altamente reminiscentes de
Raízes – um livro onde muitas passagens se devem antes de mais nada ao gosto do
autor pela polêmica – na medida em que é saliente uma busca pelo justo equilíbrio entre
a “ordem” e a necessidade de preservar certa “liberdade” e “vida” autênticas: a
“sociedade”, continua Sergio, assim como os sistemas filosóficos embasadores da
crítica literária, “também possui desses elementos de rebelião e de injustiça, mas ela os
relega para além dos seus limites”. Esses elementos “não poderiam evidentemente
cooperar na constituição de um organismo político estável”, mas da “impossibilidade”
da “cidade moderna” em comportar essas “formas de vida social” resulta ela não poder
199
“Tristão de Athayde”, In: RSBH, p. 111-5. Texto originalmente publicado no Jornal do Brasil, 29 ago
1928.
200
“Tristão de Athayde”, cit., p. 111-2.
142
comportar nem mesmo “as mais importantes”. É nesse paradoxo, precisamente, que
Sergio vai encontrar a origem de “certas peculiaridades do problema moral, mais
particularmente no problema cultural”, “antinomias” que, se nesse momento
desaviavam o “homem de pensamento”, haveriam de se apresentar logo mais,
fatalmente, “no terreno social” ao “homem de ação”. Tristão de Athayde teve por
mérito ter compreendido que “a solução final de todas essas antinomias” só seria
alcançada pela “fidelidade a um plano de existência transcendental”, isto é, que uma
tal solução só poderia ser “uma solução religiosa” 201. Desse modo, não seria de admirar
que o escritor resenhado se inclinasse “com insistência” para o “ponto de vista do
catolicismo”, pois “nenhuma outra doutrina conviria tão plenamente a um homem que
aspira a organizar a sua desordem nesse mundo sem recusar subvenções do outro
mundo” 202 . Ocorre, porém, que, pretendendo substituir o “elementarismo” ou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
201
“Ibid., p. 112.
202
Ibid., p. 113. Note-se aqui a “organização da desordem” que voltará a preocupar, não já Tristão de
Athayde, mas o próprio Sergio, em 1936.
203
“Tristão de Athayde”, cit., p. 114. É provável que, no fundo dessa crítica, estivesse uma leitura das
Considerações de um apolítico de Thomas Mann, que Sergio demostraria conhecer e admirar na
entrevista do escritor alemão que publica em O Jornal em 16 de fevereiro de 1929 (“Thomas Mann e o
Brasil”, EL, I, p. 252). No capítulo provocadoramente intitulado “Contra o direito e a verdade”, dedicado
a uma polêmica contra Romain Rolland, Mann se revolta contra qualquer sugestão de que Nietzsche
fosse um pensador político, invocando um estudo de Emil Hammacher onde se lê que o maior mérito de
Nietzsche estaria na dissociação entre metafísica e vida social (p. 181), o que o tornaria um pensador
essencialmente apolítico. Na sequência, Mann caracteriza a Action Française – cujos pensadores teriam
inspirado ao menos em parte o escolasticismo de Tristão de Athayde – como culpada de uma
“politização” fraudulenta do nietzschianismo, típica da “incapacidade latina de dissociar a filosofia da
política” sacrificando a “verdade” à “vida” ao insistir contra todas as evidências de inocência de Alfred
Dreyfus na sua condenação, em nome do suposto interesse do Estado (aqui identificado por Mann,
estranha e acriticamente, com a “vida”) (p. 182). E continua, em trecho do qual o ataque de Sergio a
Tristão reproduz integralmente o raciocínio: “Isso que chamamos de ativismo, o voluntarismo, o novo
pathos, nada mais é do que a não-dissociação da filosofia e da política. O retor da civilização vê nisso
uma virtude que, se tivesse prevalecido, teria evitado a guerra, enquanto o instinto oposto, a cisão da
143
posição teórica de Tristão, pretendendo transpor do “céu” para a “terra” uma ordem
divina, incorreria em uma “política” excessivamente intervencionista e incompatível
com os quadros reais da vida moderna, desconhecendo a própria “cesura [...] entre o
Espírito e a Terra” pressuposta na própria doutrina, sendo, portanto, seria
“insustentável e antinatural”204. “Antinatural”, lê-se no capítulo “Novos tempos” de
Raízes do Brasil, é a “ideologia impessoal” do “liberalismo democrático”205, fundada
numa igualdade meramente teórica entre os homens – e tampouco são “naturais”, pode-
se depreender desse mesmo argumento, as pretensões dos partidários do fascismo à
“instauração de uma reforma espiritual abrangendo uma verdadeira tábua de valores
morais”206 – vemo-nos outra vez diante da problemática tipicamente nietzschiana dos
valores, presente em Sergio desde, pelo menos, quando ele encontrara em André Gide
uma indiferença olímpica ao “decálogo” e a aspiração a um cristianismo “cristão” antes
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
que paulino, problemática que parece animar, em concurso com o tema igualmente
nietzschiano da “vida” e da “natureza”, toda a sua controvérsia com Tristão de
Athayde. Se bem que, como se verá no próximo capítulo, a valorização sem reservas
do “natural” é uma característica do Sergio romântico, mas nem tanto de Raízes do
Brasil, onde o conceito de “natureza” é central, mas não assume um valor
inequivocamente positivo.
4. Um profeta
metafísica e do social é, segundo ele, o próprio crime que deixou de impedir a guerra, isto é, que levou
a ela; mas as coisas não são simples como parecem aos que se propõem antes de tudo acusar e incriminar.
O falso nietszchianismo da França ensina que a politização da filosofia pode tão bem significar a reação
radical como a Auflklärung radical; tanto a guerra, como o pacifismo; e sem querer acusar, nem
incriminar, constato que o “ativismo alemão” (ainda que sua política seja pacifista) está muito mais
ligado à ação coletiva europeia, à catástrofe europeia em que estamos implicados; ele as preparou e as
anunciou fisicamente, pelos seus atos, muito antes que o tenham feito qualquer quietismo ou ceticismo
“bugueses” [no original, “irgendwelcher ‘bürgerliche’ Quietismus und ‘Zweifel’”, cf. para a diferença
entre bourgeois e Bürger e o uso dessa distinção nas Considerações, infra, “Interlúdio”], qualquer tipo
de arte apolítica e ciosa de conhecimento e forma.” (p. 182-3). Tradução do autor a partir da versão
francesa de Jeanne Naujac e Louise Servicen (Paris: Grasset, 2002), em cotejo com o original
(Betrachtungen eines Unpolitischen. Berlim: S. Fischer Verlag, 1920).
204
“Tristão de Athayde”, cit., p. 115.
205
RB, p. 122.
206
RB, p. 158.
144
207
“O testamento de Thomas Hardy”, EL, I, p. 238-245. Texto originalmente publicado no Diário
Nacional, 8 abr 1928.
145
foram a prova de fogo do novo estado de coisas. O correlativo espiritual desse ambiente
é uma mentalidade mais ou menos equívoca, de meio-termo e de compromisso. Só os
sentimentos urbanos sabem manifestar sua excelência, só eles são acolhidos com palmas
pelo puritanismo britânico. Uma mediocridade satisfeita devora os germes de rebeldia e
de negação e impõe-se toda-poderosa. Dickens é o grande poeta dessa mediocridade.208
Vale a pena destacar aqui não apenas a ideia de que a literatura é considerada
como produção espiritual de uma época, mas que esse fato é tomado como ponto de
partida do texto, e que ele não é uma simples declaração de determinismo historicista.
Hardy, que ainda não apareceu, será tratado durante todo o texto pela excepcionalidade
de produzir uma obra antitética à sua época, extemporânea, nos famosos termos da
Segunda consideração intempestiva de Nietzsche. Nietzsche, porém, não bastaria,
talvez, para dar conta da atilada observação de que, na mentalidade “mais ou menos
equívoca, de meio termo” (note-se a fina reprodução da dita mentalidade no andar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
208
“O testamento de Thomas Hardy”, cit. p. 238.
209
Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., p. 28.
146
se propõem em liberdade absoluta – ou melhor, essa liberdade talvez até exista como
uma tendência de indivíduos excepcionalmente capazes, aqueles “intempestivos” de
que falou Nietzsche e entre os quais Sergio coloca Thomas Hardy, mas ela nunca se
exerce em meio a um campo desimpedido – a liberdade dos homens excepcionais,
assim, acaba adquirindo o aspecto da necessidade ou do destino, pela espessura
histórica do espaço onde forçosamente precisa se exercer. Nenhuma ação, nenhum
pensamento existe, que não esteja em algum ponto entre a pacífica reprodução dos
caminhos aconselhados pelo gosto e pela razão dominantes e a sua negação, e são os
“espíritos de negação”, como Thomas Hardy, que dão dinamismo à história, mesmo
que ela se mova lentamente. Segundo o linguajar característico do crítico e do
historiador, eles sempre cedem a pressões ou de algum modo respondem a solicitações
espirituais ou práticas espirituais ou materiais, ou então se “opõem” a algum traço
dominante na época. Longe de resultar num rígido quadro de determinismo, esse
procedimento comporta infinitas variações e entretons nas atitudes e expressões dos
indivíduos, resultando numa atmosfera textual inimitável. É aqui, no crítico que analisa
Hardy numa encruzilhada entre visões hegelianas e nietzschianas, que vamos
reconhecer pela primeira vez em Sergio Buarque algumas das qualidades que estamos
acostumados a associar ao autor de Raízes do Brasil.
210
“O testament de Thomas Hardy”, cit., p. 238-9.
147
Em Hardy, porém, ainda são muito vivos aqueles momentos extáticos de visão
profunda da verdade das coisas por trás do entulho das palavras – vale dizer, da cultura
mesma da qual o escritor faz parte – que haviam sido divisados pela primeira vez em
André Gide. Esses momentos são aqueles em que as coisas aparecem fugazmente “na
perspectiva da eternidade”, e em que sua substância “só respira fora da história, à
margem da sucessão de tempo”. E esses momentos de verdade suprema irão se
inscrever em mais um momento de negação da “ordem” combatida desde a conversão
de Sergio ao irracionalismo romântico com Gide e Murry: “Eles se rebelam contra as
forças ordenadoras que dirigiram sempre a sabedoria e a segurança dos homens na
Terra e resistem energicamente a qualquer tentativa de expressão social.” 211 Não
admira, portanto, que Hardy, homem do espírito e da visão reveladora, à maneira de
Gide e Paulo, se oponha aos homens do sistema, da letra , como Lucrécio ou Tomás de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
211
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 239.
212
Ibid., p. 239.
148
and.../We see into the light of things” [Quando todo fardo e mistério/Se faz leve
e.../Podemos ver através da luz das coisas]213. Thomas Hardy é portanto alguém que
luta para desfazer as “categorias e oposições entre as coisas” que os homens criaram,
construindo “um céu à imagem da terra, fazendo da eternidade uma dependência do
tempo”214. Fica nítido aqui como, para Sergio, as categorias e palavras continuam tendo
um valor no mínimo dúbio, para não dizer mortal, ainda que sejam expedientes
necessários à organização da vida terrena. Nesse texto fica patente, como em poucos,
a percepção de Sergio de que os valores éticos e estéticos conformam os quadros de
existência, o que explica a presença contínua da poesia na historiografia de Sergio
Buarque, desde Raízes do Brasil até Visão do Paraíso – pois a poesia é, na visão
romântica de mundo, justamente o estado mais puro das possibilidades de conformação
das coisas no mundo das palavras.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
213
“Romantismo e tradição”, cit., p. 199. Trata-se, na verdade, de citação livre de “Lines Composed a
Few Miles above Tintern Abbey, On Revisiting the Banks of the Wye during a Tour. July 13, 1798. Em
Wordsworth, o que se lê realmente é “[…] that blessed mood,/ in which the burthen of the mystery/ […]
Is lightened […]/And […]/ We see into the life of things”. O desvio de “in which” para “when” e de “of”
para “and” é de Murry, já o de “life” para “light” é de Sergio. Poema completo disponível em
https://www.poetryfoundation.org/poems/45527/lines-composed-a-few-miles-above-tintern-abbey-on-
revisiting-the-banks-of-the-wye-during-a-tour-july-13-1798. O poema, na citação de Murry, aparece em
“Literature and Religion”. In: CLUTTON BROCK, Arthur; DREAMER, Percy. The necessity of art.
Eugene, Oregon: Wipf & Stock, s.d., p. 155.
214
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 240.
215
Ibid., p. 241.
149
contemporâneos tinham bons motivos para protestar”216. Sua obra seria um fruto de sua
“inadaptação absoluta” à “ordem da civilização”, inadaptação da qual ele talvez não
esteja totalmente consciente, pois procura saná-la afetando compromissos com a
“ordem”, imaginando-se “um personagem necessário, um elemento de construção”,
mas na realidade apenas fingindo “acreditar no prestígio eterno das categorias
humanas” – acreditando ser apenas um reformador, ele na verdade é, “no fundo”, um
“espírito de negação, um adversário constante das ordenações que os homens se
impuseram”217. “Espírito de negação”, os leitores familiarizados com o tema por certo
não deixarão de perceber, é uma expressão que, no pensamento alemão, é indissociável
de sua aparição na boca de Mefistófeles no Fausto de Goethe (“Ich bin der Geist, der
stets verneint”, “Eu sou o espírito que nega”, v. 1338) e de sua apropriação na filosofia
de Hegel na forma da “dialética” que procede sempre pela negação. A ideia da figura
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
individual de um profeta que trará uma nova moral e destruirá todos os valores
vigentes, por outro lado, é inconfundivelmente nietzschiana. Em seguida, Sergio dirá
que Hardy “imagina, talvez, que mais tarde, quando a humanidade estiver
‘transformada fisicamente’, não será obrigado a lutar contra as suas contrições, nem
terá de adotar uma atitude conforme à ordem da civilização.”218
Essa “transformação física” que Sergio introduz entre aspas muito
provavelmente não se refere a nenhum trecho de Hardy, mas a Dostoievski, e na
verdade se reporta à já citada carta de André Gide sobre Nietzsche incluída nos
Prétextes, Pois é o Kirilov dos Demônios, que aparece duas vezes citado no ensaio de
Sergio sobre Thomas Hardy, que acredita que salvará, com seu suicídio (tema também
presente no ensaio), toda a humanidade, e que isso ocasionará uma mutação na forma
física humana: “Isso por si só salvará todos os homens e transformará fisicamente a
próxima geração; pois, até onde eu posso avaliar, em sua forma física atual, é
impossível para o homem viver sem o Deus antigo.” E é André Gide que conclui, na
analogia já analisada anteriormente, que, assim como Kirilov se mata, “Nietzsche
afunda na loucura”, mas em compensação “torna presente seu super-homem.”219 E,
216
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 241-2.
217
Ibid., p. 242.
218
Loc. cit.
219
André Gide, Prétextes, cit., p. 180.
150
assim como Nietzsche fora movido por um amor à verdade que o levou a uma
“clarividência [...] cada vez mais aguda, cruel, deliberada” que o inclinava cada vez
mais para a “inconsciência”220, Hardy aparece como uma espécie de arauto nietzschiano
dos novos tempos, que, mediado por um cristianismo à la Gide, é um profeta de um
ponto de vista “extra-moral”, aquele que vê as coisas do “ponto de vista da eternidade”:
Novamente, por trás de uma vistosa capa nietzschiana, é possível entrever o pano
de fundo hegeliano – pois é Hegel, que não é nenhum filósofo ateu, quem diz que “a
vida de Deus e o conhecimento divino bem podem exprimir-se como um jogo de amor
consigo mesmo”, como queriam os românticos que ele critica na introdução à sua
Fenomenologia (§19), “mas essa é uma ideia que baixa ao nível da edificação”
(Erbaulichkeit, também traduzível por construção) por lhe faltar “a dor, a paciência e
o trabalho do negativo”222. Enquanto não se entregar a essa dor e a esse trabalho (que
na dialética do senhor e do escravo é avizinhada do perigo de morte223, não se chegará
a transpor a “cesura entre o Espírito e a Terra” sobre a qual Sergio falará em sua resenha
de Tristão de Athayde, que os construtores de sistemas, incapazes de compreendê-la,
procuram fazer “da eternidade uma dependência do tempo” e, a partir dessa ficção
filosófica e anti-humana, pretendem policiar este mundo, aniquilando assim o sentido
tanto da Terra quanto do Céu. É na consideração desses trânsitos, extáticos ou não,
entre o céu e a terra, que dão origem e atualidade aos valores e leis terrenas, que se
movera a reflexão de Sergio Buarque desde o começo de sua peripécia romântica, e
que, de modo mais sutil do que parecerá a leitores desavisados, deságua na
220
Prétextesˆ, cit., p. 181.
221
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 244-5.
222
Fenomenologia do espírito, cit., p. 33.
223
Ibid., §§178-196, p. 142-151.
151
Este texto não foi pensado como um capítulo da tese, mas como um subsídio de
transição para a análise de Raízes do Brasil, o primeiro texto de Sergio Buarque de
Holanda onde a concepção de formação encontrada na obra madura (que, segundo o
ponto de vista deste trabalho, começa com Raízes) aparece formulada. Ele não se ocupa
da análise de nenhum texto de Sergio Buarque em particular, mas desenvolve as linhas
fundamentais do principal pressuposto teórico da tese, a saber, a ideia de Bildung
(formação, cultura, formação cultural; as opções de tradução são várias e sua
conveniência depende do contexto de uso, dada a riqueza, e também uma certa
indefinição, da valência do termo na cultura alemã), que opera, no presente trabalho,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
1
Uma das primeiras contestações vigorosas da tradicional interpretação weberiana de Raízes é o texto
de Maria Odila Leite da Silva Dias incluído como introdução à edição de Raízes do Brasil da coleção
Intérpretes do Brasil, posteriormente publicada com seu título original, “Negação das negações”, no
volume Perspectivas (Monteiro, Eugênio, 2008). Outros trabalhos a serem destacados são Sergio da
Mata (“Weberianismo tropical” e “Tentativas de desmitologia”) e a tese de Eugênio (2011).
153
aqui um breve estudo, muito sintético e sem maiores pretensões para além de um
subsídio ao presente trabalho, sobre a Bildung, concentrado naqueles elementos que
parecem reverberar na obra de Sergio, e com especial intensidade a partir dos anos
1930. Não se reivindica tratar-se aqui de um mapeamento de influências inequívoco,
de caráter propriamente documental, mas da exposição de lugares-comuns intelectuais
e espirituais que esclarecem o material discutido no capítulo III (e, em menor medida,
nos precedentes), onde a investigação tende a uma abordagem mais documental e a
atribuição de influências pode ser intentada de modo menos vago. O que se segue não
é, portanto, imprescindível à compreensão do argumento do presente trabalho (embora
o tenha sido para sua concepção). Pareceu preferível incluir esta análise da Bildung
aqui, e não numa introdução metodológica, ou distribuída em digressões ou notas
esparsas ao longo dos capítulos, tanto pelo seu caráter relativamente acessório (do
ponto de vista da leitura), quanto pelo fato de que os referidos modelos intelectuais
parecem se fazer presentes no pensamento de Sergio Buarque especialmente depois de
sua estada alemã em 1929-1931, o que tornaria o andamento da tese estranho, pois essa
discussão é bem menos pertinente aos dois primeiros capítulos. A esperança é,
portanto, que as páginas seguintes preparem, para quem tiver a disposição para sua
leitura, a discussão em torno de Raízes do Brasil, e componham com ela uma
154
***
2
A título de indício dessa excentricidade, lembre-se que, quando finalmente se dispôs a escrever um
texto de maior fôlego onde se confronta ostensivamente com temas de teoria e metodologia da História,
isto é, seu magistral ensaio sobre Leopold von Ranke, Sergio não encontrou ocasião de incluir uma única
referência bibliográfica em sua própria língua.
3
ELIAS, Norbert. Sociogênese da diferença entre Kultur e Zivilisation no emprego alemão. In: O
processo civilizador, v 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 23-50. Longe de
ser uma criação ideal-típica de Elias, a distinção foi frequentemente mobilizada por pensadores alemães
no período anterior à I Guerra Mundial e aproveitada na propaganda de guerra da Alemanha guilhermina.
O debate remonta às reações ressentidas de Hamann e Herder às Luzes franceses, mas é vigorosamente
retomado no começo do século XX. Ver, por exemplo, o ensaio de Georg Simmel sobre a “tragédia da
cultura”, ou, ainda, em chave mais polêmica, as Considerações de um apolítico de Thomas Mann, onde
o autor se arroga o posto de defensor da cultura contra os “literatos da civilização”. O mesmo Mann
aproveitará suas reflexões sobre o tema e as transporá para a ficção (embora já numa posição um pouco
mais crítica da “cultura”) nas contendas entre Lodovico Settembrini e Leo Naphta na Montanha mágica.
155
essa linhagem a uma referência clássica, seria o caso de consultar o estudo de Friedrich
Meinecke sobre A gênese do historismo 4 ; 3) finalmente, pode-se reportar a
singularidade alemã à longa tradição desenvolvida em torno do conceito de formação
ou Bildung (literalmente, formação, mas também, dependendo do contexto, educação,
cultura, erudição; a polissemia do conceito é um de seus elementos distintivos5).
No presente trabalho, partindo das indagações sobre as filiações teóricas de
Raízes do Brasil, chegou-se à conclusão de que o terceiro caminho revelava-se o mais
proveitoso na interpretação do texto, além de oferecer a chave mais satisfatória para o
conjunto da obra de Sergio Buarque. A formação ou Bildung é uma categoria central
do pensamento buarquiano sobre a literatura e a história brasileiras, especialmente a
partir de 1929-31, quando o romantismo da fase modernista dá lugar a uma reflexão
marcada por um pensamento morfológico reminiscente da teoria do conhecimento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
4
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su genesis. México: Fondo de cultura económica, 1986.
5
Ver, a respeito, o verbete “Bildung” de Rudolf Vierhaus no dicionário dos Geschichtliche
Grundbergriffe (conceitos históricos fundamentais) organizado por R. Koselleck, W. Conze e O.
Brunner, aqui citado em tradução avulsa para o espanhol: VIERHAUS, Rudolf. Formación (Bildung).
Separata: Revista Educación y Pedagogía, v. 14, n. 33, p. 7-67.
6
Não é uma preocupação do presente estudo especificar conceitualmente a fronteira entre o “teórico” e
o “literário”. Os ditos “lugares-comuns”, expressão aproveitada livremente da retórica clássica, podem
operar num plano infra-conceitual e não necessariamente são redutíveis a explicações literais (Cf. Hans
Blumenberg, Paradigmes pour une metaphorologie. Paris: Vrin, 2006). Lembre-se apenas que a zona
de interseção entre ambos é ampla e, às vezes, fundamental. Pense-se, por exemplo, no estudo onde
Carlo Ginzburg mostra como Malinowski extraiu sua explicação do kula trobriandês nos Argonautas do
Pacífico-Sul de um conto de Robert Louis Stevenson, e de como Marx se valeu amplamente de motivos
do Fausto na formulação de argumentos importantes do Capital. GINZBURG, Carlo. Tusitala e seu
leitor polonês. In: Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia
das Letras 2004; MAZZARI, Marcus Vinicius. A dupla noite das tílias. História e natureza no Fausto
de Goethe. São Paulo: Ed. 34, 2019 (não foi possível, até o fechamento da tese, conferir as páginas deste
livro onde Mazzari documenta os aproveitamentos teóricos de símiles goethianos por Marx).
156
resgate do ideal grego de paideia, que por sua vez já havia sido retomado no
Renascimento pelos humanistas italianos – não por acaso, a Grécia antiga e o
Renascimento italiano são objetos prediletos de reflexão histórica, filosófica e artística
do humanismo clássico alemão. Pense-se em Goethe, seja em sua viagem à Itália, em
peças como o Torquato Tasso, ou nas eruditas alusões clássicas da segunda parte do
Fausto, ou, ainda, para mencionar um universo mais amplo, no florescimento dos
estudos filológicos e históricos clássicos a partir do final do século XVIII,
decisivamente incrementados pelos românticos de Iena; ou, ainda, na obra de um
Burckhardt ou de um Nietzsche, nitidamente tributárias desse movimento.
Entretanto, não custa lembrar que a versão alemã do ideal de formação, mesmo
quando associável a alguma espécie de “classicismo”, se propõe em saliente contraste
com o ideal racionalista e neoclássico de arte e cultura desenvolvido na França no
século XVII e, ainda no final do século seguinte, hegemônico na Europa. Tomando
emprestada a imagem de Thomas Mann da Alemanha como o “país do protesto”7 –
afinal, a unidade cultural do povo alemão tem como uma espécie de mito fundador a
tradução por Lutero da Bíblia, documento emblemático do cisma que dera início à
Reforma – parece seguro dizer que o tipo de formação defendido por figuras como
7
MANN, Thomas. Considérations d’un apolitique. Paris: Grasset, 2002, p. 43.
157
Goethe e W. von Humboldt é uma forma de protesto contra a cultura e o sistema das
artes do classicismo do Seiscentos e dos philosophes do Setecentos. Mesmo que, como
se sabe, o “protesto” já encontrasse precedentes em Rousseau, e, como lembra Ernst
Cassirer, a filosofia iluminista tivesse mais afinidades com seus adversários no
romantismo alemão do que estes últimos gostariam de admitir. 8 Ainda assim, o
sentimento (às vezes ressentido) de participar de um ataque contra a supremacia do
racionalismo, do desafio à atmosfera imperante nos meios intelectualizados, é um dos
traços mais salientes dos primeiros formuladores da Bildung, especialmente aqueles
que ficaram conhecidos como “românticos”, por oposição aos “clássicos”. Bem
ilustrativo disso é o que Isaiah Berlin escreve sobre Schelling em seu inspirado ensaio
sobre o “contra-Iluminismo”:
Schelling foi talvez o mais eloquente de todos os filósofos que representaram o universo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Falando do pintor inglês Joshua Reynolds, mas numa observação que também
vale para os pensadores alemães aqui discutidos, Berlin ressalta uma das mais
revolucionárias qualidades da reação romântica ao Iluminismo, isto é, no contexto do
desafio às regras clássicas da arte, a proposição de que os valores são criados nas
próprias obras, e não são externos a elas:
Criação é criação de fins assim como de meios, de valores assim como de suas
corporificações; a visão que procuro traduzir em cores ou sons é gerada por mim, e
8
CASSIRER, Ernst. The Philosophy of the Enlightenment. Princeton: Princeton University Press, 1951,
p. 197.
9
BERLIN, Isaiah. Counter-Enlightenment. In: Against the Current: Essays in the history of ideas. Nova
York: Viking, 1980, p. 18-9.
158
peculiar a mim, diferente de tudo quanto já foi, ou será, acima de tudo não é algo comum
a mim e a outros homens que procuram realizar um ideal comum, partilhado e, porque
universal, racional.10
10
Ibid., p. 18.
11
RODRIGUES, Henrique Estrada. O conceito de formação na historiografia brasileira. In:
MEDEIROS, Bruno et al. (Orgs) Teoria e historiografia: Debates contemporâneos. Jundiaí: Paco
Editorial, 2015. Não havendo à disposição um exemplar da versão do ensaio publicada em livro durante
a elaboração do presente texto, foi utilizada uma cópia avulsa, gentilmente fornecida pelo autor. Não
será possível, portanto, indicar a paginação da versão publicada, que fica aqui referida, de todo modo,
para consulta futura.
12
SCHMITT, Carl. Political Romanticism. Cambridge, MA: MIT Press, 1986, p. 36.
13
DUMONT, Louis. Homo aequalis II: L’idéologie allemande. France-Alemagne et retour. Paris:
Gallimard, 2013.
159
alemã” é como Dumont chama a versão alemã do individualismo, que coincide com a
tradição desenvolvida em torno da ideia de Bildung e, evidentemente, nada tem a ver
com a crítica de Marx e Engels aos jovens hegelianos, embora a escolha do título pelo
autor seja, provavelmente, no mínimo, uma provocação. A hipótese de Dumont é que
as sociedades do Ocidente moderno teriam, no processo de modernização, efetuado a
transição de uma organização social baseada uma noção de pessoa holista – isto é, onde
o indivíduo, a despeito da realidade psicológica de sua individualidade, ganha corpo
no mundo social por meio de sua inserção em unidades comunitárias mais amplas
(família, aldeia, clã, paróquia etc.) – para a do moderno individualismo, onde o
indivíduo coincide com a sede de sua célula de agência social.14 Note-se, de passagem,
como uma das obras pioneiras da sociologia alemã, Comunidade e sociedade, de
Ferdinand Tönnies, se ocupa da problemática da modernização em termos bastante
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
14
Uma demonstração interessante, de inspiração abertamente dumontiana, de como isso se dá no plano
dos “mitos” organizadores da cultura foi feita por Ricardo Benzaquen de Araújo e Eduardo Viveiros de
Castro em sua análise de Romeu e Julieta. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de; VIVEIROS DE CASTRO,
Eduardo. Romeu e Julieta e a origem do Estado. In: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Zigue-zague.
Ensaios Reunidos. São PauloL Unifesp; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2019.
15
Ver especialmente o Livro I de TÖNNIES, Ferdinand. Community and Civil Society. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001, (p. 15-93).
16
DUMONT, L’idéologie allemande, cit., p. 233-241. Dumont fundamenta seu argumento
principalmente nas obras de Wilhelm von Humboldt e Goethe, mas é extraordinária a recorrência desses
temas e da homogeneidade dos pontos de vista com que são abordados no pensamento alemão do final
do século XVIII e das primeiras décadas do XIX.
160
certo provincianismo, por outro, a descoberta da singularidade dos povos épocas requer
que o artista – como representante de seu povo e sua época – invista sua individualidade
na obra. Só assim a arte ultrapassa o mero epigonismo para enriquecer o acervo comum
da história espiritual da humanidade. Assim, “[a]s personagens de Sófocles têm todas
algo da elevada alma do grande poeta, assim como as de Shakespeare”, que, em suas
tragédias romanas, não se limita a “repetir a obra de um historiador” e, “com razão”,
“transforma seus romanos em ingleses [...], caso contrário sua nação não o teria
compreendido”. E, ao mesmo tempo em que os gregos devem ser tomados como único
modelo possível, todo o resto “devemos considerar apenas historicamente, e, tanto
quando possível, nos apropriar do que encontrarmos de bom”.18 Lembre-se, aqui, em
atenção ao jogo que o conceito de Weltliteratur supõe entre caráter singular e
totalidade, de sua atualização por Erich Auerbach no ensaio de 1952 intitulado
“Filologia da literatura mundial”, quando, sobre a literatura mundial, diz que “não se
refere simplesmente aos traços comuns da humanidade, e sim a esta enquanto
17
Em sua análise da obra de Wilhelm von Humboldt, Dumont conclui que há implícito em sua doutrina
um universalismo normativo de inspiração kantiana, ainda que combinado com a exigência do “caráter”
próprio (p. 150-157).
18
ECKERMANN, Johan Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida, 1823-1832.
São Paulo: Unesp, 2016,p. 228-229 (conversa de 31 de janeiro de 1827).
161
fecundação recíproca de elementos diversos”, que tem por pressuposto a “felix culpa
da dispersão do gênero humano numa variedade de culturas.”19
A essa teoria da arte e da cultura corresponde uma concepção igualmente nova
do mundo social, que segue sendo pensado como totalidade orgânica e
hierarquicamente ordenada, cuja existência depende da mediação de indivíduos, que
são como que os órgãos de um corpo maior. Aqueles que pretendam desempenhar
algum papel de maior destaque nessa ordem devem desenvolver mecanismos para os
compreender o mundo social e a natureza, ou seja, precisam da formação, educação ou
cultura (Bildung) que efetive a totalidade que há dentro de si. Assim como, em Leibniz,
a mônada contém o universo sob um aspecto de singularidade, os indivíduos e as
culturas participam do todo por meio de seus traços únicos. 20 Para a filosofia da
Bildung, no plano correspondente da individualidade, a realização se dá pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
19
AUERBACH, Erich. Filologia da literatura mundial. In: Ensaios de literatura occidental. São Paulo:
Ed. 34; Duas Cidades, 2012, p. 357.
20
CASSIRER, The philosophy of the Enlightenment, cit., p. 27-36.
21
HERDER, Johann Gottfried. Another philosophy of history for the education of mankind. In: Another
Philosophy of History and Selected Political Writings. Indianapolis, IN: Hackett, 2004, p. 3-99.
162
levados em conta, por certo, na pedagogia, como se percebe pela centralidade da noção
de “aprendizado”, mas eles também compõem, e talvez antes mesmo de poderem
incidir na esfera educativa, um ponto de vista sobre a natureza. O elemento pedagógico
é derivado de uma teoria do conhecimento. Contra a concepção sistemática e
mecanicista da física newtoniana22, Goethe erige uma ciência centrada na noção de
forma, a morfologia. O princípio básico desse estilo epistemológico é o da
transformação – o desdobramento da forma no tempo – o qual se supõe exprimir, a
partir de sua própria conformação fenomênica, uma verdade que se expressa no
processo mesmo da vida. O que vem a ser ganha, para quem o testemunha, uma forma
que contém o conhecimento sobre o processo do devir. Como se lê num dos fragmentos
científicos de Goethe, “[a] morfologia repousa sobre a convicção de que tudo o que é
tem também de se significar a si próprio. Admitimos esse princípio desde os primeiros
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
22
Assim como o “historismo”, que é como Meinecke chama um universo intelectual que, se não coincide
ao que aqui se chama de Bildung, está próximo disso, se levanta contra as noções de direito natural na
antropologia racionalista (El Historicismo y su génesis, cit., p. 21).
23
Apud MOLDER, Maria Filomena. Introdução. In: GOETHE, Wolfgang von. A metamorfose das
plantas. Lisboa: Imprensa nacional, Casa da moeda, 1993, p. 27.
24
TEIXEIRA, Maria Luisa Noujaim. Impulso e espacialidade na linguagem: dos românticos à biologia
cognitiva. Tese de doutorado (História Social da Cultura). Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, 2020, p. 5
163
de ordinário, preteridos por uma perspectiva animada por uma noção de necessidade.
O que é, é porque assim tinha de ser – deu vasão ao movimento orgânico da forma,
mesmo que em interação com outras formas. Em ensaio sobre o crítico Rudolf Kassner,
Georg Lukács, diz que a forma se faz preencher pela alma não de maneira arbitrária,
mas como “a única coisa possível” – é essa, aliás, a “definição mais sucinta” da forma25.
A forma do indivíduo, assim como sucede com as formas da natureza, vive em
constante jogo de intercursos vitais com o mundo, o que implicará uma certa teoria da
alma que comporte alguma permanência na mudança. Isso não é novidade na filosofia
moderna, mas a ênfase que o pensamento dessa época dedica à questão do “Eu” é
impressionante – lembre-se que o estágio teórico mais acabado da noção ocidental de
pessoa é localizado por Marcel Mauss, em estudo antropológico pioneiro sobre o
assunto, em Fichte.26. Igualmente características do ambiente cultural de consolidação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
25
LUKÁCS, Georg. A alma e as formas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 59.
26
MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “Eu”. In: Sociologia e
antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
27
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras,
1989, p. 56-7.
164
28
SIMMEL, Georg. O conceito e a tragédia da cultura. Crítica cultural, v. 9, n. 1, jan-jun 2014, p. 145-
7.
29
DUMONT, L’idéologie alemande, cit., p. 133-134; GOETHE, J. Wolfgang von. Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ed. 34, p. 470.
165
da ética econômica capitalista, seja intitulado, em alemão, Der Bourgeois, e não Der
Bürger31. Um dos efeitos dessa distinção é contrapor ao bourgeois venal e filisteu do
Ocidente capitalista uma certa ingenuidade amante da cultura e das tradições do Bürger
alemão, que resulta, por comparação, quase que um nobre. Esse aspecto da Bildung é,
aliás, bastante nítido no desfecho dos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, cujo
protagonista, burguês nobilitado, se associa a um grupo de nobres numa sociedade
reformista empenhada em efetuar a transição do feudalismo para os novos tempos “a
partir de cima”, sem a necessidade de uma ruptura revolucionária.
Para além do seu viés elitista32, é preciso destacar que esse ideal não fica restrito
à Alemanha, e irá se incorporar, por meio da propagação dos produtos da cultura alemã,
30
VIERHAUS, cit., p. 31-33. Sobre o “mandarinato” cultural, ver RINGER, Fritz. O declínio dos
mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2001.
31
SOMBART, Werner. Le Bourgeois. Contribution à l’histoire morale et intellectuelle de l’homme
économique moderne. Paris: Payot, 1966. Não deixa de ser curioso que, por algum descuido de revisão,
essa edição francesa informe o título original, erroneamente, como Der Bürger. Veja-se, para um
tratamento mais alentado dessa distinção, o quinto capítulo das Considerações de um apolítico de
Thomas Mann (MANN, Considérations d’un apolitique, cit. p.93-131).
32
Trata-se aqui de uma constatação sobre a conformação inicial da Bildung dentro da cultura alemã. Isso
não interdita, naturalmente, a formulação de paradigmas pedagógicos que, partindo de ideias originadas
nesse contexto, tomem uma posição política abertamente revolucionária à esquerda. Dentro do próprio
universo alemão, a obra de Marx pode ser inserida sem maiores dificuldades no quadro da Bildung –
pense-se na intenção claramente pedagógica e formativa do Manifesto do partido comunista (1848).
Outro exemplo especialmente eloquente é a armação teórica da Pedagogia do oprimido de Paulo Freire
(1968), amplamente baseada na dialética do senhor e do escravo de Hegel. Cf. esp. “Justificativa da
pedagogia do oprimido” in FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
166
nesses contextos33, uma vez que já contém os elementos para a preservação daqueles
elementos originários que se queira preservar, seja em sua teoria étnica da nação, do
cosmopolitismo culturalista, ou ainda na crítica ao capitalismo e ao liberalismo. Não
seria essa, precisamente, uma das dimensões das operações de interpretação da cultura
do Ariel de Rodó e, por que não, de Raízes do Brasil?
No ensaio já lembrado de Henrique Estrada Rodrigues, o autor aponta algumas
obras canônicas de nosso pensamento social como produtos de uma época de quebra
de paradigmas tradicionais, quando era natural que intelectuais preocupados com o
destino do país interviessem no debate público com obras que, conceitualmente
fundamentadas na problemática da formação, ganhavam corpo numa modalidade
ensaística inspirada no romance de formação [Bildungsroman]. Assim, o imperativo de
redefinir a identidade nacional e as instituições políticas e econômicas ganhava uma
leitura que se dava em função das especificidades da relação tensa com a modernização,
adotando como estratégia de síntese das contradições entre tradição local e
modernidade uma estrutura argumentativa na qual o corpo nacional em formação se
encontrava diante de situações semelhantes àquelas que interpelam os jovens de destino
ainda indeterminado no Bildungsroman – a situação é análoga àquilo que Hannah
Arendt denomina o rompimento do “fio da tradição” e a consequente obsolescência de
33
DUMONT, cit. p. 29.
167
bíblica de Saul, filho de Kis, que “foi à procura das jumentas de seu pai e encontrou
um reino.”35 A verdade sobre o processo não está no conteúdo de alguma consciência
individual em algum dado momento, mas no sentido constituído pela unidade do que
foi narrado como totalidade aberta. Não é por acaso que, como lembra Rodrigues, o sol
da formação se põe na vida espiritual brasileira quando, em torno de 1960, a sociedade
brasileira já aparenta, para o bem ou para o mal, um grau maior de determinação – ou
de estreitamento de horizontes. Acrescente-se que, em analogia com a própria história
do pensamento alemão, o potencial transformativo dá lugar a uma perspectiva muito
mais rígida e unilateral. A formação (Herder, Schiller, Goethe) deixa de ser ideia-chave
da compreensão do devir histórico, e entra em cena a de destino (Nietzsche, Weber,
Spengler).36
Longe de constituir uma espécie de “empirismo ingênuo”, como nota Rodrigues,
a adoção desse molde narrativo permitia aos intérpretes do Brasil, de Oliveira Vianna
34
Sobre o modelo narrativo do Bildungsroman, ver o primeiro capítulo de MORETTI, Franco, O
romance de formação. São Paulo: Todavia, 2020. O problema da tradição e sua desagregação no
princípio dos tempos modernos é discutido por Arendt nos dois primeiros ensaios de Entre o passado e
o futuro (“A quebra entre o passado e o futuro” e “A tradição e a época moderna”). ARENDT, Hannah.
Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 28-69.
35
GOETHE, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 575.
36
Pode-se dizer que o destino não deixa de ser um ponto de vista sobre a formação, inclusive já presente
desde o período do humanismo clássico de Goethe, Herder e Schiller; em todo caso, a inflexão de
perspectivas abertas para outras unilaterais e fechadas é nítida.
168
37
Essa hipótese é uma adaptação para o contexto brasileiro do argumento de Pedro Caldas, que, baseado
numa análise da obra do grande historiador alemão J.G. Droysen, propõe a Bildung como categoria-
chave da consciência histórica moderna como alternativa àquela, mais corrente entre os estudiosos de
teoria da História, de “historismo”. Nesse caso, à diferença do “historismo”, amplamente desacreditado
desde a II Guerra Mundial, a Bildung não seria necessariamente um paradigma “esgotado”. CALDAS,
Pedro Spinola Pereira. O limite do Historismo: Johann Gustav Droysen e a importância do conceito de
Bildung na consciência histórica alemã do século XIX. Revista filosófica de Coimbra, v. 15, n. 29, 2006,
p. 139-160.
169
[A] elevada ciência da crítica genuína deve ensin[ar ao indivíduo] como ele precisa se
formar em si mesmo e, acima de tudo, deve ensiná-lo a captar todas as outras formas
autônomas da poesia, em sua força e abundância clássicas, para que a flor e o cerne de
outros espíritos se tornem alimento e semente para a sua própria fantasia. [...] Assim
como o centro da Terra se revestiu espontaneamente de camadas e vegetação, assim
como a vida brotou por si mesma das profundezas, e tudo se enche de seres que se
multiplicavam alegremente, também a poesia floresce espontaneamente da força
originária invisível da humanidade, quando o raio ardente do sol divino a toca e frutifica.
Somente forma e cor podem expressar, formando de novo, como o homem é formado; e
assim, na verdade não se pode falar em poesia a não ser em poesia.39
38
AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 2013, p. 501.
39
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura (1797-1803) Conversa sobre poesia. São
Paulo: Unesp, 2016, p. 484-5.
170
40
Ibid., p. 523.
41
A sugestão desta analogia foi suscitada pelo livro Caracteres poéticos de Giambattista Vico, de Renata
Sammer (São Paulo: Unifesp, 2018). A responsabilidade pela sua própria plausibilidade é,
evidentemente, do autor.
171
ponto, fez-se um esforço consciente não interpolar, neste momento, a análise de Goethe
com possíveis correspondências ou analogias com Sérgio Buarque.
Wilhelm Meister é um rapaz de origem burguesa (Bürger, não Bourgeois,
conforme se viu acima) que, depois de uma desilusão amorosa, sai de sua cidade, a
princípio numa missão comercial a mando do pai, que espera que ele venha, no futuro,
a tomar seu lugar na chefia dos negócios da família. No meio do caminho, ele encontra
uma companhia itinerante de atores, o que o leva a abandonar sua empreitada inicial
para se dedicar ao teatro, que ele acredita ser sua vocação – note-se aqui que, no começo
da narrativa, ele se dedica assistematicamente à escrita e produção de peças de teatro,
mas entende, depois de sua desilusão amorosa, que não passava de diletantismo, de
modo que a decisão é na verdade uma retomada de um curso anteriormente
interrompido. Com a companhia, Wilhelm estuda os textos dramáticos e sua execução,
trocando ideias com seus companheiros, e, depois de descobrir a obra de Shakespeare,
decide encenar o Hamlet. Pouco após a execução da peça, porém, um incêndio e a
morte de uma amiga o afastam do teatro e o levam à convivência em sociedade com
nobres locais. Nesse momento, a narrativa é interrompida por um escrito autobiográfico
intitulado “Confissões de uma bela alma”, de cunho religioso, que apresenta um
contraponto ascético e reflexivo às andanças de Wilhelm com os atores. Nos dois livros
finais, Wilhelm descobre que, desde que havia deixado a cidade, uma organização
172
dramáticos: “Deixa-me! [...] De que me servem estas miseráveis folhas? Elas não
representam mais uma etapa nem um estímulo. Deveria conservá-las, para me
torturarem até o fim da vida?”42 Não apenas a vida é compreendida como processo
dotado de finalidade, como se apresenta o descobrimento dessa finalidade como dever
(ou vocação), como o descarte de tudo que possa ser meramente contingente – embora
o próprio processo de discriminação valorativa que leva ao descarte esteja inserido no
quadro ético do desenvolvimento formativo, e assim confere ao erro mesmo uma
dignidade própria. Esse processo é, ao fim e ao cabo, bem-sucedido, mas se desenrola
extensamente ao longo do livro, e pode-se mesmo aventar a possibilidade de que,
mesmo ao fim da narrativa, ele não tenha de fato terminado. Esse ponto de vista não
alteraria, contudo, para além de uma crítica da execução artística do livro, a teoria
pedagógica implícita (ou nem tanto) que fundamenta a narrativa como totalidade.
No início, Wilhelm é um adolescente cuja indeterminação leva a identificar na
arte um caminho de diferenciação de sua origem burguesa. Se essa vocação acaba se
mostrando irrealizada, não significa que o período de convivência com os atores foi um
jogo supérfluo. Há diversas indicações ao longo do livro sobre como se deve
compreender essa trajetória que pode parecer, em si, desprovida de sentido – nesse
ponto há uma contradição entre um pendor mais ou menos irracionalista, ou pelo menos
42
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 95.
173
anti-intelectualista, da ideologia pedagógica, que postula que nem tudo que é essencial
pode ser dito, como se lê na “carta de aprendizado” escrita pelos pedagogos da
Sociedade da Torre especialmente para Wilhelm: “[o] melhor não se manifesta nas
palavras”43.
Em suma, o sentido não é determinado por prescrições positivas, e nem exprime
uma verdade moral intelectualmente inteligível, mas só pode ser compreendido por
meio da interação entre as disposições mais íntimas da alma e o mundo (aí incluídas
outras almas), e do destino daí resultante. Para vencer a indeterminação original, é
preciso compreender de que maneira as disposições íntimas são capazes de responder
de modo produtivo aos estímulos do meio. Isso não é equacionado de modo simples,
pois o erro faz parte do processo de formação, mas ele só pode ser percebido como tal
em retrospecto, e mesmo então essa percepção normativa é parcial e escapa à essência
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
43
Ibid., p. 472.
44
Ibid., p. 266.
45
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 425.
46
Pedro Spinola Pereira Caldas, O limite do Historismo, cit.
174
como observou Georg Iggers em seu importante livro sobre o tema, a História é a única
fonte real de valor47.
A ideia do desenrolar do processo vital como fonte de valor (por oposição à ideia,
consoante com o racionalismo e com o direito natural, de que o processo é tem seu
valor determinado por critérios a ele preexistentes), ou, mais precisamente, do valor
como elemento a ser determinado a partir da lógica interna ao próprio processo, por
meio de elementos presentes nos acontecimentos da vida, é central à concepção do
romance. “Pobre de toda forma de cultura que destrói os meios mais eficazes de toda
formação e nos indica o fim, ao invés de nos tornar felizes no caminho”, diz Wilhelm
no começo da última parte do livro, onde se leem debates em torno da educação de seu
filho pequeno. E continua, num dos passos do romance onde fica mais evidente a ideia
de que cada vida humana contém, ao menos em potência, uma totalidade: “aqui no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
menino havia um único dado, em cujas faces estavam nitidamente gravados o valor e
o desvalor da natureza humana”48. Ao mesmo tempo em que a busca de um ideal é
central à ideia de ética sugerida, eventos inesperados podem reconfigurar
completamente o significado da trajetória. Na página final do romance, Wilhelm ouve
de um amigo uma alusão bíblica que tem o efeito de uma epígrafe de conclusão: “tu
me lembras Saul, o filho de Kis, que foi à procura das jumentas de seu pai e encontrou
um reino.”49
A importância da noção de que os desenvolvimentos bem-logrados da alma estão
nela de algum modo prefigurados é destacada repetidas vezes no romance, dando
margem a uma concepção de simetria formal do processo existencial, todo perpassado
por jogos ocultos de pergunta e resposta que só se revelam, quando se revelam, no
momento da resposta, levando ainda a todo um repertório rico em analogias musicais.
Essa noção aparece, no princípio, como uma ideia vaga de vocação, uma busca (ao fim
e ao cabo, frustrada) por uma “centelha de naturalidade, verdade e inspiração” 50
inicialmente ligada à obra de arte. A convivência com a natureza é pouco depois
47
Georg Iggers. The German Conception of History. The National Tradition of Historical Thought from
Herder to the present. Middletown, Connecticut: Wesleyan university Press, 1983, p. 36.
48
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 479.
49
Ibid., p. 575.
50
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 89.
175
associada a esse mesmo motivo, quando Wilhelm acaba de partir em sua viagem e
ainda não encontrou a trupe de atores: “Ele atravessava vagarosamente vales e
montanhas com a sensação do prazer supremo. Via pela primeira vez penhascos
escarpados, riachos d’água murmurantes, muralhas de vegetação e abismos profundos,
e, no entanto, seus mais remotos sonhos de infância já haviam pairado sobre regiões
semelhantes.”51 Mais tarde, com a descoberta da obra de Shakespeare, o mesmo motivo
retorna, outra vez ligado à arte, mas agora de forma mais reflexiva, como se Goethe
tivesse cuidadosamente planejado a repetição do mesmo motivo, mas de modo que
ficasse demonstrado como a vivência do período intermediário enriquecera a alma do
protagonista, facultando-lhe um entendimento que antes lhe fora vedado:
Quisera [...] poder revelar-lhe tudo o que se passa agora dentro de mim. Todos os
presságios em relação à humanidade e a seu destino, que me acompanhavam desde
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
51
Ibid., p. 96.
52
Ibid., p. 195.
176
53
Ibid., p. 255.
54
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004. A denominação é citada ao longo de todo o livro, mas há uma seção de capítulo especialmente
dedicada ao pietismo (p. 117-126). Nela, lê-se como a ênfase pietista no sentimento individual da
conexão com Deus em episódios ascéticos, contra teorias da salvação que envolvessem algum tipo de
conhecimento comum previamente dado levam a um estilo de religiosidade intensamente introspectivo.
Desse modo, pode-se notar como a Bildung deriva sua teoria pedagógica em boa medida de um ideal de
aprendizado para o divino.
55
Ibid., p. 350.
177
Qualquer um que já tenha assistido a uma assembleia de homens piedosos, desses que,
longe da igreja, creem edificar de um modo mais puro, cordial e inteligente, poderá fazer
uma ideia da presente cena; recordará como o liturgista sabe adaptar a suas palavras o
verso de um cântico que eleva a alma até onde deseja o orador, de modo que ela possa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
retomar prontamente seu voo, tão logo um outro membro da comunidade acrescente,
com uma outra melodia, o verso de um outro canto, ao qual um terceiro, por sua vez
agregará um terceiro verso, com o que se inspiram na verdade as ideias análogas dos
cantos, de onde provêm os versos, tornando entretanto nova e individual cada passagem,
em virtude da nova combinação, como se tivesse sido criada naquele instante mesmo;
pois, de um círculo conhecido de conhecidas ideias, cânticos e sentenças, nasce, para
aquela comunidade particular, para aquele momento, um todo completo e distinto, cuja
fruição a anima, fortalece e revigora. E assim edificava o ancião seu hóspede,
disseminando nele, com canções e passagens conhecidas e desconhecidas, sentimentos
próximos e distantes, emoções atentas e adormecidas, agradáveis e dolorosas, que, no
estado atual de nosso amigo, era o que se podia esperar de melhor.56
56
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 144-145.
57
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da
História para a vida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003, p. 7-17. Um desenvolvimento sobre a
aplicação dessa força plástica na obra de arte encontra-se na quarta das Considerações Intempestivas (ou
“Extemporâneas”), Wagner em Bayreyth (Rio de Janeiro: Zahar, 2009)
178
“Confissões”: “Tudo o que está fora de nós não é senão um elemento, e [...] também o
que está em nós; mas no fundo de nós mesmos reside essa força criadora que nos
permite criar o que deve ser e que não nos deixa descansar [...] até que tenhamos
representado [...] o que está fora ou dentro de nós”58. Importa destacar aqui que a forma
que o indivíduo assume é ao mesmo tempo destino e dever, articulação tornada clara
pela ressonância religiosa da palavra vocação (Beruf). Aqui convém recorrer
novamente às “Confissões”, pois suas palavras são modelares do que irá se aplicar, de
forma mais ou menos secular, a Wilhelm:
O fato de eu caminhar sempre para frente, nunca para trás, de meus atos serem cada vez
mais semelhantes à ideia que faço da perfeição, de sentir a cada dia mais facilidade em
fazer aquilo que julgo correto, pode-se explicar tudo isso pela natureza humana? [...]
[N]ão. Mal consigo lembrar-me de um mandamento; nada me aparece sob a forma de
uma lei; é um impulso o que me guia e que sempre me conduz para o bem [...].59
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
58
Ibid., p. 390-391.
59
Ibid., p. 404. Note-se como o excerto vem confirmar os apontamentos de Weber sobre o caráter
individual do conhecimento religioso no pietismo (ver acima n. 54).
60
Ibid., p. 506.
61
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 470.
179
“Confissões”, nem de um mandamento divino (ou, pelo menos, de uma vocação a ser
cultivada mediante a uma fé ascética), mas de uma propedêutica da realização do
indivíduo.
Encerrada na ideia de Bildung apresentada nos Anos de aprendizado está também
a noção de que, no desenvolvimento da personalidade, os contatos iniciais com o
mundo exterior formam uma espécie de germe do qual futuras expansões derivam, e
os traços assimilados nessa fase inicial são determinantes para as formas que
eventualmente podem vir a tomar as ações e pensamentos futuros. É o que diz um
estranho que encontra Wilhelm no livro II, e que depois se revela um dos seus
educadores secretos da sociedade da Torre:
homens bons; se seus mestres lhe ensinaram o que primeiro devia saber, para
compreender mais facilmente o resto; se aprendeu aquilo que nunca precisará
desaprender e se seus primeiros atos foram dirigidos de modo a poder no futuro praticar
mais fácil e comodamente o bem, sem ser obrigado a desacostumar-se do que quer que
seja, então esse homem haverá de levar uma vida mais pura, mais perfeita e mais feliz
que um outro que houvesse dissipado na resistência e no erro suas primeiras forças de
juventude.62
62
Ibid., p. 127.
63
Loc. cit., grifo da transcrição.
180
agora vislumbro com mais clareza os meios que me permitirão realizá-los. Tenho visto
mais mundo que tu crês, e dele me tenho servido melhor que tu imaginas.”65 Marcus
Mazzari identifica aqui a passagem mais importante do livro, do ponto de vista do
projeto de formação:
Pois essa longa carta, em que o protagonista explicita suas concepções e metas, pode ser
vista como espécie de programa do “romance de formação”, uma vez que nela se
formulam os motivos fundamentais da Autonomia (formar-se a si mesmo), Totalidade
(formação plena) e, ainda, Harmonia (a “inclinação irresistível” por formação
harmônica). A expansão plena e harmoniosa das potencialidades do herói – artísticas,
intelectuais, mas também físicas [...] – , a realização efetiva de sua totalidade humana,
são projetadas no futuro e sua existência apresenta-se assim como um “estar a caminho”
rumo a uma maestria de vida, que Goethe configura, todavia, menos como uma meta a
ser efetivamente alcançada do que como uma direção a ser seguida.66
64
Louis Dumont, L’idéologie allemande, cit., p. 133-134.
65
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 284.
66
MAZZARI, Marcus Vinicius. Metamorfoses de Wilhelm Meister: O Verde Henrique na tradição do
Bildungsroman. In: Labirintos da aprendizagem: Pacto fáustico, romance de formação e outros temas
de literature comparada. São Paulo: ed. 34, 2010, p. 113.
181
67
Ver Immanuel Kant, Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2010. Louis Dumont identifica a mesma analogia nos escritos de Wilhelm von
Humboldt (L’idéologie allemande, cit., p. 150-152)
68
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 285-286.
69
Essa é a opinião de Dumont, L’idéologie allemande, cit., p. 219.
182
assim, uma vocação – é o que há de mais próximo de uma garantia do melhor destino
possível para a vida. É o que se verifica nas palavras do tio da autora das “Confissões”
quando afirma que “[o] maior mérito do homem consiste [...] em determinar, tanto
quanto possível, as circunstâncias, deixando-se determinar por elas o menos possível”,
compreendendo a edificação do indivíduo à maneira de uma obra de arte. “Todo o ser
do Universo estende-se diante de nós como uma grande pedreira diante do arquiteto,
que só merece esse nome quando, dessa fortuita massa natural, compõe com a máxima
economia, adequação e solidez a imagem primitivamente concebida por seu espírito”70.
Mas essa atividade de auto-edificação por aquilo que Nietzsche chamará de “força
plástica” não é algo que se decide por um capricho do intelecto. A forma é expressão
de dados naturais sobre os quais não se tem controle, como se lê num trecho que
parafraseia as ideias do abade sobre a formação:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Admite-se [...] que se nasça poeta, e o mesmo se admite para todas as artes, porque é
preciso que assim o seja e porque tais efeitos da natureza humana mal podem ser
arremedados; mas, examinando-os atentamente, veremos que toda capacidade, mesmo a
ínfima, nos é inata, e que não existe capacidade indeterminada. Só nossa educação
equívoca, dispersa, torna indecisos os homens; desperta desejos ao invés de animar
impulsos, e ao invés de beneficiar as verdadeiras disposições dirige seus esforços a
objetos que, com muita frequência, não se afirmam com a natureza que por eles se
esforça. Prefiro uma criança, um jovem, que se perde seguindo sua própria estrada,
àqueles outros que caminham direito por uma estrada alheia. Quando os primeiros
encontram, não importa se por si mesmos ou se por uma outra direção, seu verdadeiro
caminho, ou seja, quando estão em harmonia com sua natureza, não o deixarão jamais,
enquanto os outros correm a todo instante o perigo de se livrar do jugo alheio e entregar-
se a uma liberdade incondicional.”71
A Bildung não implica, portanto, uma liberdade incondicional, mas se define pela
realização das verdadeiras disposições da personalidade individual. Trata-se menos de
uma pacificação da personalidade após tais ou quais realizações, mas da superação de
uma postura reativa às tendências do mundo a uma atitude autodeterminada e positiva.
Como percebeu Louis Dumont, não é que ao final do livro Wilhelm esteja exatamente
formado, no sentido de que sua definição estaria esgotada ou pelo menos que sua
imagem estaria estabilizada, mas ele se relaciona positivamente com o mundo e
70
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 390-391.
71
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 495-496, grifos da transcrição.
183
[A]spirando o homem a uma atividade múltipla ou a uma fruição múltipla, tem que ser
também capaz de desenvolver órgãos múltiplos, independentes uns dos outros. Quem
pretende fazer ou fruir tudo ou fruir parte de sua plena humanidade, quem pretende
associar a tal espécie de fruição o que é externo a si mesmo, passará sua vida num esforço
eternamente insatisfeito.73
72
Dumont, L’idéologie Allemande, p. 224-5.
73
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 543.
184
III
[Nota preliminar à análise de Raízes do Brasil: Parece necessário começar com uma
advertência metodológica a parte desta tese que trata do objeto que, se não é exatamente
mais importante do que os demais, acaba tendo um destaque especial na interpretação
da ideia de formação da obra de Sergio Buarque de Holanda. Como muitos
comentadores vêm notando ultimamente, o texto de Raízes do Brasil sofreu, por vários
motivos, alterações significativas em 1948. Em 1956, uma segunda revisão do texto
descaracteriza a própria abertura. Sem qualquer pretensão de esgotar o tema dessas
mudanças, o presente estudo as aborda muito pontualmente, isto é, quando elas se
mostram pertinentes à evolução do problema da forma e da formação na obra de Sergio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Buarque de Holanda. De todo modo, foi sobretudo por causa dessas mudanças no
primeiro parágrafo e de algumas revisões que, sem alterar o espírito dos argumentos,
algumas vezes vão no sentido de atenuar ou até ocultar termos e maneiras de dizer que
denunciam uma análise morfológica da história, que se mostrou mais produtiva a
preferência, na parte desta tese dedicada à análise de Raízes do Brasil, pela primeira
edição. Isso resulta em certa inconveniência para o leitor, já que normalmente o texto
Raízes do Brasil à disposição é aquele que se estabelece a partir da terceira edição
(1956) e, mesmo que agora essa situação esteja agora em alguma medida remediada
por uma edição crítica que coteja as diferentes versões (2016), dificilmente se desfarão
as primeiras impressões de leitura de um livro tão canonizado pela cultura brasileira.
Seria preferível, para facilitar a leitura, que as referências pudessem ser dirigidas à
versão mais acessível do texto, e que anima a memória da maioria dos muitos leitores
que têm em Raízes do Brasil um marco de sua formação e da cultura brasileira. A opção
pelo texto de 1936 se dá sobretudo porque algumas das mudanças, especialmente
aquelas que alteram não tanto terminologia e bibliografia, como vem sendo notado em
estudos recentes, mas o próprio andamento do livro, dificultam a compreensão dos
encadeamentos de ideias que estruturam o ensaio, além de descaracterizarem a fluidez
inigualável da versão de 1936. Esse problema está ligado não tanto aos a esta altura já
185
1. Origens
Para falar de Raízes do Brasil (1936), livro de evolução argumentativa marcada por
transições temáticas e metodológicas nem sempre nitidamente marcadas, é bom
começar por um exame dos trechos mais ostensivamente especulativos, ou seja, todos
aqueles onde, sem nunca se distanciar demais da análise de algum dado concreto –
prática que Sergio Buarque sempre evitou na fase madura de sua reflexão – mas que
deixam mostrar, ainda que de modo antes sugestivo do que por meio de explicações
exaustivas de pressupostos metodológicos, certa ossatura teórica. A página de abertura
é, previsivelmente, um desses trechos:
1
Sobre esse tema, as referências obrigatórias são Um ritmo espontâneo, de João Kennedy Eugênio
(2011,cit.), WAIZBORT, Leopoldo.“O mal-entendido da democracia” e FELDMAN, Luiz. Clássico por
amadurecimento. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015.
186
até à perfeição o tipo de cultura que representamos: o certo é que todo fruto de nosso
trabalho ou de nossa preguiça participa fatalmente de um estilo e de um sistema de
evoluções naturais a outro clima e a outra paisagem.
Assim, antes de investigar até que ponto podemos alimentar no nosso ambiente um tipo
próprio de cultura, cumpriria averiguar até onde representamos nele as formas de vida,
as instituições e a visão de mundo de que somos herdeiros e de que nos orgulhamos.2
Não se pode dizer, pelo menos com base na primeira edição de seu livro de
estreia, salvo pelas considerações sobre política do último capítulo, que Sergio Buarque
não tenha se empenhado em produzir uma argumentação clara. Quem se fiar
atentamente na letra do texto não ficará desamparado, embora a composição do todo
seja certamente algo sincrética e às vezes dificilmente determinável do ponto de vista
das “influências”. Mesmo que as filiações teóricas das formulações possam ser
amplamente discutíveis, o certo é que já aqui se pode perceber, como em todos os
momentos decisivos da argumentação de Raízes do Brasil, aqueles mais sintéticos e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
2
RB, p. 3. Essa abertura é pontualmente alterada na edição de 1948 e amplamente descaracterizada na
de 1956, que traz, salvo por diferenças mito menos decisivas, o mesmo texto das edições posteriores.
Isso é da maior importância, pois é esse texto, e não o de 1936, no qual se baseia a maior parte da fortuna
crítica de Raízes dali até a década de 2010. A partir de 1956, o que se lê é: “A tentativa de implantação
da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente
estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em
consequências. Trazendo de países distantes as nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas
ideias e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda
hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade
de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é
que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução
próprio de outro clima e de outra paisagem. Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar
bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio,
instituições e ideias de que somos herdeiros.” RBC, p. 39. As alterações com relação ao texto de 1936
foram sublinhadas. Note-se ainda a retirada da expressão “bem-sucedido”, substituída por uma
consideração hipotética no parágrafo seguinte (“até que ponto poderá alcançar bom êxito”) e a
eliminação do “orgulho” da herança cultural colonial. As diferenças entre essas aberturas foram
analisadas com maior detalhe por João Cezar de Castro Rocha (O exílio como eixo: bem-sucedidos e
desterrados. Ou: por uma edição crítica de Raízes do Brasil. In: Eugênio; Monteiro. Sérgio Buarque de
Holanda: Perspectivas, 2008) e Luiz Feldman (Clássico por amadurecimento, 2015, cit.)
187
essencial de todas as manifestações, das criações originais como das cousas fabricadas,
é a forma”3. Estamos, sem a menor dúvida, diante de um dos símiles teóricos mais
típicos da tradição da Bildung – não só dela, mas certamente dela também, e com
especial intensidade –, isto é, a analogia vegetal (Cf. supra, “Interlúdio”, p. 154-5)4.
Leia-se novamente o texto acima, a fim de detalhar um pouco melhor como
aparece, de saída, o problema. O que salta aos olhos na primeira frase é a indicação que
o texto dá de sua pretensão a ser um estudo compreensivo da sociedade brasileira. O
termo “compreensão” está ligado a mais de uma possível fonte metodológica – os
exemplos mais destacáveis são, provavelmente, a hermenêutica de Dilthey e a
“sociologia compreensiva” de Max Weber. Deixando de lado esse elemento
possivelmente alusivo, que talvez não leve muito longe na interpretação do texto,
pense-se primeiro no que o termo sugere enquanto lugar-comum argumentativo e sua
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
valência dentro da própria frase onde está lançado. Seria então o caso de perguntar-se,
então, qual o procedimento compreensivo levado a cabo. Sobre a “sociedade
brasileira”, o “fato verdadeiramente fundamental”, aquele do qual se pode supor que
orientará a análise que se seguirá, é o de “constituirmos o único esforço bem-sucedido”,
“em larga escala”, de “transplantação da cultura europeia para uma zona de clima
tropical e subtropical”. Note-se: o “fato fundamental” não é a “cultura europeia”, nem
3
RB, p. 15, 160.
4
São muitos os lugares literários brasileiros de onde Sergio está partindo para centralizar a problemática
do exílio aqui, mas convém notar o paralelo bastante sugestivo que ela encontra nas Considerações de
um apolítico de Thomas Mann. Em primeiro lugar, Mann se apresenta, no capítulo intitulado “Exame
de consciência”, como um “alemão pouco alemão”, chegando mesmo a mencionar sua “ascendência
românica, da América Latina” (p. 68) e com isso invocando seu status meio estrangeiro em “seu” país,
circunstância a que ele atribui também sua vocação de romancista – o romance é, a seu ver, uma forma
de expressão artística pouco alemã. É na tríade Schopenhauer-Wagner-Nietzsche que ele irá encontrar o
seu “patriotismo”. Os três são por ele caracterizados como expressões culturais altamente críticas da
Alemanha, e que representam o espírito nacional por um ponto de vista externo. No caso de Wagner, ele
chega a dizer que o seu germanismo chega às raias do grotesco, pois é algo de “turístico”; como que
produzido “para uma plateia da Entente” comentar “Ah ça, c’est bien allemand par exemple” (o francês
é do original, p. 73; Mann escreve essas palavras em plena Primeira Guerra). Embora essas sejam a seu
ver expressões críticas e um pouco estrangeiras da germanidade, elas demonstram, pelo seu engajamento
interessado com sua matéria, aquilo que “numa linguagem sentimental” chama-se de “amor” (p. 74). A
música de Wagner, o elemento mais poderoso da tríade num plano sentimental, Mann teria descoberto
em país estrangeiro: em Roma (retoma-se aqui, a ideia, já exposta no primeiro capítulo desse livro, de
que a germanidade só se permite atualizar historicamente em contraste com Roma, tomada como cidade-
símbolo do mundo latino, da “civilização” e do cristianismo – como nos famosos casos de Lutero e
Goethe (p. 46). É o próprio Sergio que posteriormente irá declarar que foi em seus “Wanderjahre
alemães” que lhe apareceu com maior clareza aquilo que unia seus compatriotas e os diferenciava do
resto do mundo.
188
algum “Brasil” reificado tal qual “é”, mas o esforço, supostamente bem-sucedido, de
transplantação da dita cultura. O argumento, porém, é cheio de entretons e ressalvas
internas, pois, o que se verá ao longo do mesmo capítulo, é que a tal “cultura europeia”
não é tão europeia assim, constituindo, ela própria um fator de plasticidade. Mas o que
é, nos termos da análise, uma “cultura”? A cultura, planta transplantada em ambiente
novo, ganha algum conteúdo na terceira frase do livro, que que pode ser lida como
paráfrase que aprofunda a ideia de “transplantação”: aquilo que foi trazido de “terras
distantes” foi todo um conjunto de “formas de vida” e “instituições”, além de uma
“visão de mundo”. Tendo se empenhado em manter “tudo isso”, não admira que os
brasileiros sejam ainda uns “desterrados” em sua terra. O significado desse estado de
desterro é parcialmente esclarecido pela frase seguinte, que fecha o parágrafo: as
“obras” que os brasileiros produzem, o enriquecimento de sua humanidade (a sua e não
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
5
Adiante-se que a conclusão deste estudo a esse respeito é negativa – o “tipo próprio” só é realmente
discutido no ultimo capítulo. Cf., neste capítulo, a última seção, “Demônios e possessos”.
6
RB, p. 160.
190
em sua compreensão.
Fato talvez menos lembrado do que deveria, essa inflexão de Sergio Buarque para
uma análise histórica ostensivamente, quase obsessivamente pensada em termos de
formas, talvez não fosse possível sem o cultivo pelo autor, desde a juventude, de uma
sensibilidade educada pela literatura, especialmente pela poesia. Raízes não é menos
um livro de crítico literário do que de “sociólogo” ou “historiador” – lembre-se, aliás,
que seu primeiro emprego acadêmico foi de professor assistente de literatura
comparada na então recém-criada Universidade do Distrito federal, naquele mesmo
ano de 1936, logo após acrescido de outra cadeira de assistente, essa em História
Moderna e Econômica, ambos os postos em assistência a titulares franceses, Henri
Tronchon e Henri Hauser7.
Mas como, diante de um conceito de implicações tão vastas como esse de
“forma”, aproximar-se das manifestações da cultura? Seja por estratégia retórica, seja
por necessidade metodológica, Sergio adota uma abordagem um tanto lateral. Pois,
após os dois parágrafos anteriormente analisados, lê-se, numa formulação um tanto
retorcida, que que “é significativa” a “circunstância” de a “herança” europeia ter sido
recebida “através de uma nação ibérica”. A península é em seguida descrita como um
“território-ponte” pelo qual a Europa “se comunica com os outros mundos”, “zona
7
FURTADO, André Carlos. Das fortunas críticas e apropriações, p. 89, 91.
191
8
RB, p. 4.
9
RB, p. 4.
192
10
RB, p. 4-5.
11
RB, p. 5
193
de ninguém, em que se baste”12, enquanto o “homem cordial”, que aparece uma centena
páginas depois, tem na “vida em sociedade” uma “libertação do pavor que ele sente em
viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da
existência” 13 . Esse contraste aqui realçado não significa, evidentemente, que a
cordialidade não tenha pontos importantes de convergência ou, mais exatamente, linhas
de continuidade histórica, com o personalismo ibérico em sua configuração originária,
peninsular. Seja como for, o “personalismo” tem como correlato a “singular tibieza das
formas de organização, de todas as associações que impliquem solidariedade e
ordenação entre esses povos” – o indivíduo, ao ver-se como totalidade, exclui de seu
horizonte intelectual linhas de racionalização de seu comportamento que o impliquem
como parte de alguma organização mais abrangente, a não ser, lemos logo adiante,
“por uma força exterior respeitável e temida” 14
. A cultura da personalidade é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
marcadamente anárquica. Nela, o valor ordenador da sociedade não chega a ser, talvez,
fruto de um acordo comum, mas um “princípio das competições individuais” que de
certa forma antecipa o igualitarismo da teoria política liberal, mas nada tem a ver com
seu fundamento mercantil. Não se trata de uma competição por valores na produção
econômica, mas por honra e mérito pessoais. Nesse ambiente, a construção de
elementos de organização social não se dá por necessidade de organizar a competição
num ambiente de estabilidade e previsibilidade favorável ao comércio e à indústria,
mas pela urgência em “se refrearem as paixões e opiniões dos homens”, isto é, para
separá-los, e “só raramente” com a “pretensão de se associarem as suas forças”15. Essa
distinção é importante, porque ela supõe que, entre outros povos, ou melhor, na teoria
política desenvolvida nos países que estiveram na dianteira daquilo que Eric
Hobsbawm denominou “dupla revolução” da aurora dos tempos modernos 16 , a
autoridade estatal é pensada como fruto de um acordo comum entre os homens, que
criam, por iniciativa própria, o estado civil, e que essa noção do acordo comum é algo
incompatível com a “cultura da personalidade”.
12
Loc. cit.
13
RB, p. 102.
14
RB, p. 5.
15
RB, p. 6.
16
HOBSBAWM, Eric, A era das revoluções. São Paulo: Paz e terra, 2006.
194
estabelece para as coisas terrenas uma ordem homóloga e dela derivada. É apenas por
causa desse caráter derivativo, e que presume uma inferioridade ontológica do mundo
em relação à Cidade de Deus, que pode haver o estado civil entre os homens. É uma
fonte transcendente, extramundana, que legitima toda dominação neste mundo,
compondo, assim aquela “força exterior respeitável e temida”, uma força divina, a
única capaz de dobrar os homens de uma terra onde “todos são barões” à obediência.
Nesse sentido, era até conveniente, de certo modo, que a ordem hierárquica da teologia
tomista negasse a vida, pois, assim, por meio dessa separação de esferas, a concepção
do indivíduo como totalidade autossuficiente não precisava entrar em contradição com
nenhuma força propriamente terrena – isto é, quando um homem obedece a um
semelhante seu, ele não está obedecendo a uma autoridade que emana de outro homem,
mas apenas a autoridade divina da qual alguém neste mundo há de ser, por
contingência, portador. No plano estritamente humano, é como se permanecesse, no
personalismo ibérico, uma reserva de igualdade, ao menos teoricamente. É esse o
“paradoxo singular” que erigia em “princípio formador da sociedade” uma “força
inimiga [...] do mundo e da vida”18. É preciso ressaltar que essa separação de esferas é
17
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. As classificações de Plínio: uma análise do pensamento de Plínio
Salgado entre In: Zigue-zague. Ensaios reunidos. São Paulo: Unifesp. 2019, p. 88.
18
RB, p. 8-9.
195
uma forma mental que habilita esse “princípio formador da sociedade” e não
corresponde, absolutamente, a uma descrição supostamente objetiva do ponto de vista
do historiador sobre alguma realidade objetiva externa a essa forma psicológica. É por
isso que, quando Sergio escreve que “o trabalho dos pensadores, dos grandes
construtores de sistemas, não significava outra coisa senão o empenho em disfarçar,
quanto possível, esse antagonismo entre o Espírito e a Vida”19, observação emendada
por uma citação da Suma teológica, ele está descrevendo, não tanto o sistema tomista,
mas aquilo que ele acredita ser o ânimo que preside a sua elaboração 20 , mas não
endossando, ele próprio, necessariamente, o antagonismo entre “Espírito” e “Vida”21.
Se esse antagonismo era “real” ou não, pouco importa, mas a posição de Sergio parece
ser que a convicção de que a “vida é melancólica”, depreendida da teologia agostiniana,
só podia ser “disfarçada”, mas não efetivamente superada pela escolástica. Esse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
19
RB, p. 9.
20
Afinal, quando Tomás de Aquino diz que a “glória”, aliás, a “graça”, pois Sergio se confunde na
transcrição, “não tolhe mas aperfeiçoa a natureza”, ele estaria justamente tentando “disfarçar” esse
“antagonismo”.
21
É por isso que é um pouco duvidosa a atribuição inequívoca a Raízes do Brasil de uma supremacia
absorvente do vitalismo de Ludwig Klages sobre a concepção de “vida” ali levada a cabo.
22
RB, p. 9.
23
RB, p. 8.
196
24
Werner Sombart, Le bourgeois, cit., p. 15, 24-5.
25
RB, p. 9.
197
trata. Uma possível explicação para essa instabilidade pode ser extraída exatamente
pela transição temática operada entre as duas aparições da “racionalidade” no texto.
Perceba-se como a primeira “razão” é julgada a partir do ponto de vista
psicológico do indivíduo considerando sua própria situação diante da autoridade que
tem a pretensão de dobrar sua vontade ao peso do privilégio, enquanto que a
“racionalização da vida” é uma descrição extrínseca sobre uma forma organizacional
imperante num meio social mais amplo. A transição temática entre a primeira e a
segunda “razões”, por sua vez, contém uma consideração sobre o trabalho. Entre os
povos hispânicos (Portugal incluído) admitia-se que os “homens da linhagem dos
Filhos d’algo” praticassem “todas as profissões”, sem que perdessem as “honras de
nobreza”, desde que não vivessem de “trabalhos mecânicos”. Assim, a “realidade”
econômica podia bem ser “burguesa” avant la lettre, mas a forma mentis disseminada
em todo o corpo social ainda comportava uma “ética de fidalgos”27. E foi justamente
essa forma de pensar “que se tornou o maior óbice, entre eles, do espírito de
organização espontânea” que, favorecidas por uma ética do trabalho, “racionalizavam”
a vida, exigindo, portanto, que a organização política fosse “artificialmente mantida
por uma força exterior, que encontrou uma das formas características nas ditaduras
26
RB, p. 10-11.
27
RB, p. 10-11.
198
militares”28 – como mostra o caso das ditaduras militares, o tipo de ordem política que
termina por prevalecer não é, note-se, uma organização estratificada à maneira do
Antigo Regime, mas numa autoridade inteiramente pessoal e mantida à força, de forma
“exterior”.
A origem dessa incapacidade de geração espontânea de princípios organizadores
entre os ibéricos estaria na “invencível antipatia que sempre lhes inspirou toda moral
fundada principalmente no culto ao trabalho”. Segue, então, o momento mais decisivo
da caracterização da psicologia ibérica, do ponto de vista da forma, pois aqui fica
especialmente evidente o estilo de argumentativo levado a cabo no livro, marcado por
transições quase insensíveis, mas que elevam cada etapa a um novo patamar de
complexidade – aqui se pode vislumbrar não somente certos “conteúdos” possíveis
para essa noção, mas sobretudo como se pode dar a evolução das formas em contextos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
28
RB, p. 12.
199
entre espanhóis e portugueses, essa moral do trabalho, foi sempre fruto exótico. Não
admira, assim, que fossem precárias, nessa gente, as ideias de solidariedade.
A bem dizer, essa solidariedade entre eles existe somente onde há vinculação de
sentimentos mais que de interesse, – no recinto doméstico ou entre os amigos. Círculos
forçosamente restritos, particularistas e antes inimigos do que favorecedores das
associações estabelecidas sobre plano extenso, gremial ou nacional.29
29
RB, p. 12-14.
30
O estoicismo era a “filosofia nacional dos espanhóis desde o tempo de Sêneca”, RB, p. 5.
31
Fenomenologia do espírito, §24, p. 35-6. “[O] saber só é efetivo – e só pode ser exposto – como
ciência ou como sistema. […][U]ma assim chamada proposição fundamental (ou princípio) da filosofia,
200
se é verdadeira, já por isso é também falsa [...]. A atualização [do saber] pode assim ser igualmente
tomada como refutação do que constitui o fundamento do sistema; porém, é mais correto considera-la
como um indício de que o fundamento ou princípio do sistema é de fato só o seu começo.”
32
RB, p. 66.
201
33
Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., §§195-6, p. 149-150.
34
RB, p. 114.
35
RB, p. 3.
36
Aqui há uma possível aproximação com o diagnóstico que Joaquim Nabuco sobre a intelectualidade
brasileira. Em sua autobiografia publicada em 1900, Nabuco diz, numa passagem antológica, que no
Novo mundo o “espírito humano” “se sente tão longe de suas reminiscências, das suas associações de
ideias, como se o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da lembrança e ele devesse
balbuciar de novo, soletrar outra vez, como criança, tudo o que aprendeu sob o céu da Ática…”.
202
permanecerá até o final de sua vida, altamente cético das ideologias do progresso e de
toda teoria da história orientada por uma escala de valores normativa. Não se propõe
aqui tanto uma leitura estritamente hegeliana, mas sim que o argumento de Raízes do
Brasil apresenta um estilo de pensamento no qual Hegel cumpre um papel importante37.
Sem ser talvez, propriamente, um “livro hegeliano”, Raízes do Brasil realiza uma
transposição para o contexto brasileiro de um universo intelectual mais amplo e variado
– a Bildung. O ingrediente hegeliano não é exatamente surpreendente, já que Raízes
trata ostensivamente da formação brasileira e Hegel é, junto de Goethe, o grande
pensador da formação, paradigma de pensamento que não implica tanto conteúdos
NABUCO, Joaquim. Minha formação. São Paulo: 34, 2012, p. 71 É muito pouco provável que Sergio
não tivesse essa passagem em mente quando formulou sua lapidar expressão sobre sermos “ainda uns
desterrados em nossa própria terra”. Noutro passo, menos conhecido, desse livro, Nabuco critica os
jovens artistas brasileiros, que insistem em trabalhar sobre “material pouco consistente” (sua própria
realidade) “e assim a produção é quase toda fácil, improvisada, sem trabalho anterior, sem investigação,
sem esforço, sem tempo, sem nenhum elemento que revele continuidade, ambição.” A solução seria um
maior investimento das energias da intelectualidade – numa espécie de ascese – em estudos históricos.
Nabuco sabe que isso é o mesmo que “aconselhar-lhes a miséria”; contudo, completa Nabuco, “as leis
da inteligência são inflexíveis e a produção do espírito que não se alimenta senão de sua própria
imaginação, tem que ser cada dia mais frívola e sem valor”. Ibid., p. 98. Parece que, também para
Nabuco, o trabalho formava.
37
A presença hegeliana não é, alias, sinal de algum arcaísmo na reflexão de Raízes do Brasil. Georg
Lukács relembra em prefácio de 1962 à sua Teoria do romance que aquele livro publicado pela primeira
vez em 1916 fazia parte de um “revival hegeliano” no pensamento de língua alemã iniciado nos anos
anteriores à I Guerra Mundial. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: 34; Ed. Duas Cidades,
2009, p. 11-15.
203
específicos quanto aquela forma de pensar onde, sem deixar de lado a razão, é preciso
pensar que as coisas são na apenas medida em que estão se tornando algo diferente,
sem deixar de serem as mesmas, e onde o verdadeiro é o todo. Não a minúscula
semente, não a alta e frondosa árvore, não essa ou aquela fase – na consciência, não
essa ou aquela disposição de pensamento – mas a totalidade da vida que se desdobra
no tempo. Essa lição, o “historismo” talvez não precisasse de Hegel para aprender,
visto que já desde Herder se pode identificar um pensamento histórico atento à
evolução das disposições mentais entre as épocas, mas talvez somente na
Fenomenologia do espírito os potenciais dessa descoberta são aproveitados até suas
consequências mais fecundas.
Assim, acompanhando Hegel, Raízes identifica nas diferentes situações
existenciais, historicamente diferenciadas, modos diferentes de interação com o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
38
MANNHEIM, Karl. On the interpretarion of Weltanschauung. In: Essays on the Sociology of
Knowledge. Londres: Routledge, 1959, p. 34. Não se deve esquecer que Mannheim assina o verbete
“Wissensoziologie” [Sociologia do conhecimento] do Handwörterbuch der Soziologie de Alfred
Vierkandt (1931), do qual Raízes do Brasil cita três verbetes (“Ländliche Siedlungen” [Assentamentos
rurais], de Ferdinand Enke (p. 48), Kultursoziologie des Mittelalters [Sociologia da cultura medieval],
de Alfred V. Martin (p. 107) e “Revolution” de Theodor Geiger, (p. 136). O verbete de Mannheim é
reproduzido como adendo às edições inglesas de Ideologia e Utopia.
204
39
Cf. Fenomenologia do espírito, §26, p. 37-8. “O puro reconhecer-se a si mesmo no absoluto ser-outro,
esse éter como tal, é o fundamento e o solo da ciência, O começo da ciência faz a pressuposição ou
exigência de que a consciência se encontre nesse elemento. [...] Para a ciência, o ponto de vista da
consciência – saber das coisas objetivas em oposição a si mesma, e a si mesma em oposição a elas – vale
como o Outro: esse Outro em que a consciência se sabe junto a si mesma, antes como perda de espírito.”
205
que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a negação e a renúncia a
essa mesma personalidade me vista a um bem maior”40 – bem maior e não comum ou
público, ideia que ganha expressão nas ditaduras e no Santo Ofício, e que, de modo
aparentemente paradoxal, “constituem formas tão típicas” do caráter ibérico como “a
inclinação para a anarquia e para a desordem”, não existindo “outra forma de disciplina
concebível" que não a “excessiva centralização” e a “obediência cega”, essa que aliás
difere do “ideal germânico e feudal da lealdade”.
Não se imagine, porém, como seria de esperar, que essa lógica seja inteiramente
irracional, pois há um estilo de racionalização próprio a ela, apenas os seus portadores
a exercem, esses sim, por meio de mecanismos legitimadores estranhos à vida, e nela
imprimem o selo de uma ordem ainda mais puramente racional do que aquela da
racionalidade espontânea que viceja das sociedades “trabalhadoras” da Europa central.
A ausência de racionalização numa esfera acaba como que requisitando uma
compensação que lhe sirva de contrapeso, no caso, um contrapeso divino. Pois foram
os jesuítas que representaram, “melhor do que ninguém, esse princípio da disciplina
pela obediência”, e disso deixaram “um exemplo memorável com as suas antigas
reduções”. E Sergio Buarque conclui seu raciocínio com uma passagem realmente
espantosa: “Nenhum ditador moderno, nenhum teórico do comunismo ou do Estado
40
RB, p. 14.
206
depreender dos dois capítulos finais, Sergio se refere aqui sobretudo ao liberalismo –
ou então “criar, por conta própria, um substitutivo adequado, capaz de superar os
efeitos de nosso natural inquieto e desordenado” 42 . As razões do fracasso dessas
tentativas são então esclarecidas de forma excepcionalmente teórica no restante do
parágrafo:
41
RB, p. 14-15.
42
RB, p. 15. O diagnóstico é bem parecido com o de Plínio Salgado, embora as consequências dele
extraídas sejam bem diversas, como se verá adiante. Cf. Ricardo Benzaquen de Araújo, “As
classificações de Plínio”, cit.
207
43
Sobre a presença recalcada da ética do trabalho nas análises de Sergio Buarque sobre a cultura
brasileira há a tese, infelizmente subvalorizada na fortuna crítica, de Luiz Fernando Pereira das Neves
Franco, Defeito mecânico: Mito e trabalho no paraíso de Sergio Buarque de Holanda. Tese de doutorado.
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005. Ver
especialmente quarto capítulo, que tem o mesmo título da tese.
208
desdenhoso das invenções humanas. Querer ignorar esse mundo será renunciar a nosso
próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do refluxo, por um compasso mecânico e uma
harmonia falsa. Já temos visto que o Estado, criatura espiritual, opõe-se à ordem natural
e a transcende. Mas também é verdade que essa oposição deve resolver-se em um
contraponto para que o quadro social seja coerente consigo. Há uma única economia
possível e superior aos nossos cálculos e imaginações para compor um todo perfeito de
partes tão antagônicas. O espírito não é uma força normativa, salvo onde pode servir à
vida social e onde lhe corresponde. As formas exteriores da sociedade devem ser como
um contorno congênito a ela e dela inseparável: emergem continuamente das suas
necessidades específicas e jamais de escolhas caprichosas. Há, porém, um demônio
pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos olhos essas verdades
singelas. Inspirado por ele, os homens se veem diversos do que são e criam novas
preferencias e repugnâncias. É raro que sejam das boas.44
ajuste entre a forma institucional e os “quadros de vida”. O que aparece aqui, no fecho
do livro, mas não na p. 15, é a ideia de que há “formas” exteriores a uma “essência
íntima” da sociedade, e que a atualização, ou a “realização completa” dessas formas há
de se dar “em contraponto” – ideia frequentemente interpretada erroneamente como
“contrapeso” ou alguma forma compensação. Como percebeu Roberto Vecchi, em
apontamento depois reaproveitado por Rogério Schlegel, a imagem sugere, em
primeiro lugar, “linhas musicais independentes, mas em harmonia, como a partitura de
diferentes instrumentos em uma orquestra”45. Assim, o problema de uma ordem estatal
não está em ser “espiritual” e, nesse sentido, “negadora da vida”, como pode sugerir
uma leitura apressada, mas sim que essa ordem procure reproduzir uma “harmonia
falsa”, isto é, que não corresponda ao “ritmo espontâneo” da sociedade. O espírito pode
ser uma “força normativa”, desde que sirva e corresponda à vida social. Esse não é o
caso do liberalismo no Brasil, como se pode perceber nas duras críticas feitas a essa
ideologia em Raízes do Brasil ao longo dos dois últimos capítulos, assim como nesse
parágrafo conclusivo. Esse é ainda complementado com a ideia de que o liberalismo
44
RB, p. 160-1.
45
Roberto Vecchi, “Nossa Revolução: Atlas intersticial do tempo do fim”, cit., p. 279; SCHLEGEL,
Rogerio. Raízes do Brasil, 1936: O estatismo orgânico como contribuição original. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, v. 32, n. 93, fev 2017, epub,
209
ponto não se altera muito até meados do século XIX, de uma concepção bem definida
de sociedade, mas somente aquele individualismo da “sobranceria” e a “ética de
fidalgos” gerados na Península.
É oportuna, neste momento, uma nota sobre possíveis fontes intelectuais para da
noção orgânica e morfológica de cultura aqui levada adiante. É verdade que Sergio
ficou muito impressionado com a teoria morfológica da história de Oswald Spengler.
Recentemente, Sergio da Mata chamou atenção para a presença, em Raízes do Brasil,
de citações a Oswald Spengler e Kurt Breysig, ambos proponentes de teorias vitalistas
e morfológicas da História46. Realmente, essas passagens balizares de Raízes do Brasil
46
Ver MATA, Sergio da. Tentativas de desmitologia: A revolução conservadora em Raízes do Brasil.
Revista Brasileira de História, v. 36 n. 73, 2016, p.63-87. O artigo, de escrita e argumentação
extremamente persuasivas, parece, entretanto, excessivamente empenhado em estabelecer a supremacia
de Spengler no quadro teórico do livro, ao mesmo tempo em que procura deflacionar a importância de
Weber. Não se pode descartar peremptoriamente a hipótese desse texto, mas ela se sustenta na construção
de uma “revolução conservadora” que talvez não tivesse, para Sergio Buarque, as mesmas univocidade
e homogeneidade com que a distância do tempo e a reconstrução de comentadores a dotou. É curiosa a
evolução da leitura de Raízes do Brasil por Sergio da Mata, que vale comentar de passagem para mostrar
como o problema da filiação teórica do livro não é facilmente resolvido mesmo pelos comentadores mais
experientes e argutos. Em artigo anterior ao citado, diz-se de certo trecho de Raízes do Brasil que
“poderia ter sido assinado pelo próprio Weber, caso lhe fosse dado conhecer a realidade brasileira”,
ainda que, no juízo do autor, a fortuna crítica tenha visto no livro “mais Weber do que foi efetivamente
o caso”. MATA, Sergio da. Weberianismo tropical: Caminhos e fronteiras da recepção da obra de Max
Weber no Brasil. R. IGHB, n. 174, v. 460 jul/set 2013, p.83. Posteriormente, o mesmo autor parece
chegar a uma solução mais sintética, afirmando que Raízes é um livro de estrutura “polinucleada” e que
“de nada que Sergio Buarque tenha escrito pode-se dizer que tenha sofrido influência preponderante de
um autor ou de uma teoria social”, embora persista filiando o livro a uma matriz “antiliberal”. MATA,
210
Sergio da. Relendo os clássicos em época de crise: Raízes do Brasil, Os donos do poder e as anomalias
da consciência histórica brasileira. Cadernos da escola do legislativo, v. 19, n. 32, jul/dez 2017, p. 16,
26.
47
Lebensbild ocorre apenas uma vez no primeiro volume Decadência do Ocidente (p. 551; no caso,
Lebensbildern), em passagem onde Spengler afirma que o “cuidado” [Sorge], ou seja, um sentimento do
tempo que busca o passado histórico com interesse e identifica no futuro uma tarefa. Essa noção
teleológica e fatalista do tempo deveria culminar num “terceiro império” (dritte Reich). A mesma palavra
ocorre duas vezes no segundo volume, em passagens menos decisivas (p. 821, 836). Weltbild, em
compensação, é muito mais abundante. A paginação se refere à edição alemã de 1972. SPENGLER,
Owsald. Untergang des Abendlandes. Umrisse einer Morphologie der Weltgeschichte. 2 Bde. Munique:
211
de Raízes do Brasil – em especial, a ideia de um futuro aberto, que contraria sua rígida
teoria da História .
A ideia de uma interpretação morfológica da História e do social é também
própria da filosofia social de Georg Simmel, que se faz presente no segundo capítulo
com a figura do “aventureiro”. Também no pensamento simmeliano cumprem papel
preponderante os termos alma (Seele) e forma (Form) – mas não Weltbild, que não é
um termo típico do vocabulário simmeliano e costuma denotar especificamente a visão
de mundo de algum pensador individual50. Uma linguagem similar, que conjuga as
noções de forma e vida, aparece igualmente nos escritos do jovem Georg Lukács,
especialmente A alma e as formas e a Teoria do romance. É possível, embora não certo,
que Sergio Buarque tivesse lido alguma dessas obras, tendo em vista sua admiração
Deutscher Taschenbuch Verlag, 1972. Weltbild é igualmente frequente e decisivo em outra referência
vitalista de Raízes do Brasil, O Espírito como antagonista da alma de Ludwig Klages; no mesmo livro,
Lebensbild aparece apenas uma vez (em 1477 páginas), no capítulo sobre a “imagem de mundo
pelagiana” [Das Weltbild des Pelasgertums] como “quadro de vida originário” [ursprüngliches
Lebensbildes]. KLAGES, Ludwig. Der Geist als Widersacher der Seele. Bonn: Bouvier Verlag, 1982,
p. 1360.
48
RB, p. 160.
49
Cf. SPENGLER, Oswald. Decline of the West. Form and actuality. Nova York: Alfred Knopf, 1926,
p. 3-50.
50
Por exemplo, no “excurso” ao primeiro capítulo da Sociologia, “das Kantische Weltbild” [a imagem
de mundo kantiana; trad. fr. “l’image kantienne du monde”]. SIMMEL, Georg. Sociologie. Études sur
les formes de la siocialisation. Paris: PUF, 2013, p. 63.
212
Por outro lado, não há como deixar de notar, nessas mesmas passagens, de modo
mais geral, aquilo que Carl Schmitt considera, em seu livro sobre o Romantismo
político, o núcleo formal de toda teoria política conservadora – que surge, na opinião
do jurista, com Burke, Bonald e Maistre, na esteira da reação à Revolução Francesa –
isto é, a crença em que as instituições políticas são expressão da realidade social e
cultural e de dinâmicas já existentes, e que toda tentativa sistemática, “geométrica” de
tentar conformar a realidade a princípios positivos sem valência corrente, “orgânica”,
há de fracassar 54 . Schmitt repete, quase obsessivamente, nas suas de críticas ao
liberalismo e ao romantismo – além da já citada, também se encontram formulações no
mesmo espírito na Teologia política e no Conceito do político, (esse diretamente
referido em Raízes) – que o Estado e sua organização precisam expressar uma decisão
51
Considérations d’un apolitique, p.94. Mann se refere ao ensaio “Burguesia e l’art pour l’art: Theodor
Storm”, no qual é discutida a relação da burguesia alemã com a arte. Cf. LUKÁCS, Georg. A alma e as
formas. Belo Horizonte, Autêntica, 2015, p. 99-128. Note-se, considerando o problema anteriormente
discutido dos conceitos de “burguês” e “burguesia” em alemão, que o título original é, de par com a
distinção anteriormente assinalada entre Bürger e Bourgeois, Bürgerlichkeit, e não Bourgeoisie – e nem
Bürgertum, que denominaria a classe burguesa. O que Lukács está discutindo neste texto, mais
precisamente, é a condição burguesa (da classe média alemã) como forma de vida e as formas artísticas
correspondentes, e não uma “classe burguesa” reificada como sujeito da criação artística. Bürgerlichkeit
é também o título do capítulo das Considerações de Mann onde aparece a referência a Lukács, que a
tradução francesa consultada verte por “bourgeoisisme”.
52
Ver MATA, Sergio da. Tentativas de desmitologia, cit.
53
RB, p. 114.
54
Carl Schmitt, Political Romanticism, cit., p. 109-115.
213
em favor de uma forma existencial e contra algum inimigo; essa decisão se baseia na
avaliação de que o inimigo é uma ameaça à forma de vida da comunidade assim
definida55 . Sem essa distinção, não há uma comunidade política realmente forte. A
noção da península Ibérica como uma cultura indecisa entre a Europa e a África até a
época da expansão marítima talvez aponte para essa distinção fundamental, assim
como toda a preocupação de Raízes com a inconsistência da ideologia liberal, que, ao
não “decidir”, acabou simplesmente destruindo a forma antiga de dominação sem nada
pôr em seu lugar, no século XIX. Mas nada há no texto que autorize inequivocamente
uma identificação positiva de Sergio com o autoritarismo apregoado por Schmitt.
Estranho, além disso, é que nada, ou muito pouco, em Raízes ou em outros escritos de
Sergio, nos permite entrever qual seria o conteúdo desse conservadorismo básico.
Certamente não seria o liberalismo, nem algum modernismo reacionário. Talvez Sergio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
acreditasse ser possível uma posição política organicista à esquerda, ou pelo menos
vagamente progressista. Parece, na verdade, que sua ideia de uma estrutura política
orgânica era em grande medida indiferente a rótulos políticos típicos da era liberal, e
que ele não estava tão interessado assim no conteúdo das soluções ao impasse político
entre liberalismo e autoritarismo, mas sobretudo na garantia de que uma forma própria
e nacional de cultura emergisse. Mesmo admitindo que essa forma ainda não estava à
disposição, Sergio parece querer antes de mais nada convidar, com seu livro, os
intelectuais e políticos ao pensamento, a um pensamento verdadeiramente original, mas
ao mesmo tempo ajustável ao “natural inquieto e desordenado” e o “ritmo espontâneo”
do povo brasileiro. Nesse sentido, Raízes do Brasil não é tanto um livro político, mas
uma proposta pedagógica para o desenvolvimento de elementos para uma forma de
organização que assegurasse uma transição relativamente pacífica para o mundo
moderno. O certo é que, ao menos formalmente, há, inegavelmente, um fundo
conservador nessa proposta. Nisso, Sergio repete, de fato, o tipo de disposição política
de alguns dos grandes pensadores da Bildung. Engana-se, porém, quem procure extrair
55
Sobre a distinção amigo-inimigo, v. SCHMITT, Carl, The concept of the political, esp. cap. 2, p. 25-
7; sobre a fundação de toda comunidade política soberana na capacidade de tomar a “decisão” sobre o
conteúdo dessa distinção e sobre a declaração de guerra, v. cap. 3 da mesma obra, p. 27-37, e, do mesmo
autor, Political theology, esp. cap. 2, p. 16-35. Lapidar, nesse sentido, é também a frase de abertura da
Teologia política: “Soberano é aquele que decide sobre a exceção” (Ibid., p. 5).
214
de Raízes do Brasil uma teoria orgânica do Estado, imaginando que o autor tivesse a
intenção de “insinuar” uma base para um desenvolvimento imediatamente posterior a
seu livro. Apesar da sombria presença de Carl Schmitt em momentos decisivos da
argumentação do livro e de outros indícios de que ele teria, no mínimo, subestimado
seriamente os horrores de que era capaz o fascismo europeu56, a reação reticente aos
pensadores políticos autoritários que aproveitaram Raízes do Brasil para legitimar o
Estado Novo, extraindo do livro uma teoria do “Estado orgânico”, junto a seus esforços
por retirar do livro indícios que sustentassem semelhantes conclusões, parecem indicar
na verdade que ele alimentava, às vésperas do Estado Novo, uma ingênua fé na
possibilidade de que seu livro não seria aproveitado por nenhuma corrente política já
articulada, ou então, que o Brasil seria capaz de gerar alguma “terceira via” original e
não autoritária ao fascismo e ao liberalismo57. Nesse sentido, a leitura que realmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
56
Há ampla evidência disso. Uma investigação sistemática, embora um pouco parcial, é a de Sergio da
Mata em “Tentativas de desmitologia” (2016, cit.). Da Mata não chega a se debruçar sobre os dois
exemplos mais preocupantes. Uma resenha bastante elogiosa do Conceito do político de Carl Schmitt
(RSBH, p. 298-301, texto originalmente publicado na Folha da Manhã, 18 jun 1935) onde o “sábio
professor da universidade de Bonn” é saudado como um desmistificador do “desconhecimento
lamentável do fenômeno político” (p. 300) pelo liberalismo. Ainda mais desconcertante é o que se lê na
resenha do Mito do século XX de Alfred Rosenberg (EC, I, p. 55-8, texto originalmente publicado na
Folha da Manhã, 19 dez 1934), esse um inequívoco ideólogo do nazismo. Uma leitura cuidadosa desse
texto que a resenha, que elogia a “furiosa aplicação” do autor, revela um distanciamento quase
etnográfico diante do pensamento nazista que, em retrospecto, é, no mínimo, censurável: “Seria vão
destacar tudo quanto nos pode oferecer de pitoresco ou de extravagante o livro do famoso teórico do
nacional-socialismo, ou tentar controlar as suas opiniões científicas frequentemente falsas ou duvidosas.
Porque a verdade é que sua obra não deve ser encarada apenas como repositório de opiniões individuais,
mas antes de tudo como a expressão autorizada de um movimento que empolgou e dominou toda uma
grande nação” (p. 58). Sergio nunca dá, porém qualquer indicação de simpatia positiva pelo nazismo.
Entre os dois textos citados, ele publicou na mesma Folha da Manhã (17 mar 1935, reimpresso em
RSBH, p. 294-7) o texto sobre Thomas Mann, ao final do qual se lê que “recentemente assistimos à sua
luta heroica contra o movumento político que ia triunfar em seu país, luta que o levou a sofrer todos os
vexames e finalmente o exílio” (p. 297). Reconhecendo o “heroísmo” de Mann, Sergio Buarque nem
por isso parecia ter a disposição de denunciar inequivocamente seus inimigos.
57
Para as apropriações de Raízes por intelectuais autoritários, ver Feldman, Clássico por
amadurecimento (cit.), especialmente o capítulo “Raízes do Estado Novo” e Schlegel, cit. Para o
“ocultamento” do organicismo de 1936 nas revisões, ver, além dos dois trabalhos já citados, Eugênio
(2011).
215
Talvez essa postura possa ser mais bem compreendida à luz de uma observação
de Georg Lukács sobre o humanismo clássico alemão. O crítico húngaro notava que a
situação periférica da Alemanha permitiu aos artistas e pensadores uma posição
observadora inicialmente entusiasmada, que depois seria substituída por um ceticismo
quanto ao processo revolucionário francês (especialmente em sua fase jacobina),
mesmo reconhecendo que o mundo burguês e a democracia que despontavam eram
inevitáveis. No plano das formas artísticas, isso se desdobrava numa problemática da
qual não é difícil reconhecer ecos em Raízes, isto é, um privilégio da adequação das
formas a critérios de harmonia e compatibilidade morfológica sobre juízos de valor –
posição que, naturalmente, era a mais conveniente para a elite de letrados que
protagonizou o humanismo clássico alemão e, no caso de Humboldt, a construção do
Estado prussiano.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
[Na primeira metade do século XIX, a] mudança da situação mundial obriga a recolocar
em questão os problemas da forma literária. Mas por ocasião de semelhantes “tournants”,
semelhantes enriquecimentos do conteúdo social, nasce sempre para a arte o perigo de
uma dissolução das formas. A realização estética específica de Goethe e Schiller é
justamente a de ter assimilado a riqueza do novo conteúdo, a de ter exprimido seu
movimento, conservando, não obstante, a pureza clássica das formas, e assegurando
mesmo o seu progresso.58
Para a análise histórica das influências que podem transformar os modos de vida de uma
sociedade é preciso nunca perder de vista a presença, no interior do corpo social, de
58
LUKÁCS, Georg. O Humanismo Clássico Alemão: Goethe e Schiller. In: Ensaios sobre literatura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 183.
216
2. Natureza e Arte
59
HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p.
67. Como a primeira parte do livro é a reprodução, com poucas alterações, de um texto publicado nos
anais do Museu Paulista em 1949 intitulado “Índios e mamelucos na expansão paulista”, é possível que
o texto já estivesse redigido a essa época. A crise sanitária impediu que, até o momento da revisão do
presente estudo, um exemplar dessa obra pudesse ser consultado para averiguar esta informação. De
todo modo, o certo é que Sergio Buarque considerava essa formulação uma expressão adequada de seu
pensamento ainda naquela época.
217
60
RB, p. 66.
61
RB, p. 36.
62
RB, p. 25.
63
RB, p. 20.
64
RB, p. 19.
65
O “naturalismo” português e sua insuficiência nos tempos modernos, na opinião de Sergio Buarque,
foram percebidos pela primeira vez, salvo engano, por Jacques Leenhardt. Nesse mesmo texto,
Leenhardt atribui a análise da mentalidade portuguesa em Raízes a Werner Sombart, autor relativamente
pouco discutido na fortuna crítica de Raízes. LEENHARDT, Jacques. Frente ao presente do passado: as
218
sentido aqui compreendido, um papel quase nulo”, pois a “época predispunha aos
gestos e às façanhas audaciosas [...] e não foi acaso o fato de se terem encontrado neste
continente, empenhadas nessa obra, justamente as nações onde o tipo do trabalhador
[...] encontrou ambiente menos propício” 67 . É assim que se dividem as principais
nações colonizadoras da Europa em dois grupos, cuja inclinação para cada tipo decide
a sorte de sua empresa colonial: trabalhadores eram os holandeses e franceses, que
fracassaram, ao menos em comparação com seus concorrentes aventureiros ingleses,
portugueses e espanhóis.
É só depois de traçada essa linha inicial que Raízes passa à comparação entre os
diferentes empreendimentos colonizadores, tendo em mente a melhor especificação do
tipo português, comparação que, no caso espanhol, só será de fato desenvolvida
inteiramente no quarto capítulo. O bom entendimento da noção de “forma” cultural
levado a cabo, bem como toda a teoria social e histórica implicadas, fica bem mais
claro, se isolarmos cada uma das unidades que compõem o procedimento contrastivo
que, em Raízes do Brasil, serve de base à avaliação do desempenho dos
empreendimentos colonizadores. Esse isolamento realça alguns elementos teóricos que
raízes portuguesas do Brasil. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um historiador nas fronteiras, cit., p.89-
92.
66
RB, p. 20.
67
RB, p. 22.
219
Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem compensação
próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo, evidentemente, um estímulo
às ações aventurosas, não deixa de constituir, com notável frequência, o aspecto negativo
do ânimo que gera as grandes empresas, como explicar, sem isso, que os povos ibéricos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens materiais em outros continentes? “Um
português – dizia o viajante Murphy, em seu livro “Travels in Portugal in the years 1789
and 1790” – “pode fretar um navio com menos dificuldade do que lhe é preciso para
dirigir seu cavalo de Lisboa ao Porto”. E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos
honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica do povo de
nossa erra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura? [...]
Não raro nossa capacidade de ação esgota-se nessa procura incessante, sem que a
neutralize uma violência vinda de fora, uma reação mais poderosa; é um esforço que se
desencaminha mesmo sem encontrar resistência, que se aniquila no auge da força e que
se compromete sem motivo patente.68
68
RB, p. 23-4.
69
RB, p. 24.
220
Não é certo que a forma particular assumida pelo grande domínio agrícola fosse uma
espécie de manipulação original, fruto de uma vontade criadora e um pouco arbitrária.
A verdade é que ela nos veio pronta e acabada do Reino. Aqui apenas se apurou devido
70
V., esp. o livro “O pássaro e a sombra” em HGCB, t, 2, v 7.
71
RB, p. 26-7.
221
requinte, que [...] a gente de tratamento só consumia farinha de mandioca fresca, feita
no dia”, também passaram a dormir em redes, beber fumo; venciam os sertões incultos
navegando em canoas, e assim por diante. O mais importante, talvez, é o que há de
mais sinistro nisso tudo, isto é, na ausência de disposição para o tipo de lavoura que se
iria praticar no trópico, os portugueses se valeram daquilo de que já vinham lançando
mão na metrópole: a escravização de africanos. É exatamente a isso que se refere Sergio
Buarque quando fala na “forma particular assumida pelo grande domínio agrícola”,
imediatamente após, e sem mudança de parágrafo, a observação de que aqui “bastou
que se desenvolvesse em grande escala o processo já instituído no Reino, onde o negro
da Guiné era largamente utilizado nos trabalhos rurais”74. Essa tecnologia econômica,
acrescentada à tecnologia sociocultural da mestiçagem, em nítido empréstimo de
Gilberto Freyre, que aliás já usar o “plástico” como categoria-chave de sua
interpretação do Brasil, é, provavelmente o elemento mais decisivo da fase de
adaptação ao trópico. “O sistema patriarcal”, escreve Freyre, no prefácio à primeira
edição de Casa-grande & Senzala (1933) se caracterizava pela “plástica
contemporização” entre a adaptação ao “meio físico e principalmente bioquímico” e a
72
RB, p. 26.
73
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A
inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 361.
74
RB, p. 25-6.
222
negativos, nem tanto segundo critérios morais, mas sobretudo do ponto de vista da
evolução das formações sociais:
Nossa sociedade era, assim, um organismo amorfo e invertebrado, apenas revolvido aqui
e ali, frequentemente, pelas lutas entre facções, entre regionalismo e entre famílias
poderosas, que se disputavam a preeminência ou que tinham contas a ajustar. Nesses
casos, havia agregação fundada em emoções e sentimentos comuns, mas que
desapareciam prontamente, apenas se tornassem supérfluos os laços que associavam
momentaneamente os homens. Assim, o peculiar da vida brasileira por essa época parece
ter sido uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do passional, do irracional,
e uma estagnação, ou antes um afrouxamento correspondente das qualidades
ordenadoras, discriminadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do
que poderia convir a uma população em vias de se organizar politicamente, de acordo
com os conceitos modernos.77
É na sequência que aparece uma passagem onde a forma mental irá se deixar
contaminar pelas consequências dissolventes da escravatura. Uma escravatura, diga-
75
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime patriarcal.
São Paulo: Global, 2006, p. 35.
76
Há uma tendência da fortuna crítica mais recente, cujos exemplares mais proeminentes são Waizbort
(2011), Feldman (2015) e Schlegel (2017), em identificar em Raízes um estilo de pensamento organicista
filiado a uma tradição conservadora – o que parece perfeitamente amparado pelo texto e pela
argumentação desses comentadores – e daí depreender uma suposta valoração positiva implícita nas
invocações por Sergio Buarque de um vocabulário evocativo do campo semântico da “natureza”. À luz
da análise da presente seção, espera-se demonstrar a pouca plausibilidade dessa interpretação.
77
RB, p. 32-3.
223
se, que, diferentemente da exposição teórica de Hegel, não é superada em “síntese” ou,
conforme a tradução consultada, “suprassunção”, mas que cria uma espécie de
compromisso social onde o trabalho não é verdadeiramente ético e, com isso,
“ascético” e formador, senão que, puramente induzido pela força, exacerba a
repugnância moral por toda dimensão produtiva e criadora, chegando mesmo a
contaminar a cosmologia, que transforma o mundo de “espírito” construtivo em mero
suspiro divino:
A influência dos negros, sensível nessa sociedade, não somente como negros, mais
ainda, e sobretudo como escravos, foi decisiva a tal respeito. Uma suavidade dengosa e
açucarada invadiu, desde muito cedo, quase todas as esferas de nossa vida colonial. A
“moral das senzalas”, sinuosa até na violência e no crime, negadora de todas as virtudes
sociais, contemporizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva,
imperou na política, na economia e na religião dos homens desse tempo. A própria
criação do mundo teria sido entendida por eles como uma espécie de abandono, um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
languescimento de Deus.78
Assim está posta uma segunda faceta da concepção trágica que preside a narrativa
de Raízes do Brasil. A incapacidade de geração de formas construtivas, aquelas que
compõem os “contornos exteriores” da sociedade, está intimamente ligada,
precisamente, ao estilo de pensamento e ação que garantira, anteriormente, o sucesso
da conquista portuguesa. E não é, talvez, por acaso, que, assim como na descrição, no
capítulo I, da “cultura da personalidade”, o trabalho assuma, nessa sociedade, o valor
de situação degradante por excelência, e que essa é, junto àquela, um dos momentos
prefiguradores da aparição, no capítulo V, do “homem cordial”, aquele que vive num
“mundo sem formas” – o trabalho, assim como em Hegel e depois em Marx, parece ser
para Sergio Buarque uma condição que permite o surgimento da realidade
transfigurada do mundo moderno, onde as formas de racionalidade se reorganizaram
de modo a oferecer “quadros de vida” qualitativamente superiores, e inacessíveis a esse
mundo “amorfo e invertebrado” do “passado agrário” brasileiro. De qualquer maneira,
o puro espírito trabalhador não era, de modo algum, condição suficiente ao êxito
colonial nos trópicos, como mostra o caso dos holandeses.
78
RB, p, 33.
224
79
RB, p. 34.
80
RB, p. 34-5.
225
dificilmente transpunha os muros das cidades e não podia implantar-se na vida rural de
nosso nordeste, sem desnaturá-la e perverter-se”. Se olharmos atentamente a disposição
da frase, veremos que o “espírito animador” não pôde se articular à vida rural porque
constituiria uma perversão contrária à natureza daquele ambiente. Natureza, aqui, não
é uma visão oposta à cultura, pois trata-se aqui de uma região já penetrada pelo modelo
português de lavoura açucareira. A “natureza” que reage à conquista holandesa não é
só a vida “selvagem”, mas também a cultura preexistente– que inclui, aliás, os africanos
escravizados e os índios, bem como suas relações com os proprietários luso-brasileiros.
A propensão portuguesa à contemporização cultural e à mestiçagem, bem como outras
contingências – a maior receptividade dos colonizados ao catolicismo e uma maior
facilidade para aprender o português do que o neerlandês – teriam tornado os
portugueses muito mais vocacionados para a colonização do trópico”81. As realizações
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
dos holandeses, notáveis em suas expressões mais visíveis nos centros urbanos, não
passavam de uma “grandeza de fachada, que só aos incautos podia mascarar a
verdadeira [...] realidade em que se debatiam.” O “generoso empenho” batavo em criar
no Brasil “uma extensão tropical da pátria europeia” fracassou porque seus agentes
coloniais não souberam, ou melhor, não foram capazes de conceber uma prosperidade
fundada “nas bases que lhe seriam naturais”. E é então que aparece um par de frases
dos mais impressionantes de Raízes do Brasil, que vem contrastar o fracasso holandês
com o sucesso português: “o êxito [dos portugueses] resultou justamente de não terem
sabido ou podido manter a própria distinção com o mundo que vinham povoar. Sua
fraqueza foi sua força.” 82 Aqui, em remissão a uma tópica venerável na tradição
europeia de relatos sobre o Novo Mundo, tópica de algum modo já antecipada pela
citação de André Thevet que abre o capítulo83, a América é apresentada como uma
espécie de “mundo de ponta-cabeça”, onde a força, a força convencional da cultura
“trabalhadora” holandesa, enfraquece, e a aparente fraqueza, paradoxalmente,
81
RB, p. 38-9.
82
RB, p. 36-7.
83
Abaixo da linha equinocial, escreve Thevet nas Singularidades da França Antártica, “o calor tão
veemente do ar extrai o calor natural [dos homens] e o dissipa: e desse modo são quentes somente por
fora e frios por dentro”, enquanto os habitantes das terras frias “têm o calor natural preso e contraído
dentro de si pelo frio exterior que os torna assim robustos e valentes, porque a força e faculdade de todas
as partes do corpo depende desse natural calor”, RB, p. 19.
226
84
“Se não é tão verdadeiro dizer-se que a Espanha prosseguiu até o fim” em seu intuito de “fazer do país
conquistado um prolongamento orgânico do seu”, “o indiscutível é que ao menos o impulso inicial foi
nesse sentido (p. 66-7); “Não se quer dizer que [a] vontade criadora distinguisse sempre o esforço
castelhano e que nele as boas intenções tenham triunfado continuamente sobre todos os obstáculos e
prevalecido sobre a inércia dos homens” (p. 67)
227
espanhol, são elevados até um nível quase absurdo e insano, no qual se pode identificar
certa admiração da parte de Sergio Buarque. Depois de ter caracterizado toda a empresa
colonial portuguesa como acomodatícia e plasticamente aderente ao “natural”, os
espanhóis são destacados justamente como os representantes do “espírito” racional e
conquistador que tem seus maiores prodígios justo na construção daquela unidade
organizacional especialmente débil na expansão colonial portuguesa: a cidade. A
cidade, onde, baseando-se em estudo de Max Weber, Sergio Buarque vai identificar o
locus por excelência de toda administração e, portanto, um fator privilegiado das
iniciativas de conquista de territórios estranhos, é colocada do lado oposto da
“natureza” que os portugueses tão facilmente conquistaram. Lemos, no começo do
quarto capítulo, que a “habitação em cidades é, essencialmente, uma habitação
antinatural; associa-se a uma poderosa manifestação do espírito e da vontade, na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
medida em que estes se opõem à natureza” 85, e, logo mais, que “em nosso próprio
continente”, foi a colonização espanhola que se caracterizou por “uma aplicação
insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre
as terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de povoação estáveis,
permanentes e bem ordenados.”86 Em comparação com os portugueses, os espanhóis
parecem ser uma espécie de aventureiros antinaturais, cuja “fraqueza” não estava na
“força”, e cuja força certamente não estaria na fraqueza. A força, porém, parece ter
prevalecido sobretudo por estar animada por uma espécie de delírio afanoso:
85
RB, p. 59.
86
RB, p. 61.
87
Não há referência, mas essa observação é quase certamente extraída do capítulo da Decadência do
Ocidente onde Spengler descreve as “almas” das diferentes culturas, afirmando a certa altura, em nota
de rodapé, que “o mais antigo plano da Roma Quadrata era um ‘templum’ cujos limites nada tinham a
ver com a construção da cidade, mas estavam conectados com regras sacras” (p.185). Adiante, há outra
observação com correspondência cerrada com essa passagem e outra, adjacente, onde Sergio descreve a
casa colonial (embora aí ele tome certas liberdades em relação à rigidez da concepção spengleriana de
cultura): “A ideia da família aparece no plano das casas originárias [Grundriß des Urhauses], a forma
interior do tronco [Stamme, isto é, algo como o desenvolvimento intermediário da cultura como processo
228
de “intervir arbitrariamente e com sucesso no curso das coisas”, sendo que a “história
não somente ‘acontece’, mas pode ser dirigida e até fabricada”89, fausticamente. Note-
se, aliás, que os espanhóis são, ainda que indiretamente, responsáveis por alguns dos
poucos elementos “racionais” da colônia portuguesa, na medida em que são os jesuítas,
animados pelo espírito do espanhol Inácio de Loyola, “os únicos portadores de uma
organização que se orientava segundo um espírito positivamente construtor”90.
Exemplar da racionalidade “naturalista”, por outro lado, onde a inteligência
humana chega aos melhores resultados por meio de certa congenialidade com os
processos orgânicos, é a igualmente memorável formulação dos princípios diretores da
cidade portuguesa, uma cidade que, por não ser “antinatural”, acaba sendo, por assim
orgânico] no plano de suas aldeias – que depois de muitos séculos e muitas mudanças de ocupação ainda
mostram que raça as fundou – e a vida de uma nação e sua ordenação social no plano – não na elevação
ou silhueta! – da cidade”(p. 194). Na página seguinte, desvenda-se, talvez, a inclusão de Sergio na
passagem citada adiante, com uma referência a uma descrição da silhueta da cidade colonial por Gilberto
Freyre: “Na cidade, o plano é uma imagem dos destinos de um povo; enquanto a silhueta das torres e
cúpulas são testemunhos da lógica dos quadros de vida [Logik im Weltbilder] de seus construtores, das
causas e desígnios últimos de seu mundo” (p. 195). Decline of the West, cit., traduções do autor a partir
da versão inglesa, em cotejo com a alemã (Munique: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1972, resp., para
os trechos citados, p. 237, 250, 251). A opção por verter Weltbild por “quadro de vida” procura
reproduzir a versão que o próprio Sergio Buarque parece dar ao termo.
88
RB, p. 61.
89
RB, p. 65.
90
RB, p. 65.
229
dizer, uma anti-cidade, um estilo de aglomeração humana que está para a cidade
racional espanhola assim como uma paisagem agreste está para um jardim. Até na mais
pura expressão da dominação da razão humana sobre a natureza, o paisagismo, os
portugueses recalcitram em seu naturalismo, e, nas suas cidades, assim como se dá nos
jardins, a semeadura se dá em desalinho:
[A] cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega
a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta confunde-se com a linha da paisagem.
Nenhum rigor, nenhum método, sempre esse abandono característico, que se exprime
bem na palavra “desleixo” – a palavra que o escritor Audrey Bell considerou tão
tipicamente portuguesa como “saudade”, não exprime tanto falta de energia, como a
convicção de que “não vale a pena...” As casas eram semeadas com desalinho, em volta
de uma igreja toda branca e situada quase sempre no lugar mais elevado; com um
desalinho que faz pensar um pouco nesses jardins de Portugal evocados por Gilberto
Freyre, cheios de uma poesia meio selvagem [...] A escolha dos sítios adequados, os
primeiros trabalhos, tudo faziam os portugueses por instinto, ou apenas guiados pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
rotina e pelo bom senso; se frequentemente acertavam, devem-no mais ao seu engenho
natural ou à experiência, do que à ciência que ensinam os livros ou aos preceitos
consignados em regulamentos.91
91
RB, p. 62-3.
92
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 260-292..
230
surge e o velho, que começava a dar sinais de cansaço, passa a desmoronar, ainda que
seus sintomas superficiais sejam poucos, e só se acelerem com o surgimento de uma
nova luz. A descrição específica da natureza desse processo é a “mudança de figura”
do espírito:
Aliás, não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e transição para uma
nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até
hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua
transformação. [...] Na criança, depois de longo período de nutrição tranquila, a primeira
respiração – um salto qualitativo – interrompe o lento processo do puro crescimento
quantitativo; e a criança está nascida [isto é, não é mais feto, mas corpo independente].
Do mesmo modo, o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua
nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu
abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que
ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de
algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia
do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela então a imagem do mundo novo.96
93
RB, p. 43.
94
Palavra que Sergio Buarque parece empregar no sentido corrente no português europeu, num de seus
típicos arcaísmos que às vezes dificultam a compreensão de seus argumentos, assim como o seu
frequente “posto que” adversativo.
95
RB, p. 44.
96
Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., p. 28-9.
231
Estado não ocorre, por causa da natureza mesma da conformação mental escravocrata:
97
Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas, cit.
98
RB, p. 44-5.
232
materiais”, mas essa é frustrada porque o país ainda não estava “amadurecido para
grandes empreendimentos de ordem econômica que lhe alterassem profundamente a
fisionomia”. Esses empreendimentos “não encontrariam [...] em nosso temperamento
e em nossos costumes, um ambiente adequado, não obstante toda a boa vontade de
certas elites”, especialmente na medida em que uma “formação econômica” fundada
na escravidão imprimia à “organização de nossos serviços públicos” um “espírito
retrógrado”99. Aqui Sergio repete em boa medida os argumentos de Joaquim Nabuco
no Abolicionismo, quando fala das consequências ideológicas de serem as “funções
públicas” um “apanágio quase exclusivo” da classe de proprietários rurais. Mas a noção
nabuquiana de uma mentalidade escravista e retrógrada a presidir o aparato estatal,
tornando-o ineficiente, é complementada aqui com um juízo patente da incapacidade
criadora das elites escravistas, cujo próprio nacionalismo seria “negativo, feito de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
99
RB, p. 46.
100
RB, p. 47.
101
RB, p. 47-8.
102
RB, p. 51.
103
RB, p. 52.
233
em “discurso indireto livre” que Sergio faz do que significaria, para um potentado rural
da colônia, a cidade. O capítulo fecha reafirmando a continuidade entre a forma social
da metrópole e da colônia, espécie de acompanhamento rítmico da argumentação de
Raízes do Brasil desde o princípio do livro: “Na verdade, não foi preciso que os
portugueses se transportassem ao Brasil e sofressem a influência de nosso meio, para
conhecerem essa forma de desequilíbrio, entre os centros urbanos mirrados e
miseráveis e as propriedades rurais, ao contrário, prósperas e opulentas”104. Ao final
desse argumento, que é aliás retirado da segunda edição, Sergio insere uma longa nota
dedicada à refutação a “teoria artificiosa e extravagante” de Oliveira Vianna, defendida
em Populações meridionais do Brasil, de uma “força centrífuga” no meio americano
que explicaria o acanhamento da vida urbana na colônia105. A o motivo da retirada da
nota está provavelmente não em alguma tentativa de “esconder” ou “expurgar” Oliveira
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Viana, que afinal, fora a importante apropriação por Sergio Buarque de sua avaliação
de que a sociedade colonial brasileira era marcada por pouca solidariedade social, é
desde a primeira edição um dos principais adversários da argumentação de Raízes, mas
sim numa mudança de ponto de vista do próprio Sergio a respeito do caráter
“centrífugo” da própria sociedade portuguesa. Em Visão do Paraíso, vamos ler que
“aquela hipertrofia urbana de Lisboa é desconhecida no Brasil colonial, onde o centro
de gravidade se acha, ao contrário, no mundo rural”106 (grifo da transcrição). Quando
passa a estudar com uma atenção mais exclusiva a história das técnicas agrícolas no
Brasil, Sergio chega à conclusão de que o tradicional primarismo técnico da agricultura
brasileira, na verdade mais exatamente uma espécie de extrativismo comparável à
mineração, tem sua origem em Portugal. Essa noção de uma agricultura tosca e
essencialmente predatória, que mal mereceria esse nome por não ser exatamente uma
forma de cultura, aparece pela primeira vez em sua obra no longo prefácio de sua
própria tradução às memórias de Thomas Davatz, publicado em 1941107 e parece ter
ganhado um significado especial na reflexão de Sergio Buarque, já que reaparecerá
algumas vezes em sua obra, a saber, em estudo biográfico de 1944 sobre Azeredo
104
RB, p. 55-6.
105
RB, “Nota B”, p. 166-169.
106
VP, p. 366 (333).
107
“Memórias de um colono no Brasil, in LP, p. 13, ss.
234
integridade fosse de caráter mais orgânico do que voluntário, são sobretudo os seus
elementos negativos que começam a perder sua eficácia. É o caso da ocupação do
interior pelos paulistas – na verdade, desde a fundação de Piratininga, há uma
descaracterização do desígnio estatal português. Apesar da proibição inicial do
presciente donatário Martim Afonso de Souza, que teria “penetrado, melhor do que
muitos futuros governadores e principais, os verdadeiros interesses do Estado”, da
colonização do interior, que poderia incitar lutas com índios do sertão e despovoar o
litoral, colocando a perigo o domínio sobre o litoral, terra de onde a coroa já podia
extrair o essencial dos gêneros agrícolas que pretendia explorar no Brasil, os paulistas
criaram, com sede no planalto acima da Serra do Mar, toda uma civilização híbrida e
essencialmente estranha à ocupação propriamente portuguesa nas regiões litorâneas:
108
“Obras econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho, LP, p. 83.
109
HOLANDA, Sergio Buarque de; MONTEIRO, Pedro Meira (Org); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org).
Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 72-3. Citações a este volume serão referidas
doravante pela abreviação RBC.
110
“Uma lavoura [...] como a canavieira, que tinha como escopo principal a produção em larga escala,
visando à venda aos mercados externos, praticada segundo métodos sumários, onde o amanho do solo
se limitava ao estrito necessário para a extração de opulentos tesouros, e, de fato, antes mineração do
que proprimente agricultura, bem podia considerar-se como um prolongamento e até um complemento
do negócio mercantil e urbano. EF, p. 85.
111
“Teremos também os nossos eldorados. O das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco,
de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até
esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios.” VP, p.. 367 (334)
112
HGCB, t. I, v. 2, p. 343.
235
A obra grandiosa das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida em toda a sua
extensão, se não a destacarmos um pouco do esforço português, como um
empreendimento que encontra em si mesmo a sua explicação, embora ainda não ouse
desfazer-se de seus vínculos com a metrópole europeia, e que, desafiando todas as leis e
todos os perigos, vai dar ao Brasil a sua atual silhueta geográfica. [...] São Paulo, terra
de pouco contato com Portugal e de muita mestiçagem com aborígenes, onde ainda no
século XVIII as crianças iam aprender o português nos colégios como as de hoje
aprendem o latim.113
113
RB, p. 72.
114
RB, p. 72-3.
115
Alguns trechos da Paulística de Paulo Prado são bem sugestivos a esse respeito, embora em Raízes o
culturalismo seja menos marcado pelo determinismo racial e pela noção de decadência: Nessa lenta
desagregação, na decomposição que foi a morte do Portugal heroico, no deserto piratiningano, ‘no meio
daquelle sertão e cabo do mundo’, como dizia o padre Cardim, isolava-se, ao findar o século XVI, um
núcleo de rude população quinhentista, que ia aumentar e proliferar protegido pela própria natureza
hostil.” (p. 73); “Do cruzamento desse índio nômade, habituado ao sertão como um animal à sua mata,
e do branco aventureiro, audacioso e forte, surgiu uma raça nova, criada na aspereza de um clima duro,
no limiar de uma terra desconhecida. No desenvolvimento fatal dos elementos étnicos num meio
propício, mais do que em outras regiões do país, em São Paulo medrou forte, rude e frondosa a planta-
homem.” (p. 78); “A terra rica e o viver fácil transformavam lentamente o aventureiro dos primeiros
tempos coloniais no agricultor, pesadão e desconfiado, e no pálido caboclo, vítima, como o antepassado
índio, do álcool, da doença e do faquirismo indolente. O mamaluco incansável, fragueiro, ágil e ardiloso,
será o Jeca, do escritor paulista.” (p. 90) PRADO, Paulo (1925, 1934); CALIL, Carlos Augusto (org.).
Paulística etc. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
236
Com a descoberta das minas de ouro no sertão, porém, essa situação irá mudar,
e o Estado, que antes se limitava, de modo geral, a impor algumas restrições mínimas
aos ânimos dos colonos, passará a uma atitude mais intervencionista. Não de uma
forma edificadora e incentivadora de desenvolvimentos novos, mas de modo
puramente repressor e negativo, compondo um organismo essencialmente parasitário,
do ponto de vista da sociedade colonial:
Então, e só então, é que o Estado português se decidiu a intervir mais energicamente nos
negócios de sua possessão ultramarina, mas usou de uma energia puramente repressiva,
policial, e muito menos dirigida a construir alguma coisa do que a absorver quanto lhe
pudesse ser de proveito. A circunstância do descobrimento das minas foi, pois, o que
determinou, finalmente, Portugal a pôr um pouco de ordem na colônia, ordem
artificialmente mantida pelo despotismo dos que se interessavam em ter mobilizadas
todas as forças econômicas do país para lhe colherem sem maior esforço os benefícios.116
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
116
RB, p. 74-5.
117
RB, p. 77-8
237
expansão dos colonos para o Oeste a partir do século XVII. A penetração portuguesa
teria se limitado às regiões de predomínio dessas culturas, o que explicaria em alguma
medida o tempo muito maior que custou consolidar algum domínio sobre a região
amazônica – sobre os tupis, “dir-se-ia que prepararam apenas o terreno para a conquista
lusitana”, visto que “onde a expansão tupi sofria um hiato, interrompia-se também a
colonização branca”118. Aparece, na observação sobre os portugueses terem herdado
“muitas das inimizades e idiossincrasias” dos tupis da costa, mais um caso exemplar
da distinção delineada no parágrafo final daquele primeiro capítulo, isto é, do que é
“forma”, e do que é “matéria plástica” na “cultura portuguesa” – a forma admite a
seleção de elementos exógenos, até de um idioma e de certas “idiossincrasias”, sem
descaracterizar-se completamente. Ainda que, nesse caso, haja, no mínimo, uma
intensidade que põe em dúvida a integridade da forma, na medida em que, como já se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
viu, a civilização paulista é considerada como uma forma destacada, ou ao menos uma
variante especial, da portuguesa – e que, de todo modo, acaba sendo reintegrada ao
todo quando da formação do Estado nacional brasileiro, já no século XIX, processo
que, talvez por não ser considerado especialmente problemático por Sergio Buarque,
não é diretamente abordado em Raízes do Brasil.
Depois do excurso sobre a exceção paulista, Sergio volta a falar da “fisionomia
mercantil, quase semita, dessa colonização”, exprimida “tão sensivelmente no sistema
de povoação marginal, quanto no fenômeno já estudado do desequilíbrio entre o
esplendor rural e a miséria urbana.”119 É curioso esse retorno ao caráter “semítico” dos
portugueses, que já aparecia na resenha da tradução do Fausto por Gustavo Barroso
(Cf. supra cap. I), e que desempenhará ainda um papel importante na tese sobre os
Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos (1958),
onde há toda uma atenção especial às influências hebraicas e árabes na cultura
portuguesa tardo-medieval, até o século XVI. O mais provável é que aqui o que se
pretende dizer com “feição semítica” não é tanto uma aproximação com o judaísmo,
mas com os fenícios, aliás já mencionados à página 66, no mesmo capítulo, em
comparação com os espanhóis. Parece que já aqui Sergio concebe o próprio império
118
RB, p. 78.
119
RB, p. 77.
238
E [Frei Vicente do Salvador] acrescenta que isso [de querer ir para Portugal] “não têm
só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra,
não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem
destruída”. Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos
portugueses teve um caráter acentuado de feitorização, muito mais que de colonização.
Não convinha que se fizessem aqui grandes obras, ao menos quando não produzissem
imediatos benefícios.122
A passagem, como aliás vários trechos desse capítulo, antecipa alguns momentos
de “A América Portuguesa e as Índias de Castela”, capítulo final de Visão do Paraíso
aproveitado a partir do primeiro de Elementos formadores, onde vamos ler que os
portugueses se fazem em suas possessões americanas “mais hóspedes que
povoadores” 123 . Nesse contexto “quase semítico”, diferentemente do imperialismo
120
Sergio se estende sobre a questão no último capítulo de Visão do paraíso, “A América Portuguesa e
as Índias de Castela”.
121
EF, p. 104-5.
122
RB, p. 80.
123
VP, p. 334. Na tese apresentada à USP vamos ler, no lugar dessa citação extraída do Livro que dá a
razão do Estado do Brasil, de Diogo de Campos Moreno, uma citação do Diálogo das grandezas do
Brasil que não menciona a ideia de simples “hospedagem”, mas que ressalta o caráter litorâneo, o que
faria dos portugueses, segundo Alviano, “maus colonizadores” (p. 366).
239
Nesse ponto, como já se dera com a análise dos paulistas e com a chegada das
autoridades reinóis no Século XVIII, Sergio Buarque pinta um quadro onde a realidade
da “autarquia do indivíduo” contamina toda a colônia, como uma moral radicalmente
autoritária partilhada em todos os degraus da sociedade, com o indivíduo rejeitando
qualquer anteparo negativo a suas vontades, lógica que se reproduz até mesmo
internamente às instituições executoras das leis e garantidoras da ordem social,
absorvendo todas as instituições e conformando a racionalidade governamental. O caso
da igreja é especialmente exemplar, na medida em que essa tendência chega ao
paroxismo de contrapor duas estruturas de autoridade (Igreja e Estado, por causa dos
conflitos gerados pelo padroado e pela questão da Ordem de Cristo, que atribuía ao
monarca, como seu Grão-mestre, a prerrogativa de investidura dos bispos), de modo
que clérigos poderiam se valer de uma ou outra hierarquia para resistir à opressão
daquela que representasse um incômodo. Transformada pelas peculiaridades das
relações entre Portugal e a Santa Sé em “simples função do poder secular”125 a Igreja,
na forma de seus clérigos, terminaria contribuindo para essa anarquia, chegando a
participar do “liberalismo” negativo e dissolvente, “natural”, brasileiro. Sergio chega
124
RB, p. 81.
125
RB, p. 82.
240
mesmo a falar no “famoso ‘liberalismo’ dos nossos eclesiásticos” 126 , no qual não
deixava de entrar, além de indisposições políticas contra autoridades pontuais ou contra
o Estado em geral, a tendência natural de só virem para a América os “maus clérigos”,
já que as seduções de um Novo Mundo eram maiores para aqueles que tivessem maus
antecedentes Europa ou proclividades que se poderiam realizar com mais tranquilidade
num mundo onde as normas sociais eram mais frouxas, do que aos sinceramente
piedosos.
O extraordinário reverso dessa medalha pode ser encontrado num momento
posterior da obra de Sergio, isto é, no estudo biográfico de 1944 sobre Azeredo
Coutinho, fundador do Seminário de Olinda, que, motivado por conflitos contra a Mesa
de Consciência e Ordens – conflitos, aliás, de fundo pessoal mais do que propriamente
político – se empenhará numa longa polêmica em favor autoridade real, contra a Mesa,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
sobre os bispados ao sul do Cabo Bojador, polêmica que chegará até a indispô-lo com
o Príncipe Regente, tendo-se valido, para fazer imprimir um de seus panfletos, da
oportunidade da ocupação francesa em Portugal. “[C]ontra o adversário particular”,
escreve Sergio, não se furtou o prelado a “abrigar-se à sombra do inimigo publico:
inimigo da pátria e do seu rei”127. Rei, no caso, cuja autoridade as razões do texto,
impresso por meio de artimanhas sediciosas, procuravam encarecer, em detrimento da
Mesa. Com toda a contumaz e imprudente aplicação que empenhou em afirmar a
supremacia do poder temporal sobre o eclesiástico nessa questão, Azeredo Coutinho,
contudo, não parece ter se movido por uma crença sincera em algum ideal absolutista,
mas, antes, pela esperança de que a autoridade régia não teria as mesmas condições de
se exercer com a mesma capilaridade e atenção daquela da Mesa – seu absolutismo
nada mais é do que mais uma variação, com os sinais trocados, mas por pura
casualidade, do “famoso liberalismo” eclesiástico. Esse, que tampouco vem a ser um
amor pela liberdade em abstrato, mas uma repulsa a todo intervencionismo importuno
sobre o indivíduo soberano e irresponsável às coisas dos outros e ao mundo público –
diagnóstico que, diga-se, permanece entre o que de mais atual há na reflexão de Sergio
Buarque sobre o Brasil.
126
RB, p. 84.
127
“Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho”, cit., .p. 60.
241
***
Nos domínios rurais a posição dos padres capelães reproduzia, em ponto pequeno, a
situação do clero na colônia, com relação ao poder civil. Apenas aqui a autoridade do
senhor rural não suportava réplica ou partilha. Tudo se fazia consoante a sua vontade
caprichosa. e despótica. O engenho, sob seu comando, era um organismo completo e que
repousava sobre si mesmo. Tinha força armada para defendê-lo em casos de emergência.
Tinha capela, onde se rezavam as missas nos domingos. Tinha escola de primeiras letras,
onde o padre-mestre desemperrava e instruía os meninos. A alimentação diária dos
moradores e aquela com que se recebiam os visitantes frequentemente agasalhados,
procediam das plantações, das criações, da caça ou da pesca, proporcionadas no próprio
lugar. Também no lugar montavam-se as serrarias de onde saíam prontos o mobiliário e
apetrechos do engenho, além da madeira para as casas; a obra dessas serrarias chamou a
atenção e causou a admiração do viajante Tollenare, pela sua “execução perfeita”. Hoje
mesmo, em certos lugares do Nordeste, onde foi mais adiantada a cultura rural, apontam-
se – segundo um conhecedor fidedigno – “as cômodas, bancos, armários, que são obra
de engenho, revelando-o no não sei que de rústico de sua consistência e no seu ar
distintamente heráldico.”129
128
Cf. o capítulo Definition of Sovereignty, in Political Theology, p. 5-15. Já na abertura, lemos, na
característica concisão do autor, que “Soberano é aquele que decide sobre a exceção”, p. 5.
129
RB, p. 85-6.
242
câmaras não é muito mais do que uma confederação, ou mesmo uma associação
patronal. Associação de certa forma política, pois, quando o poder político coincide
com a autoridade patriarcal, o “pátrio poder”, a “política” do Estado perde sua
legibilidade como representação de uma esfera da vida real e passa a ser compreendida
como intromissão antinatural de forças externas. Esse é o conteúdo do “liberalismo”
de mal-entendidos, na medida em que dentro da propriedade e da família, o poder do
patriarca não tem nenhum limite, e Sergio Buarque curiosamente não faz aqui questão
de ressaltar, como faz Gilberto Freyre, todos os expedientes de dissimulação entre os
diversos membros da casa que tenderão a “equilibrar” o antagonismo, talvez porque
quisesse destacar como a autoridade despótica do senhor é a sede ideal, arquetípica, de
toda reflexão sobre o indivíduo – a diluição disso no “real” é de importância menor
para o tipo de teorização política que Sergio Buarque está lançando nessas páginas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
130
Ver o capítulo “Polity-centered kingship”, esp. sec. 2, “Corpus reipublicae mysticum”, p. 207- 231
em KANTOROWICZ, Ernst. The king’s two bodies. A study in medieval political theology. Princeton:
Princeton University Press, 2016. Já no direito medieval, cada um dos cinco níveis de universitas
(domicílio, vizinhança, cidade, reino e universo) podia ser referido como corpus mysticum, sobre o qual
podiam incidir, portanto, as implicações organológicas da analogia (a subordinação dos membros à
cabeça) (p. 209). No século XIV, com Luca da Penne, a ideia de “corpo místico”, originalmente usada
para representar a Igreja como comunidade temporal dos fiéis em Cristo, tendo este por cabeça, já está
inteiramente secularizada e transferida para o poder político do príncipe, tingindo de certa sacralidade,
porém, o Estado. Diz-se que o monarca é a cabeça, não da Igreja, mas da República, sendo também ao
mesmo tempo seu marido, como Cristo era, além de marido, a cabeça do corpo místico da Igreja, assim
resolvendo o problema da não-propriedade do fisco pela pessoa do rei (p. 218).
243
da política em Raízes, pode-se atribuir esse exagero também ao próprio Sergio: é ele
quem politiza a casa-grande, dela fazendo como que uma pequena monarquia absoluta,
para poder dela derivar os problemas que surgirão na vida política do século XIX, onde
esse substrato histórico vai encontrar uma superestrutura ideológica liberal e romântica.
O caráter organológico da hierarquia familiar, por sinal, pode ser notado na
observação de Antonil, de que o escravo era para o senhor como suas “mãos e pés”132
– sendo este último a cabeça. A síntese mais impressionante dessa realidade é também
extraída de depoimento coevo, de segunda mão, é verdade, mas ele próprio colhido por
um narrador de época: segundo Frei Vicente do Salvador, “verdadeiramente que nesta
terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-a cada casa”,
teria dito um bispo de Tucumán ao perceber que “quando mandava comprar um frango,
quatro ovos e um peixe para comer, nada lhe traziam, porque não se achavam dessas
coisas na praça, nem no açougue”, mas que, por outro lado, “quando mandava pedi-las
às casas particulares, lhas mandavam”133. Há também uma comparação com o mundo
de Daniel Defoe, em cuja obra se encontraram situações onde “cada lar representa uma
131
Sobre isto, leia-se especialmente o segundo capítulo de ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra &
Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Ed. 34, 1994, p. 43-
73.
132
RB, p. 47.
133
RB, p. 86.
244
instituição tanto econômica, quanto biológica e afetiva”134, situação que ainda na época
da redação de Raízes do Brasil se poderia encontrar no Kentucky. Mas, no Brasil, à
diferença do mundo anglo-saxão, a origem disso está no “direito romano-canônico”
preservado na Península Ibérica desde a antiguidade, e esse “prevalece como centro e
base de toda essa vasta estrutura”. Os escravos e os agregados representam uma
extensão do círculo familiar onde impera a “autoridade imensa do pater-familias”,
apenas os filhos, os “liberi”, constituindo exceção parcial, mas, em tudo quanto
houvesse de essencial, e no âmbito da autoridade, essa ideia de família estava
“estreitamente vinculada à ideia de escravidão” 135. É uma situação de privilégio da
família que “tem por si o consenso geral e preserva-se independentemente de qualquer
outra salvaguarda além de sua força própria”, e que “ignora qualquer princípio superior
que procure perturbá-la ou oprimi-la”, observação que volta a pontuar o caráter
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
134
RB, p. 87.
135
RB, p. 87.
136
RB, p. 88.
245
O quadro familiar é, nesse caso, tão poderoso e exigente, que acompanha os indivíduos
mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre neles à entidade
pública. [...] Representando [...] o único setor onde o princípio de autoridade é
indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da
respeitabilidade, da obediência e da submissão. Resultava dessa circunstância um
predomínio quase exclusivo, em todo o mecanismo social, dos sentimentos próprios à
comunidade doméstica, naturalmente particularista e anti-política, uma invasão do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
público pelo privado, do Estado pela Família. Explicam-se largamente, com isso, a nossa
adaptação difícil ao princípio do Estado democrático, [...] e também os obstáculos [...]
que se ergueram contra a formação de um aparelhamento burocrático eficiente entre
nós.138
137
Loc. cit., grifo da transcrição.
138
RB, p. 88-9.
246
139
RB, p. 94.
247
Esses conflitos causam “crises” que, como se lê no texto, constituem “um dos temas
fundamentais da história social”.140
Vale a pena deter-se nos momentos decisivos dessa argumentação, como já se
veio fazendo na análise das partes precedentes do livro. Esse expediente, aqui, se revela
especialmente proveitoso, na medida em que explicita alguns pressupostos teóricos de
Raízes do Brasil que antes só tinham sido indicados por meio de sugestões muito vagas.
A abertura do capítulo é talvez o momento mais ostensivamente especulativo, e até
doutrinário, de todo o livro. Lê-se, de início, que o “Estado, ao contrário do que
presumem alguns teóricos, não constitui uma ampliação do círculo familiar e, ainda
menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particulares, de que
a família é o melhor exemplo”; entre família e Estado não há “gradação, mas antes uma
descontinuidade e até uma oposição”. Aqueles que defendem o que “o Estado e suas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
instituições descenderiam em linha reta, e por simples evolução, da Família”, por meio
de uma “espécie de generatio aequivoca”, são vítimas de um “prejuízo romântico”
amplamente difundido no século XIX141. Vale a pena reproduzir aqui o comentário de
um resenhista que, afirmando que aqui Sergio Buarque “erra redondamente”, leva a
depreender que o alvo específico dessa observação é, como já acontecera no primeiro
capítulo, o mesmo de “O lado oposto e outros lados”, pois, afirma Luiz Pandolfi,
“Tristão de Athayde nos fala muito bem desse assunto no seu livro Política,
apresentando argumentos seguros contra tal erro”142.
Mas voltemos ao que Sergio está de fato afirmando, que parece ser um
pensamento merecedor de uma análise detalhada. Estamos diante daquilo que poderia
140
RB, p. 94.
141
RB, p. 93. Essa declaração poderia ser considerada um desmentido à interpretação acima proposta de
que na montagem do conceito de “homem cordial” e da teoria política de Raízes Sergio Buarque se
valeria de uma “politização” das unidades domésticas rurais. Na verdade, trata-se de uma política
anterior ao Estado, mas que nem por isso deixa de ser política e de operar a partir de categorias teológicas
de transcendência. Até porque é o próprio Hegel, na primeira das duas citações que faz à Antígona, usa
as palavras da heroína, e não as de Creonte, como fará Sergio Buarque, para mostrar como ela se vale
de um argumento transcendental (de um “direito divino não escrito e infalível”) para enterrar seu irmão
(“Não é de hoje, nem de ontem, mas de sempre,/que vive esse direito e ninguém sabe/Quando foi que
surgiu e apareceu”, Antígona, vv. 456-7; Fenomenologia do espírito, cit., §437, p. 296). Estamos diante
do conflito entre duas formações políticas que se negam mutuamente.
142
PANDOLFI, Luiz. “Conversa sobre ‘Raízes do Brasil’”, Diário da Tarde, 7 nov 1937. Esse diálogo
não foi descoberto a tempo da devida incorporação da visão de Tristão de Athayde a esse respeito, que
fica para uma oportunidade futura.
248
ter passado, para um leitor menos atento, pela teoria do Estado defendida em Raízes do
Brasil. Afinal, durante todo o desenvolvimento anterior do livro, os portugueses foram
caracterizados, não sem certa admiração, como os transplantadores “bem-sucedidos”
de uma forma “natural”, essencialmente reprodutora dos ritmos e solicitações do meio
ambiente americano, com alguns compromissos adaptativos de conteúdos originários
da Península Ibérica, mas nada que comprometesse, conforme a passagem já aqui
discutida do fim do primeiro capítulo, a “forma” da cultura. Deixando de lado alguns
poucos comentários que poderiam parecer de menor importância ou relativizáveis,
seria possível imaginar que o próprio Sergio Buarque fosse um proponente de uma
forma política espontaneamente gerada. O que se vê aqui é que, decididamente, não é
esse o caso. Na opinião dele, a “verdade, bem outra, é que essas formas pertencem a
ordens diferentes em essência”. A afirmação é curiosa, porque, pela primeira vez, a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
sua forma pura é abolida por uma transcendência”143. O Estado – o Estado moderno,
não qualquer organização política anterior assemelhável ao que se conhece nos tempos
modernos – é uma novidade que participa de todo um mundo novo, cujos modos de
operação e conceituação são, têm de ser inteiramente diferentes daquelas dos velhos
tempos. Tanto que, embora ressalte que o conflito entre Antígona e Creonte seja de
“todas as épocas”, sua discussão, que toca a racionalização econômica que acompanha
a Revolução Industrial e as mudanças de modelo pedagógico correspondentes às
transformações sociais da modernidade, se atém a um passado relativamente recente.144
O homem cordial propriamente dito aparecerá em seguida a uma discussão sobre
o desequilíbrio social causado pela urbanização, na qual ele próprio pode ser
identificado como uma presença silenciosa, protagonizando o afluxo, para as cidades,
de indivíduos que ainda reproduzem a mentalidade rural e patriarcal. É de especial
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
143
RB, p. 93-4.
144
No campo da teoria sociológica, a explicação da modernização como aparecimento de uma nova
“ordem” qualitativamente diferente é reminiscente, ao menos nos termos que aparecem aqui, da
distinção de Ferdinand Tönnies entre Gemeinschaft e Gesellschaft – embora ela participe de um
repertório de ideias bastante disseminado posteriormente. Marx, naturalmente, desenvolve uma análise
parecida algum tempo antes, mas o estilo sociológico de Raízes parece bem mais próximo de Tönnies.
145
RB, p. 96.
250
146
RB, p. 96.
251
do que uma criança “bem educada” segundo o velho ideal do “pátrio poder” (isto é:
obediente) sobre o a esfera doméstica. Isso implica mesmo a transgressão da
autoridade paterna como etapa necessária de aprendizado:
Um dos adeptos dessa pedagogia moderna [Knight Dunlap] ensina-nos, [97] por
exemplo, que a obediência, um dos princípios básicos da velha educação, só deve ser
estimulada na medida em que possa constituir uma adoção razoável de opiniões e regras
que a própria criança reconheça como formuladas por adultos que tenham experiência
nos terrenos sociais em que ingressa. “Em particular – observa ainda – a criança deve
ser treinada para desobedecer nos pontos em que sejam falhas as previsões dos pais.”
Deve adquirir progressivamente a individualidade, “único fundamento justo das relações
familiares”.147
Sergio complementa ainda que “onde quer que prospere e assente em bases muito
sólidas a ideia de família”, a ainda mais acentuadamente no caso da “família de tipo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
147
RB, p. 96-7.
148
RB, p. 97-8. Note-se que essa construção frasal admite interpretar-se que no Brasil do “passado
agrário” não há “mecanismo social” propriamente dito.
252
fora, por sinal, animada em parte pelo estímulo “negativo” de uma “pouca disposição
para o trabalho”149, como se lê em trecho já citado do capítulo II, e, conforme a abertura
de “Novos tempos” (cap. IV), o “indivíduo”, nesse contexto, “se afirma ante os seus
semelhantes, indiferente à lei da comunidade e atenta apenas ao que o distingue dos
demais, do resto do mundo”150.
Pouco depois da altura onde aparece a citação de Knight Dunlap, Sergio volta ao
Brasil, ressaltando os inconvenientes especialmente acentuados da ordem colonial para
o ajuste aos quadros da vida moderna: onde imperava “desde os tempos mais remotos
da colonização, o tipo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que
não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos
meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das
cidades” seria natural esperar-se, no período de transição para aquilo que anteriormente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Em terra onde não existia praticamente trabalho manual livre, em que uma classe média
quase nula não tinha como impor sua influência, os indivíduos que iam servir nas
funções criadas com a nova ordem de coisas tinham de ser recrutados, por força, entre
os elementos da mesma massa dos antigos senhores rurais. [...] Não era fácil aos
detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente
compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do “privado” e do “oficial”.
Assim eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do
puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”,
a própria gestão política se apresenta como assunto de seu interesse particular; as
funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais
do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado
burocrático, em que prevalecem a especialização de funções e o esforço para se
assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.151
149
RB, p. 23.
150
RB, p. 113.
151
RB, p. 99-100.
253
152
RB, p. 99.
153
RB, p. 100.
154
RB, p. 101.
254
ela própria, uma certa teologia política, onde o “corpo místico da república” legítimo
não é o do Estado, mas o da família, ou ainda, onde a família é o seu pequeno Estado,
detendo autoridade e poder em seu território. E é só então que começa a caracterização
detalhada de qual seria a forma de racionalidade gestada nesse meio rural e patriarcal
– em procedimento que evoca a metodologia weberiana dos “tipos ideais”, mas talvez
ainda mais aparentado da exposição hegeliana das “figuras da consciência”, adaptada
para contextos sociológicos empíricos.
É só aqui que aparece a famosa citação ao “escritor Ribeiro Couto”, que teria
dito, “numa expressão feliz”, que “a contribuição brasileira para a civilização será de
cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’”. Nunca é demais lembrar a raiz
etimológica em comum com a palavra coração, em latim, cor/cordis. A “lhaneza no
trato, a hospitalidade, a generosidade” de que tanto se orgulham os brasileiros,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
155
RB, p. 101.
156
RB, p. 102.
157
Note-se a partir desse trecho como, na oposição entre cordialidade e civilidade, Sergio faz o “espírito”
coincidir com a “civilização”, exatamente como Thomas Mann nas Considerações de um apolítico, onde
a “vida”, que, assim como em Raízes, se opõe ao espírito, está do lado da “cultura”: “[a] civilização [...]
é o espírito mesmo – o espírito no sentido da razão, das maneiras polidas, da dúvida, das luzes e, enfim,
da desagregação, enquanto que a cultura, ao contrário, representa o princípio artístico organizador e
construtivo que mantém e transfigura a vida”. Considérations d’um apolitique, cit., p. 149.
255
158
RB, p. 102-3.
159
É sempre oportuna a lembrança da afinidade sutil, mas altamente sugestiva, entre Raízes do Brasil e
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter – livro publicado em 1928 e cujas inspirações míticas
ameríndias foram cuidadosamente identificadas por Sergio Buarque em resenha publicada na mesma
época da redação de Raízes do Brasil. HOLANDA, Sergio Buarque de. O mito de Macunaíma. EL, I, p.
260-267. Texto publicado originalmente na revista O espelho, n. 6, set 1935.
160
KLAGES, Ludwig. De l’éros cosmogonique. Paris: L’Harmattan, 2013, p. 91-3.
161
RB, p. 103.
256
162
RB, p. 104.
163
RB, p. 105.
164
RB, p. 106-8.
165
RB, p. 108.
166
RB, p. 110.
257
167
RB, p. 110.
258
crítica de Raízes do Brasil, entre o homem cordial e o tipo ideal weberiano 168 . A
homologia funcional entre os argumentos é tão clara que Jessé Souza chegou a
sustentar que o “homem cordial” seria uma inversão simétrica do calvinista ascético da
Ética protestante169. Isso implicaria, entretanto, além de identificar temas e conclusões
semelhantes, remeter a construção metodológica do homem cordial às balizas teóricas
da sociologia de Weber170. Segundo essa linha metodológica, que combina o realismo
crítico kantiano com a hermenêutica nietzschiana dos valores, conhecer a realidade
significa constituir modelos interpretativos respaldados pelos valores vigentes na
linguagem do próprio meio a ser interpretado. O conhecimento é uma construção
intelectual que não possui uma objetividade materialmente coincidente com o real
interpretado – a epistemologia kantiana vê nisso uma ingênua fantasia, assim como,
por motivos diferentes, a filosofia de Nietzsche – mas também não é uma pura
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
168
Antonio Candido notou o pioneirismo do uso de Weber em Raízes do Brasil no conhecido ensaio
publicado à guisa de prefácio das edições posteriores a 1969 de Raízes do Brasil; o trabalho que defende
com maior contundência a procedência weberiana da metodologia que conforma o homem cordial é A
queda do aventureiro, de Pedro Meira Monteiro. MELLO E SOUZA, Antonio Candido de. O significado
de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição crítica. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016; MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro. Aventura,
cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 1999.
169
SOUZA, Jessé. Raízes do Brasil e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 13, n. 38, out 1998, p. 97-116.
170
A exposição mais sucinta se encontra em WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento nas
ciências sociais. São Paulo: Ática, 2006. É verdade que este texto não é dos mais bem escritos do autor
e tampouco encerra toda a riqueza teórica de sua obra. Sergio possuía uma exemplar do volume de textos
metodológicos de Weber que contém esse texto (Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre), além de
Economia e Sociedade.
171
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das letras,
2004.
172
WEBER, Max. Ética econômica das religiões mundiais, v. 1. Confucionismo e taoísmo. Petrópolis:
Vozes, 2016.
259
teórica dos elementos dinâmicos do processo. Note-se, aliás, que as reflexões sobre o
“espírito do capitalismo” eram presentes no ambiente intelectual alemão até o ponto
impressionante de instigarem o estudo de um romancista como Thomas Mann, que no
entanto acreditava já tê-las prefigurado intuitivamente em sua obra de ficção, como se
pode ler nesta passagem das Considerações de um apolítico, que Sergio certamente
terá lido com grande interesse. Talvez ingenuamente, mas não sem uma boa dose de
razão, Mann identifica na crítica dos valores modernos por Nietzsche, outro autor
central à construção de Raízes do Brasil, a origem comum de todas aquelas reflexões:
Gostaria de deixar claro que eu senti e inventei por conta própria, sem nenhuma leitura,
por intuição direta, o pensamento de que o homem industrioso, o capitalista moderno, o
bourgeois [em francês no original], com a ideia ascética do dever profissional, era uma
criatura surgida da ética protestante, do puritanismo e do calvinismo. Só depois eu notei,
há pouco, que sábios pensadores haviam na mesma época tido e exprimido esse mesmo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
pensamento. Max Weber de Heidelberg e logo depois Ernst Troeltsch trataram da “ética
protestante e o espírito do capitalismo” e, levada até um ponto extremo, essa ideia se
encontra na obra de Werner Sombart publicada em 1913, Der Bourgeois, onde ele faz
do chefe das empresas capitalistas a síntese do herói, do comerciante e do burguês
[Bürger]. Ele tem bastante razão, tanto que eu, como romancista, dera corpo à sua
doutrina doze anos antes que ele a formulasse, – isso, se supusermos que a figura de
Thomas Buddenbrook, encarnação antecipada de sua hipótese, não tenha ela própria
influenciado o pensamento de Sombart; mas o elemento novo que eu gostaria de
acrescentar é a suposição – que equivale a uma quase certeza – de que nossa
concordância a respeito do encadeamento psicológico “calvinismo-burguesismo-
heroísmo” existe graças a um mediador superior, o mais alto mediador espiritual, o
mediador Nietzsche. Com efeito, sem esse evento que domina nossa época e influencia
toda a sua aventura espiritual até as últimas ramificações, e que foi uma aventura heroica
de uma espécie inaudita, nova, moderna, o sociólogo não teria, sem nenhuma dúvida,
chegado a formular a sua tese sobre o protestantismo heroico, não mais do que o
romancista teria podido conceber a figura de seu “herói” como ele a viu.173
173
Considérations d’um apolitique, p. 128-9.
260
numa situação que se apresenta como aberta para possibilidades, narrar a formação
como atrelada a um destino determinado de antemão por circunstâncias já consolidadas
e irreversíveis – lembre-se da “crosta” ou “jaula” de aço das páginas finais da Ética
protestante, que enrijece a personalidade moderna na era da racionalização capitalista
– mesmo que seja possível argumentar em favor da procedência weberiana de
momentos importantes da argumentação de Raízes, como no contraste entre as éticas
do “trabalho” e da “aventura” no segundo capítulo 174 . Considerado dentro do arco
histórico do pensamento em torno da Bildung, Weber não pode ser enquadrado senão,
sobretudo, como um pensador de sua crise e da desmoralização das instituições
atreladas àquele ideal – lembrem-se aqui as considerações extremamente pessimistas
do sociólogo sobre o sistema de educação superior alemão, idealizado por um dos pais
fundadores da Bildung, W. von Humboldt, na famosa palestra sobre a Ciência como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
vocação.175 Aqui, a educação já não é pensada tanto como efetivação das potências do
espírito humano, mas como “vocação”, vale dizer, como destino, pois a categoria é
desenvolvida por Weber na Ética protestante a partir da doutrina calvinista da
predestinação. Weber não apresentaria, naquela altura, um atrativo especial para quem
pretendesse analisar um futuro aberto, e a narração fluida de Raízes do Brasil não
parece se acomodar bem à forma eminentemente sistemática das explicações da
sociologia weberiana. Por outro lado, Weber traçou com maestria uma sistemática do
tipo de conexões e valores que presidem a modernidade ocidental.
A oposição simétrica entre o homem cordial e a análise de Weber parece indicar
que Raízes do Brasil adota, de um lado a teoria weberiana da formação da
174
Vale lembrar aqui uma frase de um Sergio Buarque já consagrado como historiador, no final dos anos
1960, numa rara consideração teórica sobre a disciplina histórica: “em História as estruturas, quando
mal se insinuam, já são quase ao mesmo tempo superadas”. Essas palavras, Sergio teria dito a um
arguidor de sua dissertação Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos
descobrimentos, provavelmente, anota Raphael Guilherme de Carvalho, editor da transcrição desse
texto, Herbert Baldus. Claro que quem diz isso não é o mesmo Sergio que escreve Raízes do Brasil em
1936, mas o “homem cordial” já aparece, em Raízes, como uma realidade que resiste com dificuldade à
chegada dos “novos tempos”. Note-se, por outro lado, que nenhuma outra obra de Sergio Buarque se
aproxima tanto dessa dissertação de 1958, seja por tema ou por estilo metodológico. HOLANDA, Sergio
Buarque de. “História”, palestra de Sergio Buarque de Holanda no Centro de Estudos Históricos Afonso
Taunay, Universidade de São Paulo (CEHAT-USP) (1967-1969). Revista do IEB, n. 70, ago 2018, p.
316.
175
WEBER, Max. A ciência como vocação. In: BOTELHO, André (Org.) Essencial sociologia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2013.
261
176
Defeito mecânico, cit. “Introdução”, p. 5. A cópia eletrônica da tese gentilmente fornecida por
Guilherme Pereira das Neves não reproduz a paginação do exemplar depositado na Biblioteca da UFF.
177
“As ‘raças’ do Ocidente não são criadoras das grandes nações, mas suas consequências. Elas ainda
não existiam na época carolíngia. Foi o ideal cavalheiresco que se reproduziu em diferentes lugares, e
em grande medida estabeleceu quilo que hoje se sente e vive como ‘raça’ em diversas nações nos dias
de hoje. […]. O fato de existir hoje um povo português, e, por isso, também um Estado português no
Brasil, no meio da América Hispânica, é resultado do casamento do conde Henrique de Borgonha em
1095.” Die Entstehung des Abendlandes, cit. v. 2, p. 775. No caso de Ranke, que intrigava o próprio
Sergio Buarque por excluir outros povos europeus de seu conceito de Ocidente, ver “O atual e o inatual
na obra de Leopold von Ranke”, LP, p. 180-183.
262
Salvo, é claro, quando se fala em “transcendências” por meio das quais “ordens”
anteriores são “abolidas”, estilo de argumentação antes hegeliano do que weberiano,
ou até morfológico. Por outro lado, Weber parece inteiramente ausente dos parágrafos
mais sintéticos do livro, isto é, aqueles que dão a ver a sua estrutura teórica mais
profunda, pelo menos no que diz respeito à teoria da cultura de Raízes – a saber, os
dois ou três primeiros, o último do primeiro capítulo e o último de “Nossa Revolução”
(isto é, do livro). Nesses trechos, a morfologia das culturas de Spengler parece a fonte
mais provável, embora a elefantina Decadência do Ocidente, com seu barroco sistema
de ordens e articulações de expressões culturais, pareça ser aproveitada por Sergio
muito livre e seletivamente.
***
178
RB, p. 89.
263
179
RB, p. 114.
180
MELLO E SOUZA, O significado de Raízes do Brasil, cit. p. 359-60.
181
MONTEIRO, Pedro Meira. Uma tragédia familiar (À sombra de Hegel). In: Signo e desterro. Sergio
Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015, p.43-53.
182
O texto não se propõe uma investigação exaustiva, caminhando por textos outros que a
Fenomenologia e chegando a conclusões que este estudo não pôde acompanhar – a saber, que o “homem
cordial” se limitaria a uma descrição da classe dominante, posição amplamente desmentida pelos vários
momentos em que Sergio se vale de manifestações da cultura popular antes e durante o capítulo V. Ainda
assim, as aproximações hegelianas são proveitosas. COSTA, Iná Camargo. Sergio Buarque, o “Homem
Cordial” e uma crítica inepta. Outras palavras, 11/05/2018. Texto disponível em:
https://outraspalavras.net/poeticas/sergio-buarque-o-homem-cordial-e-uma-critica-inepta/. Último
acesso em 19/07/2020.
183
A Antígona é citada duas vezes na Fenomenologia do espírito: uma, no §437 o ultimo antes do
capítulo “O espírito”, onde é discutida a razão examinando as leis, e outra, no §470, na parte sobre a
ética do capítulo “O espírito”. Sergio parece ter em mente as duas, pois na primeira Antígona representa
264
hegelianamente, já desponta, como um botão de flor ainda por desabrochar, esse termo
culminante da sua filosofia. Qual a possível relação da “lei do coração” hegeliana com
a “cordialidade” brasileira? Evitando, na medida do possível, o vocabulário pouco
acessível do filósofo alemão, pode-se dizer que a lei do coração é um estágio de
compreensão do mundo ético que vê a não-coincidência entre sua ideia do que deveria
ser e o que é como uma perversão do mundo. Só que o “coração” não dialetiza sua
compreensão do dever-ser, colocando-se no lugar do Outro, então não percebe que é,
ele próprio, a sede da perversão, e que o “curso do mundo” não foi efetivamente
compreendido em seu julgamento inicial e unilateral. A eticidade [Sittlichkeit] real e
não pervertida só pode existir quando a universalidade da lei tiver superado a
unilateralidade do coração – quando a consciência for capaz de deixar para trás a
obsessão de sua singularidade. Ou, para citar o próprio Hegel num momento de relativa
clareza, no §373 da sua Fenomenologia:
a ética, e na segunda a infração da ética; essa passagem entre um estado e outro é a “superação” ou, nos
termos da tradução consultada, “suprassunção” do conflito, com o qual a ética familiar dá lugar à pública.
Antígona comete a ação criminosa conscientemente e sofre porque, ao cometer o crime, sabe estar no
erro sente a dor do remorso. Esse sofrimento é indicado como efetivação, na consciência, da norma ética:
“O ato consumado inverte o ponto de vista da consciência; a implementação enuncia, por si mesma, que
o que é ético deve ser efetivo, pois a efetividade do fim é o fim do agir. […] Devido a essa efetividade,
e em virtude do seu agir, a consciência ética deve reconhecer seu oposto como efetividade sua; deve
reconhecer sua culpa: ‘Porque sofremos, reconhecemos ter errado’ [Antígona, v. 926]” Fenomenologia
do espírito, cit., p. 296-7, 318-9.
265
Por meio do conceito de seu agir, o indivíduo determinou de maneira mais exata como
é que se volta contra ele a universalidade efetiva – da qual se fez propriedade. Seu agir,
como efetividade, pertence ao universal; mas seu conteúdo é a própria individualidade,
querendo manter-se como este singular, oposto ao universal. Não se trata aqui do
estabelecimento de qualquer lei determinada; porém, a unidade imediata do coração
singular com a universalidade, é o pensamento que deve valer e ser erigido em lei: “que
todo coração deve reconhecer-se a si mesmo no que é lei”.
Mas só o coração deste indivíduo pôs sua efetividade no seu ato, que exprime seu ser-
para-si ou seu prazer. O ato deve valer imediatamente como universal, quer dizer, é na
verdade algo particular: da universalidade tem apenas a forma; seu conteúdo particular
deve, como tal, valer por universal. Por isso os outros não encontram realizada nesse
conteúdo a lei de seu coração, e sim a de um outro. Ora, de acordo com a lei universal,
justamente – de que “cada um deve encontrar seu coração no que é lei” –, voltam-se
contra a efetividade que este indivíduo propunha, assim como ele se voltava contra a dos
outros. Por conseguinte, o indivíduo, como antes abominava somente a lei rígida, agora
acha os corações dos próprios homens, contrários a suas excelentes intenções e dignos
de abominação.184
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
184
HEGEL, Fenomenologia do espírito. cit., p.258-259.
185
Se há uma psicologia na Fenomenologia, ela não é sistemática, no sentido de uma descrição estática,
mas sim dinâmica, e não admitiria um conceito estável como o que normalmente se entende por “afeto”
– não, pelo menos, como categoria descritiva. Conforme o § 24, no Prefácio (Vorrede), a ciência deve
ser sistema, mas procede a partir de postulados que serão, no decurso do processo de conhecer, refutados.
Dessas proposições, mais adequado do que dizer que são erradas, é dizer que são o começo da ciência
(p.36).
186
A esse respeito, lembre-se que, no único comentário mais alentado, salvo engano, que Sergio Buarque
fez sobre Hegel, numa resenha do livro Dialética do conhecimento, de Caio Prado Jr, Sergio parafraseia
uma crítica do psicólogo Willy Hellpach (nenhum livro é referido) sobre a dialética. Nesse momento,
pelo menos ele já se mostra bastante cético, se não tanto do método, da certeza otimista com que Hegel
demonstra a progressão da consciência: “Uma análise recente pode mostrar de modo engenhoso a
unilateralidade do tipo de desenvolvimento proposto por Hegel. Segundo observou Hellpach, só é
266
vê nisso um valor negativo, é difícil determinar com certeza187 . Parece pelo menos
plausível, a julgar pela evolução da narrativa de Raízes do Brasil (lembre-se, aliás, que
a Fenomenologia do espírito é muito mais uma narrativa da consciência em seus vários
momentos, do que seu “sistema”, na acepção mais corrente da palavra), que há uma
profunda afinidade com o método hegeliano de apresentar a realidade sob pontos de
vista e formações valorativas diferentes, dependendo do momento em que a
consciência está, de modo que a experiência da consciência se desdobra em evolução
dinâmica.
possível chegar-se da posição [tese] à negação [antítese] nos casos particulares, em que aquela atinge
uma pressão extremada, fazendo-se hipértese. Podem distinguir-se também, entre antíteses, as que
assumem caráter radical (progressivo) e tradicional (regressivo). Além disso, é preciso contar com as
várias parateses, que se separam da tese, mas não a negam de todo. A síntese, por fim, toma sempre
elementos destacados, ora da tese, ora de um outro tipo de antítese – o radical e o tradicional – de modo
que a viabilidade da síntese depende constantemente da energia da personalidade criadora, que colabora
no processo.” HOLANDA, Sergio Buarque de. “Verdade e ideologia III, EC, II, p. 209-10. Texto
originalmente publicado no Diário Carioca de 25 de maio de 1952.
187
Em sua leitura da “tragédia familiar” hegeliana de Antígona e Creonte, mais preocupada com essa
passagem em particular do que com a presença hegeliana no livro todo, Pedro Meira Monteiro conclui
que Raízes não endossa a confiança de Hegel na vitória do Espírito sobre Antígona. Signo e desterro,
cit., p. 52.
267
Assim, só raramente nos aplicamos de corpo e alma a um objeto exterior a nós mesmos.
E quando fugimos à norma é por simples gesto de retirada descompassado e sem
controle, e não regulados por livre iniciativa. Somos notoriamente avessos às atividades
morosas e monótonas – desde a criação estética até às artes servis – em que o sujeito se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Seguindo, mais uma vez, uma linha de raciocínio bastante aparentada da analítica
hegeliana da consciência, vemos aqui que o pensamento é compreendido como forma,
e, como o processo de formação é resultado, necessariamente, de trabalho, a
188
RB, p. 113.
189
RB, p. 113-4.
268
No trabalho não buscamos senão a própria satisfação, ele tem o seu fim em nós mesmos
e não na obra, um finis operantis e não um finis operis. As atividades profissionais são,
aqui, meros acidentes na vida dos indivíduos, ao oposto do que sucede entre outros
190
Note-se como Sergio antecipa aqui, com a ajuda de Hegel, mas sem a de Marx, o famoso diagnóstico
por Roberto Schwarz das “ideias fora do lugar” (cit.).
191
É claro que isso não se dá exatamente como nas descrições das figuras, até porque a exposição da
Fenomenologia hegeliana é admitidamente uma redução realizada para fins expositivos (§25-28, p. 36-
40).
269
Essa obsessão persistente pelos “meios de vida definitivos” que exigem “um
mínimo de esforço pessoal, de aplicação da personalidade” é, naturalmente, uma
relíquia de tempos feudais, mas que persiste como um “cultural lag”196. O correlato
dessa aversão ao trabalho na vida intelectual, que é talvez o objeto mais privilegiado
de Raízes do Brasil, está, para além da já mencionada incapacidade em gerar formas
próprias e expressivas da alma nacional, uma obsessão por soluções definitivas na vida
intelectual, que dispensarão o indivíduo, assim como o diploma superior, da degradante
necessidade de esforçar-se em algo que não tem nele mesmo o seu fim, daquilo que
Hegel chamou “o sério, a dor, a paciência e o trabalho do negativo”197 . Este é, talvez,
192
RB, p. 114. Aqui Sergio insere uma nota citando a famosa observação da Ética protestante de Weber
sobre a coincidência entre as palavras “trabalho” e “vocação” nas línguas de países protestantes, iniciada
na Bíblia de Lutero. Weber é referido aqui como “o mais eminente sociólogo moderno”.
193
RB p. 114-5.
194
RB, p. 115-6.
195
RB, p. 117.
196
RB, p. 117-8.
197
Fenomenologia do espírito, cit., §19, p. 33.
270
o momento mais brilhante de Raízes do Brasil – muito mais importante, aliás, do que
a discussão de sistemas políticos, pois a precede logicamente:
Um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis gerais, que circunscrevem a
realidade complexa e difícil dentro do âmbito dos nossos desejos, é dos aspectos mais
constantes e significativos do caráter brasileiro. Essas construções da inteligência
constituem um repouso para a imaginação, comparável à exigência de regularidade a
que o compasso musical convida o corpo do dançarino. O prestígio da palavra escrita,
da frase lapidar, do pensamento inflexível, o horror ao vago, ao hesitante, ao fluido, que
obrigam à colaboração e ao esforço, assim a certa dependência e mesmo abdicação da
personalidade têm determinado assiduamente nossa formação espiritual. Tudo quanto
dispense um trabalho mental contínuo e fatigante, as ideias claras, lúcidas, definitivas,
que favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a
verdadeira essência da sabedoria.198
Não a imaginação, mas o repouso da mente, não a inteligência viva, mas a sua
neutralização, não a dinamicidade do real, mas a fixidez das coisas em formas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
convenientes aos desejos individuais – é isso que os brasileiros procuram nos livros, na
arte, na vida do espírito. Compreende-se assim o sucesso da exótica doutrina
positivista, não só no Brasil, mas também no Chile e no México, “justamente por esse
repouso que permitem ao espírito as definições irresistíveis e imperativas do sistema
de Comte”, cujas ideias se tornavam especialmente atraentes por sua “capacidade de
resistir à fluidez e à mobilidade da vida” e por oferecer uma certeza “edificante” de que
suas próprias ideias (ou melhor, as que haviam tomado emprestadas a livros
importados) triunfariam inevitavelmente: “O mundo acabaria irrevogavelmente por
aceitá-las, só porque eram racionais, só porque a sua perfeição não podia ser posta em
dúvida e se impunha obrigatoriamente a todos os homens de boa vontade e de bom
senso”199. Os brasileiros foram até o ponto de falsificar a própria história e tradição,
ainda que imaginassem, “candidamente”, respeitar o “estado preexistente” da nação200.
Conformaram-se em ler mal a própria história para conformá-la a uma doutrina
supostamente definitiva, à revelia do mundo real:
Não existiria, à base dessa confiança no poder milagroso das ideias, um secreto horror à
nossa realidade nacional? No Brasil, os positivistas foram sempre paradoxalmente
198
RB, p. 118.
199
RB, p. 118-9.
200
RB, p. 119.
271
negadores. [...] Viveram narcotizados por uma crença obstinada na verdade de seus
princípios e pela certeza de que o futuro os julgaria e aos seus contemporâneos, segundo
a conduta que adotassem, individual e coletivamente, com relação a esses princípios.
Essas convicções os defendiam do resto do país, no recesso dos gabinetes, pois foram,
todos eles, grandes ledores. [Seu] instinto essencialmente negador vedou-lhes
continuamente a possibilidade de inspirarem qualquer sentido construtivo, positivo aos
nossos negócios públicos. As virtudes que ostentavam – a probidade, o desinteresse –
não eram forças com que lutassem contra políticos mais ativos e menos escrupulosos. 201
201
RB, p. 120-1.
202
RB, p. 122.
272
uma vocação para o pensamento abstrato – muito pelo contrário – mas por oferecer
precisamente uma distração da realidade. Desse modo, o liberalismo é adotado em
primeiro lugar por seu prestígio, e não por uma capacidade de ajuste ao quadro da vida
nacional – esse ajuste chega a ocorrer, mas se manifesta apenas onde o liberalismo
nega a autoridade real. Esse é o “mal-entendido”: ama-se a “liberdade” sem que ela
efetivamente participe de um mecanismo construtor de autoridade legítima para o
Estado e para a sociedade. Ocorre uma inversão – procedimento típico das operações
interpretativas de Sergio Buarque, para quem o Brasil tem um dom de virar as coisas
de ponta-cabeça – por meio da qual as polaridades políticas que fundamentam o
aparecimento da democracia liberal estão invertidas. Talvez Sergio tenha elaborado a
ideia do “mal-entendido” pensando no quadro sinótico das forças políticas do século
XIX inserido por Carl Schmitt numa das últimas páginas de seu Conceito do político203:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
como como
parlamentarismo ditadura
203
The concept of the political, cit., p. 75.
273
204
RB, p. 122.
205
RB, p. 123.
206
Carl Schmitt, The concept of the political, cit. p. 49.
274
207
RB, p. 124.
208
No Retrato do Brasil (1928), o capítulo que trata do século XIX é intitulado “O romantismo”, e o
“Post-Scriptum”, que se debruça sobre o contexto politico da já caduca Primeira República, ocupa a
mesma posição que “Nossa Revolução”; aliás, apontando para um prognóstico semelhante, embora, para
o significado do termo em Raízes do Brasil seja bem diferente. Também Plínio Salgado identificará em
sua Psicologia da Revolução (1953 [1933], cit., p. 95-106) liberalismo e romantismo como formações
ideológicas especialmente danosas ao Brasil, e típicas do século XIX,
275
podia ser simplesmente rejeitada, pois sempre necessariamente “dura” e “triste”, como
ensinavam os modelos da literatura agora em voga – modelos já antecipados nas
tendências melancólicas da lírica lusitana. Essa continuidade também no plano
artístico-formal não deixa de ser percebida pelo historiador, que aqui se vale, como em
tantos outros momentos de brilho, de seu talento de crítico literário:
209
RB, p. 124.
210
RB, p. 124-5. Note-se, salvo pela nota racialista ao final do trecho, a proximidade dessa argumentação
com a que se encontra na passagem que fecha o capítulo “O romantismo” do Retrato do Brasil: “Quase
todos os nossos poetas desse tempo morreram moços e tiveram o pressentimento dessa fatalidade. Morte
e amor. Os tois refrãos da poesia brasileira. O desejo de morrer vinha-lhes da desorganização da vontade
e da melancolia desiludida dos que sonham com o romanesco na vida de cada dia. E fisicamente fracos
pelo gasto da máquina nervosa, numa reação instintiva de vitalidade, procuravam a sobrevivência num
erotismo alucinante, quase feminino. Representavam assim a astenia da raça, o vício das nossas origens
276
mestiças. Viveram tristes, numa terra radiosa.” PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 125.
211
RB, p. 160.
277
maior escritor: “Machado de Assis foi a flor dessa planta de estufa”212. O ataque quase
rancoroso contra a arte de Machado não deixa de reconhecer a grandeza de sua obra:
afinal, trata-se de uma “flor” num livro sobre a formação brasileira encabeçado pela
palavra “raízes”. Apenas as raízes de Machado não são as “verdadeiras” raízes
brasileiras, ou pelo menos não atualizam uma forma que dá seguimento ao
desenvolvimento “natural” das formas na arte brasileira – floresceu numa estufa.
Na sequência desse juízo sobre Machado de Assis, Sergio passa a um comentário
geral sobre a intelectualidade:
212
RB, p. 124-5.
213
RB, p. 126. Paragrafação condensada.
278
formar o mundo em acordo com os axiomas de sua geometria política. Rousseau se move
essencialmente em meio a esse moule classique, que vai se estreitando e enrijecendo até
que, ao fim e ao cabo, um intelectualismo estéril destrói tudo. Coerentemente, o que
214
Political Romanticism, cit., p. 97.
215
Ibid., p. 100-1.
216
Political Romanticism, cit., p. 24..
279
217
Ibid., p. 28..
280
Entende-se melhor à luz do que se leu acima o significado das várias invectivas
de Raízes do Brasil contra o liberalismo. Isso não quer dizer, que fique claro, que Sergio
partilhe exatamente das mesmas convicções reacionárias de Schmitt, que não se cansa
de elogiar pensadores que fundamentam sua reflexão política em sua íntima convicção
da maldade extrema e irremediável da natureza humana 219 . Diferentemente dos
reacionários comentados (e admirados) por Schmitt, Sergio não se resigna a vaticinar
o mal fundamental do homem, e chega mesmo a declarar a incompatibilidade de uma
tal doutrina com o gênio nacional220; daí ser inviável no Brasil uma autoridade estatal
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
totalitária que se legitimasse pela ideia de uma salvaguarda contra o triunfo do mal na
Terra, como queriam, em diferentes contextos, Otávio de Faria e Donoso Cortés221. A
ideia de “revolução” encerrada em Raízes do Brasil parece incluir os dois “demiurgos”
descritos por Schmitt: tanto uma força irresistível de modernização e secularização
quanto um passivo histórico que não se pode ignorar. O problema do passivo histórico,
porém, é duplo, pois, ao mesmo tempo em que a herança colonial há de ceder
inevitavelmente, seria preciso encontrar um meio de articular as novas formas de vida
com a tradição. Que essa tradição seja completamente desprovida de forma, resumindo-
se em grande medida ao “fundo emocional rico e transbordante”, é algo que põe a
218
Political Romanticism, cit., p. 62.
219
Leia-se o ultimo capítulo da Teologia política (cit., p. 53-66) sobre a teoria do Estado
contrarrevolucionária de Bonald, de Maistre e Donoso Cortés, e compare-se o que se lê ali com a “Nota
E” de Raízes do Brasil, onde Sergio ataca mordazmente o fascista Otávio de Faria, que parece encarnar
quase idealmente alguns traços que Schmitt encontra nos reacionários, especialmetne Donoso Cortés.
220
“A noção da bondade natural do homem combina singularmente com o nosso já assinalado
‘cordialismo’. A tese de uma humanidade má por natureza há de parecer-nos, ao contrário, extremamente
antipática e desconcertante.” RB, p. 154.
221
A teoria política de Pascal já justificava o arbítrio das autoridades terrenas como uma necessidade em
si, independente da eventual injustiça de seu conteúdo, em virtude da maldade fundamental do homem,
como demonstrou Erich Auerbach em inspirado ensaio. AUERBACH, Erich. O triunfo do mal: Ensaio
sobre a teoria política de Pascal. In: Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Ed. 34; Duas Cidades,
2007. Mais recentemente, em livro que não se teve a oportunidade de consultar na elaboração deste
trabalho, Carlo Ginzburg procurou remontar as origens da antropologia política de Schmitt a Maquiavel,
através de Pascal. GINZBURG, Carlo. Nondimanco. Machiavelli, Pascal. Milão: Adelphi, 2018.
281
Tem-se definido como uma marca distintiva do romântico o estar sempre em fuga. Isso
passa tão longe do essencial quanto explicações em termos da busca da nostalgia de
coisas mais altas e histórias parecidas. O romântico se retira da realidade. Ele o faz,
porém, ironicamente, e num espírito de intriga. Ironia e intriga não perfazem o estado
mental de uma pessoa em fuga, mas antes a atividade de uma pessoa que, em vez de criar
novas realidades, joga uma realidade contra a outra, de modo a paralisar a realidade
efetiva e limitada. Ele evita ironicamente as limitações da objetividade e se previne
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
O trecho talvez não faça justiça à obra de Machado, tal como se a veio estudando
desde meados do século XX, mas ela parece estar afinada com a leitura que Sergio
Buarque faz do escritor, que nele identifica sobretudo um pessimismo extremo,
amargurado e difuso, que não aponta para nenhum conteúdo específico em sua
crítica 223 . Assim lido, Machado de Assis não teria reagido contra a realidade que
detestava, apenas a teria contraposto com imagens de realidades ideais em jogos
irônicos e fundamentalmente estéreis, ainda que muitíssimo refinados. Assim, sua obra
222
Political Romanticism, cit., p. 71-2.
223
Cf. a resenha que Sergio escreve sobre A filosofia de Machado de Assis, de Afrânio Coutinho
publicada no Diário de Notíticas em 22 de novembro de 1940 e depois reproduzida em Cobra de Viddro.
“A filosofia de Machado de Assis”, EL, I, 305-12; CV, p. 53-8
282
participaria da mesma disposição alienada do mundo, que não produz formas de arte a
partir de conteúdos reais, mas deles faz apenas pretextos estéticos para a produção de
imagens ocas que nada significam senão a vaidade das coisas reais. Dessa mesma
disposição estetizante nasce o “amor bizantino dos livros” que aparece, assim como o
anel de grau e o diploma de bacharel, como “um penhor de sabedoria e um indício de
superioridade mental” – e aqui Machado é apenas a manifestação mais refinada de um
vício encontrado em figuras muito menos notáveis, cuja origem está na fetichização
dos “símbolos concretos” do status espiritual, pois as ideias mesmas “não nos são
acessíveis sem uma intervenção assídua do corpóreo e do sensível”224. Em mais um
momento de brilho de sua análise, Sergio Buarque nos apresenta com a curiosa noção
de que mesmo a vida intelectual é subordinada ao sentimento estético das coisas do
mundo – o valor das ideias está de alguma maneira derivado do prazer puramente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
224
RB, p. 126-7.
225
Um testemunho eloquente da pertinência dessa tese é a estapafúrdia justificativa que Joaquim
Nabuco, homem de cuja inteligência não seria razoável duvidar, oferece para a monarquia: “Muitos
argumentos me foram apresentados na mocidade em favor da monarquia; nenhum, porém, teve para
mim a força persuasiva, a evidência, destes dois, um que me foi formulado no Píncio, outro que me foi
formulado no Hyde Park: a princesa Margarida de Saboia e a princesa de Gales. A republicanos de boa
fé estética — ponhamos tanto os bárbaros como os anacoretas de parte — eu não quisera apresentar
outros. A monarquia moderna faria bem para sustentar-se em promulgar a lei sálica em sentido contrário,
isto é, em neutralizar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria
isso fazer política experimental, que não se basearia somente no esplêndido e pacífico jubileu da rainha
Vitória e na calma relativa em tempos cruéis para a Espanha da regência de d. Maria Cristina, mas no
profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma mulher. A entrada triunfal
em Paris dos restos de Napoleão nunca fará um quadro como o que Tácito nos deixou do Campo de
Marte, no ‘dia maravilhoso’ em que foram depositadas no túmulo de Augusto as cinzas de Germânico
traduzidas por Agripina. Se ao prestígio da posição se alia na mulher a irradiação da mocidade e da
beleza, pode-se dizer que ela tem no cetro um condão de fada. A formosura das rainhas tem, quando é
perfeita, um reflexo seu exclusivo, combinação de bondade e soberania, de encanto pessoal e grandeza
nacional, de dependência, tremor mesmo, do Destino, e proteção e amparo para os que se acolhem ao
seu manto, que forma a dupla projeção, ascendente e descendente, do povo para o trono e do trono para
o povo, que na ordem espiritual fez a Rainha dos Anjos comparar-se a si mesma com o arco-íris.” Minha
formação, cit., p. 117-8. Um pouco antes, lê-se, sobre a transição de simpatias republicanas para as
monárquicas: “eu trocara em Paris e na Itália a ambição política pela literária, crítica, isto é, com uma
espessa camada europeia na imaginação, camada impermeável à política local, a ideias, preconceitos e
paixões de partido, isoladora de tudo que em política não pertencesse à estética, portanto também do
republicanismo — porque a minha estética política tinha começado a tornar-se exclusivamente
monárquica.” (p. 99).
283
Atento à estrutura cognitiva sensualista que traçara para o homem cordial, Sergio passa
a uma revista de um dos aspectos mais toscos e até grotescos dessa atitude, isto é, a
“satisfação dos cinco sentidos” que d. Pedro II extraía do contato com os livros
(“visual”, “tátil”, “auditivo” – “pelo brando crepitar do folheá-lo”, “olfativo” e até
“gustativo” – pelo “sabor intelectual dos livros, ou mesmo físico”), em depoimento
oferecido “sem malícia” (o mesmo não se pode dizer do narrador de Raízes do Brasil)
por um admirador do monarca226. Nessa “perversão” de “transformar nossa realidade a
seu gosto”, o imperador demonstrava estar próximo dos positivistas, eles também
“grandes amigos da leitura”, onde aprendiam esse “gosto” por um “quadro social
milagrosamente destacado de nossas tradições portuguesas e mestiças” criado em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
226
RB, p. 127.
227
RB, p. 127-8.
228
Fenomenologia do espírito, cit., §377, p. 261.
284
prosperidade dessas nações: é claro que nenhuma demonstração absoluta será possível
sobre esse ponto. [A citação termina sem o fecho das aspas]229
ideológica do tipo que terá presidido, por exemplo, o corte das referências a Spengler
(a exclusão do nome de Sorel talvez tenha se dado simplesmente pela reputação
“tóxica” que seu pensamento adquiriu no pós-guerra, à diferença do alemão, cujas
ideias realmente sustentam estruturalmente as teses de Raízes) 230 , extraída não das
229
RB, p. 128. Raciocínio parecido aparece na discussão de Schopenhauer sobre o Estado, tal como
citada nas Considerações de um apolítico, p. 112-4. Na Alemanha, a democracia é sempre uma
“tradução”; Schopenhauer censura as imitações alemãs do constitucionalismo monárquico inglês, com
câmaras alta e baixa, habeas corpus, mas elogia a tenacidade com que os ingleses se apegam a ele, pois,
em sua terra, essas formas se conformam ao caráter do povo, acrescentando que o “fraque” inglês ainda
é preferível ao “barrete frígio” francês. Considérations d’um apolitique, cit., p. 112-4.
230
Curiosamente, não é nenhum pensador alemão, mas precisamente Sorel que encarna, na
impressionante descrição dos encontros na casa de Sextus Kridwiss, a deriva da intelectualidade alemã
rumo ao irracionalismo e ao culto à violência no Doutor Fausto de Thomas Mann, de cuja primeira
edição, saída em 1947, Sergio possuía um exemplar. Não foi possível averiguar se ele teria lido o
romance a tempo de fechar a revisão de Raízes do Brasil naquele mesmo ano. A passagem onde o nome
de Sorel aparece, de todo modo, é bastante indicativa do tipo de associações que, no imediato pós-
Segunda Guerra, seu nome convidava: “Ninguém se admirará ao ouvir que, nos debates dessa vanguarda
da crítica da cultura, um livro publicado sete anos antes da guerra, as Réflexions sur la violence, de
Georges Sorel, desempenhava um papel importante. Sua inexorável previsão de guerra e anarquia, sua
caracterização da Europa como um solo de perigosos cataclismos, sua teoria segundo a qual uma só
ideia, a de guerrear, será capaz de unir os povos – tudo isso explicava que seus leitores o chamassem o
livro da época. Mas o que ainda mais justificava esse apreço era a convicção com que o autor anunciava
que, numa era gregária, as discussões parlamentares se revelariam totalmente inadequadas como meios
de forjar uma vontade política e que no futuro as massas deveriam ser providas de ficções míticas,
destinadas a desenfrear e ativar as energias políticas, à maneira de primitivos gritos de guerra. Eis o que
o livro de fato vaticinava de um modo cru e emocionante. Mitos populares, ou melhor, mitos adaptados
à mentalidade das massas, se tornariam doravante veículos do movimento político: fábulas, quimeras,
visões fantasmagóricas que não necessitassem de base alguma na verdade, na razão, na ciência, mas,
apesar disso, se mostrassem criativas, determinando o curso da vida e da história, e dessa forma
evidenciassem seu poder de realidades dinâmicas. Como se vê, a obra fazia jus a seu título ameaçador,
285
prosperidade dessas nações: é claro que nenhuma demonstração absoluta será possível
sobre esse ponto. Esse método supõe que a prosperidade de um povo depende de um
mosaico de causas distintas e dissociáveis que podem ser transportadas de um país para
outro, trazendo consigo sua virtude criadora de felicidade ou de riqueza. É uma
concepção completamente absurda; mas ela corresponde tão perfeitamente à nossa
prática industrial que temos grande dificuldade de nos desvencilhar dela: numa fábrica,
a grande questão não é sempre estar em dia com os mais ínfimos progressos que se
aplicam entre os concorrentes?231
pois seu tema era a violência como oponente vitorioso da verdade. Entendia-se através dela que o destino
da verdade muito se assemelhava ao do indivíduo e até se identificava com ele, pois ambos enfrentavam
a desvalorização, o livro abria ironicamente um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a
verdade e a coletividade”. MANN, Thomas [1947]. Doutor Fausto. A vida do compositor Adrian
Leverkühn narrada por um amigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 425.
231
SOREL, Georges [1903, 1922]. Introduction à l’économie moderne. Chicoutimi, Québec: Cégep,
2003, p. 54-55. Tradução do autor, aproveitando o trecho traduzido e citado por Sergio Buarque de
Holanda. O grifo que aparece em Raízes do Brasil (“papel preponderante”) é de Sergio.
232
Reunidos em EC, I.
286
erro dos “pedagogos da prosperidade” está em compreender que o todo (um país
próspero) é composto pela totalidade de suas características, como se, em concerto,
elas causassem o desenvolvimento, sendo, portanto, passíveis de aplicação em outros
contextos, onde se poderiam esperar os mesmos efeitos. Na esteira do raciocínio de
Sorel, Sergio compreende que, ao contrário, essas características já são elas próprias
expressão de um contexto ao qual aplicar uma fórmula estranha não adiantará grande
coisa, pois não a ação isolada de um elemento abstraído como, no caso, a política de
universalização do letramento, não reproduz uma suposta eficiência:
Um exemplo fácil é o que ocorre com a miragem da alfabetização. Quanta inútil retórica
se tem desperdiçado para mostrar que todos os nossos males seriam resolvidos de um
momento para o outro, no dia em que estivessem difundidas as escolas e a instrução
popular! Certo publicista [...] afirma que se fizermos nesse ponto como os Estados
Unidos, “em vinte anos o Brasil estará alfabetizado e, assim, ascenderá à posição de
segunda ou terceira grande potência no mundo.” [...] Imagine-se como não ficariam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
233
RB, p. 128-30.
287
Norte. E de que, com seus 6 milhões de adultos analfabetos, os Estados Unidos, nesse
ponto, comparam-se desfavoravelmente a outros países menos ‘progressistas’. Em uma
só comunidade de Middle West, de cerca de 300 mil almas (e uma comunidade, por
sinal, que se vangloria de seu apreço às coisas da cultura, a ponto de se considerar uma
segunda Boston), é maior o número de crianças que não frequentam as escolas, afirmava,
não há muitos anos, uma autoridade norte-americana em questões de educação, do que
em todo o Reich alemão.234
234
RBC, p. 291, 297n.
235
TODD, Arthur James. Theories of social progress. A critical study of the attempts to formulate the
conditions of human advance. Nova York : Macmillan, 1918, p. 522-3.
236
VIANNA, Hélio. “Nota sobre Raízes do Brasil. O Jornal, 30 nov 1936. Também Álvaro Augusto
Lopes considera acertada a crítica de Sergio. LOPES, Álvaro Augusto. “À margem dos livros”, A
tribuna, Santos, 9 nov 1936. Não está clara qual a filiação política de Lopes, mas seu elogio do
“Espírito”, no mesmo texto, se não o associa ao integralismo, talvez denuncie uma pertença à direita
católica.
288
educação emancipadora da família não parece autorizar que Sergio tivesse ido buscar
sua pedagogia em ideologias tradicionalistas ou reacionárias. Quando publicou Raízes
do Brasil, Sergio estava em vias de começar seu primeiro emprego como professor
universitário na Universidade do Distrito Federal, criada sob os auspícios da gestão de
Anísio Teixeira na Secretaria de Educação do Distrito Federal. Anísio, que fora
indicado ao posto pelo prefeito Pedro Ernesto, lançara em 1933 o livro Educação
progressiva: uma introdução à filosofia da educação – em suas próprias palavras, uma
exposição da doutrina pedagógica de John Dewey – e, em 1936, Educação para a
democracia: introdução à administração educacional, livro que escreveu baseado em
sua experiência frente à Secretaria. Traduziu, também, de Dewey, Democracia e
educação, cuja edição brasileira saiu em 1936. Na segunda edição de Educação
progressiva (1934), podemos ler uma censura semelhante à ideia da alfabetização
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
universal como panaceia para os males nacionais237. No mesmo livro, vamos encontrar
uma passagem bastante convergente com as observações de Sergio Buarque sobre a
autonomização da criança e sua integração ativa à organização social moderna como
objetivo do processo pedagógico (cf. a seção anterior deste capítulo), o que não
surpreende, pois Dewey, cuja doutrina o livro compendia, era o mestre da nova
pedagogia americana à qual se filiava Knight Dunlap, o pedagogo que de fato é citado
em Raízes do Brasil:
237
TEIXEIRA, Anísio. Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação. São Paulo:
Nacional, 1934.
238
Educação progressiva, cit., p. 20-1.
289
239
RB, p. 130.
240
RB, p. 131.
290
solidariedade e dessa luta” 242 . Ou seja, para um povo ainda imaturo, uma política
tutelada era uma solução pedagógica adequada. Que o próprio Pedro II seja retratado
com os ares de um professor apenas vem confirmar que são pedagógicas as
considerações que subjazem a essa discussão.
***
241
Outro diálogo possível é com a teoria política naïve-conservadora de Thomas Mann, Segundo a qual
a democracia tivesse sido imposta à Alemanha pela “civilização internacional”, porque o próprio Estado
nacional moderno, tendencialmente democrático-popular, seria próprio dessa, e não da “cultura
nacional”. Considérations d’um apolitique, cit., p. 231.
242
RB, p. 131.
291
teoria política ou filosofia da educação, e sim numa obra de ficção de um autor que
abordou algumas vezes o problema pedagógico, e que era dos preferidos de Sergio
Buarque: a Montanha mágica, de Thomas Mann 243 . É isso, ao menos, que se vai
procurar demonstrar nesta segunda parte da presente seção.
Já se viu anteriormente (Interlúdio) como alguns lugares literários e, ainda mais,
a estrutura narrativa e argumentativa dos romances de formação desempenham um
papel importante na elaboração das narrativas historiográficas, especialmente aquelas
ostensivamente orientadas para a formação nacional na fase moderna da construção
dos Estados. Não deveria surpreender, portanto, que um admirador tão devoto de
Thomas Mann como foi Sergio Buarque, que reproduz algumas opiniões e, sobretudo,
certa atmosfera argumentativa irônica do escritor alemão colhidas, segundo se veio
analisando até aqui, das Considerações de um apolítico, reproduzisse também alguns
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
traços da sua prosa de ficção. Uma ficção, aliás, ostensivamente aproximada do ensaio,
da filosofia e até da sociologia244 . É preciso advertir que uma aproximação entre a
Montanha Mágica e Raízes do Brasil impõe algumas dificuldades. A primeira delas é
que a Montanha Mágica, como já notaram muitos intérpretes, é um livro que parece
ter sido composto como uma paródia do gênero do romance de formação 245 . No
contexto do entre-guerras, e ainda mais no caso de Sergio Buarque, a recepção do
significado desse elemento paródico, ainda mais em se tratando de sua apropriação
numa obra historiográfica ou de interpretação sociológica, como Raízes do Brasil, fica
sempre ameaçada pelo risco de superinterpretações, ou mesmo de erros de leitura.
Mesmo assim, não se pode perder a oportunidade, salvo engano, inédita na fortuna
243
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
244
Sobre a centralidade do romance na fundamentação epistemológica das ciências sociais modernas, cf.
LEPENIES, Wolf. Les trois cultures: Entre Science et Litterature, l’avènement de la sociologie. Paris:
Maison des Sciences de l’Homme, 1990. No caso de Mann, os paralelos com a sociologia contemporânea
são flagrantes; veja-se o trecho das pp. 128-9 das Considerações supracitado. A presença específica da
sociologia weberiana, bem como as afinidades eletivas entre as reflexões de Mann e Weber, foram
analisadas por Harvey Goldman em dois importantes estudos. GOLDMAN, Harvey: Max Weber and
Thomas Mann: Calling and the Shaping of the Self. Berkeley, Ca.: University of California Press, 1988;
Politics, Death, and the Devil: Self and Power in Max Weber and Thomas Mann. Berkeley, Ca.:
University of California Press, 1992.
245
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. O murmurante evocador do passado. A montanha mágica e o
romance de formação após a Primeira Guerra Mundial. História da Históriografia, v. 7, n. 16, p. 108-9.
O artigo parte dessa constatação para proceder a uma crítica da noção de paródia e das ideias comuns
sobre sua valência cultural e existencial, chegando a conclusões bastante estimulantes que poderiam ser
aplicadas, com alguns reparos, para a própria historiografia de Sergio Buarque.
292
crítica de Raízes, de tentar reconstituir alguns lugares que Sergio Buarque poderia ter
extraído do grosso volume de Mann, e suas possíveis reverberações num ensaio
relativamente curto como seu livro de 1936.
Para os fins da presente análise, importa sobretudo a segunda metade do
romance; mesmo assim, um conhecimento básico da trama é necessário para
contextualizar os comentários que se seguem. Hans Castorp é um órfão rico – assim
como Thomas Mann – de uma família de comerciantes de Hamburgo – formação social
prototípica da época “heroica” do capitalismo analisada por Max Weber – destinado a
uma carreira de engenheiro naval. No começo do livro, Castorp exibe uma alienação
da tradição cultural que patenteia a crise do paradigma de formação humanística da
burguesia alemã (ver Interlúdio). Castorp já é um jovem adulto, mas seu
comportamento e suas falas ao longo do livro, especialmente na primeira metade,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
246
O episódio, tal como narrado e posteriormente aludido na memória do protagonista, se presta à
interpretação de que, na sequência da confissão de Hans Castorp, ele e Clawdia passam a noite juntos,
mas não há, salvo engano, uma confirmação textual disso.
294
do erro, que no entanto parece valer a pena correr. Comprovações documentais são
especialmente difíceis com o material à disposição, principalmente porque o campo
mais fértil para a verificação documental, na ausência de indicações textuais do autor,
seria o exemplar da Montanha mágica lido por Sergio Buarque, e esse não consta da
biblioteca que os detentores de seu espólio legaram à UNICAMP. O exemplar que lá
se encontra data de 1943 (Estocolmo, Ed. Berman-Fischer), de modo que não é possível
consultar os grifos que poderiam pelo menos ajudar a corroborar a hipótese de que tal
ou qual trecho poderia ter sido especialmente marcante para Sergio em suas leituras até
1936. O mesmo se dá, diga-se de passagem, com outro livro de Mann do qual há fortes
sinais de recepção em Raízes do Brasil, as Considerações de um apolítico, cujo
exemplar deixado por Sergio é de 1956 (Frankfurt, Ed. Fischer)247. De todo modo, o
247
É folclórica a obsessão de Sergio Buarque pela aquisição de novos livros, bem como sua disposição
em desfazer-se deles – toda uma parte de sua biblioteca foi doada a Antonio Candido, e hoje está, salvo
engano, indiscriminadamente, conservada na biblioteca da FFLCH-USP. Isso impõe ao menos algumas
ressalvas, no que diz respeito ao controle das hipóteses de interpretação, a análises como a de Sergio da
Mata (“Tentativas de desmitologia”, cit.), que procuram estabelecer interpretações a partir de grifos em
exemplares e do número de livros de tal ou qual autor (no caso, Spengler, cuja influência em Raízes é
de resto inegável, fato cuja revelação é um mérito quase exclusivo da pesquisa de Sergio da Mata, que
pode ser seguramente incluído entre os melhores comentadores contemporâneos de Raízes do Brasil)
constantes de uma biblioteca que não é necessariamente representativa da bibliografia que Sergio
efetivamente consultou à época da formulação do ensaio de 1936 – dela não consta, por exemplo, um
livro importantíssimo para a argumentação de Raízes, os Studies in Classic American Literature (Cf. a
próxima seção deste capítulo).
295
que está fora de dúvida é que a personagem de Leo Naphta exerceu um fascínio
persistente sobre Sergio Buarque de Holanda, a ponto de ele não ter se furtado a referi-
lo, citando textualmente A montanha mágica, em sua dissertação de mestrado
apresentada em 1958 à Escola de Sociologia e Política de São Paulo, intitulada
Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos. Num
primeiro momento, essa referência pareceria completamente disparatada numa
dissertação de mestrado em ciências sociais sobre Portugal do fim da Idade Média até
o século XVII. Mas ela se justifica quando se tem em mente uma das teses desse
trabalho: para Sergio Buarque, a presença judaica e mourisca – isto é, semítica, ou, de
modo mais amplo, “oriental” – na formação portuguesa teria deixado um sedimento
profundo nas sociedades portuguesa e brasileira modernas, sedimento esse escondido,
porém, pelo empenho do Estado português, já na época da Contrarreforma, em extirpar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
A esse respeito, não parece descabido lembrar certa passagem de um escritor dos mais
ilustres do nosso tempo, o qual, descendente de luso-brasileiros, do lado materno, se viu
alvo, por sinal, de críticas de antissemitas que pareciam querer atribuir-lhe sangue
judaico. Apenas é de notar que no trecho lembrado, os lusitanos ou melhor luso-
brasileiros, já não surgem assimilados aos judeus, segundo o velho costume. Estes, sim,
e a circunstância não deixa de ser igualmente significativa, é que irão parecer menos
judeus, em confronto com aquela gente. De um de seus personagens, Leo Naphta, cristão
novo e jesuíta, escreve, com efeito, Thomas Mann, que tivera a vocação sacerdotal
estimulada pelo ambiente tolerante e democrático de um pensionato que frequentou na
Alemanha, mantido por padres da Companhia, cujo cosmopolitismo tornava
despercebidos seus traços raciais: entre os discípulos do mesmo Naphta havia gente de
248
EF, p. 17.
249
EF, p. 73.
250
EF, p. 75
296
lugares exóticos, sul-americanos de origem portuguesa que se diria mais “judeus” que
ele próprio, filho, no entanto, de um schochet da Galícia, rigorosamente adstrito, em seu
ofício, aos preceitos talmúdicos.251
Mas o que Sergio Buarque viu de instigante em Naphta quando escrevia Raízes
do Brasil não terá sido, provavelmente, pelo menos de maneira decisiva, sua origem
judaica, mas antes sua doutrina pedagógica, além de sua posição política radical diante
do esgotamento da cultura humanística e burguesa da Europa do século XIX. O fato de
a segunda metade do romance ter como tema central uma alternativa política, mas,
antes disso, pedagógica, que se desenha nas discussões entre Naphta e Settembrini, é o
elemento de intriga que de fato aparece reproduzido, de maneira coincidente ou não,
em Raízes. Hans Castorp, o jovem ainda indeterminado e inculto, é o objeto de uma
disputa, ao fim e ao cabo, fatal, entre os dois pedagogos. Ainda que engenheiro e
alemão, o protagonista do romance não deixa de estar numa situação mais ou menos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
análoga daquele “estouvamento de povo moço e sem juízo” de que falava Sergio
Buarque, referindo-se aos brasileiros, em “O lado oposto e outros lados” (Cf. supra
cap. II, seção 3, “Duelo”). E parece mesmo que, nos capítulos finais de Raízes do
Brasil, a pedagogia e a política se entrelaçam no núcleo da problemática da adaptação
aos novos tempos: é como se o Brasil, à maneira de Hans Castorp, estivesse diante da
necessidade de tomar uma decisão para poder superar um estágio de estagnação, de
uma forma de vida já esgotada (no caso do Brasil, a ordem rural e patriarcal) para
alcançar uma maturidade autônoma. No caso de Hans Castorp, essa indefinição assume
ares nitidamente alegóricos e prenunciadores dos dois blocos políticos unidos pelos
respectivos complexos ideológicos – ou ao menos assim Mann parece figurá-los, não
sem boa dose de ironia – que se enfrentarão na Primeira Guerra Mundial252. Assim, as
alternativas que se apresentam sob roupagens políticas são antes de mais nada formas
251
EF, p. 100-1.
252
É com uma solenidade um pouco patética, mas que não deixa de ser comovente para os leitores que
já sabem o desenlace histórico que o problema da indecisão alemã entre o Ocidente e aquilo que a
Settembrini se apresenta como “a Ásia” – isto é, o despotismo, o irracionalismo, e também a
ambiguidade moral encarnada principalmente pela russa mme. Chauchat – que o beletrista se dirige a
Hans Castorp: “Caro amico! Será necessário tomar decisões, decisões de importância inestimável para
a felicidade e o futuro da Europa, e elas caberão ao seu país. Situado entre o Oeste e o Leste, terá de
escolher [...] por uma ou outra das esferas que lhe disputam a natureza. O senhor é jovem. O senhor
participará dessa decisão, sua vocação é influir sobre ela.” A montanha mágica, cit., p. 594.
297
presença de Settembrini também pode ser adivinhada aqui e ali, mas sempre mediada
pelo olhar mordaz de Naphta. Independentemente da eventual intenção de Thomas
Mann, que na altura em que publicou A montanha mágica já não sustentava tão
peremptoriamente todas as opiniões antidemocráticas e anti-iluministas de suas
Considerações de guerra, não é difícil, pelo menos a um leitor desavisado, chegar à
conclusão de que Naphta leva sempre melhor nos debates que trava com seu oponente
italiano. Dito isto, quem ler atentamente os debates perceberá uma ênfase
provavelmente deliberada da narração em destacar um grau apreciável de dependência
mútua, e mesmo elementos co-constitutivos, entre as ideias do jesuíta e as do
enciclopedista: quando a confrontação de ideias entre os dois chega a certo ponto – ou
ao menos assim o percebe o despreparado Hans Castorp, cujas intervenções costumam
demonstrar uma crassa incompetência em sua tentativa de atinar para o significado dos
discursos que concorrem por sua simpatia – já não é possível perceber facilmente qual
o conteúdo das ideias de cada um, e ainda menos o que as opõe, uma vez que a dialética
entre as duas posições foi levada a um momento em que elas são estranhamente
indistinguíveis 253 . Para ser mais preciso, depois de um primeiro retrato otimista e
253
Sobre um desses debates, o narrador conclui que “não resultou clareza nem ordem, nem ao menos
uma ordem de caráter dualista e militante; pois as posições não somente eram opostas, mas confundiam-
se”, e que Settembrini e Naphta, “ao invés de se limitar a combater-se reciprocamente, amiúde
contradiziam-se a si próprios”. A montanha mágica, cit., p. 535. Mais tarde, lemos que outra conversa,
298
do mestre italiano com algumas das novidades mais picantes que lhe são apresentadas
pelo jesuíta, ao afirmar sobre certo aspecto da doutrina maçônica, que ele, Castorp,
entende singelamente pela “ideia de riscar Deus”, que seria, a seu ver, “uma ideia
sumamente católica” 255 , numa de muitas interpretações desajeitadas de ideias que
recebe de seus mestres bem-formados, e que se podem ler ao longo de quase todo o
livro. Elas lembram, talvez, aqueles intelectuais brasileiros de Raízes do Brasil que,
não sendo capazes de compreender a necessidade das ideias e a lógica que lhes dá
coerência, se deixam seduzir pelas “doutrinas dos mais variados matizes”, sendo
capazes de sustentar, simultaneamente, as “convicções mais díspares”256. Pelo menos
num primeiro momento, Hans Castorp deixa-se guiar bovinamente pela argumentação
de Settembrini sobretudo pelas aparências impressionantes produzidas por sua suposta
excelência retórica257 – excelência que empalidecerá ao longo do convívio com Naphta.
precisamente a que parece a mais decisiva para Raízes do Brasil, iria “embocar naquela confusão já
mencionada” (p. 603).
254
Referindo-a à última fase das contendas entre os dois eruditos, o narrador faz uma observação que
talvez pudesse se aplicar a um período maior, considerando indicações dadas anteriormente: “Era claro
que Hans Casorp só podia falar das discussões a que assistia. Mas o jovem tinha quase certeza de não
haver perdido uma sequer, pois sua presença, ao tratar-se de um tema pedagógico, era indispensável para
dar grandeza aos colóquios”. A montanha mágica, cit., p. 798.
255
A montanha mágica, cit., p. 593.
256
RB, p. 114.
257
Ao final de um dos primeiros embates, uma longa declamação de Settembrini é seguida da observação
do narrador, que parece exprimir em discurso indireto livre a opinião de Hans Castorp: “Seria impossível
299
progresso”.
Com efeito, as tintas com que Mann carrega o retrato de Naphta são
impressionantes. Várias de suas opiniões ou elementos que lhe dizem respeito têm ecos
diretos ou indiretos em Raízes do Brasil, e não só em seus capítulos finais. A doutrina
filosófica de Naphta, espécie de síntese entre filosofia tomista e um marxismo um tanto
hermético, parece ter um forte componente hegeliano. Ouve-se dele, contra a asserção
de Settembrini de que “o espírito” e “a natureza” são idênticos, que o espírito tem um
“princípio motor, passional, dialético”, baseado no “dualismo” e na “antítese”, e que
“todo monismo é fastidioso”, ideias que ele faz questão de atribuir, em sua origem, a
Aristóteles259. Baseado em Tomás de Aquino e Boaventura, Naphta opõe o “mundo”
ao “divino” – o leitor de Raízes do Brasil, se lembrará aqui do capítulo inicial,
“Fronteiras da Europa”, onde se lê que os princípios hierárquicos sobre os quais a
filosofia escolástica pretendia erigir a ordem terrena eram uma “força inimiga [...] do
falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer” (p. 474). Settembrini
é insistentemente qualificado ao longo do livro como um mestre da palavra – embora nem tanto, talvez,
do pensamento; esse posto caberia antes a Naphta. Noutra parte, uma das perorações de Settembrini é
qualificada pelo narrador como “panegírico apologético” (p. 601) [apologetischer Lobgesang, p. 552];
logo mais, Naphta qualifica de “literário” e mentiroso o espírito do palavrório de Settembrini, opondo-
o à “vida” e à “natureza” (p. 602), ecoando os ataques do próprio Mann aos “literatos da civilização”
nas Considerações de um apolítico. A edição alemã da Montanha mágica consultada para controle é
MANN, Thomas. Der Zauberberg. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1988.
258
RB, p. 108.
259
A montanha mágica, cit., p. 432-3.
300
260
RB, p. 8-9.
261
A montanha mágica, cit., p. 463; Der Zauberberg, cit., p. 424.
262
A montanha mágica, cit., p. 677.
263
Lembre-se outra vez a teoria política de Pascal exposta em Auerbach (“O triunfo do mal”, cit.).
264
“Nenhum ditador moderno, nenhum teórico do comunismo ou do Estado totalitário, chegou a
vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que puderam conseguir os padres da
Companhia de Jesus em suas missões.” (RB, p. 14-5)
301
265
“As terras do educandário” onde Naphta foi acolhido “eram tão extensas quanto os seus edifícios, que
podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia
dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos, para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo
um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das
Musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral”. A
montanha mágica, cit., p. 511. Compare-se o trecho com a avaliação das reduções jesuíticas em Raízes:
animados pelo pensamento de que “o homem pode intervir arbitrariamente e com sucesso no curso das
coisas e de que a história não somente ‘acontece’. mas também pode ser dirigida e até fabricada”, os
jesuítas “não só o introduziram na cultura material das missões guaranis, ‘fabricando’ cidades
geométricas, de pedra lavrada e adobe, numa região rica em lenho e paupérrima em pedreiras, como
estenderam-no até as instituições, Tudo estava tão bem regulado nessas missões – refere um depoimento
– ‘ut secundum morem in Bolivia traditum cônjuges indiani media nocte sono tintinnabuli ad
exercendum coitum excitarentur’ [“À meia-noite os casais indígenas são despertados com sinos, a fim
de realizarem o coito”].” RB, p. 65.
266
A montanha mágica, cit., p. 509-10; Der Zauberberg, cit., p. 467.
302
‘reação’” 267 . Na formação jesuítica de Naphta não deixa de entrar certo elemento
iberizante, que se dá a ver em seu uso frequente de expressões castelhanas268. E essa
formação lhe legará um ideal pedagógico altamente dependente de noções de
autoridade férrea e obediência – noções aludidas, mas severamente criticadas, em
Raízes do Brasil: no primeiro capítulo, afirma-se a sua obsolescência, e, no quinto, com
a citação a Knight Dunlap, um dos “pedagogos e psicólogos mais venerados de nossos
dias”, aparece como alternativa exatamente oposta ao que Naphta diz quando expões
sua pedagogia “terrorista”:
O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos
quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje pretende ser a filha do racionalismo
[Aufklärung] e vê os seus meios formativos na crítica, na libertação e no culto do eu, na
destruição de formas de vida determinadas de um modo absoluto, ora, tal pedagogia
pode obter ainda hoje triunfos retóricos passageiros, porém o seu caráter atrasado é óbvio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Compare-se esta com a passagem onde aparece o único ideal que dá ordem à
“cultura da personalidade” ibérica descrita no primeiro capítulo. Ela replica, quase que
traço por traço, a exposição pedagógica de Naphta:
267
A montanha mágica, cit., p. 467.
268
A montanha mágica, cit., p. 515.
269
A montanha mágica, cit., p. 461; Der Zauberberg, cit., p. 422.
303
exemplo memorável com suas antigas reduções. Nenhum ditador moderno, nenhum
teórico do comunismo ou do Estado totalitário, chegou sequer a vislumbrar a
possibilidade desse prodígio de racionalização que puderam conseguir os padres da
Companhia de Jesus em suas missões.270
sobre o “homem cordial” que se vai ler em Raízes do Brasil a defesa de uma pedagogia
diretamente oposta a essa, ainda que Sergio preste uma homenagem aos tempos
passados em que ainda parecia razoável o ideal caduco da obediência introjetada por
meio de castigos corporais em sua referência ao “prodigioso Dr. Johnson” que fazia a
seu biógrafo, James Boswell, a “apologia crua dos castigos corporais para os educandos
e recomendava a vara” – e aqui, em citação irônica mas reverente à biografia de Samuel
Johnson por Boswell, ele usa palavras que caberiam muito bem numa das tiradas
sentenciosas e polêmicas de Naphta – “para o terror geral de todos”272.
Da crítica de Naphta ao liberalismo e à ideologia moderna e cosmopolita,
especialmente de certos dogmas iluministas bastante enraizados entre os bem-
pensantes, por outro lado, Raízes do Brasil partilha ao menos uma parte significativa.
Embora Settembrini talvez o pressinta – daí, talvez, sua apreensão em todas as ocasiões
em que Hans Castorp está exposto às doutrinações de seu rival – Naphta é
provavelmente a única personagem do livro a escancarar uma dos elementos centrais à
urdidura da trama e ao significado do romance: o fato de que os ideais pedagógicos e,
por extensão, toda a cultura burguesa europeia, se mantêm em funcionamento por
270
RB, p. 14-5.
271
A montanha mágica, cit., p. 524.
272
RB, p. 98-9.
304
forças meramente inerciais, e carece da convicção e da energia vital com que se haviam
edificado em sua fase propriamente heroica – o século XVIII, de Voltaire, Diderot e
Rousseau, e o começo do século XIX, a época de Goethe, Schiller e Hegel. Depois de
chamar Virgílio, poeta predileto de Settembrini, de um “francês de peruca empoada em
plena era de Augusto”, Naphta afirma, ante a lembrança pelo adversário de ser Naphta,
ele próprio, professor de latim, que “exercia com toda a necessária reservatio mentalis
aquela profissãozinha burguesa”, e que “[n]ão era sem ironia que se enquadrava num
sistema de ensino clássico-retórico, ao qual nem os maiores otimistas podiam prometer
mais que alguns decênios de duração” 273 . Chocado, como costuma ficar em suas
confrontações com o ardiloso adversário, Settembrini acusa nessa profecia um anseio
por “apocalipses proletários”, ao que, num dos paradoxos a que semelhantes discussões
levam de forma recorrente no livro, Naphta responde que o italiano tinha excessiva
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
273
A montanha mágica, cit., p. 598.
274
A montanha mágica, cit., p. 599.
305
Naphta sorriu. O analfabetismo! Com isso seu interlocutor pensava, sem dúvida, ter
pronunciado uma verdadeira palavra de horror, persuadido de que todo mundo, ciente
de seu dever, empalideceria em face dessa cabeça de Górgona. Ele, Naphta, lamentava
ter de desapontar seu oponente ao dizer-lhe que o pavor dos humanistas ante o conceito
de analfabetismo fazia-o rir, e nada mais. Era preciso ser um [...] precioso, um homem
do Secento, um marinista, um palhaço do estilo culto, para atribuir às artes de ler e
escrever toda essa exagerada primazia pedagógica, a ponto de se imaginar que reinariam
as trevas do espírito onde faltasse o conhecimento de ambas. O Sr. Settembrini se
recordava de que o maior poeta da Idade Média, Wolfram von Eschenbach, tinha sido
analfabeto? Naquela época julgava-se vergonhoso na Alemanha enviar à escola um
menino que não quisesse ser padre, e esse menosprezo aristocrático e popular pelas artes
literárias fora em todos os tempos um sinal de nobreza fundamental da alma , ao passo
que era na verdade o literato, esse filho genuíno do humanismo e da burguesia, quem
sabia ler e escrever. O que ele sabia e entendia de tudo que havia no mundo, afinal, era
mesmo coisa nenhuma, e não passava, isso sim, de um latinista doidivanas que dominava
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
a língua e deixava a vida a cargo de pessoas honradas... E por isso fazia da política algo
vão, isto é, algo cheio de vã retórica e belas-letras, o que no linguajar dos partidos se
denomina radicalismo e democracia [...].276
O retrato que Naphta faz dos literatos, dos “latinistas doidivanas” que nada sabem
das coisas deste mundo, reclusos em suas bibliotecas, é precedido, aliás, em muitas
páginas, por uma visão muito mais positiva desses mesmos personagens, exposta,
naturalmente, por Settembrini, nessa altura ainda despreocupado da influência nefasta
de Naphta sobre seu jovem amigo, que aqui ainda não conhece o jesuíta, no capítulo
em que ele fala a Hans Castorp sobre seus trabalhos de enciclopedista. Diz o italiano:
Sou humanista, [...] pois sou amigo do homem, [...] um enamorado da humanidade e de
sua nobreza. Essa nobreza, no entanto, acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso
seria em vão se o senhor me acusasse de obscurantismo cristão [...]... seria absurdamente
em vão o senhor me acusar disso [...] só porque um belo dia o humanismo, no seu nobre
orgulho, chegou a se dar conta da humilhação, da ignomínia que reside no espírito estar
ligado ao corpo, à natureza. O senhor tem conhecimento de que nos foi transmitido um
275
Curiosamente, em seu estudo sobre Cláudio Manuel da Costa, exatamente ao falar do estilo culto e
de Góngora, Sergio se refere ao alexandrinismo como a fase “barroca” da Antiguidade Clássica, num
procedimento um tanto livre de aplicação de categorias estéticas a períodos históricos a elas estranhas,
análogo ao de Naphta, quando afirma serem as filosofias de Boaventura e Tomás de Aquino
representativas da mais “pura Idade Média Clássica”, justificando para um Settembrini previsivelmente
escandalizado esse aparente anacronismo como “o movimento livre das categorias”. CLC, p. 255; A
montanha mágica, cit., p. 433.
276
A montanha mágica, cit., p. 599-600; Der Zauberberg, cit., p. 550.
306
dito do grande Plotino, segundo o qual ele sentia vergonha de ter um corpo? [...] É uma
sentença absurda, se assim quiser. Mas o absurdo é a honestidade espiritual, e no fundo
não há nada mais nobre que a objeção do absurdo, nos casos em que o espírito procura
manter sua dignidade em face da natureza [...].277
realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria de asfixia. Comparsas
desatentos do mundo que habitávamos, quisemos viver fervorosamente contra nós
mesmos, viver pelo espírito e não pelo sangue. Como Plotino de Alexandria, que sentia
vergonha do próprio corpo, acabaríamos por esquecer tudo quanto fizesse pensar em
nossa própria riqueza emocional, a única força criadora que ainda nos restava, para nos
submetermos à palavra escrita, à gramática, ao Direito abstrato.278
277
A montanha mágica, cit., p. 288.
278
RB, p. 126.
279
Lembre-se outra vez do estudo de Pedro Caldas, “O murmurante evocador do passado”, cit.
307
280
“O significado de Raízes do Brasil”, cit.
308
281
Cf. Franco Moretti, O romance de formação, cit., p. 37.
282
“O murmurante evocador do passado”, cit.
309
depreender da redação das páginas finais da primeira edição, ou mesmo das posteriores,
mas num enrijecimento cada vez mais pessimista com as possibilidades de futuro do
Brasil285.
Em 1936, porém, ainda se abriam perspectivas mais otimistas para o
desenvolvimento de uma forma própria, aquela aventada no primeiro parágrafo do
livro, em tempos vindouros. Esse é o ponto de fuga do último capítulo, “Nossa
Revolução”, que dá fortes indicações no sentido de que o “tipo próprio” de cultura,
ainda que não se desse a ver nas manifestações mais ostensivas da vida nacional, estaria
destinado a aparecer em breve. Esse título, amplamente discutido nos comentários a
283
Muitos exemplos poderiam ser elencados aqui. Uma lista restrita às manifestações puramente
intelectuais e literárias desse ponto até Visão do paraíso (1958/9) incluiria, por ordem cronológica, o
estudo do romantismo brasileiro no prefácio a Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães
(1939), o ensaio biográfico que serve de prefácio às obras econômicas de José Joaquim de Azeredo
Coutinho (1944) (os dois reunidos em LP), a seção sobre o “realismo português” (RBC, p. 195-205),
acrescentada à segunda edição (1948) de Raízes do Brasil – que já prenuncia a problemática de Visão e
as análises da literatura colonial reunidas em Capítulos de literatura colonial, especialmente as
conclusões de Sergio Buarque no que diz respeito às persistências “barrocas” no arcadismo brasileiro
(datação incerta, provavelmente começo da década de 50, como mostram diversas passagens publicadas
na imprensa e reunidas em EL, II e EC, II; para uma reconstrução mais detalhada da origem desses
textos, a referência obrigatória é o livro de Thiago Nicodemo, Alegoria moderna).
284
Cf. RBC, p. 39-40.
285
Pode-se, talvez, fazer uma exceção parcial aos textos sobre a expansão paulista, ou ainda, sobre a
sociedade das Minas no século XVIII (Cf. RODRIGUES, Henrique Estrada Os sertões incultos e o ouro
do passado. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy Sergio Buarque de Holanda.
Perspectivas. São Paulo: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2008). De todo modo, a tônica geral
é bastante pessimista.
310
Raízes do Brasil, leva a uma última revisão da Montanha mágica. Lembre-se que o
romance termina com Hans Castorp enviado à França, ou à Rússia – as duas “pátrias”
de Mme. Chauchat, unidas por uma entente anti-alemã à qual Settembrini reage com a
confusão típica dos estágios mais avançados de seus debates com Naphta 286 – para
combater pela Alemanha. Esse desenlace é antecipado, porém, pelo sinistro duelo entre
Settembrini e Naphta, que termina com o suicídio deste último. O estopim desse
confronto final é de especial interesse para Raízes do Brasil. Trata-se de uma
constrangedora “conferência” que Naphta dá para uma plateia composta
exclusivamente composta por Hans Castorp, mas na presença de Settembrini e outros
dois convivas no refeitório de uma estalagem em Monstein, vilarejo próximo a Davos.
Ignorando completamente os outros membros da excursão, Naphta se põe a pontificar
para Hans Castorp sobre “o problema da liberdade”, o conceito de revolução e o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
286
A montanha mágica, cit., p. 821-2.
287
A montanha mágica, cit., p. 803.
311
bandeira da “liberdade”. Mas Naphta vai além, declarando que, “[e]m última análise, a
liberdade seria antes um conceito do Romantismo e não tanto da Época das Luzes; pois
com aquele ela tinha em comum o entrelaçamento inextricável dos impulsos de
expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamente individualístico”, o que
tornaria o individualismo um conceito “romântico-medieval”, do qual “teriam
resultado a doutrina da imortalidade da alma, a teoria geocêntrica e a astrologia”, que
teriam sido, afinal, as células originárias do encarecimento moderno da interioridade
humana. Já o individualismo como “aspecto do humanismo de tendências liberalistas”
era uma manifestação completamente diversa, que “penderia para a anarquia e
pretenderia, em todo caso, proteger o indivíduo contra o destino de ser imolado à
coletividade”288. Haveria, portanto, pode-se daí depreender, a Revolução burguesa e
democrática das liberdades do indivíduo, e outra, bem diferente, de inspiração
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
simultaneamente religiosa e popular, coletivista, mas nem por isso inimiga da liberdade
“interior”, e que representaria a superação da modernidade burguesa, com sua ideologia
liberal e humanitária. E Naphta prossegue num crescendo de artimanhas retóricas anti-
iluministas, até que Settembrini o interrompe, chamando de “infâmia” sua tentativa de
doutrinação da “juventude indefesa” com “palavras ambíguas”289. A reação de Naphta
é pedir satisfações a sua honra num duelo, mas não sem complementar o chamado a
liquidar as diferenças “em lugar adequado” com suas últimas palavras contra a
ideologia liberal-progressista de Settembrini:
[O] seu temor devoto pela ideologia escolástica da revolução jacobina [!] vê um crime
pedagógico na minha maneira de introduzir a juventude a duvidar, de derrubar as
categorias e privar as ideias da dignidade acadêmica da virtude. Esse temor é por demais
compreensível, pois sua humanidade saiu de moda, tenha certeza disso [...]! Hoje em dia
já não passa de um rabicho, de uma sensaboria classicista, um ennui espiritual que faz
bocejar, e que a nova, a nossa Revolução [die neue, unsere Revolution], senhor, está a
ponto de abolir. [...] É apenas do ceticismo radical, do caos moral, que nasce o absoluto,
o terror sagrado de que carece o nosso tempo.290
288
A montanha mágica, cit., p. 804.
289
A Montanha mágica, cit., p. 805.
290
A montanha mágica, cit., p. 806-7; Der Zauberberg, cit., p. 738. Alterou-se, na transcrição, a versão
brasileira de Herbert Caro, no trecho sobre a “nossa Revolução”, pois Caro inverte a ordem de “nova” e
“nossa” na oração e retira a ênfase de “nossa” (“a nova Revolução, a nossa”).
312
6. Demônios e possessos
Ein Volk geht zugrunde, wenn es seine Pflicht mit dem Pflichtbegriff überhaupt
verwechselt [Um povo perece, quando confunde seu dever com o conceito de dever em
geral]291 é a frase que lemos, em alemão, antes de começar o capítulo final de Raízes
do Brasil – isso, no texto de 1936, pois a epígrafe não aparece em edições subsequentes;
o mesmo ocorre com as duas outras epígrafes da mesma edição, uma ao capítulo II
(Trabalho & Aventura), e outra ao V (O homem cordial). Acima da epígrafe, em tipo
bem maior, aparece o título do capítulo, “Nossa Revolução”. A articulação entre a
epígrafe e o título, um tanto obscura desprovida de contexto, fica mais compreensível
291
RB, p. 133; A tradução entre colchetes é a de Paulo César de Souza. Friedrich Nietzsche, O Anticristo,
cit., p. 16.
313
quando examinamos, ainda que de forma sumária, não apenas o texto de onde a
epígrafe é extraída, o Anticristo de Nietzsche, mas aquele contra o qual o filósofo faz
essa observação. Como se sabe, no Anticristo, inicialmente pensado como primeira
parte da obra projetada de Nietzsche sobre a “transvaloração de todos os valores”, o
autor faz uma devastadora crítica do pensamento cristão, que ele acredita estar na base
de toda a moral ocidental. A moral cristã, cuja origem Nietzsche remonta ao judaísmo
e a sua decisiva perversão por Paulo de Tarso (rapidamente aludida no capítulo II deste
trabalho), estaria no fundamento de todo o edifício intelectual do Ocidente, mesmo
quando já não sobrevive a mesma convicção sobre o poder divino sobre as coisas do
mundo. A seção 11 do Anticristo, a que contém a frase transcrita por Sergio Buarque,
se insere na discussão dos influxos dessa “moral de escravos” implementada pelos
sacerdotes ao longo da evolução histórica do mundo hebraico e cristão, culminando na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
292
O anticristo, cit., p. 15.
293
Ibid., p. 15
294
Loc. cit. Tomou-se a licença de fazer pequenas alterações à tradução de Paulo Cesar de Souza, sempre
cuidadosa do estilo, mas nem sempre da precisão. “Sagaz e manhoso ceticismo” é como ele verte
“verschmitzt-klugen Skepsis”, numa versão que priva a caracterização nietzschiana de Kant de seu
componente de chicana teológica. A edição alemã usada para controle é a Kritische Studienausgabe de
Colli e Montinari NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke, Band 6. Kritische Studienausgabe in 15
Banden. Munique: Deutcher Taschenbuch Verlag GmbH, 1999, p. 176.
314
Ainda uma palavra contra Kant como moralista. Uma virtude tem de ser nossa invenção,
nossa defesa e necessidade personalíssima: em qualquer outro sentido é apenas um
perigo. O que não é condição de nossa vida a prejudica: virtude oriunda apenas de um
sentimento de respeito ao conceito de “virtude”, como queria Kant, é prejudicial. A
“virtude”, o “dever”, o “bom em si”, o bom com o caráter da impessoalidade e validade
geral – fantasias nas quais se exprime o declínio, o esgotamento final da vida, o
chinesismo königsberguiano. As mais profundas leis da conservação e do crescimento
exigem o oposto: que cada qual invente sua virtude, seu imperativo categórico. Um povo
perece, quando confunde seu dever com o conceito de dever em geral. Nada arruína mais
profundamente, mais intimamente do que todo dever “impessoal”, todo sacrifício ante o
Moloch da abstração. – Que não se tenha percebido o imperativo categórico de Kant
como perigoso para a vida!... Apenas o instinto dos teólogos o tomou em proteção! –
Uma ação imposta pelo instinto da vida tem no prazer a prova de que é uma ação justa:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
e esse niilista com vísceras cristã-dogmáticas entendeu o prazer como objeção... O que
destrói mais rapidamente do que trabalhar, pensar, sentir sem necessidade interna, sem
uma profunda escolha pessoal, sem prazer? como autômato do “dever”? É a própria
receita da décadence, até mesmo do idiotismo... Kant não viu na Revolução Francesa a
passagem da forma inorgânica de Estado para a orgânica? Não se perguntou se existe
um evento que não pode ser explicado senão por uma disposição moral da humanidade,
de modo que com ele estaria provada, de uma vez por todas, a “tendência da humanidade
para o bem”? Resposta de Kant: “é a Revolução”. O espírito equivocado em tudo e por
tudo, a antinatureza como instinto, a décadence alemã como filosofia – isso é Kant! –
295
“É fascinante perceber como Sérgio Buarque alinha-se à crítica nietzscheana do dever abstrato,
alienígena, estranho à vida, que não brota dos instintos e dos sentimentos! Ele impregnou-se dessa ideia,
da crítica à generalidade abstrata, e encarna apaixonado a apologia nietzscheana: cabe ao povo descobrir
e realizar a sua virtude própria, que somente pode aflorar da sua vida. [...]Assim, contextualizando a
argumentação: a democracia é um perigo, pois é hostil à vida. Já que ela não condiciona a vida do povo,
prejudica-a. O imperativo categórico do nosso povo é o nosso personalismo.” Leopoldo Waizbort, “O
mal-entendido da democracia”, cit. .p. 43.
315
A revolução de um povo espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias, pode ter êxito
ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades de tal modo que um homem
bem pensante, se pudesse esperar, empreendendo-a uma segunda vez, leva-la a cabo com
êxito, jamais, no entanto, se resolveria a realizar o experimento com semelhantes custos
– esta revolução, afirmo, depara todavia, nos ânimos de todos os espectadores (que não
se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na
fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que, por
conseguinte, não pode ter nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral do
gênero humano.296
296
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 102.
316
297
RB, p. 131.
298
Ronaldo Vainfas foi, salvo engano, o único intérprete de Raízes até o momento que aventou a tese da
“indiferença” de Sergio diante das alternativas políticas concretas no contexto de 1936. VAINFAS,
Ronaldo. O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sergio Buarque de Holanda.
Revista Brasileira de História, v. 36, n. 73, 2016, p. 39.
299
É o caso de Schlegel (2017) , Waizbort (2011) e, sobretudo, Feldman (2015). Da Mata (2016) traça o
retrato de um Sergio Buarque de tendências fascistas, de maneira bastante persuasiva, mas desatenta a
alguns pontos que serão ressaltados na presente seção.
317
***
300
Não é a intenção do presente comentário fazer uma revisão detalhada desse material. Esse trabalho
foi feito exemplarmente por André Carlos Furtado e pode ser consultado no Segundo capítulo de sua
tese. Das fortunas críticas e apropriações, cit., p. 71-118.
318
Não creio que seja necessário – e confesso que seria dificílimo – precisar a posição que,
em política, assumirá o autor de Raízes do Brasil. Seu pensamento, em tal campo, parece
cheio de contradições. Em uma das páginas do livro, faz ele observar que o brasileiro
tem a tendência para aceitar as ideias mais díspares, associando em seu espírito,
convicções e preceitos que, no espírito de qualquer outro povo, serão os inimigos mais
ferrenhos. Parece-me que o senhor Sergio Buarque de Holanda incorre um pouco em sua
própria observação. Assim é que o vemos, num trabalho que aparece em apêndice no
livro [a nota E], combater vivamente o integralismo, a propósito do senhor Otávio de
Faria. E entretanto, na página 156 do volume o vemos sustentar sem nenhum propósito
possível de paradoxo, a vantagem das tiranias.301
301
LEÃO, Múcio. “Registro literário”, Jornal do Brasil, 7 nov 1936. Vale notar que outros dois
resenhistas usam a crítica de Sergio Buarque à volubilidade intellectual dos brasileiros para criticar
Raízes do Brasil. Oscar Mendes, antes de concluir afirmando que no livro “a disponibilidade gideana é
chocante”, pergunta: “Será o sr. Sergio Buarque um daqueles intelectuais ‘que se alimentam, ao mesmo
tempo, de doutrinas dos mais variados matizes’, sustentando, ‘simultaneamente, as convicções mais
díspares’?” MENDES, Oscar. “A alma dos livros”, Folha de minas, 11 jan 1937. Menos benevolente, o
integralista Henry Leonardos vê uma contradição entre a crítica de Sergio Buarque ao integralismo e seu
juízo de que a democracia brasileira resultaria de um “lamentável mal-entendido”, que ele compreende
como um elogio do Império: “A esclarecer o confronto destas duas citações entre si bastará o que se lê
à página 113: ‘É frequente entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se
alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam,
simultaneamente, as convicções mais díspares”. Também esse autor identifica na “Nota E” um ataque a
Otávio de Faria e ao integralismo: “Daquela página 158 até o final 161 [sic] e na citada nota, o autor
ataca ostensivamente o Integralismo”. LEONARDOS, Henry. “Raízes do Brasil”, publicação não
identificada.
319
Que o estreante literato queira negar a influência de Aristóteles na filosofia tomista; que
negue a grandeza da Idade Média; que afirme, contra todo o senso de observação, que
as grandes épocas não foram tradicionalistas, está certo, porque a constituição permite a
liberdade de proferir ou escrever sandices.
Onde, no entretanto, não podemos permitir que o sr. Holanda se manifeste impunemente
contra a verdade histórica é quando ele diz que “os nossos grêmios e corporações
coloniais nunca passaram de organizações incipientes [...], ou contra a doutrina do
Estado Totalitário (na qual ele intenta envolver o Integralismo) ao proclamar o professor
Carl Schmitt, da Universidade de Berlim, seu teorizador.303
302
VIANNA, Hélio. “Nota sobre Raízes do Brasil. O Jornal, 30 nov 1936.
303
COTRIM NETO, Alberto. “Raízes do Brasil”. A Ofensiva, 7 fev 1937.
320
Faz-se mister, à vista disso, que o Estado, sem descair no despotismo, o qual se não
compadece com a doçura de nosso gênio, adquira pujança e compostura, grandeza e
solicitude. Mas que Estado? O de tipo fascista? O de tipo integralista? Não. Um Estado,
que não elimine de todo o personalismo que tem sido a característica dominante da nossa
política senão de toda a América Latina.304
As conclusões lógicas desse estudo, o A. sintetiza, à página 161, de maneira não muito
explícita, mas permitindo ao leitor por si mesmo tirar as deduções que lhe pareçam mais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Nenhum dos resenhistas, salvo, talvez, por Plínio Barreto, que apenas parafraseia
o capítulo final sem desdobrar suas conclusões, e os portugueses, que identificaram,
em leituras espantosamente seletivas de Raízes, uma apologia do colonialismo luso,
consegue discernir o programa político do livro306. Se a expectativa de Sergio Buarque
para a recepção de seu livro era mesmo essa, ou se ele procurava estimular um debate
304
BARRETO, Plínio. “Livros novos”. Publicação não identificada.
305
LOPES, Álvaro Augusto. “À margem dos livros”. A Tribuna (Santos, SP), 9 nov 1936.
306
Os resenhistas portugueses, todos concordes nesse ponto, são J. Alves Correia, Norton de Matos e
António Amorim. CORREIA, J. Alves. “Livros e Periódicos”, Seara Nova, s. d.; AMORIM, António.
“Raízes do Brasil”, s. ref.; MATOS, Norton de. “Raízes do Brasil”, O Primeiro de Janeiro (Porto), 05 e
12 nov 1938.
321
mais vivo em torno de “Nossa Revolução” – o que parece mais provável – não é
possível saber ao certo. De todo modo, diante do silêncio do autor diante de Força,
cultura e liberdade (1940) de Almir de Andrade – autor que depois seria objeto de uma
resenha extremamente mordaz de Sergio Buarque ainda em 9 de novembro de 1941307
– e A ordem privada a e organização política nacional de Nestor Duarte (1939),
demonstrações como a de Rogério Schlegel308 e Luiz Feldman309 da apropriação do
livro por ideólogos autoritários estão longe de confirmar a tese de que o Sergio Buarque
de 1936 teria visto com bons olhos as leituras que esses leitores fizeram do livro. É
possível, e até provável, que Sergio Buarque tenha repensado, entre 1936 e o final da
década, seus conceitos da democracia e do fascismo, mas nada autoriza positivamente
a atribuição de um programa autoritário num livro onde se lê que o Estado no Brasil
“não precisa e não pode ser despótico”310.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
***
O novo mundo imaginado por Sergio em 1936 deveria ter uma dimensão política, e é
disso que se ocupa a maior parte de “Nossa Revolução”, mas, segundo a concepção de
cultura de Raízes do Brasil, as “formas exteriores” de uma sociedade, como as
instituições políticas, são apenas florações de coisas mais profundas 311 . Toda uma
civilização alternativa estaria implicada na “revolução” que cabia ao Brasil efetuar.
Comecemos, pela parte mais simples, ou seja, o diagnóstico da situação política
do Brasil no pós-Abolição. Uma das teses centrais de Raízes sobre o problema político
brasileiro é que uma de suas principais causas é a insuficiência das soluções que se
apresentaram desde o desmantelamento da sociedade patriarcal. Lê-se logo na abertura
do capítulo VII que “o quadro político instituído no ano seguinte quer responder à
conveniência de uma forma adequada para a nova composição nacional”. Em torneio
307
HOLANDA, Sergio Buarque de. “A formação da sociologia brasileira”. Diário de notícias, 9 nov
1941. Texto reimpresso em Cobra de vidro, com o título “Formação da Sociologia?” p. 45-52; na edição
de 1944 pela Livraria Martins, p. 35-43.
308
Raízes do Brasil, 1936: O estatismo orgânico como contribuição original, cit.
309
Raízes do Estado Novo in Clássico por amadurecimento, cit. p.
310
RB, p. 142.
311
Cf. RB, p. 161.
322
“pontos culminantes” – mas “foi antes um processo demorado e que durou pelo menos
três quartos de século”. Os acontecimentos notáveis “associam-se como os acidentes
diversos de um mesmo sistema orográfico”. Seguindo a sugestão da imagem, os
“acidentes” podem estar “associados”, mas as suas causas não estão na sua notação ou
sistematização – são mais profundas, lentas, resultam de erosão ou, em situações
excepcionais, de movimentos tectônicos. Parece ser esse o caso da revolução brasileira
– uma marcha inevitável rumo a uma nova conformação orográfica. O que se vê é
somente resultado, nunca a causa do mundo em que se vive. Parece ser nesse espírito
que Sergio insere as considerações seguintes:
Se em capítulo anterior se tentou fixar a data de 1888 como o momento talvez mais
decisivo de todo o nosso desenvolvimento nacional, é que a partir dessa data tinham
cessado de funcionar os freios tradicionais contra o advento de um novo estado de coisas,
que só então se fez inevitável.
E efetivamente, daí por diante estava preparado o terreno para um novo sistema, com
sua sede não já nos domínios rurais, mas nos centros urbanos. Se a revolução que, através
de todo o Império, não cessou de subverter as bases em que assentava nossa sociedade
ainda está longe, talvez, de ter atingido o desenlace final, parece indiscutível, porém, que
já foi transposta a sua fase mais aguda. Ainda testemunhamos presentemente, e por certo
continuaremos a testemunhar durante largo tempo, as ressonâncias últimas do lento
cataclisma, cujo sentido parece ser o do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa
cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de
americano, porque os seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério.
312
RB, p.135.
323
herdeiros e de que nos orgulhamos”314. Muito bem, parece dizer aqui, finalmente, o
narrador: essas formas de vida, instituições e visão de mundo estão fadadas ao
aniquilamento. Chegou a hora de termos um “tipo próprio de cultura”, o nosso “estilo
novo”. Mas as coisas não são tão simples assim. As formas ibéricas continuam a existir
por força de inércia, pela incapacidade criadora de uma cultura que será adiante
caracterizada como pouco especulativa (p. 151), viciada na cópia de ideias
estrangeiras, que ainda, como se leu no capítulo sobre o “homem cordial”, “vive nos
outros”. O estilo novo ainda não existe, ainda não tomou forma:
Agora ficou claro que, se a Revolução condena o “tipo” originário (ou melhor,
adventício) de cultura ao desaparecimento, essa sentença ainda não se consumou. E
não por mérito da forma esgotada, mas em virtude das “insuficiências” do “novo” que
313
RB, p. 136-7.
314
RB, p. 3.
315
RB, p. 137.
324
argumento de Raízes do que faz parecer essa enigmática menção pontual. Como é
frequente em Sergio Buarque, o importante nem sempre é o que está citado, mesmo
dentro âmbito de um mesmo autor e livro.
***
Partamos daquilo que há de mais simples para começar a desnovelar o ânimo que a
leitura desse texto terá sugerido a Sergio Buarque: “o americano” é, na frase do inglês
D. H. Lawrence, especificamente o estadunidense – embora o livro chegue a mencionar
os hispano-americanos, não é o que acontece no contexto da frase transcrita, que está
num ensaio sobre a Letra escarlate de Nathaniel Hawthorne, e num livro onde
Hawthorne e os personagens são analisados especificamente como americanos – isto
é, herdeiros da cultura que chegou à América do Norte com os peregrinos anglo-saxões
protestantes. Isso não terá escapado, certamente, a Sergio Buarque, que, na operação
de vincular uma afirmação deste estudo ao Brasil e ao seu destino cultural e político,
parece dar voz ao que ainda restava de seu projeto original de uma Teoria da América.
Note-se que é da crítica literária que essa afirmação generalista é colhida. E uma crítica
modernista, escrita num estilo muito particular. A bem dizer, esses estudos de
325
Lawrence comportam, por assim dizer, uma espécie de “teoria da América” que deve
ter parecido bastante sugestiva para Sergio Buarque.
Em seu ensaio sobre Hawthorne, por outro lado, Lawrence não deixa de fazer
algumas afirmações que fazem coro com aspectos importantes da argumentação de
Raízes do Brasil, ainda que de forma um pouco dissonante. Uma das teses do ensaio –
e do livro – é que por trás da aparência exterior de um povo industrioso vivendo em
liberdade em terras de abundância, a ideia de um paraíso construído após a queda, aliás
ressaltada por Max Weber em seu rápido e magistral comentário a uma das passagens
mais impressionantes do Paraíso perdido de Milton316, há uma corrente subterrânea,
um interior que existe, mas nunca ousa se expressar diretamente, o que torna os
americanos um povo inerentemente dúplice, de um cinismo mais grave do que a
desilusão europeia, por ser inocentemente cínico. O que interessa a Lawrence na Letra
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
escarlate é seu “tom de sugestão diabólico” 317 . “Sempre a mesma coisa”, escreve
Lawrence, “A consciência deliberada dos americanos é tão cândida, de fala tão suave,
e a subconsciência, tão diabólica. Destruir! destruir! destruir! sussurra a
subconsciência. Amar e produzir! Amar e produzir! cacareja a consciência superior”318.
“O americano tem de destruir. É seu destino.” E continua, num emprego bastante dúbio
da palavra “branca”: “É seu destino destruir todo o edifício da psique branca, da
consciência branca. E ele tem de fazê-lo secretamente.” 319 Destruir – a consciência
ocidental? A consciência “cândida”? A consciência da raça branca? Dos WASPs, os
herdeiros históricos do Mayflower que, nessa altura, às vezes relutavam em considerar
como “brancos” os americanos de origem irlandesa e italiana? Lawrence parece se
comprazer na indeterminação, mas o certo é que ele pensa que o americano está
destinado a destruir uma matéria que transita nesse campo semântico.
316
A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, cit., p. 79-80.
317
“Diabolic undertone”. Excepcionalmente, devido à natureza peculiar da prosa desse livro, marcada
por um constante destaque da própria forma, optou-se por reproduzir o texto original das passagens
citadas no rodapé. Studies in Classic American Literature, cit., p. 82.
318
“Always the same. The deliberate consciousness of Americans so fair and smooth-spoken, and the
under-consciousness so devilish. Destroy! destroy! destroy! hums the under-consciousness. Love and
produce! Love and produce! cackles the upper consciousness.” Ibid., p. 81.
319
“The American has got to destroy. It is his destiny. It is his destiny to destroy the whole corpus of the
white psyche, the white consciousness. And he's got to do it secretly.” Loc. cit.
326
320
“Listen to the States asserting: ‘The hour has struck! Americans shall be American. The U.S.A. is
now grown up artistically. It is time we ceased to hang on to the skirts of Europe, or to behave like
schoolboys let loose from European schoolmasters—’. Studies in Classic American Literature, cit., p.
11.
321
“The old American art-speech contains an alien quality, which belongs to the American continent and
to nowhere else. But, of course, so long as we insist on reading the books as children's tales, we miss all
that.” Ibid., p. 13.
322
“[A]ll that is visible to the naked European eye, in America, is a sort of recreant European”, Ibid., p.
12; “the Americans refuse everything explicit and always put up a sort of double meaning”, p. 13.
327
voz estranha da Espanha Ibérica” [the uncanny voice of Iberian Spain]. “É difícil”, ele
continua, “ouvir uma voz nova, assim como é difícil ouvir uma língua desconhecida.
Simplesmente não ouvimos. Existe uma nova voz nos velhos clássicos americanos. O
mundo se recusou a ouvi-la, e balbuciou sobre histórias infantis”. O motivo, segundo
Lawrence, seria o medo, pois “o mundo” – inglês, Lawrence, naturalmente, identifica
a Europa com o mundo – “teme uma nova experiência mais do que ele teme qualquer
coisa. Porque uma nova experiência desloca tantas velhas experiências.” Novas
experiências extenuam, pois são como “tentar usar músculos talvez nunca usados, ou
que estão enrijecendo há tempos. Machuca horrivelmente. O mundo não teme uma
nova ideia. Ele pode rotular qualquer ideia. Mas ele não pode rotular uma nova
experiência. Ele pode apenas se esquivar”. O mundo sempre se esquiva, mas os
americanos superam o mundo nisso, porque, segundo Lawrence, “eles se esquivam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
exatamente de si mesmos”323.
Já se viu anteriormente como uma das teses centrais de Raízes do Brasil é a
incapacidade formativa da cultura por uma resistência à expressão da essência, por
recusa do trabalho – trabalho, em sentido estrito, que os americanos de Lawrence
executam sem problemas, mas cujo conteúdo se recusam a reconhecer em suas
“histórias infantis”, mas que expressam no sentido perverso e subterrâneo de seus livros
clássicos. Acrescente-se, de passagem, uma correspondência espantosa entre a ideia do
surgimento de uma nova experiência e outra tese importantíssima de Sergio Buarque,
essa de Visão do paraíso: a de que o “realismo português” teria obstado, por efeito de
uma recusa à fantasia, a abertura de horizontes intelectuais proporcionada, na Europa
Central, pela expansão marítima. O próprio Lawrence, ao definir a América – toda ela
– como uma terra de fugitivos, chega a afirmar que o que os espanhóis procuravam na
América era uma terra livre do humanismo renascentista. “Os espanhóis”, escreve ele,
e talvez ele se refira também aos portugueses, conforme a tradicional identificação
323
“It is hard to hear a new voice, as hard as it is to listen to an unknown language. We just don't listen.
There is a new voice in the old American classics. The world has declined to hear it, and has blabbed
about children's stories. Why?—Out of fear. The world fears a new experience more than it fears
anything. Because a new experience displaces so many old experiences. And it is like trying to use
muscles that have perhaps never been used, or that have been going stiff for ages. It hurts horribly. The
world doesn't fear a new idea. It can pigeon-hole any idea. But it can't pigeon-hole a real new experience.
It can only dodge. The world is a great dodger, and the Americans the greatest. Because they dodge their
own very selves.” Studies in Classic American Literature, cit., p. 13.
328
parecida, e o que ele diz sobre a “liberdade” americana ilumina um pouco a natureza
sinistra da “democracia de mal-entendidos” que Raízes identifica no Brasil:
Liberdade como quer que seja? Terra dos livres! Esta é a terra dos livres! Como, se eu
digo qualquer coisa que os desagrade, a ralé livre vai me linchar. Livre? Como, eu nunca
estive em nenhum país onde o indivíduo tem tal medo abjeto de seus compatriotas.
Porque, como eu digo, eles são livres para linchá-lo no momento em que ele mostrar que
ele não é um deles.325
324
“The Spaniards refused the post-Renaissance liberty of Europe. And the Spaniards filled most of
America. The Yankees, too, refused, refused the post-Renaissance humanism of Europe. First and
foremost, they hated masters. But under that, they hated the flowing ease of humour in Europe. At the
bottom of the American soul was always a dark suspense, at the bottom of the Spanish-American soul
the same. And this dark suspense hated and hates the old European spontaneity, watches it collapse with
satisfaction.” Studies in Classic American Literature, cit., p. 17.
325
“Freedom anyhow? The land of the free! This the land of the free! Why, if I say anything that
displeases them, the free mob will lynch me, and that's my freedom. Free? Why I have never been in
any country where the individual has such an abject fear of his fellow countrymen. Because, as I say,
they are free to lynch him the moment he shows he is not one of them.” Ibid., p. 15.
326
Numa tradução literal mas pouco literária: “Ca Ca Caliban, arranje um novo senhor, seja um novo
homem”. Ibid., p. 16.
329
“Ban Ban Ca-caliban/ Has a new master. Get a new man” (Ato 2, cena 2, vv. 173-
4)327. Há uma espécie de aporia nesse desejo de livrar-se dos mestres, pois, segundo
Lawrence, enquanto “domínio, reino, paternidade tiveram seu poder destruído na época
do Renascimento”328, começava a grande emigração para a América – e, como sugere
a apropriação motivo calibanesco, o êxodo não se deu tanto em busca de liberdade, mas
de um “novo mestre”. A liberdade “é certamente muito boa, mas os homens não podem
viver sem senhores”, “sempre há um senhor”329. O senhor sobrevive, para Lawrence,
como uma cicatriz no coração: “Em algum lugar profundo de todo coração americano
está uma rebelião contra a velha paternidade da Europa. Mas nenhum americano sente
que escapou completamente a esse domínio.”330 A liberdade americana não é a mesma
do europeu, a liberdade inocente que se afirma contra algum tipo injusta de domínio,
uma garantia do bom governo – “uma perigosa meia-verdade” que teria talvez
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
motivado a fuga dos americanos331. A versão americana que aparenta ser a mesma que
a europeia é uma rebelião contra a hereditariedade, contra a ideia mesma de domínio:
“A verdadeira liberdade só começará quando os americanos A descobrirem, e
prosseguirem para possivelmente realizá-LA. Sendo ELA o mais profundo Eu todo do
homem, o Eu em sua inteireza, e não pela metade”332. A democracia não passa de um
compromisso provisório, resultante da existência puramente negativa dessa liberdade
ainda não realizada, “A liberdade dos americanos é uma coisa de pura vontade, pura
tensão: uma liberdade de NÃO FARÁS. E assim tem sido desde o começo. A terra do
NÃO FARÁS. Apenas o primeiro mandamento é: NÃO PRESUMIRÁS SER UM
327
Novamente, priorizando o sentido literal sobre o literário, “Ban ban Ca-Caliban/Tem um novo
senhor/Arranje outro homem”. Na tradução de Beatriz Viégas-Faria: “Ca, Ca, Caliban, Caliban, ban ban
ca cá/Tem novo amo; e o senhor que pegue novo escravo!” SHAKESPEARE, William. The Tempest.
New Haven, Ct. Yale University Press, 2006, p. 73; A tempestade. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 62.
328
“Mastery, kingship, fatherhood had their power destroyed at the time of the Renaissance.” Studies in
Classic American Literature, cit., p. 15.
329
“Liberty is all very well, but men cannot live without masters. There is always a master.” Ibid., p. 16.
330
“Somewhere deep in every American heart lies a rebellion against the old parenthood of Europe. Yet
no American feels he has completely escaped its mastery”. Loc. cit.
331
“Perhaps at the Renaissance, when kingship and fatherhood fell, Europe drifted into a very dangerous
half-truth: of liberty and equality. Perhaps the men who went to America felt this, and so repudiated the
old world altogether.” Ibid., p. 18.
332
“The true liberty will only begin when Americans discover IT, and proceed possibly to fulfill IT. IT
being the deepest whole self of man, the self in its wholeness, not idealistic halfness.” Loc. cit.
330
O verdadeiro dia americano ainda não começou. Ou, pelo menos, o sol ainda não se
levantou. Por enquanto tem sido uma falsa aurora. Isto é, na consciência americana
progressiva tem existido somente um desejo dominante, o de se livrar da coisa velha.
Livrar-se dos senhores, exaltar a vontade do povo. Sendo a vontade do povo nada mais
do que uma ficção, o exaltar não conta muito. Então, em nome da vontade do povo, lá
se vão os senhores. Quando você tiver se livrado dos senhores, o que lhe resta é essa
mera expressão, a vontade do povo.335
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
A consciência americana tem sido até hoje uma falsa aurora. O ideal negativo da
democracia. Mas, por baixo, e contrárias a esse ideal aberto, os primeiros sinais e
revelações DISSO. ISSO, a alma americana inteira.
333
“Their liberty is a thing of sheer will, sheer tension: a liberty of THOU SHALT NOT. And it has been
so from the first. The land of THOU SHALT NOT. Only the first commandment is: THOU SHALT
NOT PRESUME TO BE A MASTER. Hence democracy.” Ibid., p. 17.
334
Democracy in America is just the tool with which the old mastery of Europe, the European spirit, is
undermined. Europe destroyed, potentially, American democracy will evaporate. America will begin.
Ibid., p. 19.
335
“The real American day hasn't begun yet. Or at least, not yet sunrise. So far it has been the false dawn.
That is, in the progressive American consciousness there has been the one dominant desire, to do away
with the old thing. Do away with masters, exalt the will of the people. The will of the people being
nothing but a figment, the exalting doesn't count for much. So, in the name of the will of the people, get
rid of masters. When you have got rid of masters, you are left with this mere phrase of the will of the
people.” Studies in Classic American Literature, cit., p. 18-9.
331
Você precisa arrancar as roupas democráticas e idealistas da fala americana, e ver o que
conseguir do corpo escuro DISSO por baixo.
Daqui para a frente, senhor nenhum.
Daqui para a frente, ser dominado.336
Mais do que apenas ter presidido parte das reflexões sobre o “americanismo” o
heterodoxo plano de estudos de Lawrence parece realmente influenciar, ainda que não
mecanicamente, toda a concepção de Raízes do Brasil em torno do problema das
culturas, seus “estilos” e a transformação de uma fase de um povo para uma nova –
isso, compreendido sob o ponto de vista do estilo, assim como da forma, conceitos que
aqui parecem, se não equivalentes, estreitamente conectados. De modo talvez
excessivamente ambicioso, como já se assinalou, Sergio Buarque espera para o Brasil
o nascimento de algo – um estilo, uma forma de política, mas também de vida e
pensamento – não apenas inaudito, mas para cuja compreensão as ferramentas ainda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
não existem, precisam ser criadas. É preciso lembrar que essa criação passa,
necessariamente, pela superação da cordialidade e de todos os arcaísmos, porque,
como se viu, eles não são capazes de produzir estímulos positivos, uma estrutura
espiritual normativa, apenas conseguindo parasitar, na ausência de trabalho intelectual,
sistemas alheios. Assim como os Estados Unidos de Lawrence, o Brasil de Raízes é um
país que já contém os germes de um estilo novo, mas que ainda não foi capaz de
articular a sua voz. O ser capaz de fazê-lo envolveria, necessariamente, despir-se das
falsas roupas que vem usando – e a democracia, ao menos tal como vinha sendo
praticada, é uma delas.
Vale lembrar, para encerrar o presente excurso, que, no último ensaio de Studies
in Classic American Literature, Lawrence identifica em Walt Whitman o arauto da
verdadeira democracia. A torção semântica que Lawrence aplica ao termo é também
de grande interesse para a leitura de Raízes do Brasil, pois parece que a argumentação
de Sergio Buarque não está imune a alguns reflexos do desfecho da interpretação da
336
“American consciousness has so far been a false dawn. The negative ideal of democracy. But
underneath, and contrary to this open ideal, the first hints and revelations of IT. IT, the American whole
soul. You have got to pull the democratic and idealistic clothes off American utterance, and see what
you can of the dusky body of IT underneath. "Henceforth be masterless.” Henceforth be mastered.”.
Ibid., p. 19.
332
A função essencial da arte é moral. Não é estética, não é decorativa, não é passatempo e
recreação. E sim moral. A função essencial da arte é moral.
Mas uma moral implícita, das paixões, não didática. Uma moral que muda o sangue,
antes do que a mente. Muda o sangue primeiro. A mente segue depois, na esteira.
Vejam que Whitman era um grande moralista. Ele era um grande líder. Ele era um
grande transformador do sangue nas veias dos homens.339
337
“Sympathy”; não parece haver controvérsia na tradução escolhida, pois, atento à pouca transparência
etimológica do termo em inglês, ele o esclarece uma vez complementando-o com “feeling with” (p. 157),
e outra com “compassion” (p. 159). É interessante lembrar, nesse contexto os repetidos e fervorosos
ataques nietzschianos à compaixão cristã (mitleiden) na fase final de sua obra.
338
De l’éros cosmogonique, cit., p. 91-3.
339
“The essential function of art is moral. Not æsthetic, not decorative, not pastime and recreation. But
moral. The essential function of art is moral. But a passionate, implicit morality, not didactic. A morality
which changes the blood, rather than the mind. Changes the blood first. The mind follows later, in the
wake. Now Whitman was a great moralist. He was a great leader. He was a great changer of the blood
in the veins of men.” Studies in Classic American Literature, p. 155.
333
Não sou eu quem guia minha alma para o Céu. Sou eu quem é conduzido por minha
própria alma na estrada aberta, por onde andam todos os homens. Portanto, eu devo
aceitar as suas profundas emoções de amor, ou ódio, ou compaixão, ou desgosto, ou
indiferença. E eu devo ir aonde ela me leva. Pois meus pés e meus lábios e meu corpo
são minha alma. Sou eu quem deve se submeter a ela.
Esta é a mensagem de Whitman de democracia americana.
A verdadeira democracia, onde alma encontra alma, na estrada aberta. Democracia.
Democracia americana onde todos viajam pela estrada aberta. E onde uma alma é
conhecida de uma vez só em seu curso. Não por suas roupas ou aparência. Whitman
acabou com isso. Não pelo seu sobrenome. Nem mesmo pela sua reputação.340
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Note-se como aqui a noção de um “tipo próprio” de cultura se entrelaça com uma
mutação das formas políticas, em confluência não apenas com Raízes do Brasil, mas
também com a filosofia da história morfológica de Oswald Spengler. Lembre-se
também, por sinal, como, no trajeto intelectual que levará Sergio Buarque a querer se
distanciar, com indisfarçado desconforto, de algumas posições tomadas em 1936 na
segunda edição de Raízes do Brasil não se confunde com a sua crescente aproximação
maior com o universo literário e intelectual dos Estados Unidos. Num artigo intitulado
Considerações sobre o Americanismo, que publica no Diário de Notícias em 28 de
setembro de 1941341 – isto é, antes de Brasil, e Estados Unidos terem entrado na guerra
que se deflagrava na Europa – Sergio persiste na posição tomada em Raízes do Brasil,
de que “apesar de tudo quanto nos distingue dos anglo-saxões da América, ainda restam
zonas de coincidência já nascidas nas primeiras épocas da colonização e que o tempo
340
“It is not I who guide my soul to heaven. It is I who am guided by my own soul along the open road,
where all men tread. Therefore, I must accept her deep motions of love, or hate, or compassion, or dislike,
or indifference. And I must go where she takes me. For my feet and my lips and my body are my soul.
It is I who must submit to her. This is Whitman's message of American democracy. The true democracy,
where soul meets soul, in the open road. Democracy. American democracy where all journey down the
open road. And where a soul is known at once in its going. Not by its clothes or appearance. Whitman
did away with that. Not by its family name. Not even by its reputation.” Ibid., p. 161.
341
E depois reimpresso, com o parágrafo final aumentado em algumas linhas, em 1944, na coletânea
Cobra de Vidro.
334
não apagou” 342 . Esse texto ainda guarda em larga medida o linguajar vitalista da
primeira edição, especialmente quando fala na possibilidade – aqui rejeitada – de que
o comércio de ideias com os Estados Unidos poderia representar um “perigo mortal
para nossas tradições mais autênticas, nosso caráter nacional, nosso ritmo de vida,
nossa própria razão de existir”343, sem deixar de acrescentar, contra essa posição, e
especulando sobre uma possível “síntese” do dilema de Joaquim Nabuco 344 entre
“sentimento brasileiro e fantasia europeia”, talvez numa autorreferência irônica, que
não teria dificuldade em imaginar “algum imprudente apóstolo ou inventor de mitos
que, com a intolerância e exclusivismo de todos os apóstolos, chegue a reivindicar para
nós o monopólio de autêntico americanismo”345. E, fornecendo importante subsídio à
compreensão das posições de Sergio Buarque sobre as ditaduras no contexto da II
Guerra Mundial, ou pelo menos da evolução dessa ideia, Sergio adverte que, se a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
342
“Considerações sobre o americanismo”, CV, p. 26-7.
343
“Considerações sobre o americanismo, CV, p. 23.
344
Sergio se refere a Minha formação, e especificamente capítulo “A atração do mundo” (Cf. supra cap.
II, seção 2, “Heresia”).
345
“Considerações sobre o americanismo”, CV, p. 24.
346
Ibid., p. 25-6.
335
Há razões para acreditar que é esse mesmo sentimento que leva Sergio Buarque a
concluir, numa notícia biográfica sobre a então recentemente falecida Elisabeth
Foerster-Nietzsche datada já de dezembro de 1935 – depois da publicação, em março
do mesmo ano, de Corpo e alma do Brasil, ensaio que contém, em forma ainda
esboçada, os três últimos capítulos de Raízes do Brasil – que “talvez houvesse razão”
nas censuras dos “homens de esquerda” à falsificação do pensamento de Friedrich
Nietzsche por sua irmã antissemita, mas que caberia perguntar se não seria também
“ilegítima” e “superficial” “a atitude desses homens” ao pretender “criar um Nietzsche
à sua imagem”348. Confrontado com as mentiras antissemitas de Elisabeth Foerster,
Sergio se recusa a denunciá-las irrestritamente, pois essa é a posição mantida por outros
mentirosos, os da esquerda. Se for para dar razão a mentirosos, melhor nem dizer a
verdade – essa está inteiramente interditada enquanto sua voz for inaudível em meio à
tagarelice politiqueira. A mentira lhe parece, como nas Considerações de um apolítico,
e também no pensamento de Nietzsche, um dos traços definidores da cultura política
da democracia moderna349. Note-se que essa recusa à tomada de partido em nome de
347
“Poznan, 23 de setembro, 1929”, RSBH, p. 160. Texto originalmente publicado em O Jornal, 6 nov
1929.
348
“Elisabeth Foerster”, EC, I, p.82. Texto originalmente publicado na Folha da manhã, 19 dez 1935.
349
“Democracia significa: império [Herrschaft] da política. A política implica um mínimo de
objetividade. O especialista é objetivo, quer dizer, apolítico, ou seja, ele não é um democrata. Fora com
336
***
ele! Que o substituam o advogado dono de semanário, o jornalista, o artista de talento retórico.”
Considérations d’um apolitique, cit., p. 257; Betrachtingen eines Unpolitischen, cit., p. 291-2.
337
mantidos até aqui pela força da inércia e que o ambiente não só já deixou de estimular,
como começa a condenar irremediavelmente” 350 , e uma secura violenta, como no
momento em que se lê que é “deliberadamente que se frisa aqui o declínio dos centros
de produção agrária como um fator decisivo da hipertrofia urbana”. Não admira que a
linguagem adquira uma rispidez que beira o desagradável, afinal, o quadro emergente
é o exato oposto, do ponto de vista formal, do apresentado nos dois capítulos que
formam a parte mais substancial da descrição das “raízes” nacionais, isto é, os dois que
tratam do “passado agrário”. O fim do período colonial termina por significar uma
inversão geográfica da “forma” original da cultura, e a “nossa revolução” nada mais é,
numa perspectiva de maior duração, do que uma intensificação de tendências já
anunciadas desde o princípio da história brasileira:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
As cidades, que outrora tinham sido como complementos do mundo rural, proclamaram
finalmente sua vida própria e sua primazia. Em verdade podemos considerar dois
movimentos simultâneos e convergentes através de toda a nossa evolução histórica: um
tendente a dilatar a ação das comunidades urbanas e outro que restringe a influência dos
centros rurais, transformados, ao cabo, em simples fontes abastecedoras, em colônias
das cidades.351
350
RB, p.140.
351
RB, p. 138.
352
RB, p. 45-6.
353
RB, p. 45.
338
Os velhos senhores rurais, tornados impotentes pelo golpe fatal da Abolição e por outros
fatores decisivos, não tinham como intervir nas novas instituições. A República, que não
criou nenhum patriciado, mas apenas uma plutocracia, ignorou-os por completo. Daí o
melancólico silêncio a que ficou reduzida a casta de homens que no Império dirigia e
animava as instituições, assegurando ao conjunto nacional uma certa solidez orgânica,
que nunca mais foi restaurada. Essas condições não foram mais virtudes do regime
monárquico do que da estrutura em que assentava e desapareceu irremediavelmente. A
urbanização contínua, progressiva, avassaladora, fenômeno social de que as instituições
republicanas deviam representar a forma exterior complementar, destruiu esse poderoso
esteio rural, que fazia a força do regime decaído, sem lograr substituí-lo por nada de
novo.355
354
RB, p. 138-9.
355
RB, p. 141.
356
Loc. cit.
339
O Estado, entre nós, de fato, não precisa e não pode ser despótico – o despotismo condiz
mal com a doçura de nosso gênio – mas necessita de pujança e de compostura, de
grandeza e de solicitude, ao mesmo tempo, se quiser adquirir alguma força e também
essa respeitabilidade que os nossos pais ibéricos nos ensinaram a considerar como a
virtude suprema entre todas. Ele pode conquistar por esse meio, e só por ele, uma força
verdadeiramente assombrosa em todos os departamentos da vida nacional. Mas é
indispensável que as peças de seu mecanismo funcionem com certa harmonia e garbo.358
357
Considérations d’un apolitique, cit., p. 219. No original, “Das Politische ist die Sphäre des
(demokratischen) Individuums, nicht der (aristokratischen) Persönlichkeit.” Betrachtungen eines
Unpolitischen, cit., p. 240.
358
RB, p. 142.
340
Mais uma vez, Sergio ecoa de forma notável, fazendo o Brasil ocupar o lugar da
Alemanha, as opiniões afirmadas por Thomas Mann nas Considerações de um
apolítico. Em 1918, em meio a uma Alemanha exausta da guerra, Mann afirmava, com
ironia amargurada, referindo-se aos alemães, que “[n]ossa bonomia humana e apolítica
[Unsere gemütig unpolitische Menschlichkeit] nos levou a imaginar sempre que a
compreensão, a paz, a amizade, a boa vontade eram possíveis, e não suspeitávamos,
nem mesmo em nossos sonhos que só por meio da guerra aprenderíamos [...] até que
ponto eles nos odiavam”361. Assim como fará Mann no capítulo intitulado “Política”, o
mais longo de seu longuíssimo ensaio362, tendo diante de si a necessidade de que o
Estado seja capaz de preservar a soberania do povo e conduzi-lo à realização de suas
disposições metafísicas, Sergio acredita ser necessária certa correspondência espiritual
359
RB, p. 143.
360
RB, p. 143-4.
361
Considérations d’un apolitique, cit., p. 39; Betrachtungen eines Unpolitischen, cit., p. XXXIX.
362
Cf. esp. Considérations d’un apolitique, p. 211-21.
341
entre ele e a nação, ou o “povo”. São ideias que correspondem de modo bem
aproximado ao que Isaiah Berlin resumiu da escola jurídica histórica alemã a partir das
ideias de Adam Müller – o jurista “romântico” de quem Carl Schmitt traça um
demolidor retrato em seu Romantismo político. Müller, que introduz na Alemanha o
pensamento de Edmund Burke, apregoa um ideário organicista do Estado
extraordinariamente afinado com o que Sergio Buarque defende em Nossa Revolução:
A ciência só pode reproduzir um Estado político sem vida; a morte não pode representar
a vida [...] tampouco pode estagnação representar movimento. Ciência, utilitarismo, o
emprego de máquinas, não dão a ideia do Estado, que “não é só uma fábrica, fazenda,
companhia de seguros ou sociedade mercantil; ele é a ligação íntima de todas as
necessidades físicas e espirituais da nação, de todas as suas riquezas físicas e
espirituais, de toda a sua vida externa e interna, formando um todo energético,
infinitamente ativo e vivo”. Essas palavras místicas se tornam então o coração e o centro
de toda a teoria orgânica da vida política, e da lealdade ao Estado, e do estado como
organização semi-espiritual, expressão simbólica dos poderes espirituais de mistérios
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
divinos, coisa que o Estado se torna, sem dúvida, entre os românticos, ao menos entre os
mais extremados.363
Nada indica que Sergio Buarque tenha se dado ao trabalho de ler Adam Müller,
figura relativamente obscura na história do pensamento alemão. Ele certamente tinha
lido os comentários zombeteiros de Schmitt sobre ele, que serve no Romantismo
político como o exemplar mais destacado da doença romântica no pensamento jurídico
alemão, além dos elogios que Thomas Mann faz a Müller nas suas Considerações de
um apolítico, dizendo de seus escritos políticos que seriam “o que de mais espiritual e
de verdadeiro já se escreveu” sobre o tema364. O certo é, porém, que o caldo de ideias
gerado no contexto romântico terá penetrado em sua reflexão, talvez pelo intermédio
de vitalistas como Spengler e Klages, ou até de Schmitt, afinal, as ideias acima descritas
não são necessariamente românticas no sentido schmittiano, isto é, “ocasionalistas”. A
teoria do direito gerada na época romântica, tal como descrita por Berlin, é quase
perfeitamente afinada com “Nossa Revolução”, inclusive no conteúdo específico da
crítica buarquiana à tradição que ele chama de “liberal”, mas que se refere sobretudo
363
Isaiah Berlin, The roots of Romanticism, cit., p. 144. A citação de Adam Müller não foi identificada
pelo organizador da edição.
364
Considérations d’un apolitique, cit., p. 230.
342
Na escola alemã de jurisprudência histórica, a lei verdadeira não é algo que alguma
autoridade, um rei ou uma assembleia, calha de instituir; isso não passa de um evento
empírico, orientado talvez por pragmatismo ou outras considerações desprezíveis.
Tampouco a lei é algo eterno – como aquelas leis da natureza, aquelas leis divinas, que
qualquer alma racional poderia descobrir por si mesma, como ensinavam a Igreja de
Roma, os estoicos e os philosophes franceses do século XVIII. [...] Isto é negado. A lei
é o produto da força pulsante dentro da nação, de forças tradicionais obscuras, de sua
seiva orgânica que corre dentro de seu corpo como numa árvore, ou algo que não
podemos identificar e não podemos analisar, mas que todos aqueles que são fiéis a seu
país sentem correr pelas veias. A lei se desenvolve a partir da tradição, em parte produto
de circunstâncias, mas é também a alma interior da nação, que agora começa a ser
concebida quase como individual – aquilo que, entre si, os membros da nação geram.365
365
The Roots of Romanticism, cit., p. 145.
366
Apud RB, p. 144.
343
política”, acreditando “que a letra morta pode influir de modo enérgico sobre os
destinos de um povo” 367 . Sua condenação da resposta de Alberto Torres ao
descompasso entre política e sociedade, isto é, a proposta de uma reforma
constitucional, é marcadamente organicista, e opõe à política e às leis o grande valor
que o autor de Raízes acredita elevar-se acima dos partidos e das pequenas disputas do
dia a dia da administração pública, a “verdade” ou “realidade”, que a tradição
intelectual brasileira sempre recusa como excessivamente “dura” ou triste”:
Escapa-nos a verdade de que não são as leis escritas e fabricadas pelos jurisconsultos,
ou o cumprimento fiel dessas leis, as mais legítimas garantias de felicidade para os povos
e de estabilidade para as nações. Costumamos julgar, ao contrário, que os bons
regulamentos e a obediência aos seus preceitos constituem a floração ideal de uma
apurada educação política, da alfabetização, da aquisição de hábitos civilizados e de
outras condições igualmente excelentes. Essa opinião enganosa tomou vulto depois de
incentivada a crença no mito do progresso, com o êxito do comtismo, do spencerismo,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Nota-se como o problema, para Sergio Buarque, não está nesta ou naquela visão
de conteúdo de como as coisas devem se organizar – ele parece muito pouco
interessado nisso, e quando fala em “liberalismo” ou “democratismo liberal” parece
quase só se referir ao esqueleto institucional do Estado, tal como imaginado na tradição
de pensamento político liberal – mas em certo quadro de compreensão de como as
coisas devem se organizar. E não está nem um pouco claro o alvo exato da
argumentação de Raízes do Brasil, que parece, lida atentamente, a despeito de toda
intenção de seu autor, uma espécie de jeremiada romântica contra toda a tradição
política brasileira. Não se trata aqui de reclamar um programa específico ou uma
tomada de posição inequívoca, mas simplesmente de constatar que, na verdade, parece
ser contra toda uma estrutura histórica bastante enraizada que se insurge o autor. Ao
mesmo tempo em que a direita católica é atacada já desde o começo do livro, o
367
RB, p. 145.
368
RB, p. 146.
344
com esses mesmos conceitos “um sistema lógico, homogêneo, aistórico” 369 . Sergio
parece acompanhar aqui o elogio de Hobbes por Carl Schmitt no segundo capítulo de
sua Teologia política:
Hobbes discutiu a demanda de que o poder estatal fosse subordinado ao poder espiritual
por ser último de uma ordem superior. A esse raciocínio ele respondeu que se um
“poder” (potestas) devesse ser subordinado a outro, o significado disso seria que quem
possui poder está subordinado a outro que possui poder [...]. Falar em superior e inferior
e tentar permanecer simultaneamente no abstrato é para ele incompreensível (“we cannot
understand”). “For Subjection, Command, Right and Power are acidentes not of Powers
but of Persons”. [Pois sujeição, comando, Direito e poder são acidentes não de poderes,
mas de pessoas]370
Ora, para Sergio Buarque foi exatamente o contrário dessa forma de pensar que
presidiu a história do pensamento político da América ibérica. Abstrações, e não pautas
concretas, eram tomadas por objetivos da ação política. Nesse idealismo entraria uma
recusa do mundo real, e seus sintomas viriam desde a atração dos movimentos
independentistas pelos “princípios da Revolução Francesa” até a mais recente adesão
aos “ideais apregoados pela Terceira Internacional”. Não ocorre a Sergio se perguntar
pela qualidade desses ideais, apenas condená-los como sintoma da incapacidade de
369
RB, p. 147.
370
Political Theology, cit., p. 33-4.
345
371
RB, p. 148.
372
RB, p. 149.
346
destino coletivo dos povos àquilo que na seção 11 do Anticristo Nietzsche denomina
“o Moloch da abstração”. Ou, como se lê na seção 9 do mesmo livro, “[s]e acontece de
os teólogos, através da ‘consciência’ dos príncipes (ou dos povos –), estenderem a mão
para o poder, não duvidemos do que sempre se dá: a vontade de fim, a vontade niilista
quer alcançar o poder...”375. Compreende-se melhor a estranhamente longa “Nota E”
sobre o Maquiavel no Brasil de Otávio de Faria – na verdade, uma resenha já publicada,
que Sergio transcreve integralmente, a fim de demonstrar a “idiossincrasia” e a baixa
qualidade de seu raciocínio. No primeiro parágrafo da resenha transcrita (isto é, o
segundo da nota), lê-se que, diferentemente de Maquiavel, Otávio de Faria faz uma
defesa do realismo político pretensamente baseada em valores morais – numa efetiva
desmaquiavelização de Maquiavel, feito aliás exemplar do estilo intelectual formalista
e inconsequente descrito nos capítulos V e VI de Raízes. O evidente contrassenso da
doutrina de Otávio de Faria, na opinião de Sergio, é demonstrado numa argumentação
claramente baseada no Conceito do político de Carl Schmitt. Ali, sobre Maquiavel, lê-
se que “Maquiavel, que, se tivesse sido um maquiavélico, antes teria escrito um livro
edificante do que o seu amaldiçoado Príncipe. Na verdade, Maquiavel estava na
373
RB, p. 149-50.
374
RB, p. 149.
375
O anticristo, cit., p. 15.
347
defensiva, assim como seu país, a Itália, que, no século XVI, havia sido invadido por
alemães, franceses, espanhóis e turcos.”376 Ora, Maquiavel, justamente o filósofo que
não sacrifica nada ao “Moloch” das abstrações teológicas, é transformado por Otávio
de Faria no áulico edificante imaginado por Schmitt. Pior, o fascista brasileiro, diante
da constatação de que o homem “não presta”, arquiteta uma teoria do Estado autoritário
justificada por algo que “o transcenda”, isto é, as “personalidades superiores” dos
líderes fascistas. Aventando, sarcasticamente, haver por trás de sua “atitude
desconcertante” alguma “grande ideia religiosa ou metafísica”, ainda não esclarecida
pelo autor resenhado, Sergio Buarque o inclui no mesmo balaio dos liberais, que
subordinam a vida política prática ao mundo das abstrações edificantes377. Sua teoria
está, assim como todas as outras efetivamente existentes consideradas por Sergio, do
lado oposto da “vida” e do “natural” do povo brasileiro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
376
The concept of the political, cit., p. 66.
377
RB, p. 173-6.
378
Considérations d’un apolitique, cit., p. 216.
379
RB, p. 150-1.
348
380
RB, p. 151.
381
RB, p. 152.
382
RB, p. 153.
349
É para se notar como, nos dois casos, essa correspondência é puramente negativa,
de modo que tudo que o “democratismo liberal” oferece é uma falsa solução, que corrói
a autenticidade nacional ao mesmo tempo em que, por não estar ajustada aos “quadros
de vida” locais, não consegue realizar plenamente a transição para o mundo moderno.
Há, porém, um terceiro elemento por onde as “ideias da Revolução Francesa” exercem
uma sedução especial no Brasil: “A noção da bondade natural do homem combina
singularmente com o nosso já assinalado ‘cordialismo’. E é aqui que o ‘homem cordial
encontraria uma possibilidade de articulação entre seus sentimentos e as construções
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
383
RB, p. 154.
384
Loc. cit.
385
RB, p. 155.
350
Mais uma vez, Sergio Buarque parafraseia de forma quase servil o Conceito do
político de Carl Schmitt – onde, aliás, a castração do poder pastoral do Estado em nome
de um individualismo radical não é uma perversão do liberalismo, mas, pelo contrário,
sua vocação – quando afirma, no sétimo capítulo, que, “[p]ara os liberais, a bondade
do homem é um mero argumento por meio do qual o Estado é obrigado a servir a
sociedade” 386
. Incapaz de identificar nos “argumentos” mais do que formas
esteticamente aproveitáveis – comportamento tipicamente romântico, novamente no
sentido schmittiano de ocasionalismo esteticamente determinado – o intelecto “cordial”
os abraça sem compreender o sentido frio e impessoal, abertamente inimigo do
“personalismo”, da ideologia liberal. Também somos lembrados aqui de D. H.
Lawrence, em trecho citado acima, quando fala na capacidade humana de ignorar o que
diz uma voz dissonante das que se acostumou a ouvir. Sergio então sublinha outra vez
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
386
The concept of the political, cit., p. 60.
387
RB, p. 156.
351
amor ao objetivo distante, o amor universal, só prospera às custas de amar num círculo
restrito, portanto, naquele único lugar onde o amor tem uma verdadeira realidade?”388,
Mais tarde, no capítulo intitulado “Política”, encontra-se a passagem que
provavelmente terá inspirado a inclusão da “célebre frase de Bentham”, que o próprio
Mann não chega a nomear:
388
Considérations d’un apolitique, p. 168.
389
Ibid., p. 220. Betrachtungen eines Unpolitischen, cit., p. 240-1. Mann deve ter julgado a fórmula
benthamiana especialmente representativa do ponto de vista que estava combatendo, a ponto de repeti-
la adiante no mesmo capítulo (p. 274).
390
Considérations d’un apolitique, cit., p. 229.
391
Political Theology, cit., p. 48.
352
como quem quer causar escândalo: “Der Wille des Volkes ist Immer Gut, [a vontade
do povo é sempre boa] Le peuple est toujours vertueux”392. Também Thomas Mann se
mostra indignado com a mesma ideia, que atribui igualmente à Revolução, citando, no
caso, Robespierre: “O povo é justo, sábio e bom. Tudo que ele faz é virtuoso
[tugendhaft] e verdadeiro, nada é excessivo, errado ou criminoso”393. Sergio está se
movimentando nesse mesmo terreno argumentativo quando afirma que a democracia
subordina, “sub-repticiamente, os ideais qualitativos à quantidade”, pois insiste na
“excelência” e na “infalibilidade do voto majoritário como determinante das ações do
Estado – sendo para ele o “bom” governo, no caso, a “qualidade”; lembremos que, na
Teologia política, soberano é quem decide na exceção, é-se soberano ou não, por
princípio, independentemente de vontade majoritária. Já a essência do político, para o
Schmitt do Conceito do político, é a preservação da forma de vida de uma coletividade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
(de “amigos”) contra ameaças externas (“inimigos”). À luz do cotejo dessas passagens
com o que se leu acima, há boa razão para supor que o entendimento que Sergio faz da
“qualidade” do Estado está próximo dessa idealização schmittiana da soberania. A
vontade do “povo” idealizado pelas Luzes e pela Revolução não pode ser, para Sergio,
a portadora das aspirações brasileiras à modernidade, pois “um amor humano que se
asfixia e morre fora de seu círculo restrito, não pode servir de cimento a nenhuma
organização humana concebida em escala mais ampla”. Na sequência, ele emenda:
“[c]om a cordialidade, a bondade, não se criam os bons princípios”. A solução estaria
num “elemento normativo, sólido, inato na alma do povo, ou implantado pela tirania
para que possa haver cristalização social”. A tirania, nesse caso, não está descartada:
“A tese de que os expedientes tirânicos nada realizam de duradouro é apenas uma das
muitas invenções fraudulentas da mitologia liberal, que a história está longe de
confirmar”394.
As páginas finais do livro vão tomando um tom crescentemente nietzschiano de
denúncia da infiltração da política pela moral, a uma moral compassiva do cristianismo,
uma moral que Nietzsche identifica como criação conformada por solicitações mentais
392
Politische Theologie. Munique; Leipzig: Duncker & Humblot, 1934, p. 62.
393
Considérations d’un apolitique, cit., p. 310; Betrachtungen eines Unpolitischen, p. 365-6.
394
RB, p. 156-7.
353
de quem nasceu para servir e não para liderar. Sergio faz o elogio dos homens que, na
Revolução Pernambucana de 1817, “não desejavam em nada modificar a situação dos
negros escravos”, por sua “sinceridade”, que “nunca mais se repetiu no decurso da
nossa vida de nação. Todos os seus sucessores, mesmo “os mais sábios e os mais
prudentes” preferiram simplesmente “esquecer a realidade, feia e desconcertante” pois
nunca duvidaram “que a sã política é filha da moral e da razão”395 – nesse ponto Sergio
parece se limitar a aludir ao argumento sobre a mentalidade livresca dos bacharéis,
descrita em “Novos tempos”, mas a última observação traz à memória uma referência
que ali não aparecera, isto é, o elogio nietzschiano da virtù maquiaveliana, isto é, a
“virtude no estilo da Renascença”, contra a “virtude” no sentido corrente da cultura
cristã moderna396. Desse defeito padecem mesmo os “realistas” da política brasileira,
que sempre pretendem “agir, ao mesmo tempo, segundo os critérios morais”, em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
“atitude não muito diversa da que [...] adotaram os ‘caudilhos esclarecidos’ da Europa
moderna” 397 . É então que Sergio vai fazer sua estranhíssima crítica a o fascismo.
Estranha, sobretudo, porque desconectada de qualquer preocupação com as
consequências práticas da ideologia fascista. Para Sergio, o problema principal do
fascismo é que ele não chega a “superar” o liberalismo, ainda obedecendo à mesma
articulação entre teoria política e necessidades materiais – talvez, pensando em D. H.
Lawrence, o problema estivesse no predomínio, em ambas as correntes, da “mente”
sobre a “alma”, de modo a não permitir a libertação da América em direção ao mundo
da “estrada aberta”, identificado pelo crítico na poesia de Walt Whitman:
395
RB, p. 157.
396
Anticristo, seção 2 do Prólogo (p. 10-11): “O que é bom? – Tudo o que eleva o sentimento de poder,
a vontade de poder, o próprio poder no homem. O que é mau? – Tudo o que vem da fraqueza. O que é
felicidade? – O sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência é superada. Não a satisfação,
mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra, não a virtude, mas a capacidade [Tuchtichkeit,
também “eficiência”, “competência”, “proeza”] (virtude à maneira da Renascença, virtù, virtude isenta
de moralina) [moralinfreie Tugend].” (KSA 6, p. 170)
397
RB, p. 157-8.
354
contrarreforma? Quem duvida que entre os seus motivos diretos subsiste o intuito [...]
de dar um sentido e um fundamento às reivindicações materiais que, em verdade, lhe
servem de base?398
doutrina fanática terrorista à la Leo Nahpta? Outro problema, para Sergio, esse de
ordem um pouco mais pragmática, estaria na falta de vocação dos fascistas brasileiros
– e também dos comunistas, que, afinal, também propõem uma política diferente da
liberal – para a violência e para o conflito. Isso transforma ambos em nada mais do que
uma nova encarnação dos positivistas, com seu bovarismo e seu horror “neurastênico”
da realidade:
Desde já podemos sentir que não existe quase mais nada de agressivo no incipiente
mussolinismo indígena. Na doutrinação dos nossos “integralistas”, com pouca corrupção
a mesma que aparece nos manuais italianos, faz falta aquela truculência desabrida e
exasperada, quase apocalíptica, que tanto colorido emprestou aos seus modelos da Itália
e da Alemanha. A energia sobranceira destes, transformou-se, aqui, em pobres
lamentações de intelectuais neurastênicos. Deu-se com eles coisa parecida com o que
resultou do comunismo, que atrai entre nós precisamente aqueles que parecem menos
aptos a realizar os princípios da Terceira Internacional.
398
RB, p. 158-9.
355
399
RB, p. 159.
400
RB, p. 160-1.
356
ao mesmo tempo de “organizar a nossa desordem”. Lê-se que “o espírito não é uma
força normativa” a não ser quando possa “servir” e corresponder à “vida social” – note-
se que o “espírito”, no caso o “espírito” do Estado e das Leis, é uma dimensão
necessária desse processo; apenas as ideologias políticas já “ensaiadas” no Brasil não
cumprem a condição de que ele possa consumar a sua normatividade. O sentido da
observação é a recusa de toda e qualquer solução política da Europa para a
modernização – fascismo, liberalismo, comunismo e variantes nacionais, como o
integralismo, já que, como se viu no começo desta seção, no cotejo com D. H.
Lawrence, a “nossa revolução”, aonde quer que leve o seu desenlace, tem por horizonte
fazer florescer o “tipo próprio de cultura” pelo qual se perguntava a abertura do livro.
A solução para o dilema brasileiro fica então delegada a alguma força política nunca
nomeada, ou então para o longo prazo, cumprindo, momentaneamente, acelerá-la por
meios fundamentalmente pedagógicos antes que políticos. Sergio parece querer
401
D. H. Lawrence fala no “espírito do lugar”, ao qual depois associará o “daimon” ou “demônio” da
América, ao qual os euro-americanos teriam estado imunes até a consumação do genocídio dos povos
indígenas (“While the Red Indian existed in fairly large numbers the new colonials were in a great
measure imune from the daimon, or demon of America. The moment the last nuclei of Red life break up
in America, then the white men will have to reckon with the full force of the demon of the continent.”).
Essa noção, entretanto, parece assumir conotações mais positivas do que as aqui empregadas por Sergio
Buarque. O símile de um “espírito” ou “daimon” do lugar não parece, por outro lado, inteiramente
estranho a Raízes do Brasil. Studies in Classic American Literature, cit., p. 42-3.
402
Considérations d’un apolitique, p. 239; Betrachtungen eines Unpolitischen, p. 267.
403
O anticristo, cit., p. 11.
357
muito seletivamente pelas elites intelectuais. Somente assim, ousando saber a verdade
sobre si mesmos, ousando ouvir sua própria e verdadeira voz, encontrando-se
verdadeiramente e sem preconceitos com a própria realidade, é que os homens letrados
do Brasil poderiam dar corpo, por meio do trabalho moroso e fatigante que sempre
evitaram, ao seu pensamento original. Só assim eles poderiam exorcizar, expulsar de
suas inteligências o “demônio pérfido” que obscurece a sua autopercepção. Assim, na
pesquisa e na reflexão, e não, como sempre fizeram nossos literatos civilizadores desde
os liberais, passando pelos positivistas, e agora também comunistas e integralistas, pela
busca de soluções milagrosas, importadas ou pretensamente originais, surgidas de
alguma fantasiosa e irrefletida idealização da alma brasileira. Erraram todos, sem
exceção, porque não tiveram a coragem de olhar para o próprio corpo, de ouvir a
própria voz por trás das palavras mentirosas que lhes ensinaram os livros importados.
Porque não se dispuseram a mergulhar fundo nas profundezas anímicas apenas
provisoriamente esboçadas na análise do livro. Profundezas que cumpriria conhecer
melhor para bem compreender as “necessidades específicas” da sociedade. Até lá, só
espera, impasse e erro.
404
LUKÁCS, Georg. O Humanismo Clássico Alemão: Goethe e Schiller. In: Ensaios sobre literatura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 180-181.
358
neste trabalho, a exposição do que seria uma síntese acabada do pensamento de Sergio
Buarque. Como disse no Prólogo, procurei me pautar pelo estilo de história intelectual
praticado por Sergio Buarque de Holanda nos textos onde ele teve a maior oportunidade
de exercitar a sua excepcional inteligência filológica e crítica –Visão do paraíso e os
estudos reunidos em Capítulos de História Colonial me parecem os exemplos mais
eloquentes. Ali, Sergio Buarque parte dos textos que quer interpretar e puxa longos fios
através de conexões com outras obras, pelas ocorrências prévias dos lugares-comuns,
pelos indícios que os textos oferecem da sensibilidade e da racionalidade que perfaziam
o tecido da realidade dos tempos passados, iluminadas por sua impressionante
erudição, em toda a sua estranheza. Acredito que essa inteligência foi educada
paulatinamente, desde os anos 1920, no contato assíduo com as expressões da cultura,
isto é, com aquilo que ele chamava de “formas”, mas que ela passa por um salto
qualitativo em Raízes do Brasil, onde a necessidade de oferecer um painel geral da
formação brasileira serve como uma espécie de laboratório para a investigação das
diversas maneiras como os artefatos de cultura, principalmente os literários – uso aqui
o termo no sentido mais amplo possível – se articulam com as mais diversas
possibilidades de figuração de existência.
Não sei até que ponto Sergio Buarque terá se interessado pelas ideias de Ludwig
Wittgenstein – ele tinha em sua biblioteca alguns livros do filósofo e um volume sobre
360
ele – mas acredito, como Pedro Meira Monteiro1, que ele teria encontrado no austríaco
um pensamento afinado com sua preocupação com as palavras, que se revela, para além
de sua vocação de crítico literário, em sua prosa, nem sempre fácil, mas que
normalmente exibe uma precisão que só pode ser o resultado de um cuidado quase
obsessivo. Suspeito que ele, que muito jovem se preocupava com o problema dos
poetas diante da felicidade, terá notado esta passagem 6.43 do Tractatus Logico
Philosophicus:
Se querer o bem ou querer o mal muda o mundo, isto só poderá mudar os limites do
mundo, nunca os fatos; nunca o que pode ser expresso na linguagem. Em suma, por isso,
o mundo deve em geral tornar-se outro. Deve, por assim dizer, crescer ou diminuir como
um todo. O mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes.2
Felizes ou infelizes, todos vivemos em meio aos mesmos fatos, mas vivemos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
1
MONTEIRO, Pedro Meira. “Sergio Buarque de Holanda e as palavras”. In: Signo e desterro, cit.
2
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Companhia Editora
Nacional; EdUSP, 1968, p. 127.
361
3
Suspiros poéticos e saudades, LP, p. 353.
4
Ibid., p. 370.
362
[É] certo que o lirismo português, embora comprazendo-se nesses estados, nunca os
levou ao ponto de uma dissolução total de personalidade, nem sequer depois do
romantismo — ao contrário do que sucede com frequência entre os poetas nórdicos —
e nisso revela bem que ainda pertence ao galho latino e mediterrâneo. Também não se
perde nos transes místicos ou nos desvarios metafísicos, que são, ao cabo, uma solução
para as desconformidades com o mundo. O poeta canta as suas desilusões, mas não quer
atrair tempestades, invocar o demônio ou fabricar o ouro. Perde-se na vida como ela é,
e se a vida lhe traz cuidados não trata de ajustá-la a uma ordem mental. A ordem que
aceita não é a que os homens compõem com esforço, mas a que fazem com desleixo e
abandono, a ordem do semeador, não a do ladrilhador. É também a ordem em que estão
postas as coisas divinas e naturais, pois que — já dizia Antônio Vieira — se as estrelas
estão em ordem, “é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor, não fez Deus
o céu em xadrez de estrelas...”6
5
Decline of the West, cit., p. 13, 101.
6
Ibid., p. 365.
363
7
Poesias completas de Manuel Bandeira”, EL,I, p. 277. Diário de Notícias, 6 out 1940. Este texto tem
três versões: as duas primeiras, quase iguais, são de 1940 (Diário de notícias, ) e 1944 (Cobra de vidro,
1a edição). A terceira, consideravelmente aumentada, apareceu na edição de 1958 de Poesia e prosa e
está reproduzida na segunda edição de Cobra de Vidro (1978). Uso aqui a versão reimpressa em EL, a
primeira.
364
Mas essa maior ou menor ênfase na revolta contra as formas consagradas, as formas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
O nome de outro poeta ilustre ocorre insensivelmente neste passo, de um poeta que
utiliza algumas vezes os mesmos processos. Mas a semelhança é apenas superficial e
aparente: Guilherme de Almeida compõe musicalmente; o ritmo interior de sua poesia é
8
“Poesias completes de Manuel Bandeira”, EL,I, p. 279.
365
uma caprichosa melodia, que a dança das palavras acompanha. Ronald, ao contrário, é
antes um colorista. E entre ele e o mundo exterior intervém apenas a vontade de
estilização, “pura obra da inteligência discriminadora. A parte do artifício e deliberação
é empolgante, a do acaso, pouco mais do que nula. Nos intervalos de uma poesia que
quer ser matinal e inocente, que busca ferir o gosto como a polpa adstringente de uma
fruta verde, deparamos com meditações requintadas, de sabedoria sentenciosa e
asiática.9
A íntima repulsa que, quase sem exceção, suscitavam os portugueses e espanhóis nos
visitantes quinhentistas, quando estes, ao visita-los em suas terras, tinham com eles
maiores ocasiões de convívio, assemelhava-se muito, em todo caso, à espécie de
idiossincrasia que a muito europeu tornou sempre intolerável o comércio e as
comunicações dos orientais, apesar do fascinante mistério que pode proporcionar sua
velha civilização. E não seriam essas mesmas afinidades asiáticas das populações
ibéricas, mais patentes, sem dúvida, no século XVI do que em nossos dias atuais, que
tinham em conta, mesmo involuntariamente, os que se serviam contra eles dos apodos
de judeu e marrano?10
Logo mais, Sergio vai traçar uma analogia entre essa “íntima repulsa” e aquela
que o poeta romano Juvenal alimentava pelos gregos que vinham para a sede do
Império exercer as mais variadas profissões, todas elas ligadas ao realce das aparências
e passíveis de serem tomadas por “parasitárias”. Através desse símile, Sergio
9
Ibid., p. 279-80.
10
EF, p. 120.
366
caracteriza a visão que povos da Europa central teriam desenvolvido sobre a península,
na época em que ela ganhava uma preponderância inédita na cristandade latina:
O fato [...] é que, maneirosos, os primeiros [os castelhanos] por honrados, galantes ou
cortesãos, estes [os gregos] por lisonjeiros; palradores, cada qual a seu jeito; dados, uns
e outros, a intrincados pleitos e demandas ou a misteres parasitários e de pouco peso, ou
ainda se preciso, a se fazerem homens de muitos instrumentos (de modo que o gréculo
do ano 100 ou 120 de nossa era se improvisava sem dificuldade em gramático, retor,
geômetra, mentor, massagista, áugure, funâmbulo, médico ou mágico, mais ou menos
como o pícaro dos tempos dos Filipes), rufiães incorrigíveis e muito afeitos, igualmente,
a amores fáceis, tanto que, segundo o caso e a época, se comprazem em folgar com suas
bárbaras lobas, de mitra multicor – a picta lupa barbara mitra do satírico—ou com gente
de raça daquelas mil españolas que saben hacer maravillas, mencionadas na Lozana
Andaluzi de certo Francisco Delgado, médico e literato espanhol que morou em Roma
entre 1523 e 1527, aproximadamente, podiam impressionar quase de forma idêntica,
apesar de diversos, por certos traços que têm em comum: o gosto das demonstrações
exteriores, dos cerimoniais, da improvisação rápida, dos requebros, das facécias, do
dizer arguto ou empolado e propriamente asiático, de todos os artifícios, enfim, que
ajudam a dissimular, e não raro dissimulam, um perfeito vácuo espiritual.11
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
11
EF, p. 122.
12
VP, p. 263-8 (241-5).
13
VP, p. 223-5 (204-6).
367
14
RB, p. 80, 66.
15
EF, p. 12.
16
EF, p.. 104-5.
368
por escravizados africanos: mil e quinhentas negras lavavam roupas, outras mil
limpavam as ruas, “onde os moradores tinham o costume de despejar todas as
imundícies caseiras”; ainda outras mil levavam água aos domicílios; já as “negras de
pote”, em torno de quatrocentas, vendiam mariscos, arrozes e doces; duzentos
“moleques” “empregavam-se em fazer recados”. Sergio faz questão de explicitar sua
tese de que esses seriam indícios de uma contiguidade de forma social em todo o espaço
luso-colonial: “a cidade oferecia o aspecto que têm, para os nossos de hoje, as
povoações ultramarinas, onde entre os brancos abundam a gente de cor”18. Logo mais,
Sergio cita um dado relatado por João Lúcio de Azevedo, a ser tomado com alguma
suspeita, segundo ele, pois os relatos são de estrangeiros e não de portugueses, ou,
quando muito de portugueses alarmados com as mudanças que estão narrar, isto é, o
simultâneo influxo de populações de cor e o êxodo dos nativos para o ultramar. De todo
modo, ele considera válido lembrar que Azevedo estima a proporção de escravizados
para homens livres em Lisboa, em meados do século XVI, em por volta de um décimo
da população (pouco mais de nove mil numa população total de cem mil). No reino
como um todo, essa proporção baixaria, estimando-se o número de escravizados em
aproximadamente quarenta mil. A fração escravizada da população reinol teria
17
VP, p. 361 (328).
18
EF, p. 133-4.
369
Apesar de tudo, não foi só a míngua das boas intenções e da pertinácia dos poderosos
que acabariam falhando tão completamente todas essas tentativas, mas em parte, talvez,
devido à tendência inveterada do povo, e animada pelo hábito dos largos proveitos
tirados do tráfico ultramarino ou, muito antes disso, das entradas em terras de mouros,
para se retirar do menor esforço a maior vantagem. A predileção impaciente pela
quantidade em prejuízo de outras virtudes – mais um traço próprio da produção colonial,
essencialmente quantitativa – existiu, é claro, em todas as terras e em todas as épocas.
Mas não é talvez por acaso se em Portugal, por exemplo, e não menos o Brasil, ela seja
19
EF, p. 135.
20
EF, p. 135-6.
21
EF, p. 123-5.
370
Os mesmos que acusaram tantas vezes aos antigos portugueses de pouca aptidão e tino
mercantil não deixaram de acusá-los dessa espécie de cobiça sôfrega, que,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
Todos esses aspectos, por onde Portugal parece destoar do concerto europeu – o emprego
em vasta escala do braço escravo; convivência e assídua mescla com povos das mais
várias origens; inexistência ou inoperância da classe média como tal; vida econômica
apoiada, de modo predominante, na exportação de matérias primas e importação de
artigos manufaturados; valor soberano atribuído, na produção, ao simples critério
quantitativo – , fazem-no, já à época dos grandes descobrimentos marítimos, uma
espécie de compêndio e antecipação do que hão de ser as terras no Novo Mundo
povoadas e exploradas pela sua gente.24
Acredito que um dos fatores que explicam o fato de Sergio Buarque ter defendido
este texto quase ao mesmo tempo em que Visão do paraíso – lembre-se, aliás, que o
capítulo final de Visão, “América Portuguesa e Índias de Castela”, contém boa parte
do primeiro (sem título) de Elementos, sem alterações significativas – terá sido a
22
EF, p. 141-2.
23
EF, p. 142.
24
EF, p. 145.
371
Uma atenção exata e dócil acompanha toda a sinuosidade dos sentimentos; as efusões
do coração, as evocações ternas e sombrias, as aspirações malogradas, os cuidados, as
imaginações e os desenganos acham-se compostos não como na arte clássica, em uma
construção pura e impessoal, mas antes em uma paisagem agreste de emoções
individuais. O anedótico não é deliberadamente omitido em proveito de um conjunto, de
um esquema: nada chega a ser acessório. Nisso a poesia lírica portuguesa recorda um
pouco as frontarias prolixas em ornamentos e arabescos que exibem certos edifícios da
Índia e do Iucatã, onde o artista não se teria deixado levar tanto pelo horror ao vazio,
como sugeriu alguém, quanto pela renúncia a sujeitar o mundo das formas a uma
estrutura simplificada, imposta pelo raciocínio ou às vezes pelo mero bom senso. E não
é acaso, certamente, se na Europa o espírito engenhador dessa espécie de monstros, em
que a arquitetura quase se converte em música, nunca esteve tão perto de realizar-se
como em Portugal, no manuelino.26
Se alguma forma de vida pode servir de metáfora para esse estilo de poesia
completamente absorvido pela servil descrição de uma vida mental puramente passiva,
que frui o mundo com abandono e sem vontade, alheio a todo intento ou esforço que
tenha por fim algo além do mínimo necessário para sua reprodução vital, creio que ela
teria de vir do reino vegetal. Mas não seria a árvore, que estamos acostumados a ver
como a própria encarnação da vida e da finalidade dos processos orgânicos, mas
alguma formação orgânica parasitária. Estão aliás muito próximas da descrição acima
25
CLC, p. 293-330.
26
LP, p. 362-3.
372
reproduzida do “mundo” da lírica lusa as observações que Sergio Buarque faz sobre o
realismo tardo-medieval que teria marcado os relatos portugueses sobre o Novo Mundo
recém-achado, no século XVI. Longe de significar uma mentalidade precursora do
pensamento moderno, ela denunciaria uma incapacidade de racionalização, entre cujas
causas estaria uma escassa disposição para a “fantasia”, essa própria um requisito ao
pensamento conceitual e ordenador da realidade:
Aquela visão relativamente plácida das terras descobertas que se espelha nas descrições
de seus viajantes já se ressente, por menos que o pareça, de um conservantismo
fundamental. Nas primeiras páginas deste livro pôde ela sugerir a lembrança dos artistas
medievais e especialmente de fins da Idade Média, “atentos ao pormenor, ao episódico,
avessos quase sempre a induções audazes” em contraste com o “idealismo, a fantasia, e
ainda o senso de unidade dos próprios renascentistas”. Poderia recordar-se ainda o que
um historiador moderno da curiosidade “terrena” que fornece aos historiadores da
mesma época matéria para suas descrições miúdas, nítidas, animadas de extraordinário
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
27
VP, p. 346-7 (315-6).
28
“Fagundes Varela”, EL, I, p. 295. Texto originalmente publicado no Diário de Notícias, 20 out 1940.
373
Bibliografia
Obras de Sergio Buarque de Holanda
LIVROS
Do império à República. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992 [1972]. (História Geral
da Civilização Brasileira, t. II v. 5)
ARTIGO EM JORNAL
NB.: Para não tornar excessivamente longa e redundante a lista de textos de Sergio
Buarque e, com isso, esta bibliografia, indiquei em rodapé, à medida que foram citados,
a procedência original dos artigos, deixando aqui somente a chamada para as coletâneas
onde eles estão reunidos, que foi, afinal, na maioria das vezes, minha fonte para
consulta. Estou ciente da existência de textos que não constam de nenhuma das
coletâneas mais importantes das colaborações de Sergio Buarque na imprensa (A saber,
O espírito e a letra, Escritos coligidos, Por uma nova história, Raízes de Sérgio
Buarque de Holanda e Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas) nem das duas
coletâneas publicadas por Sergio Buarque (Cobra de vidro e Tentativas de mitologia);
todos os que cheguei a descobrir são das artigos em jornal da década de 1950. Não tive
ocasião de citá-los neste trabalho. De todo modo, quase todos os textos citados podem
ser consultados separadamente na página online da Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional, acessível no endereço eletrônico http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx.
CONFERÊNCIAS
O Brasil na vida americana. In: Vários autores. O Novo Mundo e a Europa. Texto
integral das conferências e dos debates. Sintra: Edições Europa-América, 1969, p. 59-
79
PRADO, Antonio Arnoni (Org.). O espírito e a letra. Estudos de crítica literária. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996 (2 volumes).
COSTA, Marcos (Org.). Escritos coligidos. São Paulo: Ed. UNESP; Fundação Perseu
Abramo, 2004 (2 volumes).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
HOLANDA, Sergio Buarque de. Livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
LOPES, Álvaro Augusto. “À margem dos livros”. A Tribuna (Santos, SP), 9 nov 1936.
PANDOLFI, Luiz. “Conversa sobre ‘Raízes do Brasil’”, Diário da Tarde, 7 nov 1937.
CARVALHO, Marcus Vinicius Corrêa de. Outros lados. Sergio Buarque de Holanda:
crítica literária, história e política (1920-1940). 2003. Tese de doutorado. Universidade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
CASTRO, Conrado Pires de. Com tradições & contradições: contribuição ao estudo
das raízes modernistas do pensamento de Sergio Buarque de Holanda. 2002.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da
Linguagem, Campinas, SP.
COSTA, Iná Camargo. Sergio Buarque, o “Homem Cordial” e uma crítica inepta.
Outras palavras, 11/05/2018. Texto disponível em:
https://outraspalavras.net/poeticas/sergio-buarque-o-homem-cordial-e-uma-critica-
inepta/. Último acesso em 19/07/2020.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Negação das Negações. In: MONTEIRO, Pedro
Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio Buarque de Holanda: Perspectivas.
Campinas; Rio de Janeiro: Unicamp; Uerj, 2008.
FELDMAN, Luiz. Clássico por amadurecimento. Três estudos sobre Raízes do Brasil.
Rio de Janeiro: Topbooks, 2015.
376
FRANCO, Luiz Fernando Pereira das Neves, Defeito mecânico: Mito e trabalho no
paraíso de Sergio Buarque de Holanda. 2005. Tese de doutorado. Universidade Federal
Fluminense, Programa de Pós-graduação em História. Niterói, RJ.
MELLO, Evaldo Cabral. Posfácio: Raízes do Brasil e depois. In: HOLANDA, Sergio
Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MELLO E SOUZA, Laura de. Posfácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do
paraíso: os motivos edênicos no desbobrimento e colonização do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
_____. “Coisas sutis, ergo profundas”: o diálogo entre Mário de Andrade e Sérgio
Buarque de Holanda. In:_____(Org.). Mário de Andrade e Sérgio Buarque de
Holanda: Correspondência. São Paulo: Cia das Letras; IEB; EdUSP, 2012, p. 165-360
PRADO, Antonio Arnoni. Breve nota sobre Sergio Crítico. In: Colóquio UERJ Sergio
Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: UERJ, 1992.
_____. Raízes do Brasil e o modernismo. In: Trincheira, palco e letras. São Paulo:
Cosac & Naify, 2004.
_____. Sérgio, Mário e Klaxon. In: Trincheira, palco e letras. São Paulo: Cosac &
Naify, 2004.
_____. Dois letrados e o Brasil nação. A obra crítica de Oliveira Lima e Sergio
Buarque de Holanda. São Paulo: 34, 2015.
ROCHA, João Cezar de Castro. Bem-Sucedidos e desterrados: por uma edição crítica
de Raízes do Brasil. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio
Buarque de Holanda: Perspectivas. Campinas; Rio de Janeiro: Unicamp; Uerj, 2008.
Perspectivas. São Paulo: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2008.
SÜSSEKIND, Flora. Comentário ao texto “Breve nota sobre Sergio Crítico”. In:
Colóquio UERJ Sergio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: UERJ, 1992.
Obras citadas
ANDRADE, Mário de. “Assim falou o papa do futurismo”. Entrevista ao jornal A noite,
12 dez 1925.
378
AQUINO, Santo Tomás de. Suma teológica, v. 4. I Seção da II Parte – questões 49-
114. São Paulo: Loyola, 2005.
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra & Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Ed. 34, 1994.
AUERBACH, Erich. O triunfo do mal: Ensaio sobre a teoria política de Pascal. In:
Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Ed. 34; Duas Cidades, 2012.
_____. The idea of the national spirit as the source of the humanities. In: Time, history,
and literature: Selected Essays of Erich Auerbach. Princeton, NJ: Princeton University
Press, 2014, p. 56-63
_____. Counter-Enlightenment. In: Against the Current: Essays in the history of ideas.
Nova York: Viking, 1980.
BÍBLIA. Trad. Pe. Antonio Pereira de Almeida (a partir da Vulgata). Lisboa: Depósito
das escrituras sagradas, 1927.
BOSI, Alfredo. Situação de Macunaíma. In: Céu, Inferno. Ensaios de crítica literária e
ideológica. São Paulo: Ática, 1988.
COSTA LIMA, Luiz. O pai e o trickster. In: Terra ignota: a construção de Os sertões.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
ECKERMANN, Johan Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida,
1823-1832. São Paulo: Unesp, 2016.
FROTA, Leila Coelho (Org.); ANDRADE, Carlos Drummond; ANDRADE, Mário de.
Carlos & Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de
Andrade. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2003.
GINZBURG, Carlo. Tusitala e seu leitor polonês. In: Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro
visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras 2004.
GOETHE, Wolfgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ed.
34, 2009.
GOLDMAN, Harvey: Max Weber and Thomas Mann: Calling and the Shaping of the
Self. Berkeley, Ca.: University of California Press, 1988.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA
_____. Politics, Death, and the Devil: Self and Power in Max Weber and Thomas
Mann. Berkeley, Ca.: University of California Press, 1992.
HOBSBAWM, Eric, A era das revoluções. São Paulo: Paz e terra, 2006.
_____. Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2010.
381
KLAGES, Ludwig. Der Geist als Widersacher der Seele. Bonn: Bouvier Verlag, 1982.
_____. A teoria do romance. São Paulo: 34; Ed. Duas Cidades, 2009.
_____. [1947]. Doutor Fausto. A vida do compositor Adrian Leverkühn narrada por
um amigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “Eu”. In:
Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
_____. A dupla noite das tílias. História e natureza no Fausto de Goethe. São Paulo:
Ed. 34, 2019.
MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista. Sua dimensão filosófica. Rio
de Janeiro: Ponteio, 2016.
MURRY, John Middleton. Literature and Religion. In: CLUTTON BROCK, Arthur;
DREAMER, Percy. The necessity of art. Eugene, Oregon: Wipf & Stock, s.d.
_____. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. São Paulo:
Companhia das letras, 2011.
_____. Apêndice: Uma carta. In: Ecce Homo. Como alguém se torna o que é. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_____. O Anticristo e Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
383
PRADO, Paulo (1925, 1934); CALIL, Carlos Augusto (org.). Paulística etc. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2001.
_____. Fragmentos sobre poesia e literatura (1797-1803) Conversa sobre poesia. São
Paulo: Unesp, 2016.
SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Munique; Leipzig: Duncker & Humblot, 1934.
_____. The concept of the political. Chicago, IL.: University of Chicago Press, 2007.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: 34; Duas cidades, 2012.
SHAKESPEARE, William. The Tempest. New Haven, Ct. Yale University Press, 2006.
_____. Sociologie. Études sur les formes de la siocialisation. Paris: PUF, 2013.
SPENGLER, Oswald. Decline of the West, v. 1. Form and Actuality. Nova York:
Alfred Knopf, 1926.
TAUBES, Jacob. The Political Theology of Paul. Stanford: Stanford University Press,
2003.
TODD, Arthur James. Theories of social progress. A critical study of the attempts to
formulate the conditions of human advance. Nova York : Macmillan, 1918.
VINALL, Shirley. Marinetti, Soffici, and French Literature. In: International futurism
and literature. Berlin; Nova York: Walter de Gruyter, 2000.
_____. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. São Paulo: Ática, 2006.
_____. A ciência como vocação. In: BOTELHO, André (Org.) Essencial sociologia.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.