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André Jobim Martins

A FLOR E O ESPINHO
A formação brasileira de Sergio Buarque de Holanda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História


Social da Cultura da PUC-Rio como requisito parcial à obtenção
do grau de Doutor em História.

Orientador: Prof. Luiz Costa Lima

Rio de Janeiro
Novembro de 2020
2

André Jobim Martins

A FLOR E O ESPINHO
A formação brasileira de Sergio Buarque de Holanda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1613030/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao como requisito parcial à obtenção do grau


de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em História da
PUC-Rio. Aprovada pela Comissão examinadora abaixo:

Prof. Luiz de França Costa Lima Filho


Orientador
Departamento de História – PUC-Rio

Prof. Henrique Estrada Rodrigues


Departamento de História – PUC-Rio

Prof. Pedro Meira Monteiro


Department of Spanish and Portuguese – Princeton University

Prof. Sérgio Alcides Pereira do Amaral


Departamento de Letras – Universidade Federal de Minas Gerais

Prof. Thiago Lima Nicodemo


Departamento de História – Universidade Estadual de Campinas

Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2020


3

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou


parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
do orientador.

André Jobim Martins

Graduou-se em Relações Internacionais pela PUC-Rio em 2013.


É mestre em História pela Universidade Federal Fluminense,
onde defendeu dissertação sobre subjetividade e escrita de si em
Joaquim Nabuco. Publica regularmente artigos sobre livros de
ficção e ciências humanas em diversas publicações, incluindo os
jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.
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Ficha Catalográfica

Martins, André Jobim

A flor e o espinho : a formação brasileira de Sergio Buarque de


Holanda / André Jobim Martins ; orientador: Luiz Costa Lima. – 2020.
385 f. ; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro, Departamento de História, 2020.
Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. História Social da Cultura – Teses. 3. Sergio


Buarque de Holanda. 4. Historiografia brasileira. 5. Literatura
brasileira. 6. Pensamento social brasileiro. 7. Crítica literária. I. Lima,
Luiz Costa. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de História. III. Título.

CDD: 900
Agradecimentos
Não é sem algum desconforto que apresento estes agradecimentos, que fatalmente terão
deixado de fora pessoas importantes para a realização desta tese, e que dão uma
apresentação às vezes amplamente insatisfatória das razões da inclusão de seus
destinatários. Agradeço a Luiz Costa Lima, pela orientação e pelo exemplo dificilmente
equiparável de vigor, amplitude de interesses e excelência intelectuais; a Robert
Wegner e Pedro Caldas, pelos comentários e sugestões que me ofereceram no exame
de qualificação; a Leandro Garcia Rodrigues, pela ajuda em localizar textos de Alceu
Amoroso Lima citados na tese (e a Gustavo Silveira Ribeiro, por ter me posto em
contato com Leandro, que de outro modo não conheceria); a Telma Murari, pela
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solicitude com que me atendeu virtual e presencialmente no Siarq-UNICAMP; a Bruna


Carvalho, pela facilitação ao acesso a textos importantes para esta pesquisa; a Edna
Timbó e Debora Marques, pelos préstimos na secretaria do Programa de Pós-
Graduação em História; a Rodrigo Fampa, por ter me permitido uma melhor
compreensão do argumento deste trabalho com sua leitura atenta; a Clarissa Mattos,
Maria Noujaim, Patrícia Reis Marques e Gabriel Vertulli pelas oportunidades de
diálogo e pela amizade proporcionados pelo convívio na PUC; a Renata Sammer, pela
disposição, pelo cuidado e pela inteligência com que leu e comentou partes da presente
pesquisa em diferentes momentos e por ter me apresentado a vários autores que se
revelaram centrais para a elaboração desta tese; a Henrique Estrada Rodrigues, pelo
privilégio do diálogo buarquiano dentro do departamento e por aulas estimulantes; a
Renata Schittino, por ter me apontado o caminho para um estilo de história congenial;
a Luiza Larangeira, por ter me feito um conselho que levei algum tempo para
compreender (ir buscar na fonte algumas concepções que já orientavam minhas
pesquisas); a Ricardo Benzaquen de Araújo, cujo desaparecimento prematuro só
intensificou a estima e a admiração que incitaram muito neste trabalho; a meus pais,
pelas mais variadas e sempre imprescindíveis formas de apoio; a Paulo e Elianne
Jobim, pela hospitalidade que me facultou escrever a maior parte deste trabalho em
ambiente propício; a Helena Martins, pela infalível atenção às minhas necessidades; a
5

minha companheira Bel Albuquerque, pela paciência cuja medida só eu pude


testemunhar; a todas as amigas e amigos que estiveram por perto durante os anos de
doutorado, entre os quais nomeio excepcionalmente Antonio Kerstenetzky e Pedro
Motta, pela leitura partilhada da Fenomenologia do espírito, e Brena O’Dwyer e
Antonio Pedro de Barros, por discussões sobre teoria social que, embora apenas
indiretamente relacionadas a este trabalho, me abriram algumas perspectivas
importantes para sua construção; a Sérgio Alcides, Thiago Nicodemo e Pedro Meira
Monteiro, por terem concordado em participar da defesa deste trabalho; finalmente,
pelo financiamento a esta pesquisa, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.
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Resumo

Martins, André Jobim. A flor e o espinho: a formação brasileira de Sérgio


Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, 2020. 385p. Tese de doutorado –
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A presente tese analisa a primeira fase da obra de Sergio Buarque de Holanda,


dos primeiros ensaios críticos de 1920 até seu primeiro livro, Raízes do Brasil (1936),
a partir do conceito-chave que articula a reflexão do pensador nesse período, o de
formação, tomado na acepção desenvolvida pelo humanismo clássico alemão da virada
do século XIX, isto é, aquela abarcada pelo termo Bildung. No curso deste trabalho, à
medida que se observa a evolução das ideias que Sergio Buarque vai desenvolvendo
sobre o Brasil e sua literatura, acompanhamos também o processo formativo do próprio
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crítico, historiador e ensaísta, no contato com as expressões da cultura brasileira.

Palavras-chave
Sergio Buarque de Holanda; Historiografia Brasileira; Literatura Brasileira;
Pensamento Social Brasileiro; Crítica Literária
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Abstract

Martins, André Jobim. The flower and thorn: the Brazilian education of
Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, 2020. 385p. Doctoral dissertation
– History department, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This dissertation analyses the first phase of Sergio Buarque de Holanda’s writing,
starting from the first critical essays of 1920 through his first book, Roots of Brazil
(1936), focusing on the key concept that articulates his thought during this period: that
of education/culture, taken in the meaning given to it by the German Classical
Humanism of the turn of the nineteenth century (encompassed by the word Bildung).
In the course of this work, as we observe the evolution of the ideas that Sergio Buarque
develops about Brazil and its literature, we also follow the formative process of the
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critic, historian and essayist himself, through his interactions with the expressions of
Brazilian culture.

Keywords
Sergio Buarque de Holanda; Brazilian Historiography; Brazilian Literature;
Brazilian Social Though; Literary Criticism
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SUMÁRIO

ABREVIATURAS 9

PRÓLOGO 11

I. ARIEL 24

II. A REVOLUÇÃO DE SERGIO BUARQUE DE HOLANDA 72

1. Fanatismo 76

2. Heresia 84

3. Duelo 120

4. Um profeta 143
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INTERLÚDIO – UMA IDEOLOGIA ALEMÃ 152

1. Teoria do conhecimento e noção de indivíduo na Bildung 156

2. Um caso exemplar da Bildung ascendente 170

III. RAÍZES DO BRASIL: A ALMA E AS FORMAS 184


1. Origens 185

2. Natureza e Arte 216

3. O coração diante da lei 246

4. A triste realidade e a vã filosofia 266

5. O ABC dos novos tempos 283

6. Demônios e possessos 312

ERVAS DANINHAS (EPÍLOGO) 359

BIBLIOGRAFIA 373
9

Abreviaturas
EC Escritos coligidos (seguido de indicação de volume)

EL O espírito e a letra (seguido de indicação de volume)

EF Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos

RB Raízes do Brasil (primeira edição, José Olympio, 1936)

RBC Raízes do Brasil (edição crítica organizada por Pedro Meira Monteiro e Lilia
Moritz Schwarcz, Companhia das Letras, 2016)

HGCB História Geral da Civilização brasileira

CV Cobra de vidro (trata-se sempre da edição de 2012, da ed. Perspectiva)

LP Livro dos prefácios


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VP Visão do paraíso (Seguiu-se aqui o formato de chamada empregado por Thiago


Lima Nicodemo em Urdidura do vivido, isto é, para simultânea demonstração da
consistência filológica da análise e facilidade de confronto com um exemplar mais
facilmente acessível, aparece primeiro o número da página na edição fora de comércio
da tese de cátedra defendida em 1958, impressa aos cuidados da José Olympio, seguida
da paginação, entre parênteses, da edição da Brasiliense de 1996, cujo texto-base é o
segunda edição, de 1969. Os trechos citados são, quase sempre, virtualmente
idênticos.)

CLC Capítulos de literatura colonial

RSBH Raízes de Sergio Buarque de Holanda


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No fim tão sempre dependemos


Das criaturas que criamos

Mefistófeles (Goethe, Fausto, segunda parte, vv. 7003-4)


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Prólogo
A obra de Sergio Buarque de Holanda começa em 1920, com ensaios curtos de crítica
literária publicados na imprensa paulista, e vai se abrir num leque variado de temas e
inscrições disciplinares até a consagração acadêmica do autor como titular da cátedra
de História da Civilização Brasileira da Universidade de São Paulo, em 1958, quando
defende a tese Visão do paraíso. A partir daí, salvo por textos curtos e por reimpressões
em livro de ensaios anteriores a essa data (é o caso da segunda edição de Cobra de
vidro, em 1978, e de Tentativas de mitologia, em 1979), seus textos se passam a se
circunscrever ao campo historiográfico. Apesar de abarcar textos temática e
metodologicamente muito variados, não haverá grande exagero em afirmar-se que toda
a produção encerrada no período anterior a 1958 pode ser abarcada por uma
impressionante unidade, a unidade de uma ideia fixa de Sergio Buarque: a ideia de
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formação. Instado a apresentar o argumento central desta tese, eu diria que é este: forma
e formação são as categorias condutoras do desenvolvimento intelectual de Sergio
Buarque de Holanda, categorias que nunca saem do limiar de sua atenção como
observador da cultura. Esse argumento quer, antes de mais nada, sugerir uma maneira
de compreender a obra estudada. Os estilos metodológicos (a sociologia, crítica, a
historiografia, e mesmo, se se quiser, o “ensaio”) representam disposições de análise
adotadas pelo autor em diferentes ocasiões, condicionadas por circunstâncias
biográficas e merecedoras, em si mesmas, de atenção. Mas quero propor aqui que, para
se ter uma visão do todo, o que há de realmente essencial está na ideia mesma de forma.
“O essencial de todas as manifestações, das criações originais como das cousas
fabricadas”, escreveu Sergio Buarque no parágrafo conclusivo de seu primeiro livro,
“é a forma” – o grifo é dele. O que o seu olho procura e acha, quando olha para o
mundo, são formas.
Esta tese acompanha aqueles que me parecem ser os momentos decisivos da
trajetória ascendente do desenvolvimento da ideia de forma no pensamento do autor,
assim como de sua sucessiva atualização em contato com seus objetos de estudo.
Algumas escolhas em privilegiar certos materiais foram necessárias, devido à extensão
do conjunto textual analisado e à riqueza do tema. Praticamente não dediquei nenhuma
atenção aos estudos de Sergio Buarque sobre a “expansão paulista”, desenvolvidos a
12

partir do final dos anos 1930 e conhecidos sobretudo pelas partes reunidas nos livros
Monções (1945) e Caminhos e fronteiras (publicado em 1957, embora a maior parte da
pesquisa ali apresentada date de meados dos anos 1940). Não foi por considerá-los de
menor importância ou pertinência para o argumento deste estudo que optei por não
fazer uma análise aprofundada desse complexo de estudos sobre civilização material,
mas apenas porque essa análise me exigiria uma familiaridade com uma bibliografia
etnológica e historiográfica que não possuo e que exigiria um tempo de que não pude
dispor. Também não fiz algo que planejei originalmente, isto é, analisar a produção
crítica de Sergio Buarque de Holanda dos anos 1940 e 1950, o que me deixou muito
contrariado, porque investi alguma energia intelectual e até afetiva na leitura desses
textos, e acredito que teria uma ou duas coisas de interesse a dizer sobre eles a partir
dos argumentos desenvolvidos ao longo da tese, mas percebi, já bem avançada a
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redação dos capítulos que, para fazer justiça a eles, ainda seria preciso mais estudo, ou
então apresentar algo ainda incipiente, de muito menor qualidade do que o resto da
tese. A verdade é que há praticamente uma segunda tese por escrever, que me levaria
aos textos que eu mais ambicionava comentar, mais até, talvez, do que Raízes do Brasil:
Capítulos de literatura colonial e Visão do paraíso. Também foi motivo de frustração
não poder me debruçar com mais calma sobre a dissertação de mestrado Elementos
formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos (1958), o texto que,
em toda a obra de Sergio Buarque de Holanda, é aquele que mais se parece com Raízes
do Brasil e que, ao contrário do que se possa depreender de sua condição inédita e,
infelizmente, acessível apenas por visitas presenciais ao SIARQ da UNICAMP,
mereceria uma reflexão muito mais ampla nos estudos da obra de Sergio Buarque do
que tem sido o caso até o momento. Acredito que uma análise cuidadosa desse texto
alteraria significativamente alguns pressupostos prevalentes na fortuna crítica
buarquiana, especialmente aquele que identifica na consagração acadêmica de Sergio
Buarque um correlato metodológico que poderia ser descrito como o abandono do
“ensaísmo sociológico” supostamente pouco rigoroso praticado em Raízes – existem
mesmo alguns comentários do próprio autor nesse sentido – em proveito da pesquisa
histórica de base científica, movimento que, nessa linha interpretativa, teria sido
influenciado pelo contato de Sergio Buarque com a chamada Escola dos Annales –
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contato e influência de resto facilmente demonstráveis nos textos de Sergio Buarque,


mas, a meu ver, superdimensionados. Se o abandono do “ensaísmo” de traços largos é
em boa medida verdadeiro, estou convencido de que Sergio Buarque se distanciou
muito menos do tipo de investigação que praticou em Raízes do que ele próprio quis
fazer parecer, empenhado em distanciar sua identidade como intelectual daquele que
permanece até hoje o mais lido e influente dos seus livros.
Essa não deixa de ser uma circunstância curiosa, porque me parece que Sergio
Buarque, tão talentoso em tanta coisa, fracassou espetacularmente nesse empenho, e
em parte por “culpa” sua: a tentativa mais arrojada de descolar sua identidade
intelectual de Raízes para outra obra se deu na forma da publicação de Visão do
paraíso, livro que, entremeado de referências a um universo histórico e literário pouco
conhecido, não se consegue compreender sem uma cultura geral que o leitor de Raízes
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do Brasil pode facilmente dispensar, se quiser ter simplesmente uma experiência de


leitura agradável. Não posso deixar de manifestar minha impressão de que o prefácio
à segunda edição de Visão (1969), no qual Sergio se ocupa de aproximar seu livro de
outros estudos em torno da articulação entre a conquista europeia da América e as
tópicas do paraíso terreal, dificulta a compreensão do argumento de seu próprio livro
fazendo-o aparentar ser menos complexo. O conciso e relativamente acessível capítulo
de abertura (“Experiência e fantasia”) cede o lugar onde o leitor normalmente deposita
a expectativa de uma exposição do argumento geral do livro a um texto que tem
praticamente o mesmo tamanho, que não apresenta nenhum ambicioso esboço de uma
teoria da mutação histórica dos conceitos de “experiência” e “realidade” (como
acredito ser a proposta do primeiro capítulo e do livro em geral), mas uma resenha
bibliográfica, complementos a passos muito específicos do livro e alguns
esclarecimentos escassamente esclarecedores, além de uma representação da tese do
livro onde sua ambição interpretativa aparece, a meu ver, significativamente
deflacionada 1 . A discussão sobre o “pedestre realismo” português, aquela que

1
Laura de Mello e Souza já manifestou, em seu posfácio à edição de 2010 de Visão do paraíso, o ponto
de vista de que Sergio Buarque fazia uma publicidade um pouco distorcida de seu grande livro, embora,
salvo engano, a historiadora não mencione o prefácio da segunda edição como um fator (em razão da
crise sanitária de 2020, em meio à qual escrevo este prólogo, não pude consultar novamente este texto
relativamente breve, que cito de memória, mas que influenciou muito minha leitura de Visão e da obra
de Sérgio). MELLO E SOUZA, Laura de. Posfácio. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do
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realmente faz do livro uma tese e não uma coleção de comentários, abordada tanto no
primeiro capítulo como no último (“América Portuguesa e Índias de Castela”), fica
relegada a uma observação lateral 2 e o livro é retratado como tendo por “tema” a
“biografia” do mito do paraíso terreal e de sua fortuna na colonização da América pelos
portugueses3. Essa é, talvez, uma das razões de ser de certo ponto de vista corrente
sobre o livro, isto é, de que ele seria diretamente dedicado a uma análise das fantasias
desvairadas dos conquistadores, ou, ainda, de certo imaginário edênico mobilizado
como matriz mítica de discursos nacional-identitários sedimentados na literatura, 4
quando na verdade esses desvarios são sobretudo o pano de fundo a partir do qual
Sergio vai desenhar o fenômeno muito mais sutil e teoricamente estimulante, ainda que
menos sensacional, do realismo português e da visão de mundo nele encerrada. De fato,
Visão pode bem ser lembrado como o livro maior de Sergio Buarque, mas ele nunca
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será tão lido quanto Raízes. Quanto a Do Império à República e os estudos sobre a
expansão paulista, tenho a impressão de que eles não costumam ser tão intimamente
ligados à imagem que Sergio deixou para a posteridade como autor; talvez a direção da
História Geral da Civilização Brasileira ocupe também um papel destacado em sua
identidade intelectual póstuma, mas trata-se de uma coleção em sua maior parte apenas
coordenada por Sergio. Longe de pretender diminuir a magnitude desse esforço, apenas
pondero que, enquanto não for superado o prestígio social da autoria, dificilmente
alguém que tenha escrito livros tão instigantes como Sergio Buarque poderá ser
lembrado acima de tudo como o organizador de uma grande coleção.
Peço a licença de lançar uma breve anedota autobiográfica em apoio à presente
argumentação: o primeiro livro de Sergio Buarque de minha biblioteca foi Visão do
paraíso, que ganhei de minha mãe, ainda adolescente, em 2006 ou 2007. Eu não era lá

paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
2
“Só depois do século XVI [...] é que a sobriedade e o realismo que pareciam distinguir [...] os escritos
portugueses vão dar lugar a efusões mais desvairadas”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do
paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996,
p. XX.
3
Ibid., p. XVIII.
4
É o caso de pelo menos três dos livros de temática aparentemente semelhante publicado nos Estados
Unidos comentados no prefácio de 1969, como o de Charles Sanford, The quest for Paradise, o de Henry
Nash Smith, Virgin Land, e o de R. W. B. Lewis, The American Adam Innocence. Visão do paraíso, cit.
(Ed. Brasiliense, 1996), p. IX-XI.
15

um rapaz muito livresco, e tenho a lembrança de pegar o volume para ler algumas vezes
e desistir, com meu conceito da minha própria inteligência um pouco abalado, ainda
nas primeiras páginas, chegando, resignado, à conclusão de que o livro era
praticamente ilegível depois de ter me deparado, folheando o miolo, com as longas
citações não traduzidas em francês quinhentista e latim (acredito que a edição mais
recente, que consultei apenas para ler os textos críticos de Laura de Mello e Souza e
Ronaldo Vainfas, e da qual não pude dispor na escrita deste prólogo, já tenha resolvido
esse inconveniente). Só fui de fato enfrentar Visão do paraíso do início ao fim há pouco
tempo, depois de umas três tentativas frustradas já durante o doutorado, sem ter
conseguido passar do primeiro capítulo, que é provavelmente o mais acessível. Quando
a leitura de fato engrenou, me convenci de que seria especialmente enriquecedor para
a pesquisa que eu vinha desenvolvendo investir seriamente na interpretação desse
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momento colossal da obra buarquiana, fazendo dele, quem sabe, um dos objetos
principais da tese. Esta tese foi redigida com a intenção de chegar a esse e a outros
textos posteriores a 1936 (como disse acima: os inéditos de literatura colonial
publicados postumamente, Elementos, e os ensaios críticos sobre Bandeira, Drummond
e Cabral) e ao desenvolvimento de linhas de argumentação como as que acabei de
esboçar, e assim encerrar o ciclo da formação brasileira de Sergio Buarque, tal como o
concebo. Como costuma acontecer nesses casos, o material “preliminar” foi se
mostrando muito mais rico e exigente do que eu inicialmente esperava. Acabou
acontecendo exatamente o que eu queria evitar: este pode parecer um estudo, sim, mais
um, dedicado à interpretação de Raízes do Brasil, e, de fato, não posso negar que ele o
seja.
Gostaria de propor, porém, que, a rigor, se lermos a tese segundo sua lógica
interna, não é exatamente assim. Dediquei praticamente metade deste trabalho a Raízes,
um texto que me parece muito estimulante, e que já foi muito comentado na história da
historiografia, nas ciências sociais e nos estudos literários brasileiros, e por gente muito
mais bem preparada para isso do que eu. Vou dizer como entendo esta tese, e como eu
quero que ela seja lida, embora, naturalmente, eu não tenha o menor controle sobre isso
(e acho mesmo que é bom que seja assim), como aliás a falta de controle de Sergio
Buarque sobre a recepção de sua própria obra demonstra tão dramaticamente.
16

Esta tese não é sobre um livro, mas sobre uma ideia: sobre a formação brasileira,
tal como ela veio a ser pensada por Sergio Buarque de Holanda – como a evolução de
uma forma orgânica, com ritmos vitais, afinidades, antipatias e apetites singulares.
Uma formação que, como ensina a melhor tradição intelectual alemã, a tradição de
Goethe, Schiller e Hegel, só deixa ver sua verdade quando se vê o todo – é uma
formação que exige muito estudo. Uma formação que, atenta à lição da crítica
romântica, exige um engajamento transformador com o mundo e com suas formas,
formas cuja própria intelecção não é presidida por categorias de uma teoria do
conhecimento prévia, mas que, aproveitando a noção de que a própria apreensão do
mundo se dá por uma lógica que não é puramente subjetiva, mas se desenvolve a partir
de estímulos formadores e transformadores atuantes no próprio ato do conhecer. Um
engajamento transformador do mundo e do sujeito: a apreensão das formas forma o
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mundo, tal como o conhecemos, mas forma também quem as conhece.


É por isso que esta é também uma tese sobre a formação brasileira de Sérgio
Buarque de Holanda – quero mostrar, ainda que por vias indiretas e por uma abordagem
imanente aos textos, raramente apoiada em informações biográficas, o aprendizado do
próprio autor. Esse autor, um intelectual que, movido pelo que parece ter sido um
sentimento de missão patriótica, ou então, numa expressão mais simpática e de
procedência menos suspeita, de um aguçado instinto de nacionalidade, se formou no
contato com a cultura brasileira, no que provavelmente foi uma rotina dificilmente
igualável de estudo e reflexão. De estudo de uma cultura que ele, Sergio Buarque,
nunca idealizou ufanisticamente: vamos ver no primeiro capítulo desta tese como,
desde os primeiros textos, quando ainda era bem menos cético do que viria a ser mais
tarde quanto às limitações do nacionalismo, Sergio Buarque reconhecia as
insuficiências da cultura brasileira. Na verdade, minha intuição, a ser confirmada caso
eu tenha a oportunidade de continuar estudando a obra de Sergio Buarque, é que, depois
de atingir o zênite em Raízes do Brasil – um zênite muito ambivalente, como vamos
ver – depois de 1936, quando apresentou uma espécie de programa para o estudo da
formação brasileira, baseado naquelas que ele via como as linhas gerais da forma viva
em transformação que seria a cultura brasileira, Sergio Buarque passou a estudar em
17

maior detalhe algumas dessas linhas, e as conclusões a que chegou foram se revelando
cada vez mais amargas.
Quem tenha lido Visão do paraíso, ou então os estudos sobre o arcadismo
publicados postumamente no volume Capítulos de literatura colonial, talvez concorde
comigo quando penso que, ao entrar nas análises mais pormenorizadas da história
brasileira – e estamos falando, nesses dois casos, em história intelectual – Sergio vai
sendo tomado por um indisfarçado rancor pelo que ele percebe como a persistência de
um estilo de pensamento mesquinho, preguiçoso e sem imaginação. Um pensamento
onde o vivido se sedimenta numa organização da experiência que seleciona apenas as
lições mais primárias, incapaz de se sofisticar pelo convívio com o exercício da
faculdade que Sergio, pensador formado no estudo da literatura, considerava uma das
mais importantes da vida mental: a fantasia. Adianto também outra intuição que me
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parece estar na origem dessa avaliação de Sergio Buarque: pode ser que ele tenha
chegado a essas avaliações geralmente pessimistas da cultura que lhe coube a partir de
seu estudo da poesia contemporânea brasileira. A fase madura desse paciente estudo,
que levou Sergio a escrever alguns de seus melhores textos, como aqueles sobre
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, reunidos
em Cobra de vidro, precede a viagem de Sergio Buarque à Itália nos anos 1950. Foi
nesse período que ele escreveu seus estudos de literatura colonial e onde possivelmente
nasceram alguns argumentos de Visão do paraíso, livro que se vale frequentemente do
conhecimento de tratados poéticos que Sergio talvez tenha estudado sistematicamente
pela primeira vez em Roma, e que fundamentam a sofisticada dissecção do discurso
letrado luso-brasileiro colonial, de onde ele deriva sua exposição das estruturas de
sensibilidade e racionalidade vigentes durante a expansão e consolidação do império
ultramarino português na América 5 . Há algo, acredito, na produção crítica desse
período entre Raízes e o estudo da literatura colonial – crítica na qual é flagrante o
emprego de categorias interpretativas de Raízes do Brasil 6 – que se conecta

5
Há uma argumentação persuasiva em favor dessa hipótese no livro Alegoria moderna, de Thiago
Nicodemo, fartamente amparada em textos de Sergio Buarque e outros documentos relevantes.
NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria Moderna. Crítica Literária e História da Literatura na obra de
Sergio Buarque de Holanda. São Paulo: Unifesp, 2014.
6
Faço um esboço de demonstração desse emprego no epílogo desta tese.
18

intimamente com o procedimento que Sergio adotará no estudo da poesia épica


colonial, dos árcades e, depois, de todo um vasto corpo literário, na busca pelos
“motivos edênicos”, em Visão do paraíso. Acredito que uma investigação mais
detalhada poderia esclarecer um pouco mais os caminhos por onde as esperanças de
uma forma brasileira professadas, bem ou mal, em Raízes, vão desaguar na visão um
pouco melancólica de uma formação literária dispersa, destituída da consagração
automática pela unidade do “nacional” e devolvida em fragmentos a desvãos obscuros
de tal ou qual tradição ou modismo europeu que calhou de formar ou cativar a atenção
dos poetas que nasceram ou passaram pelo Brasil, como se lê nos estudos de Sergio
sobre a poesia colonial. Sempre se pode argumentar que esse era o destino inevitável
de uma pesquisa honesta feita por um historiador sério com os subsídios disponíveis
nos anos 1950, mas isso por si só não explica o investimento intelectual e, eu diria,
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agora como analista, afetivo mesmo, depositado por Sergio num material e num
conjunto de questões que ele havia, afinal, escolhido, e que o levaram a alguns juízos
de valor intensamente negativos, manifestos de forma impressionante num crítico
geralmente sóbrio na expressão de seus juízos. Mas, como disse, este trabalho não
chegou a esse ponto da obra estudada e, portanto, antes de qualquer afirmação mais
peremptória, cumpriria averiguar melhor até que ponto isso se sustenta ante uma
investigação mais detalhada desses textos.

***

O que se vai ler a seguir é um estudo da obra de Sergio Buarque de Holanda, da


aurora até o meio-dia da formação brasileira nela encerrada, se quisermos usar o
linguajar nietzschiano ao qual Sergio Buarque gostava de tomar alguns empréstimos
mais ou menos discretos. Como o encerramento do estudo se deu em Raízes, pude
abarcar praticamente toda a produção conhecida que vai até 1936. Não cheguei ao
exame mais detalhado das análises histórico-literárias mais sofisticadas dos anos 1950,
mas o que tentei fazer foi imitar o que Sergio Buarque faz ali – não diria que fiz isso
de forma intencional, mas que fui insensivelmente incitado pelos textos a reproduzir
na análise deles a sua própria lógica interna. Sergio seleciona uma passagem,
19

geralmente um trecho muito curto, às vezes um único verso ou torneio de frase, e vai
puxando fios de referências e ideias que não servem tanto como “mapas de influências”
ou explicações assim derivadas, mas antes como excursões iluminadoras pelas
estruturas de sensibilidade e racionalidade que subjazem ao artefato literário,
aparentemente muito mais simples para o olhar desavisado. Resisto a usar a palavra
“tópica”, porque me parece que, embora esse procedimento parta muitas vezes de um
conhecimento de topoi, ele me parece, na obra madura de Sergio Buarque, mais
complexo do que o termo sugere, indo muito além de um domínio seguro das
convenções estruturantes das práticas letradas das épocas estudadas, mas enxergando
também linhas de continuidade e transformação nessas estruturas, além das suas
consequências para a conformação mental da realidade dos sujeitos históricos atuantes
em cada contexto – isso é especialmente notável na forma como os estudos sobre a
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épica colonial e o arcadismo escritos nos anos 1950 parecem ter sido incitados por
interesses muito mais amplos do que sugeriria inicialmente a sua inscrição mais óbvia,
nem por isso incorreta, no campo da “história literária”. Nem preciso dizer que estou
longe de pretender ter alcançado a excelência do objeto de minha inspiração.
A estrutura da tese é bastante convencional: os textos são analisados por ordem
cronológica de publicação, ordem que parece coincidir, em geral, com a de redação.
Salvo pela discussão do epílogo, não me servi de textos publicados depois da primeira
edição de Raízes do Brasil senão como subsídios à interpretação de outros anteriores;
nisso lancei mão, inclusive, de ensaios que gostaria de ter analisado em maior detalhe,
e que Sergio Buarque escreveu depois de 1936. Naturalmente, foi impossível não os
analisar, de alguma forma, nessa operação. Para facilitar a compreensão do argumento,
isto é, de como a reflexão de Sergio Buarque, sendo ela própria a “forma” que quero
analisar, vai se desdobrando em patamares de crescente complexidade, dividi a tese em
três capítulos. O primeiro trata do que considero ser primeira fase, anterior ao
modernismo, da obra de Sergio Buarque. São textos cuja leitura nem sempre é a mais
gratificante, mas nos quais já aparecem muitas das linhas estruturantes da reflexão
madura de Sergio Buarque. Ali, é especialmente esclarecedora a ligação de um Sergio
Buarque ainda meio adolescente ao ideal “arielista” apregoado por intelectuais
hispano-americanos na virada do Século XX, motivo pelo qual dediquei algum espaço
20

à exposição de algumas teses e símiles retórico-teóricos do Ariel de José Enrique Rodó.


Essa fase termina, a meu ver, com a associação de Sergio Buarque com o movimento
modernista brasileiro, analisada no capítulo II. Ela apresenta uma medida excepcional
de heterogeneidade interna – esse é o período mais decisivo de amadurecimento
intelectual de Sergio, que podemos chamar de seus “anos de formação”. Nele, como
Wilhelm Meister, Sergio vai oscilar entre alguns pontos de vista variados, e dele vai
emergir como um intelectual de alguma envergadura – por causa dessa mudança
qualitativa e determinante, chamei essa fase de a “revolução” de Sergio Buarque.
Finalmente, o terceiro capítulo procura analisar detalhadamente o conceito de forma,
tal como ele é mobilizado e delineado em Raízes do Brasil. É perceptível como ali de
fato desabrocha uma reflexão muito mais complexa do que tudo quanto se vira antes –
o capítulo ocupa metade da tese e talvez seja mais longo do que o livro de Sergio
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Buarque em sua primeira edição, que foi a que serviu de base à sua elaboração.
É preciso avisar que, mesmo quando os toque, este trabalho não está muito
preocupado com dois assuntos muito comentados na fortuna crítica de Sergio Buarque:
a especialização disciplinar e acadêmica do autor e o conteúdo político de Raízes do
Brasil. Desse último falei com algum detalhe sobretudo porque ele não se exclui de
forma metodologicamente plausível da ideia de formação contida no livro,
especialmente de seu desenvolvimento em seus últimos três capítulos; nesse caso,
porém, o comentário político foi um veículo para a compreensão da formação, que me
parece, aliás, a tônica do próprio livro – na penúltima seção do terceiro capítulo desta
tese, argumento que, nos momentos mais bem-sucedidos da parte “propositiva”
correspondente aos seus dois últimos capítulos, Raízes é um livro endereçado a um
debate onde a política está subordinada uma visão da pedagogia como processo total
da sociedade. Eu teria mesmo preferido evitar ativamente a dimensão política do livro
– como, de certo modo, parece ter sido em certos momentos a disposição do próprio
Sérgio Buarque –, mas isso se revelou incompatível com qualquer honestidade
intelectual.
Um segundo aviso a quem vai ler esta tese se refere a um procedimento
argumentativo aparentemente desviante das boas práticas em pesquisa: de modo geral,
citei comentários à obra de Sergio Buarque, especialmente na parte sobre Raízes do
21

Brasil, apenas quando esses eram diretamente pertinentes ao meu argumento, e, mesmo
nesses casos, nem sempre. Há temas – por exemplo, as filiações teóricas de Raízes –
extensivamente, às vezes até exaustivamente comentados, de modo que pouco
acrescentaria à tese uma revisão de todos comentadores lidos, ao longo da abordagem
de cada questão ou tema (garanto que li muitos, mas sei que estou longe de ter lido
todos; existe praticamente uma indústria acadêmica em torno de Sergio Buarque). Esse
levantamento é válido, mas, no caso da presente tese, atrapalharia o seu andamento e a
tornaria ainda maior do que já está. Não gostaria que isso levasse à impressão de que
não tenho gratidão ou admiração pelo trabalho dos autores que li e não citei, nem que
os considero necessariamente menos importantes do que aqueles com quem vim a
dialogar diretamente. Sem esses leitores, além, naturalmente, daqueles citados, estou
certo de que não teria encontrado um caminho para a compreensão do significado de
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Raízes do Brasil e da obra de Sergio Buarque.


Outro motivo que me afastou de uma argumentação composta através de um
diálogo sistemático com a fortuna crítica buarquiana me dá a oportunidade de fazer um
terceiro aviso: a tese não está escrita, como este prólogo e, depois dela, o epílogo, em
primeira pessoa. Quando me na necessidade de dar começo à redação, tive muita
dificuldade em dar um eixo coerente ao texto, em parte porque, toda vez que começava,
entrava em longas perorações onde “eu” me posicionava diante da “fortuna crítica” e
me punha a desfiar um interminável rosário de elogios, críticas e adversativas a
interpretações anteriores da obra de Sergio Buarque, sem conseguir chegar a nada que
se parecesse vagamente com um argumento próprio. Esses esboços sempre rescendiam,
além disso, de um insofrível coquetismo. Por isso, deciti excluir terminantemente do
texto principal da tese o “eu” e toda a sua parafernália extravagante. Isso não deve ser
lido como pretensão a um ideal de objetividade “neutra”, mas apenas a uma solução
operacional para a escrita da tese. “Eu” naturalmente estou lá, apenas tentei me
esquecer temporariamente disso para mostrar melhor as coisas de que precisava falar.
Uma quarta advertência necessária se refere a um texto que incluí entre os
capítulos II e III: o “Interlúdio”. Esse texto, originalmente concebido como uma
introdução ou primeiro capítulo, é uma tentativa de apresentação sintética,
historicamente orientada, de alguns dos pressupostos teóricos da ideia de formação que
22

orienta esta tese. Mas, ao mesmo tempo, ele quer lançar uma luz, ainda que indireta,
sobre os conhecidos influxos teóricos que Sergio terá recebido em sua temporada alemã
de 1929-31. Não se trata de uma revisão de pensadores que terão influenciado
diretamente a reflexão de Sergio, ou pelo menos de uma maneira discernível na
superfície do texto de Raízes – isso foi feito, de maneira não exaustiva, no capítulo que
dediquei ao livro – mas de uma tentativa de traçar os contornos de algo muito mais
amplo: o estilo de reflexão implicado naquilo que chamei, neste trabalho, não sem
alguma violência contra suas manifestações individuais, de tradição da Bildung. Esse
campo mais amplo de autores, lugares-comuns e símiles teóricos, que encerra toda uma
epistemologia própria, me parece muito mais decisivo do que qualquer autor particular
para a compreensão de Raízes. O texto, um pouco menor do que os capítulos, pode ser
lido também à guisa de introdução metodológica à tese, pois ele é o resultado de minhas
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tentativas de compreender o quadro de referências que presidiu a formação dos


aspectos que me parecem os mais decisivos do pensamento de Sergio Buarque e se
ocupa de questões muito mais amplas e especulativas do que a tese propriamente dita.
Até por isso acredito que ele seja, do ponto de vista da argumentação da parte
“aplicada” da pesquisa, mais ou menos dispensável. Eu o deixei onde está, entre os
capítulos II e III, porque me parece que, se ele for lido naquele ponto, poderá despertar
algumas questões silenciosamente presentes no material pregresso e abrir perspectivas
importantes à leitura de Raízes. Não pareceu conveniente, do ponto de vista da
exposição, a alternativa de inserir esse mesmo material, fragmentariamente, no terceiro
capítulo. Também quis evitar o tipo de introdução metodológica do qual nem sempre
se lembra na leitura da análise, quando os pressupostos apresentados realmente
deveriam importar. Por isso mesmo faço questão de deixar a quem lê esta tese a
consciência livre para ler essa parte quando parecer mais oportuno, ou para, se preferir,
não ler.
Quinto aviso: raramente grifei partes de trechos citados para dar relevo a palavras
que confirmassem meus pontos de vista. Nas pouquíssimas vezes em que o fiz,
assinalei, dependendo da oportunidade, em colchete ou nota de rodapé, que o grifo é
“da transcrição”, isto é, meu. Na ausência de qualquer indicação, o grifo é sempre do
autor citado.
23

O sexto e último aviso diz respeito aos trechos de obras em língua estrangeira
que citei. A regra neste trabalho foi traduzir e, para economia de espaço – pois gostaria
que quem me lê atentasse para argumentos e citações que deixei, por motivos que
variaram de acordo com cada caso, nas notas de rodapé – não reproduzir o original. As
traduções são todas minhas. Conforme é costume no Brasil, não traduzi os textos em
espanhol. Meu domínio do alemão não me basta para ler textos dessa língua no original,
de modo que recorri a versões inglesas, francesas e espanholas, mas, dependendo da
natureza do texto e do trecho, cotejei com o original, destacando algumas expressões,
sempre que me parecesse importante fazê-lo. Algumas vezes fiz pequenos reparos
circunstanciais à versão consultada; sempre que isso tiver acontecido, a diferença entre
a versão consultada e a minha, bem como o original, estão devidamente indicados. Não
me senti inteiramente confiante na qualidade de minha versão dos Studies in Classic
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American Literature, de D. H. Lawrence, que exigiriam um tradutor muito mais


experiente; por isso, excepcionalmente, reproduzi no rodapé as citações em inglês.
Desejo a você uma boa leitura.
24

Ariel

É comum compreender-se a evolução da obra de Sergio Buarque como um


desdobramento de seu primeiro livro e mais conhecido livro, Raízes do Brasil (1936).
Nessa percepção, conformada em grande medida pela posterior consagração acadêmica
do autor, observa-se a passagem de Raízes aos livros sobre a expansão paulista
(Monções, 1945, e Caminhos e fronteiras, 1957) e à sua tese de cátedra (Visão do
paraíso, 1958/59), identificando-se duas tendências bem delineadas: 1) da “sociologia”
da primeira edição de Raízes do Brasil à “história” das edições posteriores do mesmo
livro 1 e dos livros subsequentes, consolidada na direção da História geral da
Civilização Brasileira e na redação de capítulos e de um dos volumes (Do império à
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república) da coleção; e 2) do “ensaísmo” de Raízes do Brasil à “ciência” da produção


posterior2 . No mesmo sentido é identificada a “profissionalização” do pesquisador,
com seu ingresso na universidade. Sem estarem propriamente errados no que diz
respeito à biografia profissional de Sergio Buarque, esses pontos de vista são
incompletos, na medida em que deflacionam a importância da produção crítica anterior,
dando a impressão de ter havido, da parte do autor, uma correção de rumo artificiosa e
premeditada.
É a partir da literatura que Sergio Buarque chega à questão nacional e a uma
sensibilidade historicamente orientada (ambas presentes desde os seus primeiríssimos

1
Exemplar desse ponto de vista é o posfácio de Evaldo Cabral de Mello a Raízes do Brasil. MELLO,
Evaldo Cabral de. Posfácio: Raízes do Brasil e depois. In: Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 189-193.
2
Excepcionais entre os textos mais conhecidos da fortuna crítica são a dissertação de Conrado Pires de
Castro e a tese de doutorado de Marcus Vinicius Corrêa de Carvalho, possivelmente as mais exitosas
monografias de maior fôlego sobre a crítica modernista de Sergio Buarque. O caminho aqui traçado é
tematicamente aparentado a estes dois trabalhos, inclusive com uma progressão expositiva semelhante
à usada por Carvalho (esp. p. 15-114), mas, como se verá, toca em problemas e diálogos diferentes,
especialmente com relação ao estudo de Castro. Já Carvalho adotou uma abordagem muito mais baseada
em apontamentos biográficos, que não é a do presente trabalho. Seja como for, aqui as questões
suscitadas pelos textos serão significativamente diversas, o que quem conheça esses trabalhos perceberá
ao longo da presente exposição. CASTRO, Conrado Pires de. Com tradições e contradições: as raízes
modernistas do pensamento de Sergio Buarque de Holanda. 2002. Dissertação de mestrado.
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguegem. Campinas, São Paulo.
CARVALHO, Marcus Vinicius Corrêa de. Outros lados. Sergio Buarque de Holanda: crítica literária,
história e política (1920-1940). 2003. Tese de doutorado. Universidade Estadual de Campinas,
Departamento de História. Campinas, São Paulo.
25

textos, como se verá em breve), e são, ao menos do ponto de vista dos conteúdos das
questões trabalhadas, os sedimentos do pensamento crítico da juventude que presidem
a composição de Raízes do Brasil, bem como de toda a sua produção posterior passível
de inclusão no campo da “história intelectual”, que transita também pela história da
literatura e pela sociologia do conhecimento – quer dizer, Visão do paraíso (1958/9) e
os estudos publicados postumamente em Capítulos de literatura colonial (a primeira
edição é de 1991, mas a redação da maior parte dos textos remonta provavelmente à
primeira metade da década de 1950), além do trabalho muito menos conhecido,
apresentado como dissertação de mestrado à Escola Livre de Sociologia e Política de
São Paulo, intitulado Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos
descobrimentos (1958). Mediada pela literatura, a questão nacional é abordada através
da categoria de forma, e esta, em virtude das circunstâncias de seu aparecimento na
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mente de um jovem crítico em país periférico, aparece inicialmente interrogada sob o


ponto de vista da originalidade literária.
Não se trata, aqui, de limitar Raízes e a obra madura à pura e simples continuação
de uma reflexão crítica que, a partir de meados de 1921, poderá ser rotulável como
“modernista” (Cf. infra cap. II), reduzindo a reflexão sociológica e historiográfica de
Sergio Buarque a especulações “literatas”. O que se pretende é, tendo em mente uma
continuidade orgânica do todo, perceber a mútua interrogação que se vai estabelecendo
entre o estudo da literatura e a questão nacional, em progressiva complexificação,
gradualmente refinada com o desenvolvimento da própria literatura nacional, do campo
intelectual articulado por variadas práticas letradas, notadamente os rodapés críticos de
jornais e uma série de revistas literárias, e, depois com o acréscimo influxos teóricos
importantes das ciências sociais e históricas, bem como da própria crítica literária.
Convém notar aqui que, nesse sentido, além de outros que aparecerão em tempo, o
presente estudo se dedica à descrição de uma formação intelectual marcada por um
desenvolvimento que se mostra desde o princípio como não retilíneo, mas dialético.

***
26

Os primeiros textos publicados por Sérgio Buarque de Holanda em jornais, entre 1920
e 1922, talvez não ofereçam grande interesse quando considerados em si mesmos, mas
são bastante esclarecedores no que diz respeito a sua atividade intelectual posterior,
tanto pelas continuidades que apresentam com relação à produção mais relevante
associada ao movimento de renovação estética e cultural propalado a partir da Semana
de Arte Moderna de 1922, quanto em relação a seu livro de estreia, Raízes do Brasil
(1936)3. Pode-se dizer que, em meio a formas de pensamento e expressão juvenis e
pouco desenvoltas – é às vezes ingrata a leitura de alguns desses primeiros textos,
embora devamos sempre ter em conta as poucas “primaveras”4 que contava o autor –
ali já estão presentes algumas preocupações que animam a obra madura de Sergio
Buarque de Holanda. Se ele se tornou um bom crítico e historiador, é em parte porque
já desde cedo começavam a germinar em seu pensamento as questões que viriam a
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pautar uma trajetória intelectual de amplitude e percuciência admiráveis. Esses textos

3
Não há pretensão de originalidade nessa observação. A conexão entre a produção crítica de juventude
e obras de maturidade já foi notada por alguns estudos de qualidade, entre os quais destacam-se, além
da já citada dissertação de Conrado Pires de Castro, os trabalhos de Antonio Arnoni Prado (“Breve Nota
sobre Sérgio critico” (In: Sérgio Buarque de Holanda. 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1992);
“Raízes do Brasil e o Modernismo”; “Sérgio, Mário e Klaxon”, ambos em Trincheira, palco e letras
(Cosac & Naify, 2004), Flora Süssekind (Em comentário ao texto de Prado; também reproduzido na
publicação do 3º Colóquio UERJ Sergio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Imago, 1992) e Roberto
Vecchi (VECCHI, Roberto. Nossa Revolução: Atlas Intersticial do tempo do fim. In: PESAVENTO,
Sandra Jatahy. Um historiador nas fronteiras. O Brasil de Sergio Buarque de Holanda. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2005). A mais completa análise das linhas de força que vão da crítica do jovem Sergio
Buarque até Raízes é a de Pedro Meira Monteiro, no alentado ensaio que acompanha sua edição anotada
da correspondência entre Sergio e Mário de Andrade. Esse texto se ocupa, contudo, apenas dos textos
publicados a partir de 1922. MONTEIRO, Pedro Meira. “Coisas sutis, ergo profundas”: o diálogo entre
Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. In:_____(Org.). Mário de Andrade e Sérgio Buarque
de Holanda: Correspondência. São Paulo: Cia das Letras; IEB; EdUSP, 2012, p. 165-360. O trabalho
mais completo, salvo engano, dirigido ao todo da produção crítica de Sergio dela se ocupa em
comparação com a obra de Oliveira Lima, e foi empreendido por Antonio Arnoni Prado em Dois letrados
e o Brasil nação (ed. 34, 2014). Nem sempre foi possível, contudo, partilhar aqui das interpretações e
conclusões desse estudo, ainda assim, amplamente esclarecedor. O principal ponto de divergência aqui
está no caráter elitista, aristocratizante mesmo, da crítica do jovem Sergio, analisado a seguir na revisão
do Ariel de Rodó, que é quase completamente ignorado na interpretação um tanto hagiográfica de
Arnoni, sempre tendente a ver em Sergio uma inclinação democrática, progressista e, sobretudo,
vanguardista.
4
A expressão é de Sergio Buarque: “Se o entusiasmo de minhas dezessete primaveras ainda não poluídas
pelo virus das paizões políticas, pudessem [sic] projetar ondas de luz e eloquência sobre estas palavras,
eu ousaria pedir a s. excia. [o presidente Epitácio Pessoa, que havia se manifestado favoravelmente ao
retorno dos restos mortais de d. Pedro II ao Brasil] que estendesse a sua magnanimidade fazendo revogar
o decreto, já sem razão de ser, do banimento à família imperial.” HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Viva
o imperador”. In: COSTA, Marcos (Org.) Sérgio Buarque de Holanda: Escritos coligidos, v. I.
(doravante EC, I) São Paulo: UNESP; Fundação Perseu Abramo 2011, p. 6-7.
27

não podem, portanto, ser desprezados por qualquer análise que se pretenda séria. O
pensamento de Sergio Buarque passa por algumas correções de rumo, mas no geral é
o desenvolvimento e a intensificação de elementos que já aparecem aqui, ainda que em
estado menos desenvolvido.
O primeiro artigo 5 publicado por Sérgio na imprensa merece uma glosa
relativamente minuciosa. Mesmo não sendo um texto particularmente inspirado, ele
contém alguns elementos reveladores do leque de preocupações que moverá o autor ao
longo de toda a sua trajetória de analista da literatura brasileira. O título “Originalidade
literária” antecipa a pergunta em torno da qual gravitará a reflexão de Sergio Buarque
pelo menos até Raízes do Brasil: é possível falar, com propriedade, em algo como uma
cultura brasileira? Seria aquilo que no Brasil se chama de cultura algo realmente
enraizado na realidade local, ou meramente a reprodução de convenções artificiosas
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herdadas ou assimiladas? É verdade que não se pode dizer que a formulação do


problema seja de grande sofisticação, ou sequer originalidade. Sergio em boa medida
se limita a repetir aqui algumas opiniões de Silvio Romero, e, nesta fase, é bastante
recorrente na sua produção o cacoete de, menos do que exprimir um juízo próprio sobre
as obras analisadas, citar ou parafrasear a opinião de autoridades, muitas delas
estrangeiras e do século XIX. Mas a disposição crítica que conduz o tom geral desses
textos é resultado de uma incorporação genuína da tradição crítica nacional e de um
espírito de seriedade – é espantoso ver como alguns dos temas aqui tratados
continuarão a ser frequentados por Sergio até suas reflexões maduras sobre o
Arcadismo nos Capítulos de Literatura Colonial, e mesmo naquela que é, salvo
engano, a mais sofisticada de suas obras, Visão do paraíso.
O artigo começa com a afirmação de que a “emancipação intelectual” de um povo
não se confunde absolutamente com sua independência política, e tampouco é sua
consequência natural. A simples emancipação da metrópole não passaria, do ponto de
vista cultural, de “fator secundário” 6 . Um contraexemplo que demonstraria a tese
estaria na literatura provençal – expressão original e extremamente rica de um povo

5
Originalidade literária. In: PRADO, Antonio Arnoni (Org.); HOLANDA, Sergio Buarque de. O
espírito e a letra. Estudos de crítica literária, v. 1 (doravante EL, I), p. 35-41. Originalmente publicado
no Correio paulistano, 22 de abril de 1920.
6
Ibid., p. 35.
28

politicamente dependente da França (parece escapar a Sergio, nesse momento, um fato


que levaria um crítico historicamente sensível a descartar prontamente esse argumento:
a inexistência dos estados nacionais modernos durante a época áurea da literatura
provençal – a Idade Média).
Mais importante do que essa anotação parecem, do ponto de vista da trajetória de
Sergio, a referência a Francisco Garcia Calderón, qualificado como “um dos mais
notáveis pensadores e críticos da América Espanhola”, e a ideia de uma “originalidade
literária da América”7. Já aqui, como ocorrerá algumas vezes em sua produção crítica
anterior aos anos 1930, Sérgio se debruça sobre a literatura crítica e ensaística hispano-
americana em busca de uma ideia que também estará presente em Raízes do Brasil: a
de uma comunidade cultural americana sobrejacente às culturas nacionais do
continente. Embora muito provavelmente o Brasil seja um assunto pouco frequentado
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nos textos citados (no caso de Garcia Calderón, há uma referência a Gonçalves Dias),
Sergio os adapta para avançar sua tese, ou antes sua intuição, pois ela nunca chega a
assumir uma forma bem definida e desenvolvida, de que existiriam características
culturais comuns à totalidade do continente (ou, pelo menos, da sua parte ligada
historicamente à Península Ibérica). Desse modo, seria possível falar em um tipo
cultural “americano”. Vale antecipar que, embora não seja o caso nesse momento
inicial, mais à frente Sergio procurará incluir nessa reflexão os Estados Unidos. O
mesmo ocorrerá, como se verá adiante, no uso que uma passagem importante de Raízes
do Brasil faz de um ensaio de D. H. Lawrence sobre A letra escarlate, cujas
observações sobre “o americano”, leia-se, o estadunidense, serão empregadas sem
qualquer reparo como lastro argumentativo da tese sobre a “cordialidade” brasileira
(Cf. infra cap. III, seção 6, “Demônios e possessos”). Aqui, como a certa altura de
Raízes, fala-se em “americanismo”8 como uma qualidade das expressões das culturas
transplantadas da Europa para a América.
Mas em que consistiria, para este Sergio ainda adolescente, a originalidade
literária de um povo? As indicações deste texto a respeito não são muito esclarecedoras,

7
Ibid., p. 35-6.
8
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasi Rio de Janeiro: José Olímpio, 1936 (Doravante RB),
p. 137.
29

talvez porque as ideias mesmas que o presidem não fossem tão bem pensadas quanto o
autor pretendia. De saída, o que se pode afirmar com segurança é que o jovem crítico
lidava com o pressuposto de que uma literatura nacional é a manifestação da
“consumação espiritual” de uma nacionalidade 9 , ou seja, com uma disposição de
análise fundamentalmente nacionalista, herdeira indireta da ideia alemã nascida ao
final do século XVIII, de que as expressões culturais de cada povo exibiriam um
“espírito” distinto e singular (Volksgeist) 10 . Afirmando seguir os passos de Silvio
Romero, Sergio se pergunta pelo resultado daquilo que um dia apareceria, fatalmente,
como consequência de uma “formação demorada e gradual dos sentimentos”11. Fica
claro, quando lemos na penúltima frase do texto que o Brasil “há de atingir, mais cedo
ou mais tarde, a originalidade literária”12, que, na opinião de Sérgio, esse ponto ainda
não fora atingido.
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É interessante, nesse sentido, verificar como, sob o ponto de vista do que aqui se
compreende como “originalidade”, se apresenta a literatura brasileira pregressa, ou
seja, anterior àquele ano de 1920. Lembrando novamente que Sérgio já aqui parece
sempre inclinado a pensar sobre a literatura brasileira em comparação com a hispano-
americana, é espantoso deparar, no início da consideração da literatura brasileira (os
primeiros parágrafos do texto tratam do livro do peruano García Calderón, em
movimento típico do autor, dado a abordagens oblíquas, quase barrocas, dos objetos de
que tratam seus textos13), com uma das ideias básicas do livro que Sergio escreverá

9
Originalidade literária, cit. p. 41
10
Não há uma referência óbvia para se fornecer aqui. Uma discussão sumária sobre a origem da ideia de
Volksgeist e sua importância para a construção das ciências da cultura pode ser encontrada num ensaio
de Erich Auerbach sobre o tema (The idea of the national spirit as the source of the humanities. In: Time,
history, and literature: Selected Essays of Erich Auerbach. Princeton, NJ: Princeton University Press,
2014, p. 56-63). Entre os textos clássicos da filosofia da Bildung e da ideia de formação nacional, talvez
o mais influente seja a primeira Filosofia da história de Johann Gottfried Herder (Edição consultada:
Another philosophy of history for the education of mankind. Indianapolis, IN: Hackett, 2004). Há
também uma discussão sucinta da origem da ideia do Volksgeist no terceiro capítulo de The roots of
romanticism, de Isaiah Berlin (Princeton: Princeton University Press, 2013, p. 54-78). Menos
concentrada na ideia de Volksgeist, mas imensamente importante no que diz respeito à ideia de forma
como expressão da essência humana, é a discussão sobre formação cultural e literatura nas cartas sobre
A educação estética do homem de Friedrich Schiller (São Paulo: Iluminuras, 1989).
11
Originalidade literária, cit., p. 41.
12
Loc. Cit.
13
É verdade que, antes de meados dos anos 1920, esse método ainda não foi depurado, resultando
frequentemente em textos onde o tema principal fica envolto num cipoal de anotações de menor
importância, ou ocupa espaço reduzido em comparação com “narizes de cera” longos e geralmente
dispensáveis.
30

mais de trinta anos depois, Visão do paraíso: “[o] povo português, menos idealista e,
se quiserem, menos prático que o espanhol, não teve uma visão tão sutil da natureza do
Novo Mundo como aquele”14. Se, em Visão, essa constatação – que, no que diz respeito
ao âmbito “prático”, será invertida em favor do português, mas naquele sentido bem
restrito de um “pedestre realismo” no qual a realidade não é problemática – dará origem
a um extenso e erudito estudo da forma mentis luso-brasileira no período colonial, aqui
ela está a serviço da tese de um déficit em temas locais na literatura brasileira, ao menos
em seus primeiros séculos. Essa seria, na opinião de Sergio (que neste texto parece
tomado por uma devoção juvenil por Silvio Romero, em sua opinião “o maior
historiador da nossa literatura”15), uma condição necessária, mas não suficiente, para a
realização da originalidade literária. Pelo menos, segundo o parecer de Romero,
secundado por Sergio, o romantismo já nos livrara do fantasma da “imitação
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portuguesa”, feito “inestimável”. 16 Adiante-se, aliás, que, anos mais tarde, Sergio
temperará a avaliação do romantismo com um tom muito mais crítico, numa visão da
versão brasileira do movimento conformada num jogo muito mais complexo de
condições de aclimatação do pensamento romântico.
Das três condições necessárias à originalidade, apresentadas ao final do texto, só
da temática se podia dizer que teria florescido de forma minimamente convincente.
Sergio menciona, além da “inspiração em assuntos nacionais” (1), o “respeito das
nossas tradições e a submissão às vozes profundas da raça” (2 e 3)17, platitudes que no
entanto não andam muito longe das imagens organicistas que aparecem como ideal de
cultura em Raízes do Brasil, como o “ritmo espontâneo” e o “mundo de essências mais
íntimas” mencionados ao final do ensaio de 1936. É de interesse notar o elogio que
Sergio faz ao romantismo indianista de Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e
José de Alencar, na medida em que, para o jovem ensaísta, esses autores teriam dado
um primeiro passo na direção do desenvolvimento de uma tradição nacional a partir da
qual se poderia esperar, no futuro, o desenvolvimento orgânico de formas mais ricas –

14
“Originalidade literária”, cit., p. 37.
15
Ibid., p. 38.
16
Ibid., p. 41.
17
Loc. cit..
31

aqui está posto, ainda que implicitamente, o problema da forma e da formação, que é o
que ocupará a melhor parte da obra de Sergio Buarque até o final dos anos 5018.
Conforme o critério temático de originalidade, é da presença da paisagem e dos
temas brasileiros (especialmente os povos indígenas) que se ocupa a rápida resenha de
nossa história literária contida no texto. Mesmo consideradas como obras de pouco
valor para além do critério histórico-nacional, são as epopeias que merecem aqui a
menção de Sergio, começando pela Prosopopeia de Bento Teixeira, tratada com
menosprezo, passando pelo Caramuru de Santa Rita Durão e pelo Uraguai de Basílio
da Gama – obras de que Sergio voltará a se ocupar em maior detalhe nos estudos
inéditos reunidos em Capítulos de Literatura Colonial19, continuando sua busca pelo
ponto de surgimento de uma literatura especificamente nacional e original, embora com
maior senso das especificidades históricas das condições de surgimento e disseminação
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daquelas obras, para não falar do conhecimento muito maior de recorrências de motivos
e outros elementos formais em nossa poesia colonial, que a menção negativa ao
“gongorismo” já antecipa, ainda que discretamente.
Nesses autores coloniais, para o Sérgio de 1920, veríamos, para além do mero
“elogio burlesco e exagerado às nossas riquezas naturais” verificado em épocas
anteriores, os princípios de uma “tendência americanizante” em nossa literatura20. Isto
porque Santa Rita Durão e Basílio da Gama teriam pela primeira vez encontrado no
índio um tema humano local digno da arte poética. O Caramuru e o Uraguai não
chegam a passar por um exame propriamente crítico, mas é de interesse a observação
de que o “indianismo” dessa fase chegou a merecer elogios de escritores portugueses,
mas não foi objeto de reflexão pela geração seguinte de brasileiros. É possível arriscar

18
Para uma exposição concisa do problema, ver ARANTES, Paulo Eduardo. Providências de um crítico
literário na periferia do capitalismo. In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori; ARANTES, Paulo Eduardo. O
sentido da formação. Três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
19
Não deixa de ser curioso que, em seu primeiro artigo, Sergio faça questão de censurar em Sebastião
da Rocha Pita o “estilo ruidoso, impregnado das locuções gongóricas tão apreciadas nos escritos
coetâneos” (ibid., p. 37). Em suas análises da literatura colonial, Sergio Buarque raramente perde a
oportunidade de criticar os “excessos” e “complicações” do Barroco. Aqui, possivelmente se trata de um
eco da visão de Silvio Romero sobre o período: “o cultismo do século XVII produzia por toda parte uma
poesia afetada e falsa, imitação bastarda da greco-romana, determinando uma literatura inteira de
adulações aos reis e aos padres” História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1902, p. 152.
20
“Originalidade literária”, cit., p. 38.
32

aqui, se lembrarmos que o “respeito às nossas tradições” se apresenta ao final do texto


como condição para a consumação espiritual da cultura, a hipótese de que o jovem
crítico faz uma censura à tradicional negligência à qual os escritores brasileiros relegam
a própria tradição – problema já posto por Silvio Romero, como lembrou Paulo Arantes
em seu estudo sobre “o sentido da formação” no Brasil. No ensaio “A filosofia no
Brasil”, o crítico sergipano escrevera: “Na história do desenvolvimento espiritual do
Brasil há uma lacuna a considerar: a falta de seriação nas ideias, a ausência de uma
genética. Por outros termos; um autor não procede do outro; um sistema não é
consequência de algum que o precedeu”21. A censura, se de fato existe, segue a mesma
linha das críticas que Sergio Buarque fará ao Modernismo e à vida intelectual brasileira
em críticas posteriores e em Raízes do Brasil. O pressuposto aqui operante, que se
manifesta na forma de um organicismo primário em comparação ao do livro de estreia,
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é um elemento central da teoria romântica da arte e da filosofia idealista, isto é, que as


formas da cultura são engendradas a partir do trabalho sobre formas anteriores.
De todo modo, o que está acima de toda dúvida é que o romantismo indianista é,
em “Originalidade literária”, o ponto culminante dos incipientes esforços brasileiros na
direção de uma literatura propriamente nacional – juízo não muito diferente daquele
que aparece em Raízes do Brasil e no prefácio à edição de 1939 do livro frequentemente
apontado como o primeiro exemplar do romantismo brasileiro, Suspiros poéticos e
saudades, de Gonçalves de Magalhães 22 . Por isso, Gonçalves Dias, Gonçalves de
Magalhães e José de Alencar são louvados como escritores genuinamente nacionais,
embora não escapem à censura de Sergio (baseada em comentários de Romero e José
Veríssimo) por elaborarem do índio uma imagem pouco realista. Note-se de passagem
que, num artigo publicado pouco depois de “Originalidade” 23 , mas que partilha do
mesmo estilo de análise, Sergio vai rever parcialmente esse ponto de vista e valorizar
um escritor tido por canhestro por alguns críticos – Joaquim Manuel de Macedo –
simplesmente, ou melhor, justamente, porque a estranheza rústica de sua prosa

21
Apud ARANTES, cit., p. 15.
22
HOLANDA, Sergio Buarque. Suspiros poéticos e saudades. In: O livro dos prefácios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996 (doravante LP), p. 353-370. Ainda se verá, no capítulo III, como a visão de
Sergio Buarque sobre o romantismo tem uma inflexão em Raízes do Brasil, de certo modo relativizada
nesse texto de 1939.
23
“Um centenário”, EL, I, p. 57-59. Originalmente publicado em A cigarra, VII, 140, jul 1920.
33

refletiria adequadamente o meio social provinciano e tosco do romancista – meio esse


que ainda teria uma sobrevida nas pequenas cidades do interior. O sabor exótico da
obra de Macedo, “obscurecida pelo fulgor do indianismo que lhe sucedeu”24, se devia
à singularidade de sua época e de seu meio, mas era a isso que se devia o valor positivo
conferido à obra de Macedo: fora ele efetivamente o formador do romance nacional,
isto é, não apenas um pioneiro, mas aquele que moldou a forma do romance à imagem
de seu contexto, e não o contrário. O indianismo, em compensação, fica caracterizado
nesse texto como uma “espécie de nacionalismo à outrance”25. Tomando-se o conjunto
dos textos dessa primeira fase, não é difícil encontrar, por sinal, nas tomadas de posição
do jovem crítico, certa volatilidade e uma inclinação mal adestrada às hipérboles e
frases de efeito. O final do texto é bem característico desse momento inicial, muito
marcado por um compromisso do crítico com o cultivo da a tradição literária nacional
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como um valor em si mesmo: “[s]e não houvesse outros títulos a exibir para que o
centenário do autor da Moreninha seja digno de um povo que se preze de saber cultivar
a memória de seus mortos ilustres, bastaria a glória incontestável de ter lançado os
fundamentos do romance nacional.”26
Voltando ao primeiro artigo, de escopo mais panorâmico, é saliente, talvez até
sintomático, o silêncio que o texto reserva a Machado de Assis e a toda a literatura
posterior a Alencar (lembre-se que o texto é de 1920), numa condenação implícita da
literatura de todo esse período posterior como pouco nacional (novamente, ecoando a
opinião de Romero). Mesmo que consideremos essa interpretação equivocada, deve-se
reconhecer nela alguma coragem e certa consciência da necessidade de rigor e
coerência interna na argumentação crítica, o que não é pouco em se tratando de um
autor tão jovem – acrescente-se, aliás, que, embora Machado seja posteriormente
reconhecido por Sergio como o maior de nossos romancistas, sua própria concentração
na crítica de poesia é possivelmente reveladora de um conceito um pouco reticente da
prosa de ficção brasileira. Se, por um lado, Sergio dedicou ensaios de qualidade e
fôlego a Manuel Bandeira, Dante Milano, João Cabral de Melo Neto e Carlos

24
Ibid., p. 57.
25
Loc. cit.
26
Ibid., p. 59.
34

Drummond de Andrade, nenhuma linha da considerável contribuição desenvolvida até


o final dos anos 1950 trata, diga-se, a título de contraprova, de um autor da importância
de Guimarães Rosa27. O silêncio não parece poder ser creditado simplesmente pela sua
especialização, pois, embora de volume menor do que a de poesia, durante o tempo em
que contribuiu regularmente como crítico literário, Sergio nunca deixou de comentar
romances, novelas e coletâneas de contos. Parece justo concluir que a proporção menor
ocupada pela prosa se deve, ao menos em parte, não a um desinteresse pela forma, mas
à convicção, ou talvez à intuição, de que o melhor das letras brasileiras estava no verso.
Retomando os textos de juventude, note-se que, quando Sergio endossa Silvio
Romero em seu menosprezo das epopeias compostas no período colonial (porque “a
ausência de mitos, heróis populares e tradições nos impedia de possuir,
definitivamente, feições épicas” 28 ), revela em alguma medida o significado das
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expressões vagas que, no final do artigo, são apresentadas como condições para a
consumação espiritual da nação. Quando se fala em “tradição” e nas “vozes profundas
da raça” em meio à análise da cultura letrada produzida pelos muito poucos que
poderiam ter produzido uma literatura no Brasil – distantes do universo cultural
popular, numa atitude que, em 1920, se já não era exatamente a mesma, estava muito
longe do que se veria até o final da década – compreende-se mais claramente a
dimensão programática que subjaz ao texto. Trata-se aqui da defesa de um esforço
consciente da parte dos homens de letras para captar uma essência que, sedimentada na
cultura popular, precisaria ser conformada às exigências da “literatura” como arte
governada por convenções de gosto e estilo, endereçada a um público cultivado.
Não se imagine que aqui esteja em ação algum tipo de impulso “democratizante”
da cultura – mesmo porque seria estranho esperar isso naquela conjuntura histórica. O
que se pretende é elevar a cultura letrada a um patamar ao mesmo tempo superior ao
da matéria inculta deixada à disposição do Volksgeist, sem no entanto cair no mero
exotismo, no elogio “burlesco” da cor local, e mantendo igual distância do vício

27
Isso é talvez explicável pelo fato de as novelas de Corpo de baile e o Grande sertão terem aparecido
somente em 1956, ou seja, quando Sergio já havia deixado de escrever regularmente sobre literatura na
imprensa. De todo modo, num curto prefácio de 1980 à Poesia reunida de Ferreira Gullar ele indica,
ainda que indiretamente, que Rosa seria o maior prosador da literatura brasileira contemporânea. “Toda
poesia” (1950- 1980). In: LP, p. 430.
28
Originalidade literária, EL, I, p. 38-9.
35

contrário – o da cópia de modelos estrangeiros, da qual resulta uma arte aparentemente


refinada, mas inautêntica. Sergio parecia estar ciente em algum grau do problema,
tomando emprestada a expressão de Roberto Schwarz em sua importante análise da
obra de José de Alencar em Ao vencedor as batatas, da “importação” das formas
literárias, que exigem um processo de aclimatação consequente e não meramente
cosmético, para que não caiam na banalidade artificiosa29. Há um elemento de vontade
e de direção que separa o jovem crítico de Silvio Romero: sem ousar contrariá-lo
quando afirma que “o nacionalismo não é uma questão exterior”, mas um “fato
psicológico”, ele atribui a Romero um pessimismo excessivo e contrapõe a necessidade
de “apressar a consumação espiritual da nacionalidade” mediante o “esforço de um
povo”30. Se quisermos pensar neste texto, não sem algum exagero, como uma espécie
de célula originária da obra do futuro historiador, o elemento mais importante a se
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extrair dele, além do destaque que assume a questão da originalidade, impressionante


pela sua afinidade com Raízes do Brasil e com muito da obra posterior, há de ser
encontrado no cuidado em procurar um equilíbrio entre a confiança nas supostas forças
orgânicas da cultura nacional e a urgência de uma dimensão construtiva deliberada (o
que não quer dizer caprichosa ou dirigista) para o processo de formação da cultura
nacional. Pode-se arriscar a hipótese de que, já aqui, Sergio Buarque exibe uma
sensibilidade dialética, ainda que tateante e insegura, na compreensão expressões do
pensamento numa realidade cultural e histórica complexa.
Embora nenhuma formulação definitiva seja explicitada, o tom das observações
ao final do artigo aponta para uma tensão entre duas necessidades (organicidade e
construção voluntária), de modo que a cultura aparece diante de dois perigos: de um
lado, o programatismo excessivo é voluntarista e inautêntico, e, de outro, abandonar a
cultura aos impulsos naturais do artista pode resultar num divórcio irremediável entre
a arte e a nacionalidade (resvalando, portanto, igualmente, em inautenticidade). Uma
solução conciliatória entre os dois polos pareceria requerer, considerando as sugestões
feitas ao longo do texto, um esforço de introspecção em busca das “vozes profundas da

29
SCHWARZ, Roberto. Os problemas da importação do romance em José de Alencar. In: Ao vencedor
as batatas. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2012.
30
“Originalidade literária”, EL, I, p. 41.
36

raça” mediante um mergulho na tradição. Esforço comprometido, portanto, com um


conhecimento mais apurado dos antecedentes históricos, tanto nos meios letrados
(como sugere a menção aos árcades) como no popular (o que implicaria investigações
sobre as formas de expressão cultural populares). A ideia de Volksgeist ainda não
assume contornos nítidos, podendo estar ligada tanto a uma leitura direta da filosofia
alemã de onde nasce, ou então filtrada por Silvio Romero. Outra fonte possível, e cuja
importância aumentará em textos posteriores, marcando ainda a atmosfera de Raízes
do Brasil, é a singular tentativa empreendida por alguns críticos da América Hispânica
de atualizar o complexo filosófico e pedagógico da Bildung, originado no humanismo
clássico alemão do início do século XIX31, na qual uma melancolia decadentista se
mescla com o “paradoxal otimismo” do florescimento de novos frutos por uma
“sugesão divina da natureza”32.
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O segundo texto publicado por Sergio Buarque compõe, junto com outros seis
artigos seus que apareceriam até agosto de 1920, um bloco de afinidades temáticas e
de perspectiva33 que pode ser chamado de “arielista” por sua ligação ostensiva com um
movimento intelectual latino-americano marcado pela acentuada oposição à cultura dos
Estados Unidos. Além da conexão com o livro Ariel de José Enrique Rodó e com o
universo mais amplo de um excepcionalismo latino de corte aristocrático, encontram-
se nesses textos pressupostos pertencentes a uma visão de mundo razoavelmente bem
definida.
A delimitação dessa fase e o nome que aqui se lhe dá se justificam sobretudo
porque esses artigos, versando sobre assuntos vários, sempre se circunscrevem de
algum modo à órbita da identidade nacional e da necessidade de uma expressão

31
Cf. infra, “Interlúdio”.
32
RODÓ, José Enrique. Ariel, Santa Fe: El Cid, 2003, p.22.
33
São eles: Ariel (Revista do Brasil, V, XIV, mai 1920; EL, I, p. 42-6), Vargas Vila (Correio Paulistano,
4 jun 1920; EL, I, p.47-53), Santos Chocano (A Cigarra, VII, 138 jun 1920; EL, I, p. 54-6), Viva o
Imperador (A Cigarra, VII, 137, jun 1920; EC, I, p. 3-7), A quimera do monroísmo (A Cigarra, jul 1920;
EC, I, p. 8-11) e A bandeira nacional (A cigarra, VII, 142, ago 1920; EC, I, p. 12-4). O único artigo do
período que não se encaixa nessa perspectiva é “Um centenário” (A cigarra, VII, 140, jul 1920; EL, I,
p. 57-9), e trata do centenário de Joaquim Manuel de Macedo e de sua contribuição para o romance
brasileiro. No começo de 1921, aparecem os dois últimos texto igualmente orientados por uma
perspectiva nitidamente influenciada pelo Ariel de Rodó, intitulados “O homem-máquina” (A cigarra,,
VIII, 155, mar 1921) e “A decadência do romance” (A cigarra, VII, 156, 15 mar 1921; EL I, p. 105-
107).
37

original, assim como de seus duplos incômodos: os espectros da inautenticidade, da


decadência cultural, do epigonismo e da imitação. Registre-se aqui que, dos seis textos,
três (“Ariel”, “Vargas Vila” e “Santos Chocano”) tratam diretamente de escritores
hispano-americanos, lidos de forma mais ou menos explícita como pontos de partida
para indagações sobre a essência de uma cultura “americana” de filiação latina34.
“Ariel” se destaca aqui na medida em que situa Sergio Buarque entre aqueles
intelectuais céticos de uma aproximação cultural com os Estados Unidos, ceticismo
esse relacionado a simpatias monarquistas e às pretensões políticas da potência
emergente no Hemisfério Ocidental (a principal expressão desse tipo de pensamento
no Brasil é A ilusão americana, de Eduardo Prado35). Vale a pena uma citação integral
da abertura do ensaio, tanto porque ele condensa a problemática de fundo que anima a
adesão “arielista” do autor, quanto porque essa irá se tornar um dos motivos centrais
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da argumentação de Raízes do Brasil. “É digno de nota”, escreve o jovem articulista,


“que quando uma nação, atraída pela grandeza ou pelos progressos de outra pertencente
a raça diversa da sua, é levada a imitar sem peias seus traços característicos e nacionais,
procura especialmente as qualidades nocivas e as menos compatíveis com sua
índole”36. O que há de notável aqui é que a avaliação sobre a tensão entre as expressões
culturais enraizadas no passado e as formas sociais (contornos exteriores) que se
impõem a reboque da modernização será, mais de uma década depois, um dos
problemas centrais do livro de estreia de Sergio Buarque; há, inclusive, uma passagem
de conteúdo aproximadamente correspondente em Raízes do Brasil, no contexto de
uma discussão sobre a importação de modelos institucionais importados de países
prósperos, mas que não correspondem a necessidades da realidade social e cultural

34
No artigo sobre Santos Chocano, aparece mais uma evidência de que a antipatia de Sergio Buarque
por certos traços da literatura do Barroco, especialmente na obra de Góngora, não foi adquirida em
leituras de maturidade: embora reconheça em Santos Chocano “um dos mais notáveis temperamentos
artísticos deste continente”, não deixa de lamentar que “suas imagens degenerem frequentemente em
gongorismo”. EL, I, p. 55.
35
Eduardo Prado. A illusão Americana. São Paulo: Escola Typographica Salesiana, 1902 [1893]. A
influência exercida por Eduardo Prado nessa primeira fase já foi notada por João Kennedy Eugênio em
EUGÊNIO, João Kennedy. Um horizonte de autenticidade. Sergio Buarque de Holanda: Monarquista,
Modernista, Romântico. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio Buarque de
Holanda: Perspectivas. Campinas; Rio de Janeiro: Unicamp; Uerj, 2008, p. 429.
36
Ariel. Revista do Brasil, V, XIV, mai 1920. EL, I, p. 42.
38

brasileira37. E é essa mesma problemática que anima “Ariel” e os outros textos do bloco
“arielista” da crítica do jovem Sergio.
Ante a leitura desses textos, não é difícil notar como a nostalgia do império,
presente ostensivamente em pelo menos quatro deles, articula-se com uma percepção
da proclamação da República e da atmosfera cultural de a partir de 1889 como sintomas
de decadência e inautenticidade culturais – considerando-se a ascendência de Rodó
sobre o texto, provavelmente Sergio opera também uma intensificação do modelo
hispânico de rejeição ao “yanquismo” por meio da circunstância política local, na qual
a monarquia apresentava mais um caminho por onde se distanciar da modernização
como (norte-) americanização. Essa intensificação, por sua vez, tem por trás de si uma
disposição política aristocrática e tendencialmente conservadora. A república, desenho
institucional supostamente “importado” dos Estados Unidos, associava-se, desse ponto
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de vista, com a atmosfera de arrivismo reinante na política e na economia38, comparada


desfavoravelmente ao Império como um período no qual eram cultivadas virtudes e
tradições verdadeiramente expressivas da alma nacional, bem como garantidoras de
maior estabilidade social – note-se ainda certo tempero conservador na implícita
associação entre os termos “república” e “democracia” e a noção de uma engenharia
político-social artificiosa e contrária à natureza39. A isso acrescente-se a interpretação
da assimilação de traços culturais americanos (especialmente aqueles que se possam
acomodar em torno das noções de “pragmatismo”, “materialismo” e “utilitarismo”)
como causas de decadência cultural. Socorrendo-se de um tipo de organicismo
tradicionalista que se pretendia ao mesmo tempo vagamente científico, falava-se na
incompatibilidade da “raça” latina com as ideias norte-americanas, e criticava-se a
adoção dos traços superficiais da cultura norte-americana como tentativa de
mimetização da prosperidade yankee – prosperidade que não era vista como algo de
negativo em si mesma, mas apenas como uma realidade não reproduzível por força da
vontade ou por simples imitação.

37
RB, p. 128.
38
Sobre isto, ver Nicolau Sevcenko. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 25-77.
39
Veja-se, a respeito do papel do organicismo na tradição política conservadora, o ensaio de Karl
Mannheim sobre o tema. MANNHEIM, Karl. O pensamento conservador. In: MARTINS, José de Sousa.
Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1986.
39

Finalmente, o motivo do contraste entre Ariel e Caliban, inspirado na Tempestade


de Shakespeare e no ensaio de José Henrique Rodó, oferece uma imagem sintética
adequada à necessidade de um ideal alternativo à modernidade em sua versão yankee.
O título do texto de Sergio Buarque é tanto uma referência ao livro quanto ao motivo
amplamente disseminado em círculos letrados hispano-americanos, alçado à
proeminência por Rodó, mas posto em circulação, pela primeira vez, salvo engano,
num artigo publicado por Rubén Darío em Buenos Aires em 189840. Darío estava entre
os intelectuais da América de língua espanhola que encontraram na humilhante derrota
da antiga metrópole contra os Estados Unidos na guerra recente uma ocasião de
lamentar o triunfo yankee e tentar articular uma resposta intelectual da latinidade. O
movimento retórico da conferência era defender, contra a superioridade material da
civilização anglo-saxã e seu crescente imperialismo, uma suposta superioridade
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cultural do mundo hispânico (Ariel contra Caliban, ou, noutros termos, Cervantes,
Lope de Vega e Sor Juana contra o big stick e os rough riders de Teddy Roosevelt). A
isso se somava o ressentimento longamente alimentado contra a leyenda negra,
mobilizada na propaganda de guerra norte-americana, que estimulava assim os
intelectuais criollos a esse curioso impulso de solidariedade com sua antiga metrópole
colonial. Se, na conferência de Dario, não há muito mais do que um chauvinismo
melancólico, no ensaio de Rodó o topos Ariel-Caliban é trabalhado até um nível mais
sofisticado de desenvoltura literária e intelectual. Embora os pressupostos que
acompanham a mobilização do leitmotiv sejam ainda basicamente os mesmos (em
suma, a tese de uma inferioridade irremediável da cultura anglo-saxã, excessivamente
materialista e avessa ao pensamento, a cuja supremacia no presente se opunha uma
esperança quase messiânica no poder redentor da cultura latina), há um tratamento um
pouco mais cavalheiresco da questão:

Ariel, genio del aire, representa, en el simbolismo de la obra de Shakespeare, la parte


noble y alada del espíritu. Ariel es el imperio de la razón y el sentimiento sobre los bajos
estímulos de la irracionalidad; es el entusiasmo generoso, el móvil alto y desinteresado
en la acción, la espiritualidad de la cultura, la vivacidad y la gracia de la inteligencia, el
término ideal a que asciende la selección humana, rectificando en el hombre superior los

40
Rubén Dario. El triunfo de Calibán. Revista Iberoamericana, v. 64, n. 184-5, jul-dez 1998, p. 451-
455.
40

tenaces vestigios de Calibán, símbolo de sensualidad y de torpeza, con el cincel


perseverante de la vida.41

***

Vale a pena resenhar com calma algumas das ideias principais do Ariel de José
Enrique Rodó, livro do qual o segundo artigo escrito por Sergio Buarque toma
emprestado o título e que, além de estar por trás de muitas das posições exprimidas na
primeira fase de produção crítica, tem uma importante presença não declarada, mas não
propriamente disfarçada, em Raízes do Brasil, como se verá adiante. Fora as óbvias
diferenças de conteúdo solicitadas pela transposição ao contexto brasileiro, há muito
pouco, nos textos de Sergio aqui denominados “arielistas”, que não se encontre de um
modo ou de outro nas páginas do livro de Rodó. Considerando que o Ariel de 1900 não
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teve, naturalmente, a mesma recepção no Brasil que viria a ter em países de língua
espanhola, dado o relativo isolamento cultural da cultura brasileira do mundo hispano-
americano, é curiosa a adesão entusiasmada do jovem crítico às ideias de Rodó, bem
como sua intimidade com a produção de vários poetas, ensaístas e críticos da América
de língua espanhola – tema que mereceria uma investigação à parte. Não seria muito
exagerado afirmar que a leitura do Ariel dá a partida num eixo importante da reflexão
de Sergio Buarque até pelo menos meados dos anos 40: o daquilo que Sergio denomina
“americanismo”. Como se sabe, Raízes do Brasil é o resultado de um projeto
inicialmente imaginado pelo autor como uma “teoria da América”42. Essa sugestão um
pouco misteriosa não levará o presente estudo a especulações sobre um “livro nunca
escrito” no qual Sergio Buarque desenvolveria ideias que nunca chegamos a conhecer.
Uma leitura atenta da primeira edição de Raízes do Brasil revela que vários elementos
do que quer que tenha sido a “teoria da América” estão no livro (Cf. infra a seção

41
José Enrique Rodó. Ariel, cit., p. 8.
42
Sergio Buarque de Holanda. Tentativas de mitologia São Paulo: Perspectiva, 1979, p.29-30. O texto
citado é autobiográfico, e Sergio fala em ter descartado a maior parte das “400 páginas” do “calhamaço”,
das quais nada teria sido reaproveitado, salvo dois capítulos de Raízes do Brasil. Considerando o esforço
de Sergio Buarque para se livrar da bagagem “irracionalista” dos seus “Wanderjahre alemães”, é de se
imaginar que a “teoria” era impregnada de um pensamento do qual ele queria se distanciar. A coerência
geral da obra buarquiana impõe alguma prevenção contra especulações de que tal “teoria” fosse algo de
muito diferente daquilo que se veio a conhecer.
41

“Demônios e possessos” do cap. III), e o que quer que tenha sido descartado não deve
ter ido muito além do que veio a ser publicado, uma vez que a busca pelo que seja um
“americanismo” acompanha Sergio desde os textos de juventude até, pelo menos,
meados dos anos 1940, e as ideias de Sergio a respeito não mudam muito ao longo de
sua trajetória, para além da reversão de uma antipatia inicial pela cultura dos Estados
Unidos e da avaliação de que haveria uma diferença inconciliável entre essa e as
culturas ibero-americanas – ambas as reversões já estão presentes na primeira edição
de Raízes do Brasil e são reiteradas mais explicitamente em texto de 1941 incluído em
Cobra de vidro intitulado “Considerações sobre o americanismo” 43.
A presente resenha do Ariel e das ideias implicadas no pequeno mas
influentíssimo livro de Rodó antecipa um tema que ganhará maior desenvoltura na
discussão de Raízes do Brasil: o dos fundamentos conceituais e históricos da ideia –
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mais preciso seria dizer que se trata de um universo semântico e cultural, dada a sua
complexidade e riqueza de consequências – de formação que nutre a reflexão de Sergio
Buarque sobre a literatura, a cultura e o Brasil. Ariel parece ser, nesse momento, a fonte
mais intensamente aproveitada (mas provavelmente não a única e nem a mais
importante para sua obra posterior) do ideal de formação cultural pelo crítico. A outra,
já notada por outros comentadores, é de extração alemã e tem sua origem na cena
cultural do final do século XVIII, quando nasce o arco histórico que tem sua fases mais
notáveis no humanismo clássico e no chamado historismo alemão: a Bildung. 44 Mas

43
A última ocorrência de uma consideração alentada de Sergio Buarque sobre o assunto é provavelmente
a palestra “O Brasil na vida americana”, proferida em setembro de 1954 (Sergio Buarque de Holanda.
O Brasil na vida americana. In: Vários autores. O Novo Mundo e a Europa. Texto integral das
conferências e dos debates. Sintra: Edições Europa-América, 1969, p. 59-79), mas o último texto escrito
que Sergio considerou apropriado para publicação em livro próprio é “Considerações sobre o
americanismo”, incluído na coletânea Cobra de vidro, mas publicado pela primeira vez no Diário de
notícias de 28 de setembro de 1941. HOLANDA, Sergio Buarque de. Cobra de vidro. São Paulo:
Perspectiva, 2012, p. 23-28. Este livro será referido doravante pela abreviatura CV.
44
Seria possível referir-se, alternativamente, a uma herança da ideia de formação do “romantismo
alemão”, o que não estaria inteiramente incorreto, mas acarretaria o problema da oposição, no interior
desse mesmo debate, entre tendências românticas num sentido mais estrito e a reação “clássica” a elas,
além de outras expressões manifestamente contrárias ao romantismo e que, sob uma definição mais
liberal, não deixariam de ser elas próprias românticas – por exemplo, em Nietzsche, cujos primeiros
livros podem ser lidos como uma apoteose do romantismo. Falar simplesmente no “humanismo clássico”
ou “neohumanismo” alemães parece excessivamente restritivo. Há a solução influente, satisfatória em
seus próprios termos, do importante livro de Friedrich Meinecke sobre a Origem do historismo (México:
Fondo de cultura, 1986), que, no entanto, tem a desvantagem circunstancial de aparentar referir-se
unicamente à filosofia da História ou à epistemologia das ciências históricas e seus desdobramentos na
chamada Escola Histórica Alemã. A solução de Louis Dumont, que em L’idéologie allemande (Paris:
42

Ariel e o arielismo – aqui compreendido não tanto como um movimento intelectual ao


qual Sergio Buarque teria aderido conscientemente, mas como uma intensa afinidade
com as ideias contidas no livro de Rodó – devem ser discutidos primeiro não só por
conveniência expositiva, mas sobretudo porque os textos analisados não autorizam
supor que, neste momento, as expressões alemãs da Bildung já tivessem encontrado
uma recepção especialmente desenvolvida no pensamento de Sergio Buarque, que se
engaja mais intensamente com as ideias dessa tradição a partir desse filtro latino.
De todo modo, essa antecipação não exatamente inadequada no plano conceitual,
na medida em que Ariel é nada menos que uma versão latina da Bildung.
Possivelmente, essa versão é especificamente direcionada à imaginação literária do
Cone Sul, excluído o Paraguai, isto é, aqueles países da América Latina onde a herança
cultural não europeia foi excluída mais decididamente das narrativas sobre a identidade
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nacional – esse detalhe pode ser algo quase inconsciente, mas não é de importância
menor, porque o ideal defendido no livro não faz praticamente nenhum aceno às
culturas pré-colombianas ou africanas. Trata-se fundamentalmente, no Ariel, de uma
glorificação de uma humanidade latina refinada, dotada de uma inteligência
imaginativa especialmente apta à fantasia e à criação literária, afeita a uma versão
atualizada dos códigos cavalheirescos de cortesia, contra o anglo-saxão
irracionalmente materialista e vil alegorizado por Caliban. As insuficiências e limites
desse ideal ficam claras, não apenas pela idealização elitista e implicitamente racista
que o intelectual faz do que seja uma “cultura latino-americana” – que fica
praticamente reduzida ao seu componente europeu, num esquema que contrapõe à
leyenda negra uma imagem propagandística do colonialismo como fase heroica de uma
narrativa de formação comunitária moralmente edificante – mas principalmente, uma

Gallimard, 2013) analisa a Bildung como versão alemã do individualismo moderno, circunscrevendo
pensadores-chave como Herder, Karl Philip Möritz, Goethe, Humboldt e Thomas Mann ao que toca o
tema da formação como educação de si, parece a mais próxima da aqui desejada, embora seja
excessivamente concentrada na dimensão individual da problemática da formação, o que não desmerece
seu estudo, mas seria prejudicial ao que se pretende aqui. Seria possível estender essa tradição, na medida
em que ela se ocupa de um fenômeno que se verifica além da comunidade linguística germânica, a
precursores como Montaigne e Vico, ou ainda, como faz Franco Moretti em sua análise do Romance de
formação, a atualizadores da noção de formação fora da Alemanha, como Stendhal ou Jane Austen. Para
fins de concisão expositiva, usa-se aqui o termo Bildung, mesmo porque a ideia de formação em Sergio
Buarque parece especialmente afinada com as formulações alemãs do conceito. O tema será abordado
de forma um pouco mais alentada abaixo, no “Interlúdio”.
43

vez que não seria muito sensato esperar coisa muito diferente naquele contexto, pelo
fato de seu único motor ser o ressentimento e a impotência diante de mais uma fase de
rebaixamento cultural e político. Isso, é claro, tem muito a ver com um arco histórico
mais amplo do mundo hispânico, que, depois de abrigar, sob certos aspectos, o centro
político e cultural da Europa do reinado de Carlos V até a primeira metade do século
XVII, desde então passava por uma trajetória política e econômica descendente
praticamente ininterrupta, cujos efeitos na cultura não eram, certamente, menos
sensíveis45.
Comparando as bravatas de Dario ou Rodó contra os yankees às reações de um
Herder, de um Schlegel ou de um Goethe aos pensadores das Luzes ou ao prestígio do
classicismo francês, nota-se que o ressentimento e um certo complexo de inferioridade
são traços comuns e igualmente determinantes, mas não se pode afirmar que o ideal de
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Rodó e Darío representa uma alternativa substancial contra o abominado yanquismo


além de uma negação beletrista e neurastênica de uma realidade lamentável por meio
da exaltação de um passado de glórias culturais longínquas. Se a conferência de Darío
é quase puramente um protesto rancoroso contra o imperialismo americano, lido como
expressão política da miséria cultural dos Estados Unidos, o livro de Rodó chega a
desenvolver com algum alento uma versão latina, ou, mais especificamente,
hispanoamericama, de formação. O interesse de Sergio Buarque pelos críticos da
América de língua espanhola, que vai além do que se encontra de ordinário entre
intelectuais brasileiros, talvez esteja naquele que é o mais interessante aspecto do
arielismo: o sentimento de uma comunidade cultural historicamente formada, dotada
de uma tradição passível de um cultivo que, mesmo em tempos difíceis, poderia
oferecer à cultura um potencial de produtividade e renovação. Com efeito, era isso que
a cultura brasileira tinha mais dificuldade de produzir, em parte por razões linguísticas,
em parte pelo raquitismo dos círculos letrados, e também devido à tendência,

45
Uma expressão desse mesmo problema em língua portuguesa, caracteristicamente melancólica e
negativista, é a famosa conferência proferida em 1871 por Antero de Quental no Casino Lisbonense,
Razões da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos.
44

especialmente acentuada a partir da independência política, de abandono dos laços


culturais com Portugal em favor da França46.
Mais proveitoso do que lamentar as limitações porventura inevitáveis do
arielismo será dar relevo aos contornos de suas ideias básicas. A estrutura narrativa do
ensaio não é pouco importante para o deslindamento de seu significado. Trata-se de
uma palestra proferida por um ancião a uma plateia de jovens alunos, presumivelmente
jovens aspirantes a escritores, diante de um busto de Ariel, a personagem da peça A
tempestade, de Shakespeare. A interpretação que o ancião extrai da peça é uma alegoria
da modernidade que implicaria, quase que logicamente, uma filosofia da história a ela
específica. Enquanto, numa fase inicial de expansão e progresso material da
humanidade, as qualidades de Caliban seriam recompensadas com uma supremacia
transitória e superficial sobre boa parte da história, o telos da totalidade do processo
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seria um mundo onde triunfariam as virtudes superiores de Ariel: a imaginação, a


reflexão especulativa, o heroísmo, e, sobretudo, um código ético de inspiração
aristocrática. É preciso notar um aspecto que tem uma sobrevivência importante na
primeira edição de Raízes do Brasil: o ideal de Rodó não é propriamente reacionário
ou anti-moderno, mas é extremamente cético das formações políticas consagradas pela
modernidade, especificamente a democracia, aqui entendida não como mera forma
institucional (mesmo porque o livro não se manifesta em favor da monarquia ou de
qualquer forma bem definida de governo minoritário), mas na acepção tocquevilliana
de forma social. A democracia é especialmente perniciosa quando penetra na cultura,
pois, se as maiorias já demonstram dificuldades em escolher bons governantes, ainda
menos justos são os seus valores no que diz respeito às expressões do espírito. A
democracia na cultura significa, então, o prestígio das formas mais medíocres e
sensacionalistas e o anonimato para as obras de gênio. O democratismo radical conduz
à “consagração do sumo pontífice ‘qualquer um’” e à “coroação do monarca ‘um entre
tantos’”47. Deixada aos próprios recursos, a democracia só pode degenerar na “tirania

46
Esse duplo isolacionismo não passa despercebido ao próprio Sergio Buarque, que lamenta o
desconhecimento da literatura hispano-americana já em seu texto sobre Santos Chocano (EL, I, p. 54), e
comenta brevemente o divórcio cultural com Portugal após a independência no prefácio a Suspiros
poéticos e saudades (em LP).
47
Ariel, cit., p. 61. Os trechos citados em citação curta são vertidos para o português, para conveniência
de interpolações e paráfrases.
45

jacobina” e na “hostilidade rancorosa e implacável contra tudo que é belo”; mesmo


assim, ela pode ser a melhor forma de governo, desde que tutelada por um mandarinato
de letrados 48 . Esse é mais ou menos o “programa” de Ariel: à plateia dos jovens
ouvintes de Próspero é conferida a missão civilizadora de criar obras de valor e educar
o povo, que afinal não seria irremediavelmente bruto, apenas precisando aprender a
distinguir entre o que é bom e superior e o que não tem valor:

Para mostrar ahora cómo ambas enseñanzas universales de la ciencia pueden traducirse
en hechos, conciliándose, en la organización y en el espíritu de la sociedad, basta insistir
en la concepción de una democracia noble, justa; de una democracia dirigida por la
noción y el sentimiento de las verdaderas superioridades humanas; de una democracia
en la cual la supremacía de la inteligencia y la virtud, únicos límites para la equivalencia
meritoria de los hombres, ó reciba su autoridad y su prestigio de la libertad y descienda
sobre las multitudes en la efusión bienhechora del amor.49
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Apesar desse ceticismo, Ariel não chega a propor uma negação frontal da
modernidade e da democracia, mas propõe a criação, no âmbito da cultura, e
especificamente da cultura letrada e literária, uma estratégia de mediação capaz de
conciliar a nova realidade material com a preservação das singularidades das culturas.
Nesse sentido, é como se a cultura anglo-saxã, especialmente sua variante americana,
fosse um extrato sublimado dos motores da modernidade (com o pragmatismo
utilitário, o culto ao trabalho e a coincidência entre valor econômico e valor cultural
que lhe são atribuídos), sem nada de singular a oferecer além da tração que conduz ao
destino moderno. Uma resposta moderadora e humanística a esse ideal deveria ser
formulada pelas culturas latinas; portanto, seria preciso que essas soubessem se
prevenir contra a total descaracterização pelo “calibanismo”. Uma opção,
naturalmente, tentadora, uma vez que o progresso material é praticamente uma
condição de sobrevivência no novo mundo que apresenta como destino inevitável; daí

48
“Toda igualdad de condiciones es en el orden de las sociedades, como toda homogeneidad en el de la
Naturaleza, un equilibrio inestable. Desde el momento en que haya realizado la democracia su obra de
negación con allanamiento de las superioridades injustas, la igualdad conquistada no puede significar
para ella sino un punto de partida. Resta la afirmación. Y lo afirmativo de la democracia y su gloria
consistirán en suscitar, por eficaces estímulos, en su seno, la revelación y el dominio de las verdaderas
superioridades humanas.” (Ibid., p. 57)
49
Ariel, cit., p. 68.
46

o sentimento de urgência que anima a palestra de Próspero. Essa tentação, entretanto,


é ilusória, porque a imitação de estilos de conduta e pensamento estrangeiros não surte
as mesmas consequências verificadas em seu nascedouro. Sua consequência real, nos
contextos periféricos, seria a simples descaracterização da cultura local a troco de
parcos e transitórios melhoramentos materiais. Essa pequena teoria da modernização
se apresenta com especial clareza e concisão num trecho que, vertido em português
com poucas modificações, poderia passar por um excerto de Raízes do Brasil:

Comprendo bien que se aspire a rectificar, por la educación perseverante, aquellos trazos
del carácter de una sociedad humana que necesiten concordar con nuevas exigencias de
la civilización y nuevas oportunidades de la vida, equilibrando así, por medio de una
influencia innovadora, las fuerzas de la herencia y la costumbre – Pero no veo la gloria,
ni en el propósito de desnaturalizar el carácter de los pueblos – su genio personal – para
imponerles la identificación con un modelo extraño al que ellos sacrifiquen la
originalidad irreemplazable de su espíritu; ni en la creencia ingenua de que eso pueda
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obtenerse alguna vez por procedimientos artificiales e improvisados de imitación. – Ese


irreflexivo traslado de lo que es natural y espontaneo en una sociedad al seno de otra,
donde no tenga raíces ni en la naturaleza ni en la historia, equivalía para Michelet a la
tentativa de incorporar, por simple agregación, una cosa muerta a un organismo vivo. En
sociabilidad, como en literatura, como en arte, la imitación inconsulta no hará nunca sino
deformar las líneas del modelo. El engaño de los que piensan haber reproducido en lo
esencial el carácter de una colectividad humana, las fuerzas vivas de su espíritu, y, con
ellos, el secreto de sus triunfos y su prosperidad, reproduciendo exactamente el
mecanismo de sus instituciones y las formas exteriores de sus costumbres, hace pensar
en la ilusión de los principiantes candorosos que se imaginan haberse apoderado del
genio del maestro cuando han copiado las formas de su estilo o sus procedimientos de
composición.50

Leia-se, a título de demonstração, esta passagem do penúltimo capítulo de Raízes


do Brasil, bem característica do tom mais polêmico que o livro passa adotar nos dois
capítulos finais:

Os nossos teóricos e sábios falam, ainda hoje, a mesma linguagem de há cinquenta ou


cem anos, apenas com outras palavras. Assim os pensamentos e os conselhos que eles
nos servem visariam criar, ao termo de nosso [sic] evolução, um quadro social
milagrosamente destacado de nossas tradições portuguesas e mestiças. O prestígio
moderno e provavelmente efêmero das superstições liberais e protestantes parece-lhes
definitivo, eterno, indiscutível e universal; elas valem como paradigma para julgarem de
nosso atraso ou de nosso progresso. Muitos desses pedagogos da prosperidade são do

50
Ariel, cit., p. 79.
47

tipo que há mais de trinta anos denunciava Georges Sorel em sua terra: “Nas discussões
atuais – dizia o autor das Reflexões sobre a violência – toma-se por base o que produz
um país cuja prosperidade impressiona toda gente – a Inglaterra, a Alemanha, os Estados
Unidos – e descreve-se um dos aspectos da vida desses países-modelos. O talento do
publicista consiste em fazer penetrar no espírito do leitor a ideia de que os costumes ou
instituições que exalta têm um papel preponderante na prosperidade dessas nações: é
claro que nenhuma demonstração absoluta será possível sobre esse ponto. [citação
terminada sem aspas de conclusão]51

Esse trecho, por seu turno, já encontra um antecedente espantosamente similar


no texto de 1920. Note-se, de passagem, que, em “seu” pequeno Ariel, Sergio
macaqueia quase ponto por ponto as observações de Rodó sobre o perigo da “conquista
moral” da América Latina pelos EUA52. Reproduz-se abaixo uma montagem de trechos
condensados do texto de Sergio Buarque:

O utilitarismo yankee não se coaduna absolutamente com a índole do povo brasileiro


[...]. A sua introdução entre nós levar-nos-ia, naturalmente, a veredas diversas das que
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dirigiam os norte-americanos. É uma ilusão crer-se que a adoção dele dar-nos-ia o vigor
e a atividade naturais dos yankees. Só o desenvolvimento das qualidades naturais de um
povo pode torná-lo próspero e feliz. [...] Ora, não há quem deixe de admirar o
extraordinário poder de iniciativa, a considerável atividade física, a incomparável força
de organização que caracterizam o povo norte-americano. [...] Caso a civilização yankee
fosse aplicável a nosso país, o seu substractum, o que torna grandiosa sua pátria, nunca
aportaria nas plagas brasileiras, porquanto a índole de um povo não se modifica tão
facilmente à simples ação de agentes externos. [...] Quando muito seguiríamos a regra
geral importando apenas as exterioridades que ela possui [...].53

Dois dos motivos da rejeição do Sergio arielista à civilização yankee serão,


porém, relativizados, ou até revertidos, em Raízes do Brasil. O aberto pessimismo
racial do texto de 1920, que exibe um tipo de racismo que parece superado na obra
posterior de Sergio (lemos a certa altura que do “conúbio entre indivíduos de raças
opostas, sai, na melhor das hipóteses, o albino”, ideia que provavelmente está implícita
na caracterização da civilização brasileira, adiante, como “doentia e desidiosa”54) dará
lugar, no trecho supracitado de Raízes, a uma visão mais benevolente do caráter
“mestiço” de nossas tradições, mostrando, como em muitos outros trechos, a
importância da recepção do pensamento de Gilberto Freyre para o livro. Mais

51
RB, p. 127-8.
52
Cf. Ariel, cit., p. 77-8.
53
Ariel, EL, I, p. 44-5.
54
Ariel, EL, I, p. 44,45.
48

importante para o argumento de Raízes é percepção da aversão dos povos latinos ao


trabalho, que em Raízes já não admite o tom resignado do texto de juventude, onde
lemos que “[n]ão possuímos [...] a disposição a certos trabalhos, de modo tão
acentuado, como os habitantes das terras frias”55. A observação ecoa uma passagem do
Ariel de Rodó que apresenta uma visão negativa, ou pelo menos altamente relativizada,
da ética do trabalho, associada à civilização anglo-saxã, que não saberia apreciar a
nobreza do ócio, que possibilita uma percepção mais profunda e refinada do mundo,
permitindo, como fora o caso dos gregos, o cultivo de uma vida harmônica que
abarcasse, na medida do possível, a experiência da totalidade das possibilidades
humanas:
Cuando cierto falsísimo y vulgarizado concepto de la educación, que la imagina
subordinada exclusivamente al fin utilitario, se empeña en mutilar, por medio de ese
utilitarismo y de una especialización prematura, la integridad natural de los espíritus, y
anhela proscribir de la enseñanza todo elemento desinteresado e ideal, no repara
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suficientemente en el peligro de preparar para el porvenir espíritus estrechos que,


incapaces de considerar más que el único de la realidad con que estén inmediatamente
en contacto, vivirán separados por helados desiertos de los espíritus que, dentro de la
misma sociedad, se hayan adherido a otras manifestaciones de la vida.56

Pouco depois, apresenta-se como antídoto para o estreito utilitarismo cultivado


no mundo anglo-saxão, que “mutila” o espírito humano de inúmeras potências em prol
da unilateralidade do trabalho57, uma pedagogia pautada por um ideal neoclássico de
educação desinteressada, gestada em ócio criativo, esse especialmente afinado com as
culturas hispânicas:

Así como la deformidad y el empequeñecimiento son, en el alma de los individuos, el


resultado de un exclusivo objeto impuesto a la acción y un solo modo de cultura, la
falsedad de lo artificial vuelve efímera la gloria de las sociedades que han sacrificado el
libre desarrollo de su sensibilidad y su pensamiento, ya a la actividad mercantil, como
en Fenicia; ya a la guerra, como en Esparta; ya al misticismo, como en el terror del
milenario; ya a la vida de sociedad y de salón, como en la Francia del siglo XVIII. – Y
preservándoos contra toda mutilación de vuestra naturaleza moral; aspirando a la

55
Ibid., p. 44.
56
Ariel, cit., p. 26-7.
57
“Pero por encima de los afectos que hayan de vincularos individualmente a distintas aplicaciones y
distintos modos de la vida, debe velar, en lo íntimo de vuestra alma, la conciencia de la unidad
fundamental de nuestra naturaleza, que exige que cada individuo humano sea, ante todo y sobre toda
otra cosa, un ejemplar no mutilado de la humanidad, en el que ninguna noble facultad del espíritu quede
obliterada y ningún alto interés de todos pierda su virtud comunicativa.”, Ibid., p. 27.
49

armoniosa expansión de vuestro ser en todo noble sentido; pensad al mismo tiempo en
que la más fácil y frecuente de las mutilaciones es, en el carácter actual de las sociedades
humanas, la que obliga al alma a privarse de ese género de vida interior, donde tienen
su ambiente propio todas las cosas delicadas y nobles que, a la intemperie de la realidad,
quema el aliento de la pasión impura y el interés utilitario proscribe: ¡la vida de que son
parte la meditación desinteresada, la contemplación ideal, el ocio antiguo, la
impenetrable estancia de mi cuento!58

Rodó parece aliar aqui certa nostalgia do mundo clássico, onde a divisão do
trabalho ainda não implicara uma especialização que impossibilitava essa experiência
da vida como totalidade, remontante ao humanismo clássico alemão – particularmente
exemplar dessa ideia é a Carta VI de Schiller sobre A educação estética do homem -
ao o tradicional menosprezo dos povos hispânicos pelo trabalho, especialmente pelo
trabalho manual59. O tema não é estranho aos leitores de Raízes do Brasil, pois está no
centro do segundo capítulo, “Trabalho & Aventura”. Já no capítulo de abertura,
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“Fronteiras da Europa”, lê-se que, entre “a gente hispânica”, à qual permaneciam


estranhas a “moderna religião do trabalho e o culto à atividade utilitária” e predominava
ainda, “largamente”, o “ponto de vista da antiguidade clássica”, ou seja, “a concepção
antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em
si, menos valiosa que a contemplação e o amor”60. Esse fato, porém, não é apresentado
como um valor enobrecedor e positivo em si, mas com distanciamento irônico, ainda
que levemente simpático. Não se pode dizer que o que se lê em Raízes se resuma àquela
quase maquinal reprodução da cartilha neoclássica de Ariel encontrada nos textos de
juventude. Essa reversão do valor atribuído ao trabalho, que não é óbvia mas está no
núcleo da análise da cordialidade como forma de vida e pensamento, está ligada a
influxos do pensamento alemão, especialmente hegeliano, que Sergio parece ter
assimilado em seu pensamento somente a partir de sua temporada em Berlim em 1929-
30 – esse ponto, que será retomado em detalhe maior na discussão de Raízes, está ligado
a um aspecto central do pensamento alemão sobre a formação cultural, a saber, a
convicção de que as formas só ganham desenvolvimento consequente e atualização de

58
Ariel, cit., p. 36-7.
59
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1989, p.
60
RB, p. 13.
50

seu potencial mediante o trabalho. Nas palavras de Hegel, “o trabalho forma”61 (ênfase
no original). A aceitação da ausência de aptidão para o trabalho não pode ser, portanto,
uma bandeira de preservação de singularidades culturais, pois, sem trabalho, não há
cultura.
Vale sublinhar aqui, não por ânimo polêmico, mas para reafirmar a importância
e a significação do arielismo na trajetória intelectual de Sergio Buarque, que a presente
interpretação se opõe àquele que é talvez o mais importante estudo de fôlego sobre a
obra crítica de juventude de Sergio Buarque: Dois letrados e o Brasil Nação, de
Antonio Arnoni Prado. O argumento principal da análise de Arnoni sobre a primeira
fase crítica de Sergio Buarque é que, em contraste com a crítica europeizante de viés
lusófilo praticada por Oliveira Lima, que postulava a valorização das raízes
portuguesas como garantia contra a intrusão de elementos locais e populares, Sergio já
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operaria, desde o princípio, a partir de um imperativo de investigação das


manifestações culturais locais e afastamento de uma herança estéril62. É estranho que
Arnoni, provavelmente o maior conhecedor da obra crítica de Sergio Buarque e seu
mais dedicado comentador, seja levado a uma tese tão escassamente amparada pelo
material ao qual concerne. É verdade que Portugal era desde o princípio objeto de
ambivalência no pensamento de Sergio Buarque, mas ele só desenvolverá uma postura
inequivocamente crítica do legado cultural português no período decorrido entre as
duas primeiras edições de Raízes do Brasil. É preciso lembrar ainda, a esse respeito, o
caráter conservador e aristocratizante do “arielismo” adotado por Sergio. É
compreensível que um motivo literário ligado a um movimento que, apesar de
nostálgico do passado, se queria “modernista”, como eram as releituras do par Ariel-
Caliban por Darío e Rodó, pudesse ser indicativo, na América Espanhola de algum tipo
de vontade estética ligada a um impulso vagamente “progressista”, ainda que
claramente limitado por uma visão da cultura profundamente antipopular (lembre-se
do que Próspero tem a dizer sobre a democracia no livro de Rodó).

61
Fenomenologia do espírito, § 195, p. 150. A frase faz parte do famoso trecho sobre a dialética entre o
senhor e o escravo.
62
Dois letrados no Brasil nação, cit., p. 299-241.
51

No Brasil, entretanto, a recepção dessas ideias tinha como pano de fundo a


militância restauracionista de monarquistas como Eduardo Prado, autor da Ilusão
Americana, (livro aliás muito mais lúcido do que o Ariel, que propõe uma resistência
ao imperialismo americano em termos políticos, antes que culturais). O debate sobre a
alternativa entre os Estados Unidos e a Europa na orientação da política exterior
brasileira (e também como fontes do ideal de cultura) era já àquela altura relativamente
antigo e tinha ampla penetração nos círculos letrados do país. Pode-se dizer que ele
ganhou destaque pela primeira vez no Manifesto Republicano de 1870, que enumerava
entre as desvantagens do regime monárquico a falta de relações solidárias com os
demais países independentes da América, todos governados por regimes nominalmente
republicanos. O antiamericanismo dos monarquistas após 1889 se apresentava em parte
como reação ao estreitamento dos laços com os Estados Unidos, que eles identificavam,
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talvez corretamente, como uma piora nas condições do Estado Brasileiro de exercer
uma soberania relativa na geopolítica mundial. O triunfo definitivo da posição
americanista, com a chancela da dupla Rio Branco-Nabuco, extraída dos quadros
dirigentes da monarquia, a partir de 1905, aplacaria o grosso da oposição à nova
doutrina, que consistia em tentar convencer os Estados Unidos a fazer do Brasil seu
sócio minoritário no exercício da dominação na América do Sul. A partir daí, o “anti-
ianquismo” – cujo principal proponente no Itamaraty era Oliveira Lima, que de todo
modo nunca chegou a ascender ao primeiro escalão do ministério – se sustentava
sobretudo como uma posição estética, que não excluía uma apropriação do “arielismo”,
esse próprio, afinal, um movimento cuja pretensão era literária e pedagógica antes que
política. Note-se, aliás, que uma crítica do imperialismo americano à esquerda, com
implicações radicais na política doméstica, tal como aquela empreendida por Manuel
Bomfim em América latina: males de origem (1905), passa longe desse debate e de
sua aparição nos textos de Sergio Buarque. No caso dele, que se confessa monarquista
em artigos da primeira época, sem se ocupar de assuntos ostensivamente políticos, o
“arielismo” vinha dar verniz literário cosmopolita e passivelmente modernizante a
convicções políticas monarquistas. Esse alinhamento é perceptível com maior nitidez
no artigo “A quimera do monroísmo”, publicado pouco depois de outro, intitulado
“Viva o Imperador”, sobre D. Pedro II, e de outro sobre “A bandeira nacional”, no qual
52

a bandeira adotada com a mudança de regime em 1889 é criticada, e a imperial é


elogiada. Aqui, a influência americana é vista por um filtro político, mas a política se
resume à expressão de uma identidade nacional reificada em termos estéticos, na qual
a essência da nação teria sido contrariada pela República, que resultara na fabricação
de símbolos pátrios novos e antinaturais e em uma política exterior equivocada pelo
mesmo motivo. Pode-se discutir se isso equivale necessariamente a uma posição
política e culturalmente conservadora ou reacionária, mas é muito difícil defender,
diante do quadro mais amplo das circunstâncias que conformam sua recepção do
arielismo, que as simpatias monarquistas de Sergio pudessem coincidir com um juízo
negativo da herança portuguesa na cultura brasileira e com uma consequente busca por
uma emancipação cultural que a ela se opusesse.
Dito isto, seria imprudente reduzir a atração que as ideias de Rodó terão exercido
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sobre Sergio Buarque à sua inserção numa geopolítica literária: há um componente de


fundo, formal, que é coerente com os anseios de autenticidade e autonomia artística
manifestados no primeiro artigo sobre a “originalidade literária”. Com o movimento
que se articulava em torno de Ariel, à diferença daquilo que, na visão do jovem Sergio,
se dava na literatura brasileira, nossos vizinhos eram capazes de oferecer uns aos outros
o horizonte de uma cultura dotada de determinações próprias, livre, portanto, do
estigma da afetação inautêntica e da imitação mecânica. O tema, que não será
abandonado na fase madura iniciada com Raízes do Brasil, é quase uma obsessão
nesses primeiros artigos. Num artigo um pouco posterior, de orientação semelhante,
Sergio denuncia a nova voga do conto como “yanquismo em literatura” (!) e sugere
que a forma é expressão do modo de vida vazio e quantitativo da América moderna63.
Em “A decadência do romance”, o motivo arielista se manifesta no final, retomando a
comparação entre os yankees e Caliban, aplicando-o algo mecanicamente64 à crítica
literária: “[é] necessário [...] impedir entre nós a queda do romance, que fez a glória da
literatura do século passado. É certo que Caliban está lá em cima a berrar com todo o

63
“A decadência do romance, EL I, p. 105-107. Artigo originalmente publicado em A cigarra, VII, 156,
15 mar 1921.
64
É notável que, apesar da erudição impressionante do jovem ensaísta, o nível intelectual de seus
comentários cai sensivelmente sempre que ele aborda diretamente o motivo arielista, mesmo em
comparação com outros textos do mesmo período.
53

vigor o seu I must eat my dinner. Não sacrifiquemos porém a essa fome selvagem um
dos alimentos de que tanto carece o nosso espírito! Não, não atiremos pérolas aos
porcos!”65
Em “Ariel”, já na abertura se define a imitação como o principal traço
distinguível da cultura local, ou melhor, explicitando a problemática da formação que
abrange a leitura do Ariel de Rodó, dessa “sociedade em formação que se chama: o
povo brasileiro”66. O principal problema não está tanto, como é o caso para Rodó, na
ameaça substantiva da cultura yankee, mas na própria suscetibilidade, especificamente
brasileira, à sedução dos modelos literários, artísticos e sociais importados. Mesmo
esses poderiam ser incorporados, desde que a leitura fosse feita de forma consequente
e se traduzisse num componente que acrescentasse algo de novo, como se pode
verificar no artigo sobre o escritor colombiano Vargas Vila. Nisso, Sergio demonstra
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em sua reflexão um refinamento incomum para um autor tão jovem e ainda estreante
no debate público. Note-se, porém, que no texto “A decadência do romance”, há pouco
mencionado, esse raciocínio está ausente e parece descartado pelas opiniões ali
exprimidas, num de muitos casos onde o crítico mostra certa instabilidade, ou até
volubilidade, nos seus pontos de vista.
A análise que Sergio faz de Vargas Vila tem por mote a tese sustentada por
Hippolyte Taine de que o humour da tradição literária inglesa seria incompatível com
a “índole da raça latina” 67 . A obra de Vargas Vila provaria, porém, o erro desse
conceito. Não seria ele um simples imitador, pois exibiria uma “originalidade acima do
vulgar”68. O cultivo de uma forma importada, se realizado de forma original, seria então
admissível e mesmo elogiável. Essa ideia, já ressaltada no princípio do artigo, é
repetida quase que à exaustão, o que não é surpreendente, considerando o quadro mais
amplo dessa primeira fase de sua produção crítica, pautada por uma visão pouco
matizada do problema da originalidade. Mas ela adquire aqui uma ênfase que revela
em Vargas Vila mais um pretexto para a apresentação de uma tese e de um programa
do que um objeto de análise: Vargas Vila “conseguiu um lugar de destaque fora do

65
“A decadência do romance”, cit., p. 106-7.
66
Ariel, EL, I, p. 42.
67
Vargas Vila, EL, I, p. 47.
68
Loc. cit.
54

torvelinho dos imitadores de toda casta”; desenvolveu numa temporada de exílio


político em Nova York “sua qualidade característica, a originalidade”; se ele aparenta
certos acentos europeus em sua escrita, não é por servil devoção ao modelo estrangeiro,
mas por um “amor à liberdade” que nada mais é do que “hipertrofia de sua natureza de
americano”. Sua virtude está em conjugar o local e o universal de forma autêntica e
criadora. “Não deixou”, porém, “de ser ridicularizado, como o são todos os originais”.
Mesmo sua tendência ao exagero é louvada por participar da “feição tropical da sua
prosa”69 – essa própria, implicitamente, mais uma confirmação de seu status de escritor
original latino. Vargas Vila poderia ser tomado, quem sabe, como um modelo a ser
estudado no Brasil, onde a “feição tropical” estava em falta, como já se viu em
“Originalidade literária”.
No penúltimo dos textos indicados como pertencentes ao bloco “arielista”,
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intitulado “O homem-máquina”, fica patente como o arielismo, ao menos na forma


como Sergio o havia incorporado nesse momento, é uma tendência esteticamente
conservadora e nitidamente contraditória com o modernismo. Aqui, John Ruskin e
Ernest Renan são alistados como autoridades concordantes em lamentar a
transformação da vida pela urbanização e mecanização generalizadas, enquanto Sergio
é levado a uma afirmação da qual em poucos meses provavelmente se arrependeria:
fazendo coincidir, automação e utilitarismo com a cultura “anglo saxã” (numa
escandalosa confusão entre causa e efeito), ele ridiculariza o manifesto do “chefe de
uma dessas efêmeras escolas artísticas como o futurismo, o cubismo e quejandas,
chegou a dizer em seu manifesto, há cinco anos: ‘Ao adampetonista, bastará para ser
moderno, viver em uma cidade e possuir ao menos uma bicicleta ou uma máquina a
benzina para acender o cigarro’”70. O que Sergio talvez não soubesse a essa altura é
que o autor do manifesto “adampetonista”, ele próprio pintor cubista, Ardengo Soffici
(que assinara o documento sob o pseudônimo de “elétrons rotativos”), o concebera
como uma paródia sarcástica do futurismo marinettista71. Em setembro desse mesmo

69
“Vargas Vila”, EL, I, p, 48-52.
70
“O homem-máquina”, In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio Buarque de
Holanda: Perspectivas, cit., p. 561.
71
VINALL, Shirley. Marinetti, Soffici, and French Literature. In: International futurism and literature.
Berlin; Nova York: Walter de Gruyter, 2000, p. 20-22.
55

ano, Sergio estaria citando de forma entusiasmada um dos mais proeminentes


pensadores ligados ao futurismo, Giovanni Papini72, e, em setembro do ano seguinte,
junto a este, também o próprio Soffici 73 , que será lembrado como fundador do
“adampetonismo”, sem qualquer indicação de ter entendido tratar-se de um movimento
criado com intenção humorística 74 . Mais tarde, em ensaio sobre Manuel Bandeira
publicado em fevereiro de 1922, o nome de Soffici é acompanhado do aposto “o
homem mais inteligente da Itália” 75 (!). Sobre “O homem-máquina”, texto de resto
pouco interessante, vale notar que a parte onde o “utilitarismo” é apresentado como
traço anglo-saxão e especificamente protestante cita o crítico Pompeyo Gener para
salientar que, antes da Reforma, a Inglaterra era “por todos chamada ‘the merry
England’”, e Stewart Chamberlain lembra de um viajante do século XV que “atribuía
dedicarem-se os ingleses, mais que os outros povos, aos prazeres intelectuais, a uma
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vida menos intensa do que a deles.”76 Esse apontamento é interessante porque antecipa
a discussão do segundo capítulo de Raízes do Brasil, “Trabalho & Aventura”, onde os
ingleses do século XVI serão incluídos, com alguma audácia, entre os povos
aventureiros, e não entre os trabalhadores. Leia-se parte da passagem depois onde o
argumento aparece, escrita quinze anos depois, para perceber a persistência que essa
ideia terá tido entre os interesses de Sergio Buarque:

O surto industrial poderoso que atingiu a nação britânica no decurso do século passado,
criou uma ideia que está longe de corresponder à realidade, com reação ao povo inglês,
e uma ideia de que os antigos não partilhavam. A verdade é que o inglês típico não é
industrioso, nem possui em grau extremo o senso da economia, característico de seus
vizinhos continentais mais próximos. Tende ao contrário para a indolência e para a
prodigalidade e para a “boa vida”. Era essa a opinião corrente, quase unânime, dos
estrangeiros que visitavam a Grã-Bretanha antes da era vitoriana.77

Para terminar a resenha que se vem fazendo do Ariel e de sua recepção na obra
de Sergio Buarque, será preciso mencionar passagens do livro de Rodó cuja recepção
só aparecerá com maior nitidez em Raízes do Brasil, que poderiam ser deixadas para a

72
“Os poetas e a felicidade”, EL, I, p. 91.
73
“Plágios e plagiários”, EL, I, p. 123.
74
“O gênio do século”, EL, I, p. 111.
75
“Manuel Bandeira”, EL, I, p. 141. Texto originalmente publicado na revista Fon-Fon, 18 fev 1922.
76
“O homem-máquina”, cit., p. 561.
77
RB, p. 22-23.
56

discussão especificamente ligada ao livro, mas que, por se aplicarem, ao menos


implicitamente, aos textos dessa fase inicial, ou pelo menos a essa fase do
desenvolvimento do pensamento de Sergio, não farão mal em aparecer já, de modo a
virar a página dessa leitura que parece ter sido de grande relevância para sua reflexão.
Não custa lembrar como o “arielismo” não será retomado abertamente na fase
posterior, e que sua importância em Raízes é grande, mas inconspícua. É difícil falar
com certeza e precisão sobre isso, pois Raízes, ao mesmo tempo em que tem em Ariel
um de suas matrizes, tem com o livro de Rodó uma matriz comum, muito mais rica e
múltipla em referências e desdobramentos: a reflexão alemã em torno do ideal de
Bildung, bem como suas consequências no pensamento histórico e filosófico de todo o
século XIX ocidental, com especial intensidade, como é natural, na Alemanha.
O primeiro elemento a ser mencionado aqui diz respeito à compreensão de
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cultura nacional e da ideia de Volksgeist, tal como ela é traduzida no livro de Rodó.
Essa assume, como já se notou anteriormente, contornos geográficos mais alargados
do que a “nação” em sentido político, referindo os povos latino-americanos a um ideal
mais amplo de “latinidade”, que no entanto inclui uma sub-comunidade de língua
espanhola cuja unidade cultural cumpriria cultivar. Independentemente da abrangência
da ideia de cultura que se pretende avançar, o que importa destacar é a noção de que as
expressões espirituais dos indivíduos são abarcadas por uma comunidade mais ampla,
da qual ajudam a compor uma unidade transcendente, que por sua vez seria um dos
diversos elementos do patrimônio cultural da humanidade. Essa ideia, reminiscente,
provavelmente por vias indiretas, da filosofia da História de Herder, aparece formulada
numa passagem específica:

Sólo somos capaces de progreso en cuanto lo somos de adaptar nuestros actos a


condiciones cada vez más distantes de nosotros, en el espacio y en el tiempo. La
seguridad de nuestra intervención en una obra que haya de sobrevivirnos, fructificando
en los beneficios del futuro, realza nuestra dignidad humana, haciéndonos triunfar de las
limitaciones de nuestra naturaleza. Si, por desdicha, la humanidad hubiera de desesperar
definitivamente de la inmortalidad de la conciencia individual, el sentimiento más
religioso con que podría sustituirla sería el que nace de pensar que, aun después de
disuelta nuestra alma en el seno de las cosas, persistiría en la herencia que se transmiten
las generaciones humanas lo mejor de lo que ella ha sentido y ha soñado, su esencia más
íntima y más pura, al modo como el rayo lumínico de la estrella extinguida persiste en
57

lo infinito y desciende a acariciarnos con su melancólica luz.78

Esse passo do Ariel, que de resto não parece cumprir papel especialmente
importante nesse curto ensaio repleto de torneios retóricos de espírito semelhante, não
seria de maior importância, se não se revelasse, com bastante probabilidade, um
modelo para algumas das palavras enigmáticas, ainda que bastante calculadas, do
parágrafo final de Raízes do Brasil.

Poderemos ensaiar a organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de


virtude provada, mas há de restar um mundo de essências mais íntimas que, esse,
permanecerá sempre intacto, irredutível e desdenhoso das invenções humanas. Querer
ignorar esse mundo será renunciar a nosso próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do
refluxo, por um compasso mecânico e uma harmonia falsa.79
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O trecho de Ariel vai no sentido de motivar a juventude latina ao cultivo de sua


cultura com olhos para o futuro, para que a sua “essência mais íntima e mais pura”
possa se transmitir ao infinito, “sobrevivendo” como marca na trajetória histórica das
culturas. Na argumentação de Rodó, é o próprio Ariel, personificação da
perfectibilidade da espécie humana, dotada de uma razão harmônica e melodiosa, que
imporá o signo de seu ideal redentor sobre os trabalhos dos homens mortais, conferindo
assim um sentido positivo e teleológico ao curso temporal das expressões das essências
individuais. Raízes do Brasil não parece alimentar a mesma convicção triunfalista. Os
“esquemas sábios e de virtude provada” a que a passagem citada se referem apontam
sobretudo para o liberalismo (especificamente referido no mesmo parágrafo como
“superfetação” “destruidora de formas” no contexto brasileiro), e negam o “mundo de
essências mais íntimas”, que no entanto persiste de modo a contrariar as tentativas
racionais de “ensaiar a organização de nossa desordem”. A “essência mais íntima” não
coincide, portanto, com o ideal de Ariel, mas há como que uma adaptação do topos do
trecho de Ariel: o motivo recorrente é o jogo entre as produções espirituais que visam
à edificação de uma cultura e de uma sociedade organizadas segundo ideias
sistemáticas e a resistência imposta pela realidade do presente, resistência essa sempre

78
Ariel, cit., p. 120.
79
RB, p. 161.
58

atribuída a certa organicidade que o pensamento abstrato não consegue conquistar


inteiramente. Em Ariel, esse jogo é apresentado de maneira não contraditória, em tom
mais propagandístico. Em Raízes há uma contradição viciosa entre os dois termos, na
medida em que os “esquemas” de perfectibilidade contrariam a “essência” sem
engendrar um ciclo virtuoso. O conteúdo dessa diferença entre Raízes e Ariel se
inscreve na problemática da formação malsucedida ou deformação, que será discutido
num momento posterior; o que importa no momento é identificar a provável
procedência do motivo.
O segundo elemento restante da presente discussão do universo intelectual
arielista apropriado por Sergio se conecta diretamente com a análise da conformação
intelectual do “homem cordial” delineada no capítulo de mesmo título, o quinto de
Raízes do Brasil. Trata-se daquilo que, na discussão da cultura norte-americana, Rodó
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nomeia o “sensacionismo” de sua mentalidade, que os condena a uma “vida febril”80.


Rodó insere o “sensacionismo” na discussão da suposta incapacidade da civilização
norte-americana em apreender “a idealidade da beleza” e sua consequente relação de
incompreensão e fetichismo com a “arte”. “Sensacionismo” quer dizer, aqui, uma
existência cujo horizonte intelectual está sempre preso à dimensão superficial dos
afetos e das reações positivas e negativas do psiquismo individual a elas. Note-se, de
passagem, que há uma observação semelhante, não sobre a cultura norte-americana,
mas sobre o romantismo, no Romantismo político de Carl Schmitt, para quem as
expressões da criatividade romântica são sempre paráfrases mais ou menos elaboradas
da enunciação de um afeto positiva ou negativamente recebido81. Também é possível
distinguir, tomando o conjunto das referências mais destacadas nos argumentos da
primeira edição de Raízes do Brasil, indicações análogas no Eros cosmogônico de
Ludwig Klages (que compreende o Eros como o componente sensível, estético,
orgânico, da psicologia humana, por oposição ao Ethos, o “espírito” racional,
sistematizador e criador de abstrações 82 ), no ensaio de Max Weber sobre a Ética
protestante e o “espírito” do capitalismo (onde se lê que o ascetismo calvinista procura

80
Ariel, cit., p. 95.
81
SCHMITT, Carl. Political romanticism. Cambridge, MA: MIT Press, 1986, p. 100-1.
82
KLAGES, Ludwig. De l’Éros cosmogonique. Paris: L’Harmattan, 2013, p.
59

escudar a alma do fiel dos “afetos” terrenos por meio de um ideal de “constância”
espiritual, uma personalidade no sentido forte, capaz de subjugar os impulsos e
estímulos mundanos83), na Decadência do Ocidente de Oswald Spengler84, e mesmo à
Fenomenologia do espírito de Hegel, onde as figuras da consciência “superam”,
“suprassumem” ou “abolem” umas às outras, progressivamente, a partir do estágio
elementar e imediato da “certeza sensível”, passando pela “percepção”, pelo
“entendimento” pelas fases diversas da “razão”, chegando finalmente ao “espírito”, em
graus crescentes de complexificação dialética do vivido na experiência. Como garantir,
então, que Raízes de fato aproveita o molde de Ariel, que de resto não dá grande
destaque ao dito “sensacionismo” no interior de sua economia argumentativa? Não é
possível responder com total segurança, na ausência de provas documentais positivas,
mas o que leva a uma suspeita razoavelmente fundamentada é a relação que o
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“sensacionismo” tem com a geografia do continente americano: ele é um traço da


civilização yankee do qual os latinos estariam, felizmente, livres, dado que sua visão
das coisas é menos estreita e utilitária. Em Raízes do Brasil se dá uma aproximação
semelhante, mas de forma oblíqua, e de modo a mudar os termos e posições relativas
da situação, tal como ela se apresentava no possível modelo.
São numerosas e importantes, na estrutura argumentativa do livro, as passagens
de Raízes do Brasil que vão no sentido de acompanhar a observação sobre o
“sensaciosnismo” e, de modo mais geral, o caráter superficial conformação anímica
dos americanos. Ocorre que, no livro de Sergio, esse traço está aplicado a todo o
continente e, como se pode perceber à medida que vai o “homem cordial” vai
assumindo uma figura mais nítida, ele é especialmente acentuado no Brasil e
desempenha um papel de destaque em vários aspectos da vida nacional. Centrando a
análise no que há de essencial, lembre-se, por ora, que a cordialidade é o contrário da
polidez, que é a “mímica de liberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem
cordial’”, ou seja, a “forma natural e viva que se converteu em fórmula”, uma
“máscara” que permite ao indivíduo a “supremacia ante o social”. Já no homem cordial,

83
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004, p. 108.
84
Conforme passagem citada em nota à página 106 de RB.
60

“a vida em sociedade é [...] uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver
consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência.
Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo [...] à parcela social,
periférica, que no brasileiro – como bom americano – tende a ser a que mais importa85”.
É preciso ressaltar que, em Raízes do Brasil, como de resto já se lembrou, há elementos
remanescentes de um projeto de certa “teoria da América”, e que o adjetivo
“americano” se refere à totalidade dos dois continentes do Hemisfério Ocidental, sem
prejuízo de qualquer parte, seja do Brasil, da hispanoamérica, ou dos países de língua
inglesa ao Norte, como se pode verificar na curiosa observação, feita no último
capítulo, de que “[n]a atividade americana o sangue é quimicamente reduzido pelos
nervos”86, extraída de um ensaio crítico de D. H. Lawrence sobre A letra escarlate de
Nathaniel Hawthorne (em livro cuja ascendência sobre a argumentação de Raízes será
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mais detalhadamente analisada na última seção do capítulo III).


Seria então o caso de afirmar que Sergio Buarque atribui ao continente inteiro
aquilo que em Ariel significa uma estreiteza de horizontes ligada a motivações
utilitárias e de lucro? Nada estaria mais longe do que se encontra em Raízes. A
estreiteza dos horizontes do pensamento, sua restrição à “sensação”, é ali tida por mais
acirrada no Brasil do que nos Estados Unidos. Ocorre que, na ausência daquilo que,
nos países de maioria protestante, garante uma disposição para o trabalho persistente,
que, como se lê na clássica análise de Weber, é um veículo da modalidade calvinista
do ascetismo, no Brasil, o predomínio dos afetos não chega nem mesmo a permitir uma
“racionalização” tendente ao acúmulo de riquezas, mas somente a uma existência
voltada para o sensorial imediato – noutras palavras, numa subjetividade puramente
estética – lembre-se, de passagem, o quanto Raízes se aproxima aqui da definição de
Carl Schmitt de romantismo, tema ao qual se retornará adiante. Já a Ética protestante
de Max Weber é estrategicamente citada em seguida à observação de que “[s]omos
notoriamente avessos às atividades morosas e monótonas – desde a criação estética até
as artes servis – em que o sujeito se submete deliberadamente a um mundo distinto

85
RB, p. 102-3.
86
RB, p. 137.
61

dele: a personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema


exigente e disciplinador”87.
Para a argumentação levada adiante no capítulo sobre o “homem cordial”, o
brasileiro está num patamar mais primário: os elementos da vida psíquica se organizam,
invariavelmente, de modo a reduzir toda experiência a sua dimensão afetiva e
superficial, impedindo o desenvolvimento de uma verdadeira interiorização e
elaboração racional do que interpela os sentidos. Desse modo, para Raízes, no
português falado no Brasil, o diminutivo “inho”, cujo uso generalizado seria motivo de
riso entre os portugueses, funciona como uma maneira de tornar os objetos a que se
aplica “mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração” 88 . Da
mesma maneira, segundo se lê numa das passagens mais importantes do livro, na vida
religiosa brasileira, as imagens e artefatos do culto são tratados com intimidade física89.
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Não haveria no Brasil um catolicismo espiritual e racional, mas uma “religiosidade de


superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias, do que ao colorido e à
pompa exterior; quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa
incompreensão de toda verdadeira espiritualidade”, à qual não se poderia esperar
corresponder “qual quer moral social poderosa”90. Nem mesmo as personalidades de
inclinação livresca escapam dessa lógica, pois “as maiores ideias não nos são acessíveis
sem uma intervenção assídua do corpóreo e do sensível”, observação confirmada pelo
impressionante relato de como d. Pedro II apreciava os livros não só pelo seu conteúdo
espiritual, mas também pelo cheiro, pelo tato e até pelo sabor experimentado ao
lamberem-se os dedos na hora de virar as páginas 91 . Mesmo em sua dimensão
puramente intelectual, expressões da cultura, como teorias políticas, deveriam
obedecer esse “sensacionismo”, exemplo do qual é o prestígio daqueles sistemas
teóricos extremamente rígidos que procuram neutralizar a dificuldade do real,
permitindo o “repouso da imaginação”: “[t]udo quanto dispense um trabalho mental
contínuo e fatigante, as ideias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie

87
RB, p.114.
88
RB, p. 104.
89
RB, p. 105-6.
90
RB, p. 108
91
RB, p. 127.
62

de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria.”92


Assim melhor se compreende o prestígio no Brasil, e também no México, da doutrina
política comteana. Seria possível continuar desfiando as implicações possíveis dessa
curta passagem de Ariel por ainda algumas páginas, pois esse, extraído ou não do livro
de Rodó, é um dos elementos nucleares da cordialidade.

***

Como o tema o será discutido em maior detalhe e com exclusividade em capítulo


posterior, parece mais oportuno passar a uma rápida resenha dos textos onde há um
trabalho mais intensivo de leitura de poesia nessa fase incipiente da obra de Sergio
Buarque. Essa se mostra nos dois ensaios mais ambiciosos da fase pré-modernista de
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Sergio Buarque ora discutida. O primeiro é intitulado “O Fausto”93 e trata – ou deveria


tratar – da tradução brasileira da tragédia de Goethe por Gustavo Barroso. O outro é
“Os poetas e a felicidade”94, série de textos alegadamente dedicada ao problema da
felicidade na história da poesia, mas que se ocupa, na verdade, das visões poéticas da
morte. Neste texto, salvo engano, aparece a primeira referência de Sergio a um
pensador ligado ao “futurismo” ao qual aderirá em breve: Giovanni Papini.
O ensaio sobre a tradução do Fausto é na uma miscelânea de apontamentos
heteróclitos. Sergio começa por discutir a tarefa do tradutor na parte I. Na parte II, o
texto passa d num pequeno apanhado histórico da lenda do Dr. Fausto e sua trajetória
literária e editorial na Europa até Goethe, terminando com uma longa citação da
tragédia de Cristopher Marlowe, seu mais famoso antecedente. Já a parte III parece
pretender lançar um comentário à personagem de Mefistófeles através da noção de
“busca pela felicidade”, em possível referência àquilo que as traduções portuguesas
costumam se referir como a “aspiração” [Streben] fáustica. Nessa seção, contudo, entra
também uma curiosa ênfase na suposta procedência “semítica” das expressões

92
RB, p. 118.
93
“O Fausto (A propósito de uma tradução)”, EL, I, p. 77-89. Série de quatro artigos publicada
originalmente em A Cigarra em 15 e 16 nov e 6 e 99 dez 1920.
94
“Os poetas e a felicidade”; “Os poetas e a felicidade – II” ; “Os poetas e a felicidade – III”, EL, I, p.
90-93; 93-98; 99-104. Textos originalmente publicados em A Cigarra, VII, 150,151 e 153, 15 dez 1920,
1 jan 1921 e 1 fev 1921.
63

artísticas negadoras do mundo e da vida, começando pelo La vida es sueño de Calderón


de la Barca – Sergio provavelmente terá escolhido a referência por saber tratar-se de
um dos poetas prediletos de Goethe – e continuando com textos bíblicos, São João
Crisóstomo e Dante, todos escritores dos “povos do meio dia” (ou seja, mediterrâneos,
de origem ao menos parcialmente “semítica”), que não conheceriam o “diabo
civilizado” do Norte (e de Goethe). A afinidade entre os “semitas” e o “pessimismo” é
colhida entre várias referências, mas parece textualmente extraída de Araripe Júnior,
que agora toma, na opinião de Sergio, o lugar de Silvio Romero como “[o] maior crítico
brasileiro, o único que se aproxima um pouco da longa sequência de grandes
pensadores que vai de Taine a René Dominic, passando por Sainte-Beuve, Brandes,
Gener, A Hamon, Farinelli e alguns outros”95. A investigação leva Sergio a remontar,
por meio de Arturo Farinelli, a origem desse pessimismo “semítico” até os hinos
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védicos indianos, acrescentando que eles seriam estranhos aos “primitivos povos
arianos”96. Só na quarta e última parte é que um breve trecho da tradução de Gustavo
Barroso será abordado, em comparação com outras para o português e para o francês.
A terceira seção, apesar de ser talvez a mais disparatada para o contexto de uma resenha
supostamente dedicada à tradução do Fausto por Barroso, é a mais interessante para a
presente análise.
Num plano meramente formal, ela já dá mostras do privilégio que Sergio dará à
história como filtro analítico em seu estudo da literatura. Isso já se mostrava em textos
anteriores, mas aqui é mais saliente, ainda mais porque o estilo da análise já manifesta,
em estado embrionário, um tipo de procedimento que Sergio irá praticar em obras
muito mais sofisticadas, como o prefácio a Suspiros poéticos e saudades, os Capítulos
de literatura colonial e Visão do paraíso. Sergio toma um elemento textual – o
tratamento que um poeta ou uma fonte dá a determinada situação existencial – no caso,
o “pessimismo” – e traça suas origens histórico-culturais de forma especialmente
sensível à continuidade das suas formas de expressão no discurso. Pode-se comparar,
nesse caso, por exemplo, a atribuição algo mecânica do “pessimismo” a povos
“semíticos” ou “arianos” – por oposição àqueles do Norte da Europa – à discussão das

95
“O Fausto”, cit., p. 83.
96
“O Fausto”, cit., p. 83.
64

afinidades entre o lirismo “feminino e lacrimoso” tipicamente português no ensaio


sobre Gonçalves de Magalhães97, ou à cuidadosa genealogia que Sergio faz do “não sei
quê de magoado e triste” da elegia de Lindóia no Caramuru de Basílio da Gama98, ou,
de forma mais ampla, ao “pedestre realismo” luso investigado em Visão do paraíso, ou
aos seus correlatos na ética econômica, que Sergio discute em dissertação de
completada à mesma época99. Quando Sergio caracteriza o “mal du siècle” romântico
negador da vida a uma “revivescência da nostalgia pessimista dos semitas” 100
encontrada em textos da Idade Média, ele realiza o mesmo movimento analítico
(embora de modo ainda um tanto desajeitado) que se repetirá em Raízes do Brasil, onde
a extraordinária penetração do romantismo na cultura brasileira é explicado por
disposições já dadas pelo substrato cultural do contexto local, chegando, a partir dessa
conclusão, a caracterizar Machado de Assis, que leva o pessimismo romântico às
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últimas consequências, como “a flor dessa planta de estufa”101 – se Machado é a flor,


pode-se dizer que a planta seria a cultura romântica, e a estufa, o Brasil, ou seja, um
espaço onde havia condições especialmente acolhedoras para o desenvolvimento
daquela forma de vida e pensamento. Do mesmo modo, lê-se no estudo sobre
Gonçalves de Magalhães que o romantismo brasileiro, “partindo de uma arrecadação
confusa e erudita de fórmulas exóticas, [...] se apurou, lenta mas seguramente,
despindo-se de todo o acessório, para ir dar um vigor novo às expressões mais genuínas
de nossa alma popular”, a ponto de “chegar a atingir e a definir [...] algumas das
realidades mais profundas e das riquezas mais autênticas de nossa vida emocional.”102
Em suma, trata-se de uma visão da cultura pautada pela investigação da formação
histórica das representações mentais e daquilo que, em Raízes do Brasil, será chamado
de “quadros de vida”, em provável tradução da expressão alemã Weltbilder, extraída
da Decadência do Ocidente de Oswald Spengler.

97
“Suspiros poéticos e saudades”, cit., LP, p. 364
98
“A arcadia heróica”. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. São Paulo:
Brasiliense, 1991, doravante CLC, p. 142-144.
99
Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos. Dissertação de
Mestrado (Ciências Sociais). São Paulo, Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, 1958,
doravante EF.
100
Loc. cit.
101
RB, p. 125.
102
“Suspiros poéticos e saudades”, cit., p. 370.
65

A antecipação não se dá por alguma pretensão de inscrever a obra crítica de


Sergio Buarque sob o signo dessa expressão, mas antes para mostrar como esse eixo
da reflexão buarquiana já está implícito aqui e não depende de tal ou qual referência,
mas de uma incorporação ainda incipiente mas decisiva do universo intelectual da
Bildung. No texto sobre o Fausto, Sergio irá afiançar uma de suas observações sobre a
procedência semítica do pessimismo de Calderón de la Barca em August Schlegel (em
trecho extraído de um crítico espanhol)103 e demonstra um conhecimento razoável da
obra de Goethe, citando sua correspondência com Schiller, não está claro se
diretamente ou a partir de algum comentador. É discutível, nesse momento, a medida
do domínio que Sergio teria tido da língua alemã – ele cita no mesmo texto uma citação
de Schopenhauer em francês, e o verso que cita em alemão é extraído de um
comentador francês.104 De todo modo, o certo é que, como se pode depreender do estilo
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da análise e de suas continuidades com textos posteriores, nessa altura, a perspectiva


artística, filosófica, crítica, histórica e filológica do romantismo e do classicismo
alemães já eram referências importantes para Sergio. É difícil resumir a essência dessa
tradição intelectual, mas o interesse de Sergio pela poesia em combinação com uma
extrema avidez pela sua conformação histórica – diga-se claramente, pela compreensão
das relações entre tempo e forma – sugerem uma recepção de elementos provenientes,
diretamente ou não, da tradição romântica alemã.
“Tradição romântica”, entenda-se, é um termo usado aqui com alguma liberdade
e não deve se aplicar restritivamente àquelas expressões intelectuais que ficaram
conhecidas por esse termo na reflexão alemã – notadamente os irmãos Schlegel e
Novalis –, mas deve-se compreender igualmente como as consequências dificilmente
comensuráveis de suas ideias no ambiente cultural alemão do século XIX. Para citar
Walter Benjamin, um “romântico” mais recente, em análise luminosa da obra de
Schlegel e Novalis, o pensamento crítico romântico (mais especificamente, da
Fruhromantik ou “primeiro romantismo”) parte da noção fichtiana de “reflexão” como
jogo entre sujeito e objeto, do qual resultam as “formas”, identifica como sua célula

103
“O Fausto”, cit., p. 84.
104
“O Fausto”, cit., p. 78; GRUCKER, Émile. Histoire des doctrines littéraires et esthétiques en
Allemagne. Paris: Berger-Levrault et Cie., 1883, p. XVI.
66

originária a atividade estética – em substituição ao “Eu” de Fichte 105 - e elege a


atividade poética como forma de pensamento por excelência. A forma assim produzida
em interação com o mundo histórico é a realização máxima da potência humana.
Assim,

A tarefa da crítica de arte é o conhecimento no médium-de-reflexão da arte. Para ela


valem todas aquelas leis que existem no geral para todo conhecimento de objeto no
médium-de-reflexão. A crítica é, então, diante da obra de arte, o mesmo que a observação
é diante do objeto natural, são as mesmas leis que se amoldam diversamente em objetos
diferentes. Quando Novalis diz: “Aquilo que é ao mesmo tempo pensamento e
observação é um germe [...] crítico”, ele afirma na verdade um discurso tautológico, pois
a observação é um processo de pensamento – o estreito parentesco entre a crítica e a
observação. Crítica é, então, como que um experimento na obra de arte, através da qual
a reflexão desta é despertada e ela é levada à consciência e ao conhecimento de si mesma.
[...] Por sua vez, Schlegel denomina uma “dita pesquisa [...] um experimento histórico”
[...]. O sujeito da reflexão é fundamentalmente a conformação artística [Kunstgebilde]
mesma e o experimento consiste não na reflexão sobre uma conformação, que, como
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está implícito no sentido da crítica de arte romântica, não poderia alterá-la


essencialmente, mas no desdobramento da reflexão, isto é, para os românticos, do
espírito, em uma conformação [o objeto artístico].106

A crítica “romântica” (já antecipada em parte pela Ciência Nova de Vico) toma
a obra de arte como célula básica de significação da existência e de configuração das
épocas históricas. Assim, não há divisão estanque, para além de estilos de exposição e
temário, isto é, de fatores mais ou menos circunstanciais, entre crítica e história. Não
admira, portanto, que o gesto crítico de Sergio já contenha condensado aquele do
historiador. Enquanto, numa ponta, a realidade histórica é invocada como fator
formativo da expressão poética e literária – e dos objetos da cultura em geral, inclusive
os materiais, como se pode notar nos estudos sobre a expansão paulista (de Monções e
Caminhos e fronteiras até O extremo Oeste), esta é construída a partir dos indícios de
uma estrutura de razão e sensibilidade presente na obra de arte e em outras expressões
da cultura, num jogo de influências recíprocas entre forma e vida. A contrapartida
propriamente “crítica” dessa compreensão da conformação histórica das expressões do
espírito ainda é um pouco débil neste primeiro momento, mas pode ser verificada em

105
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras,
2018, p. 48.
106
Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, p. 74.
67

sua forma mais acabada tanto nos estudos maduros de história literária (notadamente
os Capítulos de literatura colonial, mas também o já mencionado prefácio de 1939 a
Suspiros poéticos e saudades) quanto nos ensaios críticos sobre Manuel Bandeira,
Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto107. Nessa primeira fase,
esse movimento já se deixa antever, além da terceira parte do ensaio sobre o Fausto,
na série de artigos “Os poetas e a felicidade”, que aproveita a identificação de em certa
tradição cultural “semítica” com uma espécie de “pessimismo” característica da poesia
dos “povos do meio-dia da Europa” e o discute mais longamente, conectando-o com o
tema da morte. O título do ensaio em três partes só fica claro quando se percebe que
ele se desenvolve na forma de uma consideração da atitude de vários poetas diante da
morte como disparadora do juízo emitido pelos poetas sobre o valor (ou não-valor) da
existência terrena.
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O texto divide os poetas entre aqueles que tomam a morte como ocasião
redentora, ou simplesmente negar a importância da vida. Os primeiros seriam
“otimistas”, afinal, veriam a morte como experiência que eleva o homem ao patamar
superior e venturoso da vida eterna – desse grupo fariam parte Victor Hugo, Leconte
de Lisle, André Chenier, Walt Whitman e Baudelaire; já os pessimistas, “que negam
toda a possibilidade da ventura em seu sentido completo”, não só afirmam a vaidade
do mundo terreno como julgam-no como espaço de agruras desilusões108 – entre esses
últimos estaria a maior parte dos poetas portugueses e brasileiros. Aqueles que por
vezes contrariam essa tendência, como Medeiros de Albuquerque, o fazem de forma
inautêntica109. Mas Sergio se empenha em refutar a tese de que o pessimismo lacrimoso
das “cançonetas populares” luso-brasileiras seria expressão de algum caráter nacional
– nesse texto, ele procura remeter o “pessimismo”, novamente, ao componente étnico
semítico e estendê-lo a todo o cristianismo, por ser ele, originalmente, uma religião do
Levante, produto da cultura hebraica. Isso não impede que, como resultado desse fundo
religioso e do intercurso cultural com os árabes, Sergio admita, citando Rubén Darío,
que “os portugueses, esse povo viril, sentem de modo exagerado o sopro da tristeza”,

107
CB, p. 29-44, 151-166, 167-180.
108
“Os poetas e a felicidade – II”, cit., p. 94.
109
“Os poetas e a felicidade – III”, cit., p. 99.
68

o que explica o terem mesmo desenvolvido uma palavra para sua “enfermiza y especial
nostalgia” (palavras de Darío), “um sentimento único, mas cheia de melancólica
doçura: saudade.”110 Essa visão acentuadamente melancólica da vida não corresponde
a uma valorização da morte, da qual os poetas luso-brasileiros raramente falam, mas a
qual devem associar, como o drama simbolista Madame la mort, de Rachilde, “as
formas mais horríveis”, o que explicaria “seu silêncio a respeito”111. Por isso mesmo,
apesar da sua visão igualmente negativa da vida, “os nossos poetas amam a vida com
todas as suas desgraças e mazelas”; alguns teriam chegado à prática, segundo Sergio
excepcional em toda a poesia mundial, do elogio da vida.
Nesse passo do ensaio, o jovem crítico lembra uma pensée de Pascal que
aconselha os homens a evitar o pensamento da morte e, numa transição um tanto
confusa, afirma que os poetas em geral não têm obedecido essa máxima, apenas para
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citar a heroína de Ibsen Hedda Gabbler (“Eu não quero ver nem a doença, nem a
morte”), afirmar que “a maioria dos poetas brasileiros assemelha-se a Hedda Gabbler
no horror à morte” e passar a uma rápida resenha dos momentos em que a poesia
brasileira contrariou essa tendência – é o caso de Álvares de Azevedo e Francisco
Otaviano. Este último seria realmente excepcional em seu desejo de dar “termo às
infelicidades dessa vida”, enquanto o primeiro exibia uma mera tranquilidade diante da
aproximação do fim da vida, sem valorizá-lo como tal. “Nenhum” de nossos poetas,
por outro lado, “chegou a ponto de perder na mocidade todas as esperanças, como
Alfred de Vigny, como Leopardi” 112 . Na terceira parte do artigo, Sergio passa a
diferenciar o pessimismo radical de Vigny e Leopardi da média dos poetas luso-
brasileiros. Em flagrante contradição com o que antes havia posto inequivocamente,
embora de modo pouco direto, Sergio irá afirmar que “nossos poetas, em geral, não são
pessimistas” 113 , assemelhando a visão artística luso-brasileira da vida daquela do
dramaturgo Christian Hebbel. Segundo Sergio, Hebbel, assim como nossos poetas,
acreditava que a dor legitimava e conferia sentido à vida; haveria, portanto, que
valorizar uma para compreender a outra. “Se a vida é só dor e desgosto, se para que ela

110
“Os poetas e a felicidade – II”, cit., p. 95.
111
Ibid., p. 96.
112
“Os poetas e a felicidade – II”, cit., p. 97.
113
“Os poetas e a felicidade – III”, cit., p. 100.
69

exista é necessário que se sofra, que se ‘sinta o frio da desgraça’, então por que essa
revolta contra o destino?”114 Não é certo onde Sergio terá encontrado semelhante leitura
de Hebbel – que, é razoável supor, ele poderia estar citando indiretamente a partir de
algum comentário, do contrário, seria de esperar uma nota de rodapé, pois, nos ensaios
publicados em A cigarra, ele raramente perde a oportunidade de lançar notas para
autorizar suas opiniões com referências.
Se é verdade que esses contrastes se valem de generalizações e caracterizações
por vezes grosseiras ou hiperbólicas, já se pode notar aqui uma sensibilidade refinada
para sutilezas e para um instinto de investigação de elementos mais profundos por trás
de traços superficiais que analistas menos atilados poderiam ter se limitado a constatar,
que consiste num dos pontos fortes de sua produção historiográfica e crítica. Sergio
está começando a desenvolver o espírito crítico e o instinto de investigação que lhe
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permitirão revelar por trás de fontes aparentemente simples ou desinteressantes


realidades muito mais complexas e nuançadas.
Depois da publicação de “Os poetas e a felicidade”, a crítica de Sergio Buarque
passa por uma pronunciada inflexão na direção de movimentos de vanguarda. Mesmo
depois de manifestar essa nova orientação em alguns textos, Sergio volta a escrever um
ensaio mais longo que ainda pertence, para os propósitos da presente análise, à fase
pré-modernista, não por contrariar de algum modo essa tendência, mas porque seu tema
ainda mostra as preocupações da primeira fase, ainda que relativizando-as. Tendo
começado sua atividade crítica com uma consideração sobre a “originalidade literária”,
Sergio, em vias de mudar-se para o Rio de Janeiro e já seduzido pela obra “nova” dos
futuristas e de Guilherme de Almeida, encerrava esse ciclo com um ensaio sobre
“Plágios e plagiários”, texto publicado na Revista do Brasil em setembro de 1921115.
Trata-se de uma relativização da ideia de originalidade, através de um apanhado
histórico de textos que poderiam ser considerados plagiados pelo juízo de “zoilos”, mas
que, a um exame mais detido, demonstravam antes “parentescos de pensamento” ou
aproveitamento de símiles anteriormente lançados na obra de outras pessoas. Muito
mais que “cópias” desonestas, essas reelaborações seriam indispensáveis ao

114
Loc. cit.
115
“Plágios e plagiários”, EL, I, p. 116-130; Revista do brasil, v. 18, set 1921
70

enriquecimento progressivo da arte poética. Sergio aborda aqui pela primeira vez, duas
noções que lhe serão especialmente caras na produção crítica posterior: as ideias de
“motivo” e “tópica” trabalhadas como configurações discursivas de situações
existenciais sedimentadas na história literária, que terão papel especialmente destacado
nos estudos reunidos em Capítulos de literatura colonial116 e Visão do paraíso. Escreve
Sergio:

Os combates da Eneida são tomados da Ilíada e as viagens de Enéas são imitadas das de
Ulisses. Macróbio transcreve uma centena quase de passagens da Eneida que foram
traduzidas mais ou menos fielmente de Homero, reconhecendo embora que Virgílio em
alguns deles exprime-se de modo superior ao do imortal poeta grego.”117

E pondera que “nessa época como na de Montaigne e na de Calderón”, dois


escritores dos quais haveria abundantes exemplos de pensamentos e formas tomados
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emprestados a outro autor, “o plágio não era crime”. Lembra também que, para
Ardengo Soffici, se os grandes clássicos fossem examinados com atenção cuidadosa a
símiles, ideias e pensamentos tomados de empréstimo, de nenhum se poderia dizer que
tenha saído “do âmbito estreito do lugar-comum” 118 . Mesmo reconhecendo a
legitimidade do combate ao lugar-comum, Sergio alerta para o perigo da criação de
novos, como é o caso dos “naturalistas, parnasianos, simbolistas, decadentes e
místicos”, “inovadores inimigos de lugares-comuns” na poesia luso-brasileira 119 .
Finalmente, são discutidos alguns exemplos concretos de possível plágio, chegando-se
à conclusão de que só há plágio quando se reproduz, no empréstimo, a forma, além do
conteúdo. Não é uma conclusão das mais sofisticadas para um texto que chega em
alguns momentos a um nível superior, mas percebe-se uma nítida evolução e uma
ampliação nos horizontes analíticos do crítico, que, nesse momento, está talvez menos
desenvolto no trabalho de seu material por encontrar-se num momento de transição –
note-se que o Sergio conservador e tradicionalista ainda não se metamorfoseou

116
Numa espantosa coincidência, este texto começa pela discussão de uma poesia de Raimundo Correia
acusada de “plágio” de Metastasio, o poeta italiano cuja influência nos “árcades” brasileiros será
detalhadamente discutida nos ensaios de CLC. Coincidência, a não ser, é claro, que Sergio tivesse já
então uma predileção pelo “poeta cesáreo”.
117
“Plágios e plagiários”, cit., p. 121.
118
Ibid., p. 123.
119
Ibid., p. 125.
71

inteiramente no modernista e ainda cita neste texto, entre futuristas, o Rodó que tanto
animara os ensaios de estreia. Não admira que, nesse momento, sua crítica tenha uma
qualidade irregular, não só por falta de desenvoltura, mas pela indeterminação
característica dos períodos de mudança de fase, sendo levado a formular seus
argumentos com ideias desencontradas, quando não contraditórias. Isso se acirrará nos
primeiros textos nos quais aparece mais abertamente uma adesão à vanguarda estética
paulista, aos quais optou-se por dedicar um capítulo próprio. A segurança dos primeiros
textos só voltará algum tempo depois, e a desenvoltura, pode-se dizer que somente nos
textos escritos para a revista Estética, ou talvez um pouco antes. Essa nova fase
propriamente modernista é o objeto das páginas seguintes.
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II

A revolução de Sergio Buarque de Holanda

Não pecaria por exagero quem dissesse que o envolvimento de Sergio Buarque com o
movimento artístico e literário “modernista”, num primeiro momento por ele chamado
de “futurista”, proporciona uma revolução em seu pensamento. Revolução,
compreenda-se, em dois sentidos. Primeiro, num sentido mais usual, porque dá-se uma
transformação profunda: reorganizam-se o temário, o escopo de análise e os valores
que orientam sua atividade crítica. Segundo, porque, como costuma acontecer em
revoluções políticas, culturais e sociais históricas, verifica-se, ao termo do processo,
uma retomada, em nova chave, de elementos anteriormente rejeitados1. Pode-se dizer,
esticando um pouco a analogia, que há uma certa reação restauradora: ao final dos anos
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1920 Sergio vai se distanciando de posições anteriormente tomadas e retornando a


alguns de seus valores originários, analisados no capítulo anterior. Esse movimento já
é perceptível pouco depois da metade da década, no famoso artigo “O lado oposto e
outros lados”, mas somente a um olhar muito atento, e essa percepção depende de uma
transposição talvez algo teleológica de aspectos de textos posteriores a esse escrito algo
enigmático. É preciso dizer que as continuidades entre essa fase “modernista” com

1
A presente interpretação da obra crítica de juventude tem alguns pontos em comum, mas divergências
importantes com outro estudo à disposição sobre o mesmo tema e guiado por preocupações afins ao
deste: e de João Kennedy Eugênio (2008, cit.). Eugênio identifica o romantismo de Sergio como tendo
origem já nos primeiros textos e o modernismo como seu prolongamento natural (p. 434-5). É difícil
discordar da presença de um substrato romântico na primeira fase, principalmente como herança
sedimentada que aqui se veio considerando menos como romantismo do que como uma tradição alemã
de pensamento morfológico e formativo, ligada mais a nomes como Goethe, Schiller e Hegel do que
àqueles autores conhecidos na Alemanha como românticos (os irmãos Schlegel, Novalis, Kleist,
Schelling etc). Mesmo o influxo propriamente “romântico” é apropriado, naquela primeira fase, sob o
aspecto de uma marmórea tradição. Pode-se dizer, talvez, que é um romantismo tornado “clássico” e,
portanto, neutralizado no potencial de rebelião contra os valores convencionais e contra a tradição que
é, afinal, um dos elementos mais costumeiramente associados ao romantismo – tanto daquele original,
o de Rousseau, de Wordsworth e da Frühromantik alemã, como de movimentos neorromânticos mais
recentes, como o surrealismo. Aqui, espera-se que a análise mostre como o modernismo efetivamente
coincidirá, em Sergio Buarque, não tanto com referências românticas individuais, mas sobretudo como
uma atitude intelectual (cf. Schmitt, Political Romanticism, cit.; LÖWY, Michael; SAYRE, Robert.
Revolta e melancolia. O romantismo na contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2014)
que inclui a negação das convenções, o expressivismo subjetivo, o culto à sinceridade, uma
desconsideração pela precisão na expressão dos pensamentos e a ironia – elementos para os quais, de
resto, Eugênio não deixa de atentar, mas aplica sobretudo à fase anterior a 1922, que para ele não
apresenta maiores diferenças com a modernista, a não ser de conteúdo. Como se verá, a presente análise,
que deve muito aos trabalhos de Eugênio, se empenha em avançar uma tese bem diversa.
73

Raízes do Brasil, e mesmo com a crítica literária posterior a 1936, são muito mais sutis,
e talvez até menos decisivas, do que aquelas da fase inicial e (ainda mais) juvenil. O
que não quer dizer, evidentemente, que a fase que se vai analisar agora não seja
essencial à boa compreensão da obra posterior.
Se é verdade que o envolvimento com o modernismo representou para Sergio
Buarque um período de amadurecimento, o mais exato é dizer que foi uma fase de
aprendizado, ou seja, para usar o linguajar de uma obra clássica sobre o tema, de
fruição e superação do erro. 2 Erro, entenda-se não como juízo de valor sobre as
posições tomadas por Sergio, mas como indicativo de que seu envolvimento com o
modernismo resultaria, em grande medida, em frustração. Em relatos retrospectivos
sobre a época, Sergio admite a importância do movimento renovador, mas o trata como
uma época de excessos e inscreve-a sob o signo de um conceito sobre o qual passou a
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ter uma opinião ambivalente: “romantismo”. Se o modernismo brasileiro foi romântico


ou não, não é algo que interessa ao presente estudo. O certo é que, na compreensão que
Sergio Buarque passou a ter de sua própria trajetória e da histórica intelectual brasileira,
sua produção nesse período corresponde a sua fase romântica, e, analisando bem os
termos pelos quais ele compreende esse conceito, ele parece acertado para descrever a
crítica buarquiana entre o final de 1921 e o final da década. Antes de passar à discussão
dos textos dessa época, leia-se o que Sergio Buarque tinha a dizer sobre modernismo e
romantismo em 1940, quando foi convidado a substituir Mário de Andrade na seção
crítica do Diário de notícias. Aqui começa a fase madura de sua obra crítica –
coincidentemente, é quando Sergio passa a praticar a crítica literária regularmente, em
jornal, pela primeira vez:

O culto exclusivista à espontaneidade, à facilidade, foi uma superstição romântica, a


mesma que Matthew Arnold denunciou com tanta justeza nos poetas ingleses da primeira
metade de seu século. Por força de tal superstição é que, a despeito da energia criadora
desses poetas, eles deixavam no crítico uma impressão irresistível de insuficiência e
prematuridade. Semelhante impressão pode ocorrer-nos a cada passo diante de certas
produções da moderna poesia brasileira. [...]
Graças ao movimento “modernista”, reação oportuna contra os formalismos
academizantes que nos anos 20 metrificavam pomposamente [...], abriram-se

2
A frase é de um discurso do abade sobre a educação no Wilhelm Meister de Goethe: “a sabedoria dos
mestres está em deixar que o errado sorva taças repletas de seu erro”. GOETHE, Wolfgang von. Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 470.
74

perspectivas inesperadamente vastas no remanso de nossa literatura. Mas surgiu o que


costuma surgir facilmente no Brasil em casos semelhantes. O lirismo, que na tradição
portuguesa e brasileira jamais pediu disciplina e nem rigor, mas quando muito aparato
formal, polimento e alguma compostura, ganhou bem pouco com a mudança. E a ação
do modernismo, sob esse aspecto, teria sido mais de lamentar do que de aprovar, não
fosse a meia dúzia de exceções que lhe asseguram o prestígio. [...]
E se é bem certo que existe hoje uma crise de poesia, não deveríamos atribuí-la antes
por progressão contínua do que por revoluções periódicas? Isso faz com que a cada
impulso renovador se siga invariavelmente uma longa fase de rotina e relaxamento. Não
estou longe de crer que presentemente a revolução necessária seria uma
contrarrevolução. [...]
O caso do surrealismo [...] serve para ilustrar um dos traços peculiares a essa crise da
poesia. Não há dúvida de que como escola ele já pertence ao passado e deu tudo quanto
tinha a dar. Mas o terreno em que brotou e frutificou é o mesmo em que pisamos. Nós,
homens de 1940, continuamos a viver em pleno romantismo, e uma das terapêuticas para
o romantismo é analisa-lo. Por isso convém que em todo verdadeiro poeta haja também
um crítico vigilante e enérgico.3

Vale lembrar também o seguinte trecho de um ensaio de 1946 4 , onde o


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romantismo é novamente definido, desta vez em explícita oposição contra o


“classicismo”, não somente para apontar a persistência do tema na reflexão buarquiana,
mas também para aparar os contornos dessa noção, tal como ela evolui na reflexão
crítica de Sergio Buarque:

As alternativas do Classicismo e do Romantismo, tomados [em] sentido [...] lato,


sucedem-se tão necessariamente como às épocas de plenitude vivaz e fecunda se
substituem períodos de relaxamento e de cansaço, ou ainda de inquietação indisciplinada
e de tensão criadora.
Quanto mais nos aprofundarmos nessa opinião, mais evidente se tornará que o
Romantismo não pode ser considerado apenas como uma entre muitas escolas literárias
e artísticas, mas como uma espécie de substrato comum, em que os homens se perdem
fatalmente, desde que rejeitem as rigorosas discriminações e as disciplinas impostas pela
razão, pela opinião, pelo costume, ou pelas autoridades universalmente reconhecidas.
A religião do movimento, a canonização do instante fugidio, o culto do pitoresco, do
colorido, o desprezo do normal pelo acidental e do eterno pelo temporal, tudo enfim
quanto envolva o abandono de qualquer regra constante e objetiva, denunciam a
presença do Romantismo. Desse mesmo Romantismo, feito muitas vezes de
inexperiência e imperícia, contra o qual já um velho tratado prevenia o artista aprendiz,
aconselhando-o a não pintar as árvores depois do vento, que suja as folhas de poeira,
nem depois da chuva, que carrega as cores. O gosto do acidental e do anedótico,
lisonjeando as sensibilidades, é, em verdade, próprio de crianças, de apaixonados e de
mulheres, não de homens satisfeitos, esses que preferirão a beleza perfeita e tranquila
das estátuas de mármore.5

3
“Poesia e crítica”, EL, I, p. 273-4. Texto originalmente publicado no Diário de Notícias, 15 set 1940.
4
“Perene Romantismo”, EL, I, p. 373-377. Texto originalmente publicado no Correio da Manhã, 19 mai
1946.
5
Ibid., p. 376.
75

O primeiro texto citado, intitulado “Poesia e crítica”, é de uma coragem crítica e


de uma serenidade espantosas, quando se lembra que quem escreve é aquele que, na
fase “heroica” do modernismo, havia sido um dos avalistas mais entusiasmados –
embora nem sempre dos mais atilados – do movimento na crítica. Agora, Sergio
Buarque identificava no modernismo brasileiro uma revolução romântica, vaticinava a
sua inocuidade no que dizia respeito à poesia, a não ser por “meia dúzia” de figuras
excepcionais, e clamava, agora, por uma “contrarrevolução”. Dados os termos da
crítica, Sergio provavelmente idealizava um tal movimento como um retorno a um
espírito mais convencional, formalmente rigoroso, sério e disciplinado na poesia – ou
seja, sem dizê-lo, ele pensava numa contrarrevolução “clássica”. Contrarrevolução,
diga-se de passagem, que virá na forma da “geração de 45” e que ele depois criticará
em termos inversos mas análogos aos que para ele enquadram o romantismo, ou seja,
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pelo excessivo formalismo e pela apropriação maquinal de teorias poéticas arbitrárias6.


Lendo os textos da década de 1920, especialmente aqueles anteriores a “O lado
oposto e outros lados” (1926), que corresponde a uma inflexão no seu pensamento
crítico, ainda que não saia do quadro do que ele chamará, em 1940, de “romantismo”,
só se pode concordar com o severo juízo de Sergio Buarque sobre o modernismo. É
preciso esclarecer que “romantismo”, no vocabulário de Sergio Buarque, assume
frequentemente o papel de um tipo ideal (em oposição polar ao classicismo, como se
nota no segundo excerto acima reproduzido), antes que de um conceito propriamente
histórico. É o que se percebe pela identificação entre romantismo e surrealismo, uma
das tendências internas às vanguardas do início do século XX das quais Sergio mais se
aproximou, e cuja influência pode ser facilmente verificada no ensaio “Perspectivas” e
na ficção curta “Viagem a Nápoles”7. “Poesia e crítica” é ao mesmo tempo uma crítica
ao estado da poesia brasileira contemporânea e um exame de consciência – não admira

6
Essa crítica está amplamente documentada nos textos onde Sergio debate o new criticism e sua
apropriação entre poetas brasileiros, além de sua crítica ao “retorno do poético”, que estão reunidos no
segundo volume de O espírito e a letra. Essa polêmica de Sergio escapa ao problema do presente estudo.
Ela é detalhadamente discutida nos três primeiros capítulos do estudo de Thiago Lima Nicodemo sobre
a crítica de Sergio Buarque nos anos 1950. NICODEMO, Thiago. Alegoria Moderna. Crítica Literária
e História da Literatura na obra de Sergio Buarque de Holanda. São Paulo: Unifesp, 2014.
7
“Viagem a Nápoles”. In: MONTEIRO; EUGÊNIO, Sergio Buarque de Holanda: Perspectivas, cit., p.
565-582.
76

que ele recomende certa “terapêutica” para “curar” o dito romantismo imperante entre
os poetas brasileiros. Ele próprio, não sendo poeta em sentido estrito, defende nesse
texto de 1940 que essas atividades não se distinguem rigorosamente senão num plano
abstrato e teórico.
Mas terapêutica de quê? Ora, ler a produção de Sergio Buarque desde fins de
1921 até meados da década é perceber como, mesmo nos melhores momentos, Sergio
Buarque se entregou de corpo e alma, com pouquíssimas restrições, àquele “culto
exclusivista à espontaneidade, à facilidade”, à “superstição romântica”, à “religião do
movimento”, à “canonização do instante fugidio”, ao “culto do pitoresco, do colorido”,
ao “desprezo do normal pelo acidental e do eterno pelo temporal” pelos quais se deixara
seduzir a cena literária brasileira, começando por São Paulo, à guisa de “renovação” e
oposição ao “academicismo”. Em “Perspectivas” (1925), artigo onde a trajetória
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ascendente do romantismo no pensamento de Sergio Buarque atinge seu zênite,


percebe-se aquele estilo de pensamento povoado de paradoxos, dado a expressões
imprecisas e herméticas, caracterizado por uma perspectiva sobre as coisas deste
mundo geralmente irônica, que sempre prefere as meias palavras e as sugestões às
definições e indicações diretas. Perspectiva temperada, ainda, por um pendor místico e
até religioso. Esse movimento começa, porém, e intensamente, já em 1921, e será
preciso investigá-lo em suas origens, para podermos compreender algumas das
posições que serão tomadas depois.

1. Fanatismo

O primeiro movimento de Sergio em direção à arte de vanguarda começa com o artigo


“O gênio do século”8. Neste texto, Sergio nega frontalmente a posição, manifestada nos
seus primeiros artigos (ainda que ali dirigida às letras brasileiras) de que seria o
Romantismo o período mais interessante do século XIX. Deve-se deixar claro que se
trata aqui do Romantismo histórico, e que Sergio ainda não se identifica com a
percepção reflexiva da crítica modernista sobre o romantismo das vanguardas, o que

8
“O gênio do século”, EL, I, p. 108-112. Texto originalmente publicado em A cigarra, VIII, 167, 1 set
1921.
77

só se mostrará quando Sergio passa a atuar ao lado de Prudente de Moraes Neto como
editor da revista Estética. Essa tomada de consciência ocorrerá em texto a ser analisado
em breve. Desta rejeição inicial do Romantismo histórico, cabe dizer que ela é
característica desse período inicial de transição, no qual é frequente a negação frontal
de posições anteriores, em repentes fervorosos típicos de uma conversão juvenil a um
novo evangelho que precisa ser afirmado e propagado contra todos os elementos
conflitantes, ou mesmo indiferentes, com a doutrina excelente e recém-descoberta. O
sentimento de uma virada revolucionária já se anuncia na epígrafe do ensaio, tomada
do crítico italiano Giovanni Papini, uma das figuras de proa do futurismo italiano:
“bisogna ridiventare un pó barbari – magari un pó beceri – si vogliamo rinovare la
poesia” [é preciso tornarmo-nos um pouco bárbaros – talvez um pouco negros – se
quisermos renovar a poesia]9. O traço vanguardista aqui presente é a crença no poder
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rejuvenescedor da arte primitiva, bem característico das vanguardas europeias da


época. Igualmente presente está o entusiasmo pelo “fanatismo”, que não é apenas um
conteúdo da apropriação que Sergio faz do evangelho vanguardista, mas também, como
já notado, um traço formal do estilo de pensamento que o crítico passa a exercitar,
talvez intensificado, não custa repetir, pela disposição impressionável em que ele se
encontra quando da adesão. Em conformidade com essa regressão ao “primitivo”, o
entusiasmo com que Sergio se lança a seus novos ideais é tingido de irracionalismo –
já não se reconhece o beletrista que meses antes apreciava a poesia parnasiana de
Raimundo Correia, que nunca escreveria um parágrafo como este:

[O fin de siècle foi] um prelúdio da literatura revolucionária do século XX. Foi uma
consagração maravilhosa das duas grandes qualidades que caracterizam o novo século:
a rebeldia e a contumácia no sentido mais lato, também mais perfeito de fanatismo. Os
modernos têm desprezado sem motivo essa nunca assaz louvada virtude social que é o
fanatismo, a mesma que por si só desculpa e quase santifica os Torquemadas e as
Inquisições.10

O crítico que em março de 1921 pontificava com ares de superioridade sobre as


“efêmeras escolas artísticas como o futurismo, o cubismo e quejandas”11 é o mesmo

9
Ibid., p. 108.
10
Ibid., p. 110
11
“O homem-máquina”, cit., p. 561.
78

que, cinco meses depois, escreve que “[n]ão é aqui o lugar de repetir os ataques
daqueles que veem, numa aglomeração de escolazinhas, um mal. Pensamos antes que
elas são atestado sério de independência de espírito e que embora o gênio nunca
acompanhe as escolas, estas são sempre agentes das grandes ideias”. 12 Nem tudo,
porém, é revolta e negação do passado. “Originalidade” é um valor que, tendo
assinalado a estreia de Sergio na cena literária, permanece em seu horizonte crítico,
conferindo alguma continuidade à sua reflexão. Mesmo assim, já não se trata tanto da
“originalidade” no sentido de “caráter” singular e original em meio ao harmônico
concerto das manifestações literárias mundiais – concepção que não é tanto romântica,
mas antes “clássica” – leia-se a conversa anotada por Eckermann onde Goethe, o
grande nome do classicismo alemão, cunha a noção de Weltliteratur ou “literatura
mundial”13. O que Sergio entende aqui como “originalidade” não é tanto o objetivo de
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uma “aspiração nacional” em literatura, mas sobretudo um movimento de rebelião


contra a norma, um esforço no qual a criação da originalidade depende da destruição
do gosto e dos modelos antigos. “O futurismo”, que ele agora defende, “quer
simplesmente livrar os poetas de certos preconceitos tradicionais. Ele encoraja todas as
tentativas, todas as pesquisas, ele incita a todas as afoutezas, todas as liberdades. Sua
divisa é antes de tudo originalidade.”14 Originalidade, aqui, é sinônimo de novidade
desimpedida por qualquer critério. É verdade que o valor da novidade ainda está por
estabelecer, e até que a “estética apregoada [pelos futuristas] é provável que não
vingue”, mas o rompimento de todas as amarras do passado deve ser elogiado, porque
“a reação terá o efeito de despertar os artistas do ramerrão habitual.15 O tom da rejeição
do passado, por outro lado, é rancoroso e messiânico, quase apocalíptico:

Resta entretanto ainda muito que fazer. Resta combater toda sorte de imbecilidades que
continuam a infestar a Arte moderna, como sejam o realismo, o naturalismo, o
vulgarismo, a fim de que se possa erguer bem alto o monumento que simbolizará a Arte

12
Loc. cit.
13
ECKERMANN, Johan Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida, 1823-1832.
São Paulo: Unesp, 2016,p. 228-229 (conversa de 31 de janeiro de 1827). Pode-se argumentar que
também os românticos, como os irmãos Schlegel, esposam esse ponto de vista, e mesmo que o tornaram
possível. A partir do ponto de vista de 1920, contudo, trata-se nitidamente de uma visão de prestígio
antigo, esteticamente conservadora e integrante de uma certa “ordem” na visão da história literária.
14
“O gênio do século’, cit., p. 111-2.
15
“Ibid., p. 112.
79

do futuro e no qual se verá, escrito em caracteres de fogo, o seu programa: Liberdade


estética – Fantasia ilimitada.16

Só à custa da destruição de todo o edifício da arte do passado é que será possível


afirmar, ou melhor, descobrir, o caráter das expressões artísticas da nova época, que,
vencendo o entulho poeirento das regras e ideias acumuladas ao longo de séculos,
poderá reencontrar algo de autêntico em meio aos objetos artísticos primitivos, que
ainda vivem livres do fardo da tradição.
É nesse mesmo espírito que começa o pequeno texto sobre Guilherme de
Almeida 17 , o primeiro modernista brasileiro que merece a atenção de Sergio – e
provavelmente a sua principal influência nessa adesão entusiasmada e negadora de sua
própria posição anterior. “À la fin tu es las de ce monde ancien” [No final, estás cansado
desse mundo antigo], diz a epígrafe, agora extraída de Guillaume Apollinaire, do
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pequeno artigo dedicado à poesia do amigo.18 Almeida, não surpreenderá ninguém, é


louvado por ser, nesse novo sentido de rebelião formal, como um “original”:

Se acompanharmos a evolução da poesia de Guilherme de Almeida desde os primeiros


sonetos do Nós, chegaremos a concluir que essa evolução foi no sentido da afirmação
incontestável de sua própria individualidade. E ela deu-se de tal modo que hoje se pode
dizer, sem receio de errar, do autor do Era uma vez..., que é um dos nossos poetas mais
originais.19

Sergio trata aqui o poeta, como tratará vários do movimento, numa atmosfera de
intimidade – com o poeta paulista, Sergio está, de certa forma, “em casa”, ainda mais
porque este é o começo de seu período de residência no Rio de Janeiro: “há dias falava-
me ele aqui no Rio sobre o perigo das rodinhas literárias”20; “[seus versos] ele próprio
os recita como se estivesse conversando”21. Guilherme, pelo visto, seria um daqueles
que sabiam manter o espírito independente, a personalidade, em superior indiferença
às “escolazinhas com regras fixas e invioláveis”, bem como às “regras consuetudinárias

16
Loc. cit.
17
“Guilherme de Almeida”, EL, I, p. 113-5. Texto originalmente publicado em Fon-Fon, XV, 36, 3 set
1921.
18
Ibid., p. 113.
19
“Guilherme de Almeida”, cit., p. 113.
20
Loc. cit.
21
Ibid., p. 115.
80

sem razão de ser”, seguindo “o natural progresso da poesia”. É o poeta original contra
todo o mundo, até mesmo as vanguardas organizadas, pois essas oprimiriam seu
espírito singular. Almeida, por isso, não chega a ser um “futurista”, é apenas “um
original, um raro, aqui está”22. O atrativo de Guilherme está em fazer “palpitar” nos
seus versos a vida moderna que vive um público que insiste em ser “passadista” em
arte, “como nunca se viu”. O crítico enumera, então essa aparição inédita do “novo”,
típica da fase inicial do modernismo, que hoje já não se deixa ler sem algum fastio: “os
táxis, os telefones, os fox-trots, os jazz bands etc...” Não falta aqui tampouco o orgulho
do paulista que, escrevendo em revista carioca, vem alardear as moderníssimas cenas
da poesia do conterrâneo: “[a] da projeção da luz dos ‘globos cor de lua’ sobre o
asfalto”, passando por entre as sombras das folhas dos plátanos – “lua” que rima com
a “longa perspectiva elétrica da rua”, lê-se no poema citado integralmente na crítica.
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Visão “muito conhecida de nós paulistas” 23 . Não menos destacada na poesia de


Guilherme de Almeida é, naturalmente, a inovação formal. Almeida se liberta da
métrica, mas mantém certa “dicção do verso”, ainda que isso se dê à maneira da
reprodução de “simples conversas” entreouvidas, em procedimento reminiscente de
Apollinaire.24
Pouco depois desse texto, Sergio publica outro, intitulado “O futurismo paulista”,
onde Sergio sinaliza, agora sem o menor equívoco, sua adesão aos “novos” de São
Paulo25 . Aqui, outra epígrafe sugestiva, desta vez de Goethe. O sentido é quase o
mesmo daquelas dos dois artigos anteriores: “Se eu fosse assaz jovem e assaz ousado,
violaria todas as leis da fantasia; usaria de aliterações, de assonâncias e de tudo que me
parecesse cômodo...”26 Vale a pena citar as duas primeiras frases do segundo parágrafo,
tão representativo ele é da intensidade da entrega de Sergio ao culto do novo e ao
repúdio do passado: “Sob o ponto de vista artístico e sobretudo literário, o século XIX,
excetuados os últimos anos, os da reação simbolista, foi de uma esterilidade rara. A
ilusão de seu fulgor durará enquanto durarem os passadistas [...].” O destino dos

22
Ibid., p. 114.
23
Ibid., p. 114.
24
Ibid., p. 115.
25
“O futurismo paulista”, EL, I, p. 131-3. Artigo originalmente publicado em Fon-Fon, XV, 150, 10 dez
1921.
26
Ibid., p. 131.
81

“passadistas”, nova bête noire do crítico adorador do novo, é a negação inequívoca de


qualquer valor literário: “passarão para o domínio da paleontologia”. 27 Sergio faz
preceder sua apresentação do “futurismo paulista” por uma rápida resenha da sua
versão original italiana e, de modo mais geral, da arte do fin de siècle:

Atacado pelo sanchopancismo da época, que era o de todas as épocas, exaltado pelos
homens de inteligência e coragem e por alguns snobs imbecis também, o novo
movimento tem naturalmente os seus erros, como todas as grandes reações, mas possui
também a vantagem imensa e inapreciável de trazer algo novo, vantagem que por si só
já o justifica e o torna louvável.28

Aflora aqui, mais uma vez, o orgulho provinciano, tão característico da primeira
fase do modernismo paulista: “Depois de ter revelado um artista de primeira ordem que
é Victor Brecheret, a velha terra dos bandeirantes vai colaborar para o progresso das
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artes com uma plêiade disposta a sacrifícios para atingir esse ideal”. Enumeram-se,
então os principais nomes da “plêiade”, sempre elogiados, ainda que, justiça seja feita,
depois de chamar de “lindo” o “Juca Mulato”, o crítico tenha a coragem de confessar
sua opinião sobre o romance Laís, de Menotti del Picchia, (“horrível palhaçada”29).
Sobre o amigo Guilherme de Almeida, iniciador de Sergio no novo credo, lê-se que
“está um pouco fora do movimento”, mas que possui uma “visão estética
originalíssima” 30 . O artigo não traz nada de muito novo em relação a “O gênio do
século” (que, como este, sai na revista carioca Fon-fon), repetindo os mesmos lugares-
comuns elogiosos do “novo”, mas é um documento relevante na medida em que se
propõe claramente como uma apresentação entusiasmada dos “modernos” de São
Paulo ao público carioca.
Em fevereiro do ano seguinte ao texto sobre Guilherme de Almeida, a militância
modernista tem seguimento com mais um artigo na Fon-fon, esse sobre Manuel
Bandeira31. Sergio apresenta o poeta pernambucano, com justiça, como o “fundador do
movimento modernista”32. O mais notável deste texto é o seu objeto, ao qual Sergio

27
Loc. cit.
28
Ibid., p. 132.
29
Ibid., p. 132-3.
30
“O futurismo paulista, cit. p. 133.
31
“Manuel Bandeira”, EL, I, p. 141-4. Texto originalmente publicado em Fon-Fon, 18 fev 1922.
32
Ibid., p. 144.
82

voltará depois, com um tino crítico mais apurado do que neste, que não chega a
acrescentar nada de relevante às ideias feitas que caracterizam os outros textos desta
fase. Começando a rápida consideração de Manuel Bandeira por um elogio de sua
capacidade de imprimir em seus versos “um pouco dessa melancolia muito brasileira”
(que deixa ler no verso “O meu carnaval sem nenhuma alegria!...”), volta aos clichês
propagandísticos, louvando a “originalidade” de Bandeira – sua poesia “é, antes de
tudo, sua e só sua”33 – e execrando as produções do passado recente – com A cinza das
horas, em 1917, antes, portanto, dos “futuristas” de São Paulo, Bandeira “deu o
primeiro golpe na poesia idiota da época em que se usava o guarda-chuva, que é
positivamente uma prova evidente do mau gosto estético dos nossos avós” 34 . O
comentário mais interessante desse texto é a aproximação entre a estética de Bandeira
e a de Pallazzeschi, onde, referendando a opinião do antes ridicularizado Ardengo
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Soffici, agora apodado de “homem mais inteligente da Itália”, Sergio vê “uma poesia
compreendida como simples capricho, como mera efusão de um estado lírico qualquer
que seja, sem nenhum escopo, sem nenhuma razão de ser nem relação com os valores
sociais correntes”35. É difícil pensar, nos quadros do ataque que Sergio faz no ensaio
de 1940 citado na abertura deste capítulo, num elogio mais romântico do que esse que
ele agora faz de Manuel Bandeira, com quem ele trava aqui seu primeiro contato como
crítico e sobre quem escreverá, também em 1940, um de seus melhores ensaios36, a ser
discutido em detalhe mais adiante, mas onde, lembre-se, os termos do elogio mudam
bastante – lá, Sergio encarece em Bandeira “as qualidades de lucidez, de
discriminação”, “a estudiosa aplicação aos mais complicados problemas da técnica do
verso”, a sua poesia “bem governada”, onde um “censor superficial e desatento falaria
em versatilidade”, qualidades que ele “não partilha, talvez, com nenhum poeta
brasileiro de seu tempo”, e que nesse texto o separam, e até o opõem, ao mesmo
Guilherme de Almeida há pouco elogiado por sua independência e originalidade. Nos
versos de Almeida, o Sergio de 1940 identificará, em comparação que serve para

33
Ibid., p. 142.
34
Ibid., p. 144.
35
Ibid., p. 141-2.
36
“Poesias completas de Manuel Bandeira”, EL, I, p. 276-282. Texto originalmente publicado no Diário
de notícias, 6 out 1940, depois recolhido em Cobra de vidro, 1944; ampliado e publicado como
introdução geral da Poesia e prosa de Manuel Bandeira, 1958.
83

contrastá-lo negativamente com Bandeira, “caprichosa música” 37 . Os termos estão


claramente invertidos – o “capricho” passa de característica positiva a negativa, e migra
do bom poeta (Bandeira) ao mau (Almeida) – o “censor superficial e desatento” de que
fala o Sergio de 1940 talvez seja esse Sergio de 1922 que se vem comentando, e que
encontrou em Bandeira “capricho” e “mera efusão”.
Em resenha sem título38 da seção “S. Paulo” do Movimento literário, que durante
algum tempo abrigará a produção crítica de Sergio, que não voltará a colaborar com a
Fon-Fon, a militância modernista assume um caráter mais “oficial”: ele vem anunciar
em terras cariocas o lançamento de Klaxon, “o órgão do movimento novo de São Paulo,
destinado a um grande sucesso” 39 , em cujo expediente ele aparece como titular da
“representação” carioca. Neste texto, mais um anúncio de lançamentos do que qualquer
outra coisa, caráter recorrente de suas resenhas no Movimento literário, Sergio lembra
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a influência dos “imagistas ingleses e norte-americanos” sobre os modernistas de São


Paulo. A Casa do pavor de Moacyr Deabreu é referida como “um livro vigoroso e novo
que coloca seu autor entre os maiores cultores do conto no Brasil”. São duas indicações
breves, mas notáveis, de que Sergio parece ter superado, em sua adesão sôfrega a tudo
quanto houvesse de novo, seu antiamericanismo e, por tabela, a antipatia pela forma do
conto anteriormente manifestada no artigo “A decadência do romance”40. Até julho de
1923, Sergio publicará mais quatro resenhas em O mundo literário alardeando os
“novos de São Paulo”. Em curta resenha41 do Jardim das confidências, outro livro de
contos, esse de Ribeiro Couto, é digno de lembrança o que ele diz sobre o escritor de
quem tomará emprestada, em Raízes do Brasil, a “expressão feliz” do “homem
cordial”, simplesmente porque o próprio Ribeiro Couto parece um protótipo daquele
tipo a ser melhor discutido adiante: seu amigo “reduz o universo ao que o cerca e a
humanidade às pessoas de suas relações, de sua intimidade”42.

37
“Poesias completes de Manuel Bandeira”, cit., p. 280-282.
38
“Os novos de São Paulo”, EL, I, p. 148-9. Texto originalmente publicado em O mundo literário, 5 jun
1922.
39
Ibid., p. 148.
40
Cf. supra cap. I.
41
“Jardim das confidências”, EL, I, p. 150-1. Texto originalmente publicado em O mundo literário, 5
jul 1922.
42
Ibid., p. 150.
84

Em “O expressionismo”43, texto um pouco mais longo publicado em Arte Nova,


Sergio se mostra bastante atento às tendências vanguardistas da Alemanha, onde o
modernismo conquistara “toda uma elite intelectual”, à diferença do Brasil, onde “o
grupo extremista de Klaxon” ainda escandalizava “alguns homens ingênuos e os 28
milhões de imbecis que ainda existem em nosso país”44 (o cunho elitista e arrogante
dessa observação fica claro quando se confronta essa afirmação com os dados do censo
de 1920, que contou no Brasil 30 milhões de habitantes). Kandinsky, Klee, Nolde,
Chagall, Kokoschka (“poeta dramático de valor incontestável”) 45 , além de outras
personalidades propriamente literárias, são mencionados mais do que avaliados;
mesmo assim não se pode deixar de notar como o texto denuncia certa familiaridade
com o ambiente intelectual alemão. Nesse momento, é talvez mais plausível um
domínio de primeira mão das referências46. Os alemães expressionistas, diferentemente
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dos impressionistas franceses, possuem “das Auge des Geistes” [o olho do espírito],
“quer dizer, o fundamento do expressionismo”. Nos demais artigos do Mundo literário,
Sergio se dedica a propagandear a literatura paulista de nova tendência, entrando até
numa polêmica mordaz contra os “passadistas” que haviam atacado especificamente
Menotti del Picchia. Esses textos limitam-se a reafirmar ou prolongar opiniões e pontos
de vista que aqui já foram citados, demarcando e elogiando a descontinuidade entre os
“novos” e os “passadistas” de São Paulo47.

2. Heresia

43
“O expressionismo”, EL, I, p. 155-158. Texto originalmente publicado em Arte nova, 10 set 1922.
44
Ibid., p. 156.
45
Ibid., p. 156-8.
46
Não há, salvo engano, material documental que permita supor quando exatamente o domínio de leitura
em alemão de Sergio adquiriu o patamar de desenvoltura que se verifica a partir de sua estada alemã.
Múcio Leão escreve numa resenha de Raízes do Brasil que, antes de ir para Berlim em 1929 Sergio
“sabia um pouquinho de alemão (não seria o bastante para confundir Goethe)”, o que no entanto é
contrariado, por exemplo, pela provável leitura das Considerações de um apolítico de Thomas Mann
ainda antes de sua partida (Cf., neste capítulo, a seção 3, “Duelo”). LEÃO, Múcio. “Registro literário”.
Jornal do Brasil, 7 nov 1936.
47
“[O passadismo morreu mesmo]”, EL, I, p. 165-9. Texto originalmente publicado sem título na seção
“S. Paulo” de O Mundo Literário, 5 jul 1923.
85

Bem mais instigante do que todos os textos da década de 1920 comentados até esta
altura é o ensaio sobre André Gide publicado em fevereiro de 1924 48, escritor que
Sergio encontra pela primeira vez e por quem manterá uma predileção especial e
duradoura. Esse texto é o primeiro de maior ambição crítica e fôlego, desde o trio de
ensaios “O Fausto”, “Os poetas e a felicidade” e “Plágios e plagiários”. Ainda não se
pode dizer que o crítico chegou a sua fase madura. Ainda há sinais de que ele ainda não
domina inteiramente o material e sua forma, ainda trai certo tom levemente escolar.
Mesmo assim, quem tenha lido os textos anteriores a este não terá como deixar de notar
que este ensaio já pertence a outro patamar, e a partir deste ponto o nível das críticas,
se não é necessariamente aquele que se atingirá a partir de 1939/40, já se mantém acima
de uma linha mínima de qualidade; a irregularidade e a falta de medida de textos
anteriores não se repetirá. Alguma observação aguda será sempre encontrada daqui em
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diante, e o espírito de seriedade atinge um ponto que já não permite ao crítico se


entregar a asserções levianas e grosseiras – tampouco ele voltará a aplicar livremente
apodos como “idiota” e “imbecil” à literatura que não mais lhe atrai desde sua adesão
ao modernismo, a serem a partir daqui substituídos por críticas substantivas ou, quando
o Sergio se permite certa malcriação, alguma ironia corrosiva. Os pensamentos que
merecem a publicação parecem geralmente resultado de alguma reflexão; também a
prosa vai adquirindo a densidade característica do Sergio maduro – a partir daqui a boa
compreensão dos textos já não requer releitura para que se possa ver melhor os
contornos de pensamentos mal formulados, mas para apreender a complexidade de
observações nem sempre óbvias, de textos de composição estudada.
Em “André Gide”, o autor francês se apresenta como arauto da “renúncia à
individualidade” e de um cristianismo “cristão” antes que paulino, compatível com as
liberdades estéticas e morais da vanguarda artística que o escritor representa. Aparece
aqui, pela primeira vez, uma religiosidade mística e leiga não mediada por nenhuma
Igreja em sua expressão – pode-se dizer que uma religiosidade sensualista e indiferente
a liturgias e dogmas teológicos, ou seja, tipicamente romântica – que será saliente em
todos os melhores textos dessa fase e ainda se poderá encontrar no último texto
importante escrito por Sergio na década de 1920, “O testamento de Thomas Hardy”,

48
“André Gide”, EL, I, p. 170-6. Texto originalmente publicado em América brasileira, III, 26, fev 1924.
86

necrológio do escritor inglês publicado em 1928. Texto, aliás, bastante influenciado


por Gide, como se verá mais à frente. Em “André Gide”, Sergio identifica na variedade
da obra do francês uma unidade ilustrada por uma imagem do próprio escritor: o fio de
Ariadne “Ele nos mostra que é o esforço para a volúpia que faz germinar a planta, que
enche as colmeias de mel e o coração humano de bondade. [...] Assim, não é bem a
felicidade o que ele procura, ‘pois precisamente o que se procura é que se chama
felicidade’”.49 A frase é um pouco enigmática, mas, à luz do restante do ensaio e da
ascendência nietzschiana que Sergio identifica no pensamento Gide, ela parece indicar
que o sentido da existência está na valorização de um ideal de vida como conquista da
vontade sobre os obstáculos que o mundo lhe antepõe.
Esse é um aspecto importante da admiração de Sergio por Gide, pois, talvez ainda
mais que Gide, Nietzsche é um autor que acompanhará Sergio até o final de sua vida –
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pense-se, aqui, na forte sugestão nietzschiana do título de seu último escrito de fôlego,
o ensaio “O atual e o inatual em Leopold von Ranke”. É verdade que contato de Sergio
com Nietzsche já se denunciava em textos da primeira fase, sobretudo, possivelmente,
por intermédio do crítico dinamarquês Georg Brandes, o primeiro intelectual de algum
prestígio a difundir o pensamento de Nietzsche, e o único que o fez durante a época em
que o filósofo alemão ainda era lúcido50. É Gide, porém que vai acelerar e condicionar
a recepção inicial de Nietzsche pelo crítico brasileiro, pois, como se verá, o
irracionalismo nietzschiano é filtrado pelo misticismo cristão de tonalidade romântica
de Gide – em leitura contrária, certamente, a qualquer que possa ter sido a intenção do
autor do Anticristo. Gide é “anticristão” na medida em que impõe ao cristianismo uma
leitura pessoal e o transforma numa doutrina subjetivista de valorização do desejo e da
vida, da mesma maneira, segundo a opinião de Sergio, que o poeta inglês Robert
Browning: “A ideia de que são nocivas as interdições do Decálogo e de que ‘a força, o
amor e a vontade’ bastam para restringir, suprimir ou substituir aquelas interdições, é
frequente não só na obra do poeta inglês como também na de Gide”51. Esse cristianismo
chega às raias de um relativismo radical, e está bem próximo daquilo que Carl Schmitt,

49
“André Gide”, cit., p. 171.
50
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Apêndice: Uma carta. In: Ecce Homo. Como alguém se torna o que é.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 121-2.
51
“André Gide”, cit., p.172.
87

em sua crítica do romantismo, chama de “ocasionalismo”, ou seja, uma doutrina


segundo a qual as decisões são tomadas segundo a disposição momentânea dos afetos
do sujeito, para ele, correspondente à estrutura profunda do pensamento romântico52.
Assim, ignorando praticamente toda a tradição do cristianismo organizado, Gide
pretende se arvorar na palavra de Cristo contra as doutrinações de Paulo:

Na tentative amoureuse ele insinua um pensamento que vamos encontrar no segundo


caderno da Symphonie pastorale: “Não encontro precisamente proibições na doutrina do
Evangelho”. Não se engana quem disser que Gide, como o pastor da Symphonie, escolhe
na doutrina do Evangelho “o que lhe agrada”. Mas o que lhe agrada é exatamente a
palavra de Cristo. Não escolho tal ou qual palavra de Cristo. Simplesmente entre o Cristo
e São Paulo escolho o Cristo.”53

Logo mais, Sergio volta a comparar Gide com Robert Browning, e dessa
comparação extrai um entendimento mais sutil do francês. Para Browning “o sentido
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da terra traduz-se num princípio de lucro”54. A atitude de Browning, tal como exposta,
seria a de uma sofreguidão fáustica pela quantidade e pela satisfação dos desejos.
Sergio atualiza a problemática que havia movido o ensaio “os poetas e a felicidade”,
restringindo, com grande proveito, a comparação a dois escritores. Não custa salientar
que ele volta, portanto, à modalidade crítica como exploração dos painéis existenciais
encerrados no texto literário que caracterizará seus melhores ensaios e que já aparecera
de modo algo desajeitado na primeira fase: Sergio lê os poetas e romancistas como
criadores de mundos conformados pela sua arte. A morte é sempre uma presença
destacada, e a poesia é tomada como uma resposta para os seus mistérios e para a
significação da vida e de seu valor – ou seja, daquilo que anos antes era compreendido
como “felicidade”, e que Gide, na esteira de Nietzsche, entenderá ser a busca mesma,
o impulso aspiracional. Esse impulso, porém, admite diferentes configurações: o
“princípio de lucro” eminentemente extensivo e quantitativo de Browning contrasta
com a adoração, por Gide, do instante e da maravilha da vida, intensivos e qualitativos,
de inspiração nietzschiana. O leitor da primeira edição de Raízes do Brasil reconhecerá
aqui, talvez, uma célula originária do contraste entre a “aderência ao mundo” e o “viver

52
Cf. SCHMITT, Carl. Political Romanticism. Cambridge, MA: MIT Press, 1986, p. 7-8;16; 78-108.
53
“André Gide”, cit., p. 172-3.
54
Ibid., p. 175.
88

nos outros” (aqui antecipado pela ideia de uma “renúncia à individualidade”) do


homem cordial e de Gide com a “alma fáustica” de Oswald Spengler encarnada, de
certo modo, pela aspiração menos sutil de Browning (lembre-se de passagem que, na
Decadência do Ocidente, a ser discutido mais à frente, o modelo do homem fáustico
em sua versão moderna é o venal magnata colonial Cecil Rhodes)55:

A única cousa que o detém [a Browning] diante das experiências desta vida, é a
possibilidade de perda, e a sua pergunta constante confunde-se com a do bispo na Bishop
Blougram’s Apology: “Where’s the gain?”. À questão oposta responde um de seus
personagens: “Lose? Talk of loss and I refuse top lead at all.” O seu biógrafo Sutherland
Orr ensina-nos que “ele sempre contava como um dia perdido aquele em que nada
houvesse escrito”. Em outra passagem de sua Life of Robert Browning refere-se à
convicção contínua do poeta de que a sua última obra devia ser naturalmente a melhor
por ser o resultado de uma experiência mental mais completa e de uma prática maior em
sua arte. Esse princípio de lucro “compõe uma das faces mais características de sua
concepção afirmativa da vida[”]. Não é fácil separá-lo do pensamento essencial de
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Browning. Dir-se-ia que este acumula suas sensações, esquecendo de estabelecer a


síntese necessária. Gide entretanto realça quase sempre o pensamento oposto. “A cada
pequeno momento de minha vida”, diz ele, “eu pude sentir em mim a totalidade de meu
bem”. Em todo o caso, não deixa de subsistir aqui o “princípio de lucro” de Browning.
E eu creio que não seria preciso muito esforço para encontrar a sua expressão nos livros
já numerosos de quem escreveu o Imoralista.56

É significativo, por sinal, que Gide tenha em comum uma certa problemática da
fragilidade do sujeito com o outro grande mestre de Sergio em matéria de moral e
estética, Thomas Mann, que Sergio analisará dez anos depois, em artigo de 193557.
Problemática, de resto, típica da literatura do começo do século XX, mas que nesses
autores toma um complexo de tonalidades e traços semelhantes. O grande tema que
atrai Sergio à ficção de Thomas Mann é o do artista que precisa criar para escapar ao
perigo da desagregação de sua personalidade, ao mesmo tempo que essa criação é um
flerte com o abismo mesmo da desagregação – problema trabalhado nas duas obras que
talvez fossem, àquela altura, as favoritas do crítico, as novelas A morte em Veneza e

55
SPENGLER, Oswald. Decline of the West, v. 1. Form and Actuality. Nova York: Alfred Knopf, 1926,
p. 4; 37-8.
56
“André Gide”, cit., p. 175-6.
57
“Thomas Mann”. In: Raízes de Sergio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 294-7.
Este volume será referido, doravante, pela abreviatura RSBH. Texto originalmente publicado na Folha
de Minas, 25 mar 1935.
89

Tonio Kroger. Numa preleção sobre “A influência em literatura” reunida nos Prétextes
e citada no ensaio de 1924, lê-se que

[E]xatamente hoje, mesmo sem fazer profissão de individualismo, pretendemos ter cada
um a nossa personalidade, e que, mesmo que essa personalidade não seja muito robusta,
mesmo que ela pareça, a nós mesmos ou a outros, um pouco indecisa, cambaleante ou
fraca, o medo de perdê-la nos persegue e arrisca estragar as nossas alegrias mais reais.58

Já no ensaio de 1935, após compará-lo com Gide, Sergio identifica em Thomas


Mann o que o francês não tem, isto é, um apego persistente ao decoro, à polidez, aos
confortos da civilização burguesa, exatamente como garantia contra as ameaças dos
elementos sombrios que habitam as profundezas da alma, das consequências que
psíquicas que pode trazer a descoberta das verdades mais profundas, ou uma reflexão
mais detida sobre aquilo que as obras de arte e os sentimentos mais primitivos já
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sugerem: a tragicidade da existência:

A ironia, a dignidade, a medida, o bom-tom são nele, antes de tudo, os diques de que
carece para conter o encantamento indefinido da música, a decomposição mórbida, o
doce relaxamento sensual, todos os princípios anárquicos e niilistas que procura resolver
pela arte e que, no entanto, transparecem inflexíveis em todas as suas teses.59

Gide, por outro lado, para quem “a contradição ainda é superficial e apenas
sensível”60, parece encontrar uma solução (ou irresolução) menos paralisante, ou, no
mínimo, menos trágica, e, nos termos do texto de 1924, depois resgatados na
comparação com Mann, consegue se inserir no mundo moral com certa liberdade,
aderindo mais ou menos indistinta e plasticamente ao que as afinidades eletivas das
suas profundezas anímicas determinam. Ele logra manter, porém, com o “fio de
Ariadne” do “esforço para a volúpia”, a constância de uma aspiração, pode-se dizer
que fáustica, ainda que com a reserva de que o Fausto goethiano é, ao menos segundo
uma leitura mais convencional, uma personagem muito mais sólida e determinada do
que o eu literário de Gide. Ou ainda, pode-se dizer que o “fáustico” de Gide é uma

58
GIDE, André. De l’influence em littérature. In: Prétextes. Réflexions sur quelques points de littérature
et de morale. Paris: Mercure de France, 1919, p. 16-7.
59
“André Gide”, cit., p. 295-6.
60
Ibid., p. 295.
90

apropriação de certa noção de vontade de poder nietzschiana temperada, porém, por


um cristianismo íntimo e sensualista – um cristianismo, por seu turno, nietzschianizado
e reconfigurado à luz do dogma da vontade, ou, na própria expressão de Sergio, que
talvez traduza melhor do que “vontade” as conotações de que Nietzsche reveste seu
conceito de Wille, do “esforço para a volúpia”. Note-se, aproveitando novamente o
ensaio sobre Mann, que Sergio verá no alemão uma coragem mais radical diante do
abismo, ainda que suas consequências sejam menos edificantes, pois a superficialidade
que a contradição existencial entre os impulsos vitais e a verdade trágica da arte assume
para Gide leva-o a “considerá-la serenamente e até complacentemente”61.
Depois de publicar seu ensaio sobre André Gide, Sergio se associa a Prudente de
Moraes Neto na criação e direção da revista Estética, que, embora sediada no Rio, se
propõe como sucessora de Klaxon na condição de veículo do movimento modernista.
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A revista só duraria três números, mas percebe-se nos textos que Sergio nela publicou
como a experiência cumpriu um importante papel em sua formação crítica. No primeiro
número da revista, Sergio assina o ensaio “Um homem essencial”62, dedicado à obra
de Graça Aranha, com um destaque especial para suas recém-publicadas Notas e
comentários à correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco, que o
escritor maranhense havia editado. Graça Aranha, figura de grande importância nos
primeiros tempos do modernismo, 63 emprestava seu prestígio no meio literário à
promoção de Estética, que tinha como inspiração a inglesa Criterion, mas foi nomeada
em cortesia à doutrina filosófica de Graça Aranha, cuja obra principal era a sua Estética
da vida.
Esta análise de Graça Aranha é importante, não apenas como documento do papel
de mediação que o escritor maranhense desempenha na inserção de Sergio Buarque na
cena crítica, mas na mediação que seu pensamento exerce, na formação de Sergio, com
a tradição intelectual brasileira. Não é a primeira vez que Sergio cita Joaquim Nabuco,
mas aqui o autor do Abolicionismo ganha relevo mediante as concepções filosófico-
antropológicas Graça Aranha sobre o Brasil e a modernidade. Ele próprio é, por seu

61
“Thomas Man”, cit., p. 295.
62
“Um homem essencial”, EL, I, p. 179-185. Texto originalmente publicado em Estética, I, 1, set 1924.
63
Cf. MORAES, Eduardo Jardim de. A brasilidade modernista. Sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro:
Ponteio, 2016.
91

turno, no movimento de inversão típico do estilo intelectual de Sergio, inserido no


quadro de pensamento desenhado por Nabuco nesta antológica passagem de sua
autobiografia Minha formação:

Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que explica o
fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os prazeres do
rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegantes dos milionários da Sul-
América; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a atração de afinidades
esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da nossa comum origem
europeia. A instabilidade a que me refiro, provém de que na América falta à paisagem,
à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva
humana; que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um de nós foi
vazado a nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência
do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia. As paisagens todas do
Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um
trecho da Via Ápia, uma volta da estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do Cais do
Sena à sombra do velho Louvre. No meio dos luxos dos teatros, da moda, da política,
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somos sempre squatters, como se estivéssemos ainda derribando a mata virgem.


Eu sei bem, para não sair do Rio de Janeiro, que não há nada mais encantador à vista do
que, ao acaso, a escolha seria impossível, os parques de S. Clemente, o caminho que
margeia o aqueduto de Paineiras na direção da Tijuca, a ponta de S. João, com o Pão de
Açúcar, vista do Flamengo ao cair do sol. Mas tudo isto é ainda, por assim dizer, um
trecho do planeta de que a humanidade não tomou posse; é como um Paraíso Terrestre
antes das primeiras lágrimas do homem, uma espécie de jardim infantil.64

Uma digressão sobre esta passagem será necessária antes de prosseguir à análise
de Graça Aranha. Poucos textos exerceram uma influência mais ostensiva sobre o
modernismo brasileiro. Mário de Andrade fez desse insight nabuquiano o molde
negativo de sua concepção da arte moderna brasileira, apelidando-o de “moléstia-de-
Nabuco”, expressão que empregou em forma escrita pela primeira vez, salvo engano,
em carta de 1924 a Carlos Drummond de Andrade, mas lhe pareceu tão certeira que ele
faria questão de repetir, um ano depois, em entrevista à imprensa carioca65 – motivo a
ser retomado adiante neste capítulo. Nesta passagem de Nabuco, talvez encontrasse,
condensado, o problema da formação brasileira, tal como ele lhe parecia em 1900,
retomando a experiência que tivera na década de 1870 ao visitar a Europa pela primeira
vez. O problema envolve a falta de tradição e de história – ausência figurada na forma

64
NABUCO, Joaqium. Minha formação. São Paulo: Ed. 34, 2012, p. 70-71.
65
FROTA, Leila Coelho (Org.); ANDRADE, Carlos Drummond; ANDRADE, Mário de. Carlos &
Mário. Correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-
te-vi, 2003, p. 70; “Assim falou o papa do futurismo”, A Noite, 12 dez 1925.
92

de uma involuntária inocência pré-lapsariana (a paisagem como “Paraíso Terrestre


antes das primeiras lágrimas do homem”) que a herança cultural europeia não permite
que se aproveite, pois a “imaginação” já está contaminada pela tradição, entrando
portanto em contato com o “sentimento”, que é telúrico e portanto brasileiro. Retornar
à Europa tampouco adianta, pois, lá, o problema se inverte – o mundo pleno de história,
ao brasileiro criado em nostalgia, acaba afigurando-se como “mata virgem”. Essa
ausência de um ponto de fuga resulta, para Nabuco, ao menos na leitura de Mário de
Andrade, no que ele chama de “melancolia de nós mesmos”66. Ele próprio acabará,
conscientemente ou não, retornando a esses termos no final de seu livro mais famoso.
“Ai, que preguiça!”, diz Macunaíma, o herói sem nenhum caráter de Mário, ao
longo seu périplo pelo Brasil, pela mata, onde há doença carestia, pelas cidades, onde
não há paz, até ir morar no “brilho inútil das estrelas”67. Macunaíma é a Ursa Maior,
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que não pode ser vista, senão no Hemisfério Norte. A vida de Macunaíma, vida de
preguiça, é coroada pelo triplo exílio da morte, da distância e da transfiguração em gás
luminoso. O desejo de Macunaíma, de-siderium, a expectativa de um bem que trarão
as estrelas, ficou irrealizado em meio ao des-astre, a obra de estrelas ruins. Morto,
Macunaíma se tornou a própria luz. Mas Macunaíma é uma estrela que não fará nada
por nós – uma estrela que da maior parte do Brasil não se pode ver, mas que ilumina o
“céu da Ática” com o qual sonhava Nabuco. A preguiça de Macunaíma, por sua vez,
tem uma origem mais erudita do que sugere a tonalidade oral e popular de seu bordão
cômico. Preguiça, em português, é como chamamos o que Santo Tomás de Aquino e
os teólogos medievais chamavam de acedia, também traduzido, alternativamente por
“tristeza”, pois tristitia quase se confunde com acedia na argumentação da Suma
teológica de Santo Tomás. Tristeza é o padecimento que, segundo Paulo Prado, no
Retrato do Brasil, livro lançado em fins de 1927, definiria a cultura do país. Em 1928,
Mário de Andrade lançou Macunaíma, livro que dedicou a Paulo Prado.

66
“Assim falou o papa do futurismo”, cit.,
67
O presente sobrevoo de Macunaíma, extremamente sumário, deve muito ao belo ensaio de Alfredo
Bosi: BOSI, Alfredo. Situação de Macunaíma. In: Céu, Inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica.
São Paulo: Ática, 1988, p. 127-141.
93

Na questão 84 da primeira parte do segundo tomo da Suma, Tomás de Aquino68


se pergunta pelas causas da inclinação humana ao pecado, o que o leva a se perguntar
se seriam mesmo sete os pecados capitais, listando aqueles costumeiramente elencados
pelos teólogos. A resposta inicial é que não, pois às quatro virtudes só poderiam
corresponder vícios em número igual; o número sete, porém, se impõe pela remissão
aos comentários (Moralia) de São Gregório ao livro de Jó e negação da origem comum
das virtudes e dos vícios: “as virtudes são causadas pela ordenação do desejo à razão,
ou por um bem imutável que é Deus”; os pecados, por outro lado, se vinculam ao desejo
pelos bens mutáveis Não seria necessário, portanto que “os principais vícios se
oponham às principais virtudes”69. Interessa menos comentar os contornos gerais que
essa discussão assume para o Doutor Angélico do que verificar a conceituação da
tristitia e sua versão para o português. Os pecados enumerados no início da questão
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são “inanis gloria [vanglória ou soberba], invidia, ira, tristitia, avaritia, gula,
luxuria”70. Na argumentação subsequente, porém, tristitia dará lugar a acedia, e terá
sua causalidade definida de modo a autorizar a tradução mais corrente de “preguiça”,
pois, ao trocar tristitia por acedia, alarga-se a possibilidade de atribuição de outros
vícios ao pecado: “todos os pecados que provêm da ignorância podem ser reduzidos à
acídia, à qual se refere a negligência pela qual alguém recusa adquirir todos os bens
espirituais por causa do trabalho”71. Preguiça, portanto, de cultivar a razão que levaria
a uma vida virtuosa. A ligação com a tristitia é explicitada um pouco antes:

Quanto ao evitar o bem por causa de um mal a ele unido, acontece de duas maneiras. Ou
isso diz respeito a um bem pessoal, e então, é a acídia, que se entristece com o bem
espiritual por causa do trabalho corporal adjunto [et sic est acedia, quae tristatur de bono
spiritual, propter laborem corporalem adiunctum]. Ou diz respeito a um bem dos outros
[...], inveja, [...]. Ou acontece com alguma rebelião vingativa, então é a ira.72

68
A edição consultada é AQUINO, Santo Tomás de. Suma teológica, v. 4. I Seção da II Parte – questões
49-114. São Paulo: Loyola, 2005.
69
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 456)
70
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 454).
71
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 457)
72
II, I, q. LXXXIV, a. 4 (p. 456)
94

Não exercitando o bem por meio de obras, o corpo do preguiçoso se enche da


bílis negra, a melancolia, conforme a tradição da medicina humoral clássica 73 . A
melancolia paralisa o corpo na falta de vontade ou na vontade desorganizada74, e seu
intelecto se entristece diante do bem que já não tem ânimo para fazer, mas do qual se
sabe capaz, em potência – sabe, porque mesmo o melancólico tem seu intelecto
iluminado pela luz natural da graça.
Enviando Macunaíma para o brilho inútil das estrelas depois de uma vida de
pecado – “luxúria” e “cobiça” são os temas dos dois primeiros capítulos de Retrato do
Brasil, seguidos de “tristeza” – Mário de Andrade presta uma homenagem a Paulo
Prado, mas também, sabendo-o ou não, a Nabuco, que tampouco deixou de criticar a
pouca disposição para o trabalho, mesmo o trabalho intelectual, entre os brasileiros,
como uma das causas da tibieza das expressões espirituais nacionais. Para Nabuco, os
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jovens artistas brasileiros, ao insistir em trabalhar sobre “material pouco consistente”


(sua própria realidade), ficavam fadados a uma produção artística “quase toda fácil,
improvisada, sem trabalho anterior, sem investigação, sem esforço, sem tempo, sem
nenhum elemento que revele continuidade, ambição.” A solução seria um maior
investimento das energias da intelectualidade – numa espécie de ascese pelo trabalho
– em estudos históricos. Nabuco bem sabia que isso era o mesmo que “aconselhar-lhes
a miséria”; contudo, completa, “as leis da inteligência são inflexíveis e a produção do
espírito que não se alimenta senão de sua própria imaginação, tem que ser cada dia
mais frívola e sem valor”75. “Trabalho” e “preguiça”, lembrarão os leitores de Raízes
do Brasil, são temas centrais ao livro de estreia de Sergio Buarque, marcando presença

73
Cf. STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia. Uma história cultural da tristeza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017, p.15-42
74
O quarto capítulo do Retrato do Brasil, que trata do “Romantismo” como prolongamento no século
XIX de uma predisposição à tristeza já presente em tempos coloniais, reproduz a concepção humoral
com nitidez cristalina. Note-se que em Raízes, que toma emprestada ao Retrato vários elementos formais
e alguns conteúdos, esse argumento será ecoado, ainda que com tintas diferentes e uma fundamentação
diversa. Eis o que Paulo Prado tem a dizer sobre os poetas românticos, que levam ao paroxismo
disposições espirituais que representam o todo da cultura nacional: “O desejo de morrer vinha-lhes da
desorganização da vontade e da melancolia desiludida dos que sonham com o romanesco na vida de
cada dia. E fisicamente fracos pelo gasto da máquina nervosa, numa reação instintiva de vitalidade,
procuravam a sobrevivência num erotismo alucinante, quase feminino. Representavam assim a astenia
da raça, o vício das nossas origens mestiças.” PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
75
Joaquim Nabuco, Minha formação, cit., p. 98.
95

desde o parágrafo de abertura do livro: “todo fruto de nosso trabalho ou de nossa


preguiça participa de um estilo e de um sistema de evoluções naturais a outro clima e
a outra paisagem”.
É impressionante a coincidência temática e analítica com o antológico trecho de
Nabuco, talvez o mais pungente de que dispõe nossa literatura em prosa sobre
problemática do exílio – a frase anterior a esta, em Raízes do Brasil, é a que termina
com a frase que é provavelmente a mais famosa e a mais nabuquiana de todo o livro:
“somos ainda uns desterrados em nossa terra”. 76 Estão presentes aqui as mesmas
preocupações que moveram a reflexão de Nabuco e a de Mário, a saber, os transtornos
inerentes à conformação mental dos brasileiros em virtude do descompasso entre
paisagem e cultura, a ainda, a falta de formação, intimamente relacionada à falta de
uma tradição e de expressões letradas que fizessem justiça a essa experiência, para usar
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os termos do parágrafo de abertura de Raízes, “sem símile”. Raízes tentará apontar,


como se procurará indicar no terceiro capítulo, uma síntese possível para essa
contradição. Síntese que, de certo modo, Graça Aranha, que Sergio analisava com
grande interesse e em cotejo com Nabuco no número inicial de Estética, também havia
tentado.
No artigo “Um homem essencial, Graça Aranha é lido por Sergio Buarque sob o
prisma da passagem de Minha formação sobre a “imaginação” brasileira, que Nabuco
diz ser europeia, e o “sentimento”, que, para o pernambucano, já seria local. Graça
Aranha discorda e atribui o europeísmo da imaginação de Nabuco ao fato de ela ser
puramente “política” – portanto historicamente orientada – de modo que não vê valor
em paisagens onde não haja uma história entranhada. Graça, por outro lado, vê na
paisagem inculta o espaço ideal para a expansão ideal dos sentimentos e da criatividade
humana, ou seja, tem imaginação estética: “Paisagem sem história, afortunado
privilégio! e aí o espírito do homem pela pura emoção estética se torna infinito!”77
Aranha e Nabuco encarnam duas soluções diferentes para o dilema brasileiro: um tem
a nostalgia europeia, o outro nega a história como lastro da experiência humana – pode-
se dizer que é o mais “cordial” dos dois, na medida em que a cordialidade, em Raízes

76
RB, p. 3.
77
“Um homem essencial”, cit., p. 180-1.
96

do Brasil, é uma forma mental determinada pelos afetos, ou seja, esteticamente


governada, empregando os termos de Graça Aranha, que vê na natureza, com todo o
esplendor aistórico que oferece aos sentidos, uma espécie de folha em branco ideal para
a expressão criativa do homem, que no Brasil terá, portanto, a oportunidade de criar
uma arte virgem e potente como a paisagem que o cerca:

[Em Aranha] o gênio político chega a uma solução oposta [à que Nabuco dá] do
problema, quando diz que a imaginação histórica deprime o homem completo que é para
ele o artista (está claro que o autor se refere à América, onde a história não chega a criar
uma tradição viva como no Velho Mundo). [...] À falta de tradições, que o homem novo
criado na América pelo contato de civilizações milenares com uma natureza entranha
não deve aceitar, resta ao homem americano, e ao brasileiro em particular, a imaginação
estética criada ainda no “inconsciente mítico” onde ainda não foi de todo eliminado o
“terror cósmico”.78
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Depois da comparação com Nabuco, Sergio passa à análise da galeria de


pensadores analisados na Estética da vida de Graça Aranha, dizendo sobre o escritor
resenhado algo que poderia ser dito de seu próprio método crítico, tal como ele o vem
refinando e que dentro em pouco chegará à maturidade:

É assim que cada personagem encarna, exprime, representa, e não só representa como
traz em si todo um sistema, toda uma sensibilidade ou todo um mundo. Esse processo é
paralelo ao da biologia moderna, representada por von Uexküll e outros, segundo os
quais o indivíduo é inseparável de sua paisagem. É impossível a um artista reproduzir
em um quadro uma árvore deixando de considerar o fundo da tela e só se pode
representar a unidade do quadro com esse conjunto.79

Não custa salientar o aceno que este paragrafo não deixará de sugerir ao leitor
que ainda tiver no limiar de sua memória a frase há pouco reproduzida de Raízes do
Brasil, onde se lê que a cultura brasileira, ou melhor “todo fruto de nosso trabalho ou
de nossa preguiça’”, “participa de um estilo e de um sistema de evoluções naturais a
outro clima e a outra paisagem”. Essa interação entre individualidade e paisagem, ou,
em outras palavras, o mundo, é o móvel de um método crítico que não é governado por
regras a priori de análise, mas faz a análise fluir do objeto analisado ao construir, para

78
“Um homem essencial”, cit., p. 181.
79
Ibid., p. 182-3.
97

interpretá-lo, dedutivamente, todo um mundo de formas, “todo um sistema, toda uma


sensibilidade ou todo um mundo”. “Tratando de um determinado autor ou criando um
personagem de ficção”, escreve Sergio, “seu espírito deve se interessar menos na
psicologia em si do personagem ou do criticado, que na síntese social que um e outro
representam. A psicologia virá naturalmente, mas em função dessa síntese”80. Essas
são palavras que se poderiam aplicar sem dificuldades a Raízes do Brasil e à melhor
crítica de Sergio nos anos 1940 e 1950.
Sobre Machado de Assis, Graça Aranha diz existir certa “incompatibilidade”
entre o autor e o “meio cósmico brasileiro”. Já sobre Nabuco, Aranha diz que mostrava
“heroísmo”, ao “limitar as suas relações espirituais” para “não se perder no desvario”,
manifestando “disciplina no nosso tumulto” – a observação do autor da Estética da
vida não deixa de ser aguda quando se lembra que Minha formação apresenta uma
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narrativa de disciplinamento da subjetividade melancólica até uma determinação


conquistada mediante a ascensão a um plano “clássico” de tons ascéticos, como
demonstrou Ricardo Benzaquen em luminosa análise81. Mas a solução de Graça Aranha
para o dilema brasileiro é diversa da de Nabuco. Ele tenta aproximar nossa “raça” e
nosso “meio” sob os auspícios daquilo a que chama “espírito moderno”, de modo a
abrir caminho para uma maior “afirmação da nossa individualidade nacional”. Se essa
ainda não se revelou por “obras de mérito excepcional”, escreve Sergio Buarque em
sua resenha, pelo menos as reflexões de Graça Aranha valeriam como uma “negação
das negações, que são os obstáculos para uma afirmação maior.”82
Também no primeiro número de Estética, aparece um artigo sem indicação de
autoria intitulado “Romantismo e tradição”83. Como se verá, é um texto que reverbera
no pensamento de Sergio Buarque, mesmo na improvável hipótese de que ele não seja
de sua lavra. Trata-se, antes de mais nada, de uma tradução comentada de excertos de
um artigo do crítico inglês John Middleton Murry originalmente publicado em The
Criterion, revista literária da vanguarda artística inglesa, na qual atuou também T. S.

80
“Um homem essencial”, cit., p. 183.
81
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Através do espelho: Subjetividade e narrativa em Minha formação,
de Joaquim Nabuco. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 56, out 2004, p. 5-13.
82
“Um homem essencial, cit., p. 185.
83
“Romantismo e tradição”, EL, I, p. 194-200. Texto originalmente publicado em Estética, I, 1, set 1924.
98

Eliot. O texto começa apresentando a posição antirromântica de um escritor francês


ligado à Action Française, Pierre Lasserre. Nas palavras de Sergio, Lasserre propunha,
contra os efeitos do romantismo, uma “revisão completa dos valores do último
século”84 – posição que, pode-se depreender da reação de Sergio em “O lado oposto e
outros lados” contra intelectuais e pontos de vista aos quais se associara anteriormente,
talvez estivesse na origem das invectivas do próprio Sergio contra aquilo que, no
começo de sua adesão modernista, denominara a “esterilidade rara” do século XIX85.
Essa introdução através de Le romantisme français, de Lasserre, livro que “constituiu
durante muito tempo o manancial mais autorizado de todo um grupo de críticos e
pensadores” em estética, na verdade, é pouco mais do que um pretexto para a
introdução de certas ideias mais novas que, no decorrer do texto, terminarão por
reabilitar o romantismo. Essas ideias estão no ensaio Literature and religion de John
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Middleton Murry, publicado na The Criterion, para quem “classicismo” e


“romantismo” são tradições perenes que sempre coexistiram na literatura. A partir daí,
o artigo se limita em boa medida a traduzir ou parafrasear o texto de Murry. A leitura,
porém, é um tanto enviesada, pois a oposição polar entre classicismo e romantismo
parece ser, no texto original, apenas uma derivação do problema mais amplo das
relações entre literatura e religião. O romantismo, nesse sentido, é expressão do
enfraquecimento de certa “religião dogmática” cuja mensagem precisa ser aproveitada
e remodelada pelos artistas românticos, que serão os portadores históricos, nos novos
tempos, desse conhecimento até pouco tempo atrás reprimido pela voga cientificista e
técnica:

O crítico chega a supor [...] que o esplendor do espírito religioso, no sentido dogmático,
não coincide com o esplendor de uma literatura e que, ao contrário, um está na razão
inversa do outro. É possível mesmo que a decadência da religião dogmática, devida à
impossibilidade de exprimir uma realidade religiosa e de satisfazer aos impulsos
religiosos do espírito, seja uma condição indispensável para que a literatura venha a
florescer. É possível que chegue a uma época em que os espíritos mais sutis sejam
levados a ser da Igreja, mas sem pertencerem a ela: precisamente pelo fato de serem
profundamente religiosos, trabalham em completa independência do que passa por
religião em sua época. O romantismo é para ele alguma coisa que sucedeu à alma

84
Ibid., p. 194.
85
“O futurismo paulista”, cit., p. 131.
99

europeia depois do Renascimento, e o fato essencial do Renascimento é que o homem


afirmou a sua completa independência de uma autoridade espiritual externa.86

Não é difícil adivinhar a estreita afinidade que essas ideias terão encontrado, aos
olhos de Sergio Buarque, no misticismo subjetivista de inspiração cristã de André Gide,
que não via no Decálogo nenhum impedimento à sua própria ética e privilegiava aquilo
que entendia ser o ensinamento de Cristo ao de Paulo. Continuando sua resenha do
artigo de John Murry, Sergio identifica na independência “renascentista” que permite
ao homem se desamarrar das rígidas doutrinas teológicas medievas a essência da vida
espiritual do moderna:

A descoberta de Galileu era apenas “o sinal visível e exterior de um acontecimento


interior e espiritual, acontecimento que naturalmente agiu sobre a alma de Shakespeare.
O Homem não era o centro do Universo e sentia-se isolado em face de seu destino. A
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consciência moderna começava a pesar sobre os homens”. A base da consciência


moderna está nisso, que o indivíduo se coloca à parte e isolado, “sem o apoio de nenhuma
autoridade, e procura julgar por si mesmo da vida de que ele é uma parcela”.87

Outra vez, em análise típica da crítica de Sergio, a discussão se encaminha para


o problema das diferentes perspectivas sobre a significação da vida e da morte: o
Renascimento, época que aspirava a ver justiça e harmonia no mundo, rebelava-se
contra a autoridade espiritual da Igreja, perdendo, contudo, as garantias que ela oferecia
contra os terrores do mundo – a salvação e a ventura da vida após a morte. O
romantismo viria, então, solucionar esse paradoxo do homem moderno, cujo
conhecimento sobre o mundo seria governado por leis causais, ou seja, pela
necessidade, mas entrava em contradição com seu mundo espiritual interior, onde,
segundo Murry, essa razão não apenas estaria desprovida de confirmações empíricas,
como seria uma espécie de desvio, de desafio à natureza do espírito. O romantismo
responde a esse paradoxo com uma reconciliação mística entre essa interioridade de
tendências irracionais e o mundo:

[O] homem é inevitavelmente levado a procurar por uma compreensão não racional do
mundo. Ele não pode socorrer a si mesmo; ele precisa encontrar a harmonia; ele não

86
“Romantismo e tradição”, cit., p. 196.
87
“Romantismo e tradição”, cit., p. 197.
100

pode viver em rebelião; ele necessita reintegrar-se na vida. Desse modo vemo-lo
prender-se na literatura a esses momentos de profunda apreensão [...]. Essa apreensão
pode ser chamada apreensão mística, e não é um erro afirmar que “a característica
realmente distintiva do movimento romântico é precisamente essa solução mística do
paradoxo”.88

O romantismo teria, portanto, a missão histórica espiritual de dar voz a uma outra
ordem de conhecimento, derivada da “apreensão mística” e regida por necessidades
orgânicas, e não racionais (ou seja, mecânicas):

[Os românticos] sentiam que o mundo exterior não era sujeito à lei racional de
necessidade; era um organismo que eles conheciam tal como conheciam a vida existente
nele. “E há de parecer estranho que a sua apreensão deva ser também [...] uma apreensão
de necessidade: da necessidade: da necessidade de que aquilo que eles [misticamente]
veem deva ser assim e não de outra forma. Mas isso só parecerá estranho porque nós
vivemos hipnotizados pelas palavras e parece-nos difícil imaginar que existam duas
necessidades, assim como dois conhecimentos. Existe a necessidade do mundo
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inanimado concebido pelo intelecto, que é a necessária dependência do efeito com


relação à causa, e existe a necessidade do organismo vivo, apreendido imediatamente,
uma tendência para seguir sua própria lei interior de vida. A visão mística é uma visão
de necessidade orgânica.89

Assim compreendido, o romantismo é menos um movimento estético do que um


paradigma epistemológico encerrado numa linguagem própria, cuja vocação seria a de
ver as coisas sob uma claridade diferente daquela da razão e das palavras que nos
“hipnotizam”. O texto termina com uma interpretação de Murry que cala fundo na
reflexão posterior de Sergio Buarque, pois já antecipa aquela observação, feita quinze
anos depois, de que “nós, homens de 1940, continuamos a viver em pleno romantismo”:
“Toda época em que domina a chamada consciência moderna é, pode-se dizer, uma
época romântica. O curto período a que geralmente damos esse nome não é mais que
um pequeno segmento de uma grande curva: romantismo dentro do romantismo”90. O
entusiasmo com que Sergio adere a essa nova concepção de romantismo, ou melhor,
nos termos da resenha de Murry, a essa a tomada de consciência do caráter romântico
próprio ao seu pensamento, já é sugerido neste texto, mas poderá ser confirmado em
“Perspectivas”, texto da terceira e última edição de Estética, a ser analisado em breve.

88
Ibid., p. 199.
89
“Romantismo e tradição”, cit., p. 199-200.
90
Ibid., p. 200.
101

Na segunda edição de Estética, onde os textos críticos são co-assinados por


Sergio e Prudente de Morais Neto, aparece uma resenha dos Estudos brasileiros91 de
Ronald de Carvalho, interessante menos por seu objeto do que pela indicação de que
Sergio começa a manifestar certa insatisfação com certos autores modernistas,
especialmente em sua visão do que viria a ser uma arte nacional. Ronald reunira sob o
título de Estudos brasileiros quatro conferências proferidas a um público mexicano.
Para Sergio e Prudente, esses textos seriam deficientes mesmo a título de introdução
para estrangeiros:

Que dizer sobre as nossas coisas, em quatro conferências apenas, a um público que nos
desconhece? Antes de tudo era preciso iniciá-lo, e Ronald de Carvalho mal teve tempo
para essa iniciação. Daí o resumir-se em seu livro em simples esboços históricos da nossa
vida social e artística, em maior vantagem para quem, como nós, tem tantos historiadores
e tão pouca história.
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O que nos falta – um pouco de espírito crítico – falta também ao livro, que não consegue
colocar homens e fatos à vontade nos seus lugares.92

A falta de conhecimento histórico de Ronald, que não o impede de entrar a


pontificar sobre as “nossas coisas”, é um incômodo que reaparecerá em “O lado oposto
e outros lados” e também na página de abertura de Raízes do Brasil, onde se lê este
sutil reproche à afoiteza com que os modernistas pretendiam conhecer o Brasil e a partir
desse conhecimento erigir uma “construção” cultural nova: “antes de investigar até que
ponto poderemos alimentar no nosso ambiente um tipo próprio de cultura, cumpriria
averiguar até onde representamos nele as formas de vida, as instituições e a visão de
mundo de que somos herdeiros e de que nos orgulhamos”93. Se voltarmos ao texto sobre
os Estudos de Ronald, notaremos ainda algum desconforto com a atmosfera auto-
laudatória e triunfalista do movimento modernista (“falta”, lê-se já no trecho
anteriormente citado, “espírito crítico”). Carvalho recai inclusive nos cacoetes
mecânicos da velha crítica que identifica “literatura nacional” com “temas nacionais”.
Mesmo em seus primeiros textos, desde “Originalidade literária”, Sergio tinha um
entendimento um pouco mais sutil da questão. Aqui, ele lembra que o “nacionalismo

91
“Ronald de Carvalho: Estudos Brasileiros, Anuário do Brasil, Rio, 1924”, EL, I, p.. 204-6. Texto
originalmente publicado em Estética, II, 1, jan-mar 1925.
92
“Ronald de Carvalho: Estudos Brasileiros, Anuário do Brasil, Rio, 1924”, cit., p. 204.
93
RB, p. 3.
102

de um artista é subjetivo e não objetivo. Está no espírito e não no ambiente das obras
que cria”94.
Mesmo assim, Sergio e Prudente mantêm certa diplomacia quando terminam o
texto distinguindo Ronald positivamente dos outros modernos, que seriam, em sua
maioria, “confusos” 95
. Ronald consegue escapar ao problema por ser, um
“temperamento profundamente clássico”: “Diz tudo o que quer. Só o que quer. Seu
pensamento e sua forma coincidem. Adaptam-se.” O elogio não deixa de ter um lado
menos abonador, pois percebe-se aqui no julgamento crítico a distinção entre clássicos
e românticos, já presente no texto sobre John Murry, sendo os modernistas
caracterizados como românticos e Ronald como clássico. Depreende-se da adesão
romântica de Sergio, que se denuncia mais plenamente em textos posteriores, que
Ronald, se não chega a ser enquadrado como mau poeta, já é compreendido como
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pertencente a uma facção adversária em suas concepções estéticas e artistas.


Em texto do mesmo número de Estética sobre Manuel Bandeira 96 , Sergio e
Prudente (provavelmente com protagonismo de Sergio, pois o vocabulário e os torneios
de frase e pensamento desse texto são bem característicos do primeiro), vão se debruçar
sobre o poeta que Sergio já abordara três anos antes em texto da Fon-Fon. Este texto,
como aquele, é curto, mas incomparavelmente mais sutil e maduro:

O requinte depravado e histérico do Carnaval não rompe com esse furor místico. Ele se
liberta o mais que pode das influências de alguns poetas que lhe parecem ter sofrido um
pouco de seu mal [a melancolia], para encontrar uma nota inédita na poesia de língua
portuguesa. Nunca se viu num poeta nosso esse refinamento selvagem que demonstram
quase todos os poemas do Carnaval. Nada aparentemente mais longe de certas notações
líricas de Cinza das horas. Sente-se porém que esse chocalho contínuo e bárbaro de seus
novos versos é ainda uma solução lógica de sua maneira inicial. Não encontrando
disposição interior para acompanhar o tumulto dionisíaco que apenas seus olhos sentem,
e incapaz, por outro lado, de se isolar do tumulto, ele participa da vertigem geral sem
apagar entretanto o fundo melancólico de sua inspiração: “O meu Carnaval sem
nenhuma alegria...”97

94
Ibid., p. 205.
95
Ibid., p. 206.
96
“Manuel Bandeira: Poesias. Revista de língua portuguesa, Rio de Janeiro, 1924.”EL, I, p. 207-209.
Texto originalmente publicado em Estética, II, 1, jan-mar 1925.
97
Ibid. p. 208.
103

A alusão ao “furor místico” de Bandeira denuncia novamente a ação do ensaio


de Murry sobre o pensamento de Sergio, assim como a noção paradoxal de um
“refinamento selvagem”, também possivelmente filiável a alguma ascendência gidiana.
Selvagem, talvez, porque “depravado” e entregue aos impulsos psíquicos mais
primitivos. Refinado, por outro lado, porque esses mesmos impulsos traem uma alma
que, incompatível com o espetáculo “dionisíaco” onde se encontra, não opta por uma
solução unilateral de isolamento, mas consegue participar do “furor” tingindo seu
lirismo com um fundo melancólico igualmente atávico, mas que acaba transfigurando
toda a situação existencial “carnavalesca”. Analisando o Carnaval de Bandeira, a dupla
de críticos exprime um juízo em oposição frontal com o daquele Sergio de três anos
antes, que, ao examinar os mesmos versos, identificara um lirismo “efusivo” e movido
por “simples capricho”, “sem nenhuma razão de ser” – que seria de esperar de um
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“carnaval” mais arquetípico: “É impossível não sentir que se a sua tristeza surge
fantasiada em cores bizarras é sempre o seu sentimento profundo – e esse sentimento
é sempre melancólico – que recebe o imprimatur da consciência do artista.”98 No final
do texto Bandeira será comparado a William Blake, embora a obsessão sombria da
morte nunca permitirá ao brasileiro escrever inocentemente como o inglês. Essa
inocência, porém, uma “inocência superior que é a singularidade essencial dos
verdadeiros poetas”, e que talvez não seja imprudente chamar de romântica, é algo que
“nunca, neste país, ninguém exprimiu melhor” do que Manuel Bandeira.99
O segundo número de Estética traz ainda uma resenha de Prudente e Sergio sobre
as Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade100, onde a nota
principal é a falta de rigor formal que os críticos identificam no romance de Oswald.
Pioneiro em técnicas narrativas que começavam a pipocar na Europa – Antonio Arnoni
Prado considera improvável que Oswald tivesse lido o Ulysses, publicado dois anos
antes, quando escreveu seu livro. “A margem que envolve cada episódio”, escrevem os
críticos, “é larga demais para não furtar à narrativa a continuidade e a duração que o
motivo comportava. Em compensação, cada capítulo, cada episódio tomado

98
“Manuel Bandeira: Poesias. Revista de língua portuguesa, Rio de Janeiro, 1924.”, cit., p. 208.
99
Ibid., p. 209.
100
“Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, São Paulo, 1924”, EL, I, p. 210-3.
Texto originalmente publicado em Estética, II, 1, jan-mar 1925.
104

isoladamente possui por si só e de sobra a intensidade que falta ao conjunto.”101 A


opinião pode ser acertada do ponto de vista do universo literário da época, mas hoje
parece pertencer a um universo crítico que ainda não se aclimatou inteiramente às
transformações do romance de vanguarda. Note-se, de passagem que há razões para
suspeitar que esse texto seja da lavra de Prudente, pois tem uma prosa mais solta e
menos povoada do vocabulário sempre, ainda que involuntariamente, arcaizante de
Sergio, que, nos textos onde tenta reproduzir a escrita oralizante dos modernistas,
costuma soar um pouco afetado, ao menos para leitores do século XXI.
Seja como for, não parece estar no horizonte interpretativo dos críticos a hipótese
de que, nas Memórias sentimentais, cujo título e o tom ecoam a o mais conhecido
romance de Machado de Assis, o narrador seja pouco fiável ou uma figura construída
com a intenção de produzir um ponto de vista antagonístico às disposições morais do
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leitor. Não admira, por sinal, que tal possibilidade tenha escapado a críticos burgueses
paulistas, mesmo que eles percebessem os defeitos com que Oswald tingia as figuras
ali pintadas. Aproveitando aqui um insight interpretativo de Luiz Costa Lima sobre as
literaturas periféricas, vale propor a hipótese de que os críticos esperam na estrutura
narrativa a afirmação ou negação de um “pai hierático”, sem que lhes ocorra a
possibilidade do trickster, iniciada no Brasil com Machado, que eles compreendem
simplesmente como um romancista filosofante e melancólico (veja-se o que se diz
sobre Machado no texto sobre Graça Aranha, “Um homem essencial”). Ora, o Miramar
de Oswald, assim como Macunaíma, são documentos exemplares da capacidade da
literatura em se propor como um drible de estruturas de “controle do imaginário”
arquetipicamente patriarcais e ligadas aos centros hegemônicos da cultura – não admira
que a literatura do trickster é onde as expressões intelectuais periféricas conseguem
atingir níveis superiores com mais desembaraço102. Nesse mesmo texto sobre Oswald,
aliás, José de Alencar é louvado como escritor que transpôs a vida brasileira em sua
prosa ao se permitir em seus romances a ousadia de “escrever brasileiro” 103 . Já no
Miramar de Oswald, Sergio e Prudente vão identificar um exercício meramente

101
Ibid., p. 210.
102
Cf. COSTA LIMA, Luiz. O pai e o trickster. In: Terra ignota: a construção de Os sertões. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
103
“Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, São Paulo, 1924”, cit., p. 212.
105

imitativo, numa interpretação desprovida da torção crítica que teria permitido o


reconhecimento, no narrador, de sua não-fiabilidade:

[As personagens que aparecem são] modalidades de um tipo único, o burguês brasileiro,
que pela primeira vez aparece tratado brasileiramente, com bom humor, com caçoada,
mas sem mordacidade, sem sarcasmo. Nenhum comentário ao que ele diz. Nenhum
sinalzinho ao leitor para dizer que “eu não sou assim”. Miramar não desdenha o seu
meio, não afeta superioridade. Aceita-o como ele é, reservando-se o direito de ser
diferente.
Miramar é moderno. Modernista. Sua frase procura ser verdadeira, mais do que bonita.
Miramar escreve mal, escreve feio, escreve errado: grande escritor104

No “escrever brasileiro” de Miramar, porém, Prudente e Sergio identificam antes


um defeito do que um valor positivo, apesar de intenção legítima, pois a prosa de
Miramar seria excessivamente pessoal para integrar um esforço literário construtivo,
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pois esse deveria obedecer “as leis gerais da evolução linguística”, submetendo-se
tendências da linguagem popular em geral, conformando-se com o uso, e não “com a
feição inconfundível de Miramar”. “Os grandes criadores de línguas [...] não são
artistas, são vulgares”, e o erro de Miramar foi querer ser artista, assim, “não será um
criador do brasileiro”, isto é, de um novo idioma ao qual a nova arte deveria se adaptar
em vez de caprichosamente inventar105.
Encontra-se em “Perspectivas”106, ensaio publicado no terceiro e último número
de Estética, o zênite da revolução romântica de Sergio Buarque de Holanda. Este texto
altamente hermético e irônico é onde Sergio Buarque mais parece reproduzir o estilo
do pensamento romântico histórico – isto é, da Fruhromantik. Em seu vaguear
despreocupado mas cheio de sugestões, despreocupado de oferecer qualquer fecho
conclusivo às várias linhas de pensamento lançadas no curso do texto, esse, aliás,
interrompido de forma bastante abrupta, a escrita de Sergio chega a lembrar textos
como o ensaio sobre a incompreensibilidade de Friedrich Schlegel107. Todos os traços
daquela filosofia e daquela epistemologia mística constantes no ensaio sobre John

104
“Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, São Paulo, 1924”, cit., p. 211.
105
Ibid., p. 213.
106
“Perspectivas”, EL, I, p. 214-8. Texto originalmente publicado em Estetica, II, 2, abr-jun 1925.
107
SCHLEGEL, Friedrich. Sobre a incompreensibilidade. Alea: estudos neolatinos, v. 13, n. 2, jul-dez
2011, p. 328-340.
106

Murry reaparecem aqui, mas na voz do próprio Sergio, que as reproduz de modo
pessoal e muito mais sugestivo do que explicativo. Gide também parece exercer certa
ascendência sobre o texto, mas, em movimento típico da melhor escrita de Sergio, há
uma tendência à inversão dos pontos de vista do pensamento incorporado: se Gide se
apresentava como arauto de um cristianismo “cristão” e não paulino, “Perspectivas” é
um texto profundamente imerso numa atmosfera de irracionalidade fervorosa, quase
extática, que reproduz quase que ipsis litteris, no começo, o pensamento de Paulo108.
“A gente começa a admirar-se de que uma porção de civilizações tenha enxergado
incessantemente na letra qualquer cousa não seja uma negação de vida”, lê-se no
parágrafo de abertura de “Perspectivas”, em evocação de 2 Cor 3:6: “a letra mata, e o
espírito vivifica” 109 . A importância desse motivo e das suas consequências para o
pensamento buarquiano solicita, neste ponto uma breve incursão em alguns trechos
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bíblicos110.
A epistolografia paulina parece, por sinal, ter sido um interesse persistente em
Sergio Buarque, que cita a primeira carta aos coríntios em Raízes do Brasil 111 ,
precisamente ao falar da aura religiosa que o trabalho ganha entre os protestantes, em
contraste com os católicos, na operação que inverte, na arquitetura argumentativa do
livro, a análise de Max Weber sobre a ética econômica capitalista, para criar, como que
no seu reverso, o homem cordial. Esse movimento de inversão, mediante o qual uma
divergência originária se desenrola até a configuração de todo um mundo invertido e
governado não exatamente pela desrazão e pela anarquia, mas por todo um conjunto de

108
A filiação paulina de certos momentos decisivos da obra de Sergio Buarque já foi verificada por
Roberto Vecchi, embora referindo-se a outros textos de Paulo e Sergio Buarque (no caso,
Tessalonicenses e “Nossa Revolução”) e procedendo por outras relações e articulações teóricas (no caso,
a noção de “tempo messiânico”, mediada por Walter Bejnamin). VECCHI, Roberto. Nossa Revolução:
Atlas Intersticial do tempo do fim. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um historiador nas fronteiras. O
Brasil de Sergio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p. 170.
109
Empregou-se, nas referências ao corpus paulino, a tradução católica do padre Antonio Pereira de
Figueiredo (Lisboa: Depósito das Escrituras Sagradas, 1927), por ser ela a fonte mais provável de Sergio,
ou, se não, pelo menos por reconstituir a atmosfera textual do discurso paulino e bíblico, tal como Sergio
o teria experimentado em sua formação.
110
O motivo também é mobilizado no segundo estudo de D. H. Lawrence sobre Fenimore Cooper dos
Studies in Classic American Literature, que, como se verá (v. infra, cap. III, seção 6, “Demônios e
possessos”), desempenha um papel importante na montagem da parte final de Raízes do Brasil.
LAWRENCE, D. H. Studies in Classic American Literature. Cambridge: Cambridge University Press,
2014, p. 60.
111
RB, p. 115.
107

regras morais e racionais que só se revelam quando se transpõe o limiar da inversão, é


uma das características da argumentação de Paulo, cujo zelo herético e irracional contra
as Leis do judaísmo se propõe, por outro lado, como a fundação de uma nova Lei e de
uma outra forma de conhecimento, inacessíveis aos parcos meios do intelecto humano,
que só tem olhos e razão para julgar as aparências terrenas e transitórias 112 . Esse
pensamento é paradigmaticamente exposto nos versículos 16 a 29 do capítulo 1 da
primeira carta aos Coríntios:

16 E batizei também a família de Estéfanas; não sei porém se tenho batizado algum
outro. 17 Porque não me enviou Cristo a batizar, mas a pregar o evangelho; não em
sabedoria de palavras, para que não seja feita vã a cruz de Cristo. 18 Porque a palavra
da cruz é, na verdade, uma estultice para os que se perdem; mas para os que se salvam,
que somos nós, é ela a virtude de Deus. 19 Porque escrito está: destruirei a sabedoria dos
sábios, e reprovarei a prudência dos prudentes. 20 Onde está o sábio? Onde o doutor da
lei? Onde o esquadrinhador deste século? Porventura não tem Deus convencido de
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estultice a sabedoria deste mundo? 21 Porque, como na sabedoria de Deus, não conheceu
o mundo a Deus pela sabedoria, quis Deus fazer salvos os que crescem nele, pela
estultícia da pregação. 22 Porque tanto os judeus pedem milagres, como os gregos
buscam sabedoria; 23 mas nós pregamos Cristo crucificado, que é um escândalo, de fato,
para os judeus, e uma estultice para os gentios; 24 Mas para os que têm sido chamados,
assim judeus como gregos, pregamos Cristo, virtude de Deus, e sabedoria de Deus; 25
pois o que parece em Deus uma estultícia, é mais sábio do que os homens; e o que parece
em Deus uma fraqueza; é mais forte do que os homens. 26 Vede pois, irmãos, a vossa
vocação, porque chamados não foram muitos sábios segundo a carne, não muitos
poderosos, não muitos nobres; 27 mas as coisas que há loucas do mundo escolheu Deus
para confundir os sábios; e as coisas fracas do mundo escolheu Deus, para confundir as
fortes; 28 e as coisas vis e desprezíveis do mundo escolheu Deus, e aquelas que não são
[não existem], para destruir as que são; 29 para que nenhum homem se glorie na presença
dele.

Já a segunda carta, de onde vem o famoso motivo do espírito (e da vida) contra


a letra, começa com uma consolação contra os terrores da morte, tema quase
onipresente na crítica de Sergio dessa época:

3 Bendito seja Deus, e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo, Pai de misericórdia, e Deus de
toda a consolação, 4 o qual nos consola em toda a nossa tribulação; para que possamos
também nós mesmos consolar os que estão em toda a angústia, pelo conforto com que
também nós somos confortados de Deus. 5 Porque à medida que em nós crescem as
penas de Cristo, crescem também por Cristo as nossas consolações. 6 Porque, se somos

112
Sobre a teoria, ou melhor, teologia política de Paulo, é bastante esclarecedor o comentário Jacob
Taubes a Romanos, bastante influenciado por Carl Schmitt. TAUBES, Jacob. The Political Theology of
Paul. Stanford: Stanford University Press, 2003.
108

atribulados, para vossa exortação é, e salvação; se somos consolados, para vossa


consolação é; se somos confortados, para vosso conforto é e salvação, a qual obra o
sentimento das mesmas aflições que nós também sofremos; 7 para que seja firme a nossa
esperança por vós, estamos certos de que, assim como sois companheiros nas aflições,
assim o sereis também na consolação. 8 Porque não queremos, irmãos, que vós ignoreis
a vossa tribulação, que se excitou na Ásia, porque fomos maltratados desmedidamente
sobre as nossas forças, de sorte que até a mesma vida nos causava tédio. 9 Mas nós
dentro de nós mesmos tivemos resposta de morte, para não pormos a nossa confiança
em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos; 10 o qual nos livrou de tão grandes
perigos, e livra ainda; em quem esperamos que ainda igualmente nos livrará, [...]

As tintas irracionalistas com que Paulo carrega seu argumento se baseiam


estreitamente em sua ideia de “espírito” ou sopro, que ele faz coincidir com Deus e
com a Vida. Esse sopro, que se opõe à letra, e que Sergio oporá às palavras mesmas,
tem também um “cheiro” (2 Cor 2:14-17)113 que aponta para um conhecimento próprio,
em argumentação altamente convidativa a apropriações romântico-místicas
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irracionalistas. É no terceiro capítulo, que se reproduz abaixo em sua integralidade, que


essa linha será conduzida a uma apoteose de negação fanática das Leis e da razão
terrena, bastante impressionante:

1 Começamos de novo a louvar-nos a nós mesmos? Ou temos acaso necessidade (como


alguns) de cartas de recomendação para vós, ou de vós? 2 A nossa carta sois vós, escrita
em nossos corações, que é reconhecida e lida por todos os homens, 3 sendo manifesto
que vós sois a carta de Cristo feita pelo nosso ministério, e escrita não com tinta, mas
com o Espírito de Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne do
coração. 4 E temos uma tal confiança em Deus por Cristo; 5 não que sejamos capazes
por nós mesmos de ter algum pensamento, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade
vem de Deus; 6 o qual é também o que nos fez idôneos ministros do novo testamento;
não pela letra, mas pelo espírito; porque a letra mata, e o espírito vivifica. 7 E se o
ministério da morte, gravado em letras sobre pedras, foi acompanhada de tanta glória,
de maneira que os filhos de Israel não podiam olhar para o rosto de Moisés, pela glória
do seu semblante, a qual era transitória, 8 como não será de maior glória o ministério do
Espírito? 9 Porque se o ministério da condenação foi glória, de muito maior glória vem
a ser o ministério da justiça. 10 Porque o que resplandeceu nesta parte não foi glorioso,
à vista da sublime glória. 11 Porque se o que se deve desvanecer é reputado por grande
glória, de muito maior glória é o que fica permanente. 12 Tendo pois uma tal esperança,
falamos com muita confiança; 13 e não como Moisés, que punha um véu sobre o seu
rosto, para que os filhos de Israel não fixassem a vista no seu semblante, cuja glória

113
“14 Mas graças a Deus, que sempre nos faz triunfar em Jesus Cristo e que por nosso meio difunde o
cheiro de conhecimento de si mesmo em todo lugar; 15 Porque nós somos diante de Deus o bom cheiro
de Cristo, nos que se salvam, e nos que perecem; 16 para uns, na verdade, cheiro de morte para morte;
e para outros cheiro de vida para vida. E para estas coisas quem é tão idôneo? 17 Porque não somos
falsificadores da palavra de Deus, como muitos, mas falamos em Cristo com sinceridade, e como parte
de Deus diante de Deus.”
109

havia de perecer; 14 e assim os sentidos deles ficaram obtusos porque até ao dia de hoje
permanece na lição do antigo testamento o mesmo véu sem levantar-se (porque não se
tira senão por Cristo). 15 Pelo que até ao dia de hoje, quando leem Moisés, o véu está
posto sobre o coração deles. 16 Mas quando se converter ao Senhor, será tirado o véu.
17 Ora o Senhor é Espírito; e onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade. 18 Todos
nós pois, registrando à cara descoberta a glória do Senhor, somos transformados de
claridade em claridade na mesma imagem, como pelo espírito do Senhor.

A carta de Cristo não está escrita em letras sobre pedras, mas em espírito sobre
tábuas de carne; ela é o ministério da vida e se opõe ao de Moisés, que foi o da morte.
A glória dos ministérios é tal, porém, que não é possível voltar diretamente os olhos
para o ministro (já não era possível aos filhos de Israel voltar os olhos para Moisés). O
pensamento de Paulo, que se diz incapaz de pensamento próprio (v. 5), é antes um
oferecimento de Deus, que faz de cada coração humano a carta onde escreve suas
palavras de vida. A elaborada sequência de inversões e paradoxos continua no capítulo
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4, onde se lê que quem não obedece a aparente desrazão dos ensinamentos do


evangelho o faz porque está cego por um falso deus que impede a visão da luz114. Esse
paradoxo da visão é coroado pela proclamação de que o cristão “atende” não ao visível
e temporal, mas ao invisível e eterno, no versículo 18115. A esta altura as evocações
paulinas do ensaio de Sergio já poderão ser identificadas sem maiores dificuldades,
desde a abertura do texto:

As palavras depositaram tamanha confiança no espírito crédulo dos homens, que estes
acabaram por lhes voltar as costas. A gente começa a admirar-se de que uma porção de
civilizações tenha enxergado incessantemente na letra qualquer cousa não seja uma
negação de vida – negação formal, está claro mas nem por isso menos eficiente. Um
estupendo livro ainda por se escrever: o tratado da história da civilização em que se
considere o esplendor e a decadência de cada povo coincidindo precisamente com a
maior ou menor consideração que a palavra escrita ou falada mereceu de cada povo.
Nada do que vive se exprime impunemente em vocábulos.116

A presença do pensamento paulino é inquestionável; entretanto, romanticamente,


ele sofreu uma reconfiguração irônica, torcendo o sentido originário das proposições

114
“3 E se o nosso evangelho ainda está encoberto, naqueles que se perdem está encoberto; 4 nos quais
o deus deste século cegou os entendimentos dos infiéis, para que lhes não resplandeça o farol do
evangelho da glória de Cristo, o qual é imagem de Deus.”
115
“18 Não atendendo nós às coisas que se veem, mas sim as que se não veem. Porque as coisas visíveis
são temporais. E as invisíveis são eternas.”
116
“Perspectivas”, cit., p. 214.
110

paulinas, bem como a significação existencial da doutrina – este texto é todo


atravessado por um desnível entre a elevação dos temas tratados e uma atitude leve da
parte do escritor, que fala como se tratasse das coisas triviais. Também é característica
uma radicalidade na crítica à linguagem que Paulo, mais preocupado em refutar a lei e
suas razões do que com questões propriamente linguísticas, ainda não conhece: já não
é a letra que mata, mas as palavras mesmas. É a linguagem mesma que precisa ser
negada, na medida em que “mata” os pensamentos ao submetê-los às formas comuns
de expressão. Extremamente irônica é também a circunstância de que a negação da
linguagem aparece nas palavras escritas de um crítico literário em revista especializada.
Também não escapará a uma análise atenta um tom nietzschiano que, assim como a
“virada” religiosa e paulina de Sergio, certamente participava do mesmo ânimo que
levava o crítico a admirar André Gide. Nietzsche, lembrarão os leitores do Anticristo,
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atribui exatamente a Paulo a responsabilidade pela perversão do cristianismo,


transformando-o, com sua “típica insolência rabínica”, em religião do ressentimento.
Isso, segundo Nietzsche, Paulo faz através da sua promessa de uma vida após a morte
como recompensa pelos terrores e injustiças mundanos. Como resultado, o cristianismo
se torna uma religião inimiga da vida, que parece ser exatamente aquilo que Sergio
quer valorizar com sua negação da linguagem. Há vários trechos desse livro de
“maldição ao cristianismo” que demonstram esse ponto de vista com uma desenvoltura
e um fervor impressionantes. Um dos mais característicos é este, da seção 38:

Todos os conceitos da Igreja são reconhecidos pelo que são, a mais maligna falsificação
que há, com o fim de desvalorizar a natureza, os valores naturais: o sacerdote mesmo é
reconhecido pelo que é, a mais perigosa espécie de parasita, a aranha venenosa da vida...
Nós sabemos, nossa consciência sabe hoje – o que valem, para que serviram as
inquietantes invenções dos sacerdotes e da Igreja, com as quais se atingiu esse estado de
autoviolação da humanidade, cuja visão pode causar nojo – os conceitos de “além”,
“Juízo Final”, “imortalidade da alma, a própria “alma”; são instrumentos de tortura, são
sistemas de crueldades, mediante os quais o sacerdote se tornou senhor, ficou senhor...
[...] A quem o cristianismo nega então? O que chama de “mundo”? 117

Quando Nietzsche fala da “aranha venenosa da vida”, ele emprega uma metáfora
que aparece algumas vezes em seu pensamento: a teia da aranha como sistema racional

117
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo e Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras,
2016, p. 43-4.
111

que prende os intelectos como uma armadilha, e sua autora como agente mortífero. O
mais grave do “crime contra a vida” [a ênfase é de Nietzsche] de Paulo foi desalojar o
poder e a grandeza da esfera do sagrado e fazer com que se experimente “como ‘divino’
não o que foi venerado como Deus [no Antigo testamento e no paganismo, presume-
se] e sim como miserável, como absurdo, como nocivo, não apenas como crime contra
a vida”118 [a ênfase é de Nietzsche]. Pouco depois, na seção 51, o filósofo, que continua
sua denúncia de Paulo como fautor da revolução dos ressentidos, manifesta mesmo
uma predileção e certa admiração de inimigo pelo mesmo passo de 1 Cor 1
anteriormente reproduzido (referindo-se especificamente aos versículos 26 a 29):

O cristianismo tem por base a rancune dos doentes, o instinto voltado contra os sadios,
contra a saúde. Tudo que vingou, tudo de orgulhoso, de atrevido, de beleza sobretudo,
faz-lhe mal aos olhos e ouvidos. Mais uma vez recordo as inestimáveis palavras de
Paulo: “Deus escolheu as coisas fracas deste mundo, as coisas loucas deste mundo, as
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coisas vis e desprezíveis deste mundo”: eis a fórmula, in hoc signo venceu a décadence.
– Deus na cruz – [...]119

Antes de retomar a análise de “Perspectivas” propriamente dita, convém destacar


do parágrafo de abertura daquele texto a sugestão de um “estupendo livro ainda por
escrever”, onde se relataria a correlação inversa entre a grandeza histórica das
civilizações e o prestígio da palavra escrita. Aproveitando o fundo preparado pelos
trechos bíblicos e pelo Anticristo – livro que, como se discutirá adiante, desempenha
um papel importante na montagem do argumento do último capítulo de Raízes do
Brasil, “Nossa Revolução” 120 – cabe lembrar a crítica velada ao neotomismo no
começo daquele livro, que reproduz o mesmo esquema que correlaciona a “vida” ao
florescimento e a “morte” e apego à autoridade e aos sistemas rígidos à decadência das
culturas. O erro desse apego à doutrina medieval estava em querer fazer reviver uma
época que já havia passado, e que ela própria não teria encarado sua filosofia sob esse
aspecto de rigidez e tradição. A escolástica medieval era “viva porque atual”, e “[a]s
épocas realmente vivas nunca foram tradicionalistas por deliberação.”121

118
Friedrich Nietzsche, O Anticristo, cit.., p. 55-6.
119
Ibid., p. 61.
120
A relação entre as apropriações de Paulo e Nietzsche por Sergio já foi percebida por Roberto Vecchi,
no texto já citado. Nossa revolução: Atlas intersticial do tempo do fim, cit., p. 170.
121
RB, p. 7.
112

Findo esse segundo excurso, é preciso voltar ao hermético trecho anteriormente


citado de “Perspectivas”. A primeira frase é algo vertiginosa: “as palavras” são dotadas
de consciência e intencionalidade próprias, pois tiveram a “confiança” no “espírito
crédulo” dos homens, que lhes “viraram as costas”. É como se elas os tivessem
“hipnotizado”, conforme o excerto de John Murry traduzido por Sergio no artigo
“Romantismo e Tradição”, mas tivessem se descuidado, com o tempo, desse exercício,
caindo, assim, em desprestígio. A hipnose, no caso, afasta os homens da vida. As
palavras correspondem à morte dos pensamentos: “Só os pensamentos já vividos, os
que se podem considerar não em sua duração, mas objetivamente e já dissecados
encontram um termo. Quero dizer: esse termo só coexiste com o ponto de ruptura com
a vida.” 122 A ideia de que os pensamentos só se exprimem perfeitamente em sua
“morte” não escapará a quem se lembra da frase do ensaio sobre André Gide onde se
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lê que os pensamentos que duram são necessariamente contraditórios – ou seja, nos


termos de “Perspectivas”, talvez eles possam até ser vertidos em palavras, mas essas
não os exprimem realmente, apenas os decompõem transformando-os em componentes
sem vida. No terceiro parágrafo, Sergio dá seguimento à pequena história do conflito
que se anuncia na abertura entre as palavras e a vida:

Os homens que sentiram nitidamente essa ausência do princípio de vida, essa atmosfera
irrespirável que nos propõem as formas inteligíveis, já mandam ao diabo tudo quanto
possa preencher um termo, tudo quanto caiba entre as quatro paredes de um pensamento
comunicável ou expresso. A palavra escrita ou falada só se concilia com a dificuldade
vencida, com a energia satisfeita e a paz proclamada depois da guerra. É em vão eu se
tentará atrair a tempestade, invocar o demônio ou realizar o mistério dentro do cotidiano,
quando não se renunciou `virtude ilusória da linguagem dos cemitérios.123

Sergio Buarque continua aqui o jogo com o duplo sentido da palavra “termo” –
“palavra” ou “fim” – que já se anunciava ao falar no “termo” como um “ponto de
ruptura” com a vida, e investe agora de forma explícita contra a razão, pois já as
palavras aqui já não são inimigas da vida apenas enquanto meios de expressão mais ou
menos arbitrários, mas como “formas inteligíveis”. Junto com o racionalismo, a paz é
execrada e a guerra louvada. A “atmosfera” das palavras é descrita como irrespirável;

122
“Perspectivas”, cit., p. 214.
123
“Perspectivas”, cit., p. 214-5.
113

analogamente, mas no extremo oposto, para Paulo, o espírito (sopro, hálito) de Cristo
tem para o cristão “cheiro de vida para a vida” (2 Cor 2:15-17) para quem ainda crê no
“ministério da morte”, “gravado em letras sobre pedras” (2 Cor 3:7), há de ter “cheiro
de morte para morte”, cheiro que deve ser, por certo, irrespirável. O elogio da guerra,
da “dificuldade a ser vencida”, pode remeter tanto a Gide, que diz que “precisamente
o que se procura é que se chama felicidade”124, quanto a Nietzsche, que na segunda
seção do Anticristo dá a seguinte resposta à pergunta “O que é felicidade?”: “O
sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência é superada. Não a satisfação,
mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra; não a virtude, mas a capacidade”.125
Mesmo que o ataque de Sergio às palavras possa parecer um pouco desesperador
(pois o que poderia restar depois de descartada a linguagem?), há, para ele, uma
solução, que passa pelo acesso a um outro mundo, esse inteiramente livre do
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encantamento mórbido das palavras e onde as coisas adquirem um aspecto mais


verdadeiro: “Nada nos constrange a que nos fiemos por completo na suave e engenhosa
caligrafia que os homens inventaram pra substituir o desenho rígido e anguloso das
cousas. Hoje mais do que nunca toda arte poética já de ser principalmente [...] uma
declaração dos direitos do Sonho. [...] Só à noite enxergamos claro.”126 Revela-se aqui,
pela primeira vez, o fundo surrealista das considerações de Sergio sobre a vida e a
linguagem – não é surpreendente, portanto, que, no artigo de 1940 citado no começo
do presente capítulo, “Poesia e crítica”, a análise retrospectiva quase confunda
“romantismo”, “modernismo” e “surrealismo” – o elemento memorialístico desse texto
acaba contaminando, intencionalmente ou não, a visão histórica sobre a cultura
brasileira. A ideia de que “só à noite enxergamos claro”, por outro lado, não deixa de
apontar novamente para as inversões paulinas, onde os valores trocam de posição na
transição entre a razão mundana e a divina, sem, no entanto, que seja possível
depreender o conteúdo desta por simples dedução – há correspondência apreciável aqui
com 2 Cor 4:3 e 4 (“E se o nosso evangelho ainda está encoberto, naqueles que se
perdem está encoberto; nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos

124
“André Gide”, cit., p. 171.
125
Friedrich Nietzsche, O Anticristo, cit,, p. 10-11.
126
“Perspectivas”, cit., p. 215.
114

infiéis, para que lhes não resplandeça o farol do evangelho da glória de Cristo, o qual
é imagem de Deus”) e 2 Cor 4:18 (onde se lê que Paulo não atende “às coisas que se
veem, mas sim as que se não veem. Porque as coisas visíveis são temporais. E as
invisíveis são eternas”).
Em seguida, Sergio Buarque, põe em cena Marcel Proust, que vem lembrar, em
“trecho admirável” do Caminho de Swann, a respeito do conteúdo dos sonhos, que esse
“nos é impossível exprimir e quase proibido constatar, porque, precisamente quando
se tenta dormir, vem-nos a carícia de seu encanto irreal, no instante mesmo em que a
razão nos abandona”127, caímos no sono e somos privados das verdades oníricas. No
parágrafo seguinte, a famosa frase de Hamlet sobre a incapacidade da filosofia (a vã
filosofia, em tradução bastante disseminada de Almeida Garrett e depois difundida no
Brasil por Machado de Assis, que Sergio entretanto não cita, seguindo o original) em
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apreender as “cousas no o céu e na terra” dá a partida de uma crítica radical ao


racionalismo, crítica que dá a aparência de ignorar, talvez conscientemente, muito do
pensamento alemão romântico e historicista que Sergio a essa altura provavelmente já
conheceria com alguma profundidade. O fraseado é, por outro lado, reminiscente dos
trechos do ensaio de John Murry traduzido e comentado em “Romantismo e tradição”:

Para os sábios mais consideráveis uma certa amplitude de pensamento acarreta o


invencível sacrifício de tudo quanto se exalta e afirma, pelo simples fato de ser, um
direito à existência, a sua diferença essencial em relação ao que a rodeia e por isso
mesmo, implicitamente, a sua singularidade. A ciência compraz-se em estabelecer um
nivelamento, uma uniformidade tal entre as cousas, que acaba por excluir de seu
Universo qualquer objeto que não se resigne a ser um simples termo pras suas equações.
O ato elementar de definir, que se encontra à base de toda a ciência humana, implica o
propósito de instalar todo o objeto de conhecimento numa continuidade fixa e
inalterável. Não existe ciência do particular que estude cada cousa em relação à sua
própria particularidade. Todos os nossos conhecimentos procedem ao contrário
subordinando o singular ao universal e utilizando-se para esse efeito de um sistema de
seleção constante em uma dada série de objetos. O resto, o que há em cada um de
individual é considerado inútil para a formação do conceito. Acontece porém que para
certos homens o essencial continua sendo o que há de particular, o que há de milagroso,
o elemento irredutível em cada cousa. São esses homens, os que obedecem às leis divinas
e esquecem as outras, as das cidades que reclamam com violência um regresso a esse
estado de guerra que não é mais do que uma conformação com a vida.128

127
“Perspectivas”, cit., p. 215.
128
“Perspectivas”, cit., p. 216.
115

A “vida”, noção que aparece com uma tonalidade tipicamente nietzschiana, opõe-
se a todo tipo de conhecimento regrado, que desconhece a “singularidade”, que não
conhece uma “continuidade fixa e inalterável” – Gide, para quem uma individualidade
manifesta das mais variadas maneiras era garantida tão somente por um “fio de
Ariadne”, é quem parece fundamentar ao menos parcialmente a crítica à pretensão
científica de reduzir o mundo a unidades estáveis. Quando Sergio afirma não existir
“ciência do particular que estude cada cousa em relação à sua própria singularidade”,
denuncia, num estágio algo incipiente, o progressivo interesse que vai passando a
dedicar a temas históricos, corrigindo um rumo que aqui parecia encaminhá-lo antes
para a arte surrealista ou algum tipo de filosofia mística. A História, afinal, na tradição
alemã, se propõe exatamente como uma forma de conhecimento que faça justiça às
singularidades em seus próprios termos, pretensão que envolve o pensamento alemão
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do século XIX como uma densa atmosfera, mas que pode ser verificada em um de seus
momentos originais e mais pungentes na Outra Filosofia da História de Herder129. Não
foi à toa que Friedrich Meinecke chamou de “historismo” não uma escola histórica
particular, nem mesmo uma época cultural específica, mas todo um paradigma
epistemológico que vê a significação das totalidades nos particulares. A maior parte
das implicações desse estilo de pensamento, muito característico de toda a reflexão de
Sergio Buarque a partir de Raízes do Brasil, não parece, estar, porém, no horizonte
deste texto, ao menos de forma bem refletida.
O que há, por outro lado, é uma alusão à Antígona de Sófocles130, referência que
desempenha papel destacado na montagem do capítulo sobre o “homem cordial”. Em
“Perspectivas”, vamos ler que os homens que se rebelam contra a razão legisladora que
mata as coisas com sua linguagem pouco ciosa do “desenho anguloso das cousas”
obedecem, na verdade, a “leis divinas”, esquecendo-se daquelas “das cidades” e
desejam voltar a um “estado de guerra que não é mais do que uma conformação com
a vida”. A despeito da ênfase num “estado de guerra” vagamente hobbesiano
aparentemente desconectado da problemática do livro de estreia – ideia que, no entanto,

129
HERDER, Johann Gottfried. Another philosophy of history for the education of mankind. In: Another
Philosophy of History and Selected Political Writings. Indianapolis, IN: Hackett, 2004, p. 3-99.
130
Conexão já notada pela análise percuciente de Roberto Vecchi. Nossa Revolução: Atlas intersticial
do tempo do fim, cit., p. 174.
116

pode ser considerada contemplada pelo diagnóstico de “tibieza do espírito de


organização”131 – o teor do parágrafo acima citado antecipa em mais de um aspecto a
discussão sobre as instituições políticas em Raízes do Brasil, alegorizada pelo conflito
entre Antígona e Creonte. Antes mesmo de aparecerem as duas personagens trágicas,
lê-se que “[s]omente pela superação da ordem doméstica e familiar é que nasce o
Estado, e é que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível,
recrutável e responsável ante as leis da Cidade”. Entra nesse fato, lê-se logo depois, um
“triunfo nítido do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato
sobre o corpóreo”.132 Logo mais, Creonte é apresentado como aquele que “encarna a
noção abstrata, impessoal da Cidade em luta com essa realidade concreta e tangível que
é a família” 133 . Os termos são tão parecidos que parece que Sergio terá revisitado
“Perspectivas” na escrita de Raízes, ou então, o que é mais provável, que esse
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vocabulário e esse complexo de ideias nunca deixaram de preocupá-lo desde essa


aparição primeira em 1925. O aspecto que eles assumem em “Perspectivas”, porém, é
muito mais romântico e aderente ao irracionalismo e à negação terrorista da paz e das
leis, que se arroga o conhecimento de um conjunto superior de leis e conhecimentos,
do que o que se vai encontrar em Raízes.
Logo mais, no texto de 1925, Sergio volta a sua compreensão da poesia
conformada por sua obsessão mórbida: “para a maioria dos homens a morte [...]
apresenta encantos que a vida está muito longe de proporcionar.” “Para uma porção de
poetas”, continua, “ela tem sido um sinônimo cômodo de mistério e para Sócrates ela
apareceu como uma aquisição de pensamento”. Mas Sergio não acredita, como esses
poetas, que a morte seja condição para a descoberta do “‘irreal’ que ao contrário parece
mais real e até mesmo o que se apresenta mais dócil à verificação comporta uma parte
de mistério imprevisível e traz concessões escandalosas ao irracional”. Por trás da
“ilusão” do mundo bem-ordenado pela razão estaria a “subsistência, embora
disfarçada, em cada um de nossos atos, de uma aspiração à morte” 134 . O trecho é

131
A expressão é de um dos tópicos que resumem o primeiro capítulo no sumário ao final do livro, RB,
p. 177.
132
RB, p. 93.
133
Ibid., p. 94.
134
“Perspectivas”, cit., p. 217.
117

altamente sugestivo de uma leitura da obra de Freud, que no entanto não parece ser dos
pensadores mais frequentados na reflexão posterior de Sergio Buarque. De todo modo,
na atmosfera surrealista que Sergio parece respirar na elaboração desse texto, a
psicanálise, na forma de uma leitura um tanto enviesada da teoria freudiana do sonho,
era praticamente onipresente. Vale lembrar ainda que há, na biblioteca que Sergio
Buarque legou à Unicamp há um exemplar de 1925, em tradução francesa, de um
ensaio de Freud intitulado Le rêve et son interpretation. Seja como for, o importante
aqui é mostrar como a equivalência que Sergio propõe entre a morte e toda tentativa de
expressão humana minimamente racional, destinada à compreensão por outros, é tão
radical que incide sobre a simplicidade do “desenho regular e monótono” das pinturas
rupestres, de onde fica derivada toda a “tendência dos homens para uma regularidade
abstrata e inânime” – pode-se depreender que Sergio também se insurge aqui contra as
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regras clássicas da arte, que, como a pintura primitiva, participam desse “afã de reduzir
o informe à forma, o livre ao necessário, o informe à regra”135.
O fim do ensaio é marcado por uma resolução provisória do problema da “volta”
dos homens da letra morta das palavras à vida, anunciada na abertura. “Não me cabe
resumir aqui”, escreve o crítico, “todas as perspectivas que esse ponto de vista me
propõe”, e continua com mais duas negativas. A primeira: “[N]ão disse ainda por que
razão os homens começam a procurar a realidade, de preferência na esperança, na
recordação e na ausência e por que muitos deles sem renunciar a essa atitude
conseguiram revogar para uso próprio a lei de aspiração à morte”. A segunda:
“[t]ambém não disse por que a exaltação do particular resolve-se em certos momentos
na anulação de qualquer singularidade, no sentimento da harmonia de todas as
cousas”136. A tripla negação encaminha o ensaio para o fim, sugerindo no entanto que
o crítico teria muito mais a dizer, mas ele abre mão disso, talvez exatamente porque já
espera que o leitor esteja em condição de abrir mão das palavras alheias e permitir-se
o exame próprio de “todas as perspectivas” abertas por esse ponto de vista. O
movimento é análogo ao fecho de uma famosa ficção curta de Hugo von Hofmannsthal,

135
“Perspectivas”, cit. p. 217.
136
Ibid., p. 218.
118

a carta de Lord Chandos a Francis Bacon137. Lord Chandos, um homem nobre de dotes
literários, começa a ter epifanias que o levam a concluir que as palavras são todas
mentirosas – texto aqui citado para fins de iluminação do sentido de “Perspectivas”,
não por atribuir a ele qualquer tipo de ascendência sobre o ensaio de Sergio Buarque:

[T]udo é uma espécie de pensamento febril, mas um pensamento num material mais
imediato, mais fluido e incandescente do que a palavra. É igualmente um turbilhão, só́
que um tal que, diferentemente das palavras da linguagem, que parecem conduzir para
o abismo, esse parece levar de algum modo para dentro de mim mesmo e para o seio
mais profundo da paz.138

Enquanto a descoberta da vaidade das palavras diante da verdade sublime das


coisas leva Chandos a uma descrição minuciosa e aterradora de repentes extáticos de
uma visão enlouquecedoramente clara da infinita riqueza de cada instante ao ponto de
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levar o missivista para o “outro lado” da razão, Sergio se limita a uma irônica sugestão
de que poderia dizer muito mais, mas calará, mantendo-se fiel ao espírito de sua
descoberta:

Direi provisoriamente que a vida, apesar de tudo, continua a nutrir subrepticiamente e


por uma espécie de verba secreta as regiões mais ocultas de nossas ideologias. É
incontestável que os nossos atos e mesmo aqueles que comportam uma série de
movimentos irremediavelmente previstos pela lógica e pelo cálculo mais precisos, não
prescindem da parcela de contingente que participa do divino.139

Não há indícios de que Sergio conhecesse a carta de Hofmannsthal. Ele conhecia,


por certo, outro texto, também uma carta, a última das “Lettres à Angèle” incluídas nos
Prétextes, livro citado no ensaio sobre André Gide. Trata-se de outro elogio da “vida”
contra as palavras, desta vez tomando por exemplo a loucura de Nietzsche. Para Gide,
“[a] razão de Nietzsche se propõe no começo de sua vida um trágico jogo no qual sua
razão mesma é o prêmio. Ele joga contra si mesmo, perde a razão – mas ganha a partida;
ele ganhou, porque está louco.” 140 Essa frase só é dita, no enquanto, depois da

137
HOFMANNSTHAL, Hugo. Uma carta. Viso: Cadernos de Estética Aplicada, n. 8, jan-jun 2010, p.
23-33.
138
Ibid., p. 33.
139
Loc. cit.
140
André Gide, Prétextes, cit., p. 181.
119

exposição do desfecho dos Demônios de Dostoievski, onde Kirilov é convencido a se


matar exatamente para provar à humanidade que Deus não existe e que , assim, a
humanidade estaria pronta para uma nova fase de liberdade e de ascensão a um estágio,
se não divino, imperial:

Se Deus existe, tudo depende dele, e eu não posso fazer nada além de sua vontade. Se
não existe, tudo depende de mim e tenho que afirmar minha independência. Quem vai
provar isso? Eu. Eu não entendo como até agora o ateu poderia saber que Deus não existe
e não se matar imediatamente! Sentir que Deus não existe, e não sentir ao mesmo tempo
que nós mesmos nos tornamos Deus, é um absurdo. Se você sente isso, você é um czar
e, longe de se matar, você viverá no auge da sua glória.141

Kirilov acredita que só ele precisa realmente se matar para, provando a


inexistência de Deus, abrir o caminho para uma transformação física que alçará a
humanidade a um novo patamar – seu suicídio é um símile de Gide para explicar a
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loucura de Nietzsche, que não precisa se matar, mas apenas enlouquecer para chegar a
um estágio de felicidade. O estabelecimento dessa correspondência – o filósofo ganhou
a partida na qual perdeu a razão porque está louco e está num mundo de felicidade onde
a razão não importa mais, assim como Kirilov supostamente salvaria a humanidade
com seu suicídio – é complementado com uma argumentação que tem correspondência
quase estrita com alguns passos já citados de “Perspectivas”: “Nietzsche quis saber, e
até à loucura; sua clarividência foi cada vez mais aguda, cruel, deliberada. à medida
que ele via mais claramente, ele se inclinava mais para o inconsciente. Nietzsche queria
a alegria a qualquer preço”142. A loucura como forma de conhecimento conformada
com a “vida”, a visão mais clara e aguda como atributo do inconsciente, a violência da
travessia para um “outro lado” (o suicídio ou a loucura): eis a constelação de temas
proposições que movem “Perspectivas” e levam Sergio ao cume de sua peripécia
romântica, posta em movimento pelas figuras inimigas mas igualmente “salvas”, cada
um a seu modo, pelo desvario de visões extáticas que reconfiguram todas as suas
concepções: Paulo e Nietzsche. “Nada mais cômodo”, escreve Sergio na última frase
do ensaio, “que concluir pela vaidade de todos os nossos gestos e pela inutilidade de

141
Ibid., p. 179.
142
Prétextes, cit., p. 181.
120

qualquer atitude – ideia que o Universo nos fornece a troco de um simples bocejo.”143
A ideia é altamente reminiscente de 2 Cor 1:8. Paulo não quer que seus correligionários
de Corinto se desesperem, mas também não deseja que ignorem os próprios repentes
de terror, ou “tribulações”, o que levaria a encarar a vida como algo vão e tedioso:
“Porque não queremos, irmãos, que vós ignoreis a vossa tribulação, que se excitou na
Ásia, porque fomos maltratados desmedidamente sobre as nossas forças, de sorte que
até a mesma vida nos causava tédio.” Ela poderia, ao mesmo tempo, remeter à
valorização da ideia de vida por Nietzsche a partir de suas ideias da morte de Deus e
do “eterno retorno”, ambas lançadas pela primeira vez na Gaia ciência (§125, O homem
louco e §341, O maior dos pesos) e retomados em Assim falou Zaratustra (Prólogo, §
2 e §7 do capítulo “Os sete selos” da terceira parte). Neste último trecho, a confluência
entre a ideia de uma valorização da vida coincidente com o abandono das palavras e
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um conhecimento mais verdadeiro do que o das aparências terrenas, onde todos os


valores estão suspensos e a pura vida se deixa mostrar, tem uma formulação
especialmente pungente:

Se algum dia estendi céus serenos sobre mim, e com asas próprias voei em céus próprios:
Se nadei brincando em profundas distâncias de luz, e veio a sabedoria de pássaro da
minha liberdade: –
– mas assim fala a sabedoria de pássaro: “Vê, não existe acima, não existe abaixo! Joga-
te para o lado, para cima, para trás, ó criatura leve! Canta! Não fales mais!
– todas as palavras não foram feitas para os seres pesados? Não mentem as palavras
todas para aquele que é leve? Canta! Não fales mais!” –
Oh, como não ansiaria eu ardentemente pela eternidade e pelo nupcial anel entre os anéis
– o anel do retorno!144

3. Duelo

Em momento nenhum depois do texto hermético e um pouco pretensioso que é


“Perspectivas”, Sergio voltará com a mesma intensidade ao irracionalismo e à fixação
com o sonho – embora o La vida es sueño de Calderón de la Barca, que já era uma de
suas leituras prediletas antes da adesão modernista, irá acompanhá-lo até a maturidade.

143
“Perspectivas”, cit., p. 218.
144
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. São Paulo:
Companhia das letras, 2011, p. 222.
121

A partir daí ocorre uma certa correção de rumo que já se verifica no primeiro texto de
importância que Sergio escreve depois deste, “O lado oposto e outros lados”. Para
chegar ao comentário desse ensaio, onde Sergio faz um balanço do modernismo e se
posiciona decisivamente contra certa ala do movimento que lhe parece pautada pela
doutrina antirromântica e oposta ao surrealismo de Tristão de Ataíde, é preciso passar
pelos ensaios do próprio Tristão, aos quais “O lado oposto...” responde. Do contrário,
pouquíssimo se entenderá desse texto que, frequentemente lembrado como um marco
da reflexão buarquiana pela fortuna crítica, raramente é investigado com mais afinco145.
Esses textos também são importantes na medida (surpreendentemente intensa) em que
se fazem sentir em Raízes do Brasil e na crítica posterior de Sergio Buarque. Na
verdade, não é exagero dizer que todos os textos mais relevantes que Sergio escreverá
até sua chegada à Alemanha em 1929 serão pautados, direta ou indiretamente, pelo
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debate intenso que mantém com o Tristão de Athayde. Essa mesma experiência, por
sinal, é um divisor de águas na própria produção crítica do adversário, como se pode
verificar pelo fato de que sua adesão final ao catolicismo será sacramentada pelo texto
que publica ao assumir a direção da revista A Ordem em março de 1929, intitulado
“Adeus à disponibilidade”146, onde Tristão expõe as razões de sua conversão na forma
de uma carta aberta a Sergio Buarque e antecipa todo o programa intelectual
implementado a partir da conversão147. É bom lembrar que, diferentemente do que pode
sugerir a imagem pública que ficou de Sergio Buarque para a posteridade, não se trata
de um debate de um intelectual militante católico contra um ateu ou agnóstico, mas de
um confronto entre uma noção de cristianismo insubordinada aos dogmas eclesiásticos
e uma concepção mais “ordenada” de inspiração escolástica – Tristão não teria se dado
ao trabalho de dedicar tanta energia a esse debate se não reconhecesse em Sergio

145
Deve haver outros, pois a fortuna crítica é vasta e há também os estudiosos da obra de Tristão, mas o
único texto realmente esclarecedor que esta pesquisa teve à disposição foi o de Pedro Meira Monteiro
(“Coisas sutis, ergo profundas”, cit.), dedicado à relação entre Sergio Buarque e Mário de Andrade.
Dentre a produção dedicada exclusivamente a Sergio Buarque de Holanda, o comum é mencionar o texto
sem reconstituir as controvérsias que presidem a sua elaboração. A dissertação de Conrado Pires de
Castro (“Com tradições e contradições”, cit.) se dedica bem mais do que o presente trabalho, que vota
ao autor uma atenção muito parcial, ao pensamento de Tristão de Athayde e sua posição no modernismo,
mas não toca nos textos realmente essenciais a essa polêmica.
146
ATHAYDE, Tristão de. “Adeus à disponibilidade”. A Ordem, v. VIII, n. 1, 15 mar 1929, p. 54-9.
147
RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima: Religião, cultura e Vida Literária. Tese
(Doutorado em Letras). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2009, p. 130.
122

alguém que possuía, “como raros, o verdadeiro sentido cristão da vida” e que
“precisaria apenas”, em sua opinião, de “um pouco menos de desespero do homem,
para alcançar também o senso católico que outra coisa não é senão a plenitude cristã”148.
É de se perguntar, por sinal, considerando o volume que o debate assume do lado de
Tristão, e das referências que faz a elementos que o lado de Sergio não chega a exibir
de forma mais ostensiva, se parte considerável do debate não teria se dado em
comunicações diretas, escritas ou até mesmo orais, ou por intermédio de interlocutores
em comum em redes de sociabilidade de intelectuais do Rio de Janeiro dos anos 1920.
Qualquer que tenha sido a extensão privada ou oral do debate, ele oferece uma
boa quantidade de sinais de que os pronunciados traços paulinos de “Perspectivas”
sinalizassem não tanto uma apropriação meramente irônica das escrituras como
pretexto para uma reflexão exclusivamente literária ou artística, mas que, seguindo os
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passos de Middleton Murry, Sergio de fato estivesse empenhado em desenvolver uma


espiritualidade que fosse, ainda que extremamente subjetiva e avessa à autoridade da
Igreja, genuinamente cristã. Lembre-se rapidamente, aliás, do que diz Sergio numa
entrevista que deu à época da publicação do último número de Estética: “Parece-me
que toda inquietação moderna resume-se num problema religioso. Essa aspiração de
Deus é o sentimento que melhor explica, na minha opinião, o movimento artístico atual.
Dentro ou fora da igreja as ideias que nos agitam têm um fundo essencialmente
religioso”149. A polêmica com Tristão de Athayde, então, se dá, pode-se dizer, em torno
de se esse retorno a Deus deve ou não se submeter a alguma autoridade ou tradição
previamente existente.
Em 1925, Tristão escreve críticas duras à recepção do surrealismo no
modernismo brasileiro, que lhe parece ganhar maior proeminência nas obras então
recentemente publicadas de Oswald de Andrade, a Poesia Pau-Brasil e o romance
Memórias sentimentais de João Miramar – note-se que se trata de um livro que Sergio
e Prudente resenharam e que, não tendo louvado sem ressalvas, consideraram meritório
por sua concepção. A sequência de textos polêmicos contra Oswald e, por tabela, contra

148
“Adeus à disponibilidade”, cit., p. 56.
149
“Ideias de Hoje. Modernismo não é escola: é um estado de espírito. Entrevista com Prudente de
Moraes, neto e Sergio Buarque de Holanda”, RSBH, p. 73.
123

a posição crítica de Sergio, que Tristão vê como associada a Oswald, é composta por
“O Supra-realismo” 150 , “Literatura suicida” 151 , “A salvação pelo Angélico” 152 e
“Queimada ou fogo de artifício”153. Vale a pena uma discussão mais detalhada dos três
primeiros, sendo “A salvação pelo Angélico” uma polêmica diretamente endereçada
ao terceiro número de Estética e ao ensaio “Perspectivas”. Considerando que os textos
começam a aparecer em junho de 1925, é até possível que toda a série tenha sido
cuidadosamente planejada já com todo, ou a maior parte, do material criticado à mão.
Tristão parecia, pelo menos, ter uma boa ideia da articulação entre a literatura de
Oswald, a crítica de Sergio e o surrealismo (ou, como ele diz, “supra-realismo”)
europeu.
Exatamente como fará o Sergio de 1940 em “Poesia e Crítica”, Tristão de
Athayde identifica no “supra-realismo” um movimento estético romântico e o critica
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segundo o ponto de vista de um “clássico” fundamentado sobre uma doutrina estética


neoaristotélica e, mais especificamente, neotomista. Pense-se aqui no duplo sentido da
conclamação que Tristão faz, à guisa de reação aos germens de desagregação do
surrealismo, à adesão ao “Angélico”154, referindo-se provavelmente de forma mais ou
menos genérica a um ideário neoclássico de tonalidades religiosas, mas também, em
segundo plano, a Tomás de Aquino. Note-se que, nessas críticas, embora a posição de
Tristão seja pouquíssimo simpática do ponto de vista dos dias de hoje, ela é muito mais
substantiva do que as da crítica de Sergio, geralmente não só românticas mas um pouco
impressionistas. Mais do que somente para demonstrar a vantagem intelectual que,
nesse momento, Tristão leva sobre Sergio, vale a pena ir a esses textos porque eles
esclarecem bastante do que há de pouco compreensível no pensamento de Sergio da
fase ora analisada.
O primeiro traço importante a se notar nessa série de textos é que, num ataque
bastante incisivo contra o surrealismo e Oswald de Andrade, que passa pelo que parece

150
LIMA, Alceu Amoroso. “O Suprarrealismo”. In: Estudos literários, v. 1. Rio de Janeiro: Aguilar,
1966, p. 902-914. Texto originalmente publicado em duas partes em O Jornal, 14 e 22 jun 1925.
151
Id., “Literatura Suicida”. In: Estudos literários, cit., p. 914-927. Texto originalmente publicado em
duas partes em O Jornal, 28 jun e 5 jul 1925.
152
Id., “A salvação pelo Angélico”, O Jornal, 4 out 1925.
153
Id., “Queimada ou fogo de artifício?”. In: Estudos literários, cit., p. 994-1000. Texto originalmente
publicado em O jornal, 11 out 1925.
154
“A salvação pelo Angélico”, cit.
124

a Tristão ser a sua recepção crítica por Sergio Buarque – e também por Prudente de
Morais Neto, pois o ataque se dirige também a Estética, e este é junto a Sérgio, como
notado acima, diretor da revista, além de coautor da resenha que nela apareceu do João
Miramar – há um diagnóstico da cultura. Esse diagnóstico é dirigido ao Brasil, mas
tem uma camada local e outra universal: por um lado, o entusiasmo com que Oswald e
os dois jovens críticos se lançam ao surrealismo seria típico do caráter imitativo da vida
intelectual brasileira; por outro, ele exprimiria uma tendência genuína do espírito
moderno, a saber, uma tendência à desagregação, à desordem e à morte, manifesta na
obsessão surrealista pela arte primitiva e pelo sonho. Desse modo, o surrealismo se
apresentaria como uma tendência romântica: o “suprarrealismo”, como Tristão o
chama, é um “[n]eo-romantismo, respondendo, a um século de distância, ao movimento
romântico de 1830”155.
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Metódico, Tristão começa por uma avaliação geral do movimento em sua forma
original no contexto europeu. Essa “infecção literária natural”, correspondente ao
“estado de espírito de toda uma época”, é para o crítico um entre muitos episódios da
tendência de anulação do espírito medieval de “diversificação” e “construção”
sistemática corporificado em expressões intelectuais como o Digesto, a Retórica, a
Apologética e a Escolástica156 . Note-se, de passagem, certa correspondência com o
elogio do romantismo feito por John Middleton Murry no artigo parcialmente traduzido
por Sergio no primeiro número de Estética, embora, naturalmente, Tristão veja o
mesmo fenômeno a partir de uma valoração inversa. Interessa, além disso, ressaltar
que, com sua atribuição dessas “formidáveis construções”, originalmente clássicas
(especialmente aristotélicas), ou hebraicas, à Idade Média, Tristão faz da Idade Média,
com seus ideais tomistas de integritas, constantia, claritas, uma espécie de época
clássica par excellence. A reação moderna, cartesiana, contra a Escolástica, de caráter
supostamente monista e “unificador” da “diversidade clássica”, teria trabalhado no
sentido de destruir as “paredes formidáveis” do “edifício” dentro do qual pensava o
homem medieval, para que o homem, agora moderno, pudesse pensar “ao ar livre”. O
mundo moderno, portanto, se caracterizaria por uma “tendência ao amorfo e ao

155
“O Suprarrealismo”, cit., p. 903”.
156
“O Suprarrealismo”, cit., p. 904-5.
125

desagregado”. Os impulsos revolucionários e democráticos da política moderna seriam


parte desse mesmo movimento: “[o] Estado, [...] que os antigos tinham erigido ou
preparado como a suma arquitetura social, desagregou-se pelo democratismo e
homogeneizou-se mecanicamente pelo comunismo”157.
Após essa digressão inicial, enveredando pela história do pensamento, Tristão
aponta a pretendida filiação do surrealismo à psicanálise – começando por lembrar que
ninguém menos que John Middleton Murry havia negado “peremptoriamente” à teoria
freudiana “toda capacidade de fruto estético” 158 . Mesmo assim, os surrealistas
procurariam fundar-se na psicanálise para justificar “a predominância do sonho sobre
a realidade, dos estados de subconsciência sobre a consciência, a distração sobre a
atenção.”159 Tristão procede então à demonstração do que se lhe apresenta como uma
interpretação bastante equivocada da psicanálise, numa observação com tantas
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correspondências com “Perspectivas” que talvez já tenha o texto de Sergio Buarque


por exemplo modelar daquilo que pretende atacar: nesse pretendido privilégio do
sonho, entraria

uma interpretação muito parcial e errada da psicanálise [...]. Para [...] o ponto de vista
estético, o que a psicanálise veio revelar não foi, como querem os supra-realistas, a
predominância do mundo subconsciente, mas apenas a riqueza desse mundo [...]. Acaso
pelo fato de haver jazidas de minério riquíssimas em Minas, segue-se que devemos
cruzar os braços e esperar que, por si só, possa esse minério chegar a ferro ou aço? É
preciso para isso a intervenção da atividade, da inteligência humana. [Do mesmo modo,]
Freud quis mostrar que não havia arbitrariedade no nosso mundo mental. Que tudo se
reportava a dados, rigorosamente certos, a elementos preexistentes em nós mesmos e
que apenas não conseguimos perceber ou os percebemos mal. Através dos sonhos e dos
atos falhos procura ele chegar a uma visão mais lúcida dessa causalidade psíquica. Ora,
como concluir daí que o homem [...] verdadeiro, [...] sincero, seja esse homem das
regiões sombrias?160

Segundo essa interpretação mais conservadora da teoria de Freud (e, a bem dizer,
provavelmente mais fiel à sua intenção), a conclusão a se tirar da interpretação dos
sonhos não é uma entrega programática ao mundo do inconsciente e do predomínio do
“sentimento” em prejuízo da vontade e do esforço de clareza e compreensibilidade,

157
Ibid., p. 906.
158
Ibid., p. 908.
159
Ibid., p. 909.
160
“O Suprarrealismo”, cit., p. 909.
126

degenerando “no vago, no artifício, na ênfase” - isso não passaria de um retorno ao


“mais descabelado romantismo”. O que a psicanálise veio confirmar, ao contrário, foi
“a necessidade de lucidez mental, condição da grande arte” – aqui Tristão se vale de
um elogio do “Censor” freudiano do inconsciente como mecanismo seletor e
perfectibilizante do material oferecido pelo inconsciente anárquico, o “estado de
perfeição moral, intelectual ou estético, do qual nascem as obras de ação ou criação”161.
Sua fonte para essas observações é, possivelmente, o volume de Conferências
introdutórias à psicanálise, onde Freud de fato dedica à criação artística como
organização de material inconsciente algumas considerações, embora não se possa
dizer que ele concordaria com Tristão na equivalência que o brasileiro estabelece entre
criação artística e censura do inconsciente. Essa é fundamental para que Tristão possa
desferir seu severo veredicto contra o surrealismo, que, nascido de uma “falsa
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interpretação da psicanálise”, propõe “a abolição final da lógica, da consciência, da


lucidez, da inteligência”, representando assim a “escravização do homem ao animal
que habita em nós”, “o servilismo ao instinto” e a “abdicação da personalidade”162.
Ora, todo esse movimento, para Tristão, é exatamente inimigo de toda a vida e
de toda forma artística, e, mesmo nessa negação puramente destrutiva, não deixa de ser
uma contradição em termos, afinal, “esse mundo de larvas”, esse “último recurso à
originalidade exausta”, ainda que novo e revolucionário, não deixava de ser
“expressão”, fracassando, assim, em sua pretensão de driblar a consciência e as
palavras163. O crítico passa então a uma longa citação de um fragmento surrealista de
André Breton e vaticina, em seguida, que mais do que simples “bobagem”, aquilo era
algo de altamente perigoso, a saber, “uma dissolução voluntária, a frio, da natureza, do
espírito”, uma “combustão de formas” e “uma sobrevivência de fantasmas e sombras
que mostra bem o caráter simplesmente residual” do “método” surrealista, sinistro
coroamento da tendência moderna de privilégio da “homogeneidade contra a
diversidade”, da “confusão contra a ordem” da “indistinção contra a categoria” e,
finalmente, da “dissolução contra a conformação”164. E termina fazendo um elogio das

161
Ibid., p. 909-10.
162
“O Suprarrealismo”, cit., p. 910.
163
Ibid., p. 911.
164
Ibid., p. 912-3.
127

tradições medievais de sistematização e categorização, defendendo que, mesmo com


sua “rigidez de fórmulas e preceitos que abafavam todo surto individual”, a Idade
Média não teria sido “absolutamente esse inverno que os nossos professores quiseram
incutir em nosso espírito”. Mesmo assim, uma vez codificadas todas as regras do
espírito e da arte, a reação haveria de vir, e, na opinião de Tristão, não foi uma reação
construtiva, mas meramente demolidora. “[O] abalo produzido por todos esses
desmoronamentos”, conclui, “suscitou no homem moderno tal dose de ceticismo, tal
perplexidade e amargura, que permitiu e alimenta essa onda de desagregação moral
que por toda parte cresce.”165
Quem estiver atento à análise até aqui empreendida dos textos de Sergio nesta
fase e tiver na memória alguns momentos importantes da argumentação de Raízes do
Brasil não deixará de notar uma espantosa quantidade de pontos por onde essas
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considerações são como que respondidas, ou ponderadas, ao longo da obra de Sergio


Buarque. Em primeiro lugar, lembre-se, em apontando simultaneamente para o ensaio
sobre André Gide e para Raízes do Brasil, que a “abdicação da personalidade” e a
“combustão das formas” apontadas por Tristão no surrealismo é um dos problemas
prediletos de Sergio Buarque, que voltará a ele antes de seu primeiro livro no ensaio de
1935 já comentado sobre Thomas Mann. Em Raízes, porém, ele está no centro de sua
concepção da mentalidade brasileira, isto é, naquele “homem cordial” que não possui
“uma vida íntima bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar
toda a personalidade, ajustando-a como uma peça consciente no meio social”166 e vive
num “um mundo sem forma”167. Isso será retomado adiante.
Em “Literatura Suicida”, Tristão volta à carga, agora diretamente contra a
recepção brasileira do surrealismo, que ele identifica no “Manifesto Pau-Brasil”, no
livro Poesia Pau-Brasil e nas Memórias sentimentais de João Miramar de Oswald de
Andrade. Tristão observa que, embora ainda tivesse seu impacto restrito a uma seleta
elite, o pau-brasilismo oswaldiano era um mal que havia de ser cortado pela raiz, pois,
como já havia observado sobre o surrealismo europeu, era uma genuína tendência

165
Ibid., p. 913.
166
RB, p. 110.
167
RB, p. 108.
128

espiritual da época, fundada em fatos consideráveis da experiência moderna e


precedidos por uma tendência histórica que já vinha desde o fim da Idade Média. Seria
preciso dar combate ao novo movimento, que tinha por objetivo

abolir todo o esforço poético no sentido da lógica, da beleza, da construção, e nadar no


instintivo, na bobagem, na mediocridade. Exaltar a vulgaridade. Chegar ao puro
balbuciamento infantil. Reproduzir a mentalidade do imbecil, do homem do povo ou do
almofadinha dos cafés. [...] Em suma: a liberdade absoluta, o puro subjetivismo
arbitrário.168

O crítico passa, então, a um rápido exame das tendências que acredita estarem na
origem da versão oswaldiana do surrealismo, a saber, o Dada francês e o
expressionismo alemão – este último, lembre-se, tema de entusiasmado artigo de
Sergio Buarque. Menos do que seu conteúdo, o que importa aqui é notar que Tristão
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procura com essa revisão apontar em Oswald o mesmo erro que ele diz combater – isto
é, a imitação servil da estética dos movimentos artístico europeus. Além disso, vale
lembrar que, na análise dos expressionistas, o crítico caracteriza os alemães do pós I
Guerra (que demonstra conhecer sem precisar se valer de traduções) como um “povo
que aspirava aos vermes”, aspiração materializada na arte pelo expressionismo e na
filosofia pelo pensamento de Oswald Spengler 169 , cuja morfologia histórica e
concepção do “Ocidente” como cultura em estágio “decadente” não deixa de marcar
presença em Raízes do Brasil. Terminada essa passagem de crítica genética, Tristão
vai atribuir a Oswald de Andrade o mesmo desejo de negação da civilização numa
apoteose estética “suicida”. Mais interessante do que esse juízo a essa altura bem
previsível é a discussão subsequente sobre o “conceito de imitação”, iniciada com uma
citação ao ideólogo da Action Française Charles Maurras (lembre-se que, em
“Romantismo e Tradição”, onde traduz e comenta Middleton Murry, Sergio começa
por uma referência ao antirromantismo de Pierre Lasserre, também ligado ao grupo) e
procede a uma reflexão sobre as possibilidades de uma arte de expressão nacional no
Brasil:

168
Alceu Amoroso Lima, “Literatura Suicida”, cit., p. 917.
169
“Literatura Suicida”, cit., p. 919.
129

Não façamos como o sr. Oswald de Andrade e seus companheiros, que têm horror à
imitação... e imitam às escondidas. Não. Tenhamos coragem literária suficiente para
dizer bem alto: ainda não podemos prescindir de certa imitação. O Brasil ainda não está
em condições sociais de poder dar origem a uma literatura inteiramente própria e ao
mesmo tempo universal, como pede o sr. Graça Aranha no último de seus discursos
literários. A nossa condição por muito tempo ainda será trabalhar na sombra, em silêncio,
por assim dizer, absorvendo a matéria nacional, plasmando-a – mas sem desfalecimento,
sem renúncia.170

E procede então a uma exposição da diferença entre a imitação “criadora”, “que


fornece [...] os elementos iniciais da libertação” e a mera “reprodução”, que “se
prolonga desses elementos iniciais, às consequências, às realizações, às formas”.
Mesmo essa imitação criadora ainda se divide entre imitação “do espírito” e da
“forma”, esta última ainda subdividida entre “duas espécies”, a saber, o “interior, isto
é, o sentimento, o conceito da obra”, e o “exterior, isto é, a letra ou a matéria
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exteriorizada”171. Enquanto a imitação da forma de fato exporia certo servilismo a do


espírito seria aquela que coloca o artista “na situação mental em que se situaram aqueles
que realmente criaram alguma coisa de grande e estável”, não significando uma mera
submissão cega ao modelo, mas antes um “reconhecimento dos limites” e, por isso
mesmo, “a maior prova de independência” e a verdadeira “humanização” do espírito172.
Daí se segue que a verdadeira arte brasileira, como arte americana e sucessora de
uma herança europeia que carregaria em “germe”, não deveria insistir na obsessão de
originalidade identificada na falsa autenticidade vanguardista aspirada pela poesia
“suicida” de Oswald, que perfaria um “modernismo dissolvente”, mas buscar na
Europa o “germe com que nos diferenciaremos dela, [germe] da nossa criação, da nossa
futura originalidade”. Seria antes o caso de “olhar honestamente para dentro de nós,
tocar o mal, compreender o perigo do declive a que nos levam as sereias, céticas e
sarcásticas e vazias, da destruição, e deliberadamente pedir à Europa – ou antes, ao
próprio Espírito de todos os tempos – uma receita de inteligência” 173. Sergio responderá
a esse e outros questionamentos de Tristão em “O lado oposto e outros lados”, mas,
por enquanto, aproveite-se a oportunidade para oferecer uma comparação com uma

170
Ibid., p. 922.
171
Loc. cit.
172
“Literatura suicida”, cit., p. 922-3.
173
Ibid., p. 923-4.
130

passagem do primeiro parágrafo de Raízes do Brasil, que talvez fique mais clara
quando confrontada com esse trecho de “Literatura Suicida”. Na abertura de Raízes,
vamos ler que “podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de
aspectos novos e imprevistos, elevar até a perfeição o tipo de cultura que
representamos”, mas que esse enriquecimento pela originalidade, ou mesmo a
investigação de “até que ponto podemos alimentar no nosso ambiente um tipo próprio
de cultura” teria por condição inicial que se averiguasse “até onde representamos [...]
as formas de vida, as instituições e a visão de mundo de que somos herdeiros e de que
nos orgulhamos”174.
Seria evidentemente exagerado afirmar que Sergio aderiu sem reservas ao ponto
de vista de seu adversário de 1925, mas é preciso reconhecer que, no trecho citado, ele
está talvez mais próximo de seu crítico Tristão de Ataíde do que de sua própria posição
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nos anos iniciais de adesão ao modernismo. O que talvez o aproxime de Tristão é, muito
mais do que sua obsessão sistemática e tomista, em tudo avessa ao espírito de Raízes
do Brasil, certa moderação ao espírito romântico que anima sua produção de meados
até o final dos anos 1920. Essa crítica ao romantismo, Sergio ainda não a fez, mas é
exatamente ela que Tristão propõe como anteparo contra os germens de dissolução, na
forma de uma “ida ao clássico” – uma ida e não uma volta, pois, presume-se, Tristão
acredita que a história cultural brasileira nunca teria conhecido um momento
“clássico”.
Que seria, então, esse “clássico”, única esperança contra o “suicídio”
representado por Oswald? Desde o início, Tristão esclarece que “clássico” não é para
ele nenhum “helenismo de papelão”, nenhuma imitação ao pé da letra da Antiguidade
grega e romana, mas uma renúncia à “desordem” 175 . Diferentemente da tradição
iniciada à época de Goethe, Tristão não vê classicismo e romantismo como ideais
opostos, mas como momentos históricos mutuamente dependentes e ciclicamente
sucessivos:

O clássico não é a negação do romântico, e sim a incorporação do romântico. Se


considerarmos, por exemplo, a literatura como um silogismo, o clássico será a conclusão.

174
RB, p. 3.
175
“Literatura Suicida”, p. 924-5..
131

O romantismo é a verdade parcial. O clássico é a verdade total, enquanto é acessível ao


nosso entendimento. O romantismo é a descida ao inconsciente: o clássico é a reascensão
ao consciente. Ser clássico é clarificar o espírito, é submeter a criação à crítica, é
absorver o romantismo ambiente, o romantismo profundo do nosso subconsciente, o
romantismo das forças de dissolução, de anarquia, de hesitação, de paixão e de
exuberância, que andam esparsas no mundo exterior, e no nosso mundo íntimo, para
coordená-las, depurá-las e chegar à essência da expressão. [...] O romântico lógico chega
à destruição como os dadaístas, os supra-realistas, o romântico tímido assusta-se a meio
caminho e pretende construir sobre areia movediça.

Assim, enquanto o romântico destrói, ou constrói sobre bases instáveis,

Só o clássico constrói. E constrói bem, sem negar essas forças de destruição, sem
aniquilá-las. Incorporando-as a si, porém. [...] E daí, uma série de etapas no esforço pelo
clássico – desde o tímido que apenas se defende do veneno romântico, ou o que tenta
construir friamente, [...] até aquele finalmente que alcança a verdadeira incorporação do
confuso ao lúcido, a verdadeira solidez, a verdadeira perfeição humana, o
pressentimento da imortalidade e da universalidade.176
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Definido assim o clássico, Tristão termina seu artigo com uma seção mais
combativa e programática, com prescrições mais precisas para o contexto brasileiro.

Estamos, nós brasileiros, no caos. Tudo é informe. Tudo é transitório. Aceitamos as


correntes mais contrárias. A raça não está caldeada. A saúde do povo corrompida. A
riqueza, nas mãos de estrangeiros ou no fundo da terra. A unidade nacional abalada. A
sorte do indivíduo abandonada. O poder, arbitrário, periclitante, ou acometido de armas
nas mãos. A arte, a filosofia, a literatura, imitando o passado ou comprazendo-se na
diluição, no sarcasmo cínico, na morte. [...] E é nesse mundo de larvas que se pretende
injetar o gosto da dissolução! Nesse mundo sem formas que se pretende introduzir o
horror à forma! [...] Exatamente do contrário é que precisamos. Onde não há forma,
busca-se a forma. Onde não há ordem, domina-se a desordem.

“Mundo de larvas”, “mundo sem formas”, “horror à forma” e à abstração,


aceitação das “correntes mais contrárias”, aversão ao trabalho, inclusive intelectual,
delegação da criação artística ao simples talento inato, romantismo. Todos esses
elementos têm ecos, explícitos ou não, na montagem conceitual do “homem cordial”,
a ser mais detalhadamente discutida em capítulo posterior. Aqui, porém, essas
observações se dirigem indiretamente a Sergio Buarque, e, em texto posterior, que
retoma os mesmos argumentos de “Literatura Suicida”, adaptando-os à recepção do
“surrealismo” na revista Estética, diretamente. Em “A salvação pelo Angélico”, um

176
Ibid., p. 925.
132

ataque direto a Sergio, e especialmente ao texto “Perspectivas”, ocupa a maior parte do


artigo. Antes de chegar diretamente à consideração do texto de Sergio, entretanto,
Tristão cita a resenha que Mário de Andrade faz do Meu, de Guilherme de Almeida,
publicada no mesmo número de Estética, num aceno positivo à postura crítica de
Mário, que aqui parece confluir com sua própria posição contra a “literatura suicida” e
a favor de uma “ida ao clássico”. Eis as palavras de Mário escolhidas por Tristão: “A
métrica nunca foi uma cadeia senão nas mãos dos imbecis. Esse delírio de liberdade
leva ao puro negativismo, ao cinismo sarcástico, ao menor esforço e portanto ao
esquecimento imediato.”177 Em seguida, depara-se com uma análise de “Perspectivas”
que procura refutar a pretensão do editor de Estética de estar falando (ou sugerindo
algo, uma vez que já não confia nas palavras) em nome da “vida”. A posição de Tristão
de Athayde, que a essa altura não surpreenderá ninguém, é de que, ao criar uma
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equivalência entre as palavras e a morte, Sergio está incorrendo no mesmo horror às


formas dos “supra-realistas”, às formas que são justamente o elemento “construtor” da
civilização. Sua posição na verdade seria uma leitura enviesada e equivocada do dada,
que desconheceria justamente a “tendência à morte” daquela vanguarda. “Nenhum
deles pensou em sustentar o absurdo de que aquelas bobagens incoerentes do
subconsciente fossem ‘vida’, a vida que o sr. Buarque de Holanda quer paradoxalmente
insuflar-lhes”. O “obscuramente escrito” artigo de Sergio Buarque, portanto, apesar de
“profundamente pensado” estaria, a seu ver, “errado também profundamente” em sua
velada “apologia do suprarrealismo”178. E prossegue na exposição do erro de Sergio
Buarque:

Já expus neste mesmo lugar [nos dois rodapés críticos de O Jornal intitulados “O
Suprarrealismo”] o que me parece o erro capital do suprarrealismo, e como ele aparece
como o supremo e efêmero recurso do homem de pensamento covarde, ou desesperado,
ou exausto de hoje. Uma interpretação insinceramente falsa da psicanálise, quando
invoca a esta como sua razão científica. E no fundo, nada mais do que isto: uma
incapacidade de ser homem. Uma subserviência às paixões mais rasteiras. Ao resíduo da
personalidade. À lama do fundo. As bobagens que o suprarrealismo deu como prova de
arte não podem causar surpresa a ninguém. A expressão como lei de mestre, é uma
deglutição mal feita da traduction illégitime de Bergson, a que ele aliás respondeu por
antecipação. A vida é justamente o que se organiza, o que se coordena, o que se

177
“A salvação pelo Angélico”, cit.
178
“A salvação pelo Angélico”, cit.,
133

conforma. O caos não é vida, é simples agitação. A tendência à razão é a lei de insuflação
da vida. E o sono, mais ainda. O sonho pouco tem de autônomo. O sonho é um resíduo
de vida ou uma aspiração à vida. Ele é feito de pedaços desprovidos de vida. O sonho
pouco nos revela do que não esteja na vigília, é uma sombra fugitiva de vida [...].179

Ora, em posição diametralmente oposta à de Sergio, Tristão de Athayde procura


fazer equivaler à “vida” o esforço de conformação, de distinção da matéria informe em
categorias e de organização do mundo em signos inteligíveis. Em sua opinião, o
“espírito” de vida que se opõe à letra não se confunde com uma atmosfera indistinta de
gozos, e terrores indizíveis, como sugere o texto de Sergio, mas um sopro ordenador,
conformador e tendente à construção daqueles “edifícios” dentro dos quais o homem
medieval pudera respirar e criar com tranquilidade; seria preciso apenas que esse
edifício tivesse algumas janelas por onde pudesse entrar, de quando em quando, alguns
ares novos, para que os homens não se deixassem seduzir por um romantismo
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destrutivo que, negando as formas, nega também a vida. Toda essa sedução mórbida
seria característica do “velho mundo” exausto da guerra, que no entanto, se tornava
ainda mais agudo na América, pois

nós aqui... o que há de grotesco em nosso caso é isso. Por séculos, nos habituamos a
imitar, a repetir, a refletir docilmente movimentos alheios. A ordem de pensar sempre
nos veio do Velho Mundo. Sempre fomos um Novo Mundo Velho. Sem capacidade de
criar, até hoje, qualquer coisa de irradiante. A não ser secundário e excepcional. Tudo
aliás compreensível, até certo ponto.180

O fecho do artigo atribui a Oswald de Andrade, que afinal é o alvo principal que
se abriga, na visão de Tristão, atrás do escudo crítico de Sergio, uma “fordização da
poesia”, contra a qual Tristão propõe, na mesma linha da “ida ao clássico” defendida
em “Literatura Suicida”, a volta do “predomínio da claridade sobre o obscuro” (em
provável referência àquele passo de “Perspectivas” onde se lê que “só à noite
enxergamos claro”. Esse esforço pela claridade corresponderia a uma impossibilidade,
para aqueles que não têm “Deus” como certeza, de acessar o “divino”. Nessa ausência,
que parece corresponder não tanto ao ponto de vista pessoal do crítico, mas a um
diagnóstico da época, “só uma salvação nos resta: o Angélico.”

179
Loc. cit.
180
“A salvação pelo Angélico”, cit.
134

É a essa bateria de críticas que Sergio Buarque responderá, à distância de mais


de um ano, com “O lado oposto e outros lados” 181 , espécie de balanço crítico do
modernismo e acerto de contas com sua própria atuação no movimento182. O artigo,
porém, encerra mais do que isso: os “outros lados” aos quais Sergio irá opor seu “lado
oposto” são, além de Tristão de Athayde, outras personagens destacadas: o
anteriormente admirado Guilherme de Almeida, seu iniciador no modernismo, Graça
Aranha, ascendente intelectual do movimento e um dos fiadores de sua empreitada
editorial em Estética, Ronald de Carvalho e Renato Almeida, além do próprio Mário
de Andrade, que, no final do ano de 1925, dá uma entrevista ao jornal A noite onde
parece responder positivamente ao aceno crítico de Tristão em sua resenha de Estética,
aderindo ao ideal de “construção” no modernismo.
Em “O Lado oposto e outros lados”, Sergio começa por avaliar como positivo o
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fato de “o cenário intelectual” de 1926 ter se afastado como se afastou do de 1916 –


Sergio talvez tenha escolhido a marca de dez anos pensando no livro que, para ele,
inaugura o modernismo: A cinza das horas é de 1917. Desde então vinham sendo
abandonadas a “poesia bibelô”, a “retórica vazia” e “todos os ídolos da nossa
intelligentsia”. Não está claro se aqui ele fala tanto do academicismo e do
parnasianismo, ou se de um dos iniciadores do movimento – Graça Aranha – que será
mencionado adiante. “Limitações de todos os lados impediam e impedem uma ação
desembaraçada e até mesmo dentro do movimento têm surgido germens de atrofia que
os mais fortes já começam a combater sem tréguas.”183. Na verdade, ele mira um pouco
os dois: “Mesmo em literatura os fantasmas já não pregam medo em ninguém. O
academicismo – mesmo o academicismo do grupo Graça Aranha-Ronald [de Carvalho]
- Renato Almeida, mesmo o academicismo de Guilherme de Almeida – já não é mais
um inimigo, porque ele se agita num vazio e vive à custa de heranças” 184 . A

181
“O lado oposto e outros lados”, EL, I, p. 224-8. Texto originalmente publicado na Revista do Brasil,
15 out 1926.
182
Há também a entrevista que Sergio e Prudente de Moraes Neto concedem ao Correio da Manhã em
19 de junho de 1925, depois, portanto, do primeiro artigo de Tristão sobre “O Suprarrealismo”, e
respondendo, provavelmente, já em atenção a esse texto. Não há ali, porém, uma confrontação realmente
bem pensada com os argumentos de Tristão, nem podia haver, porque esses, naquela altura, apenas
começavam a aparecer. Cf. “Ideias de Hoje. Modernismo não é escola: é um estado de espírito.
Entrevista com Prudente de Moraes, neto e Sergio Buarque de Holanda”, RSBH, p. 70-4.
183
“O lado oposto e outros lados”, cit. p. 224.
184
Ibid., p. 225.
135

característica desses autores é um superficialismo requintado, ao qual Sergio voltará


num de seus melhores textos, sobre Manuel Bandeira. Referindo-se a Ronald e
Guilherme de Almeida, portadores de uma “inteligência aguda e sutil que foi o paraíso
e foi a perda da geração a que eles pertencem”, o que fizeram “foi criar uma poesia
principalmente brilhante. Isso prova que sujeitaram apenas uma matéria pobre e sem
densidade.”185 Estamos diante de um possível momento preparatório da reflexão sobre
estilo intelectual “cordial” e bacharelesco discutido em Raízes do Brasil, estilo
puramente formalista e exterior, onde a forma não corresponde a nenhum conteúdo,
mas é simples elaboração sobre o vazio – mas, à diferença do que ocorre no livro de
1936, esse intelectualismo ainda não está analisado até as suas últimas consequências,
e ainda comporta a ideia de um potencial estragado. Em Raízes, essa forma de pensar
superficial, onde a abstração (que pode ser da arte ou de alguma filosofia), é um
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elemento a ser apreciado de modo puramente estético e que não comporta nenhuma
conexão com a realidade, já corresponde a um povo “pouco especulativo”, desprovido
da reflexão original que levaria à formação de “formas espontâneas”, compensando
essa falta, portanto, por meio da “adesão a todos os formalismos”186 – formalismos
importados, naturalmente, da Europa. São, aliás, exatamente Ronald e Guilherme de
Almeida que voltarão como maus exemplos de uma poesia formalista e “cordial” no
ensaio de 1940 sobre Manuel Bandeira, onde o primeiro será criticado pela “sabedoria
sentenciosa e asiática” de sua poesia “ajardinada”, e o segundo por sua “caprichosa
música”187 – sinais de que Sergio começa nessa fase uma reflexão que, partindo de
elementos da poesia modernista, constata nos dois “maus” modernistas uma “obra
talhada conforme esquemas premeditados”, deságua em Raízes do Brasil num
desenvolvimento mais sofisticado, como análise de uma racionalidade especificamente
brasileira e de matiz arcaizante, e, depois, será reaproveitada na crítica para contrapor
a “matéria velha” de Ronald e Almeida a Bandeira, um poeta dos “Novos tempos”.
Lembre-se, aliás, que esse procedimento, que não chega a ser surpreendente em um
crítico que desde o princípio parece ter uma atração especial pela poesia, continua a ser

185
Ibid., p. 225.
186
RB, p. 151.
187
“Poesias completes de Manuel Bandeira”, cit., p. 279-80.
136

cultivado até os Capítulos de literatura colonial e Visão do Paraíso, já com o auxílio


da análise do “realismo” por Erich Auerbach e pela filologia centrada na tópica de Ernst
Robert Curtius188.
No estágio onde se encontra a reflexão de Sergio Buarque em “O lado oposto...”,
o que falta a Ronald e Guilherme de Almeida, e que Manuel Bandeira e Oswald de
Andrade têm, são “abandono e virgindade” – Sergio volta aqui ao ideal romântico e
inimigo da matéria poeirenta das formações mentais sedimentadas pelas “palavras”
preconizado em “Perspectivas”. Surge, porém, um inimigo que em “Perspectivas”
somente se insinuava: a resistência do ideal da “construção”, “panaceia abominável”
que se antepõe à boa continuação da revolução modernista. Resistência capitaneada
pela produção intelectual de Tristão de Athayde, que defendia os ideais artísticos
sistemáticos, neoclássicos, isto é, o cultivo das formas já à disposição. Não menos
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importante, porém, é a apropriação que Mário de Andrade faz desses ideais,


apropriação muito pessoal, que não abre mão da exuberante pretensão de oralização da
língua escrita (aliás elogiada por Sergio Buarque nesse mesmo texto), mas que é
facilmente perceptível nos ademanes inspirados por Tristão que aparecem no texto da
entrevista que concede à Noite. Mário avalia que, depois do período inicial de revolta
contra o passado, o modernismo brasileiro já estava pronto para “dar uma realidade
eficiente e um valor humano para nossa construção”, acomodando “nossa sensibilidade
nacional com a realidade brasileira”, que não se resumiria à soma do “meio físico”
americano com os “enxertos de civilização que grelam nele”, mas comportaria, além
disso, uma “função histórica para conosco e social para com a humanidade”. O projeto
“construtivo” à la Tristão fica assim delineado:

Nós só seremos deveras uma Raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e
só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente
original e nacional de cultura. O modernismo brasileiro está ajudando a conquista desse

188
No caso dos Capítulos de Literatura colonial, Henrique Estrada Rodrigues encontrou na análise de
Sergio a delicada construção indutiva, a partir das preceptivas poéticas de Gian Vincenzo Gravina e
Giambattista Vico e daquilo que identificou como sua apropriação pelos árcades luso-brasileiros, de uma
“razão conciliatória”, que operaria como anteparo possível à ruptura que a chegada do racionalismo e
das Luzes, no século XVIII, poderia proporcionar num contexto ainda dominado pelas convenções
culteranas e conceptistas do Seiscentos. RODRIGUES, Henrique Estrada. A razão poética: Sergio
Buarque de Holanda e o racionalismo conciliatório. In: SOUZA, Rogério Ferreira de; Gracino Jr, Paulo.
Sociedade em perspectiva: Cultura, conflito e identidade. Rio de Janeiro: Gramma, 2012, p. 55-75.
137

dia. [...] Basta ver a maneira com que já matamos a melancolia de nós mesmos, essa
coisa medonha criada com a realidade ambiente. O modernista brasileiro matou a
saudade pela Europa, a saudade pelos gênios, pelos ideais, pelo passado, pelo futuro, e
só sente saudade da amada, saudade do amigo... O modernista brasileiro vive, não revive.
[I]sto é importante: sentir a beleza natural do Rio de Janeiro. Isso um bife também pode,
mas sentir porém as lutas contra os franceses, Estácio de Sá, Pedro I e a casinha de
Machado de Assis nessa paisagem, meu caro, só brasileiro bem sem moléstia-de-Nabuco
pode sentir. [...] Moléstia-de-Nabuco é isso de vocês andarem sentindo saudade do cais
do Sena em plena Quinta da Boa Vista e é isso de você falar dum jeito e escrever
covardemente colocando o pronome carolinamichaelismente. Estilize sua fala, sinta a
Quinta da Boa Vista pelo que é e foi e estará curado da moléstia-de-Nabuco. Nós já
temos um passado guassú e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar
a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao
presente.189

Se, por um lado, Tristão de Athayde talvez não concorde com o projeto de
abrasileiramento da língua, por outro, reconhecem-se aqui vários dos elementos
defendidos nos ataques de Tristão contra Estética e contra Oswald de Andrade,
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especialmente na noção de tomar o passado histórico como algo a ser assimilado e


conformado por meio de uma sistematização tradicionalizante. É exatamente contra
essa pretensão de erigir a nova arte em torno de um sistema que Sergio se bate, porque,
diz ele no melhor espírito romântico, a “construção” apregoada por Mário e Tristão
anularia a espontaneidade, o expressivismo, bem como a pesquisa do inconsciente.
“Penso naturalmente”, pondera Sergio, “que poderemos ter em pouco tempo, que
teremos com certeza, uma arte de expressão nacional. Ela não surgirá, é mais que
evidente, de nossa vontade, nascerá muito mais provavelmente da nossa
indiferença.” 190 Essa indiferença, note-se, não é para Sergio um valor em si, nem
garantia da efetivação do ideal aspirado, “aspiração” que, por sua vez não é um mal,
mas algo partilhado por todos os “lados” da disputa. Apenas Sergio se “revolta” contra
aqueles que, embalados pelo fervor da “construção”, “acreditam possuir ela desde já
no cérebro tal e qual deve ser”, em detalhes, a tal “arte de expressão nacional”191.

O que idealizam, em suma, é a criação de uma elite de homens, inteligentes e sábios,


embora sem grande contato com a terra e com o povo – é o que concluo por minha conta;
não sei de outro jeito de se interpretar claramente o sentido dos seus discursos – ; gente

189
“Assim falou o papa do futurismo”. Entrevista de Mário de Andrade ao jornal A noite, 12 dez 1925.
190
“O lado oposto e outros lados”, p. 225-6.
191
“O lado oposto e outros lados”, p. 226.
138

bem-intencionada e que esteja de qualquer modo à altura de nos impor uma hierarquia,
uma ordem, uma experiência que estrangulem de vez esse nosso maldito estouvamento
de povo moço e sem juízo. Carecemos de uma arte, de uma literatura, de um pensamento
enfim, que traduzam um anseio qualquer de construção, dizem. E insistem sobretudo
nessa panaceia abominável da construção. Porque para eles, por enquanto, nós nos
agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem do quê? É indispensável
essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entre nós não é decerto, não pode ser a
nossa ordem; há de ser uma coisa fictícia e estranha a nós, uma lei morta, que
importamos, senão do outro mundo, pelo menos do Velho Mundo. É preciso mandar
buscar esses espartilhos pra que a gente aprenda a se fazer apresentável e bonito à vista
dos outros. O erro deles está nisso de querer escamotear a nossa liberdade que é, por
enquanto pelo menos, o que temos de mais considerável, em proveito de uma detestável
abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido. Não me lembro mais como é a
frase que li num ensaio do francês Jean Richard Bloch e em que ele lamenta não ter
nascido num país novo, sem tradições, onde todas as experiências tivessem uma razão
de ser e onde uma expressão artística livre de compromissos não fosse ousadia
inqualificável. Aqui há muita gente que parece lamentar não sermos precisamente um
país velho e cheio de heranças onde se pudesse criar uma arte sujeita a regras e ideais
prefixados.192
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A diferença com relação ao ideal da “construção” só se deixa ver claramente


quando se atenta para o terreno romântico preparado por “Perspectivas”: não é que
Sergio seja exatamente contra um anseio de originalidade e expressão nacional na arte.
O que lhe parece nocivo na tendência de Tristão (que é também a de Mário de Andrade,
que apesar de seus méritos, vinha exibindo, na opinião de Sergio, certa “atitude
intelectualista”) é tomar por “natural” e “brasileira” uma “ordem” que nada mais é do
que uma tradição caduca de “espartilhos” trazidos da Europa, cuja finalidade era antes
de tudo “estrangular” e “escamotear” a “nossa liberdade”. De qual liberdade Sergio
está falando exatamente, não é claro, mas é certo que para ele o “modernismo” em geral
atuou no sentido de propiciá-la, e que Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Ribeiro
Couto e Alcântara Machado estão mais próximos dela do que Guilherme de Almeida,
Renato Almeida e Ronald de Carvalho (os “acadêmicos ‘modernizantes’”,
merecedores de desdenhosa ênfase do crítico), e que Mário de Andrade, poeta
“admirável” mesmo quando “mau”, não a realizará enquanto aderir, ainda que com
ressalvas, ao ideário da “ordem” e da “construção”.
A recusa terminante e resoluta em transigir com aquelas que lhe parecem ser as
tendências inimigas da “vida”, as tendências do modernismo da “ordem”, não deixa de

192
“O lado oposto e outros lados”, p. 226-7.
139

ser fascinante, quando se lembra da problemática que anima Raízes do Brasil, onde se
lê, no último parágrafo, uma consideração sobre a “organização de nossa desordem”193.
Mesmo quando se lembre que, nesse mesmo passo, essa “organização” deve ser feita
atenta a certo “mundo de essências mais íntimas” e certo “ritmo espontâneo”, para que
não redunde numa “harmonia falsa”194, poucas páginas antes Sergio observa que, com
o emocionalismo espontâneo da “cordialidade”, ou mesmo da “bondade”, não se criam
“bons princípios”, e que “[é] necessário um elemento normativo, sólido, inato na alma
do povo, ou implantado pela tirania para que possa haver cristalização social”195. Uma
nova visita ao primeiro parágrafo do livro deixa ainda mais claro que Raízes do Brasil
não é uma obra insensível a algumas das preocupações do antes execrado “partido da
ordem” e de certa “tradição”.
Lá, afinal, defende-se que um “estudo compreensivo” não pode ignorar que o
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Brasil resulta da “transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical e
sub-tropical”, cultura essa que já não é ironizada como “espartilho” ou mão
estranguladora, mas como todo um conjunto de “formas de vida, instituições” e uma
“visão de mundo” que timbramos em manter em “ambiente muitas vezes desfavorável
e hostil”. Portanto, mesmo que possamos “construir obras excelentes” e “enriquecer
nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos”196, não convém esquecer que “todo
fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça participa fatalmente de um estilo e de um
sistema de evoluções naturais a outro clima e a outra paisagem”. Aquela “liberdade”
duramente conquistada, nos termos de “O lado oposto e outros lados”, está aqui
bastante relativizada e até negada, afinal, nos termos do parágrafo seguinte, “antes de
investigar até que ponto poderemos alimentar no nosso ambiente um tipo próprio de
cultura”, seria o caso de “averiguar até onde representamos nele as formas de vida, as
instituições e a visão de mundo de que somos herdeiros” e das quais, para o Sergio de

193
Essa correspondência já foi notada por Pedro Meira Monteiro em Signo e desterro. Sergio Buarque
de Holanda e a imaginação do Brasil. São Paulo: Hucitec, p.106.
194
RB, p. 161.
195
RB, p. 157-8.
196
Note-se aqui a reprodução quase textual do que diz Mário de Andrade no excerto de entrevista
supracitado: “Nós só seremos deveras uma Raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e só
seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de
cultura”.
140

1936, “nos orgulhamos”197. Pode-se especular sobre até que ponto esse “orgulho” não
era visto com ironia, mas não se deve esquecer da observação feita ao final desse
primeiro capítulo, onde se lê uma peremptória declaração de que “a verdade, por menos
sedutora que possa parecer a alguns dos nossos patriotas” – é improvável que a palavra
“patriotas” seja empregada aqui sem malícia – “é que ainda nos associa à Península
Ibérica, e a Portugal especialmente, uma tradição longa e” – palavra dileta do Sergio
Buarque de 1926 como daquele de 1936 – “viva”. Viva o bastante, ele completa, “para
nutrir até hoje uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa.” A frase final
do capítulo é curiosamente reminiscente das considerações de Tristão de Athayde sobre
tipos de “imitação” e “formas”: “Podemos dizer que [de Portugal] nos veio a forma
atual de nossa cultura; o resto foi matéria plástica que se sujeitou bem ou mal a essa
forma”198.
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O contraste entre as passagens serve, por um lado, para mostrar como o problema
da originalidade e da tradição passa por uma ampla revisão na reflexão de Sergio
Buarque, que passa a aderir ao menos em parte a um reconhecimento de valores
tradicionais – que agora já passam por valer como elementos de vida – de uma
valorização, e até obsessão com o problema da forma. Se é certo que o contato mais
intenso com diversas vertentes da filosofia e da literatura alemã irá certamente influir
nessa reconfiguração, não se pode deixar de apontar para a considerável probabilidade
de que alguns desses movimentos foram ocasionados pelo impacto do debate com
Tristão de Athayde, e que Sergio termina o percurso muito mais próximo desse último
do que talvez gostasse de admitir. Se o esforço voluntarista pela criação de uma
“ordem” ainda é visto como negativo, a delegação da manifestação da “vida” ao
expressivismo romântico já não parece se apresentar como solução satisfatória. Essa
passaria, antes, nos termos do parágrafo de abertura, por uma efetivação da
autenticidade nacional que só se poderia efetuar com trabalho sério de pesquisa atenta
aos sedimentos históricos que conformam a alma nacional. Note-se, aliás, que o
“organicismo” e “vitalismo” de Raízes se mostra, pelo cotejo dessas passagens com “O
lado oposto e outros lados”, muito atenuado em comparação com o zênite da revolução

197
RB, p. 3.
198
RB, p. 15.
141

romântica que perpassa a obra de Sergio Buarque nos anos 1920.


Resenhando a publicação da primeira série de Estudos de Tristão de Athayde, em
agosto de 1928199, Sergio continua a polêmica contra o ideólogo da “construção”, mas
agora dá mostras de reconhecer algum valor na sua crítica ao culto irrestrito à
espontaneidade: “como poucos entre nós”, Tristão teria sabido “discernir o aspecto
trágico do espírito que anima o melhor das produções da literatura moderna e essa
negação da ordem civil, expressa ou dissimulada, em que concluem alguns dos
contemporâneos mais ilustres”, notando “o que há de singelo e até artificioso [...] na
atitude de negação que nos propõem”. O curioso é que, mesmo reconhecendo a
insuficiência dessa “negação” que Tristão antes lhe imputara, Sergio irá identificá-la,
agora, no próprio adversário, cuja própria “tragédia” teria origem na inconsistência de
sua recusa em seguir “o aceno das coisas que se espraiam indefinidamente” 200 . O
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movimento crítico de Sergio exibe aqui, talvez pela primeira vez, um desembaraço e
um espírito polêmico bem característicos dos momentos mais malcriados de sua
produção madura: partindo de distinções extremamente sutis mas penetrantes, ele
demonstra uma inconsistência formal a princípio pouco visível, mas que compromete
toda a doutrina que pretende combater – ele parece acusar Tristão, com sua obsessão
ordeira pela estabilidade, de romantismo, isto é, exatamente daquilo que ele, Tristão,
procurava combater.
Os termos da crítica, por sinal, são, mais uma vez, altamente reminiscentes de
Raízes – um livro onde muitas passagens se devem antes de mais nada ao gosto do
autor pela polêmica – na medida em que é saliente uma busca pelo justo equilíbrio entre
a “ordem” e a necessidade de preservar certa “liberdade” e “vida” autênticas: a
“sociedade”, continua Sergio, assim como os sistemas filosóficos embasadores da
crítica literária, “também possui desses elementos de rebelião e de injustiça, mas ela os
relega para além dos seus limites”. Esses elementos “não poderiam evidentemente
cooperar na constituição de um organismo político estável”, mas da “impossibilidade”
da “cidade moderna” em comportar essas “formas de vida social” resulta ela não poder

199
“Tristão de Athayde”, In: RSBH, p. 111-5. Texto originalmente publicado no Jornal do Brasil, 29 ago
1928.
200
“Tristão de Athayde”, cit., p. 111-2.
142

comportar nem mesmo “as mais importantes”. É nesse paradoxo, precisamente, que
Sergio vai encontrar a origem de “certas peculiaridades do problema moral, mais
particularmente no problema cultural”, “antinomias” que, se nesse momento
desaviavam o “homem de pensamento”, haveriam de se apresentar logo mais,
fatalmente, “no terreno social” ao “homem de ação”. Tristão de Athayde teve por
mérito ter compreendido que “a solução final de todas essas antinomias” só seria
alcançada pela “fidelidade a um plano de existência transcendental”, isto é, que uma
tal solução só poderia ser “uma solução religiosa” 201. Desse modo, não seria de admirar
que o escritor resenhado se inclinasse “com insistência” para o “ponto de vista do
catolicismo”, pois “nenhuma outra doutrina conviria tão plenamente a um homem que
aspira a organizar a sua desordem nesse mundo sem recusar subvenções do outro
mundo” 202 . Ocorre, porém, que, pretendendo substituir o “elementarismo” ou
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“niilismo” da época por “princípios de construção” necessariamente ligados a “valores


tradicionais” que, segundo Sergio “nossa época já não digere”, o tradicionalismo de
Tristão, pior do que inconsistente, seria um “tradicionalismo que intimamente descrê
das tradições”, pois, pelo menos intimamente, Tristão estaria ciente de que já então não
se poderia, “como no tempo de Santo Agostinho, ser ao mesmo tempo um cidadão do
céu e da terra”. Pois o pensamento, para ter atualidade, tem de “se afirmar sem nenhum
receio pelos seus reflexos sociais, por mais detestáveis que esses pareçam”, devendo
ser, portanto um pensamento “apolítico” [ênfase no original]203. Daí resultaria que a

201
“Ibid., p. 112.
202
Ibid., p. 113. Note-se aqui a “organização da desordem” que voltará a preocupar, não já Tristão de
Athayde, mas o próprio Sergio, em 1936.
203
“Tristão de Athayde”, cit., p. 114. É provável que, no fundo dessa crítica, estivesse uma leitura das
Considerações de um apolítico de Thomas Mann, que Sergio demostraria conhecer e admirar na
entrevista do escritor alemão que publica em O Jornal em 16 de fevereiro de 1929 (“Thomas Mann e o
Brasil”, EL, I, p. 252). No capítulo provocadoramente intitulado “Contra o direito e a verdade”, dedicado
a uma polêmica contra Romain Rolland, Mann se revolta contra qualquer sugestão de que Nietzsche
fosse um pensador político, invocando um estudo de Emil Hammacher onde se lê que o maior mérito de
Nietzsche estaria na dissociação entre metafísica e vida social (p. 181), o que o tornaria um pensador
essencialmente apolítico. Na sequência, Mann caracteriza a Action Française – cujos pensadores teriam
inspirado ao menos em parte o escolasticismo de Tristão de Athayde – como culpada de uma
“politização” fraudulenta do nietzschianismo, típica da “incapacidade latina de dissociar a filosofia da
política” sacrificando a “verdade” à “vida” ao insistir contra todas as evidências de inocência de Alfred
Dreyfus na sua condenação, em nome do suposto interesse do Estado (aqui identificado por Mann,
estranha e acriticamente, com a “vida”) (p. 182). E continua, em trecho do qual o ataque de Sergio a
Tristão reproduz integralmente o raciocínio: “Isso que chamamos de ativismo, o voluntarismo, o novo
pathos, nada mais é do que a não-dissociação da filosofia e da política. O retor da civilização vê nisso
uma virtude que, se tivesse prevalecido, teria evitado a guerra, enquanto o instinto oposto, a cisão da
143

posição teórica de Tristão, pretendendo transpor do “céu” para a “terra” uma ordem
divina, incorreria em uma “política” excessivamente intervencionista e incompatível
com os quadros reais da vida moderna, desconhecendo a própria “cesura [...] entre o
Espírito e a Terra” pressuposta na própria doutrina, sendo, portanto, seria
“insustentável e antinatural”204. “Antinatural”, lê-se no capítulo “Novos tempos” de
Raízes do Brasil, é a “ideologia impessoal” do “liberalismo democrático”205, fundada
numa igualdade meramente teórica entre os homens – e tampouco são “naturais”, pode-
se depreender desse mesmo argumento, as pretensões dos partidários do fascismo à
“instauração de uma reforma espiritual abrangendo uma verdadeira tábua de valores
morais”206 – vemo-nos outra vez diante da problemática tipicamente nietzschiana dos
valores, presente em Sergio desde, pelo menos, quando ele encontrara em André Gide
uma indiferença olímpica ao “decálogo” e a aspiração a um cristianismo “cristão” antes
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que paulino, problemática que parece animar, em concurso com o tema igualmente
nietzschiano da “vida” e da “natureza”, toda a sua controvérsia com Tristão de
Athayde. Se bem que, como se verá no próximo capítulo, a valorização sem reservas
do “natural” é uma característica do Sergio romântico, mas nem tanto de Raízes do
Brasil, onde o conceito de “natureza” é central, mas não assume um valor
inequivocamente positivo.

4. Um profeta

metafísica e do social é, segundo ele, o próprio crime que deixou de impedir a guerra, isto é, que levou
a ela; mas as coisas não são simples como parecem aos que se propõem antes de tudo acusar e incriminar.
O falso nietszchianismo da França ensina que a politização da filosofia pode tão bem significar a reação
radical como a Auflklärung radical; tanto a guerra, como o pacifismo; e sem querer acusar, nem
incriminar, constato que o “ativismo alemão” (ainda que sua política seja pacifista) está muito mais
ligado à ação coletiva europeia, à catástrofe europeia em que estamos implicados; ele as preparou e as
anunciou fisicamente, pelos seus atos, muito antes que o tenham feito qualquer quietismo ou ceticismo
“bugueses” [no original, “irgendwelcher ‘bürgerliche’ Quietismus und ‘Zweifel’”, cf. para a diferença
entre bourgeois e Bürger e o uso dessa distinção nas Considerações, infra, “Interlúdio”], qualquer tipo
de arte apolítica e ciosa de conhecimento e forma.” (p. 182-3). Tradução do autor a partir da versão
francesa de Jeanne Naujac e Louise Servicen (Paris: Grasset, 2002), em cotejo com o original
(Betrachtungen eines Unpolitischen. Berlim: S. Fischer Verlag, 1920).
204
“Tristão de Athayde”, cit., p. 115.
205
RB, p. 122.
206
RB, p. 158.
144

Se o zênite da trajetória romântica encontrou sua expressão em “Perspectivas”, não se


pode dizer que ali se encontra sua expressão mais madura. A fase romântica de Sergio
Buarque não termina com “O lado oposto e outros lados”. A última das grandes efusões
românticas de Sergio é um texto um pouco menos irracional e um pouco mais
“ordeiro”, possivelmente o melhor dos Sergio Buarque escreveu nessa década: um
necrológio de Thomas Hardy escrito por encomenda de Mário de Andrade, intitulado
“O testamento de Thomas Hardy” 207 . Neste ensaio, escrito na fase final das
escaramuças com Tristão de Athayde – cujas coordenadas podemos facilmente
identificar aqui – certo interesse histórico de pesquisa e reconstituição de um contexto
existencial e cultural a partir de artefatos da cultura, já manifesto anteriormente no
estudo biográfico “João Caetano em Itaboraí”, e que depois iria se desabrochar com
maior fôlego em Raízes do Brasil, encontra sua primeira formulação mais completa no
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âmbito da crítica propriamente dita. O texto é o primeiro de Sergio Buarque do qual se


pode dizer que o crítico atingiu um domínio da matéria e uma desenvoltura literária
realmente consolidadas, e há um tênue equilíbrio entre interpretação textual e o
desenho de um painel espiritual mais amplo, onde a obra adquire uma conformação
tensa e produtiva com a época à qual pertence. André Gide e Nietzsche são duas
referências salientes, mas parece entrar aqui, pela primeira vez, uma contribuição que
será decisiva para o pensamento de Sergio Buarque, e que talvez explique o salto
qualitativo que este texto representa em comparação com os anteriores: Hegel. É uma
leitura sutil, temperada com os outros elementos que já vinham se sedimentando na
crítica buarquiana, mas sua presença, ou a de algum veículo indireto para um estilo de
pensamento histórico aparentado ao hegeliano, é sensível já no primeiro parágrafo do
texto:

A literatura inglesa no período “vitoriano” é essencialmente uma literatura de repouso,


de fartura, de boa digestão. Politicamente o Império atravessara sem crise um dos
momentos mais importantes de sua história: a trasladação do centro de gravidade das
energias criadoras do povo – como dois séculos antes a vida social inglesa se deslocara
da intensidade para a extensão, agora, esgotado esse longo ciclo, inicia-se um período
de saciedade, de aspirações satisfeitas, de paz proclamada. As guerras napoleônicas

207
“O testamento de Thomas Hardy”, EL, I, p. 238-245. Texto originalmente publicado no Diário
Nacional, 8 abr 1928.
145

foram a prova de fogo do novo estado de coisas. O correlativo espiritual desse ambiente
é uma mentalidade mais ou menos equívoca, de meio-termo e de compromisso. Só os
sentimentos urbanos sabem manifestar sua excelência, só eles são acolhidos com palmas
pelo puritanismo britânico. Uma mediocridade satisfeita devora os germes de rebeldia e
de negação e impõe-se toda-poderosa. Dickens é o grande poeta dessa mediocridade.208

Vale a pena destacar aqui não apenas a ideia de que a literatura é considerada
como produção espiritual de uma época, mas que esse fato é tomado como ponto de
partida do texto, e que ele não é uma simples declaração de determinismo historicista.
Hardy, que ainda não apareceu, será tratado durante todo o texto pela excepcionalidade
de produzir uma obra antitética à sua época, extemporânea, nos famosos termos da
Segunda consideração intempestiva de Nietzsche. Nietzsche, porém, não bastaria,
talvez, para dar conta da atilada observação de que, na mentalidade “mais ou menos
equívoca, de meio termo” (note-se a fina reprodução da dita mentalidade no andar
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hesitante e cheio de senões do próprio texto), somente os “sentimentos urbanos sabem


manifestar sua excelência”. A ideia de que determinada configuração histórica dá
margem a um conjunto de expressões mentais por ela determinada é quase um truísmo
da cultura ocidental desde pelo menos o final do século XVIII, mas a noção de que os
sentimentos só encontram expressão de sua excelência num contexto que lhes seja
especialmente propício, contexto esse formado por inúmeras variáveis históricas,
pertence a uma tonalidade especial de pensamento histórico tem um sotaque altamente
reminiscente não tanto da crítica histórica da cultura por Nietzsche, mas da análise
hegeliana da evolução das figuras da consciência formulada na Fenomenologia do
Espírito – obra, aliás, em cujo prefácio (Vorrede) já vamos encontrar, em atenção à
reação romântica ao racionalismo, uma discussão da oscilação entre “intensidade” e
“extensão” na história do pensamento (§10) 209 . Este parágrafo inicial é uma
condensação da concepção historiográfica e crítica de Sergio.
Já a segunda frase do paragrafo que se segue ao acima citado, de certa forma,
uma síntese mínima da problemática crítica (e não tanto histórica, pois se ocupa
diretamente apenas de um conjunto de textos) de Sergio: “A importância de Thomas
Hardy está nisto, sobretudo, que, em uma época de temperança, soube opor qualquer

208
“O testamento de Thomas Hardy”, cit. p. 238.
209
Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., p. 28.
146

coisa de desmedido: o sentimento convulsivo dos temas essenciais de nossa


existência”. 210 Aqui desponta, talvez pela primeira vez sob o aspecto que se
reconhecerá posteriormente, um dos elementos que sustentam a espantosa percuciência
da historiografia e da crítica literária de Sergio Buarque de Holanda, levando a uma
luminosidade que leva o leitor à admiração, mesmo quando ele não concorde ou
considere insuficiente sua perspectiva. Isso se aplica tanto a Raízes do Brasil quanto a
Visão do paraíso e aos textos de Capítulos de literatura colonial; vale tanto para sua
análise histórica e sociológica como para sua leitura dos poetas árcades, e mesmo para
a sua crítica da poesia brasileira sua contemporânea: o olho de Sergio Buarque nunca
vê pessoas e textos atuando no vazio, e também não vê neles a mera expressão de algum
“contexto” reificado ou depreendido de elementos estranhos à matéria analisada, mas
conecta ambos num jogo de forças e estímulos orgânicos. Um texto ou uma ação não
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se propõem em liberdade absoluta – ou melhor, essa liberdade talvez até exista como
uma tendência de indivíduos excepcionalmente capazes, aqueles “intempestivos” de
que falou Nietzsche e entre os quais Sergio coloca Thomas Hardy, mas ela nunca se
exerce em meio a um campo desimpedido – a liberdade dos homens excepcionais,
assim, acaba adquirindo o aspecto da necessidade ou do destino, pela espessura
histórica do espaço onde forçosamente precisa se exercer. Nenhuma ação, nenhum
pensamento existe, que não esteja em algum ponto entre a pacífica reprodução dos
caminhos aconselhados pelo gosto e pela razão dominantes e a sua negação, e são os
“espíritos de negação”, como Thomas Hardy, que dão dinamismo à história, mesmo
que ela se mova lentamente. Segundo o linguajar característico do crítico e do
historiador, eles sempre cedem a pressões ou de algum modo respondem a solicitações
espirituais ou práticas espirituais ou materiais, ou então se “opõem” a algum traço
dominante na época. Longe de resultar num rígido quadro de determinismo, esse
procedimento comporta infinitas variações e entretons nas atitudes e expressões dos
indivíduos, resultando numa atmosfera textual inimitável. É aqui, no crítico que analisa
Hardy numa encruzilhada entre visões hegelianas e nietzschianas, que vamos
reconhecer pela primeira vez em Sergio Buarque algumas das qualidades que estamos
acostumados a associar ao autor de Raízes do Brasil.

210
“O testament de Thomas Hardy”, cit., p. 238-9.
147

Em Hardy, porém, ainda são muito vivos aqueles momentos extáticos de visão
profunda da verdade das coisas por trás do entulho das palavras – vale dizer, da cultura
mesma da qual o escritor faz parte – que haviam sido divisados pela primeira vez em
André Gide. Esses momentos são aqueles em que as coisas aparecem fugazmente “na
perspectiva da eternidade”, e em que sua substância “só respira fora da história, à
margem da sucessão de tempo”. E esses momentos de verdade suprema irão se
inscrever em mais um momento de negação da “ordem” combatida desde a conversão
de Sergio ao irracionalismo romântico com Gide e Murry: “Eles se rebelam contra as
forças ordenadoras que dirigiram sempre a sabedoria e a segurança dos homens na
Terra e resistem energicamente a qualquer tentativa de expressão social.” 211 Não
admira, portanto, que Hardy, homem do espírito e da visão reveladora, à maneira de
Gide e Paulo, se oponha aos homens do sistema, da letra , como Lucrécio ou Tomás de
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Aquino, que, conforme se lê no ensaio, excluem as “coisas singulares” dos “quase


sublimes” “empreendimentos anti-humanos” que são as suas criações filosóficas.
“Parece mesmo, algumas vezes que este mundo foi criado de tal jeito que só se sustenta
à custa de uma ordenação policial, de um arranjo emanado de outro mundo”, o que até
daria razão a seus prodígios sistematizadores. Mas, para Sergio, o que Hardy consegue
entrever, contrariando a sabedoria dos construtores de sistemas, em “instantes de forte
tensão interior”, são aquelas “forças subterrâneas e criminosas que vêm desmantelar
essas sínteses admiráveis”. Nesses instantes que “representam o que há de mais
importante”, “todo o resto se anula diante de sua força” e é possível “pressentir o
inefável”, mas, para que eles ocorram, “[é] preciso que o curso do tempo se
interrompa”212. O leitor talvez se lembrará aqui daquela “apreensão mística” de que
Sergio falava ao comentar o ensaio “Literature and Religion” de John Middleton
Murry, que proporcionava certos momentos em que “o homem [...] é levado a procurar
por uma apreensão não racional do mundo” e “a qualidade da visão” parece
“indubitável”. De modo que ele “conhece o mundo tão claramente como a si mesmo”
– cabe citar também os versos sem indicação de autoria que Murry, citado por Sergio,
faz preceder dessa citação: “When all the burden and the mystery/ Is lightened

211
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 239.
212
Ibid., p. 239.
148

and.../We see into the light of things” [Quando todo fardo e mistério/Se faz leve
e.../Podemos ver através da luz das coisas]213. Thomas Hardy é portanto alguém que
luta para desfazer as “categorias e oposições entre as coisas” que os homens criaram,
construindo “um céu à imagem da terra, fazendo da eternidade uma dependência do
tempo”214. Fica nítido aqui como, para Sergio, as categorias e palavras continuam tendo
um valor no mínimo dúbio, para não dizer mortal, ainda que sejam expedientes
necessários à organização da vida terrena. Nesse texto fica patente, como em poucos,
a percepção de Sergio de que os valores éticos e estéticos conformam os quadros de
existência, o que explica a presença contínua da poesia na historiografia de Sergio
Buarque, desde Raízes do Brasil até Visão do Paraíso – pois a poesia é, na visão
romântica de mundo, justamente o estado mais puro das possibilidades de conformação
das coisas no mundo das palavras.
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Assim, Thomas Hardy, escritor extemporâneo, é como a semente do novo tempo


que viria depois da “medíocre” e “satisfeita” era vitoriana. Quando atribuiu a Tess of
the d’Ubervilles o subtítulo de “uma mulher pura”, causou escândalo porque seu
esforço por “afetar certa confiança nos dogmas da ciência e na fixidez dos valores” não
convenceu seus contemporâneos, que haviam entendido perfeitamente que a torção de
significado que pretendia aplicar à “pureza” e, com isso, “ser como os outros”, era um
“germe de dissolução para sua sociedade”215. Hardy aparece, aos olhos de Sergio, como
um semeador daquela “tresvalorização de todos os valores” imaginada por Nietzsche
como ideal de sua filosofia em sua versão mais acabada. O próprio Hardy, porém, foi
o único que “não entendeu o motivo” do “escândalo” que causou, talvez porque
ignorasse que “trazia consigo um princípio terrível de anarquia contra o qual seus

213
“Romantismo e tradição”, cit., p. 199. Trata-se, na verdade, de citação livre de “Lines Composed a
Few Miles above Tintern Abbey, On Revisiting the Banks of the Wye during a Tour. July 13, 1798. Em
Wordsworth, o que se lê realmente é “[…] that blessed mood,/ in which the burthen of the mystery/ […]
Is lightened […]/And […]/ We see into the life of things”. O desvio de “in which” para “when” e de “of”
para “and” é de Murry, já o de “life” para “light” é de Sergio. Poema completo disponível em
https://www.poetryfoundation.org/poems/45527/lines-composed-a-few-miles-above-tintern-abbey-on-
revisiting-the-banks-of-the-wye-during-a-tour-july-13-1798. O poema, na citação de Murry, aparece em
“Literature and Religion”. In: CLUTTON BROCK, Arthur; DREAMER, Percy. The necessity of art.
Eugene, Oregon: Wipf & Stock, s.d., p. 155.
214
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 240.
215
Ibid., p. 241.
149

contemporâneos tinham bons motivos para protestar”216. Sua obra seria um fruto de sua
“inadaptação absoluta” à “ordem da civilização”, inadaptação da qual ele talvez não
esteja totalmente consciente, pois procura saná-la afetando compromissos com a
“ordem”, imaginando-se “um personagem necessário, um elemento de construção”,
mas na realidade apenas fingindo “acreditar no prestígio eterno das categorias
humanas” – acreditando ser apenas um reformador, ele na verdade é, “no fundo”, um
“espírito de negação, um adversário constante das ordenações que os homens se
impuseram”217. “Espírito de negação”, os leitores familiarizados com o tema por certo
não deixarão de perceber, é uma expressão que, no pensamento alemão, é indissociável
de sua aparição na boca de Mefistófeles no Fausto de Goethe (“Ich bin der Geist, der
stets verneint”, “Eu sou o espírito que nega”, v. 1338) e de sua apropriação na filosofia
de Hegel na forma da “dialética” que procede sempre pela negação. A ideia da figura
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individual de um profeta que trará uma nova moral e destruirá todos os valores
vigentes, por outro lado, é inconfundivelmente nietzschiana. Em seguida, Sergio dirá
que Hardy “imagina, talvez, que mais tarde, quando a humanidade estiver
‘transformada fisicamente’, não será obrigado a lutar contra as suas contrições, nem
terá de adotar uma atitude conforme à ordem da civilização.”218
Essa “transformação física” que Sergio introduz entre aspas muito
provavelmente não se refere a nenhum trecho de Hardy, mas a Dostoievski, e na
verdade se reporta à já citada carta de André Gide sobre Nietzsche incluída nos
Prétextes, Pois é o Kirilov dos Demônios, que aparece duas vezes citado no ensaio de
Sergio sobre Thomas Hardy, que acredita que salvará, com seu suicídio (tema também
presente no ensaio), toda a humanidade, e que isso ocasionará uma mutação na forma
física humana: “Isso por si só salvará todos os homens e transformará fisicamente a
próxima geração; pois, até onde eu posso avaliar, em sua forma física atual, é
impossível para o homem viver sem o Deus antigo.” E é André Gide que conclui, na
analogia já analisada anteriormente, que, assim como Kirilov se mata, “Nietzsche
afunda na loucura”, mas em compensação “torna presente seu super-homem.”219 E,

216
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 241-2.
217
Ibid., p. 242.
218
Loc. cit.
219
André Gide, Prétextes, cit., p. 180.
150

assim como Nietzsche fora movido por um amor à verdade que o levou a uma
“clarividência [...] cada vez mais aguda, cruel, deliberada” que o inclinava cada vez
mais para a “inconsciência”220, Hardy aparece como uma espécie de arauto nietzschiano
dos novos tempos, que, mediado por um cristianismo à la Gide, é um profeta de um
ponto de vista “extra-moral”, aquele que vê as coisas do “ponto de vista da eternidade”:

É preciso compreender, se se quer compreender Thomas Hardy, que expressões como


pessimismo e otimismo só têm sentido em uma esfera acanhada de pensamento. Sua
aparente aplicação em contemplar os aspectos mais dolorosos do mundo traduz apenas
uma vontade sincera e enérgica de conhecer a verdade, mesmo em prejuízo das
conveniências. [...] Somente o caminho do Mal e a experiência da Dor podem nos
transferir para um mundo mais elevado. A dor é um enriquecimento, uma simples escala,
um elemento indispensável para a nossa ascensão. É esse o sentido fundamental da
tragédia cristã.221
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Novamente, por trás de uma vistosa capa nietzschiana, é possível entrever o pano
de fundo hegeliano – pois é Hegel, que não é nenhum filósofo ateu, quem diz que “a
vida de Deus e o conhecimento divino bem podem exprimir-se como um jogo de amor
consigo mesmo”, como queriam os românticos que ele critica na introdução à sua
Fenomenologia (§19), “mas essa é uma ideia que baixa ao nível da edificação”
(Erbaulichkeit, também traduzível por construção) por lhe faltar “a dor, a paciência e
o trabalho do negativo”222. Enquanto não se entregar a essa dor e a esse trabalho (que
na dialética do senhor e do escravo é avizinhada do perigo de morte223, não se chegará
a transpor a “cesura entre o Espírito e a Terra” sobre a qual Sergio falará em sua resenha
de Tristão de Athayde, que os construtores de sistemas, incapazes de compreendê-la,
procuram fazer “da eternidade uma dependência do tempo” e, a partir dessa ficção
filosófica e anti-humana, pretendem policiar este mundo, aniquilando assim o sentido
tanto da Terra quanto do Céu. É na consideração desses trânsitos, extáticos ou não,
entre o céu e a terra, que dão origem e atualidade aos valores e leis terrenas, que se
movera a reflexão de Sergio Buarque desde o começo de sua peripécia romântica, e
que, de modo mais sutil do que parecerá a leitores desavisados, deságua na

220
Prétextesˆ, cit., p. 181.
221
“O testamento de Thomas Hardy”, cit., p. 244-5.
222
Fenomenologia do espírito, cit., p. 33.
223
Ibid., §§178-196, p. 142-151.
151

argumentação às vezes um pouco hermética, mas já não tão romântica, de Raízes do


Brasil.
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152

Interlúdio – Uma ideologia alemã


(Símiles da experiência de modernização retardatária)

Este texto não foi pensado como um capítulo da tese, mas como um subsídio de
transição para a análise de Raízes do Brasil, o primeiro texto de Sergio Buarque de
Holanda onde a concepção de formação encontrada na obra madura (que, segundo o
ponto de vista deste trabalho, começa com Raízes) aparece formulada. Ele não se ocupa
da análise de nenhum texto de Sergio Buarque em particular, mas desenvolve as linhas
fundamentais do principal pressuposto teórico da tese, a saber, a ideia de Bildung
(formação, cultura, formação cultural; as opções de tradução são várias e sua
conveniência depende do contexto de uso, dada a riqueza, e também uma certa
indefinição, da valência do termo na cultura alemã), que opera, no presente trabalho,
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como chave interpretativa da obra de Sergio Buarque.


Como se sabe, são múltiplas as referências de Raízes do Brasil ao pensamento de
extração alemã, e há várias controvérsias em torno da procedência do argumento do
livro (se ele é mais filiado a tal ou qual autor ou subcorrente de pensamento). Parece
insuficientemente frequentada, porém, na fortuna crítica de Raízes do Brasil e da obra
de Sergio Buarque, a discussão mais ampla sobre o que a constelação intelectual em
torno da Bildung como um todo oferece de excepcional, em termos de símiles teóricos,
lugares-comuns e outras representações mentais relativamente estranhos ao universo
intelectual fora da Alemanha e antes de meados do século XVIII. A escolha da
expressão “símile teórico” parece aqui mais apropriada do que outras, na medida em
que as apropriações de Sergio Buarque do pensamento alheio raramente se dão na
forma de uma ascendência intelectual absorvente, como se acreditou durante algum
tempo sobre a presença weberiana em Raízes do Brasil 1 . Embora, de fato, numa
primeira incursão sociológica Sergio se revele um pouco mais suscetível a reproduzir,
ou procurar reproduzir com fidelidade a perspectiva de autores que ele julga

1
Uma das primeiras contestações vigorosas da tradicional interpretação weberiana de Raízes é o texto
de Maria Odila Leite da Silva Dias incluído como introdução à edição de Raízes do Brasil da coleção
Intérpretes do Brasil, posteriormente publicada com seu título original, “Negação das negações”, no
volume Perspectivas (Monteiro, Eugênio, 2008). Outros trabalhos a serem destacados são Sergio da
Mata (“Weberianismo tropical” e “Tentativas de desmitologia”) e a tese de Eugênio (2011).
153

especialmente importantes, seu proceder mais típico é o de incorporações muito


seletivas e particulares, de modo que a análise tira melhor proveito do mapeamento das
influências intelectuais quando se concentra no movimento retórico ou teórico
particular que Sergio parece reproduzir, sem procurar impor sobre a totalidade do texto-
destino da apropriação a doutrina geral do autor lido. Diante da conexão especial que
Sergio vai cultivar a partir de Raízes com o pensamento alemão, dispondo de um
conhecimento vasto da literatura e da produção acadêmica em ciências humanas
daquele país, vale a pena procurar estabelecer algumas linhas gerais do que terá
representado para ele, não este ou aquele texto, mas um painel mais amplo de
manifestações da cultura.
É na crença de que esse universo é fundamental na formação de Sergio Buarque,
bem como na montagem de sua concepção da formação brasileira, que se apresenta
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aqui um breve estudo, muito sintético e sem maiores pretensões para além de um
subsídio ao presente trabalho, sobre a Bildung, concentrado naqueles elementos que
parecem reverberar na obra de Sergio, e com especial intensidade a partir dos anos
1930. Não se reivindica tratar-se aqui de um mapeamento de influências inequívoco,
de caráter propriamente documental, mas da exposição de lugares-comuns intelectuais
e espirituais que esclarecem o material discutido no capítulo III (e, em menor medida,
nos precedentes), onde a investigação tende a uma abordagem mais documental e a
atribuição de influências pode ser intentada de modo menos vago. O que se segue não
é, portanto, imprescindível à compreensão do argumento do presente trabalho (embora
o tenha sido para sua concepção). Pareceu preferível incluir esta análise da Bildung
aqui, e não numa introdução metodológica, ou distribuída em digressões ou notas
esparsas ao longo dos capítulos, tanto pelo seu caráter relativamente acessório (do
ponto de vista da leitura), quanto pelo fato de que os referidos modelos intelectuais
parecem se fazer presentes no pensamento de Sergio Buarque especialmente depois de
sua estada alemã em 1929-1931, o que tornaria o andamento da tese estranho, pois essa
discussão é bem menos pertinente aos dois primeiros capítulos. A esperança é,
portanto, que as páginas seguintes preparem, para quem tiver a disposição para sua
leitura, a discussão em torno de Raízes do Brasil, e componham com ela uma
154

conformação orgânica, de modo que argumentos posteriormente apresentados resultem


mais plausíveis ou compreensíveis, como germinações de elementos aqui semeados.

***

Querendo-se examinar o influxo do pensamento alemão na obra de Sergio Buarque,


seria primeiro preciso perguntar-se pelos motivos da predileção, pelas expressões
intelectuais de língua alemã, predileção que, considerando o meio de sua própria
formação, constitui como que um traço excêntrico de sua produção intelectual2. Quais
seriam, em termos gerais, as diferenças mais consistentes entre a reflexão alemã e o
pensamento desenvolvido no restante da Europa Ocidental?
Numa tentativa de responder a semelhante pergunta, seria possível mobilizar uma
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vasta bibliografia. Dentro desse universo, apresentam-se três possibilidades


explicativas mais ou menos consagradas em torno da singularidade das produções
espirituais do mundo de língua alemã, geralmente baseadas em fontes comuns e em
argumentos semelhantes, mas que acabam diferindo consideravelmente pelo
procedimento: 1) a emergência, em fins do século XVIII, do ideal alemão de “cultura”
(Kultur) por oposição ao de “civilização” (Zivilisation), de extração franco-britânica,
apontaria para os trabalhos que enfatizam essa distinção, como a conhecida introdução
de Norbert Elias ao seu Processo civilizador3; 2) seria possível localizar a originalidade
da reflexão alemã pelo filtro do “historismo”, aqui concebido não como uma
metodologia disciplinar, mas como todo um paradigma epistemológico – para restringir

2
A título de indício dessa excentricidade, lembre-se que, quando finalmente se dispôs a escrever um
texto de maior fôlego onde se confronta ostensivamente com temas de teoria e metodologia da História,
isto é, seu magistral ensaio sobre Leopold von Ranke, Sergio não encontrou ocasião de incluir uma única
referência bibliográfica em sua própria língua.
3
ELIAS, Norbert. Sociogênese da diferença entre Kultur e Zivilisation no emprego alemão. In: O
processo civilizador, v 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 23-50. Longe de
ser uma criação ideal-típica de Elias, a distinção foi frequentemente mobilizada por pensadores alemães
no período anterior à I Guerra Mundial e aproveitada na propaganda de guerra da Alemanha guilhermina.
O debate remonta às reações ressentidas de Hamann e Herder às Luzes franceses, mas é vigorosamente
retomado no começo do século XX. Ver, por exemplo, o ensaio de Georg Simmel sobre a “tragédia da
cultura”, ou, ainda, em chave mais polêmica, as Considerações de um apolítico de Thomas Mann, onde
o autor se arroga o posto de defensor da cultura contra os “literatos da civilização”. O mesmo Mann
aproveitará suas reflexões sobre o tema e as transporá para a ficção (embora já numa posição um pouco
mais crítica da “cultura”) nas contendas entre Lodovico Settembrini e Leo Naphta na Montanha mágica.
155

essa linhagem a uma referência clássica, seria o caso de consultar o estudo de Friedrich
Meinecke sobre A gênese do historismo 4 ; 3) finalmente, pode-se reportar a
singularidade alemã à longa tradição desenvolvida em torno do conceito de formação
ou Bildung (literalmente, formação, mas também, dependendo do contexto, educação,
cultura, erudição; a polissemia do conceito é um de seus elementos distintivos5).
No presente trabalho, partindo das indagações sobre as filiações teóricas de
Raízes do Brasil, chegou-se à conclusão de que o terceiro caminho revelava-se o mais
proveitoso na interpretação do texto, além de oferecer a chave mais satisfatória para o
conjunto da obra de Sergio Buarque. A formação ou Bildung é uma categoria central
do pensamento buarquiano sobre a literatura e a história brasileiras, especialmente a
partir de 1929-31, quando o romantismo da fase modernista dá lugar a uma reflexão
marcada por um pensamento morfológico reminiscente da teoria do conhecimento
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goethiana, e sua visão da arte se afasta da vizinhança neorromântica de Middleton


Murry e dos surrealistas, para aproximar-se de um ideal que, se não é propriamente
“clássico” à maneira de Goethe e Schiller, parece mais sensível aos ideais de equilíbrio
e harmonia orgânica apregoados pelo humanismo alemão da virada do século XIX. Do
mesmo modo, pelo próprio conteúdo dos lugares-comuns ou símiles teóricos e
literários 6 e das representações científicas articuladas em torno da Bildung, parece
haver um elemento de verdade empírica na sua eleição como categoria interpretativa
da própria formação intelectual e das expressões críticas e historiográficas de Sergio
Buarque. A seguir, apresenta-se um apanhado extremamente parcial, mas, espera-se,

4
MEINECKE, Friedrich. El Historicismo y su genesis. México: Fondo de cultura económica, 1986.
5
Ver, a respeito, o verbete “Bildung” de Rudolf Vierhaus no dicionário dos Geschichtliche
Grundbergriffe (conceitos históricos fundamentais) organizado por R. Koselleck, W. Conze e O.
Brunner, aqui citado em tradução avulsa para o espanhol: VIERHAUS, Rudolf. Formación (Bildung).
Separata: Revista Educación y Pedagogía, v. 14, n. 33, p. 7-67.
6
Não é uma preocupação do presente estudo especificar conceitualmente a fronteira entre o “teórico” e
o “literário”. Os ditos “lugares-comuns”, expressão aproveitada livremente da retórica clássica, podem
operar num plano infra-conceitual e não necessariamente são redutíveis a explicações literais (Cf. Hans
Blumenberg, Paradigmes pour une metaphorologie. Paris: Vrin, 2006). Lembre-se apenas que a zona
de interseção entre ambos é ampla e, às vezes, fundamental. Pense-se, por exemplo, no estudo onde
Carlo Ginzburg mostra como Malinowski extraiu sua explicação do kula trobriandês nos Argonautas do
Pacífico-Sul de um conto de Robert Louis Stevenson, e de como Marx se valeu amplamente de motivos
do Fausto na formulação de argumentos importantes do Capital. GINZBURG, Carlo. Tusitala e seu
leitor polonês. In: Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia
das Letras 2004; MAZZARI, Marcus Vinicius. A dupla noite das tílias. História e natureza no Fausto
de Goethe. São Paulo: Ed. 34, 2019 (não foi possível, até o fechamento da tese, conferir as páginas deste
livro onde Mazzari documenta os aproveitamentos teóricos de símiles goethianos por Marx).
156

minimamente representativo do conceito, aproveitando sempre que possível


referências que Sergio Buarque terá conhecido, seja por haver comprovação
documental, seja por seu caráter amplamente canonizado. Na sequência, um rápido
estudo dos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, talvez o mais exemplar de todos
os documentos da Bildung, serve como janela de exposição para alguns dos referidos
lugares-comuns teóricos e literários sobre a formação, funcionando, como uma célula
originária de princípios metodológicos, estéticos e literários da Bildung.

1. Teoria do conhecimento e noção de indivíduo na


Bildung
O conceito de formação, relacionado estreitamente com as ideias de cultura e
educação, não é uma criação alemã. A versão alemã da formação, a Bildung, é um
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resgate do ideal grego de paideia, que por sua vez já havia sido retomado no
Renascimento pelos humanistas italianos – não por acaso, a Grécia antiga e o
Renascimento italiano são objetos prediletos de reflexão histórica, filosófica e artística
do humanismo clássico alemão. Pense-se em Goethe, seja em sua viagem à Itália, em
peças como o Torquato Tasso, ou nas eruditas alusões clássicas da segunda parte do
Fausto, ou, ainda, para mencionar um universo mais amplo, no florescimento dos
estudos filológicos e históricos clássicos a partir do final do século XVIII,
decisivamente incrementados pelos românticos de Iena; ou, ainda, na obra de um
Burckhardt ou de um Nietzsche, nitidamente tributárias desse movimento.
Entretanto, não custa lembrar que a versão alemã do ideal de formação, mesmo
quando associável a alguma espécie de “classicismo”, se propõe em saliente contraste
com o ideal racionalista e neoclássico de arte e cultura desenvolvido na França no
século XVII e, ainda no final do século seguinte, hegemônico na Europa. Tomando
emprestada a imagem de Thomas Mann da Alemanha como o “país do protesto”7 –
afinal, a unidade cultural do povo alemão tem como uma espécie de mito fundador a
tradução por Lutero da Bíblia, documento emblemático do cisma que dera início à
Reforma – parece seguro dizer que o tipo de formação defendido por figuras como

7
MANN, Thomas. Considérations d’un apolitique. Paris: Grasset, 2002, p. 43.
157

Goethe e W. von Humboldt é uma forma de protesto contra a cultura e o sistema das
artes do classicismo do Seiscentos e dos philosophes do Setecentos. Mesmo que, como
se sabe, o “protesto” já encontrasse precedentes em Rousseau, e, como lembra Ernst
Cassirer, a filosofia iluminista tivesse mais afinidades com seus adversários no
romantismo alemão do que estes últimos gostariam de admitir. 8 Ainda assim, o
sentimento (às vezes ressentido) de participar de um ataque contra a supremacia do
racionalismo, do desafio à atmosfera imperante nos meios intelectualizados, é um dos
traços mais salientes dos primeiros formuladores da Bildung, especialmente aqueles
que ficaram conhecidos como “românticos”, por oposição aos “clássicos”. Bem
ilustrativo disso é o que Isaiah Berlin escreve sobre Schelling em seu inspirado ensaio
sobre o “contra-Iluminismo”:

Schelling foi talvez o mais eloquente de todos os filósofos que representaram o universo
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como o desenvolvimento auto-engendrado de uma força primeva, não racional, que se


pode apreender somente por meio dos poderes dos homens de gênio imaginativo [...]. A
natureza, organismo vivo, responde a questões postas pelo homem de gênio, enquanto o
homem de gênio responde às questões postas pela natureza, pois eles conspiram um com
o outro [...]. Essa fé numa faculdade espiritual peculiar, intuitiva, tem muitos nomes –
razão, entendimento, imaginação primária – mas é sempre diferenciada do intelecto
analítico crítico prezado pelo Iluminismo. Essa [...] é a fonte daquela corrente do grande
rio do romantismo que vê cada atividade humana como uma forma de expressão
individual, e [...] em toda atividade criativa como a marca de uma personalidade única,
seja ela individual ou coletiva, consciente ou inconsciente, sobre a matéria ou o meio no
qual e sobre o qual ela trabalha, procurando perceber valores que não são dados mas
gerados no próprio processo de criação. Daí a negação, na teoria assim como na prática,
da doutrina central do Iluminismo, segundo a qual as normas de acordo com as quais os
homens devem viver e agir são preestabelecidas, ditadas pela própria natureza.9

Falando do pintor inglês Joshua Reynolds, mas numa observação que também
vale para os pensadores alemães aqui discutidos, Berlin ressalta uma das mais
revolucionárias qualidades da reação romântica ao Iluminismo, isto é, no contexto do
desafio às regras clássicas da arte, a proposição de que os valores são criados nas
próprias obras, e não são externos a elas:

Criação é criação de fins assim como de meios, de valores assim como de suas
corporificações; a visão que procuro traduzir em cores ou sons é gerada por mim, e

8
CASSIRER, Ernst. The Philosophy of the Enlightenment. Princeton: Princeton University Press, 1951,
p. 197.
9
BERLIN, Isaiah. Counter-Enlightenment. In: Against the Current: Essays in the history of ideas. Nova
York: Viking, 1980, p. 18-9.
158

peculiar a mim, diferente de tudo quanto já foi, ou será, acima de tudo não é algo comum
a mim e a outros homens que procuram realizar um ideal comum, partilhado e, porque
universal, racional.10

Como lembra Henrique Estrada Rodrigues11, o ideal de formação do humanismo


clássico alemão tem um traço paradoxal: enquanto, no modelo grego, esperava-se da
formação que ela preparasse o indivíduo para a ação virtuosa na esfera pública, há, no
conceito alemão, consagrado em obras como os Anos de aprendizado de Wilhelm
Meister, uma recusa do mundo público (que ganhava uma inédita ascendência na vida
europeia à época do romance) e uma retirada para a interioridade individual. É comum,
por sinal, a leitura de que as grandes expressões artísticas e filosóficas em torno da
Bildung, o Wilhelm Meister incluso, constituiriam um substituto espiritual para a
ausência, em território alemão, da Revolução – lembre-se do famoso fragmento de F.
Schlegel onde se lê que o Wilhelm Meister, a Doutrina da ciência de Fichte e a
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Revolução Francesa seriam as principais tendências espirituais da época. Não é preciso


partilhar da atitude desdenhosa de Carl Schmitt para com o Romantismo para
reconhecer a agudeza de sua observação sobre essa passagem, lembrando que somente
o confortável ponto de vista da distância e do abrigo de um Estado policial facultavam
uma reação estetizante que concebesse o fim do Antigo Regime, um romance e uma
obra filosófica como acontecimentos da mesma ordem – ordem, no caso, “espiritual”.12
Uma das interpretações mais interessantes da dimensão intelectual modernização
alemã – considerada, no caso, sob o ponto de vista algo limitado da “aculturação” – é
a do antropólogo francês Louis Dumont. Dumont dedicou àquilo que chama de
“ideologia alemã” a última parte de seu estudo comparativo sobre as noções de pessoa
13
, iniciado com a análise da sociedade de castas indiana no Homo hierarchicus e
continuado com a análise da filosofia política moderna em Homo aequalis I. “Ideologia

10
Ibid., p. 18.
11
RODRIGUES, Henrique Estrada. O conceito de formação na historiografia brasileira. In:
MEDEIROS, Bruno et al. (Orgs) Teoria e historiografia: Debates contemporâneos. Jundiaí: Paco
Editorial, 2015. Não havendo à disposição um exemplar da versão do ensaio publicada em livro durante
a elaboração do presente texto, foi utilizada uma cópia avulsa, gentilmente fornecida pelo autor. Não
será possível, portanto, indicar a paginação da versão publicada, que fica aqui referida, de todo modo,
para consulta futura.
12
SCHMITT, Carl. Political Romanticism. Cambridge, MA: MIT Press, 1986, p. 36.
13
DUMONT, Louis. Homo aequalis II: L’idéologie allemande. France-Alemagne et retour. Paris:
Gallimard, 2013.
159

alemã” é como Dumont chama a versão alemã do individualismo, que coincide com a
tradição desenvolvida em torno da ideia de Bildung e, evidentemente, nada tem a ver
com a crítica de Marx e Engels aos jovens hegelianos, embora a escolha do título pelo
autor seja, provavelmente, no mínimo, uma provocação. A hipótese de Dumont é que
as sociedades do Ocidente moderno teriam, no processo de modernização, efetuado a
transição de uma organização social baseada uma noção de pessoa holista – isto é, onde
o indivíduo, a despeito da realidade psicológica de sua individualidade, ganha corpo
no mundo social por meio de sua inserção em unidades comunitárias mais amplas
(família, aldeia, clã, paróquia etc.) – para a do moderno individualismo, onde o
indivíduo coincide com a sede de sua célula de agência social.14 Note-se, de passagem,
como uma das obras pioneiras da sociologia alemã, Comunidade e sociedade, de
Ferdinand Tönnies, se ocupa da problemática da modernização em termos bastante
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aproximados desses, em tom nitidamente nostálgico da condição “holista”. Em


Tönnies, porém, o centro da análise não está no indivíduo, mas nas dinâmicas de
interação comunais, ou, depois, sociais, existentes em cada um dos estágios
históricos 15 . Em Homo aequalis II, volume final da série de Dumont, a evolução
histórica do individualismo é coroada pela resposta – ou talvez ressalva – alemã ao
individualismo surgido ao abrigo do liberalismo e das Luzes, onde indivíduos atômicos
teoricamente iguais e livres existiriam em concorrência econômica e política. Dumont,
em sua interpretação da Bildung como “ideologia alemã”, entende que a situação
retardatária da Alemanha durante a Era das Revoluções deu margem a um resultado
singular: privados da experiência revolucionária, os alemães criaram um
individualismo que conservava, como ideal, alguns elementos fundamentais do
holismo.16

14
Uma demonstração interessante, de inspiração abertamente dumontiana, de como isso se dá no plano
dos “mitos” organizadores da cultura foi feita por Ricardo Benzaquen de Araújo e Eduardo Viveiros de
Castro em sua análise de Romeu e Julieta. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de; VIVEIROS DE CASTRO,
Eduardo. Romeu e Julieta e a origem do Estado. In: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Zigue-zague.
Ensaios Reunidos. São PauloL Unifesp; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2019.
15
Ver especialmente o Livro I de TÖNNIES, Ferdinand. Community and Civil Society. Cambridge:
Cambridge University Press, 2001, (p. 15-93).
16
DUMONT, L’idéologie allemande, cit., p. 233-241. Dumont fundamenta seu argumento
principalmente nas obras de Wilhelm von Humboldt e Goethe, mas é extraordinária a recorrência desses
temas e da homogeneidade dos pontos de vista com que são abordados no pensamento alemão do final
do século XVIII e das primeiras décadas do XIX.
160

Desse modo, o individualismo moderno é assimilado, mas sob a condição de que


o indivíduo possa conservar dentro de si uma dimensão ideal de totalidade, onde a
diferença não assume, como no paradigma ocidental liberal-racionalista, o valor
negativo de um desvio, mas o positivo da singularidade 17 . Essa solução de
compromisso se torna especialmente perceptível no pensamento da fase madura do
classicismo alemão, onde os valores normativos não deixam de existir, mas passam a
conviver com uma exigência de efetivação do singular em sua novidade. Tome-se, por
exemplo, a conversa anotada por Eckermann onde Goethe propõe a ideia de uma
literatura mundial [Weltliteratur]. Se, por um lado, Goethe defende que a literatura de
todo o mundo seja lida para se ter uma ideia mais completa das possibilidades de
expressão espiritual da humanidade, afirmando que “[a] literatura nacional hoje já não
significa grande coisa” e acusando na veneração dos alemães pelos poetas nacionais
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certo provincianismo, por outro, a descoberta da singularidade dos povos épocas requer
que o artista – como representante de seu povo e sua época – invista sua individualidade
na obra. Só assim a arte ultrapassa o mero epigonismo para enriquecer o acervo comum
da história espiritual da humanidade. Assim, “[a]s personagens de Sófocles têm todas
algo da elevada alma do grande poeta, assim como as de Shakespeare”, que, em suas
tragédias romanas, não se limita a “repetir a obra de um historiador” e, “com razão”,
“transforma seus romanos em ingleses [...], caso contrário sua nação não o teria
compreendido”. E, ao mesmo tempo em que os gregos devem ser tomados como único
modelo possível, todo o resto “devemos considerar apenas historicamente, e, tanto
quando possível, nos apropriar do que encontrarmos de bom”.18 Lembre-se, aqui, em
atenção ao jogo que o conceito de Weltliteratur supõe entre caráter singular e
totalidade, de sua atualização por Erich Auerbach no ensaio de 1952 intitulado
“Filologia da literatura mundial”, quando, sobre a literatura mundial, diz que “não se
refere simplesmente aos traços comuns da humanidade, e sim a esta enquanto

17
Em sua análise da obra de Wilhelm von Humboldt, Dumont conclui que há implícito em sua doutrina
um universalismo normativo de inspiração kantiana, ainda que combinado com a exigência do “caráter”
próprio (p. 150-157).
18
ECKERMANN, Johan Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida, 1823-1832.
São Paulo: Unesp, 2016,p. 228-229 (conversa de 31 de janeiro de 1827).
161

fecundação recíproca de elementos diversos”, que tem por pressuposto a “felix culpa
da dispersão do gênero humano numa variedade de culturas.”19
A essa teoria da arte e da cultura corresponde uma concepção igualmente nova
do mundo social, que segue sendo pensado como totalidade orgânica e
hierarquicamente ordenada, cuja existência depende da mediação de indivíduos, que
são como que os órgãos de um corpo maior. Aqueles que pretendam desempenhar
algum papel de maior destaque nessa ordem devem desenvolver mecanismos para os
compreender o mundo social e a natureza, ou seja, precisam da formação, educação ou
cultura (Bildung) que efetive a totalidade que há dentro de si. Assim como, em Leibniz,
a mônada contém o universo sob um aspecto de singularidade, os indivíduos e as
culturas participam do todo por meio de seus traços únicos. 20 Para a filosofia da
Bildung, no plano correspondente da individualidade, a realização se dá pela
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universalização do individual, sob a condição da manutenção do caráter singular. Um


elemento fundamental desse novo modo de ver o mundo, abertamente oposto ao
racionalismo, implica uma nova teoria da História, mais sutil do que o progressismo
linear das Luzes francesas. Uma de suas formulações mais pungentes é a primeira
Filosofia da história de J. G. Herder. Nesse escrito de 1774, Herder viu no
desdobramento dos povos no tempo uma variedade a ser valorizada independentemente
das balizas morais do presente 21 , abrindo assim para a investigação histórica uma
inédita avenida de análise perspectivística das diferentes épocas e culturas. Essas ideias
são aplicadas analogamente ao plano individual, e são amplamente desenvolvidas nas
reflexões sobre a formação da personalidade do protagonista nos Anos de aprendizado
de Wilhelm Meister, de Goethe.
Menos conhecidas do que suas contribuições literárias, as reflexões científicas de
Goethe são reveladoras de como a Bildung não se limita a uma certa teoria do indivíduo
e da história, mas conforma todo um paradigma epistemológico de incidência
universal: os lugares-comuns e símiles teóricos que se veio comentando devem ser

19
AUERBACH, Erich. Filologia da literatura mundial. In: Ensaios de literatura occidental. São Paulo:
Ed. 34; Duas Cidades, 2012, p. 357.
20
CASSIRER, The philosophy of the Enlightenment, cit., p. 27-36.
21
HERDER, Johann Gottfried. Another philosophy of history for the education of mankind. In: Another
Philosophy of History and Selected Political Writings. Indianapolis, IN: Hackett, 2004, p. 3-99.
162

levados em conta, por certo, na pedagogia, como se percebe pela centralidade da noção
de “aprendizado”, mas eles também compõem, e talvez antes mesmo de poderem
incidir na esfera educativa, um ponto de vista sobre a natureza. O elemento pedagógico
é derivado de uma teoria do conhecimento. Contra a concepção sistemática e
mecanicista da física newtoniana22, Goethe erige uma ciência centrada na noção de
forma, a morfologia. O princípio básico desse estilo epistemológico é o da
transformação – o desdobramento da forma no tempo – o qual se supõe exprimir, a
partir de sua própria conformação fenomênica, uma verdade que se expressa no
processo mesmo da vida. O que vem a ser ganha, para quem o testemunha, uma forma
que contém o conhecimento sobre o processo do devir. Como se lê num dos fragmentos
científicos de Goethe, “[a] morfologia repousa sobre a convicção de que tudo o que é
tem também de se significar a si próprio. Admitimos esse princípio desde os primeiros
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elementos físicos até à exteriorização espiritual do homem”. O fato mesmo de que as


coisas têm forma é remetido a um princípio ao mesmo tempo metafísico e
epistemológico, pois a forma é atributo da coisa, e também de nossa apreensão da coisa:
“[o] inorgânico, o vegetativo, o animal, o humano, tudo se significa a si próprio e
aparece como o que é ao nosso sentido externo e ao nosso sentido interno. A forma é
algo que advém, algo que está em transição. A doutrina da forma é a doutrina da
transformação.” 23 Ciência eminentemente descritiva e não explicativa, preocupada
menos em resolver o mistério da natureza, mas apreender seu movimento como que
desenhando-a, apreendendo-a em sua “pulsação plástica entre contração e dilatação,
sístole e diástole, inspiração e expiração”, e por isso esse “desenhar” é “contínuo e
opera da permanência rítmica à abertura criativa”, conforme o comentário recente de
Maria Luisa Noujaim 24 . Não por acaso, a essa ciência descritiva da natureza
corresponderá, no âmbito da análise da cultura, um estilo de argumentação
eminentemente histórico e narrativo, onde os procedimentos de atribuição causal são,

22
Assim como o “historismo”, que é como Meinecke chama um universo intelectual que, se não coincide
ao que aqui se chama de Bildung, está próximo disso, se levanta contra as noções de direito natural na
antropologia racionalista (El Historicismo y su génesis, cit., p. 21).
23
Apud MOLDER, Maria Filomena. Introdução. In: GOETHE, Wolfgang von. A metamorfose das
plantas. Lisboa: Imprensa nacional, Casa da moeda, 1993, p. 27.
24
TEIXEIRA, Maria Luisa Noujaim. Impulso e espacialidade na linguagem: dos românticos à biologia
cognitiva. Tese de doutorado (História Social da Cultura). Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, 2020, p. 5
163

de ordinário, preteridos por uma perspectiva animada por uma noção de necessidade.
O que é, é porque assim tinha de ser – deu vasão ao movimento orgânico da forma,
mesmo que em interação com outras formas. Em ensaio sobre o crítico Rudolf Kassner,
Georg Lukács, diz que a forma se faz preencher pela alma não de maneira arbitrária,
mas como “a única coisa possível” – é essa, aliás, a “definição mais sucinta” da forma25.
A forma do indivíduo, assim como sucede com as formas da natureza, vive em
constante jogo de intercursos vitais com o mundo, o que implicará uma certa teoria da
alma que comporte alguma permanência na mudança. Isso não é novidade na filosofia
moderna, mas a ênfase que o pensamento dessa época dedica à questão do “Eu” é
impressionante – lembre-se que o estágio teórico mais acabado da noção ocidental de
pessoa é localizado por Marcel Mauss, em estudo antropológico pioneiro sobre o
assunto, em Fichte.26. Igualmente características do ambiente cultural de consolidação
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da Bildung como ideia-mestra da modernização alemã são as considerações de


Friedrich Schiller sobre a “pessoa” e seus “estados” na Carta XI de sua Educação
estética do homem. Para Schiller, o homem não “é” porque sente, quer e pensa, e nem
sente, quer e pensa porque é, mas é porque é; o seu ser é uma virtualidade, enquanto os
estados de sua consciência são sua atualização – “representado em sua perfeição”, diz
o poeta-filósofo, o homem “seria a unidade duradoura que permanece eternamente a
mesma nas marés da modificação”. Mas essa permanência é psicologicamente possível
somente pela “sequência de suas representações”, por meio da qual o eu constante
“torna-se fenômeno para si mesmo” – o estado, não alterando sua essência, é condição
fenomenológica da pessoa. “Sua personalidade”, diz o poeta, “considerada apenas em
si mesma e independentemente de toda matéria sensível, é apenas disposição para uma
exteriorização infinita” que nunca se realizará enquanto não interagir com o mundo e
jogar com a matéria. “Para não ser apenas mundo”, é preciso que o indivíduo “dê forma
à matéria; para não ser apenas forma, é preciso que dê realidade à disposição que traz
em si.”27

25
LUKÁCS, Georg. A alma e as formas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 59.
26
MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “Eu”. In: Sociologia e
antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
27
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem: numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras,
1989, p. 56-7.
164

Numa formulação tardia, mas especialmente brilhante, da concepção de mundo


centrada na formação, Georg Simmel atualiza a morfologia goethiana no plano da
consciência e da cultura. Aqui – numa linha de raciocínio bastante reminiscente do
trecho de Schiller citado há pouco – a forma da alma individual é como uma promessa
que só se realiza plenamente mediante a interação com as criações espirituais já
existentes no mundo – aquilo que chama de “cultura objetiva”. Interação que só é
verdadeiramente uma forma de cultivo (Kultur) enriquecedora da alma quando o
elemento externo não se torna meramente um objeto acrescentado a uma totalidade já
formada, mas sob a condição de que “os conteúdos advindos do supra-individual
pareçam desenvolver na alma, como através de uma harmonia prefigurada, apenas
aquilo que constitui nela mesma o instinto mais próprio e a virtualidade mais íntima de
sua realização subjetiva.” A alma bem-formada não é aquela que meramente
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desenvolveu tais ou quais conhecimentos, mas aquela onde eles encontraram


correspondência nas disposições mais íntimas e já pré-formadas desde que o indivíduo
foi lançado à vida, ganhando um desenvolvimento que já pertence à própria alma e não
a sua existência objetiva anterior como objeto de cultura. Conforme a metáfora
empregada por Simmel, o indivíduo cultivado não é como um mastro feito a partir de
uma árvore, mas como a própria planta que, com a ajuda de um jardineiro, dá frutos
que estão prefigurados em suas “tendências essenciais próprias”, mas que, deixada à
própria sorte, na natureza, não os teria dado.28
Não se pode deixar de atentar para o fato de que a reflexão em torno da Bildung
é conformada pelas suas circunstâncias históricas e nela entra muito dos imperativos
relacionados ao caráter conservador da modernização alemã – pois o modelo do
“indivíduo total” da Bildung é o nobre, e, para uma educação bem-lograda é
fundamental estar cercado, desde a origem, de objetos que inspirem ideias de nobreza,
pureza e elevação. 29 A ideia de formação tem estreitos laços com a construção do
Estado prussiano e com a conservação de seu caráter tradicionalista e autoritário. A
Bildung responde à urgência em edificar instituições de instrução pública formadoras

28
SIMMEL, Georg. O conceito e a tragédia da cultura. Crítica cultural, v. 9, n. 1, jan-jun 2014, p. 145-
7.
29
DUMONT, L’idéologie alemande, cit., p. 133-134; GOETHE, J. Wolfgang von. Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ed. 34, p. 470.
165

de uma elite dirigente e, simultaneamente, assegurar que o mandarinato dos bem-


formados, a Bildungsbürgertum [burguesia da formação ou da educação], não se
deixaria seduzir pelo tipo de ideário político próprio da burguesia revolucionária
francesa – ela implica, para além do domínio de certos conhecimentos e habilidades, a
neutralização do potencial revolucionário da burguesia alemã30. Nesse sentido, vale
lembrar a diferença de significação, que parecerá talvez exótica para os que não tenham
algum convívio com as expressões intelectuais da cultura alemã, entre a palavra
Bürger, que designa a classe média urbana alemã, com suas tradições próprias, e
Bourgeois, galicismo com que os alemães designam especificamente a burguesia em
sua configuração moderna e capitalista, como se o próprio conceito devesse ser
considerado estranho à tradição cultural alemã – é significativo, por exemplo, que o
clássico trabalho de Werner Sombart O burguês, publicado em 1913, sobre a origem
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da ética econômica capitalista, seja intitulado, em alemão, Der Bourgeois, e não Der
Bürger31. Um dos efeitos dessa distinção é contrapor ao bourgeois venal e filisteu do
Ocidente capitalista uma certa ingenuidade amante da cultura e das tradições do Bürger
alemão, que resulta, por comparação, quase que um nobre. Esse aspecto da Bildung é,
aliás, bastante nítido no desfecho dos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister, cujo
protagonista, burguês nobilitado, se associa a um grupo de nobres numa sociedade
reformista empenhada em efetuar a transição do feudalismo para os novos tempos “a
partir de cima”, sem a necessidade de uma ruptura revolucionária.
Para além do seu viés elitista32, é preciso destacar que esse ideal não fica restrito
à Alemanha, e irá se incorporar, por meio da propagação dos produtos da cultura alemã,

30
VIERHAUS, cit., p. 31-33. Sobre o “mandarinato” cultural, ver RINGER, Fritz. O declínio dos
mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2001.
31
SOMBART, Werner. Le Bourgeois. Contribution à l’histoire morale et intellectuelle de l’homme
économique moderne. Paris: Payot, 1966. Não deixa de ser curioso que, por algum descuido de revisão,
essa edição francesa informe o título original, erroneamente, como Der Bürger. Veja-se, para um
tratamento mais alentado dessa distinção, o quinto capítulo das Considerações de um apolítico de
Thomas Mann (MANN, Considérations d’un apolitique, cit. p.93-131).
32
Trata-se aqui de uma constatação sobre a conformação inicial da Bildung dentro da cultura alemã. Isso
não interdita, naturalmente, a formulação de paradigmas pedagógicos que, partindo de ideias originadas
nesse contexto, tomem uma posição política abertamente revolucionária à esquerda. Dentro do próprio
universo alemão, a obra de Marx pode ser inserida sem maiores dificuldades no quadro da Bildung –
pense-se na intenção claramente pedagógica e formativa do Manifesto do partido comunista (1848).
Outro exemplo especialmente eloquente é a armação teórica da Pedagogia do oprimido de Paulo Freire
(1968), amplamente baseada na dialética do senhor e do escravo de Hegel. Cf. esp. “Justificativa da
pedagogia do oprimido” in FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
166

aceleradíssima e plena de consequências nas primeiras décadas do século XIX, ao


patrimônio cultural do próprio Ocidente moderno, contra o qual ele se havia
contraposto como alternativa local. Para se ter uma ideia da força com a qual a cultura
alemã se coloca no centro da cena intelectual europeia nessa época, pense-se sobretudo
na abrangência geográfica do fenômeno do romantismo, palavra que ganha seu sentido
moderno na virada do século XIX, em solo alemão. Menos perceptível, porque não
acompanhado de nenhum termo-chave (além das variadas traduções como “formação”,
“cultura”, “educação”) e por se tratar sobretudo de um estilo de pensamento, é a
penetração da Bildung na vida espiritual europeia pela mesma época. É, por sinal,
extremamente aguda a observação de Louis Dumont de que, se a modernidade
ocidental costuma suscitar vigorosas reações adversas em contextos coloniais e
periféricos, a “ideologia alemã” fornece uma modelo para a aculturação subsequente
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nesses contextos33, uma vez que já contém os elementos para a preservação daqueles
elementos originários que se queira preservar, seja em sua teoria étnica da nação, do
cosmopolitismo culturalista, ou ainda na crítica ao capitalismo e ao liberalismo. Não
seria essa, precisamente, uma das dimensões das operações de interpretação da cultura
do Ariel de Rodó e, por que não, de Raízes do Brasil?
No ensaio já lembrado de Henrique Estrada Rodrigues, o autor aponta algumas
obras canônicas de nosso pensamento social como produtos de uma época de quebra
de paradigmas tradicionais, quando era natural que intelectuais preocupados com o
destino do país interviessem no debate público com obras que, conceitualmente
fundamentadas na problemática da formação, ganhavam corpo numa modalidade
ensaística inspirada no romance de formação [Bildungsroman]. Assim, o imperativo de
redefinir a identidade nacional e as instituições políticas e econômicas ganhava uma
leitura que se dava em função das especificidades da relação tensa com a modernização,
adotando como estratégia de síntese das contradições entre tradição local e
modernidade uma estrutura argumentativa na qual o corpo nacional em formação se
encontrava diante de situações semelhantes àquelas que interpelam os jovens de destino
ainda indeterminado no Bildungsroman – a situação é análoga àquilo que Hannah
Arendt denomina o rompimento do “fio da tradição” e a consequente obsolescência de

33
DUMONT, cit. p. 29.
167

seu “quadro de referências”. 34 A hipótese de Rodrigues é que, nessa modalidade


textual, o procedimento argumentativo e programático se dava de maneira implícita e
por indução a partir do conteúdo narrativo. O romance de formação expulsa da
narrativa toda tematização de questões estranhas à determinação do sentido da vida
individual, sem, no entanto, que a explicação desse sentido já estivesse previamente
dada antes da narração dos fatos – os leitores dos Anos de aprendizado de Wilhelm
Meister se lembrarão de como todos os planos intencionais do protagonista serão
frustrados, e no entanto, ao final do livro, a significação plena da vida se ilumina sobre
a matéria anteriormente mal compreendida dos acontecimentos. Aquilo que
efetivamente sucede durante interações do protagonista com o mundo, aparentemente
desprovidas de sentido num primeiro momento, revela-se o necessário processo de
amadurecimento da individualidade, movimento coroado pela analogia com a história
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bíblica de Saul, filho de Kis, que “foi à procura das jumentas de seu pai e encontrou
um reino.”35 A verdade sobre o processo não está no conteúdo de alguma consciência
individual em algum dado momento, mas no sentido constituído pela unidade do que
foi narrado como totalidade aberta. Não é por acaso que, como lembra Rodrigues, o sol
da formação se põe na vida espiritual brasileira quando, em torno de 1960, a sociedade
brasileira já aparenta, para o bem ou para o mal, um grau maior de determinação – ou
de estreitamento de horizontes. Acrescente-se que, em analogia com a própria história
do pensamento alemão, o potencial transformativo dá lugar a uma perspectiva muito
mais rígida e unilateral. A formação (Herder, Schiller, Goethe) deixa de ser ideia-chave
da compreensão do devir histórico, e entra em cena a de destino (Nietzsche, Weber,
Spengler).36
Longe de constituir uma espécie de “empirismo ingênuo”, como nota Rodrigues,
a adoção desse molde narrativo permitia aos intérpretes do Brasil, de Oliveira Vianna

34
Sobre o modelo narrativo do Bildungsroman, ver o primeiro capítulo de MORETTI, Franco, O
romance de formação. São Paulo: Todavia, 2020. O problema da tradição e sua desagregação no
princípio dos tempos modernos é discutido por Arendt nos dois primeiros ensaios de Entre o passado e
o futuro (“A quebra entre o passado e o futuro” e “A tradição e a época moderna”). ARENDT, Hannah.
Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 28-69.
35
GOETHE, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 575.
36
Pode-se dizer que o destino não deixa de ser um ponto de vista sobre a formação, inclusive já presente
desde o período do humanismo clássico de Goethe, Herder e Schiller; em todo caso, a inflexão de
perspectivas abertas para outras unilaterais e fechadas é nítida.
168

a Celso Furtado e Antonio Candido, encarar os impasses da modernização retardatária


de forma a reorganizar os valores da interpretação da realidade – pois a operação do
romance de formação, em sua forma bem-sucedida, termina por reordenar os quadros
de compreensão do real por meio do aprofundamento da noção de experiência, que, na
modernidade, ganha dinamismo e plasticidade e conforma a percepção do mundo
histórico. Note-se, de passagem, como a categoria da formação pode ser pelo menos
tão útil quanto a de “história” ou “historismo” para a compreensão da mudança de
quadros de sensibilidade e interpretação do mundo social, econômico e político, uma
vez que, num contexto periférico como o brasileiro, a entrada em cena renovação da
problemática da formação (ou, pelo menos, sua vigorosa atualização) coincide
efetivamente com um salto qualitativo na compreensão dos problemas do país pela
inteligência nacional.37
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Antes de passar a um breve estudo de caso – esse, ainda mais dispensável do


ponto de vista do andamento da tese como um todo do que esta primeira parte do
interlúdio, note-se como uma característica comum do universo intelectual da Bildung
é uma disposição retórica altamente refratária à especulação sistemática, no sentido de
uma exposição conceitual estática dos princípios do conhecimento. Isso se reflete até
mesmo naquela que é talvez a maior e mais “sistemática” de todas as expressões
intelectuais da Bildung, a Fenomenologia do Espírito de Hegel, que se pretende um
“sistema” da razão, mas onde cada passo da argumentação é ao mesmo tempo a
descrição de um contexto mental e o processo de sua “superação” ou, conforme a
tradução brasileira, “suprassunção”. Talvez entre um pouco desse estilo de reflexão na
aversão do próprio Sergio Buarque à especulação puramente abstrata e à redução
conceitual dos materiais – pelo menos na acepção menos dinâmica e pré-hegeliana da
palavra “conceito”. Característica que vai se acentuando, por sinal, depois de Raízes do
Brasil, perceptível mesmo nos textos mais especulativos do autor, como “O ideal

37
Essa hipótese é uma adaptação para o contexto brasileiro do argumento de Pedro Caldas, que, baseado
numa análise da obra do grande historiador alemão J.G. Droysen, propõe a Bildung como categoria-
chave da consciência histórica moderna como alternativa àquela, mais corrente entre os estudiosos de
teoria da História, de “historismo”. Nesse caso, à diferença do “historismo”, amplamente desacreditado
desde a II Guerra Mundial, a Bildung não seria necessariamente um paradigma “esgotado”. CALDAS,
Pedro Spinola Pereira. O limite do Historismo: Johann Gustav Droysen e a importância do conceito de
Bildung na consciência histórica alemã do século XIX. Revista filosófica de Coimbra, v. 15, n. 29, 2006,
p. 139-160.
169

arcádico”, e que ele partilha em comum com um grande expoente da historiografia


intelectual e crítica, Erich Auerbach. Lembre-se do escreve o grande filólogo no
curtíssimo epílogo de Mímesis, a respeito do método: que a escolha dos textos para
demonstração é não presidida por uma ambição realmente representativa que esses
tampouco solicitam um comentário teórico mais alentado que explicite os pressupostos
de seu tratamento de modo exaustivo, mas que eles vão se apresentando de modo que
o leitor possa “sentir” as consequências da análise ao longo da própria exposição, sendo
levado “imediatamente para dentro do assunto” com um arsenal mínimo de
considerações ostensivamente técnicas, “antes que uma teoria lhe seja impingida”38. A
teoria, no caso, chega a ser exposta, mas, no conjunto da leitura, seu conteúdo
empalidece diante da riqueza dos momentos particulares da análise – pois ela própria
é montada, em boa medida, a partir da lógica própria do texto. A crítica não é
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simplesmente uma explicação da poesia, mas há de ser, forçosamente, uma espécie de


continuação sua. Essa lição, a tradição filológica alemã recolhe da concepção de crítica
dos românticos, que viam na poesia o plano mais condensado da linguagem, e por isso
mesmo o meio por excelência da educação da sensibilidade e da inteligência, como
escreveu Friedrich Schlegel em sua famosa Conversa sobre a poesia:

[A] elevada ciência da crítica genuína deve ensin[ar ao indivíduo] como ele precisa se
formar em si mesmo e, acima de tudo, deve ensiná-lo a captar todas as outras formas
autônomas da poesia, em sua força e abundância clássicas, para que a flor e o cerne de
outros espíritos se tornem alimento e semente para a sua própria fantasia. [...] Assim
como o centro da Terra se revestiu espontaneamente de camadas e vegetação, assim
como a vida brotou por si mesma das profundezas, e tudo se enche de seres que se
multiplicavam alegremente, também a poesia floresce espontaneamente da força
originária invisível da humanidade, quando o raio ardente do sol divino a toca e frutifica.
Somente forma e cor podem expressar, formando de novo, como o homem é formado; e
assim, na verdade não se pode falar em poesia a não ser em poesia.39

Compreendida como núcleo da força criadora do espírito humano, a poesia, com


sua linguagem excepcionalmente reveladora dos problemas de forma, é também o
núcleo da epistemologia e de todas as distinções classificatórias que a filosofia

38
AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 2013, p. 501.
39
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura (1797-1803) Conversa sobre poesia. São
Paulo: Unesp, 2016, p. 484-5.
170

iluminista atribui à “razão”, pois, lemos no mesmo texto, “esse nó de todas as


classificações até agora realizadas pertence necessariamente à poesia. Pois,
indiscutivelmente, a essência da poesia é justamente essa visão mais elevada e ideal
das coisas, tanto do homem como da natureza exterior”40. Entende-se talvez com mais
clareza o privilégio que a poesia detém na produção crítica de Sergio Buarque.

2. Um caso exemplar da Bildung ascendente

Mais do que um conjunto de conteúdos enunciáveis, a Bildung é um estilo de vida e


pensamento. Dificilmente uma obra específica poderá oferecer um sistema positivado
universalmente válido da formação – isso seria, por definição, uma traição do próprio
ideal. Por outro lado, artefatos culturais específicos podem oferecer alguns motivos
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esclarecedores, ou, como se veio dizendo, alguns símiles e lugares-comuns teóricos e


literários, isto é, células de conhecimento, ou Ur-conceitos, cuja paternidade pode ser
altamente controversa, mas cujo rendimento em inúmeros aproveitamentos, revisões e
transformações é praticamente incalculável. No caso da Bildung, caso se queira fazer
uma analogia para suas consequências e para o caráter altamente interconectado da
atmosfera espiritual onde ela vem à luz, marcado por intensa troca epistolar e
colaboração literária e filosófica, seria o caso de lembrar das revoluções anônimas
ocasionadas pelos “caracteres poéticos” da Ciência Nova de Vico41: é como se, assim
como Hércules galga para os homens mais um degrau em direção ao estado civil,
entregando-lhes a agricultura na forma de um poema, os intelectuais da Bildung, como
Goethe e Herder, rasgam no céu racionalista uma janela para toda uma nova
configuração de pontos de vista sobre o mundo – trata-se de uma revolução científica
que nunca chegou a ganhar esse nome.
Um dos documentos mais ricos dessa revolução (como se viu, de certo modo,
também uma contrarrevolução, ou revolução compensatória) é o romance Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, que se analisará rapidamente, a título de realce de

40
Ibid., p. 523.
41
A sugestão desta analogia foi suscitada pelo livro Caracteres poéticos de Giambattista Vico, de Renata
Sammer (São Paulo: Unifesp, 2018). A responsabilidade pela sua própria plausibilidade é,
evidentemente, do autor.
171

topoi de consequências importantes para o material estudado na tese. É preciso


esclarecer que não se pretende, por mais que o romance de Goethe seja unanimemente
considerado um dos documentos-chave da instituição da Bildung, que ele de algum
modo seja contenha um conjunto exaustivo de seus caracteres essenciais. O que se fez
aqui foi, diante da inadequação da tentativa de sistematizar positivamente a Bildung
em exposição sistemática, mostrar alguns fragmentos que operam como um espelho
para o objeto de estudo dos demais capítulos. Isso não significa que se postule uma
influência direta do romance em textos específicos de Sergio Buarque, mas que os
elementos selecionados podem ativar nuances de significado que, sem esse contraste,
poderiam passar despercebidas. É como se, mostrando o negativo de uma foto ao lado
de uma foto revelada a ele não correspondente, se pudesse intuir imperfeitamente, por
analogia, alguns aspectos da natureza do processo de revelação fotográfica. Nesse
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ponto, fez-se um esforço consciente não interpolar, neste momento, a análise de Goethe
com possíveis correspondências ou analogias com Sérgio Buarque.
Wilhelm Meister é um rapaz de origem burguesa (Bürger, não Bourgeois,
conforme se viu acima) que, depois de uma desilusão amorosa, sai de sua cidade, a
princípio numa missão comercial a mando do pai, que espera que ele venha, no futuro,
a tomar seu lugar na chefia dos negócios da família. No meio do caminho, ele encontra
uma companhia itinerante de atores, o que o leva a abandonar sua empreitada inicial
para se dedicar ao teatro, que ele acredita ser sua vocação – note-se aqui que, no começo
da narrativa, ele se dedica assistematicamente à escrita e produção de peças de teatro,
mas entende, depois de sua desilusão amorosa, que não passava de diletantismo, de
modo que a decisão é na verdade uma retomada de um curso anteriormente
interrompido. Com a companhia, Wilhelm estuda os textos dramáticos e sua execução,
trocando ideias com seus companheiros, e, depois de descobrir a obra de Shakespeare,
decide encenar o Hamlet. Pouco após a execução da peça, porém, um incêndio e a
morte de uma amiga o afastam do teatro e o levam à convivência em sociedade com
nobres locais. Nesse momento, a narrativa é interrompida por um escrito autobiográfico
intitulado “Confissões de uma bela alma”, de cunho religioso, que apresenta um
contraponto ascético e reflexivo às andanças de Wilhelm com os atores. Nos dois livros
finais, Wilhelm descobre que, desde que havia deixado a cidade, uma organização
172

secreta, certa “sociedade da Torre” reminiscente da maçonaria, vinha acompanhando


seus passos e eventualmente intervindo em suas ações. Os dois livros finais são
dedicados ao desenlace da situação indeterminada de Wilhelm, que termina
abandonando toda pretensão artística e se associando, por casamento, à nobreza.
É de se notar, de saída, como a organização do enredo levaria a pensar que não
há, efetivamente, uma determinação clara na trajetória da personagem, o que poderia
colocar em dúvida até mesmo a natureza formativa do romance que é justamente tido
como fundador do Bildungsroman. Mas, há, sim, um movimento ascensional da
personagem-título em direção a um telos, conservando sua essência na mudança e
enriquecendo seu ser (Cf. supra a referência à carta XI de Schiller sobre a Educação
estética do homem). Tal concepção pode ser depreendida das palavras do próprio
Wilhelm ao justificar para seu amigo Werner sua decisão de destruir deus escritos
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dramáticos: “Deixa-me! [...] De que me servem estas miseráveis folhas? Elas não
representam mais uma etapa nem um estímulo. Deveria conservá-las, para me
torturarem até o fim da vida?”42 Não apenas a vida é compreendida como processo
dotado de finalidade, como se apresenta o descobrimento dessa finalidade como dever
(ou vocação), como o descarte de tudo que possa ser meramente contingente – embora
o próprio processo de discriminação valorativa que leva ao descarte esteja inserido no
quadro ético do desenvolvimento formativo, e assim confere ao erro mesmo uma
dignidade própria. Esse processo é, ao fim e ao cabo, bem-sucedido, mas se desenrola
extensamente ao longo do livro, e pode-se mesmo aventar a possibilidade de que,
mesmo ao fim da narrativa, ele não tenha de fato terminado. Esse ponto de vista não
alteraria, contudo, para além de uma crítica da execução artística do livro, a teoria
pedagógica implícita (ou nem tanto) que fundamenta a narrativa como totalidade.
No início, Wilhelm é um adolescente cuja indeterminação leva a identificar na
arte um caminho de diferenciação de sua origem burguesa. Se essa vocação acaba se
mostrando irrealizada, não significa que o período de convivência com os atores foi um
jogo supérfluo. Há diversas indicações ao longo do livro sobre como se deve
compreender essa trajetória que pode parecer, em si, desprovida de sentido – nesse
ponto há uma contradição entre um pendor mais ou menos irracionalista, ou pelo menos

42
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 95.
173

anti-intelectualista, da ideologia pedagógica, que postula que nem tudo que é essencial
pode ser dito, como se lê na “carta de aprendizado” escrita pelos pedagogos da
Sociedade da Torre especialmente para Wilhelm: “[o] melhor não se manifesta nas
palavras”43.
Em suma, o sentido não é determinado por prescrições positivas, e nem exprime
uma verdade moral intelectualmente inteligível, mas só pode ser compreendido por
meio da interação entre as disposições mais íntimas da alma e o mundo (aí incluídas
outras almas), e do destino daí resultante. Para vencer a indeterminação original, é
preciso compreender de que maneira as disposições íntimas são capazes de responder
de modo produtivo aos estímulos do meio. Isso não é equacionado de modo simples,
pois o erro faz parte do processo de formação, mas ele só pode ser percebido como tal
em retrospecto, e mesmo então essa percepção normativa é parcial e escapa à essência
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do processo formativo. Há na formação humana um componente irredutível às leis da


razão e da moral. “a soma de nossa existência, dividida pela razão, nunca é exata,
restando sempre uma estranha fração”44, diz o narrador, ao contar a história de um dos
membros da companhia teatral, exprimindo um pensamento consoante com outras
passagens de conteúdo ostensivamente pedagógico. Esse entendimento da forma
desdobrada no tempo, analisada em chave descritiva e não explicativa ou normativa,
encontra seu pendant científico, lembre-se, no tipo de historiografia praticada pela
chamada Escola Histórica alemã, e recebe uma formulação lapidar no próprio romance,
quando Therese diz que “[a] história do homem é seu caráter”45. A verdade sobre as
coisas não está num esquema conceitualmente exprimível, mas pode ser intuída
mediante a descrição do processo (Cf. supra o fragmento morfológico de Goethe). Há
uma afinidade eletiva, e, já se argumentou46, uma identidade, entre essa concepção de
História e a Bildung, na medida em que há uma busca por totalidade e valor na vida
como um todo, o que implica uma teoria do valor tendencialmente relativista, ou, pelo
menos, moralmente agnóstica. No paradigma epistemológico e ético do historismo,

43
Ibid., p. 472.
44
Ibid., p. 266.
45
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 425.
46
Pedro Spinola Pereira Caldas, O limite do Historismo, cit.
174

como observou Georg Iggers em seu importante livro sobre o tema, a História é a única
fonte real de valor47.
A ideia do desenrolar do processo vital como fonte de valor (por oposição à ideia,
consoante com o racionalismo e com o direito natural, de que o processo é tem seu
valor determinado por critérios a ele preexistentes), ou, mais precisamente, do valor
como elemento a ser determinado a partir da lógica interna ao próprio processo, por
meio de elementos presentes nos acontecimentos da vida, é central à concepção do
romance. “Pobre de toda forma de cultura que destrói os meios mais eficazes de toda
formação e nos indica o fim, ao invés de nos tornar felizes no caminho”, diz Wilhelm
no começo da última parte do livro, onde se leem debates em torno da educação de seu
filho pequeno. E continua, num dos passos do romance onde fica mais evidente a ideia
de que cada vida humana contém, ao menos em potência, uma totalidade: “aqui no
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menino havia um único dado, em cujas faces estavam nitidamente gravados o valor e
o desvalor da natureza humana”48. Ao mesmo tempo em que a busca de um ideal é
central à ideia de ética sugerida, eventos inesperados podem reconfigurar
completamente o significado da trajetória. Na página final do romance, Wilhelm ouve
de um amigo uma alusão bíblica que tem o efeito de uma epígrafe de conclusão: “tu
me lembras Saul, o filho de Kis, que foi à procura das jumentas de seu pai e encontrou
um reino.”49
A importância da noção de que os desenvolvimentos bem-logrados da alma estão
nela de algum modo prefigurados é destacada repetidas vezes no romance, dando
margem a uma concepção de simetria formal do processo existencial, todo perpassado
por jogos ocultos de pergunta e resposta que só se revelam, quando se revelam, no
momento da resposta, levando ainda a todo um repertório rico em analogias musicais.
Essa noção aparece, no princípio, como uma ideia vaga de vocação, uma busca (ao fim
e ao cabo, frustrada) por uma “centelha de naturalidade, verdade e inspiração” 50
inicialmente ligada à obra de arte. A convivência com a natureza é pouco depois

47
Georg Iggers. The German Conception of History. The National Tradition of Historical Thought from
Herder to the present. Middletown, Connecticut: Wesleyan university Press, 1983, p. 36.
48
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 479.
49
Ibid., p. 575.
50
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 89.
175

associada a esse mesmo motivo, quando Wilhelm acaba de partir em sua viagem e
ainda não encontrou a trupe de atores: “Ele atravessava vagarosamente vales e
montanhas com a sensação do prazer supremo. Via pela primeira vez penhascos
escarpados, riachos d’água murmurantes, muralhas de vegetação e abismos profundos,
e, no entanto, seus mais remotos sonhos de infância já haviam pairado sobre regiões
semelhantes.”51 Mais tarde, com a descoberta da obra de Shakespeare, o mesmo motivo
retorna, outra vez ligado à arte, mas agora de forma mais reflexiva, como se Goethe
tivesse cuidadosamente planejado a repetição do mesmo motivo, mas de modo que
ficasse demonstrado como a vivência do período intermediário enriquecera a alma do
protagonista, facultando-lhe um entendimento que antes lhe fora vedado:

Quisera [...] poder revelar-lhe tudo o que se passa agora dentro de mim. Todos os
presságios em relação à humanidade e a seu destino, que me acompanhavam desde
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pequeno, sem mesmo adverti-los, encontro-os realizados e desenvolvidos nas peças de


Shakespeare. [...] Esses olhares ligeiros que lancei ao mundo de Shakespeare me
instigam [...] a misturar-me no fluxo dos destinos que lhes estão reservados, e um dia
[...] haurir do imenso mar da verdadeira natureza alguns copos e oferecê-los do palco ao
sequioso público de minha pátria.52

Aqui há mais dois elementos importantes: o aspecto nem sempre comunicável


das emoções, associado ao encarecimento da separação entre o eu interior e o mundo,
típico da religiosidade reformada e, mais tarde, do romantismo. A novidade aqui está
no imperativo de expressar esse sentimento, de socializar o processo de autoexame.
Isso está associado ao segundo ponto, admiravelmente exprimido na imagem do
“imenso mar da verdadeira natureza”: a formação é uma continuidade de interações
orgânicas com o meio, de coleta de material vital com que a alma trabalha, resultando,
em contrapartida, em formas de expressão e ação que acrescentam coisas ao mundo,
ao mesmo tempo em que expandem o horizonte existencial e a capacidade de
compreensão do indivíduo que se forma. Há também uma polaridade nem sempre
explícita entre a experiência relacionada aos objetos de cultura (o estudo de peças e da
poesia, por exemplo) e o que se pode chamar a vida efetivamente vivida, o que aumenta
a complexidade do modelo de vida ideal: não basta cultivar a mente com belas obras

51
Ibid., p. 96.
52
Ibid., p. 195.
176

de arte; pois elas mesmas se referem a experiências que só se pode experimentar no


mundo “lá fora”. Cada lado da polaridade intensifica e realiza o outro, desde que eles
de fato se alternem – note-se, aqui, certa homologia estrutural com a evolução
argumentativa da Fenomenologia do espírito de Hegel. Assim se pode compreender
um elogio que Wilhelm ouve de sua amiga Aurelie, que não deixa de ter um leve tom
de censura irônica: “[s]em nunca ter avistado esses objetos na natureza, o senhor
reconhece a verdade na imagem; é como se existisse dentro de si próprio um
pressentimento de todo o universo, despertado e desenvolvido pelo contato harmonioso
com a poesia.”53 O processo de formação segue um sistema de expansões, retraimentos,
sístoles, diástoles, assimilações e descartes de material haurido do meio que encontram
analogias nos processos vitais da natureza.
Outra analogia crucial é aquela extraída da religiosidade reformada,
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especificamente pietista – lembre-se, a propósito, o destaque conferido ao pietismo na


montagem do argumento no ensaio de Max Weber sobre a Ética protestante e o
“espírito” do capitalismo 54 . A procedência pietista de elementos da pedagogia
goethiana se manifesta com especial clareza ao longo do texto memorialístico
“Confissões de uma bela alma”, cuja autora retoma a ideia da presença inata de
elementos complementares que preparam aqueles que serão assimilados futuramente,
mas agora atribuindo esse fato a um dom divino: “jamais me ocorreu pensar o quanto
dependia de mim que minha alma estivesse igualmente formada, que ela parecesse um
espelho no qual se poderia refletir o espelho do sol eterno, pois isso era algo que eu já
havia definitivamente presumido”55. Se a alma contém em si um espelho do destino,
isso se deve à Graça daquele “ser invisível” com quem a piedosa senhora está sempre
procurando se comunicar diretamente. Mas a formação da “bela alma” não corresponde
perfeitamente àquela que Goethe dá a Wilhelm Meister, pois, embora ela não seja

53
Ibid., p. 255.
54
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004. A denominação é citada ao longo de todo o livro, mas há uma seção de capítulo especialmente
dedicada ao pietismo (p. 117-126). Nela, lê-se como a ênfase pietista no sentimento individual da
conexão com Deus em episódios ascéticos, contra teorias da salvação que envolvessem algum tipo de
conhecimento comum previamente dado levam a um estilo de religiosidade intensamente introspectivo.
Desse modo, pode-se notar como a Bildung deriva sua teoria pedagógica em boa medida de um ideal de
aprendizado para o divino.
55
Ibid., p. 350.
177

necessariamente estranha ao sagrado, a religião cristã codificada parece servir


principalmente como trampolim formal para uma concepção análoga, mas na qual uma
experiência estética com sugestões de uma divindade indeterminada cumprem o papel
do Deus cristão no pietismo. Esse aproveitamento é explícito numa passagem bastante
anterior às “Confissões”, na qual o culto pietista aparece como imagem para esclarecer
o sentimento de Wilhelm ao ouvir canções de amor entoadas por um harpista, que
atuam como estimulante intelectual que desperta em sua mente certas “ideias análogas”
– esse é o ponto onde a analogia entre forma musical e a forma da alma desdobrada no
tempo se faz explícita:

Qualquer um que já tenha assistido a uma assembleia de homens piedosos, desses que,
longe da igreja, creem edificar de um modo mais puro, cordial e inteligente, poderá fazer
uma ideia da presente cena; recordará como o liturgista sabe adaptar a suas palavras o
verso de um cântico que eleva a alma até onde deseja o orador, de modo que ela possa
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retomar prontamente seu voo, tão logo um outro membro da comunidade acrescente,
com uma outra melodia, o verso de um outro canto, ao qual um terceiro, por sua vez
agregará um terceiro verso, com o que se inspiram na verdade as ideias análogas dos
cantos, de onde provêm os versos, tornando entretanto nova e individual cada passagem,
em virtude da nova combinação, como se tivesse sido criada naquele instante mesmo;
pois, de um círculo conhecido de conhecidas ideias, cânticos e sentenças, nasce, para
aquela comunidade particular, para aquele momento, um todo completo e distinto, cuja
fruição a anima, fortalece e revigora. E assim edificava o ancião seu hóspede,
disseminando nele, com canções e passagens conhecidas e desconhecidas, sentimentos
próximos e distantes, emoções atentas e adormecidas, agradáveis e dolorosas, que, no
estado atual de nosso amigo, era o que se podia esperar de melhor.56

A passagem é especialmente feliz porque ilustra claramente não apenas a


ativação pela arte de predisposições já sedimentadas (possivelmente por outras obras
de arte), intensificando-as, mas também o modo como a experiência da arte
efetivamente alarga o horizonte espiritual do indivíduo. O que opera esses movimentos
é algo extremamente íntimo e irredutível a conceitos, que se poderia chamar, a partir
da teorização posterior de Nietzsche, uma força plástica57. A formulação mais acabada
que o conceito ganha no romance é dada pelo fundador da Torre, tio da autora das

56
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 144-145.
57
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da
História para a vida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003, p. 7-17. Um desenvolvimento sobre a
aplicação dessa força plástica na obra de arte encontra-se na quarta das Considerações Intempestivas (ou
“Extemporâneas”), Wagner em Bayreyth (Rio de Janeiro: Zahar, 2009)
178

“Confissões”: “Tudo o que está fora de nós não é senão um elemento, e [...] também o
que está em nós; mas no fundo de nós mesmos reside essa força criadora que nos
permite criar o que deve ser e que não nos deixa descansar [...] até que tenhamos
representado [...] o que está fora ou dentro de nós”58. Importa destacar aqui que a forma
que o indivíduo assume é ao mesmo tempo destino e dever, articulação tornada clara
pela ressonância religiosa da palavra vocação (Beruf). Aqui convém recorrer
novamente às “Confissões”, pois suas palavras são modelares do que irá se aplicar, de
forma mais ou menos secular, a Wilhelm:

O fato de eu caminhar sempre para frente, nunca para trás, de meus atos serem cada vez
mais semelhantes à ideia que faço da perfeição, de sentir a cada dia mais facilidade em
fazer aquilo que julgo correto, pode-se explicar tudo isso pela natureza humana? [...]
[N]ão. Mal consigo lembrar-me de um mandamento; nada me aparece sob a forma de
uma lei; é um impulso o que me guia e que sempre me conduz para o bem [...].59
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É importante aqui esclarecer que, nesse trecho, a autora combate as doutrinas de


seu tio, fundador da sociedade da Torre, organização de inspiração vagamente
iluminista. Contudo, essa oposição faz parte de uma dialética que desponta ao final do
livro, entre pedagogias que autonomizam em algum grau o educando, e outras, mais
intervencionistas, que o previnem do erro e explicitam o caminho a seguir, que um
partidário da autonomia (Jarno) irá, talvez com alguma injustiça, representar como
alternativa entre formação e adestramento60. Não há o triunfo explícito de uma ou outra
concepção, mas a referência final à história de Saul depõe a favor da tese, exposta pelo
abade, outro membro da Torre, de que “[n]ão é obrigação do educador de homens
preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está
em deixar que o errado sorva taças repletas de seu erro.” 61 . O fato de a Torre ter
eventualmente intervindo para corrigir certos rumos que Wilhelm vinha tomando
mostra que mesmo a vertente autonomista não existe em estado puro. De todo modo,
já não se trata aqui da postulação de uma natureza humana benévola, tese negada pelas

58
Ibid., p. 390-391.
59
Ibid., p. 404. Note-se como o excerto vem confirmar os apontamentos de Weber sobre o caráter
individual do conhecimento religioso no pietismo (ver acima n. 54).
60
Ibid., p. 506.
61
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 470.
179

“Confissões”, nem de um mandamento divino (ou, pelo menos, de uma vocação a ser
cultivada mediante a uma fé ascética), mas de uma propedêutica da realização do
indivíduo.
Encerrada na ideia de Bildung apresentada nos Anos de aprendizado está também
a noção de que, no desenvolvimento da personalidade, os contatos iniciais com o
mundo exterior formam uma espécie de germe do qual futuras expansões derivam, e
os traços assimilados nessa fase inicial são determinantes para as formas que
eventualmente podem vir a tomar as ações e pensamentos futuros. É o que diz um
estranho que encontra Wilhelm no livro II, e que depois se revela um dos seus
educadores secretos da sociedade da Torre:

[N]inguém creia poder sobrepujar as primeiras impressões da juventude. Se cresceu


numa liberdade digna de louvor, cercado de belos e nobres objetos, convivendo com
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homens bons; se seus mestres lhe ensinaram o que primeiro devia saber, para
compreender mais facilmente o resto; se aprendeu aquilo que nunca precisará
desaprender e se seus primeiros atos foram dirigidos de modo a poder no futuro praticar
mais fácil e comodamente o bem, sem ser obrigado a desacostumar-se do que quer que
seja, então esse homem haverá de levar uma vida mais pura, mais perfeita e mais feliz
que um outro que houvesse dissipado na resistência e no erro suas primeiras forças de
juventude.62

A significação dessa observação será descoberta somente a posteriori, mas o


final do discurso do estranho já é relevante independentemente, desde que estejamos
atentos à natureza pedagógica do romance: “Fala-se e escreve-se muito sobre educação,
mas não vejo senão uma pequena parcela de homens capaz de compreender e levar a
cabo o simples porém grande conceito que encerra em si todos os demais.”63 Que a
educação seja um conceito central para o ideal de vida apresentado no Meister não é
exatamente surpreendente, mas que ela encerre em si todos os demais dá a ver de forma
impressionante o modo como a educação ganha, na concepção goethiana da vida, uma
dignidade incomum, suprema. O holismo da formulação conta a favor, por sinal, da
tese de Dumont de que a Bildung procura conciliar o holismo da cultura alemã com o
individualismo da ideologia moderna. Note-se, também, o pendor altamente elitista,
aristocratizante, desse ideal: como já se notou acima, na primeira seção deste interlúdio,

62
Ibid., p. 127.
63
Loc. cit., grifo da transcrição.
180

a educação é a finalidade da vida, e para uma educação bem-lograda é fundamental


estar cercado, desde a origem, de objetos que inspirem ideias de nobreza, pureza e
elevação.64
O ideal de formação do romance não é, contudo, direcionado à nobreza, mas
funciona para Wilhelm Meister como um movimento na direção de uma ideia de
totalidade que a nobreza já possui (acompanha-se aqui a interpretação do romance por
Dumont). Isso requer, para o jovem Bürger, o direcionamento explícito de todas as
suas energias vitais para o próprio processo formativo. É o que mostra com extrema
clareza a carta que Wilhelm escreve ao cunhado Werner, avisando que não abandonará
o teatro para ir cuidar de uma propriedade adquirida com a recente morte do pai:
“[i]nstruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha
intenção, desde a infância. Ainda conservo essa disposição, com a diferença de que
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agora vislumbro com mais clareza os meios que me permitirão realizá-los. Tenho visto
mais mundo que tu crês, e dele me tenho servido melhor que tu imaginas.”65 Marcus
Mazzari identifica aqui a passagem mais importante do livro, do ponto de vista do
projeto de formação:

Pois essa longa carta, em que o protagonista explicita suas concepções e metas, pode ser
vista como espécie de programa do “romance de formação”, uma vez que nela se
formulam os motivos fundamentais da Autonomia (formar-se a si mesmo), Totalidade
(formação plena) e, ainda, Harmonia (a “inclinação irresistível” por formação
harmônica). A expansão plena e harmoniosa das potencialidades do herói – artísticas,
intelectuais, mas também físicas [...] – , a realização efetiva de sua totalidade humana,
são projetadas no futuro e sua existência apresenta-se assim como um “estar a caminho”
rumo a uma maestria de vida, que Goethe configura, todavia, menos como uma meta a
ser efetivamente alcançada do que como uma direção a ser seguida.66

A passagem é tanto mais impressionante quanto mostra a analogia estrutural


entre sentido ideal da vida na Bildung goethiana e a concepção de história defendida
por Kant na Ideia de uma História Universal a partir de um ponto de vista cosmopolita:
a formação individual é, assim como a história humana, o processo de autonomização

64
Louis Dumont, L’idéologie allemande, cit., p. 133-134.
65
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 284.
66
MAZZARI, Marcus Vinicius. Metamorfoses de Wilhelm Meister: O Verde Henrique na tradição do
Bildungsroman. In: Labirintos da aprendizagem: Pacto fáustico, romance de formação e outros temas
de literature comparada. São Paulo: ed. 34, 2010, p. 113.
181

do homem, que supera sua menoridade mediante a gradual tomada de consciência de


suas melhores disposições inatas 67 . Apenas aquilo que para Kant só se realiza na
espécie como um todo pode ser aqui almejado pelo indivíduo – a bem da verdade, por
aqueles indivíduos que tiverem à disposição os meios para se formar, como vem a ser
o caso de Wilhelm Meister. A afinidade desse ideal com a ideia de nobreza – mais
especificamente, a ideia de que a formação compensa, para o burguês, o não ter nascido
nobre, aparece com clareza na mesma carta. A personalidade do nobre constitui um
todo harmônico, cuja vocação é “fazer e agir”; o burguês que aspire a esse ideal deve
“realizar e criar, desenvolver suas diversas faculdades para tornar-se útil”, uma vez que
ele não tem “em sua natureza nenhuma harmonia”, porque “para se fazer útil” deve
“descuidar de todo resto”68. Percebe-se aqui o preço que se paga pelo cultivo de si, um
preço que somente aqueles com os meios necessários podem pagar: um período de
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formação exclusivamente autocentrado, num exercício que, de um ponto de vista


externo, soa quase amoral. O resultado (momentâneo) dessa iniciativa é, para Wilhelm,
a dedicação ao teatro. É interessante notar que, enquanto Wilhelm é um ator e diretor
especificamente dedicado à encenação de uma obra de Shakespeare, ele exercita em si
a simulação da personalidade de todos os tipos sociais, incluindo o nobre; ou seja,
consegue alcançar uma certa compensação de sua impossibilidade de conter em si o
todo harmônico que é o nobre69. Que ele efetivamente venha a alcançar uma condição
de nobreza por casamento ao final do livro só vem confirmar a afinidade entre a ideia
de formação e uma tentativa de aproximação da nobreza, por meio de méritos
espirituais.
O resultado desse movimento, porém, não parece ser uma afirmação de um
“indivíduo universal”, mas de uma singularidade consumada. Em outras palavras,
trata-se de intensificar e conduzir à realização de todo o potencial aquelas
predisposições que a alma contém como virtualidade. O ideal de formação é, assim,
uma propedêutica para o concurso ótimo entre liberdade e necessidade, que realiza,

67
Ver Immanuel Kant, Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2010. Louis Dumont identifica a mesma analogia nos escritos de Wilhelm von
Humboldt (L’idéologie allemande, cit., p. 150-152)
68
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 285-286.
69
Essa é a opinião de Dumont, L’idéologie allemande, cit., p. 219.
182

assim, uma vocação – é o que há de mais próximo de uma garantia do melhor destino
possível para a vida. É o que se verifica nas palavras do tio da autora das “Confissões”
quando afirma que “[o] maior mérito do homem consiste [...] em determinar, tanto
quanto possível, as circunstâncias, deixando-se determinar por elas o menos possível”,
compreendendo a edificação do indivíduo à maneira de uma obra de arte. “Todo o ser
do Universo estende-se diante de nós como uma grande pedreira diante do arquiteto,
que só merece esse nome quando, dessa fortuita massa natural, compõe com a máxima
economia, adequação e solidez a imagem primitivamente concebida por seu espírito”70.
Mas essa atividade de auto-edificação por aquilo que Nietzsche chamará de “força
plástica” não é algo que se decide por um capricho do intelecto. A forma é expressão
de dados naturais sobre os quais não se tem controle, como se lê num trecho que
parafraseia as ideias do abade sobre a formação:
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Admite-se [...] que se nasça poeta, e o mesmo se admite para todas as artes, porque é
preciso que assim o seja e porque tais efeitos da natureza humana mal podem ser
arremedados; mas, examinando-os atentamente, veremos que toda capacidade, mesmo a
ínfima, nos é inata, e que não existe capacidade indeterminada. Só nossa educação
equívoca, dispersa, torna indecisos os homens; desperta desejos ao invés de animar
impulsos, e ao invés de beneficiar as verdadeiras disposições dirige seus esforços a
objetos que, com muita frequência, não se afirmam com a natureza que por eles se
esforça. Prefiro uma criança, um jovem, que se perde seguindo sua própria estrada,
àqueles outros que caminham direito por uma estrada alheia. Quando os primeiros
encontram, não importa se por si mesmos ou se por uma outra direção, seu verdadeiro
caminho, ou seja, quando estão em harmonia com sua natureza, não o deixarão jamais,
enquanto os outros correm a todo instante o perigo de se livrar do jugo alheio e entregar-
se a uma liberdade incondicional.”71

A Bildung não implica, portanto, uma liberdade incondicional, mas se define pela
realização das verdadeiras disposições da personalidade individual. Trata-se menos de
uma pacificação da personalidade após tais ou quais realizações, mas da superação de
uma postura reativa às tendências do mundo a uma atitude autodeterminada e positiva.
Como percebeu Louis Dumont, não é que ao final do livro Wilhelm esteja exatamente
formado, no sentido de que sua definição estaria esgotada ou pelo menos que sua
imagem estaria estabilizada, mas ele se relaciona positivamente com o mundo e

70
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 390-391.
71
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 495-496, grifos da transcrição.
183

consegue imprimir um sentido a suas próprias ações72. No início, essas disposições se


manifestam de maneira desordenada, sem distinguir o que é contingente do que é
essencial, de modo a não criar uma forma efetiva, e podem mesmo leva a erros, mas
gradualmente se desenvolve, desde que o processo seja conduzido adequadamente, a
consciência de quais impulsos são merecedores de cultivo. O indivíduo não deve ser
universal, mas realizado em sua singularidade. Parece apropriado terminar o presente
excurso sobre o Meister com uma última citação, exemplar dessa ideia:

[A]spirando o homem a uma atividade múltipla ou a uma fruição múltipla, tem que ser
também capaz de desenvolver órgãos múltiplos, independentes uns dos outros. Quem
pretende fazer ou fruir tudo ou fruir parte de sua plena humanidade, quem pretende
associar a tal espécie de fruição o que é externo a si mesmo, passará sua vida num esforço
eternamente insatisfeito.73

Podemos, agora, passar à análise de Raízes do Brasil, livro onde a ideia de


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formação brasileira de Sergio Buarque aparece da forma mais desenvolvida e completa,


e onde, pode-se dizer, se realiza a própria formação intelectual do autor.

72
Dumont, L’idéologie Allemande, p. 224-5.
73
Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, p. 543.
184

III

Raízes do Brasil: A alma e as formas

[Nota preliminar à análise de Raízes do Brasil: Parece necessário começar com uma
advertência metodológica a parte desta tese que trata do objeto que, se não é exatamente
mais importante do que os demais, acaba tendo um destaque especial na interpretação
da ideia de formação da obra de Sergio Buarque de Holanda. Como muitos
comentadores vêm notando ultimamente, o texto de Raízes do Brasil sofreu, por vários
motivos, alterações significativas em 1948. Em 1956, uma segunda revisão do texto
descaracteriza a própria abertura. Sem qualquer pretensão de esgotar o tema dessas
mudanças, o presente estudo as aborda muito pontualmente, isto é, quando elas se
mostram pertinentes à evolução do problema da forma e da formação na obra de Sergio
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Buarque de Holanda. De todo modo, foi sobretudo por causa dessas mudanças no
primeiro parágrafo e de algumas revisões que, sem alterar o espírito dos argumentos,
algumas vezes vão no sentido de atenuar ou até ocultar termos e maneiras de dizer que
denunciam uma análise morfológica da história, que se mostrou mais produtiva a
preferência, na parte desta tese dedicada à análise de Raízes do Brasil, pela primeira
edição. Isso resulta em certa inconveniência para o leitor, já que normalmente o texto
Raízes do Brasil à disposição é aquele que se estabelece a partir da terceira edição
(1956) e, mesmo que agora essa situação esteja agora em alguma medida remediada
por uma edição crítica que coteja as diferentes versões (2016), dificilmente se desfarão
as primeiras impressões de leitura de um livro tão canonizado pela cultura brasileira.
Seria preferível, para facilitar a leitura, que as referências pudessem ser dirigidas à
versão mais acessível do texto, e que anima a memória da maioria dos muitos leitores
que têm em Raízes do Brasil um marco de sua formação e da cultura brasileira. A opção
pelo texto de 1936 se dá sobretudo porque algumas das mudanças, especialmente
aquelas que alteram não tanto terminologia e bibliografia, como vem sendo notado em
estudos recentes, mas o próprio andamento do livro, dificultam a compreensão dos
encadeamentos de ideias que estruturam o ensaio, além de descaracterizarem a fluidez
inigualável da versão de 1936. Esse problema está ligado não tanto aos a esta altura já
185

bem documentados “expurgos” dos elementos “organicistas” do livro 1 , quanto à


ampliação, redistribuição e criação de novas unidades temáticas na sequência de
capítulos II, III e IV, os dois últimos tendo sido, inclusive, redesignados (“Trabalho &
Aventura, “A Herança Rural” e “O semeador e o ladrilhador”). Os adendos de 1948
ainda seguem, por sinal, o mesmo espírito e desempenham um papel relevante na
própria trajetória da ideia de formação no pensamento de Sergio Buarque. Eles também
contribuem não tanto para o esclarecimento das teses de Raízes do Brasil, mas para
produções posteriores, como os ensaios de história literária reunidos em Capítulos de
literatura colonial, a dissertação Elementos formadores da sociedade portuguesa na
época dos descobrimentos, Visão do paraíso, e mantêm relações estreitas com crítica
literária praticada por Sergio nos anos 1940 e 1950. Infelizmente, não foi possível fazer
justiça a todo esse material nesta tese.]
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1. Origens
Para falar de Raízes do Brasil (1936), livro de evolução argumentativa marcada por
transições temáticas e metodológicas nem sempre nitidamente marcadas, é bom
começar por um exame dos trechos mais ostensivamente especulativos, ou seja, todos
aqueles onde, sem nunca se distanciar demais da análise de algum dado concreto –
prática que Sergio Buarque sempre evitou na fase madura de sua reflexão – mas que
deixam mostrar, ainda que de modo antes sugestivo do que por meio de explicações
exaustivas de pressupostos metodológicos, certa ossatura teórica. A página de abertura
é, previsivelmente, um desses trechos:

Todo estudo compreensivo da sociedade brasileira há de destacar o fato verdadeiramente


fundamental de constituirmos o único esforço bem-sucedido, e em larga escala, de
transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical e subtropical. Sobre
território que, povoado com a mesma densidade da Bélgica, chegaria a comportar um
número de habitantes igual ao da população atual do globo, vivemos uma experiência
sem símile. Trazendo de países distantes as nossas formas de vida, nossas instituições e
nossa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso em um ambiente muitas vezes
desfavorável e hostil, somos ainda uns desterrados em nossa terra. Podemos construir
obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar

1
Sobre esse tema, as referências obrigatórias são Um ritmo espontâneo, de João Kennedy Eugênio
(2011,cit.), WAIZBORT, Leopoldo.“O mal-entendido da democracia” e FELDMAN, Luiz. Clássico por
amadurecimento. Rio de Janeiro: Topbooks, 2015.
186

até à perfeição o tipo de cultura que representamos: o certo é que todo fruto de nosso
trabalho ou de nossa preguiça participa fatalmente de um estilo e de um sistema de
evoluções naturais a outro clima e a outra paisagem.
Assim, antes de investigar até que ponto podemos alimentar no nosso ambiente um tipo
próprio de cultura, cumpriria averiguar até onde representamos nele as formas de vida,
as instituições e a visão de mundo de que somos herdeiros e de que nos orgulhamos.2

Não se pode dizer, pelo menos com base na primeira edição de seu livro de
estreia, salvo pelas considerações sobre política do último capítulo, que Sergio Buarque
não tenha se empenhado em produzir uma argumentação clara. Quem se fiar
atentamente na letra do texto não ficará desamparado, embora a composição do todo
seja certamente algo sincrética e às vezes dificilmente determinável do ponto de vista
das “influências”. Mesmo que as filiações teóricas das formulações possam ser
amplamente discutíveis, o certo é que já aqui se pode perceber, como em todos os
momentos decisivos da argumentação de Raízes do Brasil, aqueles mais sintéticos e
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especulativos, que o problema do livro é o problema da forma – problema do qual


derivam-se a antropologia, a sociologia e a teoria da história que embasam a análise. A
palavra é grafada, aliás, com ênfase nos dois outros trechos mais lapidares do livro, do
ponto de vista teórico-metodológico: na última página do primeiro capítulo, que volta
ao argumento do parágrafo de abertura, lembrando que foi de Portugal que “nos veio a
forma atual de nossa cultura”, sendo o restante “matéria plástica que se sujeitou mal ou
bem a essa forma”, e na primeira frase do parágrafo final do livro, onde se lê que “o

2
RB, p. 3. Essa abertura é pontualmente alterada na edição de 1948 e amplamente descaracterizada na
de 1956, que traz, salvo por diferenças mito menos decisivas, o mesmo texto das edições posteriores.
Isso é da maior importância, pois é esse texto, e não o de 1936, no qual se baseia a maior parte da fortuna
crítica de Raízes dali até a década de 2010. A partir de 1956, o que se lê é: “A tentativa de implantação
da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente
estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em
consequências. Trazendo de países distantes as nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas
ideias e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda
hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade
de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é
que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução
próprio de outro clima e de outra paisagem. Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar
bom êxito a tentativa, caberia averiguar até onde temos podido representar aquelas formas de convívio,
instituições e ideias de que somos herdeiros.” RBC, p. 39. As alterações com relação ao texto de 1936
foram sublinhadas. Note-se ainda a retirada da expressão “bem-sucedido”, substituída por uma
consideração hipotética no parágrafo seguinte (“até que ponto poderá alcançar bom êxito”) e a
eliminação do “orgulho” da herança cultural colonial. As diferenças entre essas aberturas foram
analisadas com maior detalhe por João Cezar de Castro Rocha (O exílio como eixo: bem-sucedidos e
desterrados. Ou: por uma edição crítica de Raízes do Brasil. In: Eugênio; Monteiro. Sérgio Buarque de
Holanda: Perspectivas, 2008) e Luiz Feldman (Clássico por amadurecimento, 2015, cit.)
187

essencial de todas as manifestações, das criações originais como das cousas fabricadas,
é a forma”3. Estamos, sem a menor dúvida, diante de um dos símiles teóricos mais
típicos da tradição da Bildung – não só dela, mas certamente dela também, e com
especial intensidade –, isto é, a analogia vegetal (Cf. supra, “Interlúdio”, p. 154-5)4.
Leia-se novamente o texto acima, a fim de detalhar um pouco melhor como
aparece, de saída, o problema. O que salta aos olhos na primeira frase é a indicação que
o texto dá de sua pretensão a ser um estudo compreensivo da sociedade brasileira. O
termo “compreensão” está ligado a mais de uma possível fonte metodológica – os
exemplos mais destacáveis são, provavelmente, a hermenêutica de Dilthey e a
“sociologia compreensiva” de Max Weber. Deixando de lado esse elemento
possivelmente alusivo, que talvez não leve muito longe na interpretação do texto,
pense-se primeiro no que o termo sugere enquanto lugar-comum argumentativo e sua
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valência dentro da própria frase onde está lançado. Seria então o caso de perguntar-se,
então, qual o procedimento compreensivo levado a cabo. Sobre a “sociedade
brasileira”, o “fato verdadeiramente fundamental”, aquele do qual se pode supor que
orientará a análise que se seguirá, é o de “constituirmos o único esforço bem-sucedido”,
“em larga escala”, de “transplantação da cultura europeia para uma zona de clima
tropical e subtropical”. Note-se: o “fato fundamental” não é a “cultura europeia”, nem

3
RB, p. 15, 160.
4
São muitos os lugares literários brasileiros de onde Sergio está partindo para centralizar a problemática
do exílio aqui, mas convém notar o paralelo bastante sugestivo que ela encontra nas Considerações de
um apolítico de Thomas Mann. Em primeiro lugar, Mann se apresenta, no capítulo intitulado “Exame
de consciência”, como um “alemão pouco alemão”, chegando mesmo a mencionar sua “ascendência
românica, da América Latina” (p. 68) e com isso invocando seu status meio estrangeiro em “seu” país,
circunstância a que ele atribui também sua vocação de romancista – o romance é, a seu ver, uma forma
de expressão artística pouco alemã. É na tríade Schopenhauer-Wagner-Nietzsche que ele irá encontrar o
seu “patriotismo”. Os três são por ele caracterizados como expressões culturais altamente críticas da
Alemanha, e que representam o espírito nacional por um ponto de vista externo. No caso de Wagner, ele
chega a dizer que o seu germanismo chega às raias do grotesco, pois é algo de “turístico”; como que
produzido “para uma plateia da Entente” comentar “Ah ça, c’est bien allemand par exemple” (o francês
é do original, p. 73; Mann escreve essas palavras em plena Primeira Guerra). Embora essas sejam a seu
ver expressões críticas e um pouco estrangeiras da germanidade, elas demonstram, pelo seu engajamento
interessado com sua matéria, aquilo que “numa linguagem sentimental” chama-se de “amor” (p. 74). A
música de Wagner, o elemento mais poderoso da tríade num plano sentimental, Mann teria descoberto
em país estrangeiro: em Roma (retoma-se aqui, a ideia, já exposta no primeiro capítulo desse livro, de
que a germanidade só se permite atualizar historicamente em contraste com Roma, tomada como cidade-
símbolo do mundo latino, da “civilização” e do cristianismo – como nos famosos casos de Lutero e
Goethe (p. 46). É o próprio Sergio que posteriormente irá declarar que foi em seus “Wanderjahre
alemães” que lhe apareceu com maior clareza aquilo que unia seus compatriotas e os diferenciava do
resto do mundo.
188

algum “Brasil” reificado tal qual “é”, mas o esforço, supostamente bem-sucedido, de
transplantação da dita cultura. O argumento, porém, é cheio de entretons e ressalvas
internas, pois, o que se verá ao longo do mesmo capítulo, é que a tal “cultura europeia”
não é tão europeia assim, constituindo, ela própria um fator de plasticidade. Mas o que
é, nos termos da análise, uma “cultura”? A cultura, planta transplantada em ambiente
novo, ganha algum conteúdo na terceira frase do livro, que que pode ser lida como
paráfrase que aprofunda a ideia de “transplantação”: aquilo que foi trazido de “terras
distantes” foi todo um conjunto de “formas de vida” e “instituições”, além de uma
“visão de mundo”. Tendo se empenhado em manter “tudo isso”, não admira que os
brasileiros sejam ainda uns “desterrados” em sua terra. O significado desse estado de
desterro é parcialmente esclarecido pela frase seguinte, que fecha o parágrafo: as
“obras” que os brasileiros produzem, o enriquecimento de sua humanidade (a sua e não
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uma humanidade genérica; Sergio se expressa numa linguagem cultural-pluralista,


apontando para uma antropologia herderiana), isto é, as expressões da perfectibilidade
do “tipo de cultura” que os brasileiros “representam”, os “frutos” de seu “trabalho” e
de sua “preguiça” participam de um estilo e de um sistema de evoluções que têm sua
natureza noutro clima e noutra paisagem. Sabemos que esse clima e essa paisagem são
europeus, mas a disposição da frase merece um realce especial: a análise está
interessada na “cultura” não como um conjunto de objetos em repouso, mas sobretudo
como uma lógica de reprodução social e intelectual, como processo. “Instituições”,
“formas de vida” e “visão de mundo” são um estilo e um sistema de evoluções, isto é,
de atualizações de uma certa “natureza”. Essa “natureza”, porém, timbra em se manter,
em se reproduzir, num “ambiente desfavorável e hostil” – que nada mais é do que a
“natureza” para onde o “sistema” cultural foi “transplantado”. O cenário onde a cultura
brasileira se desenvolve é, sob o aspecto da “natureza”, antinômico. O curioso é que a
própria predisposição contemporizadora e plástica da “natureza” transplantada torna a
sua adaptação, por assim dizer, como que “natural” – isso será desenvolvido adiante.
Há uma ambiguidade talvez indecidível no juízo sobre o “desterro” dos brasileiros em
sua terra – ele é mera constatação de fato, ou será que entraria uma valoração negativa?
Logo adiante, no segundo parágrafo, sugere-se que seria imprudente perguntar-se por
um “tipo de cultura” brasileiro sem antes, “averiguar até onde representamos” no
189

ambiente brasileiro as “formas de vida”, “instituições” e a “visão de mundo” europeias,


“de que somos herdeiros e de que nos orgulhamos”.
Esse parágrafo de abertura ainda põe as questões num horizonte de
indeterminação, na forma de uma condicional (antes de perguntar por um “tipo
próprio”, seria preciso “averiguar” sobre o “tipo” trazido de “terras distantes”). A
compreensão dessas linhas depende da leitura do texto completo e, mesmo assim, há
algum espaço para dúvidas – é como se Sergio Buarque tivesse escrito o livro
esperando que ele seria não só lido, mas relido. De saída, quem conheça o livro poderá
identificar tentativamente o “homem cordial” com um “tipo próprio” de psicologia
social5, mas lembrará que ele é quase todo determinado pelo influxo ibérico – pode-se
dizer que os quatro capítulos iniciais compõem aquilo que a abertura propõe como a
condição de averiguação imposta à reflexão sobre o “tipo próprio”. O que não está
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claro, porém, é se as diferenças – que existem – entre o “tipo brasileiro” e a “raiz”


transplantada são suficientes para produzir um tipo bem definido, ou formado. Mesmo
sendo esse o caso, não é fácil responder se, existindo esse tipo, ele poderia ser
considerado próprio, ou se ele é uma adaptação consumada do tipo transplantado. O
certo é que só será possível dar conteúdo a essas perguntas por meio de uma
investigação sobre o desdobramento das formas transplantadas no ambiente americano.
E aí está, mais do que nas eventuais respostas, o essencial para a compreensão do
argumento do livro. Todos os artefatos invocados, expressões artísticas, manifestações
religiosas, estilos de sociabilidade, configurações institucionais, instrumentos de
dominação, são analisados sob a categoria da forma. A forma, lê-se no último parágrafo
do livro, é “o essencial de todas as manifestações, das criações originais como das
coisas fabricadas”6.
Políticas, literárias, ou materiais, elas são sempre inscritas num pano de fundo
mais amplo, daquilo que o parágrafo final do primeiro capítulo denomina quadros de
vida – em possível versão mais ou menos livre da expressão alemã Weltbilder, presente
em várias expressões intelectuais da cultura alemã. A densidade da noção de forma só

5
Adiante-se que a conclusão deste estudo a esse respeito é negativa – o “tipo próprio” só é realmente
discutido no ultimo capítulo. Cf., neste capítulo, a última seção, “Demônios e possessos”.
6
RB, p. 160.
190

se compreende quando se pensa que a forma é ao mesmo tempo uma expressão de


natureza e um ajuste ao mundo existente, ele próprio organizado em quadros. Esse
mundo, portanto, só tem sua legibilidade possibilitada por representações mentais – o
“quadro” de vida conforma o que é passível de ser criado e de se acomodar ao mundo
tal como ele é, e que pode ser pensado, ainda que numa maneira mais ou menos
“domesticada” e forçosamente posta em “repouso”, como um acervo comum de formas
mentais – mas esse ser mesmo está num fluxo incessante somente apreensível por meio
de uma compreensão dinâmica de sua própria reprodução. Toda a cultura é um sistema
de formas em articulação com outras formas. Essa noção, portanto, engloba desde o
que se costuma compreender como “artefatos” físicos ou espirituais, até a própria
lógica de sua reprodução, seus ritmos e articulações internas. A forma é um conceito
dificilmente esgotável, sempre é possível mais um ponto de vista ou aprofundamento
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em sua compreensão.
Fato talvez menos lembrado do que deveria, essa inflexão de Sergio Buarque para
uma análise histórica ostensivamente, quase obsessivamente pensada em termos de
formas, talvez não fosse possível sem o cultivo pelo autor, desde a juventude, de uma
sensibilidade educada pela literatura, especialmente pela poesia. Raízes não é menos
um livro de crítico literário do que de “sociólogo” ou “historiador” – lembre-se, aliás,
que seu primeiro emprego acadêmico foi de professor assistente de literatura
comparada na então recém-criada Universidade do Distrito federal, naquele mesmo
ano de 1936, logo após acrescido de outra cadeira de assistente, essa em História
Moderna e Econômica, ambos os postos em assistência a titulares franceses, Henri
Tronchon e Henri Hauser7.
Mas como, diante de um conceito de implicações tão vastas como esse de
“forma”, aproximar-se das manifestações da cultura? Seja por estratégia retórica, seja
por necessidade metodológica, Sergio adota uma abordagem um tanto lateral. Pois,
após os dois parágrafos anteriormente analisados, lê-se, numa formulação um tanto
retorcida, que que “é significativa” a “circunstância” de a “herança” europeia ter sido
recebida “através de uma nação ibérica”. A península é em seguida descrita como um
“território-ponte” pelo qual a Europa “se comunica com os outros mundos”, “zona

7
FURTADO, André Carlos. Das fortunas críticas e apropriações, p. 89, 91.
191

fronteiriça, de transição” e por isso “menos carregada” do “europeísmo” que mesmo


assim seus habitantes “mantêm como um patrimônio”.8 A afirmação é intrigante. Logo
depois de assinalar-se que a “cultura” que se adapta ao Brasil é “europeia”, descobre-
se que a variante local é menos europeia do que as da Europa Central, comparável, por
isso, aos “países balcânicos” e, sob certos aspectos, à Inglaterra. E em seguida fica
afirmado que foi exatamente na época do “descobrimento” da América que Portugal e
Espanha “entraram decididamente no coro europeu”, “ingresso” que, em seu caráter
“tardio”, iria determinar “muitos aspectos peculiares” da história e da “formação
espiritual” peninsular, gerando um “tipo se sociedade que se desenvolveria [...] quase
à margem das congêneres europeias, e sem delas receber qualquer incitamento que já
não contivesse em germe”9.
Outra formulação curiosa: a península pertence “decididamente” – como que por
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decisão própria e política – ao “coro europeu”, mas se desenvolveu à sua margem,


apenas depurando aqueles aspectos que ela já continha “em germe”, presume-se,
quando dessa decisão. É como se a “Europa” da qual o Brasil seria herdeiro tivesse que
ser forçosamente não a Europa da modernidade política, cultural e científica, mas
tributária das esferas dominantes na cultura da época da Reconquista e do medievo
tardio, ou, quando muito, do Renascimento e da Contrarreforma. A aproximação a
esses conteúdos, que é por onde Raízes entrará pela primeira vez numa discussão
dotada de maior concretude e foco metodológico, é negativa. A pergunta que antecipa
esse desenvolvimento é ela própria marcada pela perplexidade diante do que está para
começar: sobre que “base”, pergunta Sergio, “assentam as formas culturais” dessa
“região indecisa entre a Europa e a África” – mas que decide, finalmente, pela Europa?
Como explicar essas formas, sem recorrer a indicações mais ou menos vagas? A
resposta parece indicar que, ao menos no caso ibérico, a forma se define pelo contraste:
é a “comparação” entre essas formas “e as da Europa de além-Pirineus”, herdeira do
império carolíngio, que “faz ressaltar uma característica bem peculiar à gente da
Península”, e “que ela está longe de partilhar, pelo menos na mesma intensidade, com

8
RB, p. 4.
9
RB, p. 4.
192

qualquer de seus vizinhos do continente”10. Trata-se da “cultura da personalidade”, que


se impõe como um signo sobre todas as manifestações espirituais ibéricas, e que
“parece constituir o traço mais decisivo na evolução da gente hispânica, desde tempos
imemoriais”. E a frase seguinte é curiosamente reminiscente da primeira fase, aliás do
primeiro texto (Cf. supra cap. I) de Sergio Buarque: é “pela importância particular que
atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em
relação aos semelhantes” que os ibéricos “devem muito de sua originalidade
nacional”11. Não está claro, novamente, se é essa necessidade do contraste que leva o
foco da análise à “cultura da personalidade”, mas o fato é que a psicologia do indivíduo
permanece ao longo de todo o livro um eixo da análise do livro.
Rapidamente, porém, esse foco desliza para uma problemática da dominação e
das instituições políticas, embora a lente analítica nunca chegue a se afastar, ao menos
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no primeiro capítulo, do problema da personalidade. Vale a pena uma leitura cerrada


do primeiro capítulo para a compreensão do problema da forma, pois, não apenas a
cultura ibérica nele descrita é a unidade a ser acompanhada ao longo de todo o livro
em suas interações com o meio tropical, como é somente ao final de “Fronteiras da
Europa” que o problema se delineia com clareza. Esse procedimento, onde as balizas
teóricas apenas se insinuam e se esclarecem apenas em passagens curtas (como o
parágrafo de abertura e o parágrafo final do capítulo), é típico de Sergio Buarque e
parece ser ele próprio inseparável de sua compreensão da ideia de forma: colocar o
problema da forma há de ser também oferecer os contornos do exemplo em tela, por
meio de uma série de abordagens mais ou menos laterais que não esgotam o material
analisado, mas constituem o veículo possível para sua compreensão, descrever a forma
por sua própria lógica, evitando ao máximo impor um esquema descritivo a ela externo.
Raízes começa, portanto, com uma discussão do dito “personalismo” da cultura
ibérica. O tema merece atenção, pois é preciso notar que a “cultura da personalidade”
não coincide com o “homem cordial” descrito no capítulo V – no primeiro capítulo, lê-
se que, na cultura da personalidade, “o índice do valor de um homem infere-se,
sobretudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite

10
RB, p. 4-5.
11
RB, p. 5
193

de ninguém, em que se baste”12, enquanto o “homem cordial”, que aparece uma centena
páginas depois, tem na “vida em sociedade” uma “libertação do pavor que ele sente em
viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da
existência” 13 . Esse contraste aqui realçado não significa, evidentemente, que a
cordialidade não tenha pontos importantes de convergência ou, mais exatamente, linhas
de continuidade histórica, com o personalismo ibérico em sua configuração originária,
peninsular. Seja como for, o “personalismo” tem como correlato a “singular tibieza das
formas de organização, de todas as associações que impliquem solidariedade e
ordenação entre esses povos” – o indivíduo, ao ver-se como totalidade, exclui de seu
horizonte intelectual linhas de racionalização de seu comportamento que o impliquem
como parte de alguma organização mais abrangente, a não ser, lemos logo adiante,
“por uma força exterior respeitável e temida” 14
. A cultura da personalidade é
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marcadamente anárquica. Nela, o valor ordenador da sociedade não chega a ser, talvez,
fruto de um acordo comum, mas um “princípio das competições individuais” que de
certa forma antecipa o igualitarismo da teoria política liberal, mas nada tem a ver com
seu fundamento mercantil. Não se trata de uma competição por valores na produção
econômica, mas por honra e mérito pessoais. Nesse ambiente, a construção de
elementos de organização social não se dá por necessidade de organizar a competição
num ambiente de estabilidade e previsibilidade favorável ao comércio e à indústria,
mas pela urgência em “se refrearem as paixões e opiniões dos homens”, isto é, para
separá-los, e “só raramente” com a “pretensão de se associarem as suas forças”15. Essa
distinção é importante, porque ela supõe que, entre outros povos, ou melhor, na teoria
política desenvolvida nos países que estiveram na dianteira daquilo que Eric
Hobsbawm denominou “dupla revolução” da aurora dos tempos modernos 16 , a
autoridade estatal é pensada como fruto de um acordo comum entre os homens, que
criam, por iniciativa própria, o estado civil, e que essa noção do acordo comum é algo
incompatível com a “cultura da personalidade”.

12
Loc. cit.
13
RB, p. 102.
14
RB, p. 5.
15
RB, p. 6.
16
HOBSBAWM, Eric, A era das revoluções. São Paulo: Paz e terra, 2006.
194

É então que começa uma discussão interessante, onde a noção de forma de


governo é exposta a partir do ponto de vista de suas relações com a “vida”, discussão
essa que envereda a partir da teoria política dominante à época da expansão marítima
ibérica, isto é, a escolástica, melhor adaptada, ao menos naquele contexto quase
medieval, à cultura da personalidade. É bom ter em mente que o interlocutor oculto
dessa passagem é Tristão de Athayde (Cf. supra cap. II, seção 3, “Duelo”), e também,
de modo geral, a direita católica e o integralismo – que também idealizava a Idade
Média como um período de coesão social perdida com a modernidade17. Note-se, aliás
que, nesse momento, já é difícil separar a análise histórica do “programa” do livro, pois
há uma clara intenção polêmica nas observações sobre a proposta de uma “volta às
tradições” medievais.
A escolástica, com sua concepção hierárquica da ordem das coisas no céu,
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estabelece para as coisas terrenas uma ordem homóloga e dela derivada. É apenas por
causa desse caráter derivativo, e que presume uma inferioridade ontológica do mundo
em relação à Cidade de Deus, que pode haver o estado civil entre os homens. É uma
fonte transcendente, extramundana, que legitima toda dominação neste mundo,
compondo, assim aquela “força exterior respeitável e temida”, uma força divina, a
única capaz de dobrar os homens de uma terra onde “todos são barões” à obediência.
Nesse sentido, era até conveniente, de certo modo, que a ordem hierárquica da teologia
tomista negasse a vida, pois, assim, por meio dessa separação de esferas, a concepção
do indivíduo como totalidade autossuficiente não precisava entrar em contradição com
nenhuma força propriamente terrena – isto é, quando um homem obedece a um
semelhante seu, ele não está obedecendo a uma autoridade que emana de outro homem,
mas apenas a autoridade divina da qual alguém neste mundo há de ser, por
contingência, portador. No plano estritamente humano, é como se permanecesse, no
personalismo ibérico, uma reserva de igualdade, ao menos teoricamente. É esse o
“paradoxo singular” que erigia em “princípio formador da sociedade” uma “força
inimiga [...] do mundo e da vida”18. É preciso ressaltar que essa separação de esferas é

17
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. As classificações de Plínio: uma análise do pensamento de Plínio
Salgado entre In: Zigue-zague. Ensaios reunidos. São Paulo: Unifesp. 2019, p. 88.
18
RB, p. 8-9.
195

uma forma mental que habilita esse “princípio formador da sociedade” e não
corresponde, absolutamente, a uma descrição supostamente objetiva do ponto de vista
do historiador sobre alguma realidade objetiva externa a essa forma psicológica. É por
isso que, quando Sergio escreve que “o trabalho dos pensadores, dos grandes
construtores de sistemas, não significava outra coisa senão o empenho em disfarçar,
quanto possível, esse antagonismo entre o Espírito e a Vida”19, observação emendada
por uma citação da Suma teológica, ele está descrevendo, não tanto o sistema tomista,
mas aquilo que ele acredita ser o ânimo que preside a sua elaboração 20 , mas não
endossando, ele próprio, necessariamente, o antagonismo entre “Espírito” e “Vida”21.
Se esse antagonismo era “real” ou não, pouco importa, mas a posição de Sergio parece
ser que a convicção de que a “vida é melancólica”, depreendida da teologia agostiniana,
só podia ser “disfarçada”, mas não efetivamente superada pela escolástica. Esse
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“trabalho” de sistematização, Sergio admite, era “de certa maneira fecundo e


venerável”, mas seu “sentido” verdadeiro a “nossa época já não quer compreender em
sua essência” 22 – é aqui que Sergio rejeita, decididamente, o tradicionalismo
neotomista encarnado à época do aparecimento do livro, por intelectuais católicos
como Tristão de Athayde, que propugnavam uma “salvação pelo Angélico”, naquilo
que a Sergio parecia um apego desesperado a formas já mortas. Mortas, não porque seu
conteúdo negasse o mundo, mas porque ele só se ajustava a uma forma mental que, nos
tempos modernos, já não estaria à disposição por simples escolha voluntária. Até
porque a filosofia política escolástica, em sua forma medieval, não tem em seu
horizonte cognitivo quaisquer “aspirações conscientes para uma reforma da
sociedade”, senão que ela se limita a descrever a organização do mundo “segundo leis
eternas indiscutíveis, impostas do outro mundo pelo Supremo Ordenador de todas as
coisas”23 – pois a “sociedade”, tal como modernamente concebida, simplesmente não
existe, e o análogo coevo mais próximo disso seria a Igreja. É bom lembrar, de

19
RB, p. 9.
20
Afinal, quando Tomás de Aquino diz que a “glória”, aliás, a “graça”, pois Sergio se confunde na
transcrição, “não tolhe mas aperfeiçoa a natureza”, ele estaria justamente tentando “disfarçar” esse
“antagonismo”.
21
É por isso que é um pouco duvidosa a atribuição inequívoca a Raízes do Brasil de uma supremacia
absorvente do vitalismo de Ludwig Klages sobre a concepção de “vida” ali levada a cabo.
22
RB, p. 9.
23
RB, p. 8.
196

passagem, que um pensador social alemão especialmente interessado na filosofia


política medieval como formação espiritual típica da mentalidade pré-capitalista, em
cuja obra Sergio poderia ter se inspirado nessas considerações sobre a escolástica, não
seria Max Weber, mas, muito mais provavelmente, Werner Sombart, que, no começo
de seu estudo O burguês destaca passagens da Suma teológica para demonstrar o
caráter essencialmente inercial e tradicionalista da visão de mundo medieval – isto é,
um universo mental onde a ideologia “burguesa” do trabalho e do lucro seria
impensável24. De modo análogo, elabora Sergio, a ideia de uma teoria política, com
uma doutrina positiva, tal como a direita católica procurava se apropriar dos
ensinamentos do Doutor Angélico, é, no próprio contexto da obra, simplesmente
inconcebível – daí a insensatez de erigi-la em ideal reformista, ainda que com objetivos
reacionários, em pleno século XX.
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E, mesmo admitindo-se uma conformação mais feliz entre a mentalidade


medieval e as hierarquizações da filosofia tomista, “no fundo”, esse princípio nunca
teria chegado a realmente “importar” entre os ibéricos, pois a hierarquia “funda-se
necessariamente em privilégios”, e esses nunca foram efetivamente considerados como
razoáveis entre portugueses e espanhóis, que desde o princípio teriam “sentido
vivamente a irracionalidade específica”, a sua “injustiça social”, sobretudo dos
privilégios hereditários, preferindo fundar a legitimidade da ordem no “prestígio”
puramente “pessoal”, obtido por mérito próprio25. Parece que mesmo a escolástica, que
aparecera inicialmente como resposta histórica às proclividades anárquicas dos
ibéricos, o seria talvez somente em retrospecto, e por uma idealização de um
movimento político incapaz de compreendê-la em sua “essência”.
O movimento é tipicamente buarquiano, tanto pelo exagero, quanto na reversão
de uma expectativa preparada pelo texto. Mais intrigante ainda é a mobilização da
categoria de “racionalidade”. A “irracionalidade específica” se refere, aqui, não, como
poderá parecer numa leitura pouco atenta, aos ibéricos, mas à tentativa de
racionalização dos privilégios hereditários pela ordem social estamental vigente na
Europa medieval, mas pouco afinada com o sentimento peninsular. Os ibéricos não

24
Werner Sombart, Le bourgeois, cit., p. 15, 24-5.
25
RB, p. 9.
197

aceitam a hierarquia porque percebem nela ausência de um fundamento racional.


Irracionais não são os ibéricos, mas, aos seus próprios olhos, a ordem social da Europa
de “além-Pirineus”. Nisso, as nações ibéricas “se podem considerar legítimas pioneiras
da mentalidade moderna”. Mas apenas aparentemente, se a “modernidade” for
weberianamente compreendida como “racionalização”, pois, duas páginas depois, lê-
se que, graças a essa “ética de fidalgos, não de vilãos”, marcada por um desapreço pelos
trabalhos manuais e por um apego extremo ao livre arbítrio e à “responsabilidade
pessoal”, haveria um déficit de “associação entre os homens” e da “racionalização da
vida26” que, os protestantes dentro em pouco começariam e experimentar. Protestando
contra a “irracionalidade” da hierarquia, os ibéricos eram incapazes, por outro lado, de
uma “racionalização da vida”. Parece que o conceito de “razão” aqui aludido não é
fixo, mas dinâmico e de valência variável em acordo com o objeto ou esfera de que
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trata. Uma possível explicação para essa instabilidade pode ser extraída exatamente
pela transição temática operada entre as duas aparições da “racionalidade” no texto.
Perceba-se como a primeira “razão” é julgada a partir do ponto de vista
psicológico do indivíduo considerando sua própria situação diante da autoridade que
tem a pretensão de dobrar sua vontade ao peso do privilégio, enquanto que a
“racionalização da vida” é uma descrição extrínseca sobre uma forma organizacional
imperante num meio social mais amplo. A transição temática entre a primeira e a
segunda “razões”, por sua vez, contém uma consideração sobre o trabalho. Entre os
povos hispânicos (Portugal incluído) admitia-se que os “homens da linhagem dos
Filhos d’algo” praticassem “todas as profissões”, sem que perdessem as “honras de
nobreza”, desde que não vivessem de “trabalhos mecânicos”. Assim, a “realidade”
econômica podia bem ser “burguesa” avant la lettre, mas a forma mentis disseminada
em todo o corpo social ainda comportava uma “ética de fidalgos”27. E foi justamente
essa forma de pensar “que se tornou o maior óbice, entre eles, do espírito de
organização espontânea” que, favorecidas por uma ética do trabalho, “racionalizavam”
a vida, exigindo, portanto, que a organização política fosse “artificialmente mantida
por uma força exterior, que encontrou uma das formas características nas ditaduras

26
RB, p. 10-11.
27
RB, p. 10-11.
198

militares”28 – como mostra o caso das ditaduras militares, o tipo de ordem política que
termina por prevalecer não é, note-se, uma organização estratificada à maneira do
Antigo Regime, mas numa autoridade inteiramente pessoal e mantida à força, de forma
“exterior”.
A origem dessa incapacidade de geração espontânea de princípios organizadores
entre os ibéricos estaria na “invencível antipatia que sempre lhes inspirou toda moral
fundada principalmente no culto ao trabalho”. Segue, então, o momento mais decisivo
da caracterização da psicologia ibérica, do ponto de vista da forma, pois aqui fica
especialmente evidente o estilo de argumentativo levado a cabo no livro, marcado por
transições quase insensíveis, mas que elevam cada etapa a um novo patamar de
complexidade – aqui se pode vislumbrar não somente certos “conteúdos” possíveis
para essa noção, mas sobretudo como se pode dar a evolução das formas em contextos
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socio-históricos. Toma-se a licença de uma citação especialmente longa:

A “inteireza”, o “ser”, a “gravidade”, o “termo honrado”, o “proceder sisudo”, esses


atributos que ornam e engrandecem o nobre escudo, na expressão do poeta português
Francisco Rodrigues Lobo, representam virtudes essencialmente inativas, pelas quais o
indivíduo se reflete sobre si mesmo e renuncia a modificar a face do mundo. A ação
sobre as coisas, sobre o universo material, implica uma submissão a um objeto exterior,
aceitação de uma lei estranha ao indivíduo. Ela não é exigida por Deus, nada acrescenta
à sua glória e não aumenta nossa dignidade. Pode dizer-se que, ao contrário, a prejudica
e a avilta. O trabalho manual e mecânico visa um fim exterior ao homem e pretende
conseguir a perfeição de uma obra distinta dele.
É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre a gente hispânica a
moderna religião do trabalho e o culto à atividade utilitária. Uma digna ociosidade
sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, um bom português, ou a um
espanhol, de que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal
é uma vida de senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim,
enquanto os povos protestantes, herdeiros nesse ponto do mundo medieval, que não
desprezava o trabalho físico, elevam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas
colocam-se ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica. O que entre elas
predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a
atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor.
Também se compreende que a carência dessa moral do trabalho se ajustasse bem à
pequena capacidade de organização social. Efetivamente o trabalho humilde, anônimo e
desinteressado é agente poderoso da solidariedade de interesses e, como tal, estimula a
organização racional dos homens e sustenta a coesão entre eles. Onde prevaleça uma
forma qualquer de moral do trabalho, não faltará a ordem e a tranquilidade entre os
cidadãos, porque são necessárias, uma e outra, à harmonia dos interesses. O certo é que,

28
RB, p. 12.
199

entre espanhóis e portugueses, essa moral do trabalho, foi sempre fruto exótico. Não
admira, assim, que fossem precárias, nessa gente, as ideias de solidariedade.
A bem dizer, essa solidariedade entre eles existe somente onde há vinculação de
sentimentos mais que de interesse, – no recinto doméstico ou entre os amigos. Círculos
forçosamente restritos, particularistas e antes inimigos do que favorecedores das
associações estabelecidas sobre plano extenso, gremial ou nacional.29

Da longa citação destaque-se, antes de mais nada, a escolha de um artefato


poético como exemplo mais adequado para traçar os contornos de uma forma de
pensamento – como, aliás, já fora feito com versos ditos por Beatriz na Divina comédia
páginas antes. Em seguida, sublinhe-se o caráter inativo, não-dinâmico e conformista
dessas “virtudes” que servem sobretudo a uma visão contemplativa e não
intervencionista sobre o mundo, visão, como o próprio Sergio destacara anteriormente,
afinada com a filosofia estoica do cordovês Sêneca30. Que semelhante desprestígio do
trabalho seja pouco propício à organização social é talvez compreensível. Menos óbvia,
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talvez, é a implicação sugerida entre essa aversão e a incapacidade de transpor o salto


qualitativo representado pela modernidade com relação à época anterior. A ideia de
que o trabalho é a fonte de toda forma talvez seja um lugar-comum antiquíssimo, mas
a exposição sistemática do trabalho como estágio de consciência necessário à
constituição do sentido na forma da consciência é um dos momentos notáveis do
pensamento de Hegel. É difícil que Sergio Buarque, que não deixou de abrir seu
capítulo sobre o “homem cordial” com o conflito entre Antígona e Creonte, tão caro ao
filósofo alemão, não tenha se valido, na formulação desse argumento, que subjaz a
praticamente toda a estrutura de Raízes do Brasil, da famosa dialética entre dominação
e escravidão da Fenomenologia do espírito. Como se sabe, esse livro expõe a evolução
das “figuras da consciência”, desde a “certeza sensível” até o “espírito”, em crescente
complexidade, por meio de um procedimento de “negação” dialética de cada “posição”
intermediária da consciência. A cada nova figura, a consciência está num patamar mais
elevado. Não é que os estágios iniciais sejam exatamente “erros” em si, mas fases
necessárias da evolução do espírito que, do ponto de vista das fases posteriores,
aparecerão sob o aspecto de erros31. O certo é que cada figura tem, por assim dizer, a

29
RB, p. 12-14.
30
O estoicismo era a “filosofia nacional dos espanhóis desde o tempo de Sêneca”, RB, p. 5.
31
Fenomenologia do espírito, §24, p. 35-6. “[O] saber só é efetivo – e só pode ser exposto – como
ciência ou como sistema. […][U]ma assim chamada proposição fundamental (ou princípio) da filosofia,
200

sua “racionalidade” própria. O estágio específico onde surge na consciência a categoria


da forma é a dialética entre dominação e escravidão (na paragrafação da edição
consultada, a mais frequentemente usada no Brasil, §§178-196). Aqui, o intercâmbio
dialético se dá entre duas consciências: uma que ordena, e a outra que obedece.
Paradoxalmente, ao final do processo, é a consciência escrava que irá extrair do
processo as consequências mais enriquecedoras, do ponto de vista da evolução das
figuras. Essa valoração não faz muito sentido na medida em que ambas as consciências
são, na psicologia hegeliana, etapas necessárias do mesmo desenvolvimento, mas nesse
caso é importante fazer essa distinção, porque Sergio Buarque parece querer extrair
implicações sociológicas da racionalidade senhorial ibérica a partir desse momento
hegeliano. É bom notar, aliás, que, nesse momento, Sergio hegelianamente apresenta
os correlatos históricos da evolução espiritual, associando os ibéricos à Antiguidade e
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colocando-os num patamar de racionalidade anterior ao medievo. Esse arcaísmo radical


é, acrescente-se, perfeitamente coerente com o que se vai ler no quarto capítulo sobre
a colonização portuguesa na América, a saber, que, em contraste com o “prodígio
verdadeiramente monstruoso de vontade e de inteligência”, de razão ordenadora, que
constituiu a colonização espanhola, ela repetia, através de seu “caráter de exploração
comercial”, “o exemplo da colonização da antiguidade, sobretudo da fenícia e da
grega”32.
Ao corresponder, pelo trabalho, ao “desejo na consciência do senhor”, o escravo
tem seu próprio desejo refreado, e, nisso, ao invés de desvanecer na satisfação do
desejo, que é o resultado do desejar na consciência do senhor, o escravo exerce um
“desvanecer contido”, isto é, ao conter a seu próprio desejo no ato de trabalhar, negando
a si mesmo, produziu algo – é assim que “o trabalho forma”. O formar, de formas
duradouras não evanescentes é, para Hegel, um estágio da consciência escrava, e não
da senhorial, que só tem em seu horizonte o próprio desejo, ou, noutras palavras, nunca
abre mão de seu livre arbítrio num processo que tem seu fim fora de si. E é só a
consciência que trabalha que consegue ultrapassar esse ensimesmamento improdutivo

se é verdadeira, já por isso é também falsa [...]. A atualização [do saber] pode assim ser igualmente
tomada como refutação do que constitui o fundamento do sistema; porém, é mais correto considera-la
como um indício de que o fundamento ou princípio do sistema é de fato só o seu começo.”
32
RB, p. 66.
201

e, onde parecia haver simplesmente um sentido alheio, “a consciência, mediante esse


reencontrar-se de si por si mesma” na forma exteriorizada no trabalho, “vem-a-ser
sentido próprio”33. Perceba-se como é esse movimento de autonegação ascética que
leva a razão a um novo patamar, o patamar da compreensão do próprio sentido, da
formação reflexiva.
Ora, dessa antológica passagem, é fácil concluir que uma consciência estranha
ao trabalho terá alguma dificuldade em produzir formas (ou de formar-se a si mesma).
E é em termos bastante reminiscentes desse trecho de Hegel que Sergio Buarque volta
a tratar, já no sexto capítulo (“Novos Tempos”), da aversão da cultura brasileira ao
trabalho: “[n]o trabalho não buscamos senão a própria satisfação, ele tem o fim em nós
mesmos, e não na obra, um finis operantis e não um finis operis”.34 Talvez aí esteja o
vício de origem da cultura brasileira em Raízes do Brasil: uma sociedade governada
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por senhores estranhos ao sentido de um todo político, porque estranhos ao verdadeiro


trabalho, a uma obra realmente sua. Resulta daí uma sociedade plástica,
desconhecedora de seu próprio conceito – até, ao menos, que o devido trabalho de
formação e compreensão seja devidamente realizado. Conforme a página de abertura
de Raízes do Brasil, “[p]odemos construir obras excelentes, enriquecer nossa
humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar até a perfeição o tipo de cultura
que representamos: o certo é que todo fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça
participa fatalmente de um estilo e um sistema de evoluções naturais a outro clima e a
outra paisagem”35. Trabalho e preguiça que poderiam constituir um “tipo próprio de
cultura”, mas cujas origens, antes disso, “cumpriria averiguar”. É nesse trabalho, de
pesquisa, talvez, de redescoberta do país, que os intelectuais que tão facilmente se
deixam seduzir por ideias estrangeiras poderiam encontrar uma verdadeira forma
nacional. Se os brasileiros se sentem “desterrados” em terra própria, segundo a famosa
expressão da abertura do livro36, não é tanto porque sua alma está ligada a outra parte

33
Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., §§195-6, p. 149-150.
34
RB, p. 114.
35
RB, p. 3.
36
Aqui há uma possível aproximação com o diagnóstico que Joaquim Nabuco sobre a intelectualidade
brasileira. Em sua autobiografia publicada em 1900, Nabuco diz, numa passagem antológica, que no
Novo mundo o “espírito humano” “se sente tão longe de suas reminiscências, das suas associações de
ideias, como se o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da lembrança e ele devesse
balbuciar de novo, soletrar outra vez, como criança, tudo o que aprendeu sob o céu da Ática…”.
202

do mundo, mas porque a sua própria conformação anímica resiste à expressão da


própria essência, pois não é capaz de se formar.
A “racionalização” da vida envolve, necessariamente, uma negação do próprio
desejo e uma anulação de si no processo de trabalho. Esse procedimento é
completamente antinômico ao ideal de vida do “senhor”, que se compraz na pura
contemplação e no amor. Note-se, ainda, que esse movimento dialético entre as
diferentes formas mentais e as formas sociais que lhes correspondem, além dos
estímulos, impedimentos e outras contingências que vêm conformá-las, dá um
pronunciado sotaque hegeliano a toda a argumentação de Raízes, sempre interessada
na evolução das diferentes formas de razão, sem, no entanto, é preciso sublinhar,
participar da certeza com que Hegel faz as figuras de consciência sucederem-se umas
às outras em movimento progressivo e inarredável. Sergio Buarque parece, e assim
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permanecerá até o final de sua vida, altamente cético das ideologias do progresso e de
toda teoria da história orientada por uma escala de valores normativa. Não se propõe
aqui tanto uma leitura estritamente hegeliana, mas sim que o argumento de Raízes do
Brasil apresenta um estilo de pensamento no qual Hegel cumpre um papel importante37.
Sem ser talvez, propriamente, um “livro hegeliano”, Raízes do Brasil realiza uma
transposição para o contexto brasileiro de um universo intelectual mais amplo e variado
– a Bildung. O ingrediente hegeliano não é exatamente surpreendente, já que Raízes
trata ostensivamente da formação brasileira e Hegel é, junto de Goethe, o grande
pensador da formação, paradigma de pensamento que não implica tanto conteúdos

NABUCO, Joaquim. Minha formação. São Paulo: 34, 2012, p. 71 É muito pouco provável que Sergio
não tivesse essa passagem em mente quando formulou sua lapidar expressão sobre sermos “ainda uns
desterrados em nossa própria terra”. Noutro passo, menos conhecido, desse livro, Nabuco critica os
jovens artistas brasileiros, que insistem em trabalhar sobre “material pouco consistente” (sua própria
realidade) “e assim a produção é quase toda fácil, improvisada, sem trabalho anterior, sem investigação,
sem esforço, sem tempo, sem nenhum elemento que revele continuidade, ambição.” A solução seria um
maior investimento das energias da intelectualidade – numa espécie de ascese – em estudos históricos.
Nabuco sabe que isso é o mesmo que “aconselhar-lhes a miséria”; contudo, completa Nabuco, “as leis
da inteligência são inflexíveis e a produção do espírito que não se alimenta senão de sua própria
imaginação, tem que ser cada dia mais frívola e sem valor”. Ibid., p. 98. Parece que, também para
Nabuco, o trabalho formava.
37
A presença hegeliana não é, alias, sinal de algum arcaísmo na reflexão de Raízes do Brasil. Georg
Lukács relembra em prefácio de 1962 à sua Teoria do romance que aquele livro publicado pela primeira
vez em 1916 fazia parte de um “revival hegeliano” no pensamento de língua alemã iniciado nos anos
anteriores à I Guerra Mundial. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: 34; Ed. Duas Cidades,
2009, p. 11-15.
203

específicos quanto aquela forma de pensar onde, sem deixar de lado a razão, é preciso
pensar que as coisas são na apenas medida em que estão se tornando algo diferente,
sem deixar de serem as mesmas, e onde o verdadeiro é o todo. Não a minúscula
semente, não a alta e frondosa árvore, não essa ou aquela fase – na consciência, não
essa ou aquela disposição de pensamento – mas a totalidade da vida que se desdobra
no tempo. Essa lição, o “historismo” talvez não precisasse de Hegel para aprender,
visto que já desde Herder se pode identificar um pensamento histórico atento à
evolução das disposições mentais entre as épocas, mas talvez somente na
Fenomenologia do espírito os potenciais dessa descoberta são aproveitados até suas
consequências mais fecundas.
Assim, acompanhando Hegel, Raízes identifica nas diferentes situações
existenciais, historicamente diferenciadas, modos diferentes de interação com o
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mundo, aos quais correspondem diferentes sistemas de representações e de apreensão


da realidade. Cada um desses ganha expressão, por sua vez, em todo tipo de artefato
cultural, bem como naquilo que em Raízes do Brasil é chamado de “visão de mundo”,
em estreita relação com a “forma de vida” correlativa. É interessante lembrar aqui que
Sergio provavelmente não desconhecia as tentativas de reabilitar o hegelianismo nas
ciências do espírito alemãs, notadamente na sociologia do conhecimento de Karl
Mannheim, que tinha na noção de “visão de mundo” [Weltanschauung] uma de suas
categorias-chave, reconhecendo, entretanto, a necessidade de corrigir alguns
pressupostos apressados da filosofia da história hegeliana38. Parece plausível que nesse
ponto de vista dinâmico sobre a “racionalidade”, que Sergio vê por uma lente mais
relativista do que Hegel, nisso aproximando-se mais do pensamento da escola histórica
alemã e de Mannheim, esteja a origem da polivalência dessa noção em Raízes.
Entretanto, é importante lembrar que, embora talvez essa avaliação não esteja tão
carregada de um juízo de valor ostensivo, há uma admissão implícita de que o déficit

38
MANNHEIM, Karl. On the interpretarion of Weltanschauung. In: Essays on the Sociology of
Knowledge. Londres: Routledge, 1959, p. 34. Não se deve esquecer que Mannheim assina o verbete
“Wissensoziologie” [Sociologia do conhecimento] do Handwörterbuch der Soziologie de Alfred
Vierkandt (1931), do qual Raízes do Brasil cita três verbetes (“Ländliche Siedlungen” [Assentamentos
rurais], de Ferdinand Enke (p. 48), Kultursoziologie des Mittelalters [Sociologia da cultura medieval],
de Alfred V. Martin (p. 107) e “Revolution” de Theodor Geiger, (p. 136). O verbete de Mannheim é
reproduzido como adendo às edições inglesas de Ideologia e Utopia.
204

de um ponto de vista impessoal e, no sentido hegeliano, de um pensamento que se


ponha no elemento da ciência, isto é, de uma consideração das coisas que transcenda o
ponto de vista da consciência individual 39 , é um elemento que torna os processos
intelectuais de representação e organização da ordem social claramente insuficientes
no Brasil, ao menos para unidades organizacionais mais amplas do que a família.
Essas, como se lê no último parágrafo do trecho longo transcrito acima, podem
se manter com base numa solidariedade de sentimentos antes que de uma razão que,
partindo de considerações utilitárias, vence antipatias pessoais porventura existentes
para erigir formas de organização racionais – note-se, outra vez, a diferença de
configuração entre a “razão” que não identifica racionalidade na hierarquia propugnada
pela ordenação social em estamentos, e essa que, por conseguir acessar um plano
impessoal, que parte de uma lógica objetiva da necessidade de ordem, gera como que
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espontaneamente o tipo de solidariedade onde se fundam as organizações sociais e


políticas modernas. E não custa lembrar como o trecho, assim encerrado pela distinção
entre formas organizacionais fundadas nos afetos e na razão, antecipa o essencial da
problemática política que será desenvolvida no capítulo sobre o “homem cordial” e nos
dois capítulos finais do livro.
Por outro lado, mesmo num contexto onde a ausência de solidariedade social e a
carência da moral do trabalho “se ajustasse bem” a uma “pequena capacidade de
organização social”, algum tipo de princípio de autoridade, ainda que estranho a ideais
comunitários e racionais, haveria de ser necessário na manutenção do mínimo
necessário a uma sociedade. É aí que entra em cena um argumento interessante, que de
certo modo reedita a discussão sobre a escolástica, mas a radicaliza. A ideia de
submissão a uma vontade exterior é inconcebível para o conceito de personalidade
desenvolvido na cultura ibérica, mesmo no caso da expressão de algum “bem público”
ou “vontade geral” – ou melhor, essa possibilidade nem deveria ser aventada, pois essas
noções não pertencem realmente ao horizonte intelectual desse contexto social, e nela

39
Cf. Fenomenologia do espírito, §26, p. 37-8. “O puro reconhecer-se a si mesmo no absoluto ser-outro,
esse éter como tal, é o fundamento e o solo da ciência, O começo da ciência faz a pressuposição ou
exigência de que a consciência se encontre nesse elemento. [...] Para a ciência, o ponto de vista da
consciência – saber das coisas objetivas em oposição a si mesma, e a si mesma em oposição a elas – vale
como o Outro: esse Outro em que a consciência se sabe junto a si mesma, antes como perda de espírito.”
205

penetram como significantes vazios preenchidos, pode-se presumir, por substitutivos


compatíveis com o “personalismo”. É o que acontece, mais à frente, no famoso “mal-
entendido” da democracia brasileira. Desse modo, o exercício da dominação e a
submissão a ela não funcionam, no sistema de valores ibérico, como um fato da vida,
como um elemento pressuposto pela racionalidade, mas como uma afronta a esse
sistema que requer a anulação da personalidade. Essa negação de si ocorre e é
valorizada como elemento de ordem, mas permanece, do ponto de vista psicológico e
da racionalidade, como uma situação excepcional – a “ascese” aqui não está no
trabalho, que no mundo da “moral do trabalho” transporta a organização social racional
para o mundo da vida e para as estruturas de compreensão corriqueira, mas tem de
ocorrer exatamente no exercício de submissão à autoridade. Pois lemos que, à
“autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e
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que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a negação e a renúncia a
essa mesma personalidade me vista a um bem maior”40 – bem maior e não comum ou
público, ideia que ganha expressão nas ditaduras e no Santo Ofício, e que, de modo
aparentemente paradoxal, “constituem formas tão típicas” do caráter ibérico como “a
inclinação para a anarquia e para a desordem”, não existindo “outra forma de disciplina
concebível" que não a “excessiva centralização” e a “obediência cega”, essa que aliás
difere do “ideal germânico e feudal da lealdade”.
Não se imagine, porém, como seria de esperar, que essa lógica seja inteiramente
irracional, pois há um estilo de racionalização próprio a ela, apenas os seus portadores
a exercem, esses sim, por meio de mecanismos legitimadores estranhos à vida, e nela
imprimem o selo de uma ordem ainda mais puramente racional do que aquela da
racionalidade espontânea que viceja das sociedades “trabalhadoras” da Europa central.
A ausência de racionalização numa esfera acaba como que requisitando uma
compensação que lhe sirva de contrapeso, no caso, um contrapeso divino. Pois foram
os jesuítas que representaram, “melhor do que ninguém, esse princípio da disciplina
pela obediência”, e disso deixaram “um exemplo memorável com as suas antigas
reduções”. E Sergio Buarque conclui seu raciocínio com uma passagem realmente
espantosa: “Nenhum ditador moderno, nenhum teórico do comunismo ou do Estado

40
RB, p. 14.
206

totalitário, chegou a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que


puderam conseguir os padres da Companhia de Jesus em suas missões.”41
E assim chegamos ao parágrafo final do capítulo, que contém o mais completo
esclarecimento metodológico da noção de forma que orienta a análise do livro todo.
Lê-se, primeiro, que, num contexto mais moderno, como aquele de 1936, “a obediência
como princípio de disciplina parece uma forma caduca e impraticável, e daí sobretudo
a instabilidade constante de nossa vida social”. Sergio parece aqui voltar a seu
diagnóstico de que “nossa época já não quer compreender” o a filosofia política
medieval, mas agora o aplica também ao ideal da obediência, que constituíra um “freio”
às inclinações anárquicas da cultura da personalidade, e acrescenta que as soluções
tentadas para aplacar a “desordem” não foram bem-sucedidas, notando que o que se
tentou foi “importar dos sistemas de outros povos modernos” – como se pode
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depreender dos dois capítulos finais, Sergio se refere aqui sobretudo ao liberalismo –
ou então “criar, por conta própria, um substitutivo adequado, capaz de superar os
efeitos de nosso natural inquieto e desordenado” 42 . As razões do fracasso dessas
tentativas são então esclarecidas de forma excepcionalmente teórica no restante do
parágrafo:

A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora


verdadeiramente os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade
de ajuste aos seus quadros de vida. Nesse particular cumpre lembrar o que se deu com
as culturas europeias transportadas ao Novo Mundo. Nem o contato e a mistura com as
raças aborígenes fizeram-nos tão diferentes dos nossos avós de além-mar como
gostaríamos de sê-lo. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa
parecer [a] alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à Península Ibérica, e a
Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir até hoje uma
alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a
forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria plástica, que se sujeitou mal ou bem a
essa forma.

O problema da “importação” de formas estrangeiras não está num vício de


origem dessas formas, mas no desajuste aos “quadros de vida” da forma à qual se está
querendo aplica-las. Sergio está falando aqui, portanto, de duas esferas “formais”

41
RB, p. 14-15.
42
RB, p. 15. O diagnóstico é bem parecido com o de Plínio Salgado, embora as consequências dele
extraídas sejam bem diversas, como se verá adiante. Cf. Ricardo Benzaquen de Araújo, “As
classificações de Plínio”, cit.
207

diferentes: a do “quadro de vida” mais ou menos espontâneo que já existe como


conformação psicológica na cultura ibérica, composto por um conjunto de
representações mentais, valorações e organizações afetivas e da vontade (por exemplo,
aquela “invencível antipatia” pela “moral do trabalho”, ou talvez, mais genericamente,
pela realidade psicológica do trabalho “humilde e desinteressado”, que tem seu “fim”
fora do próprio indivíduo) e aquilo que, no parágrafo final do livro, se chamará de
“formas exteriores” – as instituições. Ocorre que o estilo de “racionalidade” anárquico
cultivado em meio ao “natural inquieto e desordenado” dos povos ibéricos só é capaz
de legitimar instituições caducas – as ditaduras, o Santo Ofício, a Companhia de Jesus,
essas formas já não se adequam à realidade moderna. Seria, então, o caso de criar algo
novo, uma forma própria. Por motivos que ainda não foram esclarecidos, essas
tentativas foram, no Brasil, vãs. Parte da razão pode estar na relutância das elites
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brasileiras em reconhecer a necessidade de ajuste dessas formas aos seus “quadros de


vida”, mas outra parte pode ser a ver com aquela incapacidade formativa inerente à
própria “moral de fidalgos”, que impede, por sua própria repulsa ao trabalho, a
emergência de formas. Fica assim delineado o paradoxo, ou ainda, a “tragédia da
cultura” contida na argumentação de Raízes do Brasil, a saber, uma essência que, para
se dar consequência, isto é, para se atualizar e realizar seu percurso espiritual
necessário, deveria se expressar em forma, mas que, como que por um curto-circuito,
recusa-se a se dar o trabalho de formação43. É uma essência que resiste a si mesma e
se compraz, de forma inócua, em imitar formas que não são as suas. Isso fica
especialmente claro no último parágrafo do livro:

O essencial de todas as manifestações originais como das coisas fabricadas, é a forma.


A realização completa de uma sociedade também depende de sua forma. Se no terreno
político e social o liberalismo revelou-se entre nós antes um destruidor de formas
preexistentes do que um criador de novas; se foi sobretudo uma inútil e onerosa
superfetação, não será pela experiência de outras elaborações engenhosas que nos
encontraremos um dia com a nossa realidade. Poderemos ensaiar a organização de nossa
desordem segundo esquemas sábios e de virtude provada, mas há de restar um mundo
de essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre intacto, irredutível e

43
Sobre a presença recalcada da ética do trabalho nas análises de Sergio Buarque sobre a cultura
brasileira há a tese, infelizmente subvalorizada na fortuna crítica, de Luiz Fernando Pereira das Neves
Franco, Defeito mecânico: Mito e trabalho no paraíso de Sergio Buarque de Holanda. Tese de doutorado.
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005. Ver
especialmente quarto capítulo, que tem o mesmo título da tese.
208

desdenhoso das invenções humanas. Querer ignorar esse mundo será renunciar a nosso
próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do refluxo, por um compasso mecânico e uma
harmonia falsa. Já temos visto que o Estado, criatura espiritual, opõe-se à ordem natural
e a transcende. Mas também é verdade que essa oposição deve resolver-se em um
contraponto para que o quadro social seja coerente consigo. Há uma única economia
possível e superior aos nossos cálculos e imaginações para compor um todo perfeito de
partes tão antagônicas. O espírito não é uma força normativa, salvo onde pode servir à
vida social e onde lhe corresponde. As formas exteriores da sociedade devem ser como
um contorno congênito a ela e dela inseparável: emergem continuamente das suas
necessidades específicas e jamais de escolhas caprichosas. Há, porém, um demônio
pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos olhos essas verdades
singelas. Inspirado por ele, os homens se veem diversos do que são e criam novas
preferencias e repugnâncias. É raro que sejam das boas.44

O trecho repete, no temário e no tratamento teórico, o espírito do fechamento do


primeiro capítulo, mas do ponto de vista de um momento em que já houve uma
discussão histórica e programática da recepção do liberalismo no Brasil. Ele interessa
aqui na medida em que dá um esclarecimento adicional sobre o modo como se dá o
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ajuste entre a forma institucional e os “quadros de vida”. O que aparece aqui, no fecho
do livro, mas não na p. 15, é a ideia de que há “formas” exteriores a uma “essência
íntima” da sociedade, e que a atualização, ou a “realização completa” dessas formas há
de se dar “em contraponto” – ideia frequentemente interpretada erroneamente como
“contrapeso” ou alguma forma compensação. Como percebeu Roberto Vecchi, em
apontamento depois reaproveitado por Rogério Schlegel, a imagem sugere, em
primeiro lugar, “linhas musicais independentes, mas em harmonia, como a partitura de
diferentes instrumentos em uma orquestra”45. Assim, o problema de uma ordem estatal
não está em ser “espiritual” e, nesse sentido, “negadora da vida”, como pode sugerir
uma leitura apressada, mas sim que essa ordem procure reproduzir uma “harmonia
falsa”, isto é, que não corresponda ao “ritmo espontâneo” da sociedade. O espírito pode
ser uma “força normativa”, desde que sirva e corresponda à vida social. Esse não é o
caso do liberalismo no Brasil, como se pode perceber nas duras críticas feitas a essa
ideologia em Raízes do Brasil ao longo dos dois últimos capítulos, assim como nesse
parágrafo conclusivo. Esse é ainda complementado com a ideia de que o liberalismo

44
RB, p. 160-1.
45
Roberto Vecchi, “Nossa Revolução: Atlas intersticial do tempo do fim”, cit., p. 279; SCHLEGEL,
Rogerio. Raízes do Brasil, 1936: O estatismo orgânico como contribuição original. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, v. 32, n. 93, fev 2017, epub,
209

seria uma “superfetação”, isto é a geração de um feto num útero já fecundado. A


solução exposta no texto, ou melhor, o esboço das condições que possibilitariam essa
solução, só pode ser extraído de uma análise mais detida dos três últimos capítulos do
livro, mas importa ressaltar aqui que o dito “contraponto” não corresponde a um puro
“espontaneísmo" irracional. Essa não é a posição de Sergio Buarque, que é mais
complexa: o “encontro” com a realidade nacional exigiria algo que ainda não está à
disposição, isto é, a capacidade de criar as “formas exteriores” por conta própria. Uma
exposição detalhada desse problema se dá sobretudo no capítulo sobre os “Novos
tempos”, na discussão sobre o romantismo brasileiro, mas o essencial já pode ser
depreendido da discussão precedente sobre a falta de uma racionalidade socialmente
responsável na “cultura da personalidade. Já no primeiro capítulo estão dadas as
condições que explicam a inexistência, no horizonte intelectual ibérico, que nesse
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ponto não se altera muito até meados do século XIX, de uma concepção bem definida
de sociedade, mas somente aquele individualismo da “sobranceria” e a “ética de
fidalgos” gerados na Península.
É oportuna, neste momento, uma nota sobre possíveis fontes intelectuais para da
noção orgânica e morfológica de cultura aqui levada adiante. É verdade que Sergio
ficou muito impressionado com a teoria morfológica da história de Oswald Spengler.
Recentemente, Sergio da Mata chamou atenção para a presença, em Raízes do Brasil,
de citações a Oswald Spengler e Kurt Breysig, ambos proponentes de teorias vitalistas
e morfológicas da História46. Realmente, essas passagens balizares de Raízes do Brasil

46
Ver MATA, Sergio da. Tentativas de desmitologia: A revolução conservadora em Raízes do Brasil.
Revista Brasileira de História, v. 36 n. 73, 2016, p.63-87. O artigo, de escrita e argumentação
extremamente persuasivas, parece, entretanto, excessivamente empenhado em estabelecer a supremacia
de Spengler no quadro teórico do livro, ao mesmo tempo em que procura deflacionar a importância de
Weber. Não se pode descartar peremptoriamente a hipótese desse texto, mas ela se sustenta na construção
de uma “revolução conservadora” que talvez não tivesse, para Sergio Buarque, as mesmas univocidade
e homogeneidade com que a distância do tempo e a reconstrução de comentadores a dotou. É curiosa a
evolução da leitura de Raízes do Brasil por Sergio da Mata, que vale comentar de passagem para mostrar
como o problema da filiação teórica do livro não é facilmente resolvido mesmo pelos comentadores mais
experientes e argutos. Em artigo anterior ao citado, diz-se de certo trecho de Raízes do Brasil que
“poderia ter sido assinado pelo próprio Weber, caso lhe fosse dado conhecer a realidade brasileira”,
ainda que, no juízo do autor, a fortuna crítica tenha visto no livro “mais Weber do que foi efetivamente
o caso”. MATA, Sergio da. Weberianismo tropical: Caminhos e fronteiras da recepção da obra de Max
Weber no Brasil. R. IGHB, n. 174, v. 460 jul/set 2013, p.83. Posteriormente, o mesmo autor parece
chegar a uma solução mais sintética, afirmando que Raízes é um livro de estrutura “polinucleada” e que
“de nada que Sergio Buarque tenha escrito pode-se dizer que tenha sofrido influência preponderante de
um autor ou de uma teoria social”, embora persista filiando o livro a uma matriz “antiliberal”. MATA,
210

(o parágrafo de abertura, o fim do capítulo I e o parágrafo de conclusão são os mais


salientes nesse sentido) sugerem um investimento intenso, provavelmente consciente,
da argumentação na morfologia cultural de Spengler. Ambas as referências nominais
aos autores por outro lado, são bastante marginais à argumentação central do texto. Os
leitores mais acostumados com o estilo intelectual de Sergio Buarque sabem que ele
tinha o hábito de aludir a ideias de outros pensadores sem explicitar sua procedência –
como é normal, aliás, para um pensador cuja erudição ultrapassou o estágio escolar e
já foi realmente incorporada ao seu repertório individual, de modo que mesmo a
reprodução de ideias altamente complexas pode ser, em certos casos, inconsciente. Em
Sergio Buarque, a citação nominal não é o melhor método de mapeamento de
influências, o que dificulta um pouco esse trabalho e torna-o até, em parte, ocioso, pois
uma leitura mais atenta da lógica própria do texto acaba revelando um rendimento
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interpretativo maior. Na atribuição de “influências”, o método mais seguro é a


aproximação por afinidades entre lugares-comuns e símiles teóricos empregados. Se
voltarmos ao “interlúdio”, porém, veremos que esses lugares-comuns são tão
difundidos nas expressões intelectuais alemãs que é muito difícil falar com certeza em
autores específicos.
Há bons motivos, mesmo assim, para crer que, no caso dessas importantes
passagens, a recepção de Spengler se mostra mais clara e decisivamente no livro.
Quando se destaca que as culturas são organismos cujas formas podem ou não ser
compatíveis com certos tipos de instituições, que só podem ser assimiladas de acordo
com seus “quadros de vida”, lembrando que o Brasil partilhava com Portugal uma
“alma comum”, há uma linguagem altamente reminiscente da Decadência do Ocidente,
onde noções de “alma” (Seele), “forma” (Form) e “quadro de vida” (provavelmente
uma versão de Weltbild 47 ) são essenciais a uma teoria da história morfológica, de

Sergio da. Relendo os clássicos em época de crise: Raízes do Brasil, Os donos do poder e as anomalias
da consciência histórica brasileira. Cadernos da escola do legislativo, v. 19, n. 32, jul/dez 2017, p. 16,
26.
47
Lebensbild ocorre apenas uma vez no primeiro volume Decadência do Ocidente (p. 551; no caso,
Lebensbildern), em passagem onde Spengler afirma que o “cuidado” [Sorge], ou seja, um sentimento do
tempo que busca o passado histórico com interesse e identifica no futuro uma tarefa. Essa noção
teleológica e fatalista do tempo deveria culminar num “terceiro império” (dritte Reich). A mesma palavra
ocorre duas vezes no segundo volume, em passagens menos decisivas (p. 821, 836). Weltbild, em
compensação, é muito mais abundante. A paginação se refere à edição alemã de 1972. SPENGLER,
Owsald. Untergang des Abendlandes. Umrisse einer Morphologie der Weltgeschichte. 2 Bde. Munique:
211

inspiração declaradamente goethiana. Para Spengler, todos os fenômenos da cultura


são regidos por leis histórico-orgânicas. Da mesma maneira, a observação, feita no
parágrafo final de Raízes, de que “[o] essencial de todas as manifestações, das criações
originais como das coisas fabricadas, é a forma”, e de que “[a] realização completa de
uma sociedade também depende de sua forma”48 torna pelo menos plausível a hipótese
de um forte componente spengleriano no estilo de análise do livro, ou, pelo menos,
alguma incorporação, ainda que relativizada, do autor. Mas é difícil imaginar que
Sergio Buarque pretendesse levar sua leitura de Spengler às últimas consequências.
Basta consultar o primeiro capítulo da monumental Decadência do Ocidente49 para
constatar que a teoria de Spengler, que identifica a “civilização”, estágio histórico
materialista, imperialista e antifilosófico correspondente à decadência das culturas,
como o destino fatal da cultura do Ocidente, não admite as sutilezas da argumentação
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de Raízes do Brasil – em especial, a ideia de um futuro aberto, que contraria sua rígida
teoria da História .
A ideia de uma interpretação morfológica da História e do social é também
própria da filosofia social de Georg Simmel, que se faz presente no segundo capítulo
com a figura do “aventureiro”. Também no pensamento simmeliano cumprem papel
preponderante os termos alma (Seele) e forma (Form) – mas não Weltbild, que não é
um termo típico do vocabulário simmeliano e costuma denotar especificamente a visão
de mundo de algum pensador individual50. Uma linguagem similar, que conjuga as
noções de forma e vida, aparece igualmente nos escritos do jovem Georg Lukács,
especialmente A alma e as formas e a Teoria do romance. É possível, embora não certo,
que Sergio Buarque tivesse lido alguma dessas obras, tendo em vista sua admiração

Deutscher Taschenbuch Verlag, 1972. Weltbild é igualmente frequente e decisivo em outra referência
vitalista de Raízes do Brasil, O Espírito como antagonista da alma de Ludwig Klages; no mesmo livro,
Lebensbild aparece apenas uma vez (em 1477 páginas), no capítulo sobre a “imagem de mundo
pelagiana” [Das Weltbild des Pelasgertums] como “quadro de vida originário” [ursprüngliches
Lebensbildes]. KLAGES, Ludwig. Der Geist als Widersacher der Seele. Bonn: Bouvier Verlag, 1982,
p. 1360.
48
RB, p. 160.
49
Cf. SPENGLER, Oswald. Decline of the West. Form and actuality. Nova York: Alfred Knopf, 1926,
p. 3-50.
50
Por exemplo, no “excurso” ao primeiro capítulo da Sociologia, “das Kantische Weltbild” [a imagem
de mundo kantiana; trad. fr. “l’image kantienne du monde”]. SIMMEL, Georg. Sociologie. Études sur
les formes de la siocialisation. Paris: PUF, 2013, p. 63.
212

pelas Considerações de um apolítico, onde o crítico húngaro é referido elogiosamente


por Thomas Mann como um intérprete excepcional de sua obra51. O certo é que toda
essa constelação vocabular vitalista se fazia intensamente presente na atmosfera
cultural alemã à época da estada de Sergio Buarque em Berlim em 1929-31. Com a
derrota alemã na Grande Guerra, havia um renovado interesse por alternativas vitalistas
e irracionalistas às ideias e valores do progressismo liberal e do racionalismo – valores
e ideias que, mobilizados na propaganda da Entente contra os Impérios Centrais, eram
objeto, mais do que nunca, de acentuado descrédito na Alemanha52. Mas uma leitura
atenta de Raízes do Brasil mostra que os pensadores irracionalistas não são os únicos
que se destacam no quadro teórico do livro. Seria preciso ignorar, por sinal, a
reverência e relativa abundância com que Max Weber, “o mais eminente sociólogo
moderno”53, é referido já na primeira edição.
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Por outro lado, não há como deixar de notar, nessas mesmas passagens, de modo
mais geral, aquilo que Carl Schmitt considera, em seu livro sobre o Romantismo
político, o núcleo formal de toda teoria política conservadora – que surge, na opinião
do jurista, com Burke, Bonald e Maistre, na esteira da reação à Revolução Francesa –
isto é, a crença em que as instituições políticas são expressão da realidade social e
cultural e de dinâmicas já existentes, e que toda tentativa sistemática, “geométrica” de
tentar conformar a realidade a princípios positivos sem valência corrente, “orgânica”,
há de fracassar 54 . Schmitt repete, quase obsessivamente, nas suas de críticas ao
liberalismo e ao romantismo – além da já citada, também se encontram formulações no
mesmo espírito na Teologia política e no Conceito do político, (esse diretamente
referido em Raízes) – que o Estado e sua organização precisam expressar uma decisão

51
Considérations d’un apolitique, p.94. Mann se refere ao ensaio “Burguesia e l’art pour l’art: Theodor
Storm”, no qual é discutida a relação da burguesia alemã com a arte. Cf. LUKÁCS, Georg. A alma e as
formas. Belo Horizonte, Autêntica, 2015, p. 99-128. Note-se, considerando o problema anteriormente
discutido dos conceitos de “burguês” e “burguesia” em alemão, que o título original é, de par com a
distinção anteriormente assinalada entre Bürger e Bourgeois, Bürgerlichkeit, e não Bourgeoisie – e nem
Bürgertum, que denominaria a classe burguesa. O que Lukács está discutindo neste texto, mais
precisamente, é a condição burguesa (da classe média alemã) como forma de vida e as formas artísticas
correspondentes, e não uma “classe burguesa” reificada como sujeito da criação artística. Bürgerlichkeit
é também o título do capítulo das Considerações de Mann onde aparece a referência a Lukács, que a
tradução francesa consultada verte por “bourgeoisisme”.
52
Ver MATA, Sergio da. Tentativas de desmitologia, cit.
53
RB, p. 114.
54
Carl Schmitt, Political Romanticism, cit., p. 109-115.
213

em favor de uma forma existencial e contra algum inimigo; essa decisão se baseia na
avaliação de que o inimigo é uma ameaça à forma de vida da comunidade assim
definida55 . Sem essa distinção, não há uma comunidade política realmente forte. A
noção da península Ibérica como uma cultura indecisa entre a Europa e a África até a
época da expansão marítima talvez aponte para essa distinção fundamental, assim
como toda a preocupação de Raízes com a inconsistência da ideologia liberal, que, ao
não “decidir”, acabou simplesmente destruindo a forma antiga de dominação sem nada
pôr em seu lugar, no século XIX. Mas nada há no texto que autorize inequivocamente
uma identificação positiva de Sergio com o autoritarismo apregoado por Schmitt.
Estranho, além disso, é que nada, ou muito pouco, em Raízes ou em outros escritos de
Sergio, nos permite entrever qual seria o conteúdo desse conservadorismo básico.
Certamente não seria o liberalismo, nem algum modernismo reacionário. Talvez Sergio
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acreditasse ser possível uma posição política organicista à esquerda, ou pelo menos
vagamente progressista. Parece, na verdade, que sua ideia de uma estrutura política
orgânica era em grande medida indiferente a rótulos políticos típicos da era liberal, e
que ele não estava tão interessado assim no conteúdo das soluções ao impasse político
entre liberalismo e autoritarismo, mas sobretudo na garantia de que uma forma própria
e nacional de cultura emergisse. Mesmo admitindo que essa forma ainda não estava à
disposição, Sergio parece querer antes de mais nada convidar, com seu livro, os
intelectuais e políticos ao pensamento, a um pensamento verdadeiramente original, mas
ao mesmo tempo ajustável ao “natural inquieto e desordenado” e o “ritmo espontâneo”
do povo brasileiro. Nesse sentido, Raízes do Brasil não é tanto um livro político, mas
uma proposta pedagógica para o desenvolvimento de elementos para uma forma de
organização que assegurasse uma transição relativamente pacífica para o mundo
moderno. O certo é que, ao menos formalmente, há, inegavelmente, um fundo
conservador nessa proposta. Nisso, Sergio repete, de fato, o tipo de disposição política
de alguns dos grandes pensadores da Bildung. Engana-se, porém, quem procure extrair

55
Sobre a distinção amigo-inimigo, v. SCHMITT, Carl, The concept of the political, esp. cap. 2, p. 25-
7; sobre a fundação de toda comunidade política soberana na capacidade de tomar a “decisão” sobre o
conteúdo dessa distinção e sobre a declaração de guerra, v. cap. 3 da mesma obra, p. 27-37, e, do mesmo
autor, Political theology, esp. cap. 2, p. 16-35. Lapidar, nesse sentido, é também a frase de abertura da
Teologia política: “Soberano é aquele que decide sobre a exceção” (Ibid., p. 5).
214

de Raízes do Brasil uma teoria orgânica do Estado, imaginando que o autor tivesse a
intenção de “insinuar” uma base para um desenvolvimento imediatamente posterior a
seu livro. Apesar da sombria presença de Carl Schmitt em momentos decisivos da
argumentação do livro e de outros indícios de que ele teria, no mínimo, subestimado
seriamente os horrores de que era capaz o fascismo europeu56, a reação reticente aos
pensadores políticos autoritários que aproveitaram Raízes do Brasil para legitimar o
Estado Novo, extraindo do livro uma teoria do “Estado orgânico”, junto a seus esforços
por retirar do livro indícios que sustentassem semelhantes conclusões, parecem indicar
na verdade que ele alimentava, às vésperas do Estado Novo, uma ingênua fé na
possibilidade de que seu livro não seria aproveitado por nenhuma corrente política já
articulada, ou então, que o Brasil seria capaz de gerar alguma “terceira via” original e
não autoritária ao fascismo e ao liberalismo57. Nesse sentido, a leitura que realmente
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compreendeu o conteúdo “político” de Raízes com mais agudeza foi a de Antonio


Candido, que percebeu que o livro é político somente na medida em que procura
instigar uma postura de curiosidade intelectual, e não de repulsa normativista, diante
da formação brasileira.

56
Há ampla evidência disso. Uma investigação sistemática, embora um pouco parcial, é a de Sergio da
Mata em “Tentativas de desmitologia” (2016, cit.). Da Mata não chega a se debruçar sobre os dois
exemplos mais preocupantes. Uma resenha bastante elogiosa do Conceito do político de Carl Schmitt
(RSBH, p. 298-301, texto originalmente publicado na Folha da Manhã, 18 jun 1935) onde o “sábio
professor da universidade de Bonn” é saudado como um desmistificador do “desconhecimento
lamentável do fenômeno político” (p. 300) pelo liberalismo. Ainda mais desconcertante é o que se lê na
resenha do Mito do século XX de Alfred Rosenberg (EC, I, p. 55-8, texto originalmente publicado na
Folha da Manhã, 19 dez 1934), esse um inequívoco ideólogo do nazismo. Uma leitura cuidadosa desse
texto que a resenha, que elogia a “furiosa aplicação” do autor, revela um distanciamento quase
etnográfico diante do pensamento nazista que, em retrospecto, é, no mínimo, censurável: “Seria vão
destacar tudo quanto nos pode oferecer de pitoresco ou de extravagante o livro do famoso teórico do
nacional-socialismo, ou tentar controlar as suas opiniões científicas frequentemente falsas ou duvidosas.
Porque a verdade é que sua obra não deve ser encarada apenas como repositório de opiniões individuais,
mas antes de tudo como a expressão autorizada de um movimento que empolgou e dominou toda uma
grande nação” (p. 58). Sergio nunca dá, porém qualquer indicação de simpatia positiva pelo nazismo.
Entre os dois textos citados, ele publicou na mesma Folha da Manhã (17 mar 1935, reimpresso em
RSBH, p. 294-7) o texto sobre Thomas Mann, ao final do qual se lê que “recentemente assistimos à sua
luta heroica contra o movumento político que ia triunfar em seu país, luta que o levou a sofrer todos os
vexames e finalmente o exílio” (p. 297). Reconhecendo o “heroísmo” de Mann, Sergio Buarque nem
por isso parecia ter a disposição de denunciar inequivocamente seus inimigos.
57
Para as apropriações de Raízes por intelectuais autoritários, ver Feldman, Clássico por
amadurecimento (cit.), especialmente o capítulo “Raízes do Estado Novo” e Schlegel, cit. Para o
“ocultamento” do organicismo de 1936 nas revisões, ver, além dos dois trabalhos já citados, Eugênio
(2011).
215

Talvez essa postura possa ser mais bem compreendida à luz de uma observação
de Georg Lukács sobre o humanismo clássico alemão. O crítico húngaro notava que a
situação periférica da Alemanha permitiu aos artistas e pensadores uma posição
observadora inicialmente entusiasmada, que depois seria substituída por um ceticismo
quanto ao processo revolucionário francês (especialmente em sua fase jacobina),
mesmo reconhecendo que o mundo burguês e a democracia que despontavam eram
inevitáveis. No plano das formas artísticas, isso se desdobrava numa problemática da
qual não é difícil reconhecer ecos em Raízes, isto é, um privilégio da adequação das
formas a critérios de harmonia e compatibilidade morfológica sobre juízos de valor –
posição que, naturalmente, era a mais conveniente para a elite de letrados que
protagonizou o humanismo clássico alemão e, no caso de Humboldt, a construção do
Estado prussiano.
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[Na primeira metade do século XIX, a] mudança da situação mundial obriga a recolocar
em questão os problemas da forma literária. Mas por ocasião de semelhantes “tournants”,
semelhantes enriquecimentos do conteúdo social, nasce sempre para a arte o perigo de
uma dissolução das formas. A realização estética específica de Goethe e Schiller é
justamente a de ter assimilado a riqueza do novo conteúdo, a de ter exprimido seu
movimento, conservando, não obstante, a pureza clássica das formas, e assegurando
mesmo o seu progresso.58

Essa preocupação, tanto política como estética, com a estabilidade e conservação


das formas – que é condição para o seu “progresso” ou “evolução” virtuosa – é
extremamente presente em Raízes do Brasil, onde o diagnóstico de exaustão de formas
antigas (como as ditaduras, o Santo Ofício e o ideal de obediência) conduz a um
imperativo em descobrir formas novas que não representem ameaças à pouca ordem
preservada inercialmente (como é o caso das formas políticas do liberalismo). Note-se,
aliás, que Sergio Buarque nunca chega a descartar esse paradigma organicista, que
continua a endossar até o final dos anos 50, como se pode ver neste raro trecho
especulativo de Caminhos e fronteiras, publicado em 1957. Trata-se do parágrafo de
abertura do capítulo “Iguarias de bugre”:

Para a análise histórica das influências que podem transformar os modos de vida de uma
sociedade é preciso nunca perder de vista a presença, no interior do corpo social, de

58
LUKÁCS, Georg. O Humanismo Clássico Alemão: Goethe e Schiller. In: Ensaios sobre literatura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 183.
216

fatores que ajudam a admitir ou a rejeitar a intrusão de hábitos, condutas, técnicas e


instituições estranhos à sua herança de cultura. Longe de representarem aglomerados
inânimes e aluviais, sem defesa contra sugestões ou imposições externas, as sociedades,
inclusive e sobretudo entre povos naturais, dispõem normalmente de forças seletivas que
agem em benefício de sua unidade orgânica, preservando-as tanto quanto possível de
tudo o que possa transformar essa unidade. Ou modificando as novas aquisições até o
ponto em que se integrem na estrutura tradicional.59

O trecho reproduz, com um pouco mais detalhe e refinamento, as mesmas ideias


presentes no parágrafo final do primeiro capítulo acima transcrito. Aqui, o elemento de
novidade, ou talvez de depuração do argumento, está nas “forças seletivas”, que dão
uma tonalidade mais ativa e autônoma para aquilo que, na página 15 de Raízes do
Brasil, ficava passivamente exprimido como a “possibilidade de ajuste” aos “quadros
de vida” da cultura. É preciso notar, aliás, que esse organicismo é agnóstico quanto ao
“lado” de que fala: no trecho acima transcrito Sergio está falando, não mais da cultura
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adventícia dos portugueses, mas dos povos originários da América – na sequência,


começa uma discussão sobre as técnicas indígenas de produção de mel.

2. Natureza e Arte

No que diz respeito à evolução das formas culturais já no ambiente americano, o


segundo capítulo, “Trabalho & Aventura”, que é onde a narrativa de Raízes do Brasil
de fato chega a este lado do Atlântico, é especialmente significativo. Pode-se dizer que,
apesar de todo o justo destaque que se costuma dar à contraposição dos “tipos” do
aventureiro e do trabalhador, é aqui que vamos ver em maior evidência a aplicação do
esquema morfológico da cultura desenhado no final do primeiro capítulo – e que aquela
oposição é na verdade um pretexto para o destaque da forma cultural portuguesa. Assim
como se dera no primeiro capítulo com a cultura ibérica com relação ao mundo “além-
Pirineus”, dessa vez ibéricos são contrastados com outros empreendimentos de

59
HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p.
67. Como a primeira parte do livro é a reprodução, com poucas alterações, de um texto publicado nos
anais do Museu Paulista em 1949 intitulado “Índios e mamelucos na expansão paulista”, é possível que
o texto já estivesse redigido a essa época. A crise sanitária impediu que, até o momento da revisão do
presente estudo, um exemplar dessa obra pudesse ser consultado para averiguar esta informação. De
todo modo, o certo é que Sergio Buarque considerava essa formulação uma expressão adequada de seu
pensamento ainda naquela época.
217

colonização europeia do trópico, e começa a despontar a diferença também entre


portugueses e castelhanos, à qual Sergio Buarque vai se ocupar com mais vagar no
capítulo IV. Pode-se dizer, com base no que diz o próprio Sergio Buarque, que cada
cultura invasora procura, a seu modo, reproduzir a sociedade metropolitana em novo
ambiente, e o que determina o sucesso ou insucesso dessas empreitadas é a interação
dessa forma no novo contexto. No capítulo IV lê-se que os espanhóis pretenderam
“fazer do país conquistado um prolongamento orgânico do seu”60 e, já em “Trabalho &
Aventura”, encontramos essas duas afirmações: uma, sobre os holandeses, que
aplicaram um “generoso empenho de fazer do Brasil uma extensão tropical da sua
pátria europeia”, que no entanto “sucumbiu desastrosamente” 61 ; a outra se refere,
finalmente, aos portugueses, que foram “inexcedíveis” na tarefa de “recriar aqui o meio
de sua origem”62.
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O destino de cada uma dessas tentativas está intrinsecamente ligado ao estilo de


racionalidade correspondente a cada cultura nacional europeia, ou, conforme se lê no
próprio livro, suas “determinantes psicológicas”63. A forma cultural terá assim de se
ajustar com as formas da natureza, ou, mais exatamente, do novo meio onde se procura
adaptar. Os portugueses mostraram ser os “portadores naturais” da “missão histórica”
de “conquista do trópico para a civilização” – eram eles, de todos os europeus, o povo
mais bem “armado para se aventurar à exploração regular e intensa das terras próximas
à linha equinocial”64. O que há de “natural” no estilo de colonização português? Ele irá
replicar os processos da natureza, e isso é ressaltado em todos os momentos mais
decisivos para a argumentação de Raízes em que há algum tipo de comparação entre
estilos coloniais de diferentes nações europeias. Na verdade, ela como que delega à
natureza toda a lógica de seu processo de reprodução – e essa é a excepcionalidade
portuguesa65. Antes de entrar na comparação entre culturas individuais, Sergio Buarque

60
RB, p. 66.
61
RB, p. 36.
62
RB, p. 25.
63
RB, p. 20.
64
RB, p. 19.
65
O “naturalismo” português e sua insuficiência nos tempos modernos, na opinião de Sergio Buarque,
foram percebidos pela primeira vez, salvo engano, por Jacques Leenhardt. Nesse mesmo texto,
Leenhardt atribui a análise da mentalidade portuguesa em Raízes a Werner Sombart, autor relativamente
pouco discutido na fortuna crítica de Raízes. LEENHARDT, Jacques. Frente ao presente do passado: as
218

propõe a oposição entre os estilos de pensamento aventureiro e trabalhador, já bastante


trabalhadas na fortuna crítica de Raízes do Brasil. Os dois “tipos” são, nas palavras de
Sergio, “princípios que se combatem de morte e que regulam diretamente as atividades
dos homens”. É preciso ressaltar desde já que esses princípios não são inclinações
psicológicas individuais, mas, conforme se lê, pertencem às “formas de vida
coletiva”66. Resumindo o raciocínio ao essencial, pode-se dizer que o aventureiro é um
estilo de pensamento centrado em fins, e o trabalhador, em meios; a dimensão
privilegiada na mentalidade aventureira é o espaço e, de modo geral, a extensão,
enquanto a do trabalhador é a intensidade e o tempo – a aventura cultiva como ideal a
expansão, enquanto o trabalho tem por móvel a aspiração. Não admira, portanto, que o
aventureiro esteja mais vocacionado para a conquista de vastos novos territórios: “[n]a
obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao espírito de trabalho, no
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sentido aqui compreendido, um papel quase nulo”, pois a “época predispunha aos
gestos e às façanhas audaciosas [...] e não foi acaso o fato de se terem encontrado neste
continente, empenhadas nessa obra, justamente as nações onde o tipo do trabalhador
[...] encontrou ambiente menos propício” 67 . É assim que se dividem as principais
nações colonizadoras da Europa em dois grupos, cuja inclinação para cada tipo decide
a sorte de sua empresa colonial: trabalhadores eram os holandeses e franceses, que
fracassaram, ao menos em comparação com seus concorrentes aventureiros ingleses,
portugueses e espanhóis.
É só depois de traçada essa linha inicial que Raízes passa à comparação entre os
diferentes empreendimentos colonizadores, tendo em mente a melhor especificação do
tipo português, comparação que, no caso espanhol, só será de fato desenvolvida
inteiramente no quarto capítulo. O bom entendimento da noção de “forma” cultural
levado a cabo, bem como toda a teoria social e histórica implicadas, fica bem mais
claro, se isolarmos cada uma das unidades que compõem o procedimento contrastivo
que, em Raízes do Brasil, serve de base à avaliação do desempenho dos
empreendimentos colonizadores. Esse isolamento realça alguns elementos teóricos que

raízes portuguesas do Brasil. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Um historiador nas fronteiras, cit., p.89-
92.
66
RB, p. 20.
67
RB, p. 22.
219

poderiam, caso se analisasse o texto seguindo a ordem de seu andamento, passar


despercebidas.
O caso português, que na verdade se espraia praticamente por todo o livro, ou,
mais estritamente, quatro capítulos de “Trabalho & Aventura” até “O homem cordial”,
requer uma seleção interna de momentos decisivos. O essencial da argumentação em
torno do português começa, curiosamente, com uma aproximação com os ingleses, cuja
“indolência” já denunciava o deão Inge. A citação longa é compensadora, na medida
em que compõe todo um rico painel psicológico, no qual a forma mental é reduzida
com densidade máxima através de uma quantidade mínima de exemplos:

Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem compensação
próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo, evidentemente, um estímulo
às ações aventurosas, não deixa de constituir, com notável frequência, o aspecto negativo
do ânimo que gera as grandes empresas, como explicar, sem isso, que os povos ibéricos
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mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens materiais em outros continentes? “Um
português – dizia o viajante Murphy, em seu livro “Travels in Portugal in the years 1789
and 1790” – “pode fretar um navio com menos dificuldade do que lhe é preciso para
dirigir seu cavalo de Lisboa ao Porto”. E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos
honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica do povo de
nossa erra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura? [...]
Não raro nossa capacidade de ação esgota-se nessa procura incessante, sem que a
neutralize uma violência vinda de fora, uma reação mais poderosa; é um esforço que se
desencaminha mesmo sem encontrar resistência, que se aniquila no auge da força e que
se compromete sem motivo patente.68

Essa forma de pensar, que quase se resume a uma certa sistemática de


organização dos sentidos não muito mais sofisticada do que as primeiras figuras da
consciência da Fenomenologia do espírito, não deixou de constituir, em metáfora
reveladoramente musical, “o elemento orquestrador por excelência”69 da colonização
portuguesa da América. Uma tal racionalidade do “fim” e do desfrute, esse espírito do
“grande voo” e da conquista rápida do galardão, foi uma das obsessões da vida
intelectual de Sergio Buarque de Holanda: ela pode ser identificada desde a crítica ao
dirigismo “construtivista” de Tristão de Ataíde, até Elementos formadores da
sociedade portuguesa na época dos Descobrimentos, até Visão do paraíso, até, talvez,

68
RB, p. 23-4.
69
RB, p. 24.
220

no limite, a análise do estilo de governo de d. Pedro II em Do Império à República70,


essa racionalidade se oporia, de certo modo, ao princípio tecnocrático e “utilitarista”
da racionalidade do “trabalho”, não deixa de ter ela própria uma lógica utilitária interna,
utilidade que garante sua eficácia, e até sua excelência, em condições particulares. Essa
lógica, um pouco análoga à famosa “ciência do concreto” lévi-straussiana, pode ser
denominada a “lógica plástica”, ou ainda uma lógica da “adaptação como
acomodação”. Noutras palavras, essa seria uma disposição da qual não se pode dizer
que seja propriamente indolente, mas que é, isso sim, eminentemente passiva, reativa,
acomodatícia e, o que é talvez o mais importante, imitativa. Toma-se o estado das
coisas, tal como elas se apresentam, como o “natural”, faz-se do natural uma rotina de
imitação, ou integração à natureza:
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Assim foram nossos primeiros colonos: instrumentos passivos, sobretudo, aclimavam-


se facilmente, aceitando o que lhes sugeria o ambiente, sem cuidar de impor-lhe normas
fixas e indeléveis. Mesmo comparados aos espanhóis, destacavam-se eles sob esse
aspecto. Na maior parte dos domínios que possuía na América, o espanhol não se
identificou a tal ponto com a terra e a gente da terra; antes superpôs-se a uma e a outra.
Entre nós, o domínio europeu foi brando e mole, menos obediente às regras e
dispositivos, mais conforme à lei da natureza. A vida foi aqui incomparavelmente mais
suave, mais acolhedora de dissonâncias sociais, raciais, morais e até religiosas. Os
nossos colonizadores foram, antes de tudo, homens que sabiam repetir bem o que estava
feito ou o que lhes ensinara a rotina. Bem assentes no solo não tinham exigências mentais
muito grandes e o Céu parecia-lhes uma realidade excessivamente espiritual, remota,
póstuma, para inferir nos seus negócios de todos os dias.71

É uma razão orgânica, eminentemente intuitiva, apegada ao concreto e pouco


imaginosa, inimiga, estranha até, ao “espírito” e às “exigências mentais” do “Céu”. O
que lhe dá seu elemento mais excelente são duas coisas: primeiro, uma afinidade eletiva
“natural” entre alguns processos de reprodução econômica e cultural já existentes na
cultura portuguesa em contexto metropolitano, como se a forma já estivesse
vocacionada para a expansão americana em seus “conteúdos”:

Não é certo que a forma particular assumida pelo grande domínio agrícola fosse uma
espécie de manipulação original, fruto de uma vontade criadora e um pouco arbitrária.
A verdade é que ela nos veio pronta e acabada do Reino. Aqui apenas se apurou devido

70
V., esp. o livro “O pássaro e a sombra” em HGCB, t, 2, v 7.
71
RB, p. 26-7.
221

a condições peculiares como a abundância das terras, a escassez dos gêneros, a


necessidade de vigilância contínua contra o inimigo.72

E, além desse elemento de “predestinação”, o que é talvez o mesmo, pois


diretamente conformada pelos antecedentes históricos da formação portuguesa
imediatamente antes da expansão marítima, uma plasticidade que, numa sutileza de
ajustes à realidade, percebe analogias que possibilitam um rápido ajuste ao “meio
hostil”, numa verdadeira redução da “realidade” aos seus elementos puramente
formais, quase que à maneira de um etnólogo moderno instado a explicar uma cultura
estranha em termos próprios. Assim como, no perspectivismo ameríndio, “o sangue é
a cerveja do jaguar” 73 , a inteligência portuguesa vê o que lhe falta de sua terra,
depreendendo-o da forma como se apresenta à sua frente, sob outro aspecto: “Onde
lhes faltasse o pão de cada dia, aprendiam a comer e a prezar o pão da terra, e com tal
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requinte, que [...] a gente de tratamento só consumia farinha de mandioca fresca, feita
no dia”, também passaram a dormir em redes, beber fumo; venciam os sertões incultos
navegando em canoas, e assim por diante. O mais importante, talvez, é o que há de
mais sinistro nisso tudo, isto é, na ausência de disposição para o tipo de lavoura que se
iria praticar no trópico, os portugueses se valeram daquilo de que já vinham lançando
mão na metrópole: a escravização de africanos. É exatamente a isso que se refere Sergio
Buarque quando fala na “forma particular assumida pelo grande domínio agrícola”,
imediatamente após, e sem mudança de parágrafo, a observação de que aqui “bastou
que se desenvolvesse em grande escala o processo já instituído no Reino, onde o negro
da Guiné era largamente utilizado nos trabalhos rurais”74. Essa tecnologia econômica,
acrescentada à tecnologia sociocultural da mestiçagem, em nítido empréstimo de
Gilberto Freyre, que aliás já usar o “plástico” como categoria-chave de sua
interpretação do Brasil, é, provavelmente o elemento mais decisivo da fase de
adaptação ao trópico. “O sistema patriarcal”, escreve Freyre, no prefácio à primeira
edição de Casa-grande & Senzala (1933) se caracterizava pela “plástica
contemporização” entre a adaptação ao “meio físico e principalmente bioquímico” e a

72
RB, p. 26.
73
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A
inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 361.
74
RB, p. 25-6.
222

imposição de “formas e acessórios estranhos de cultura, que [...] permitem [ao


colonizador] conservar-se o mais possível como raça ou cultura exótica”75.
À diferença, talvez, de Freyre, cujas opiniões nem sempre são facilmente
discerníveis em meio a sua característica prolixidade, Sergio Buarque reconhece sérias
desvantagens no tipo de sociedade assim gerado. Que não chega, talvez, a ser uma
sociedade, mas um conjunto humano distribuído por grandes latifúndios, submetido
quase todo ao arbítrio despótico dos patriarcas. A passagem abaixo é, talvez, a mais
eloquente no sentido de desfazer a impressão de que, quando Sergio Buarque fala em
“natureza” e nas vantagens do “orgânico” na adaptação ao trópico, por menos crítica e
por mais relativista que seja sua disposição diante dos problemas humanitários e morais
que deveria suscitar análise da grande lavoura colonial, esses termos assumam um valor
puramente positivo 76 . Eles são, passada a fase inicial de adaptação, extremamente
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negativos, nem tanto segundo critérios morais, mas sobretudo do ponto de vista da
evolução das formações sociais:

Nossa sociedade era, assim, um organismo amorfo e invertebrado, apenas revolvido aqui
e ali, frequentemente, pelas lutas entre facções, entre regionalismo e entre famílias
poderosas, que se disputavam a preeminência ou que tinham contas a ajustar. Nesses
casos, havia agregação fundada em emoções e sentimentos comuns, mas que
desapareciam prontamente, apenas se tornassem supérfluos os laços que associavam
momentaneamente os homens. Assim, o peculiar da vida brasileira por essa época parece
ter sido uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do passional, do irracional,
e uma estagnação, ou antes um afrouxamento correspondente das qualidades
ordenadoras, discriminadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do
que poderia convir a uma população em vias de se organizar politicamente, de acordo
com os conceitos modernos.77

É na sequência que aparece uma passagem onde a forma mental irá se deixar
contaminar pelas consequências dissolventes da escravatura. Uma escravatura, diga-

75
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da família brasileira sob o regime patriarcal.
São Paulo: Global, 2006, p. 35.
76
Há uma tendência da fortuna crítica mais recente, cujos exemplares mais proeminentes são Waizbort
(2011), Feldman (2015) e Schlegel (2017), em identificar em Raízes um estilo de pensamento organicista
filiado a uma tradição conservadora – o que parece perfeitamente amparado pelo texto e pela
argumentação desses comentadores – e daí depreender uma suposta valoração positiva implícita nas
invocações por Sergio Buarque de um vocabulário evocativo do campo semântico da “natureza”. À luz
da análise da presente seção, espera-se demonstrar a pouca plausibilidade dessa interpretação.
77
RB, p. 32-3.
223

se, que, diferentemente da exposição teórica de Hegel, não é superada em “síntese” ou,
conforme a tradução consultada, “suprassunção”, mas que cria uma espécie de
compromisso social onde o trabalho não é verdadeiramente ético e, com isso,
“ascético” e formador, senão que, puramente induzido pela força, exacerba a
repugnância moral por toda dimensão produtiva e criadora, chegando mesmo a
contaminar a cosmologia, que transforma o mundo de “espírito” construtivo em mero
suspiro divino:

A influência dos negros, sensível nessa sociedade, não somente como negros, mais
ainda, e sobretudo como escravos, foi decisiva a tal respeito. Uma suavidade dengosa e
açucarada invadiu, desde muito cedo, quase todas as esferas de nossa vida colonial. A
“moral das senzalas”, sinuosa até na violência e no crime, negadora de todas as virtudes
sociais, contemporizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva,
imperou na política, na economia e na religião dos homens desse tempo. A própria
criação do mundo teria sido entendida por eles como uma espécie de abandono, um
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languescimento de Deus.78

Assim está posta uma segunda faceta da concepção trágica que preside a narrativa
de Raízes do Brasil. A incapacidade de geração de formas construtivas, aquelas que
compõem os “contornos exteriores” da sociedade, está intimamente ligada,
precisamente, ao estilo de pensamento e ação que garantira, anteriormente, o sucesso
da conquista portuguesa. E não é, talvez, por acaso, que, assim como na descrição, no
capítulo I, da “cultura da personalidade”, o trabalho assuma, nessa sociedade, o valor
de situação degradante por excelência, e que essa é, junto àquela, um dos momentos
prefiguradores da aparição, no capítulo V, do “homem cordial”, aquele que vive num
“mundo sem formas” – o trabalho, assim como em Hegel e depois em Marx, parece ser
para Sergio Buarque uma condição que permite o surgimento da realidade
transfigurada do mundo moderno, onde as formas de racionalidade se reorganizaram
de modo a oferecer “quadros de vida” qualitativamente superiores, e inacessíveis a esse
mundo “amorfo e invertebrado” do “passado agrário” brasileiro. De qualquer maneira,
o puro espírito trabalhador não era, de modo algum, condição suficiente ao êxito
colonial nos trópicos, como mostra o caso dos holandeses.

78
RB, p, 33.
224

A experiência holandesa funciona como uma espécie de modelo ideal de


processo colonizador malogrado, até porque, desde o começo do capítulo, fica patente
que um povo trabalhador como o holandês estava pouco vocacionado para a
colonização ultramarina. Logo no começo da descrição do Brasil holandês, porém, vê-
se que era somente “entre aventureiros de toda espécie, de todos os países da Europa
[...] em busca de fortunas impossíveis” que os holandeses logravam recrutar seus
colonos, o que já punha em xeque a integridade da forma cultural que os dirigentes do
processo procuravam reproduzir, porque, na própria Holanda, os homens aptos ao
trabalho conseguiam encontrar facilmente melhores oportunidades 79
. Um dos
problemas do processo, portanto, está em certa antinomia de racionalidades, ou ainda
mesmo, de formas culturais, entre as forças diretoras do processo colonizador, na
metrópole, isto é, a Companhia das Índias holandesa (é difícil pensar em modelo
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colonizador mais “trabalhador” e “racional”, no sentido moderno, do que uma


companhia privada com ações no mercado de capitais) e os colonos que, no próprio
contexto colonial, deveriam implementá-lo. Um elemento problemático, então, não é,
talvez, a própria “forma” cultural em si, mas uma certa integridade interna a sua
configuração no espaço colonial. De todo modo, seria até de esperar certa necessidade
de elementos “aventureiros” num primeiro momento, no sentido de uma “ferramenta”
de implementação inicial. Ocorre, além disso, porém, que mesmo esses elementos
díspares trazidos pela Companhia não puderam se adequar de modo orgânico ao novo
meio, onde seria de esperar, como condição a uma transplantação bem-sucedida,
alguma interiorização dos novos elementos. Aquela população “cosmopolita, instável,
de caráter predominantemente urbano [...] ia apinhar-se no Recife ou na nascente
Mauritsstad”, cristalizando, assim, “de modo prematuro, a divisão clássica”, no
contexto pernambucano, “entre o engenho e a cidade, entre o senhor rural e o
mascate” 80 . Enquanto era regra, na América portuguesa, uma situação de penúria
urbana e esplendor das grandes propriedades rurais, a cidade holandesa “vivia por si”,
com jardins, palácios e instituições públicas que a zona de colonização lusa só iria
conhecer com a chegada da Corte. Mas esse “espírito animador[...] só muito

79
RB, p. 34.
80
RB, p. 34-5.
225

dificilmente transpunha os muros das cidades e não podia implantar-se na vida rural de
nosso nordeste, sem desnaturá-la e perverter-se”. Se olharmos atentamente a disposição
da frase, veremos que o “espírito animador” não pôde se articular à vida rural porque
constituiria uma perversão contrária à natureza daquele ambiente. Natureza, aqui, não
é uma visão oposta à cultura, pois trata-se aqui de uma região já penetrada pelo modelo
português de lavoura açucareira. A “natureza” que reage à conquista holandesa não é
só a vida “selvagem”, mas também a cultura preexistente– que inclui, aliás, os africanos
escravizados e os índios, bem como suas relações com os proprietários luso-brasileiros.
A propensão portuguesa à contemporização cultural e à mestiçagem, bem como outras
contingências – a maior receptividade dos colonizados ao catolicismo e uma maior
facilidade para aprender o português do que o neerlandês – teriam tornado os
portugueses muito mais vocacionados para a colonização do trópico”81. As realizações
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dos holandeses, notáveis em suas expressões mais visíveis nos centros urbanos, não
passavam de uma “grandeza de fachada, que só aos incautos podia mascarar a
verdadeira [...] realidade em que se debatiam.” O “generoso empenho” batavo em criar
no Brasil “uma extensão tropical da pátria europeia” fracassou porque seus agentes
coloniais não souberam, ou melhor, não foram capazes de conceber uma prosperidade
fundada “nas bases que lhe seriam naturais”. E é então que aparece um par de frases
dos mais impressionantes de Raízes do Brasil, que vem contrastar o fracasso holandês
com o sucesso português: “o êxito [dos portugueses] resultou justamente de não terem
sabido ou podido manter a própria distinção com o mundo que vinham povoar. Sua
fraqueza foi sua força.” 82 Aqui, em remissão a uma tópica venerável na tradição
europeia de relatos sobre o Novo Mundo, tópica de algum modo já antecipada pela
citação de André Thevet que abre o capítulo83, a América é apresentada como uma
espécie de “mundo de ponta-cabeça”, onde a força, a força convencional da cultura
“trabalhadora” holandesa, enfraquece, e a aparente fraqueza, paradoxalmente,

81
RB, p. 38-9.
82
RB, p. 36-7.
83
Abaixo da linha equinocial, escreve Thevet nas Singularidades da França Antártica, “o calor tão
veemente do ar extrai o calor natural [dos homens] e o dissipa: e desse modo são quentes somente por
fora e frios por dentro”, enquanto os habitantes das terras frias “têm o calor natural preso e contraído
dentro de si pelo frio exterior que os torna assim robustos e valentes, porque a força e faculdade de todas
as partes do corpo depende desse natural calor”, RB, p. 19.
226

fortalece, e é condição de sobrevivência. Triunfar no meio americano é anular o


“espírito” transformador e abandonar-se ao “natural” – ou, pelo menos, essa é uma
necessidade do período de “transplantação” da “muda” adventícia no período inicial de
aclimatação. É como se o meio, naquele primeiro momento, exigisse, como preço da
própria conquista, uma atitude plástica, como a dos portugueses, isto é, como se, para
entrar na zona tórrida, fosse preciso renunciar à força e ao trabalho e replicar, na
cultura, as formas da natureza. As culturas do trabalho, excessivamente preocupadas
na transformação e submissão do natural a critérios espirituais e, por definição,
contrários à natureza, encontraram aqui somente o fracasso.
É curioso, nesse sentido, o que se vai ler sobre os espanhóis no capítulo IV, na
medida em que há uma aparente contradição com o que se viu com os holandeses. Os
espanhóis revelam-se muito mais voluntaristas, organizados e “espirituais”, em sua
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empresa colonial, do que os portugueses. Deve-se lembrar, porém, que, segundo o


esquema de Sergio Buarque não lhes teria cabido, na maioria das vezes, terras da zona
tórrida – mesmo as povoações próximas da linha equinocial ficavam, no mais das
vezes, em grandes altitudes, o que tornava o clima ameno – curiosamente, ele não tem
nada a dizer sobre as Antilhas francesas, holandesas e espanholas a esse respeito. Além
disso, nada há na descrição do “tipo aventureiro” ao qual pertenceria o espanhol que
lhe atribua alguma espécie de déficit intelectual ou racional (o aventureiro não é o
“ocioso” ou “marginal”; estes são os seus opostos, assim como o rentier se opõe ao
trabalhador), apenas a racionalidade “aventureira” favorece sempre a “conquista” e o
“grande voo”. Pela própria lógica da distinção em sua descrição original, um suposto
esmorecimento vital da sociedade colonial hispano-americana depois do século da
conquista, sutilmente assinalado em certas adversativas e atenuações84 vem confirmar
o que fora dito antes. Mesmo assim, o que importa notar é que o que distingue os
espanhóis dos portugueses é sua relação completamente distinta com a natureza: uma
relação ativa, de conquista, criação, vontade e abstração, elementos que, no espírito

84
“Se não é tão verdadeiro dizer-se que a Espanha prosseguiu até o fim” em seu intuito de “fazer do país
conquistado um prolongamento orgânico do seu”, “o indiscutível é que ao menos o impulso inicial foi
nesse sentido (p. 66-7); “Não se quer dizer que [a] vontade criadora distinguisse sempre o esforço
castelhano e que nele as boas intenções tenham triunfado continuamente sobre todos os obstáculos e
prevalecido sobre a inércia dos homens” (p. 67)
227

espanhol, são elevados até um nível quase absurdo e insano, no qual se pode identificar
certa admiração da parte de Sergio Buarque. Depois de ter caracterizado toda a empresa
colonial portuguesa como acomodatícia e plasticamente aderente ao “natural”, os
espanhóis são destacados justamente como os representantes do “espírito” racional e
conquistador que tem seus maiores prodígios justo na construção daquela unidade
organizacional especialmente débil na expansão colonial portuguesa: a cidade. A
cidade, onde, baseando-se em estudo de Max Weber, Sergio Buarque vai identificar o
locus por excelência de toda administração e, portanto, um fator privilegiado das
iniciativas de conquista de territórios estranhos, é colocada do lado oposto da
“natureza” que os portugueses tão facilmente conquistaram. Lemos, no começo do
quarto capítulo, que a “habitação em cidades é, essencialmente, uma habitação
antinatural; associa-se a uma poderosa manifestação do espírito e da vontade, na
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medida em que estes se opõem à natureza” 85, e, logo mais, que “em nosso próprio
continente”, foi a colonização espanhola que se caracterizou por “uma aplicação
insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre
as terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de povoação estáveis,
permanentes e bem ordenados.”86 Em comparação com os portugueses, os espanhóis
parecem ser uma espécie de aventureiros antinaturais, cuja “fraqueza” não estava na
“força”, e cuja força certamente não estaria na fraqueza. A força, porém, parece ter
prevalecido sobretudo por estar animada por uma espécie de delírio afanoso:

Já à primeira vista, o próprio traçado dos centros urbanos na América Espanhola


denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem
agreste: é um ato definido da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela
sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõem-lhe antes o acento voluntário da linha
reta. O plano regular não nasce, aqui, nem ao menos de uma ideia religiosa, como a que
inspirou a construção das cidades no Lácio87 e, mais tarde, a das colônias romanas, de

85
RB, p. 59.
86
RB, p. 61.
87
Não há referência, mas essa observação é quase certamente extraída do capítulo da Decadência do
Ocidente onde Spengler descreve as “almas” das diferentes culturas, afirmando a certa altura, em nota
de rodapé, que “o mais antigo plano da Roma Quadrata era um ‘templum’ cujos limites nada tinham a
ver com a construção da cidade, mas estavam conectados com regras sacras” (p.185). Adiante, há outra
observação com correspondência cerrada com essa passagem e outra, adjacente, onde Sergio descreve a
casa colonial (embora aí ele tome certas liberdades em relação à rigidez da concepção spengleriana de
cultura): “A ideia da família aparece no plano das casas originárias [Grundriß des Urhauses], a forma
interior do tronco [Stamme, isto é, algo como o desenvolvimento intermediário da cultura como processo
228

acordo com o rito etrusco; foi simplesmente um triunfo da aspiração de ordenar e


dominar o mundo conquistado. O traço retilíneo, em que se exprime a direção da vontade
a um fim previsto e eleito, manifesta bem essa deliberação. E não é por acaso que ele
impera decididamente em todas essas cidades espanholas, as primeiras cidades
“abstratas” que edificaram os europeus em nosso Continente.88

Esse é um dos momentos mais característicos do impressionante desembaraço


com que Sergio articula racionalidade e representações mentais com a cultura material
e com o “mundo”. É interessante como, nos espanhóis, a “razão” opera como uma
espécie de possessão demoníaca por um espírito de ação, onde mesmo a religião instiga
os homens a fazer a guerra contra a natureza (é preciso “vencer”, com a razão e a
vontade, a “fantasia caprichosa da natureza”). É uma visão de mundo simetricamente
oposta à portuguesa, no que diz respeito à valoração das coisas do “mundo”: aqui a
fantasia está na natureza, e a verdade está na razão e na vontade e o objetivo dos
homens na terra é “reproduzir na terra a própria ordem cósmica”, chegando à pretensão
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de “intervir arbitrariamente e com sucesso no curso das coisas”, sendo que a “história
não somente ‘acontece’, mas pode ser dirigida e até fabricada”89, fausticamente. Note-
se, aliás, que os espanhóis são, ainda que indiretamente, responsáveis por alguns dos
poucos elementos “racionais” da colônia portuguesa, na medida em que são os jesuítas,
animados pelo espírito do espanhol Inácio de Loyola, “os únicos portadores de uma
organização que se orientava segundo um espírito positivamente construtor”90.
Exemplar da racionalidade “naturalista”, por outro lado, onde a inteligência
humana chega aos melhores resultados por meio de certa congenialidade com os
processos orgânicos, é a igualmente memorável formulação dos princípios diretores da
cidade portuguesa, uma cidade que, por não ser “antinatural”, acaba sendo, por assim

orgânico] no plano de suas aldeias – que depois de muitos séculos e muitas mudanças de ocupação ainda
mostram que raça as fundou – e a vida de uma nação e sua ordenação social no plano – não na elevação
ou silhueta! – da cidade”(p. 194). Na página seguinte, desvenda-se, talvez, a inclusão de Sergio na
passagem citada adiante, com uma referência a uma descrição da silhueta da cidade colonial por Gilberto
Freyre: “Na cidade, o plano é uma imagem dos destinos de um povo; enquanto a silhueta das torres e
cúpulas são testemunhos da lógica dos quadros de vida [Logik im Weltbilder] de seus construtores, das
causas e desígnios últimos de seu mundo” (p. 195). Decline of the West, cit., traduções do autor a partir
da versão inglesa, em cotejo com a alemã (Munique: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1972, resp., para
os trechos citados, p. 237, 250, 251). A opção por verter Weltbild por “quadro de vida” procura
reproduzir a versão que o próprio Sergio Buarque parece dar ao termo.
88
RB, p. 61.
89
RB, p. 65.
90
RB, p. 65.
229

dizer, uma anti-cidade, um estilo de aglomeração humana que está para a cidade
racional espanhola assim como uma paisagem agreste está para um jardim. Até na mais
pura expressão da dominação da razão humana sobre a natureza, o paisagismo, os
portugueses recalcitram em seu naturalismo, e, nas suas cidades, assim como se dá nos
jardins, a semeadura se dá em desalinho:

[A] cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega
a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta confunde-se com a linha da paisagem.
Nenhum rigor, nenhum método, sempre esse abandono característico, que se exprime
bem na palavra “desleixo” – a palavra que o escritor Audrey Bell considerou tão
tipicamente portuguesa como “saudade”, não exprime tanto falta de energia, como a
convicção de que “não vale a pena...” As casas eram semeadas com desalinho, em volta
de uma igreja toda branca e situada quase sempre no lugar mais elevado; com um
desalinho que faz pensar um pouco nesses jardins de Portugal evocados por Gilberto
Freyre, cheios de uma poesia meio selvagem [...] A escolha dos sítios adequados, os
primeiros trabalhos, tudo faziam os portugueses por instinto, ou apenas guiados pela
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rotina e pelo bom senso; se frequentemente acertavam, devem-no mais ao seu engenho
natural ou à experiência, do que à ciência que ensinam os livros ou aos preceitos
consignados em regulamentos.91

Dir-se-ia, talvez, numa antecipação do argumento de Visão do paraíso, que os


portugueses são aristotélicos (ou melhor, escolásticos), enquanto os espanhóis são
cartesianos, um de cada lado da revolução copernicana que, na famosa análise de
Hannah Arendt na Condição humana, inverte o valor da observação direta da
“natureza” na teoria do conhecimento ocidental92.
A fase propriamente moderna dessa revolução, verdadeira transfiguração do
mundo e de todos os axiomas do saber, que começa nos séculos XVI e XVII com o
racionalismo e vai se alastrando até a organização do Estado e da economia nos
processos de “racionalização”, é, depois da caracterização inicial das “culturas”, tal
como se apresentavam no início da colonização, o grande tema de Raízes do Brasil.
Numa expressão talvez insuficientemente ressaltada na fortuna crítica de Raízes do
Brasil, o terceiro capítulo, (“O passado Agrário”, primeira parte) que vai tratar da
supremacia do mundo rural sobre a colônia portuguesa, a abertura do capítulo fala
exatamente no momento em que esse mundo colonial é ultrapassado, ou melhor,

91
RB, p. 62-3.
92
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 260-292..
230

“transcendido”, isto é, superado em movimento ascensional, vencido, ou, em


terminologia hegeliana, “suprassumido”. A frase exata é esta: “1888 é o marco
divisório entre duas épocas – o instante talvez decisivo em toda a nossa evolução de
povo”, instante a partir do qual “a vida brasileira desloca-se nitidamente de um polo a
outro, com a transição para a ‘urbanocracia’’ 93 . Depois de uma rápida revisão das
transições análogas na Argentina e nos Estados Unidos, lê-se que “entretanto,94 para o
Brasil, a data de 1888 tem uma transcendência singular e incomparável.95” A noção de
que as forças diretoras da sociedade, de que o “espírito” tem um lugar físico, de acento
hegeliano, denuncia o tipo de compreensão da mudança histórica aqui operante. Leia-
se, para explicitar esses pressupostos, uma memorável passagem do prefácio à
Fenomenologia do espírito onde a transição entre as épocas é assemelhada ao
nascimento da criança e posta sob o signo do “salto qualitativo” a partir do qual o novo
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surge e o velho, que começava a dar sinais de cansaço, passa a desmoronar, ainda que
seus sintomas superficiais sejam poucos, e só se acelerem com o surgimento de uma
nova luz. A descrição específica da natureza desse processo é a “mudança de figura”
do espírito:

Aliás, não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de nascimento e transição para uma
nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até
hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua
transformação. [...] Na criança, depois de longo período de nutrição tranquila, a primeira
respiração – um salto qualitativo – interrompe o lento processo do puro crescimento
quantitativo; e a criança está nascida [isto é, não é mais feto, mas corpo independente].
Do mesmo modo, o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua
nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu
abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que
ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os sinais precursores de
algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia
do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela então a imagem do mundo novo.96

93
RB, p. 43.
94
Palavra que Sergio Buarque parece empregar no sentido corrente no português europeu, num de seus
típicos arcaísmos que às vezes dificultam a compreensão de seus argumentos, assim como o seu
frequente “posto que” adversativo.
95
RB, p. 44.
96
Hegel, Fenomenologia do espírito, cit., p. 28-9.
231

Novamente, ainda que reproduza em sua concepção da história um tom


caracteristicamente hegeliano, talvez indiretamente adquirido, Sergio impõe certa
moderação ao otimismo progressivo do filósofo. Numa argumentação que pareceria
ecoar antes o pensamento marxista, descreve-se certo descompasso entre as “forças
produtivas” e a estrutura institucional ou “modo de produção”, mas também aqui a
atribuição de uma matriz é problemática, pois, um pouco à maneira da crítica de
Roberto Schwarz às “ideias fora do lugar”97, na avaliação de Sergio Buarque, a elite
dirigente combina impulsos modernizantes com uma “estrutura moral” interna
incompatível com as formas sociais que pretende implementar. Assim, por uma ironia
do destino, é o patriciado rural que, até pela necessidade de assegurar uma tardia
perpetuação de suas formas de vida arcaicas, procura implementar um Estado liberal,
mas o “salto qualitativo” que possibilitaria o funcionamento regular desse mesmo
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Estado não ocorre, por causa da natureza mesma da conformação mental escravocrata:

Durante os primeiros anos da colônia, toda a vida do país concentrava-se decididamente


no domínio rural: a cidade era virtualmente, senão de fato, uma simples dependência
deste. Com algum exagero poderíamos dizer que essa situação não mudou até o
penúltimo decênio do século passado. No Império eram ainda fazendeiros e filhos de
fazendeiros educados nas profissões liberais, os que monopolizavam a política,
elegendo-se e fazendo eleger seus candidatos, dominando os parlamentos, os ministérios
e, em geral, as posições de comando e de responsabilidade, e fundando nesse
incontestável domínio a estabilidade das instituições. A essa gente, que por natureza
deveria ser conservadora e retrógrada, coube mesmo empreender os maiores
movimentos liberais que já se operaram na história do Brasil, e isso desde os nossos
primeiros tempos. Por outro lado, bem antes de se firmar o predomínio decisivo das
cidades, com a vitória final do esforço abolicionista, nunca se cessou de estimular a
introdução em larga escala, no país, dos traços de civilização material mais
caracteristicamente urbanos, sem que isso lhe afetasse em absoluto a estrutura moral e
sem que fosse arruinado o predomínio da casta dos senhores rurais.98

Assim, surge uma forma política “inessencial”, comandada por diretrizes


estranhas ao organismo social. As “formas exteriores” não correspondem a nenhuma
realidade social, mas a construções mentais importadas e adaptadas em soluções de
compromisso desprovidas da organicidade da fase inicial de colonização segundo as
solicitações da “natureza”. Na década de 1850, ocorre certa “febre de progressos

97
Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas, cit.
98
RB, p. 44-5.
232

materiais”, mas essa é frustrada porque o país ainda não estava “amadurecido para
grandes empreendimentos de ordem econômica que lhe alterassem profundamente a
fisionomia”. Esses empreendimentos “não encontrariam [...] em nosso temperamento
e em nossos costumes, um ambiente adequado, não obstante toda a boa vontade de
certas elites”, especialmente na medida em que uma “formação econômica” fundada
na escravidão imprimia à “organização de nossos serviços públicos” um “espírito
retrógrado”99. Aqui Sergio repete em boa medida os argumentos de Joaquim Nabuco
no Abolicionismo, quando fala das consequências ideológicas de serem as “funções
públicas” um “apanágio quase exclusivo” da classe de proprietários rurais. Mas a noção
nabuquiana de uma mentalidade escravista e retrógrada a presidir o aparato estatal,
tornando-o ineficiente, é complementada aqui com um juízo patente da incapacidade
criadora das elites escravistas, cujo próprio nacionalismo seria “negativo, feito de
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ressentimentos” de modo que “não se recomendava certamente como elemento


construtor” 100
. Menos recomendável ainda era o “espírito da ‘casa grande’,
estereotipado por centenas de anos de vida rural, e transportado, bruscamente, de corpo
e alma, para as cidades”101. “Espírito” que, essencialmente senhorial, é incapaz de criar
formas políticas próprias quando é forçoso implementar um aparato burocrático, e
assim elabora por um processo essencialmente imitativo e desprovido de pensamento
racional próprio, como que por um processo de bricolagem, o sincrético liberalismo
escravocrata do Império.
O antecedente colonial já era, por assim dizer, uma situação única na história,
onde, como na Antiguidade clássica, os únicos verdadeiros “cidadãos” eram os
latifundiários proprietários de escravos, mas, no Brasil, à diferença dessa época, eles
residiam fora dos muros das cidades, nas casas-grandes102. Assim, numa sociedade já
antes descrita como “amorfa”, surge uma cidade “oca”, espécie de “exoesqueleto”
administrativo onde quem governa é o senhor, que mal a frequenta, só para negócios e
alguns raros festejos públicos. “Um pouso. Nada mais.”103 Esse é a lacônica paráfrase

99
RB, p. 46.
100
RB, p. 47.
101
RB, p. 47-8.
102
RB, p. 51.
103
RB, p. 52.
233

em “discurso indireto livre” que Sergio faz do que significaria, para um potentado rural
da colônia, a cidade. O capítulo fecha reafirmando a continuidade entre a forma social
da metrópole e da colônia, espécie de acompanhamento rítmico da argumentação de
Raízes do Brasil desde o princípio do livro: “Na verdade, não foi preciso que os
portugueses se transportassem ao Brasil e sofressem a influência de nosso meio, para
conhecerem essa forma de desequilíbrio, entre os centros urbanos mirrados e
miseráveis e as propriedades rurais, ao contrário, prósperas e opulentas”104. Ao final
desse argumento, que é aliás retirado da segunda edição, Sergio insere uma longa nota
dedicada à refutação a “teoria artificiosa e extravagante” de Oliveira Vianna, defendida
em Populações meridionais do Brasil, de uma “força centrífuga” no meio americano
que explicaria o acanhamento da vida urbana na colônia105. A o motivo da retirada da
nota está provavelmente não em alguma tentativa de “esconder” ou “expurgar” Oliveira
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Viana, que afinal, fora a importante apropriação por Sergio Buarque de sua avaliação
de que a sociedade colonial brasileira era marcada por pouca solidariedade social, é
desde a primeira edição um dos principais adversários da argumentação de Raízes, mas
sim numa mudança de ponto de vista do próprio Sergio a respeito do caráter
“centrífugo” da própria sociedade portuguesa. Em Visão do Paraíso, vamos ler que
“aquela hipertrofia urbana de Lisboa é desconhecida no Brasil colonial, onde o centro
de gravidade se acha, ao contrário, no mundo rural”106 (grifo da transcrição). Quando
passa a estudar com uma atenção mais exclusiva a história das técnicas agrícolas no
Brasil, Sergio chega à conclusão de que o tradicional primarismo técnico da agricultura
brasileira, na verdade mais exatamente uma espécie de extrativismo comparável à
mineração, tem sua origem em Portugal. Essa noção de uma agricultura tosca e
essencialmente predatória, que mal mereceria esse nome por não ser exatamente uma
forma de cultura, aparece pela primeira vez em sua obra no longo prefácio de sua
própria tradução às memórias de Thomas Davatz, publicado em 1941107 e parece ter
ganhado um significado especial na reflexão de Sergio Buarque, já que reaparecerá
algumas vezes em sua obra, a saber, em estudo biográfico de 1944 sobre Azeredo

104
RB, p. 55-6.
105
RB, “Nota B”, p. 166-169.
106
VP, p. 366 (333).
107
“Memórias de um colono no Brasil, in LP, p. 13, ss.
234

Coutinho108, em trecho acrescentado à edição de 1948 de Raízes do Brasil, onde citará


a impressionante afirmação humanista Clenardo, de que em nenhum outro lugar do
mundo a agricultura era tão desprezada quanto em Portugal 109 , na dissertação de
mestrado Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos
Descobrimentos110, na dramática conclusão de Visão do paraíso111 e, finalmente, em
seu capítulo da História Geral da Civilização Brasileira (t. I, v. 2) sobre “Metais e
pedras preciosas”112.
No quarto capítulo, continuação de “O passado Agrário”, do qual já foi abordado
o contraste entre a cidade portuguesa e a espanhola, começam a surgir alguns elementos
por onde vão despontando alguns traços realmente originais da sociedade colonial luso-
brasileira, ao menos em comparação com o mundo reinol, e por onde o “projeto”
colonial metropolitano começa a perder sua integridade original – mesmo que essa
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integridade fosse de caráter mais orgânico do que voluntário, são sobretudo os seus
elementos negativos que começam a perder sua eficácia. É o caso da ocupação do
interior pelos paulistas – na verdade, desde a fundação de Piratininga, há uma
descaracterização do desígnio estatal português. Apesar da proibição inicial do
presciente donatário Martim Afonso de Souza, que teria “penetrado, melhor do que
muitos futuros governadores e principais, os verdadeiros interesses do Estado”, da
colonização do interior, que poderia incitar lutas com índios do sertão e despovoar o
litoral, colocando a perigo o domínio sobre o litoral, terra de onde a coroa já podia
extrair o essencial dos gêneros agrícolas que pretendia explorar no Brasil, os paulistas
criaram, com sede no planalto acima da Serra do Mar, toda uma civilização híbrida e
essencialmente estranha à ocupação propriamente portuguesa nas regiões litorâneas:

108
“Obras econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho, LP, p. 83.
109
HOLANDA, Sergio Buarque de; MONTEIRO, Pedro Meira (Org); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org).
Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 72-3. Citações a este volume serão referidas
doravante pela abreviação RBC.
110
“Uma lavoura [...] como a canavieira, que tinha como escopo principal a produção em larga escala,
visando à venda aos mercados externos, praticada segundo métodos sumários, onde o amanho do solo
se limitava ao estrito necessário para a extração de opulentos tesouros, e, de fato, antes mineração do
que proprimente agricultura, bem podia considerar-se como um prolongamento e até um complemento
do negócio mercantil e urbano. EF, p. 85.
111
“Teremos também os nossos eldorados. O das minas, certamente, mas ainda o do açúcar, o do tabaco,
de tantos outros gêneros agrícolas, que se tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até
esgotar-se, do cascalho, sem retribuição de benefícios.” VP, p.. 367 (334)
112
HGCB, t. I, v. 2, p. 343.
235

A obra grandiosa das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida em toda a sua
extensão, se não a destacarmos um pouco do esforço português, como um
empreendimento que encontra em si mesmo a sua explicação, embora ainda não ouse
desfazer-se de seus vínculos com a metrópole europeia, e que, desafiando todas as leis e
todos os perigos, vai dar ao Brasil a sua atual silhueta geográfica. [...] São Paulo, terra
de pouco contato com Portugal e de muita mestiçagem com aborígenes, onde ainda no
século XVIII as crianças iam aprender o português nos colégios como as de hoje
aprendem o latim.113

Trata-se, na verdade, de um “momento novo” da história brasileira, onde “pele


primeira vez a inércia difusa da população” assumirá “forma própria” e “voz
articulada”. Voz que, como se lê no trecho acima transcrito, fala numa língua que não
é a do colonizador original. Essa “forma própria”, porém, não chega a ser uma forma
colonizadora, mas a de “puros aventureiros” que “só quando as circunstâncias
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forçavam é que se faziam colonos”, como o “extraordinário Antonio Raposo Tavares,


não tinha suas raízes do outro lado do oceano, podia dispensar o estímulo da metrópole”
114
. Note-se, de passagem, que essa não é bem a tese de Monções e Caminhos e
fronteiras, onde os paulistas são retratados em situações de colonização ou comércio
regular com o interior, mas está mais próxima da de Paulo Prado no Retrato do Brasil
e na Paulística, onde o paulista funciona sobretudo como uma forma orgânica estranha
ao português mas que com ele coopera, expandindo para o interior as fronteiras do
Brasil115.

113
RB, p. 72.
114
RB, p. 72-3.
115
Alguns trechos da Paulística de Paulo Prado são bem sugestivos a esse respeito, embora em Raízes o
culturalismo seja menos marcado pelo determinismo racial e pela noção de decadência: Nessa lenta
desagregação, na decomposição que foi a morte do Portugal heroico, no deserto piratiningano, ‘no meio
daquelle sertão e cabo do mundo’, como dizia o padre Cardim, isolava-se, ao findar o século XVI, um
núcleo de rude população quinhentista, que ia aumentar e proliferar protegido pela própria natureza
hostil.” (p. 73); “Do cruzamento desse índio nômade, habituado ao sertão como um animal à sua mata,
e do branco aventureiro, audacioso e forte, surgiu uma raça nova, criada na aspereza de um clima duro,
no limiar de uma terra desconhecida. No desenvolvimento fatal dos elementos étnicos num meio
propício, mais do que em outras regiões do país, em São Paulo medrou forte, rude e frondosa a planta-
homem.” (p. 78); “A terra rica e o viver fácil transformavam lentamente o aventureiro dos primeiros
tempos coloniais no agricultor, pesadão e desconfiado, e no pálido caboclo, vítima, como o antepassado
índio, do álcool, da doença e do faquirismo indolente. O mamaluco incansável, fragueiro, ágil e ardiloso,
será o Jeca, do escritor paulista.” (p. 90) PRADO, Paulo (1925, 1934); CALIL, Carlos Augusto (org.).
Paulística etc. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
236

Com a descoberta das minas de ouro no sertão, porém, essa situação irá mudar,
e o Estado, que antes se limitava, de modo geral, a impor algumas restrições mínimas
aos ânimos dos colonos, passará a uma atitude mais intervencionista. Não de uma
forma edificadora e incentivadora de desenvolvimentos novos, mas de modo
puramente repressor e negativo, compondo um organismo essencialmente parasitário,
do ponto de vista da sociedade colonial:

Então, e só então, é que o Estado português se decidiu a intervir mais energicamente nos
negócios de sua possessão ultramarina, mas usou de uma energia puramente repressiva,
policial, e muito menos dirigida a construir alguma coisa do que a absorver quanto lhe
pudesse ser de proveito. A circunstância do descobrimento das minas foi, pois, o que
determinou, finalmente, Portugal a pôr um pouco de ordem na colônia, ordem
artificialmente mantida pelo despotismo dos que se interessavam em ter mobilizadas
todas as forças econômicas do país para lhe colherem sem maior esforço os benefícios.116
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Igualmente organicista é a revisão das relações entre os colonizadores e os índios


ao longo da história colonial. Mais uma vez, a “cultura” e mesmo a invasão colonial
dos portugueses adquire uma notável contiguidade com o “natural”, aqui representado
pelas culturas tupis, que integravam, afinal, o aspecto daquele “mundo” novo aonde os
portugueses haviam chegado.

Confundindo-se com o gentio principal da costa, cujas terras ocuparam, ou repelindo-o


para o sertão, os portugueses herdaram muitas das suas inimizades e idiossincrasias. Os
outros, os não-tupis, os tapuias, continuaram largamente ignorados durante todo o
período colonial e sobre eles corriam as lendas e versões mais fantásticas. E é
significativo que a colonização portuguesa não se tenha firmado ou prosperado muito
fora das regiões antes povoadas dos indígenas da língua-geral.117

Ainda mais interessante, nesse sentido, é a apropriação de uma hipótese de Alfred


Métraux sobre as migrações dos tupi-guarani, no caso, de que, eles haviam acabado de
conquistar, eles próprios, o litoral brasileiro, a outros povos originários, que permite a
Sérgio Buarque atribuir a rápida conquista do litoral à unidade cultural e linguística dos
tupis da costa. Do mesmo modo, a fronteira ocidental das terras ocupadas por esses
depois de sua retirada para o sertão corresponderá aproximadamente aos limites da

116
RB, p. 74-5.
117
RB, p. 77-8
237

expansão dos colonos para o Oeste a partir do século XVII. A penetração portuguesa
teria se limitado às regiões de predomínio dessas culturas, o que explicaria em alguma
medida o tempo muito maior que custou consolidar algum domínio sobre a região
amazônica – sobre os tupis, “dir-se-ia que prepararam apenas o terreno para a conquista
lusitana”, visto que “onde a expansão tupi sofria um hiato, interrompia-se também a
colonização branca”118. Aparece, na observação sobre os portugueses terem herdado
“muitas das inimizades e idiossincrasias” dos tupis da costa, mais um caso exemplar
da distinção delineada no parágrafo final daquele primeiro capítulo, isto é, do que é
“forma”, e do que é “matéria plástica” na “cultura portuguesa” – a forma admite a
seleção de elementos exógenos, até de um idioma e de certas “idiossincrasias”, sem
descaracterizar-se completamente. Ainda que, nesse caso, haja, no mínimo, uma
intensidade que põe em dúvida a integridade da forma, na medida em que, como já se
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viu, a civilização paulista é considerada como uma forma destacada, ou ao menos uma
variante especial, da portuguesa – e que, de todo modo, acaba sendo reintegrada ao
todo quando da formação do Estado nacional brasileiro, já no século XIX, processo
que, talvez por não ser considerado especialmente problemático por Sergio Buarque,
não é diretamente abordado em Raízes do Brasil.
Depois do excurso sobre a exceção paulista, Sergio volta a falar da “fisionomia
mercantil, quase semita, dessa colonização”, exprimida “tão sensivelmente no sistema
de povoação marginal, quanto no fenômeno já estudado do desequilíbrio entre o
esplendor rural e a miséria urbana.”119 É curioso esse retorno ao caráter “semítico” dos
portugueses, que já aparecia na resenha da tradução do Fausto por Gustavo Barroso
(Cf. supra cap. I), e que desempenhará ainda um papel importante na tese sobre os
Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos (1958),
onde há toda uma atenção especial às influências hebraicas e árabes na cultura
portuguesa tardo-medieval, até o século XVI. O mais provável é que aqui o que se
pretende dizer com “feição semítica” não é tanto uma aproximação com o judaísmo,
mas com os fenícios, aliás já mencionados à página 66, no mesmo capítulo, em
comparação com os espanhóis. Parece que já aqui Sergio concebe o próprio império

118
RB, p. 78.
119
RB, p. 77.
238

português não tanto segundo a concepção moderna de império, originada no século


XVI com Carlos V120, de um organismo político que exerce uma firme autoridade sobre
um território eventualmente dotado de exclaves ultramarinos a partir de uma sede
política permanentemente instalada e dotada de uma grande burocracia dedicada à
administração e controle, mas de uma rede de feitorias fortificadas à maneira dos
“impérios” fenício e cartaginês, de “feição talássica”, na expressão de Elementos
formadores, desprovida daquela “vontade humana, criadora e organizadora,
independente, em todo caso, das condições naturais” que dava corpo e animava as
“formas de organização política, religiosa, militar e intelectual” que tanto
engrandeciam, no século XVI, a coroa de Castela aos olhos dos europeus121.
Não admira, portanto, que os portugueses da colônia americana, e mesmo os
colonos naturais do Brasil considerassem frequentemente as terras americanas como
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lugar de passagem, e a volta à Europa como ideal supremo de felicidade, como


notaria, ainda no século XVII, nosso primeiro historiador:

E [Frei Vicente do Salvador] acrescenta que isso [de querer ir para Portugal] “não têm
só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra,
não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem
destruída”. Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos
portugueses teve um caráter acentuado de feitorização, muito mais que de colonização.
Não convinha que se fizessem aqui grandes obras, ao menos quando não produzissem
imediatos benefícios.122

A passagem, como aliás vários trechos desse capítulo, antecipa alguns momentos
de “A América Portuguesa e as Índias de Castela”, capítulo final de Visão do Paraíso
aproveitado a partir do primeiro de Elementos formadores, onde vamos ler que os
portugueses se fazem em suas possessões americanas “mais hóspedes que
povoadores” 123 . Nesse contexto “quase semítico”, diferentemente do imperialismo

120
Sergio se estende sobre a questão no último capítulo de Visão do paraíso, “A América Portuguesa e
as Índias de Castela”.
121
EF, p. 104-5.
122
RB, p. 80.
123
VP, p. 334. Na tese apresentada à USP vamos ler, no lugar dessa citação extraída do Livro que dá a
razão do Estado do Brasil, de Diogo de Campos Moreno, uma citação do Diálogo das grandezas do
Brasil que não menciona a ideia de simples “hospedagem”, mas que ressalta o caráter litorâneo, o que
faria dos portugueses, segundo Alviano, “maus colonizadores” (p. 366).
239

moderno e centralizador dos castelhanos, seria admissível conceder um grau muito


maior de liberdade aos colonos, exatamente porque o valor principal, para os
portugueses, estava na continuidade dos negócios levados adiante na colônia. Daí a
atitude da administração portuguesa, em diversos níveis, de tolerância a contingências
eventualmente inevitáveis, e até de certa transigência com infrações de menor
importância às leis, pois era mais vantajoso deixar certas coisas acontecerem do que
dedicar excessivo empenho ao cumprimento estrito das normas oficiais:

A liberdade dos portugueses, em comparação com esse exclusivismo [espanhol], é antes


uma atitude negativa, pouco definida, e que resulta principalmente de sua moral
interessada, moral de negociantes. Não importa aos nossos colonizadores que seja frouxa
e insegura a disciplina, fora daquilo em que os freios pudessem melhor aproveitar e
imediatamente aos seus interesses.124
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Nesse ponto, como já se dera com a análise dos paulistas e com a chegada das
autoridades reinóis no Século XVIII, Sergio Buarque pinta um quadro onde a realidade
da “autarquia do indivíduo” contamina toda a colônia, como uma moral radicalmente
autoritária partilhada em todos os degraus da sociedade, com o indivíduo rejeitando
qualquer anteparo negativo a suas vontades, lógica que se reproduz até mesmo
internamente às instituições executoras das leis e garantidoras da ordem social,
absorvendo todas as instituições e conformando a racionalidade governamental. O caso
da igreja é especialmente exemplar, na medida em que essa tendência chega ao
paroxismo de contrapor duas estruturas de autoridade (Igreja e Estado, por causa dos
conflitos gerados pelo padroado e pela questão da Ordem de Cristo, que atribuía ao
monarca, como seu Grão-mestre, a prerrogativa de investidura dos bispos), de modo
que clérigos poderiam se valer de uma ou outra hierarquia para resistir à opressão
daquela que representasse um incômodo. Transformada pelas peculiaridades das
relações entre Portugal e a Santa Sé em “simples função do poder secular”125 a Igreja,
na forma de seus clérigos, terminaria contribuindo para essa anarquia, chegando a
participar do “liberalismo” negativo e dissolvente, “natural”, brasileiro. Sergio chega

124
RB, p. 81.
125
RB, p. 82.
240

mesmo a falar no “famoso ‘liberalismo’ dos nossos eclesiásticos” 126 , no qual não
deixava de entrar, além de indisposições políticas contra autoridades pontuais ou contra
o Estado em geral, a tendência natural de só virem para a América os “maus clérigos”,
já que as seduções de um Novo Mundo eram maiores para aqueles que tivessem maus
antecedentes Europa ou proclividades que se poderiam realizar com mais tranquilidade
num mundo onde as normas sociais eram mais frouxas, do que aos sinceramente
piedosos.
O extraordinário reverso dessa medalha pode ser encontrado num momento
posterior da obra de Sergio, isto é, no estudo biográfico de 1944 sobre Azeredo
Coutinho, fundador do Seminário de Olinda, que, motivado por conflitos contra a Mesa
de Consciência e Ordens – conflitos, aliás, de fundo pessoal mais do que propriamente
político – se empenhará numa longa polêmica em favor autoridade real, contra a Mesa,
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sobre os bispados ao sul do Cabo Bojador, polêmica que chegará até a indispô-lo com
o Príncipe Regente, tendo-se valido, para fazer imprimir um de seus panfletos, da
oportunidade da ocupação francesa em Portugal. “[C]ontra o adversário particular”,
escreve Sergio, não se furtou o prelado a “abrigar-se à sombra do inimigo publico:
inimigo da pátria e do seu rei”127. Rei, no caso, cuja autoridade as razões do texto,
impresso por meio de artimanhas sediciosas, procuravam encarecer, em detrimento da
Mesa. Com toda a contumaz e imprudente aplicação que empenhou em afirmar a
supremacia do poder temporal sobre o eclesiástico nessa questão, Azeredo Coutinho,
contudo, não parece ter se movido por uma crença sincera em algum ideal absolutista,
mas, antes, pela esperança de que a autoridade régia não teria as mesmas condições de
se exercer com a mesma capilaridade e atenção daquela da Mesa – seu absolutismo
nada mais é do que mais uma variação, com os sinais trocados, mas por pura
casualidade, do “famoso liberalismo” eclesiástico. Esse, que tampouco vem a ser um
amor pela liberdade em abstrato, mas uma repulsa a todo intervencionismo importuno
sobre o indivíduo soberano e irresponsável às coisas dos outros e ao mundo público –
diagnóstico que, diga-se, permanece entre o que de mais atual há na reflexão de Sergio
Buarque sobre o Brasil.

126
RB, p. 84.
127
“Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho”, cit., .p. 60.
241

***

É na sequência dessas considerações sobre o “liberalismo” avant la lettre amplamente


disseminado na América Portuguesa – preparadoras do “mal-entendido da democracia”
sobre o qual se vai ler no capítulo V (“O homem cordial”) que aparecerá, finalmente,
o momento da autoridade verdadeiramente legítima, inconteste, na colônia. Autoridade
suprema, soberana, aquela que toma as decisões políticas sobre a exceção128, descrita
com uma ponta de reverência, não pelo seu conteúdo, mas pelo próprio poder como
fenômeno quase sacralizado, que ecoa a Teologia política de Carl Schmitt: a família
patriarcal, encabeçada pelo latifundiário:
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Nos domínios rurais a posição dos padres capelães reproduzia, em ponto pequeno, a
situação do clero na colônia, com relação ao poder civil. Apenas aqui a autoridade do
senhor rural não suportava réplica ou partilha. Tudo se fazia consoante a sua vontade
caprichosa. e despótica. O engenho, sob seu comando, era um organismo completo e que
repousava sobre si mesmo. Tinha força armada para defendê-lo em casos de emergência.
Tinha capela, onde se rezavam as missas nos domingos. Tinha escola de primeiras letras,
onde o padre-mestre desemperrava e instruía os meninos. A alimentação diária dos
moradores e aquela com que se recebiam os visitantes frequentemente agasalhados,
procediam das plantações, das criações, da caça ou da pesca, proporcionadas no próprio
lugar. Também no lugar montavam-se as serrarias de onde saíam prontos o mobiliário e
apetrechos do engenho, além da madeira para as casas; a obra dessas serrarias chamou a
atenção e causou a admiração do viajante Tollenare, pela sua “execução perfeita”. Hoje
mesmo, em certos lugares do Nordeste, onde foi mais adiantada a cultura rural, apontam-
se – segundo um conhecedor fidedigno – “as cômodas, bancos, armários, que são obra
de engenho, revelando-o no não sei que de rústico de sua consistência e no seu ar
distintamente heráldico.”129

“Singular autarquia”, é a expressão que Sergio escolhe para qualificar o “domínio


rural”, logo na frase seguinte ao trecho acima reproduzido. Assim se vê como essa
autossuficiência econômica, militar (pois o latifúndio tinha a sua “força armada”
própria) e até espiritual (havia a “escola de primeiras letras” até o capelão devidamente
colocado em situação pouco mais ou menos análoga a um cárcere privado) faz da
unidade produtiva a verdadeira entidade política da colônia, para a qual o governo das

128
Cf. o capítulo Definition of Sovereignty, in Political Theology, p. 5-15. Já na abertura, lemos, na
característica concisão do autor, que “Soberano é aquele que decide sobre a exceção”, p. 5.
129
RB, p. 85-6.
242

câmaras não é muito mais do que uma confederação, ou mesmo uma associação
patronal. Associação de certa forma política, pois, quando o poder político coincide
com a autoridade patriarcal, o “pátrio poder”, a “política” do Estado perde sua
legibilidade como representação de uma esfera da vida real e passa a ser compreendida
como intromissão antinatural de forças externas. Esse é o conteúdo do “liberalismo”
de mal-entendidos, na medida em que dentro da propriedade e da família, o poder do
patriarca não tem nenhum limite, e Sergio Buarque curiosamente não faz aqui questão
de ressaltar, como faz Gilberto Freyre, todos os expedientes de dissimulação entre os
diversos membros da casa que tenderão a “equilibrar” o antagonismo, talvez porque
quisesse destacar como a autoridade despótica do senhor é a sede ideal, arquetípica, de
toda reflexão sobre o indivíduo – a diluição disso no “real” é de importância menor
para o tipo de teorização política que Sergio Buarque está lançando nessas páginas
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preparatórias a “O homem cordial”. A opressão sob essa autoridade, seus aspectos


negativos, são descritos com um realismo cru, mas semelhantes situações existenciais
não parecem desempenhar, para Sergio, um papel importante na psicologia da
dominação política e da vida pública – ou, se desempenham, seu efeito vai no sentido
de realmente esmagar todo tipo de resistência. Nesse mundo, homem, mulher, rico,
pobre, escravo, senhor, clérigo ou agregado, todos se comportam de modo a reproduzir,
tendencialmente, no plano da mentalidade, a autarquia senhorial, pois ela é o único
modelo de autoridade sancionado em toda a parte. Dir-se-ia, aproveitando com alguma
liberdade um estudo abertamente influenciado pelo pensamento político de Carl
Schmitt, que o senhor opera e representa, no imaginário colonial, a cabeça do “corpo
místico da república” 130 , ou um pequeno “leviatã”, dotado das prerrogativas de
soberania de um pequeno Estado. É deliberadamente que se reforça aqui, talvez com

130
Ver o capítulo “Polity-centered kingship”, esp. sec. 2, “Corpus reipublicae mysticum”, p. 207- 231
em KANTOROWICZ, Ernst. The king’s two bodies. A study in medieval political theology. Princeton:
Princeton University Press, 2016. Já no direito medieval, cada um dos cinco níveis de universitas
(domicílio, vizinhança, cidade, reino e universo) podia ser referido como corpus mysticum, sobre o qual
podiam incidir, portanto, as implicações organológicas da analogia (a subordinação dos membros à
cabeça) (p. 209). No século XIV, com Luca da Penne, a ideia de “corpo místico”, originalmente usada
para representar a Igreja como comunidade temporal dos fiéis em Cristo, tendo este por cabeça, já está
inteiramente secularizada e transferida para o poder político do príncipe, tingindo de certa sacralidade,
porém, o Estado. Diz-se que o monarca é a cabeça, não da Igreja, mas da República, sendo também ao
mesmo tempo seu marido, como Cristo era, além de marido, a cabeça do corpo místico da Igreja, assim
resolvendo o problema da não-propriedade do fisco pela pessoa do rei (p. 218).
243

certo abuso das categorias teológico-políticas schmittianas, a dimensão política e


totalitária da visão que Sergio erige do “passado agrário” e patriarcal, pois parece que
ele próprio faz questão de se distanciar nesse ponto, apesar de uma afinidade de fundo,
da análise de Gilberto Freyre da casa-grande. Pois, ao fazer preceder “o Homem
Cordial”, onde começa a se desfiar todo o drama de “desordem” e “dissolução” que
culminará em “Nossa Revolução”, o drama das insuficiências da história política
brasileira, dessas considerações sobre a autoridade familiar, e ao ignorar, nelas, toda a
dimensão “oriental” pitoresca e “anárquica” que Freyre imprime à unidade rural131,
Sergio sugere um ponto de vista realmente diferente, bem menos nostálgico, do mundo
rural da colônia, e, mais importante do que todo eventual juízo de valor, uma visão
onde a autoridade não somente existe, mas funciona de maneira muito eficiente. Se
alcançou-se compreender aqui o nexo entre esta passagem a tematização subsequente
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da política em Raízes, pode-se atribuir esse exagero também ao próprio Sergio: é ele
quem politiza a casa-grande, dela fazendo como que uma pequena monarquia absoluta,
para poder dela derivar os problemas que surgirão na vida política do século XIX, onde
esse substrato histórico vai encontrar uma superestrutura ideológica liberal e romântica.
O caráter organológico da hierarquia familiar, por sinal, pode ser notado na
observação de Antonil, de que o escravo era para o senhor como suas “mãos e pés”132
– sendo este último a cabeça. A síntese mais impressionante dessa realidade é também
extraída de depoimento coevo, de segunda mão, é verdade, mas ele próprio colhido por
um narrador de época: segundo Frei Vicente do Salvador, “verdadeiramente que nesta
terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-a cada casa”,
teria dito um bispo de Tucumán ao perceber que “quando mandava comprar um frango,
quatro ovos e um peixe para comer, nada lhe traziam, porque não se achavam dessas
coisas na praça, nem no açougue”, mas que, por outro lado, “quando mandava pedi-las
às casas particulares, lhas mandavam”133. Há também uma comparação com o mundo
de Daniel Defoe, em cuja obra se encontraram situações onde “cada lar representa uma

131
Sobre isto, leia-se especialmente o segundo capítulo de ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra &
Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Ed. 34, 1994, p. 43-
73.
132
RB, p. 47.
133
RB, p. 86.
244

instituição tanto econômica, quanto biológica e afetiva”134, situação que ainda na época
da redação de Raízes do Brasil se poderia encontrar no Kentucky. Mas, no Brasil, à
diferença do mundo anglo-saxão, a origem disso está no “direito romano-canônico”
preservado na Península Ibérica desde a antiguidade, e esse “prevalece como centro e
base de toda essa vasta estrutura”. Os escravos e os agregados representam uma
extensão do círculo familiar onde impera a “autoridade imensa do pater-familias”,
apenas os filhos, os “liberi”, constituindo exceção parcial, mas, em tudo quanto
houvesse de essencial, e no âmbito da autoridade, essa ideia de família estava
“estreitamente vinculada à ideia de escravidão” 135. É uma situação de privilégio da
família que “tem por si o consenso geral e preserva-se independentemente de qualquer
outra salvaguarda além de sua força própria”, e que “ignora qualquer princípio superior
que procure perturbá-la ou oprimi-la”, observação que volta a pontuar o caráter
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negativo e senhorialmente autárquico do aparente amor dos brasileiros a certa noção


de liberdade. Liberdade que sempre supõe por trás de si a suprema autoridade sobre
um qualquer “famulus”, mesmo que mental. “Nesse ambiente”, lemos, “a autoridade
do pátrio poder é virtualmente ilimitada e não existem peias para a sua tirania.” Nem
mesmo a esposa estava livre dos arbítrios do patriarca, podendo ser internada em
convento ante a mera suspeita, afetada ou não, de adultério, e mesmo a intervenção dos
parentes, (supõe-se que os homens aí estejam incluídos, pois, mesmo que homens e
senhores, eles o são em outra casa), da mulher que fosse internada em convento. Esses
casos eram os rotineiros; nos mais extremos, como o de Bernardo Vieira de Melo, a
suposta adúltera poderia ser julgada e condenada à morte em conselho de família
presidido pelo patriarca. No caso, o juiz não é nem mesmo o marido, mas o sogro,
agindo, pode-se imaginar, em nome do filho, cuja desonra não deixa de ser também a
do pai, sem que a justiça tomasse qualquer providência para punir o homicídio136.
Nessa unidade política onde a autoridade é sempre exercida por analogia com a
escravidão clássica, ou melhor, na forma mesma da escravidão (como, aliás, Paulo de
Tarso imagina a autoridade divina em seus escritos), há uma indistinção fundamental

134
RB, p. 87.
135
RB, p. 87.
136
RB, p. 88.
245

entre os familiares, chegando a incidir sobre a própria dimensão corpórea e psicológica


de cada “membro” que tem o senhor por cabeça: “A contiguidade que se estabelece no
âmbito doméstico entre os membros de uma família desse tipo, tem seu correlativo
psicológico bem determinado”137 – estamos na antessala do capítulo sobre o “homem
cordial”, e aqui vai aparecer, em toda a sua clareza, como talvez em nenhum outro
ponto da narrativa, o embrião da teoria política (dir-se-ia, talvez, o “conceito do
político”) do Brasil rural e colonial encerrada em Raízes do Brasil:

O quadro familiar é, nesse caso, tão poderoso e exigente, que acompanha os indivíduos
mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre neles à entidade
pública. [...] Representando [...] o único setor onde o princípio de autoridade é
indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da
respeitabilidade, da obediência e da submissão. Resultava dessa circunstância um
predomínio quase exclusivo, em todo o mecanismo social, dos sentimentos próprios à
comunidade doméstica, naturalmente particularista e anti-política, uma invasão do
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público pelo privado, do Estado pela Família. Explicam-se largamente, com isso, a nossa
adaptação difícil ao princípio do Estado democrático, [...] e também os obstáculos [...]
que se ergueram contra a formação de um aparelhamento burocrático eficiente entre
nós.138

Estão dadas aqui as coordenadas do que se seguirá no restante do livro: no


capítulo sobre o “homem cordial”, que começa logo em seguida a esse trecho – ele
desenha nada menos do que aquele “correlativo psicológico bem determinado”
mencionado anteriormente – , desenham-se com maior riqueza de detalhes várias
dimensões existenciais do tipo de subjetividade assim formado no “passado agrário”;
em “Novos tempos”, a ênfase recairá sobre a já mencionada antinomia entre essa
conformação psicológica tradicional e o mundo moderno – já antecipada no capítulo
III, com sua discussão sobre impulsos precoces de modernização tentados e abortados
durante o século XIX – voltando ao período monárquico, com uma ênfase no
predomínio da cultura romântica e da ideologia liberal, incluindo as consequências
capitais dessa disjunção sobre a vida intelectual brasileira, sintetizada no fenômeno do
“bacharelismo”; finalmente, em “Nossa revolução”, Sergio vai apresentar a
encruzilhada política do Brasil já no período republicano, com uma rápida resenha das

137
Loc. cit., grifo da transcrição.
138
RB, p. 88-9.
246

possibilidades de adaptação do quadro tradicional, já em franca dissolução, a novos


padrões econômicos e sociais.

3. O coração diante da lei


O núcleo conceitual de Raízes do Brasil é o “homem cordial” descrito no quinto
capítulo. Que tipo de forma/formação apresenta esse conceito? Pode-se descrever o
trabalho de Sergio Buarque neste capítulo como uma redução das dinâmicas históricas
descritas nos anteriores, apresentando a disposição psicológica de uma subjetividade
ideal. O capítulo em questão tem um trajeto curioso, na medida em que o seu tema
principal, a cordialidade, só é explicitado em sua nona página (p.101) (de um total de
dezoito, na primeira edição). Antes da aparição do “homem cordial” em citação à
“expressão feliz” do escritor Ribeiro Couto, há uma breve discussão sobre a transição
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do trabalho em corporações de ofício para a moderna unidade produtiva industrial (p.


94-96), uma consideração sobre as consequências do advento da sociedade capitalista
moderna para a pedagogia (p. 96-99), e, voltando quase insensivelmente ao Brasil, uma
passagem sobre as relações entre urbanização e a burocracia estatal (p. 99-101). Antes
disso tudo, porém, há, na abertura do capítulo, um comentário à Antígona de Sófocles,
onde o conflito entre Antígona e Creonte é lembrado como símbolo da radical
descontinuidade entre uma ética baseada na família e as leis impessoais do Estado (p.
93-94). A citação mobilizada é aquela em que Creonte diz a sua sobrinha (no texto,
identificada como irmã, erro não corrigido em edições subsequentes) que “[t]odo
aquele que acima da Pátria/Coloca seu amigo, eu o terei por nulo” 139 (vv. 182-3).
Leitores atentos perceberão que a transição entre esses blocos é muito fluida na
narrativa, e se dá por vezes na metade dos parágrafos – como aliás acontece algumas
vezes em outros capítulos do livro, num movimento retórico que reproduz a fluidez das
transições na evolução entre os estágios orgânicos das formas. Não é difícil perceber
como as passagens entre essa dramática abertura e a aparição do “homem cordial” são
modulações de antíteses já contidas na interpretação que Raízes faz da tragédia de
Sófocles, a saber: 1) família x Estado; 2) tradição x modernidade; 3) geral x particular.

139
RB, p. 94.
247

Esses conflitos causam “crises” que, como se lê no texto, constituem “um dos temas
fundamentais da história social”.140
Vale a pena deter-se nos momentos decisivos dessa argumentação, como já se
veio fazendo na análise das partes precedentes do livro. Esse expediente, aqui, se revela
especialmente proveitoso, na medida em que explicita alguns pressupostos teóricos de
Raízes do Brasil que antes só tinham sido indicados por meio de sugestões muito vagas.
A abertura do capítulo é talvez o momento mais ostensivamente especulativo, e até
doutrinário, de todo o livro. Lê-se, de início, que o “Estado, ao contrário do que
presumem alguns teóricos, não constitui uma ampliação do círculo familiar e, ainda
menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particulares, de que
a família é o melhor exemplo”; entre família e Estado não há “gradação, mas antes uma
descontinuidade e até uma oposição”. Aqueles que defendem o que “o Estado e suas
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instituições descenderiam em linha reta, e por simples evolução, da Família”, por meio
de uma “espécie de generatio aequivoca”, são vítimas de um “prejuízo romântico”
amplamente difundido no século XIX141. Vale a pena reproduzir aqui o comentário de
um resenhista que, afirmando que aqui Sergio Buarque “erra redondamente”, leva a
depreender que o alvo específico dessa observação é, como já acontecera no primeiro
capítulo, o mesmo de “O lado oposto e outros lados”, pois, afirma Luiz Pandolfi,
“Tristão de Athayde nos fala muito bem desse assunto no seu livro Política,
apresentando argumentos seguros contra tal erro”142.
Mas voltemos ao que Sergio está de fato afirmando, que parece ser um
pensamento merecedor de uma análise detalhada. Estamos diante daquilo que poderia

140
RB, p. 94.
141
RB, p. 93. Essa declaração poderia ser considerada um desmentido à interpretação acima proposta de
que na montagem do conceito de “homem cordial” e da teoria política de Raízes Sergio Buarque se
valeria de uma “politização” das unidades domésticas rurais. Na verdade, trata-se de uma política
anterior ao Estado, mas que nem por isso deixa de ser política e de operar a partir de categorias teológicas
de transcendência. Até porque é o próprio Hegel, na primeira das duas citações que faz à Antígona, usa
as palavras da heroína, e não as de Creonte, como fará Sergio Buarque, para mostrar como ela se vale
de um argumento transcendental (de um “direito divino não escrito e infalível”) para enterrar seu irmão
(“Não é de hoje, nem de ontem, mas de sempre,/que vive esse direito e ninguém sabe/Quando foi que
surgiu e apareceu”, Antígona, vv. 456-7; Fenomenologia do espírito, cit., §437, p. 296). Estamos diante
do conflito entre duas formações políticas que se negam mutuamente.
142
PANDOLFI, Luiz. “Conversa sobre ‘Raízes do Brasil’”, Diário da Tarde, 7 nov 1937. Esse diálogo
não foi descoberto a tempo da devida incorporação da visão de Tristão de Athayde a esse respeito, que
fica para uma oportunidade futura.
248

ter passado, para um leitor menos atento, pela teoria do Estado defendida em Raízes do
Brasil. Afinal, durante todo o desenvolvimento anterior do livro, os portugueses foram
caracterizados, não sem certa admiração, como os transplantadores “bem-sucedidos”
de uma forma “natural”, essencialmente reprodutora dos ritmos e solicitações do meio
ambiente americano, com alguns compromissos adaptativos de conteúdos originários
da Península Ibérica, mas nada que comprometesse, conforme a passagem já aqui
discutida do fim do primeiro capítulo, a “forma” da cultura. Deixando de lado alguns
poucos comentários que poderiam parecer de menor importância ou relativizáveis,
seria possível imaginar que o próprio Sergio Buarque fosse um proponente de uma
forma política espontaneamente gerada. O que se vê aqui é que, decididamente, não é
esse o caso. Na opinião dele, a “verdade, bem outra, é que essas formas pertencem a
ordens diferentes em essência”. A afirmação é curiosa, porque, pela primeira vez, a
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“forma” aparece submetida a uma “ordem” superior. A transição histórica entre


diferentes “ordens” não é de continuidade, mas, como já sugerido, envolve certa
“superação” de uma pela outra, naquilo que anteriormente havia sido chamado, com
referência à abolição da escravatura em 1888, de “transcendência”. É esse estilo de
raciocínio, que só aparecera, e de modo relativamente discreto, no capítulo III, que
vamos ver retomado com máxima intensidade: pela “superação”, e somente assim, “da
ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e é que o simples indivíduo se faz
cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável ante as leis da Cidade”.
A distinção entre um estágio e outro é qualitativa, e são exatamente as características
que marcavam a vida mental da colônia brasileira, tal como ela vinha sendo descrita –
lembre-se, como acabou de se ver, que o senhor rural era tudo, menos “responsável”
ante qualquer coisa externa a si mesmo – que são “superadas”. “[N]esse fato” de
superação da velha ordem há “um triunfo nítido do geral sobre o particular, do
intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração
sucessiva, uma espiritualização das formas mais naturais e rudimentares”. Quem
duvidasse ainda de que estamos em terreno nitidamente hegeliano, e onde Raízes do
Brasil exibe até momento de idealismo ostensivo, raro na obra de Sergio Buarque,
haveria de capitular ante a conclusão do parágrafo de abertura: a “ordem familiar em
249

sua forma pura é abolida por uma transcendência”143. O Estado – o Estado moderno,
não qualquer organização política anterior assemelhável ao que se conhece nos tempos
modernos – é uma novidade que participa de todo um mundo novo, cujos modos de
operação e conceituação são, têm de ser inteiramente diferentes daquelas dos velhos
tempos. Tanto que, embora ressalte que o conflito entre Antígona e Creonte seja de
“todas as épocas”, sua discussão, que toca a racionalização econômica que acompanha
a Revolução Industrial e as mudanças de modelo pedagógico correspondentes às
transformações sociais da modernidade, se atém a um passado relativamente recente.144
O homem cordial propriamente dito aparecerá em seguida a uma discussão sobre
o desequilíbrio social causado pela urbanização, na qual ele próprio pode ser
identificado como uma presença silenciosa, protagonizando o afluxo, para as cidades,
de indivíduos que ainda reproduzem a mentalidade rural e patriarcal. É de especial
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importância nesse momento da argumentação o deslocamento do centro da vida social


para fora da família – ou melhor, o movimento aqui é fazer exatamente o “social”,
conceito eminentemente moderno, corresponde a uma negação da família. É notável
que Sergio Buarque não hesite em afirmar como destino inevitável a ascendência de
elementos que ele próprio denomina, talvez não sem uma ponta de ironia, “inumanos”.
É com enormes dificuldades que se dá a “abolição da velha ordem familiar por outra,
em que as instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos e
inumanos, tendem a substituir-se aos laços de afeto e de sangue”, abandonando o
“velho ideal que mandava educarem-se os filhos apenas para o círculo doméstico”. Mas
as famílias “retardatárias”, as que insistem em cultivar esse ideal arcaico, “tendem a
desaparecer ante as exigências imperativas das novas condições de vida 145 ”. Quem
pretenda ver em Raízes do Brasil algum tipo de projeto tradicionalista ou algum elogio
sem reservas do “orgânico” precisa se confrontar com essas passagens, pois elas
dificultam muito mesmo a ideia de que a proposta de Sergio seja alguma espécie de

143
RB, p. 93-4.
144
No campo da teoria sociológica, a explicação da modernização como aparecimento de uma nova
“ordem” qualitativamente diferente é reminiscente, ao menos nos termos que aparecem aqui, da
distinção de Ferdinand Tönnies entre Gemeinschaft e Gesellschaft – embora ela participe de um
repertório de ideias bastante disseminado posteriormente. Marx, naturalmente, desenvolve uma análise
parecida algum tempo antes, mas o estilo sociológico de Raízes parece bem mais próximo de Tönnies.
145
RB, p. 96.
250

composição conservadora, por meio de alguma solução de compromisso, entre a ordem


colonial e o mundo moderno. Não. Os novos tempos são decididamente inimigos das
forças tradicionais, e estas não têm como resistir, no longo prazo, à sua lógica social.
A solução possível para esse dilema, ainda que por tendência conservadora ou, pelo
menos, conciliatória, não pode ter como objetivo a preservação das velhas formas, mas
sim a garantia de uma transição que não convulsione desnecessariamente a sociedade.
É aí que entra um dos temas preferidos de Sergio Buarque e insuficientemente
ressaltado na fortuna crítica de Raízes do Brasil: a pedagogia. Se houver um projeto de
educação onde as crianças tenham a oportunidade de se adaptar aos novos tempos,
ainda que isso possa resultar em conflitos geracionais, pelo menos há a possibilidade
de ajuste, no longo prazo, aos quadros de vida modernos. “Segundo os pedagogos e os
psicólogos mais venerados de nossos dias, a educação familiar deve ser apenas uma
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espécie de propedêutica da vida em sociedade, fora da família”, e essas “teorias


modernas” – aliás, as únicas louvadas sem reservas no livro, por comparação à
“ideologia do progresso” e ao “liberalismo” – “tendem, cada vez mais, a destacar o
indivíduo da comunidade doméstica, a ‘libertá-lo’ das virtudes familiares”. A escolha
das palavras por Sergio é intrigante, se lembrarmos que, no capítulo anterior, falava-se
em certo “liberalismo” no modo de vida da colônia. Parece que a velha ordem agora é,
ela própria, assemelhada a uma prisão, não física, mas uma prisão em formas de
pensamento que não compreendem o sentido dos tempos modernos, da qual é preciso
separar-se: “Dir-se-á que essa separação e essa libertação representam as condições
primárias e obrigatórias de qualquer adaptação à ‘vida prática’”146. Note-se mais uma
vez o cuidado com as palavras: quando se fala em “libertação” do círculo familiar como
condição para a “vida prática”, Sergio dá a entender que no mundo senhorial da colônia
não há vida “prática”, no sentido de uma vida regida por normas exteriores a uma
vontade individual, nem adaptação ao social, mas somente a ordem “natural” do
despotismo do patriarca, que não tem conteúdo fixo, nem pode ser reduzido a qualquer
abstração. Nesse sentido, se a criança tiver acesso à diferença conceitual entre a
vontade dos pais como simples autoridade arbitrária e o funcionamento efetivo das
coisas, tais como elas são no “mundo lá fora”, ela estará melhor preparada para a vida

146
RB, p. 96.
251

do que uma criança “bem educada” segundo o velho ideal do “pátrio poder” (isto é:
obediente) sobre o a esfera doméstica. Isso implica mesmo a transgressão da
autoridade paterna como etapa necessária de aprendizado:

Um dos adeptos dessa pedagogia moderna [Knight Dunlap] ensina-nos, [97] por
exemplo, que a obediência, um dos princípios básicos da velha educação, só deve ser
estimulada na medida em que possa constituir uma adoção razoável de opiniões e regras
que a própria criança reconheça como formuladas por adultos que tenham experiência
nos terrenos sociais em que ingressa. “Em particular – observa ainda – a criança deve
ser treinada para desobedecer nos pontos em que sejam falhas as previsões dos pais.”
Deve adquirir progressivamente a individualidade, “único fundamento justo das relações
familiares”.147

Sergio complementa ainda que “onde quer que prospere e assente em bases muito
sólidas a ideia de família”, a ainda mais acentuadamente no caso da “família de tipo
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patriarcal”, será precária, e terá de “lutar contra fortes restrições” a “formação e a


evolução da sociedade segundo os conceitos modernos”. Desse modo, a “crise de
adaptação dos indivíduos ao” “mecanismo social” é “especialmente sensível nos
tempos atuais”, onde triunfaram “certas virtudes anti-familiares por excelência”, como
“aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os
cidadãos”148. Há uma aparente contradição entre este trecho e o suposto predomínio do
“mérito pessoal” como valor na “cultura da personalidade” descrita em “Fronteiras da
Europa”. Aparente apenas, porque, se alcançou-se compreender o sentido específico
que a “concorrência” e o “mérito” assumiam naquelas páginas, há uma diferença
fundamental entre as duas situações. Aqui, o sucesso na “concorrência” é valorado
segundo a régua predefinida dos processos racionais do “social”, determinados pelos
mecanismos estáveis, impessoais e previamente dados do “mercado”, enquanto o
“valor”, o “mérito” do Portugal tardo-medieval deveria ser provado num âmbito
informe e sem fronteiras, desordenado, um mundo de façanhas de cavaleiros, de
competição sem regras e sem objetivos predetermináveis, isto é, um mundo de
aventura. A “iniciativa pessoal” do mundo moderno e capitalista é de uma natureza
inteiramente diferente daquela do mundo ibérico da época da expansão marítima, que

147
RB, p. 96-7.
148
RB, p. 97-8. Note-se que essa construção frasal admite interpretar-se que no Brasil do “passado
agrário” não há “mecanismo social” propriamente dito.
252

fora, por sinal, animada em parte pelo estímulo “negativo” de uma “pouca disposição
para o trabalho”149, como se lê em trecho já citado do capítulo II, e, conforme a abertura
de “Novos tempos” (cap. IV), o “indivíduo”, nesse contexto, “se afirma ante os seus
semelhantes, indiferente à lei da comunidade e atenta apenas ao que o distingue dos
demais, do resto do mundo”150.
Pouco depois da altura onde aparece a citação de Knight Dunlap, Sergio volta ao
Brasil, ressaltando os inconvenientes especialmente acentuados da ordem colonial para
o ajuste aos quadros da vida moderna: onde imperava “desde os tempos mais remotos
da colonização, o tipo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que
não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos
meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das
cidades” seria natural esperar-se, no período de transição para aquilo que anteriormente
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fora chamado de “urbanocracia” acarretasse “um tremendo desequilíbrio social, cujos


efeitos permanecem vivos ainda hoje”. E Sergio volta a enfatizar a ausência do trabalho
como uma dimensão integrada à vida, presente somente como o mais vexaminoso dos
destinos, como agravante desse quadro. É, aliás, exatamente a frase na sequência da
qual vem o tantas vezes discutido momento patrimonialista weberiano de Raízes do
Brasil:

Em terra onde não existia praticamente trabalho manual livre, em que uma classe média
quase nula não tinha como impor sua influência, os indivíduos que iam servir nas
funções criadas com a nova ordem de coisas tinham de ser recrutados, por força, entre
os elementos da mesma massa dos antigos senhores rurais. [...] Não era fácil aos
detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente
compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do “privado” e do “oficial”.
Assim eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do
puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”,
a própria gestão política se apresenta como assunto de seu interesse particular; as
funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais
do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado
burocrático, em que prevalecem a especialização de funções e o esforço para se
assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.151

149
RB, p. 23.
150
RB, p. 113.
151
RB, p. 99-100.
253

A mentalidade rural é reproduzida nos quadros administrativos do Estado em


formação, que serão recrutados não entre as classes médias urbanas, como na
modernização europeia, pois essas no Brasil são praticamente inexistentes, mas entre
os próprios membros da classe senhorial. Dá-se, então, na construção do Estado
burocrático, uma inversão do padrão da modernização: a nova ordem não é função de
um espírito público racionalizador, conformado pela lógica da impessoalização das
relações com o surgimento da esfera pública, mas o contrário: não há ordenação
impessoal imposta por imperativos coletivos, ainda que externos ao indivíduo, mas
pessoas que desempenham funções à maneira da administração, não se dirá sequer de
um negócio familiar, mas da própria família autárquica da colônia. Nas palavras de
Sergio, a estrutura do Estado formada “a pouco e pouco” durante o Império
“comportava elementos estreitamente vinculados ao velho sistema doméstico” 152 .
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Consequentemente, os “detentores das posições públicas de responsabilidade” não


compreendiam “a distinção fundamental entre os domínios do ‘privado’ e do
‘oficial’”.153 Entre esses membros do patriarcado rural, o núcleo familiar, “a esfera, por
excelência, dos laços de sangue e de coração” exerce uma “supremacia incontestável,
absorvente”, e as relações domésticas, com sua lógica própria, “sempre forneceram o
modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós”, mesmo quando as
instituições se revestissem com formas exteriores liberal-democráticas importadas da
Europa154.
Voltou-se, assim, ao problema inicial da antinomia entre ordem familiar e ordem
pública em Antígona e Creonte. Note-se que, como já se vira no capítulo IV, o quadro
de referências da sociedade colonial impõe o patriarca, soberano em sua propriedade,
como ideação normativa do “poder” e da autoridade, impondo uma “contiguidade”
corpórea e, presume-se, até psicológica entre os indivíduos ligados por relações
familiares, de modo que o desejo de Antígona de enterrar o seu morto (do qual ela é,
de certo modo, uma extensão vivente) representa aqui essa atitude, uma atitude anti-
política, no sentido de inimiga do Estado, o Estado central, mas que não deixa de seguir,

152
RB, p. 99.
153
RB, p. 100.
154
RB, p. 101.
254

ela própria, uma certa teologia política, onde o “corpo místico da república” legítimo
não é o do Estado, mas o da família, ou ainda, onde a família é o seu pequeno Estado,
detendo autoridade e poder em seu território. E é só então que começa a caracterização
detalhada de qual seria a forma de racionalidade gestada nesse meio rural e patriarcal
– em procedimento que evoca a metodologia weberiana dos “tipos ideais”, mas talvez
ainda mais aparentado da exposição hegeliana das “figuras da consciência”, adaptada
para contextos sociológicos empíricos.
É só aqui que aparece a famosa citação ao “escritor Ribeiro Couto”, que teria
dito, “numa expressão feliz”, que “a contribuição brasileira para a civilização será de
cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’”. Nunca é demais lembrar a raiz
etimológica em comum com a palavra coração, em latim, cor/cordis. A “lhaneza no
trato, a hospitalidade, a generosidade” de que tanto se orgulham os brasileiros,
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“formam um aspecto bem definido do caráter nacional”. O fato de essas manifestações


terem um parentesco aparente com expressões de “boas maneiras” ou de “civilidade”
é ilusório. Não se trata, como na polidez, de uma formalização sistemática
desenvolvida como defesa ante o mundo social, mas de “expressões legítimas de um
fundo emocional extremamente rico e transbordante”155. A confusão está no fato de a
polidez consistir em “uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são
espontâneas no ‘homem cordial’” – a polidez é vontade e razão, funcionando como
“um disfarce, que permitirá a cada um preservar intactas sua sensibilidade e suas
emoções”.156 Já a cordialidade é a manifestação imediata de afetos. A polidez, com sua
“estandardização das formas exteriores da cordialidade”, isto é, transformando em
ritual o que, num estado que se supõe “natural”, é mero expressivismo, constitui “um
dos mais decisivos triunfos do espírito sobre a vida”157; graças a ela, logra-se manter
uma “presença contínua e soberana do indivíduo”. Com o homem cordial, dá-se o
contrário: a vida social é o local onde ele se liberta do “pavor que ele sente em viver

155
RB, p. 101.
156
RB, p. 102.
157
Note-se a partir desse trecho como, na oposição entre cordialidade e civilidade, Sergio faz o “espírito”
coincidir com a “civilização”, exatamente como Thomas Mann nas Considerações de um apolítico, onde
a “vida”, que, assim como em Raízes, se opõe ao espírito, está do lado da “cultura”: “[a] civilização [...]
é o espírito mesmo – o espírito no sentido da razão, das maneiras polidas, da dúvida, das luzes e, enfim,
da desagregação, enquanto que a cultura, ao contrário, representa o princípio artístico organizador e
construtivo que mantém e transfigura a vida”. Considérations d’um apolitique, cit., p. 149.
255

consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da


existência”, ficando o indivíduo assim restrito à sua “parcela social, periférica”,
vivendo “nos outros”, ou seja, desprovido de interioridade158. Vale dizer: desprovido
de caráter, de personalidade, em termos modernos159.
Essa organização da sensibilidade governada pelos afetos terá consequências
importantes na vida social e no estilo de pensamento dos brasileiros. A esfera dos
afetos, por meio da qual o indivíduo recebe os estímulos exteriores, é eminentemente
superficial e passiva – no sentido em que a “natureza” e a “vida” eram assemelhadas,
nos capítulos anteriores (esp. II, III e IV), ao abandono da vontade e à adesão aos ritmos
do meio, correspondendo o “espírito” e a “civilização” à negação das duas primeiras,
pode-se dizer que essa é uma subjetividade “natural”, na qual o ethos não suplanta o
pathos: o mundo da vida é compreendido sempre como sucessão de padecimentos,
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nunca como esfera onde agem, transformando-o, a vontade e a razão.


Consequentemente, todas as interações com o mundo exterior deverão, de preferência,
adquirir uma forma compreensível em termos afetivos (ou, como se lê textualmente,
nos moldes dos “laços de sangue e de coração”, ou seja, os laços “naturais” e
familiares). A vontade cria um limite claro entre o “eu” e o “mundo”, este agora à
mercê das intervenções fundamentalmente antinaturais do “espírito”. Antinaturais e,
conforme a reflexão de Ludwig Klages sobre o Eros cosmogônico, inimigas da própria
vida 160 . Esse “eu” artificialmente criado por meio dos mecanismos do “ritualismo
social” tem como condição uma “personalidade homogênea e equilibrada em todas as
suas partes”, capaz de conter-se ante em situações como as reverências.
Desconhecedora da distinção entre o respeito ao prestígio público e o afeto privado, a
subjetividade “cordial” faz o primeiro sempre procurar transfigurar-se no segundo, para
tornar-se mais tolerável161.

158
RB, p. 102-3.
159
É sempre oportuna a lembrança da afinidade sutil, mas altamente sugestiva, entre Raízes do Brasil e
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter – livro publicado em 1928 e cujas inspirações míticas
ameríndias foram cuidadosamente identificadas por Sergio Buarque em resenha publicada na mesma
época da redação de Raízes do Brasil. HOLANDA, Sergio Buarque de. O mito de Macunaíma. EL, I, p.
260-267. Texto publicado originalmente na revista O espelho, n. 6, set 1935.
160
KLAGES, Ludwig. De l’éros cosmogonique. Paris: L’Harmattan, 2013, p. 91-3.
161
RB, p. 103.
256

Assim se explica a ubiquidade, na língua brasileira, dos diminutivos na


denominação de objetos, de modo a torná-los “mais acessíveis aos sentidos e também
de aproximá-los do coração” 162 , bem como a “religiosidade de superfície” dos
brasileiros, um catolicismo “que deve parecer tão escandaloso às almas
verdadeiramente religiosas”163, pois não é realmente uma espiritualidade piedosa, mas
procura se aproximar do divino como se ele fosse passível de relações de intimidade
pessoal, e até carnal, com o devoto, como é o caso das festas do Senhor Bom Jesus do
Pirapora, em São Paulo, onde corre a lenda “do Cristo que desce do altar para sambar
com o povo”164. A essa forma de vida religiosa “menos atenta ao sentido íntimo das
cerimônias, do que ao colorido e à pompa exterior; quase carnal em seu apego ao
concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda espiritualidade; transigente” e
“pronta a acordos” por causa de sua base puramente afetiva, “ninguém pediria [...] que
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se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa”. É interessante, aqui, notar-se


como a “personalidade” exigida pela religiosidade supostamente “verdadeira”,
“espiritual”, acaba engendrando uma espécie de personalidade de segundo grau, um
segundo eu negador que julga e reprime as volições eventualmente incorretas de um
Eu natural, reproduzindo, no interior da personalidade, a mesma ausência do “espírito”
e o predomínio do “orgânico” e da “vida”. “Religiosidade que se perdia e se confundia
em um mundo sem forma, e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor uma
ordem”165. Nesse mundo sem formas (que está no fundo de nossa formação histórica),
não há espaço para o surgimento, conforme a frase lapidar do último parágrafo do
capítulo, de “uma vida íntima bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver
e dominar toda a personalidade, ajustando-a como uma peça consciente no meio
social”.166
Onde não há alienação de si mesmo, onde não há trabalho, não há o necessário
espaço para o surgimento das formas ritualísticas, e essas mesmas se apresentam no
horizonte intelectual desprovidas de seu sentido próprio. Esse é, salvo engano, um dos

162
RB, p. 104.
163
RB, p. 105.
164
RB, p. 106-8.
165
RB, p. 108.
166
RB, p. 110.
257

aspectos menos compreendidos da argumentação de Raízes, e que vale a pena analisar


com algum detalhe. “A antipatia instintiva pelas formas ritualísticas”, lemos, “pode
justificar-se em parte” na medida em que, “no fundo”, elas “não nos são necessárias”.
Elas o seriam, caso houvesse um contexto comum com sua origem, isto é caso houvesse
um mundo social que solicitasse uma “reação de defesa”. Mas, pela própria
informidade do meio, pelo aspecto primitivo da organização política, no mundo da
“autarquia” da propriedade rural familiar, “nossa reação ao meio em que vivemos não
é uma reação de defesa”. Isso tem na vida espiritual as consequências mais perniciosas,
porque essa indistinção, no horizonte intelectual, entre uma forma detentora de sentido
próprio e os elementos díspares do ambiente informe, onde a experiência não teve as
necessárias etapas de aprofundamento e sofisticação de mecanismos discriminatórios
da razão, leva a uma incompreensão radical dos produtos culturais, especialmente
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aqueles dedicados à reflexão e conceitualização da realidade social. O brasileiro “é


livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias e de gestos que encontra em
seu meio, ainda quando obedeçam ao mais rigoroso ritualismo”. O “ritualismo” dos
produtos espirituais (por exemplo, as regras da expressão poética épica ou dramática)
é compreensível enquanto formalismo vazio de conteúdo, mas o enraizamento dessas
regras em valores concretos preexistentes e conformados por uma realidade concreta é
incompreensível ou, na melhor das hipóteses, aceito de antemão por expedientes de
mistificação: “Nossa assimilação desses gestos e ideias por isso mesmo que não nos
são necessários [isto é, por não serem necessários], tem caráter puramente
mecânico.” 167 Não há necessidade nas ideias que se adotam, porque elas não
representam conflitos reais, mas pode-se seguir o formalismo, assim como se faz uma
reverência a um superior, na expectativa compensatória de que se vai tornar em breve
seu amigo.
Os conhecedores da obra de Max Weber reconhecerão no foco e no estilo de
consideração da vida religiosa, bem como na ênfase nos estilos de racionalidade e de
personalidade, muito presentes nesse capítulo, alguns eixos de análise da sociologia
compreensiva weberiana. Compreende-se, assim, a tradicional associação, na fortuna

167
RB, p. 110.
258

crítica de Raízes do Brasil, entre o homem cordial e o tipo ideal weberiano 168 . A
homologia funcional entre os argumentos é tão clara que Jessé Souza chegou a
sustentar que o “homem cordial” seria uma inversão simétrica do calvinista ascético da
Ética protestante169. Isso implicaria, entretanto, além de identificar temas e conclusões
semelhantes, remeter a construção metodológica do homem cordial às balizas teóricas
da sociologia de Weber170. Segundo essa linha metodológica, que combina o realismo
crítico kantiano com a hermenêutica nietzschiana dos valores, conhecer a realidade
significa constituir modelos interpretativos respaldados pelos valores vigentes na
linguagem do próprio meio a ser interpretado. O conhecimento é uma construção
intelectual que não possui uma objetividade materialmente coincidente com o real
interpretado – a epistemologia kantiana vê nisso uma ingênua fantasia, assim como,
por motivos diferentes, a filosofia de Nietzsche – mas também não é uma pura
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especulação sem lastro real, pois o modelo é constituído a partir de valores


efetivamente compartilhados. Os produtos de interpretação histórica e sociológica
produzidos segundo essa metodologia são descrições da realidade em termos estáticos
– coerentemente, na Ética protestante 171 , o “espírito do capitalismo”, o “tipo”, é
apresentado antes da demonstração histórico-filológica dos procedimentos de indução
que nele culminam, e se dá na forma de apresentação-explicação. No estudo sobre o
confucionismo e o taoísmo172, que dá seguimento à Ética, a ordem se inverte, mas em
ambos os casos o essencial está no resultado da análise, e não em alguma apreensão

168
Antonio Candido notou o pioneirismo do uso de Weber em Raízes do Brasil no conhecido ensaio
publicado à guisa de prefácio das edições posteriores a 1969 de Raízes do Brasil; o trabalho que defende
com maior contundência a procedência weberiana da metodologia que conforma o homem cordial é A
queda do aventureiro, de Pedro Meira Monteiro. MELLO E SOUZA, Antonio Candido de. O significado
de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição crítica. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016; MONTEIRO, Pedro Meira. A queda do aventureiro. Aventura,
cordialidade e os novos tempos em Raízes do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 1999.
169
SOUZA, Jessé. Raízes do Brasil e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 13, n. 38, out 1998, p. 97-116.
170
A exposição mais sucinta se encontra em WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento nas
ciências sociais. São Paulo: Ática, 2006. É verdade que este texto não é dos mais bem escritos do autor
e tampouco encerra toda a riqueza teórica de sua obra. Sergio possuía uma exemplar do volume de textos
metodológicos de Weber que contém esse texto (Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre), além de
Economia e Sociedade.
171
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das letras,
2004.
172
WEBER, Max. Ética econômica das religiões mundiais, v. 1. Confucionismo e taoísmo. Petrópolis:
Vozes, 2016.
259

teórica dos elementos dinâmicos do processo. Note-se, aliás, que as reflexões sobre o
“espírito do capitalismo” eram presentes no ambiente intelectual alemão até o ponto
impressionante de instigarem o estudo de um romancista como Thomas Mann, que no
entanto acreditava já tê-las prefigurado intuitivamente em sua obra de ficção, como se
pode ler nesta passagem das Considerações de um apolítico, que Sergio certamente
terá lido com grande interesse. Talvez ingenuamente, mas não sem uma boa dose de
razão, Mann identifica na crítica dos valores modernos por Nietzsche, outro autor
central à construção de Raízes do Brasil, a origem comum de todas aquelas reflexões:

Gostaria de deixar claro que eu senti e inventei por conta própria, sem nenhuma leitura,
por intuição direta, o pensamento de que o homem industrioso, o capitalista moderno, o
bourgeois [em francês no original], com a ideia ascética do dever profissional, era uma
criatura surgida da ética protestante, do puritanismo e do calvinismo. Só depois eu notei,
há pouco, que sábios pensadores haviam na mesma época tido e exprimido esse mesmo
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pensamento. Max Weber de Heidelberg e logo depois Ernst Troeltsch trataram da “ética
protestante e o espírito do capitalismo” e, levada até um ponto extremo, essa ideia se
encontra na obra de Werner Sombart publicada em 1913, Der Bourgeois, onde ele faz
do chefe das empresas capitalistas a síntese do herói, do comerciante e do burguês
[Bürger]. Ele tem bastante razão, tanto que eu, como romancista, dera corpo à sua
doutrina doze anos antes que ele a formulasse, – isso, se supusermos que a figura de
Thomas Buddenbrook, encarnação antecipada de sua hipótese, não tenha ela própria
influenciado o pensamento de Sombart; mas o elemento novo que eu gostaria de
acrescentar é a suposição – que equivale a uma quase certeza – de que nossa
concordância a respeito do encadeamento psicológico “calvinismo-burguesismo-
heroísmo” existe graças a um mediador superior, o mais alto mediador espiritual, o
mediador Nietzsche. Com efeito, sem esse evento que domina nossa época e influencia
toda a sua aventura espiritual até as últimas ramificações, e que foi uma aventura heroica
de uma espécie inaudita, nova, moderna, o sociólogo não teria, sem nenhuma dúvida,
chegado a formular a sua tese sobre o protestantismo heroico, não mais do que o
romancista teria podido conceber a figura de seu “herói” como ele a viu.173

O método weberiano é, de certo modo, oposto ao paradigma morfológico e


“historista” da formação em sua versão clássica, que vê a verdade na totalidade
historicamente desdobrada, sem privilegiar algum momento específico para um recorte
transversal explicativo. Retomando as considerações anteriores sobre o conceito de
forma na teoria do conhecimento goethiana (Cf. supra, “Interlúdio”), pode-se dizer que
o homem cordial está mais próximo de uma etapa de uma forma aberta, e não de uma
configuração fechada, como as construções da sociologia weberiana. Não faria sentido,

173
Considérations d’um apolitique, p. 128-9.
260

numa situação que se apresenta como aberta para possibilidades, narrar a formação
como atrelada a um destino determinado de antemão por circunstâncias já consolidadas
e irreversíveis – lembre-se da “crosta” ou “jaula” de aço das páginas finais da Ética
protestante, que enrijece a personalidade moderna na era da racionalização capitalista
– mesmo que seja possível argumentar em favor da procedência weberiana de
momentos importantes da argumentação de Raízes, como no contraste entre as éticas
do “trabalho” e da “aventura” no segundo capítulo 174 . Considerado dentro do arco
histórico do pensamento em torno da Bildung, Weber não pode ser enquadrado senão,
sobretudo, como um pensador de sua crise e da desmoralização das instituições
atreladas àquele ideal – lembrem-se aqui as considerações extremamente pessimistas
do sociólogo sobre o sistema de educação superior alemão, idealizado por um dos pais
fundadores da Bildung, W. von Humboldt, na famosa palestra sobre a Ciência como
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vocação.175 Aqui, a educação já não é pensada tanto como efetivação das potências do
espírito humano, mas como “vocação”, vale dizer, como destino, pois a categoria é
desenvolvida por Weber na Ética protestante a partir da doutrina calvinista da
predestinação. Weber não apresentaria, naquela altura, um atrativo especial para quem
pretendesse analisar um futuro aberto, e a narração fluida de Raízes do Brasil não
parece se acomodar bem à forma eminentemente sistemática das explicações da
sociologia weberiana. Por outro lado, Weber traçou com maestria uma sistemática do
tipo de conexões e valores que presidem a modernidade ocidental.
A oposição simétrica entre o homem cordial e a análise de Weber parece indicar
que Raízes do Brasil adota, de um lado a teoria weberiana da formação da

174
Vale lembrar aqui uma frase de um Sergio Buarque já consagrado como historiador, no final dos anos
1960, numa rara consideração teórica sobre a disciplina histórica: “em História as estruturas, quando
mal se insinuam, já são quase ao mesmo tempo superadas”. Essas palavras, Sergio teria dito a um
arguidor de sua dissertação Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos
descobrimentos, provavelmente, anota Raphael Guilherme de Carvalho, editor da transcrição desse
texto, Herbert Baldus. Claro que quem diz isso não é o mesmo Sergio que escreve Raízes do Brasil em
1936, mas o “homem cordial” já aparece, em Raízes, como uma realidade que resiste com dificuldade à
chegada dos “novos tempos”. Note-se, por outro lado, que nenhuma outra obra de Sergio Buarque se
aproxima tanto dessa dissertação de 1958, seja por tema ou por estilo metodológico. HOLANDA, Sergio
Buarque de. “História”, palestra de Sergio Buarque de Holanda no Centro de Estudos Históricos Afonso
Taunay, Universidade de São Paulo (CEHAT-USP) (1967-1969). Revista do IEB, n. 70, ago 2018, p.
316.
175
WEBER, Max. A ciência como vocação. In: BOTELHO, André (Org.) Essencial sociologia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2013.
261

personalidade moderna, e de outro, sua sociologia mais abrangente em torno da


dominação e da racionalização – não se deve esquecer que o nome de Weber aparece
textualmente nas discussões sobre dominação e burocracia. A primeira parece ter
causado uma impressão tão forte em Sergio Buarque que é reproduzida como molde
negativo em certas passagens sobre o homem cordial, e a segunda poderia muito bem
operar em Raízes como uma descrição adequada das sociedades modernas, mas a
rigidez com que Weber estabelece a tendência à “racionalização” no mundo moderno
não parece necessariamente partilhada por Sergio Buarque, que, afinal, idealiza seu
“homem cordial” apenas para sentenciar, antes mesmo de sua aparição como conceito
bem definido, que ele participa de formas de sociabilidade tendentes ao
desaparecimento. Nas palavras de Luiz Fernando Franco, ele parece interessado numa
“verdadeira mutação civilizacional”176 , algo que nem mesmo a filosofia da história
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morfológica de Spengler pareceria poder admitir em seu fatalista modelo de


“decadência do Ocidente”, isto é, com a possibilidade de uma “Revolução” que
sintetizasse elementos díspares de nosso “ritmo espontâneo” com a vida moderna.
Lembre-se que Spengler, como aliás também Ranke, à diferença da generalidade dos
pensadores anglo-saxões, conta a península ibérica e a América Latina como parte do
Ocidente177; de resto, “civilização”, para Spengler, corresponde a um estágio tardio de
evolução das culturas, opinião dificilmente discernível na argumentação de Raízes do
Brasil.
Se, de um lado, é verdade que “O homem cordial”, que aparenta um estilo
descritivo aparentado àquele Weber, é o capítulo mais importante do livro, pelo menos
do ponto de vista da narrativa histórica – e pode-se argumentar que os dois últimos
capítulos teriam precedência, caso se procure em Raízes do Brasil um livro mais
propositivo e programático – , de outro, é difícil fazer as divisões em capítulos do livro

176
Defeito mecânico, cit. “Introdução”, p. 5. A cópia eletrônica da tese gentilmente fornecida por
Guilherme Pereira das Neves não reproduz a paginação do exemplar depositado na Biblioteca da UFF.
177
“As ‘raças’ do Ocidente não são criadoras das grandes nações, mas suas consequências. Elas ainda
não existiam na época carolíngia. Foi o ideal cavalheiresco que se reproduziu em diferentes lugares, e
em grande medida estabeleceu quilo que hoje se sente e vive como ‘raça’ em diversas nações nos dias
de hoje. […]. O fato de existir hoje um povo português, e, por isso, também um Estado português no
Brasil, no meio da América Hispânica, é resultado do casamento do conde Henrique de Borgonha em
1095.” Die Entstehung des Abendlandes, cit. v. 2, p. 775. No caso de Ranke, que intrigava o próprio
Sergio Buarque por excluir outros povos europeus de seu conceito de Ocidente, ver “O atual e o inatual
na obra de Leopold von Ranke”, LP, p. 180-183.
262

equivalerem a unidades nitidamente apartadas, porque Raízes do Brasil nunca deixa


inteiramente de lado a progressão do tempo histórico, mantendo sempre certo
dinamismo narrativo. Assim, o parágrafo final do capítulo IV178 (“O passado agrário,
continuação”; renomeado a partir da segunda edição como “O semeador e o
ladrilhador”) já prepara a problemática do “homem cordial” ao introduzir o tema da
antinomia entre as normas que regem a vida na família e no Estado (a distinção
moderna entre esfera privada e esfera pública), enquanto o capítulo VI (“Novos
tempos”) tratará da persistência da forma mental e da sociabilidade “cordiais” em meio
à desagregação da ordem econômica e social que as produziu. Não há rupturas nítidas
no desenvolvimento histórico da matéria analisada, nem no tipo de comentário sobre
ela, para além da divisão em capítulos, que serve como um marco conceitual para
melhor compreensão dos momentos de um todo contínuo e organicamente articulado.
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Salvo, é claro, quando se fala em “transcendências” por meio das quais “ordens”
anteriores são “abolidas”, estilo de argumentação antes hegeliano do que weberiano,
ou até morfológico. Por outro lado, Weber parece inteiramente ausente dos parágrafos
mais sintéticos do livro, isto é, aqueles que dão a ver a sua estrutura teórica mais
profunda, pelo menos no que diz respeito à teoria da cultura de Raízes – a saber, os
dois ou três primeiros, o último do primeiro capítulo e o último de “Nossa Revolução”
(isto é, do livro). Nesses trechos, a morfologia das culturas de Spengler parece a fonte
mais provável, embora a elefantina Decadência do Ocidente, com seu barroco sistema
de ordens e articulações de expressões culturais, pareça ser aproveitada por Sergio
muito livre e seletivamente.

***

Diante dessa estrutura argumentativa abertamente heteróclita, seria o caso de perguntar


qual estabilidade axial possível seria capaz de abrigar o todo de Raízes do Brasil. Que
tipo de evolução argumentativa pode comportar racionalismo e vitalismo, sem cair no
estilo intelectual que o próprio livro critica – daqueles homens que se deixam seduzir
pelas “doutrinas dos mais variados matizes”, sustentando “as convicções mais

178
RB, p. 89.
263

díspares”?179 Sob a perspectiva de um racionalismo mais tradicional, a consistência da


argumentação de Raízes do Brasil não é exatamente óbvia. Mas – e se os diferentes
estilos de análise fossem simplesmente diferentes momentos da compreensão de uma
realidade que comporta elementos aos quais corresponderiam, cada um, formas de
conhecer diferentes? E se, para dizê-lo mais claramente, o argumento de Raízes não
fosse nem estritamente weberiano nem estritamente vitalista, nem puramente histórico
ou sociológico, mas dialético? Nesse caso, o já apontado hegelianismo teria sido
apropriado até os níveis mais profundos da argumentação – embora, como sempre,
Sergio não adote o influxo teórico até suas últimas consequências, preservando alguma
liberdade. Vale a pena, antes de passar aos dois capítulos finais do livro, uma rápida
digressão sobre o problema, já que o “O homem cordial” é o mais nitidamente
hegeliano dos capítulos de Raízes.
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Antonio Candido, em texto conhecido, já apontara para a “admirável


metodologia dos contrários” e para “posições de tipo hegeliano”180 de Raízes do Brasil.
Mais recentemente, Pedro Meira Monteiro discutiu a inspiração hegeliana da passagem
sobre conflito entre Antígona e Creonte que abre, dramaticamente, o capítulo “O
homem cordial”181. Procurando defender Raízes do Brasil dos ataques de Jessé Souza
em A elite do atraso, Iná Camargo Costa foi talvez quem maior destaque deu à presença
hegeliana na montagem do conceito-chave do livro182. Convém esclarecer a pertinência
da aproximação. Os indícios mais salientes, em Raízes do Brasil, são quatro: 1) o
emprego da Antígona de Sófocles como metáfora ilustrativa do surgimento de uma
ética da polis, por oposição à persistência de valores familiares183; 2) um procedimento

179
RB, p. 114.
180
MELLO E SOUZA, O significado de Raízes do Brasil, cit. p. 359-60.
181
MONTEIRO, Pedro Meira. Uma tragédia familiar (À sombra de Hegel). In: Signo e desterro. Sergio
Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015, p.43-53.
182
O texto não se propõe uma investigação exaustiva, caminhando por textos outros que a
Fenomenologia e chegando a conclusões que este estudo não pôde acompanhar – a saber, que o “homem
cordial” se limitaria a uma descrição da classe dominante, posição amplamente desmentida pelos vários
momentos em que Sergio se vale de manifestações da cultura popular antes e durante o capítulo V. Ainda
assim, as aproximações hegelianas são proveitosas. COSTA, Iná Camargo. Sergio Buarque, o “Homem
Cordial” e uma crítica inepta. Outras palavras, 11/05/2018. Texto disponível em:
https://outraspalavras.net/poeticas/sergio-buarque-o-homem-cordial-e-uma-critica-inepta/. Último
acesso em 19/07/2020.
183
A Antígona é citada duas vezes na Fenomenologia do espírito: uma, no §437 o ultimo antes do
capítulo “O espírito”, onde é discutida a razão examinando as leis, e outra, no §470, na parte sobre a
ética do capítulo “O espírito”. Sergio parece ter em mente as duas, pois na primeira Antígona representa
264

argumentativo frequentemente baseado na oposição de pares antitéticos, encontrado já


desde o primeiro capítulo, mas especialmente pronunciado em “Trabalho & aventura”,
na comparação entre portugueses e espanhóis feita no quarto capítulo, que na segunda
edição é realçada pelo novo título “O semeador e o ladrilhador” e nas já aludidas
dinâmicas contrastantes que antecedem a aparição do “homem cordial”; 3) na
recorrência de termos como “superação” e “abolição”, sempre associados à evolução
das formas históricas, em provável remissão à noção hegeliana de Aufhebung; e 4)
embora isso pareça ter escapado à maioria dos comentadores, a ideia mesma de
“cordialidade”.
É sabido que o termo é tomado emprestado de Ribeiro Couto, mas há uma
possível conexão aquela “lei do coração” de que fala Hegel no capítulo sobre a “Certeza
e verdade da razão”, que antecede a chegada do “Espírito” – mas ao final do qual,
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hegelianamente, já desponta, como um botão de flor ainda por desabrochar, esse termo
culminante da sua filosofia. Qual a possível relação da “lei do coração” hegeliana com
a “cordialidade” brasileira? Evitando, na medida do possível, o vocabulário pouco
acessível do filósofo alemão, pode-se dizer que a lei do coração é um estágio de
compreensão do mundo ético que vê a não-coincidência entre sua ideia do que deveria
ser e o que é como uma perversão do mundo. Só que o “coração” não dialetiza sua
compreensão do dever-ser, colocando-se no lugar do Outro, então não percebe que é,
ele próprio, a sede da perversão, e que o “curso do mundo” não foi efetivamente
compreendido em seu julgamento inicial e unilateral. A eticidade [Sittlichkeit] real e
não pervertida só pode existir quando a universalidade da lei tiver superado a
unilateralidade do coração – quando a consciência for capaz de deixar para trás a
obsessão de sua singularidade. Ou, para citar o próprio Hegel num momento de relativa
clareza, no §373 da sua Fenomenologia:

a ética, e na segunda a infração da ética; essa passagem entre um estado e outro é a “superação” ou, nos
termos da tradução consultada, “suprassunção” do conflito, com o qual a ética familiar dá lugar à pública.
Antígona comete a ação criminosa conscientemente e sofre porque, ao cometer o crime, sabe estar no
erro sente a dor do remorso. Esse sofrimento é indicado como efetivação, na consciência, da norma ética:
“O ato consumado inverte o ponto de vista da consciência; a implementação enuncia, por si mesma, que
o que é ético deve ser efetivo, pois a efetividade do fim é o fim do agir. […] Devido a essa efetividade,
e em virtude do seu agir, a consciência ética deve reconhecer seu oposto como efetividade sua; deve
reconhecer sua culpa: ‘Porque sofremos, reconhecemos ter errado’ [Antígona, v. 926]” Fenomenologia
do espírito, cit., p. 296-7, 318-9.
265

Por meio do conceito de seu agir, o indivíduo determinou de maneira mais exata como
é que se volta contra ele a universalidade efetiva – da qual se fez propriedade. Seu agir,
como efetividade, pertence ao universal; mas seu conteúdo é a própria individualidade,
querendo manter-se como este singular, oposto ao universal. Não se trata aqui do
estabelecimento de qualquer lei determinada; porém, a unidade imediata do coração
singular com a universalidade, é o pensamento que deve valer e ser erigido em lei: “que
todo coração deve reconhecer-se a si mesmo no que é lei”.
Mas só o coração deste indivíduo pôs sua efetividade no seu ato, que exprime seu ser-
para-si ou seu prazer. O ato deve valer imediatamente como universal, quer dizer, é na
verdade algo particular: da universalidade tem apenas a forma; seu conteúdo particular
deve, como tal, valer por universal. Por isso os outros não encontram realizada nesse
conteúdo a lei de seu coração, e sim a de um outro. Ora, de acordo com a lei universal,
justamente – de que “cada um deve encontrar seu coração no que é lei” –, voltam-se
contra a efetividade que este indivíduo propunha, assim como ele se voltava contra a dos
outros. Por conseguinte, o indivíduo, como antes abominava somente a lei rígida, agora
acha os corações dos próprios homens, contrários a suas excelentes intenções e dignos
de abominação.184
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Ora, a cordialidade implica, como se sabe, uma incompreensão radical de uma


ordem genuinamente pública, de uma lei da Cidade, em oposição à da Família. Parece,
então, que o homem cordial estaria num nível de consciência anterior àquele a que
corresponde o Estado – é sugestiva, lembre-se, a insistência com que o homem cordial
é caracterizado como uma alma governada pelos afetos, que no plano da
Fenomenologia poderiam corresponder, aproximadamente 185 ao primeiro e mais
elementar estágio da consciência: a “certeza sensível”.
O que parece haver aqui é a constatação de um processo mental em desvio
recalcitrante do curso de pensamento que Hegel traça, em sua Fenomenologia, da
“certeza sensível” até o “espírito”. Há como que uma dialética “pervertida”, que não
logra resultar na efetivação do espírito, sendo conduzida a outros lugares.186 Se Sergio

184
HEGEL, Fenomenologia do espírito. cit., p.258-259.
185
Se há uma psicologia na Fenomenologia, ela não é sistemática, no sentido de uma descrição estática,
mas sim dinâmica, e não admitiria um conceito estável como o que normalmente se entende por “afeto”
– não, pelo menos, como categoria descritiva. Conforme o § 24, no Prefácio (Vorrede), a ciência deve
ser sistema, mas procede a partir de postulados que serão, no decurso do processo de conhecer, refutados.
Dessas proposições, mais adequado do que dizer que são erradas, é dizer que são o começo da ciência
(p.36).
186
A esse respeito, lembre-se que, no único comentário mais alentado, salvo engano, que Sergio Buarque
fez sobre Hegel, numa resenha do livro Dialética do conhecimento, de Caio Prado Jr, Sergio parafraseia
uma crítica do psicólogo Willy Hellpach (nenhum livro é referido) sobre a dialética. Nesse momento,
pelo menos ele já se mostra bastante cético, se não tanto do método, da certeza otimista com que Hegel
demonstra a progressão da consciência: “Uma análise recente pode mostrar de modo engenhoso a
unilateralidade do tipo de desenvolvimento proposto por Hegel. Segundo observou Hellpach, só é
266

vê nisso um valor negativo, é difícil determinar com certeza187 . Parece pelo menos
plausível, a julgar pela evolução da narrativa de Raízes do Brasil (lembre-se, aliás, que
a Fenomenologia do espírito é muito mais uma narrativa da consciência em seus vários
momentos, do que seu “sistema”, na acepção mais corrente da palavra), que há uma
profunda afinidade com o método hegeliano de apresentar a realidade sob pontos de
vista e formações valorativas diferentes, dependendo do momento em que a
consciência está, de modo que a experiência da consciência se desdobra em evolução
dinâmica.

4. A triste realidade e a vã filosofia


O capítulo VI, “Novos tempos”, é relativamente mais “histórico” e menos “teórico” do
que o “Homem cordial”. As reduções sintéticas do capítulo anterior deixam, em certa
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medida, lugar à evolução histórica da cordialidade em meio à transição para o mundo


da cidade e do dinheiro. Mesmo assim, há descrições psicológicas de grande densidade,
e entra em cena um desdobramento histórico que vinca a trajetória de modernização
brasileira de efeitos persistentes. Pode-se dizer que é aqui que o caráter problemático,
indeterminado e trágico da modernização brasileira vai se desenhar com maior clareza.
O desdobramento específico que incompatibiliza o homem cordial com uma transição
eficiente para o mundo moderno é o binômio romantismo-liberalismo, que em Raízes
do Brasil corresponde aproximadamente à ideologia predominante do século XIX.
Essas duas chaves-mestras fornecem as representações mentais com que os “homens
cordiais”, alçados a homens de Estado a partir das primeiras décadas do século, vão
tentar integrar o Brasil no mundo moderno e no sistema econômico mundial.

possível chegar-se da posição [tese] à negação [antítese] nos casos particulares, em que aquela atinge
uma pressão extremada, fazendo-se hipértese. Podem distinguir-se também, entre antíteses, as que
assumem caráter radical (progressivo) e tradicional (regressivo). Além disso, é preciso contar com as
várias parateses, que se separam da tese, mas não a negam de todo. A síntese, por fim, toma sempre
elementos destacados, ora da tese, ora de um outro tipo de antítese – o radical e o tradicional – de modo
que a viabilidade da síntese depende constantemente da energia da personalidade criadora, que colabora
no processo.” HOLANDA, Sergio Buarque de. “Verdade e ideologia III, EC, II, p. 209-10. Texto
originalmente publicado no Diário Carioca de 25 de maio de 1952.
187
Em sua leitura da “tragédia familiar” hegeliana de Antígona e Creonte, mais preocupada com essa
passagem em particular do que com a presença hegeliana no livro todo, Pedro Meira Monteiro conclui
que Raízes não endossa a confiança de Hegel na vitória do Espírito sobre Antígona. Signo e desterro,
cit., p. 52.
267

Retomando dois dos temas centrais do capítulo anterior, a abertura vem


confirmar aquilo que já vinha sendo sugerido com crescente complexidade desde o
começo do livro, isto é, que os ingredientes da “tibieza” das formas de organização
coletiva são correlatos da ausência do trabalho e de um “culto religioso”
“excessivamente humano e terreno”, combinando-se com o “apego singular aos valores
da personalidade”. Agregando, no procedimento que, como já se viu, é típico do livro,
as diferentes expressões da sociedade sob a categoria da “forma”, as consequências
desse fato apontam não somente para as formações políticas, mas também para as obras
de arte:

Assim, só raramente nos aplicamos de corpo e alma a um objeto exterior a nós mesmos.
E quando fugimos à norma é por simples gesto de retirada descompassado e sem
controle, e não regulados por livre iniciativa. Somos notoriamente avessos às atividades
morosas e monótonas – desde a criação estética até às artes servis – em que o sujeito se
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submete deliberadamente a um mundo distinto dele: a personalidade individual


dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador.188

É da ausência do tipo de organização mental propiciado pela prática do trabalho


– entendida como submissão a um objeto e a uma lógica externos ao indivíduo – que
deriva um defeito que desabilita a vida intelectual no país. Volta à cena, então, a
problemática da não-necessidade da adesão aos produtos culturais do espírito:

É frequente entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se


alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que
sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e
convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa – palavras bonitas
ou argumentos sedutores. A contradição que porventura possa existir entre elas parece-
lhes tão pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam, sinceramente,
quando não achássemos legítima a sua capacidade de aceitá-las com o mesmo
entusiasmo. Não há talvez exagero em dizer-se que os nossos homens de grande talento
são todos um pouco dessa espécie.189

Seguindo, mais uma vez, uma linha de raciocínio bastante aparentada da analítica
hegeliana da consciência, vemos aqui que o pensamento é compreendido como forma,
e, como o processo de formação é resultado, necessariamente, de trabalho, a

188
RB, p. 113.
189
RB, p. 113-4.
268

consciência puramente senhorial não dispõe da experiência que lhe permitiria


discriminar o que, nas expressões bem-acabadas do intelecto (as formas artísticas, os
sistemas filosóficos etc.), há de necessário e realmente articulado com a existência real.
A isso se soma também a não-superação da “lei do coração” para a compreensão do
“curso do mundo”, o que dificulta ainda mais a compreensão das ideias políticas, essas,
originadas de contextos onde adquiriam significado coletivo (esse contexto, o
“coração” ainda o compreende como o “mundo perverso”). Não apenas, portanto, esse
intelecto “cordial” é incapaz de criar formas próprias e expressar sua essência num
processo virtuoso de formação cultural e atualização do espírito, como a ele é
inacessível o sentido intrínseco das ideias que de que ele se apropria na necessidade
(real, objetiva, mas cujo conceito não se compreende) de simular um modo de vida
moderno através de suas manifestações mais superficiais. Essas formas são, em seu
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horizonte intelectual limitado e desprovido de profundidade, puras estruturas sem


conteúdo e sem sentido próprio190. Seu sentido acessível é aquele puramente estético
(pois são os sentidos que orientam a sua apreensão dos objetos); o conceito
propriamente dito das ideias está interditado à compreensão191. Mesmo o trabalho como
conceito é objeto dessa incompreensão. De certa forma, mesmo a realidade puramente
material, que dá mostras de “modernização”, por ainda ter o trabalho escravo em sua
base, revela-se uma espécie de forma vazia, desprovida de conceito – uma interpretação
possível do problema, através de um hegelianismo mais radical concluiria que não só
as ideias, mas também as coisas estão fora do lugar. Enquanto é da natureza mesmo do
trabalho, para Hegel, a anulação do sujeito e a transferência de seu sentido para o
objeto, para os brasileiros, o fim do trabalho é transferido de volta para o próprio
sujeito, o que desvirtua a dinâmica laboral e, em última análise, toda a organização
social que, normalmente, a teria por mola propulsora:

No trabalho não buscamos senão a própria satisfação, ele tem o seu fim em nós mesmos
e não na obra, um finis operantis e não um finis operis. As atividades profissionais são,
aqui, meros acidentes na vida dos indivíduos, ao oposto do que sucede entre outros

190
Note-se como Sergio antecipa aqui, com a ajuda de Hegel, mas sem a de Marx, o famoso diagnóstico
por Roberto Schwarz das “ideias fora do lugar” (cit.).
191
É claro que isso não se dá exatamente como nas descrições das figuras, até porque a exposição da
Fenomenologia hegeliana é admitidamente uma redução realizada para fins expositivos (§25-28, p. 36-
40).
269

povos, onde as próprias palavras que designam semelhantes atividades adquirem um


acento quase religioso.192

De par com isso, no Brasil “são raros os profissionais que se contentem em


exercer por toda a vida o próprio ofício” 193 , e o diploma de bacharel é menos um
requisito à atuação profissional do que uma sinecura aparentada a um título de nobreza.
Se é verdade que essa “inclinação geral para as profissões liberais” não é um
“fenômeno distintamente nosso”, mas também encontrado nos Estados Unidos194, esse
prestigio dos bacharéis já era encontrado em Portugal, e se acomoda perfeitamente à
“cultura da personalidade” descrita no primeiro capítulo, e que aqui já vamos ver
conectado à tendência, essa particularmente brasileira, ao amorfismo mental e o
esteticismo intelectual:
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De qualquer modo, ainda no vício do bacharelismo ostenta-se também a nossa tendência


para exaltar acima de tudo a personalidade individual como um valor próprio e superior
a todas as contingências. A dignidade e importância que confere o título de doutor
permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta compostura e, em alguns
casos, libertam-no da necessidade de uma caça incessante aos bens materiais, que
subjuga e humilha a personalidade.195

Essa obsessão persistente pelos “meios de vida definitivos” que exigem “um
mínimo de esforço pessoal, de aplicação da personalidade” é, naturalmente, uma
relíquia de tempos feudais, mas que persiste como um “cultural lag”196. O correlato
dessa aversão ao trabalho na vida intelectual, que é talvez o objeto mais privilegiado
de Raízes do Brasil, está, para além da já mencionada incapacidade em gerar formas
próprias e expressivas da alma nacional, uma obsessão por soluções definitivas na vida
intelectual, que dispensarão o indivíduo, assim como o diploma superior, da degradante
necessidade de esforçar-se em algo que não tem nele mesmo o seu fim, daquilo que
Hegel chamou “o sério, a dor, a paciência e o trabalho do negativo”197 . Este é, talvez,

192
RB, p. 114. Aqui Sergio insere uma nota citando a famosa observação da Ética protestante de Weber
sobre a coincidência entre as palavras “trabalho” e “vocação” nas línguas de países protestantes, iniciada
na Bíblia de Lutero. Weber é referido aqui como “o mais eminente sociólogo moderno”.
193
RB p. 114-5.
194
RB, p. 115-6.
195
RB, p. 117.
196
RB, p. 117-8.
197
Fenomenologia do espírito, cit., §19, p. 33.
270

o momento mais brilhante de Raízes do Brasil – muito mais importante, aliás, do que
a discussão de sistemas políticos, pois a precede logicamente:

Um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis gerais, que circunscrevem a
realidade complexa e difícil dentro do âmbito dos nossos desejos, é dos aspectos mais
constantes e significativos do caráter brasileiro. Essas construções da inteligência
constituem um repouso para a imaginação, comparável à exigência de regularidade a
que o compasso musical convida o corpo do dançarino. O prestígio da palavra escrita,
da frase lapidar, do pensamento inflexível, o horror ao vago, ao hesitante, ao fluido, que
obrigam à colaboração e ao esforço, assim a certa dependência e mesmo abdicação da
personalidade têm determinado assiduamente nossa formação espiritual. Tudo quanto
dispense um trabalho mental contínuo e fatigante, as ideias claras, lúcidas, definitivas,
que favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos constituir a
verdadeira essência da sabedoria.198

Não a imaginação, mas o repouso da mente, não a inteligência viva, mas a sua
neutralização, não a dinamicidade do real, mas a fixidez das coisas em formas
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convenientes aos desejos individuais – é isso que os brasileiros procuram nos livros, na
arte, na vida do espírito. Compreende-se assim o sucesso da exótica doutrina
positivista, não só no Brasil, mas também no Chile e no México, “justamente por esse
repouso que permitem ao espírito as definições irresistíveis e imperativas do sistema
de Comte”, cujas ideias se tornavam especialmente atraentes por sua “capacidade de
resistir à fluidez e à mobilidade da vida” e por oferecer uma certeza “edificante” de que
suas próprias ideias (ou melhor, as que haviam tomado emprestadas a livros
importados) triunfariam inevitavelmente: “O mundo acabaria irrevogavelmente por
aceitá-las, só porque eram racionais, só porque a sua perfeição não podia ser posta em
dúvida e se impunha obrigatoriamente a todos os homens de boa vontade e de bom
senso”199. Os brasileiros foram até o ponto de falsificar a própria história e tradição,
ainda que imaginassem, “candidamente”, respeitar o “estado preexistente” da nação200.
Conformaram-se em ler mal a própria história para conformá-la a uma doutrina
supostamente definitiva, à revelia do mundo real:

Não existiria, à base dessa confiança no poder milagroso das ideias, um secreto horror à
nossa realidade nacional? No Brasil, os positivistas foram sempre paradoxalmente

198
RB, p. 118.
199
RB, p. 118-9.
200
RB, p. 119.
271

negadores. [...] Viveram narcotizados por uma crença obstinada na verdade de seus
princípios e pela certeza de que o futuro os julgaria e aos seus contemporâneos, segundo
a conduta que adotassem, individual e coletivamente, com relação a esses princípios.
Essas convicções os defendiam do resto do país, no recesso dos gabinetes, pois foram,
todos eles, grandes ledores. [Seu] instinto essencialmente negador vedou-lhes
continuamente a possibilidade de inspirarem qualquer sentido construtivo, positivo aos
nossos negócios públicos. As virtudes que ostentavam – a probidade, o desinteresse –
não eram forças com que lutassem contra políticos mais ativos e menos escrupulosos. 201

É na sequência que aparece a famosa passagem sobre o “mal-entendido da


democracia”, realizando a transição do positivismo para o liberalismo. O primeiro, é,
na verdade, muito mais um exemplo do paroxismo a que pode chegar a incapacidade
de compreender a inscrição das ideias na vida – isto é, nos espíritos mais
intelectualistas, como era o caso dos que no Brasil aderiram ao comtismo, uma inversão
de finalidade, fazendo da vida uma função das ideias – do que uma ideologia realmente
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persistente em nossa história. Esse é o caso do liberalismo, que afinal deteve um


prestígio muito maior na própria Europa:

Mas os positivistas foram apenas os exemplares mais característicos de uma espécie


humana que prosperou consideravelmente em nosso país, logo que ele começou a ter
consciência de si. De todas as formas de evasão da realidade, o convívio das ideias e
especulações pareceu-nos a mais fácil e dignificante em nossa difícil adolescência
política e social. Trouxemos de terras estranhas um sistema completo e acabado de
preceitos, sem saber até que ponto se ajustam à vida brasileira. Na verdade a ideologia
impessoal e antinatural do liberalismo democrático, com as suas maiúsculas
impressionantes e com as suas fórmulas abstratas, jamais se naturalizou entre nós. Só
assimilamos efetivamente esses princípios, até onde eles coincidiram com a negação
pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando o nosso instintivo horror às
hierarquias e permitindo tratarmos com familiaridade os governantes. A democracia no
Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal
importou-a e tratou de acomodar-se como lhe fosse possível às suas leis, que tinham sido
justamente a bandeira de combate da burguesia europeia contra os aristocratas, e isso só
porque essas leis pareciam as mais acertadas para a época e eram exaltadas nos livros e
nos discursos.202

A complexidade do argumento às vezes fica prejudicada pela impressão que


causa o trecho sobre o “mal-entendido” – trecho que, assim como a noção de “homem
cordial”, se presta facilmente a uma vulgarização pouco atenta ao sentido do texto. O
intelectualismo, paradoxalmente, é um traço característico da elite brasileira, não por

201
RB, p. 120-1.
202
RB, p. 122.
272

uma vocação para o pensamento abstrato – muito pelo contrário – mas por oferecer
precisamente uma distração da realidade. Desse modo, o liberalismo é adotado em
primeiro lugar por seu prestígio, e não por uma capacidade de ajuste ao quadro da vida
nacional – esse ajuste chega a ocorrer, mas se manifesta apenas onde o liberalismo
nega a autoridade real. Esse é o “mal-entendido”: ama-se a “liberdade” sem que ela
efetivamente participe de um mecanismo construtor de autoridade legítima para o
Estado e para a sociedade. Ocorre uma inversão – procedimento típico das operações
interpretativas de Sergio Buarque, para quem o Brasil tem um dom de virar as coisas
de ponta-cabeça – por meio da qual as polaridades políticas que fundamentam o
aparecimento da democracia liberal estão invertidas. Talvez Sergio tenha elaborado a
ideia do “mal-entendido” pensando no quadro sinótico das forças políticas do século
XIX inserido por Carl Schmitt numa das últimas páginas de seu Conceito do político203:
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Liberdade, progresso e razão Feudalismo, reação e força

em aliança com em aliança com

economia, indústria, e tecnologia contra Estado, guerra e política

como como

parlamentarismo ditadura

203
The concept of the political, cit., p. 75.
273

No Brasil imperial, onde um regime supostamente liberal e parlamentar se


mantinha com base num sistema econômico escravista, garantido à força por um Estado
operado por “uma aristocracia rural e semifeudal”, o liberalismo e a democracia não
podiam passar de mal-entendidos realmente lamentáveis. Até porque, logo adiante,
mais uma particularidade do “liberalismo” brasileiro vem à tona: o caráter dirigista e
inorgânico dos movimentos reformadores, mesmo os progressistas, que foram sempre
“de inspiração intelectual, tanto ou mais que sentimental”204. O emprego da palavra
“sentimental” aqui adquire um valor curioso: o problema da vida política no país é que
ela não exprime aspirações populares legítimas quando não há o “sentimento”, a
“predisposição espiritual e emotiva particular”, de nenhuma “concepção da vida bem
definida e específica”; finalmente, vaticina-se que os “campeões das novas ideias” – as
ideias liberais, é claro – “esqueceram-se com frequência de que as formas de vida não
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são expressões voluntárias, não se ‘fazem’ ou ‘desfazem’ impunemente”205. “Forma de


vida” e “sentimento” parecem evocar, aqui, a noção schmittiana de que a política e suas
categorias (amizade, inimizade e sua definição pela instância decisória do soberano,
isto é, modernamente, na forma do Estado) são realidades existenciais (referem-se a
modos de vida) e não racionais – pois, nas palavras do jurista, “não existe propósito
racional, nenhuma norma, não importa quão verdadeira, nenhum programa, não
importa quão exemplar, nenhum ideal social, não importa quão belo, nenhuma
legitimidade ou legalidade que justificasse que os homens matassem uns aos outros por
tais razões” 206 . Racionalizações desse tipo são, na opinião de Schmittt, com quem
Sergio Buarque parece concordar em larga medida, mistificações fraudulentas de
realidades políticas que se valem das roupagens humanitárias do liberalismo em suas
operações de “despolitização”, tendentes ao enfraquecimento do Estado e do político
em prol de esferas mais “racionais” da vida – isto é, as econômicas. Não é difícil ver
como, no Brasil, sob esse ponto de vista, esses processos de despolitização são
especialmente perniciosos, pois não há uma forma política sólida a destruir; a
reafirmação da “liberdade”, da “razão” e do “progresso” pela classe política brasileira

204
RB, p. 122.
205
RB, p. 123.
206
Carl Schmitt, The concept of the political, cit. p. 49.
274

é vazia de conteúdo e só opera no sentido de enfraquecer a já débil formação do Estado


e da sociedade.
É depois dessas considerações, que têm o contexto do 15 de novembro e a
Primeira República por pano de fundo, que Raízes se volta para o início do século XIX,
e vai investigar as origens da atitude intelectualista, notando como elas estão num
fenômeno muito mais enraizado do que o positivismo ou qualquer doutrina específica,
mas sim no Romantismo. E aí é que a urbanização é que tem um papel preponderante,
pois é o momento em que os homens da elite se veem “desamparados dos deleites e
lazeres da vida rural” e, “colhidos de imprevisto pelas exigências impostas com um
outro estado de coisas, logo que nos transformamos em nação independente, não
souberam conformar-se prontamente às novas formas de vida”207. É difícil exagerar a
importância que assume o romantismo na argumentação de Raízes, pois ele foi, mais
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do que algum programa político coerente, a forma mental de origem europeia e


moderna mais vocacionada para se ajustar à vida brasileira. Nisso, Sergio repete em
boa medida argumento – bem como a estrutura narrativa – de Paulo Prado no Retrato
do Brasil 208, embora de modo bem mais sofisticado. O romantismo, no Brasil, não
precisou ser “afetado”, como outros modismos importados da Europa, porque sua
disposição eminentemente negativa diante da realidade, tendente à melancolia, já
estava presente, ainda que desprovida de formas intelectuais bem-definidas, na
mentalidade colonial:

Desde então começou a patentear-se a distância entre o elemento “consciente” e a massa


brasileira, entre o nosso Ethos e o nosso Eros, distância que se evidenciou depois, em
todos os instantes supremos da vida nacional. Nos livros, na imprensa, nos discursos, a
realidade começa a ser, infalivelmente, a “dura”, a “triste” realidade. A transição do
convívio das coisas elementares da natureza para a existência rigorosa e abstrata das
cidades, deve ter estimulado em nossos homens uma crise subterrânea, voraz. Os
melhores, os mais sensíveis, puseram-se a detestar francamente a vida, o “cárcere da
vida” para falar na linguagem figurada do tempo. Pode dizer-se de nosso romantismo
que, mesmo copiando Byron, Musset e Espronceda, mesmo criando um indianismo de

207
RB, p. 124.
208
No Retrato do Brasil (1928), o capítulo que trata do século XIX é intitulado “O romantismo”, e o
“Post-Scriptum”, que se debruça sobre o contexto politico da já caduca Primeira República, ocupa a
mesma posição que “Nossa Revolução”; aliás, apontando para um prognóstico semelhante, embora, para
o significado do termo em Raízes do Brasil seja bem diferente. Também Plínio Salgado identificará em
sua Psicologia da Revolução (1953 [1933], cit., p. 95-106) liberalismo e romantismo como formações
ideológicas especialmente danosas ao Brasil, e típicas do século XIX,
275

convenção, já antecipado em quase todos os seus pormenores, por Chateaubriand e


Cooper, ou quando transpôs o verbo altissonante de Hugo para as suas estrofes
condoreiras, só foi afetado em certas particularidades de forma.209

Note-se aqui a combinação perniciosa entre romantismo e o pensamento político:


com sua idealização da natureza e seu repúdio às ordenações abstratas da vida urbana
– somadas ao veto romântico à razão e à estética normativa do classicismo – com sua
languidez melancólica, o romantismo era um excelente pretexto formal para a
manifestação do amorfismo social de um Brasil politicamente independente, mas que
ainda carregava todo o passivo cultural e econômico da colônia. Autorizando o ódio à
vida por meio de veneráveis formas artísticas à disposição para serem imediatamente
apropriadas, a sensibilidade romântica podia criar uma atitude diante da política que se
limitava a lamentar a distância entre o que é e o que deveria ser, descartando assim a
possibilidade da necessária composição entre os intelectuais e a realidade nacional, que
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podia ser simplesmente rejeitada, pois sempre necessariamente “dura” e “triste”, como
ensinavam os modelos da literatura agora em voga – modelos já antecipados nas
tendências melancólicas da lírica lusitana. Essa continuidade também no plano
artístico-formal não deixa de ser percebida pelo historiador, que aqui se vale, como em
tantos outros momentos de brilho, de seu talento de crítico literário:

Como em toda parte, os românticos brasileiros abandonaram o convencionalismo


clássico, tudo quanto pretendia fazer de nossa natureza tropical uma pobre e ridícula
caricatura das paisagens arcádicas. Fixando sua preferência no pessoal e no instintivo,
ele podia ter um papel mais valiosos e mais nacional, sobretudo – e até certo ponto o
teve. Não precisou, para isso, descer aos fundos obscuros da existência, bastou-lhe
contentar-se em ser mais espontâneo. Não nos trouxe, é certo, nada de verdadeiramente
novo: o pessimismo, o morrer de amor e até a sentimentalidade lacrimosa que ostenta,
constituem traços característicos da tradição lírica que nos veio da metrópole e já
aparecem nas velhas trovas da Galícia e de Portugal. Há mesmo do que alarmar nesse
alastramento de uma sensibilidade feminina, deliquescente, linfática, em um momento
em que, mal acordados para a vida de nação independente, todas as nossas energias
deveriam concertar-se em compor um anteparo aos estímulos negadores.210

209
RB, p. 124.
210
RB, p. 124-5. Note-se, salvo pela nota racialista ao final do trecho, a proximidade dessa argumentação
com a que se encontra na passagem que fecha o capítulo “O romantismo” do Retrato do Brasil: “Quase
todos os nossos poetas desse tempo morreram moços e tiveram o pressentimento dessa fatalidade. Morte
e amor. Os tois refrãos da poesia brasileira. O desejo de morrer vinha-lhes da desorganização da vontade
e da melancolia desiludida dos que sonham com o romanesco na vida de cada dia. E fisicamente fracos
pelo gasto da máquina nervosa, numa reação instintiva de vitalidade, procuravam a sobrevivência num
erotismo alucinante, quase feminino. Representavam assim a astenia da raça, o vício das nossas origens
276

Há uma camada adicional que agrava a crítica de Sergio ao romantismo


brasileiro: ele não é “afetado”, mas isso não o livra do perigo de ser, ele próprio, como
a democracia, uma espécie de mal-entendido. Sua recepção pelos intelectuais
“cordiais”, desprovidos de profundidade interna e da experiência do verdadeiro
significado do classicismo e das Luzes, não reproduz adequadamente parte importante
de seu significado originário, isto é, aquela descida aos “fundos obscuros da existência”
que garantiu que ele não fosse simplesmente uma rebelião vazia contra a razão do
Setecentos. Em nova inversão, o romantismo não vem contrariar nenhuma atmosfera
intelectual preexistente, mas simplesmente intensificar e dar uma forma mais ou menos
articulada a uma “sensibilidade feminina” e “linfática” que não convinha estimular
num momento de construção dos fundamentos políticos e culturais para a nova
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nacionalidade. Ao contrário, o romantismo só desimpedia o caminho para que a


inteligência nacional se entregasse a todo tipo de “estímulos negadores”. Na verdade o
romantismo, ao contrário do que podem nos “iludir as aparências” não passou muito
de uma “superfetação na vida brasileira” (no parágrafo final do ensaio, lemos que o
liberalismo foi, para o Brasil, uma “inútil e onerosa superfetação”211). Diz-se que há
“superfetação” quando um embrião é fecundado num útero onde já há um feto em
geração. Isto é, o romantismo, assim como outras ideologias importadas, passa por ser
uma manifestação autêntica da essência nacional, sem sê-lo de fato. “Tornando
possível a criação de um mundo fora do mundo”, isto é, não a integração do Espírito
nacional, por meio de formas autênticas, na vida, mas apropriando-se de um mundo
espiritual mórbido e vazio de conteúdo, do qual se lamenta por não coincidir com o
mundo real, “o amor às letras não tardou em instituir um derivativo cômodo para o
horror à realidade, à nossa realidade. Não reagiu contra ela, de uma reação sã e fecunda,
não tratou de corrigi-la ou de dominá-la; esqueceu-a, ou simplesmente detestou-a,
provocando desencantos precoces e ilusões de maturidade”. A expressão máxima dessa
mentalidade “superfetada” – mas não afetada, como se leu antes – foi exatamente nosso

mestiças. Viveram tristes, numa terra radiosa.” PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza
brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 125.
211
RB, p. 160.
277

maior escritor: “Machado de Assis foi a flor dessa planta de estufa”212. O ataque quase
rancoroso contra a arte de Machado não deixa de reconhecer a grandeza de sua obra:
afinal, trata-se de uma “flor” num livro sobre a formação brasileira encabeçado pela
palavra “raízes”. Apenas as raízes de Machado não são as “verdadeiras” raízes
brasileiras, ou pelo menos não atualizam uma forma que dá seguimento ao
desenvolvimento “natural” das formas na arte brasileira – floresceu numa estufa.
Na sequência desse juízo sobre Machado de Assis, Sergio passa a um comentário
geral sobre a intelectualidade:

Todo o nosso pensamento dessa época revela a mesma fragilidade, a mesma


inconsistência íntima, a mesma indiferença, no fundo, ao corpo social; todo pretexto
estético pode servir-lhe de conteúdo. A ele é preferível aplicar o que disse da filosofia
Junqueira Freire em sua autobiografia: “Era uma nova linguagem igualmente luxuriosa,
para dizer a mesma coisa. Nada de verdadeiro, tudo de belo, mais arte que ciência: mais
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cúpula que alicerce.” Ainda quando se punham a legiferar e a cuidar de organização e


outras coisas práticas, os nossos homens de ideias eram puros homens de palavras e
livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo assim se engenhava
na fabricação de uma realidade livresca, onde a nossa vida verdadeira morria de asfixia.
Comparsas desatentos do mundo que habitávamos, quisemos viver fervorosamente
contra nós mesmos, viver pelo espírito e não pelo sangue. Como Plotino de Alexandria,
que sentia vergonha do próprio corpo, acabaríamos por esquecer tudo quanto fizesse
pensar em nossa própria riqueza emocional, a única força criadora que ainda nos restava,
para nos submetermos à palavra escrita, à gramática, ao Direito abstrato.213

A descrição do pensamento romântico como “frágil”, “inconsistente”, elaborado


a partir de pretextos puramente estéticos que nada mais fazem do que dizer algo já
conhecido numa linguagem exuberante, denuncia a principal referência da crítica de
Sergio Buarque ao romantismo: outra vez, Carl Schmitt. Em seu livro sobre o
Romantismo político, que ele caracteriza como “ocasionalismo” esteticamente
elaborado, podem-se reconhecer quase todos os elementos das passagens que se vêm
comentando. A “estrutura” ocasionalista da “produtividade” estética romântica pode
ser assim resumida: romântico, para Schmitt, é alguém que incapaz de produzir um
sistema de pensamento dotado de uma lógica interna e se resume a elaboradas
paráfrases de reações a afetos. Obcecado com a singularidade de suas próprias

212
RB, p. 124-5.
213
RB, p. 126. Paragrafação condensada.
278

experiências, o indivíduo romântico reage a algo que lhe acontece positiva ou


negativamente e, partindo disso, dá origem a uma “produtividade” intelectual composta
de longas e elaboradas paráfrases dessas reações fundadas num afeto básico – o fato
físico do afeto é, para o subjetivismo romântico, por si só interessante214. “O romântico
não quer fazer nada além de experimentar e parafrasear sua experiência de maneiras
emocionalmente impressionantes”, e por isso seus argumentos e raciocínios são
“figuras de seus estados emocionais de afirmação e negação”, estados esses que “giram
em torno de si mesmos” em “círculos elevados”215. Essas paráfrases geralmente são
irônicas, de modo que o romântico produz com enormes unidades discursivas
alternantes, das quais nenhuma é realmente a sua opinião sobre as coisas, porque as
coisas, tais como são, são muito acanhadas e deprimentes, comparadas com o mundo
maravilhoso das suas ideias sobre como as coisas deveriam ser.
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Para Schmitt, o romantismo pode ser de direita ou de esquerda, mas


invariavelmente ele foge da realidade, criando para si um mundo ideal. Há,
naturalmente, uma tendência romântica no liberalismo radical: “Tolerância, direitos
humanos, liberdades individuais – tudo isso era a revolução, rousseauísmo,
subjetivismo desenfreado, e, portanto, romantismo”. Mas, passada a restauração, os
termos se invertem e alguns revolucionários se tornam antirromânticos, percebendo as
novas circunstâncias e os resultados do romantismo revolucionário, acusando no
romantismo o “fermento da agitação e do capricho, uma liberdade excessiva do
indivíduo que quer subjugar o mundo para si” 216 . A afinidade persistente entre a
esquerda política e o rousseauísmo assegura, porém, a persistência do romantismo entre
os revolucionários, muitos dos quais se entregam a incapacidade de “qualquer
experiência factual em consequência de sua raison raisonnante”, e por isso procuram
sempre

formar o mundo em acordo com os axiomas de sua geometria política. Rousseau se move
essencialmente em meio a esse moule classique, que vai se estreitando e enrijecendo até
que, ao fim e ao cabo, um intelectualismo estéril destrói tudo. Coerentemente, o que

214
Political Romanticism, cit., p. 97.
215
Ibid., p. 100-1.
216
Political Romanticism, cit., p. 24..
279

animava um mestre-escola como Robespierre não terá sido a abundância vital de


energias irracionais, mas antes o frenesi da abstração vazia.217

Não é difícil reconhecer os ecos desse ponto de vista na dialética cordialidade-


civilidade que se desenha a partir do capítulo V – e, a bem dizer, em todos os momentos
onde Raízes vai incidir sobre temas da teoria política. A par de Rousseau, a tradição
revolucionária institui uma religião na qual “o povo” assume o papel de uma entidade
divina, que tem a prerrogativa de instituir a ordem política (na verdade, no caso extremo
a partir de 1793, as guerras revolucionárias empreendidas pelo Estado francês
constituem uma politique sans-culotte que abole a política qua política internacional,
que para Schmitt é a política por excelência), tornando-se o “demiurgo revolucionário”.
Os antirrevolucionários (Bonald e Joseph de Maistre são os prediletos de Schmitt) se
oporão a essa modalidade de “ateísmo” político, mas não escaparão à dinâmica
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universalizante e despolitizante da Revolução: ao demiurgo popular revolucionário eles


contraporão outro, conservador, mas igualmente universal: a História. Sua principal
crítica da Revolução não é substancial e política, mas formal; ela delega o conflito para
a teoria do conhecimento: a Revolução, o rousseauísmo soberania popular são
aistóricos e, portanto, não compreendem devidamente a realidade – Schmitt, com sua
concepção existencial do político, enxerga uma despolitização nesse raciocínio que
conclui que a revolução é um “erro”. De todo modo, o veredicto dos reacionários é
este: fracassará quem tentar instituir uma realidade a partir de um programa que
desconheça seus fundamentos históricos. O parágrafo a seguir é, nesse sentido, lapidar,
e não está livre ele próprio do sabor hegeliano encontradiço em Raízes:

O corretivo à licença revolucionária está no segundo demiurgo, a história. Ela é o deus


conservador que restaura o que o outro revolucionou. Ela constitui a comunidade
humana geral como o povo historicamente concretizado, que se torna uma realidade
sociológica e histórica por meio dessa delimitação e adquire a capacidade de produzir
uma lei e uma linguagem particulares como expressão de seu espírito nacional
individual. Portanto, o que um povo é “organicamente” e o que o Volksgeist significa
pode ser determinado apenas historicamente. Além disso, aqui o povo não é senhor de
si mesmo, como em Rousseau, mas antes o resultado do desenvolvimento histórico. A
ideia de um poder arbitrário sobre a história é a verdadeira ideia revolucionária. Ela tem
por conteúdo a “fabricação” do que quer que queira e a capacidade de criar a si mesma.
Ela pode, é claro, ser encontrada em qualquer atividade humana. O fanatismo irrestrito

217
Ibid., p. 28..
280

do jacobino era pensamento aistórico. O quietismo do período da Restauração poderia


se justificar afirmando que tudo que acontece é bom porque trata-se de um evento
histórico. O que existe é racional porque é obra do espírito mundial que se produz
historicamente. O que a história fez é bem feito. A voluntas Dei in ipso facto [a vontade
de Deus no fato mesmo], que antes podia justificar tudo, teve de dar lugar à justificação
histórica ex ipso facto [a partir do fato mesmo].218

Entende-se melhor à luz do que se leu acima o significado das várias invectivas
de Raízes do Brasil contra o liberalismo. Isso não quer dizer, que fique claro, que Sergio
partilhe exatamente das mesmas convicções reacionárias de Schmitt, que não se cansa
de elogiar pensadores que fundamentam sua reflexão política em sua íntima convicção
da maldade extrema e irremediável da natureza humana 219 . Diferentemente dos
reacionários comentados (e admirados) por Schmitt, Sergio não se resigna a vaticinar
o mal fundamental do homem, e chega mesmo a declarar a incompatibilidade de uma
tal doutrina com o gênio nacional220; daí ser inviável no Brasil uma autoridade estatal
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totalitária que se legitimasse pela ideia de uma salvaguarda contra o triunfo do mal na
Terra, como queriam, em diferentes contextos, Otávio de Faria e Donoso Cortés221. A
ideia de “revolução” encerrada em Raízes do Brasil parece incluir os dois “demiurgos”
descritos por Schmitt: tanto uma força irresistível de modernização e secularização
quanto um passivo histórico que não se pode ignorar. O problema do passivo histórico,
porém, é duplo, pois, ao mesmo tempo em que a herança colonial há de ceder
inevitavelmente, seria preciso encontrar um meio de articular as novas formas de vida
com a tradição. Que essa tradição seja completamente desprovida de forma, resumindo-
se em grande medida ao “fundo emocional rico e transbordante”, é algo que põe a

218
Political Romanticism, cit., p. 62.
219
Leia-se o ultimo capítulo da Teologia política (cit., p. 53-66) sobre a teoria do Estado
contrarrevolucionária de Bonald, de Maistre e Donoso Cortés, e compare-se o que se lê ali com a “Nota
E” de Raízes do Brasil, onde Sergio ataca mordazmente o fascista Otávio de Faria, que parece encarnar
quase idealmente alguns traços que Schmitt encontra nos reacionários, especialmetne Donoso Cortés.
220
“A noção da bondade natural do homem combina singularmente com o nosso já assinalado
‘cordialismo’. A tese de uma humanidade má por natureza há de parecer-nos, ao contrário, extremamente
antipática e desconcertante.” RB, p. 154.
221
A teoria política de Pascal já justificava o arbítrio das autoridades terrenas como uma necessidade em
si, independente da eventual injustiça de seu conteúdo, em virtude da maldade fundamental do homem,
como demonstrou Erich Auerbach em inspirado ensaio. AUERBACH, Erich. O triunfo do mal: Ensaio
sobre a teoria política de Pascal. In: Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Ed. 34; Duas Cidades,
2007. Mais recentemente, em livro que não se teve a oportunidade de consultar na elaboração deste
trabalho, Carlo Ginzburg procurou remontar as origens da antropologia política de Schmitt a Maquiavel,
através de Pascal. GINZBURG, Carlo. Nondimanco. Machiavelli, Pascal. Milão: Adelphi, 2018.
281

perigo qualquer esperança de que o Brasil desenvolva algum tipo de originalidade


nacional e de “contribuição” singular para os novos tempos. Estaríamos diante de uma
modernização à qual não corresponde nenhuma formação cultural digna desse nome.
De todo modo, Schmitt não deixa de penetrar também na crítica da cultura de
Raízes do Brasil. A crítica a Machado de Assis tem uma correspondência apreciável
com esta importante passagem do Romantismo político, onde a ironia é caracterizada
como a modalidade predileta da “fuga da realidade” dos românticos:

Tem-se definido como uma marca distintiva do romântico o estar sempre em fuga. Isso
passa tão longe do essencial quanto explicações em termos da busca da nostalgia de
coisas mais altas e histórias parecidas. O romântico se retira da realidade. Ele o faz,
porém, ironicamente, e num espírito de intriga. Ironia e intriga não perfazem o estado
mental de uma pessoa em fuga, mas antes a atividade de uma pessoa que, em vez de criar
novas realidades, joga uma realidade contra a outra, de modo a paralisar a realidade
efetiva e limitada. Ele evita ironicamente as limitações da objetividade e se previne
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contra qualquer tipo de comprometimento. A reserva de todas as infinitas possiblidades


reside na ironia. Desse modo, ele preserva sua própria liberdade interior genial, que
consiste em nunca deixar de lado nenhuma possibilidade. Assim, porém, ele também se
defende contra toda objeção que necessariamente destruiria suas pretensões: que todas
as promessas e projetos grandiosos que ele opôs aos ganhos limitados de outros sejam
desmascarados como fraudes, ao serem realizados. Para ele, as realizações concretas à
disposição é que não valem mais que precipitações residuais. Ele protesta contra o
entendimento de qualquer proclamação sua dentro dos limites da realidade atual. Isso
não é o que ele é. Isso não é o seu ego. Ao mesmo tempo, ele ainda é infinitamente
muitas outras coisas e infinitamente mais do que ele jamais poderia ser em qualquer
momento concreto ou expressão específica. Ele considera o ser levado a sério uma
violação, porque não quer que o presente atual seja confundido com sua infinita
liberdade.222

O trecho talvez não faça justiça à obra de Machado, tal como se a veio estudando
desde meados do século XX, mas ela parece estar afinada com a leitura que Sergio
Buarque faz do escritor, que nele identifica sobretudo um pessimismo extremo,
amargurado e difuso, que não aponta para nenhum conteúdo específico em sua
crítica 223 . Assim lido, Machado de Assis não teria reagido contra a realidade que
detestava, apenas a teria contraposto com imagens de realidades ideais em jogos
irônicos e fundamentalmente estéreis, ainda que muitíssimo refinados. Assim, sua obra

222
Political Romanticism, cit., p. 71-2.
223
Cf. a resenha que Sergio escreve sobre A filosofia de Machado de Assis, de Afrânio Coutinho
publicada no Diário de Notíticas em 22 de novembro de 1940 e depois reproduzida em Cobra de Viddro.
“A filosofia de Machado de Assis”, EL, I, 305-12; CV, p. 53-8
282

participaria da mesma disposição alienada do mundo, que não produz formas de arte a
partir de conteúdos reais, mas deles faz apenas pretextos estéticos para a produção de
imagens ocas que nada significam senão a vaidade das coisas reais. Dessa mesma
disposição estetizante nasce o “amor bizantino dos livros” que aparece, assim como o
anel de grau e o diploma de bacharel, como “um penhor de sabedoria e um indício de
superioridade mental” – e aqui Machado é apenas a manifestação mais refinada de um
vício encontrado em figuras muito menos notáveis, cuja origem está na fetichização
dos “símbolos concretos” do status espiritual, pois as ideias mesmas “não nos são
acessíveis sem uma intervenção assídua do corpóreo e do sensível”224. Em mais um
momento de brilho de sua análise, Sergio Buarque nos apresenta com a curiosa noção
de que mesmo a vida intelectual é subordinada ao sentimento estético das coisas do
mundo – o valor das ideias está de alguma maneira derivado do prazer puramente
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corpóreo que elas podem causar; toda argumentação adicional é paráfrase


racionalizadora225.

224
RB, p. 126-7.
225
Um testemunho eloquente da pertinência dessa tese é a estapafúrdia justificativa que Joaquim
Nabuco, homem de cuja inteligência não seria razoável duvidar, oferece para a monarquia: “Muitos
argumentos me foram apresentados na mocidade em favor da monarquia; nenhum, porém, teve para
mim a força persuasiva, a evidência, destes dois, um que me foi formulado no Píncio, outro que me foi
formulado no Hyde Park: a princesa Margarida de Saboia e a princesa de Gales. A republicanos de boa
fé estética — ponhamos tanto os bárbaros como os anacoretas de parte — eu não quisera apresentar
outros. A monarquia moderna faria bem para sustentar-se em promulgar a lei sálica em sentido contrário,
isto é, em neutralizar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria
isso fazer política experimental, que não se basearia somente no esplêndido e pacífico jubileu da rainha
Vitória e na calma relativa em tempos cruéis para a Espanha da regência de d. Maria Cristina, mas no
profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma mulher. A entrada triunfal
em Paris dos restos de Napoleão nunca fará um quadro como o que Tácito nos deixou do Campo de
Marte, no ‘dia maravilhoso’ em que foram depositadas no túmulo de Augusto as cinzas de Germânico
traduzidas por Agripina. Se ao prestígio da posição se alia na mulher a irradiação da mocidade e da
beleza, pode-se dizer que ela tem no cetro um condão de fada. A formosura das rainhas tem, quando é
perfeita, um reflexo seu exclusivo, combinação de bondade e soberania, de encanto pessoal e grandeza
nacional, de dependência, tremor mesmo, do Destino, e proteção e amparo para os que se acolhem ao
seu manto, que forma a dupla projeção, ascendente e descendente, do povo para o trono e do trono para
o povo, que na ordem espiritual fez a Rainha dos Anjos comparar-se a si mesma com o arco-íris.” Minha
formação, cit., p. 117-8. Um pouco antes, lê-se, sobre a transição de simpatias republicanas para as
monárquicas: “eu trocara em Paris e na Itália a ambição política pela literária, crítica, isto é, com uma
espessa camada europeia na imaginação, camada impermeável à política local, a ideias, preconceitos e
paixões de partido, isoladora de tudo que em política não pertencesse à estética, portanto também do
republicanismo — porque a minha estética política tinha começado a tornar-se exclusivamente
monárquica.” (p. 99).
283

5. O ABC dos novos tempos

Atento à estrutura cognitiva sensualista que traçara para o homem cordial, Sergio passa
a uma revista de um dos aspectos mais toscos e até grotescos dessa atitude, isto é, a
“satisfação dos cinco sentidos” que d. Pedro II extraía do contato com os livros
(“visual”, “tátil”, “auditivo” – “pelo brando crepitar do folheá-lo”, “olfativo” e até
“gustativo” – pelo “sabor intelectual dos livros, ou mesmo físico”), em depoimento
oferecido “sem malícia” (o mesmo não se pode dizer do narrador de Raízes do Brasil)
por um admirador do monarca226. Nessa “perversão” de “transformar nossa realidade a
seu gosto”, o imperador demonstrava estar próximo dos positivistas, eles também
“grandes amigos da leitura”, onde aprendiam esse “gosto” por um “quadro social
milagrosamente destacado de nossas tradições portuguesas e mestiças” criado em
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pensamento227. “Perversão” [Verkehrtheit] e “desvario” [Verrücktheit] são palavras que


Hegel usa para caracterizar a “lei do coração”, isto é, a moralidade de uma consciência
que, desejando o bem da humanidade, identifica na realidade um estado perverso de
coisas, sem perceber que é ela mesma a vítima de uma “perversão inventada e exercida
por sacerdotes e fanáticos, [...] que humilhando e oprimindo procuram ressarcir-se de
sua própria humilhação”, mas a verdade desse ponto de vista ainda “não suportou a luz
do dia”; quando isso acontece, porém, ela “cai por terra”228. Parece estar próximo desse
diagnóstico o reiterado ataque de Sergio Buarque ao liberalismo, que agora se apresenta
como mais uma manifestação da perversão livresca da inteligência brasileira, dessa vez
encarnada na memorável figura dos “pedagogos da prosperidade”:

O prestígio moderno e provavelmente efêmero das superstições liberais e protestantes


parece-lhes definitivo, eterno, indiscutível e universal; elas valem como paradigma para
julgarem de nosso atraso ou de nosso progresso. Muitos desses pedagogos da
prosperidade são do tipo que há mais de trinta anos denunciava Georges Sorel em sua
terra: ‘Nas discussões atuais – dizia o autor das Reflexões sobre a violência – toma-se
por base o que produz um país cuja prosperidade impressiona toda gente – a Inglaterra,
a Alemanha, os Estados Unidos – e descreve-se um dos aspectos da vida desses países-
modelos. O talento do publicista consiste em fazer penetrar no espírito do leitor a ideia
de que os costumes ou instituições que exalta têm um papel preponderante na

226
RB, p. 127.
227
RB, p. 127-8.
228
Fenomenologia do espírito, cit., §377, p. 261.
284

prosperidade dessas nações: é claro que nenhuma demonstração absoluta será possível
sobre esse ponto. [A citação termina sem o fecho das aspas]229

Há alguns pontos de especial interesse nesse trecho. Em primeiro lugar, a crítica


ao liberalismo assume, salvo engano, pela primeira e única vez no texto, uma
articulação explícita com a problemática do desenvolvimento social, problema que
perpassa toda a argumentação de Raízes do Brasil mas que somente neste momento
assume o aspecto de uma consideração sobre as origens da prosperidade econômica.
Em segundo lugar, note-se a menção estratégica a Georges Sorel, não como um arauto
de alguma mitologia política mais ou menos aproximada do comunismo ou do
fascismo, como sugeriria a alusão às Reflexões sobre a violência, mas exatamente como
um crítico das teorias liberais sobre a riqueza das nações. Aqui, Sorel é citado
basicamente como um economista, numa observação acima de qualquer suspeita
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ideológica do tipo que terá presidido, por exemplo, o corte das referências a Spengler
(a exclusão do nome de Sorel talvez tenha se dado simplesmente pela reputação
“tóxica” que seu pensamento adquiriu no pós-guerra, à diferença do alemão, cujas
ideias realmente sustentam estruturalmente as teses de Raízes) 230 , extraída não das

229
RB, p. 128. Raciocínio parecido aparece na discussão de Schopenhauer sobre o Estado, tal como
citada nas Considerações de um apolítico, p. 112-4. Na Alemanha, a democracia é sempre uma
“tradução”; Schopenhauer censura as imitações alemãs do constitucionalismo monárquico inglês, com
câmaras alta e baixa, habeas corpus, mas elogia a tenacidade com que os ingleses se apegam a ele, pois,
em sua terra, essas formas se conformam ao caráter do povo, acrescentando que o “fraque” inglês ainda
é preferível ao “barrete frígio” francês. Considérations d’um apolitique, cit., p. 112-4.
230
Curiosamente, não é nenhum pensador alemão, mas precisamente Sorel que encarna, na
impressionante descrição dos encontros na casa de Sextus Kridwiss, a deriva da intelectualidade alemã
rumo ao irracionalismo e ao culto à violência no Doutor Fausto de Thomas Mann, de cuja primeira
edição, saída em 1947, Sergio possuía um exemplar. Não foi possível averiguar se ele teria lido o
romance a tempo de fechar a revisão de Raízes do Brasil naquele mesmo ano. A passagem onde o nome
de Sorel aparece, de todo modo, é bastante indicativa do tipo de associações que, no imediato pós-
Segunda Guerra, seu nome convidava: “Ninguém se admirará ao ouvir que, nos debates dessa vanguarda
da crítica da cultura, um livro publicado sete anos antes da guerra, as Réflexions sur la violence, de
Georges Sorel, desempenhava um papel importante. Sua inexorável previsão de guerra e anarquia, sua
caracterização da Europa como um solo de perigosos cataclismos, sua teoria segundo a qual uma só
ideia, a de guerrear, será capaz de unir os povos – tudo isso explicava que seus leitores o chamassem o
livro da época. Mas o que ainda mais justificava esse apreço era a convicção com que o autor anunciava
que, numa era gregária, as discussões parlamentares se revelariam totalmente inadequadas como meios
de forjar uma vontade política e que no futuro as massas deveriam ser providas de ficções míticas,
destinadas a desenfrear e ativar as energias políticas, à maneira de primitivos gritos de guerra. Eis o que
o livro de fato vaticinava de um modo cru e emocionante. Mitos populares, ou melhor, mitos adaptados
à mentalidade das massas, se tornariam doravante veículos do movimento político: fábulas, quimeras,
visões fantasmagóricas que não necessitassem de base alguma na verdade, na razão, na ciência, mas,
apesar disso, se mostrassem criativas, determinando o curso da vida e da história, e dessa forma
evidenciassem seu poder de realidades dinâmicas. Como se vê, a obra fazia jus a seu título ameaçador,
285

Reflexões, mas de um livro muito menos conhecido, sua Introdução à economia


moderna. Vale a penas conferir um trecho maior do qual Sergio traduz uma parte, pois
ele esclarece melhor um raciocínio que, em Raízes, só é reproduzido de forma muito
sintética. A discussão envereda, por sinal, por um tema pelo qual Sergio ainda não se
interessa muito na primeira edição de Raízes do Brasil: a economia política clássica e
seus mandamentos sobre política comercial e industrial:

Quando quiseram introduzir o livre-comércio, foi preciso construir um regime


econômico puramente ideal e apresentá-lo como um modelo digno de imitação. Hoje a
situação é diferente; fizeram-se experiências sociais em todos os países e pode-se
apresentar um grande número de razões baseadas na prática: nas discussões atuais, toma-
se por base o que se produz num país cuja prosperidade impressiona toda gente – a
Inglaterra, a Alemanha, a América – e descreve-se um dos aspectos da vida nesses
países-modelos. O talento do publicista consiste em fazer penetrar no espírito do leitor
a ideia de que os costumes ou instituições que exalta têm um papel preponderante na
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prosperidade dessas nações: é claro que nenhuma demonstração absoluta será possível
sobre esse ponto. Esse método supõe que a prosperidade de um povo depende de um
mosaico de causas distintas e dissociáveis que podem ser transportadas de um país para
outro, trazendo consigo sua virtude criadora de felicidade ou de riqueza. É uma
concepção completamente absurda; mas ela corresponde tão perfeitamente à nossa
prática industrial que temos grande dificuldade de nos desvencilhar dela: numa fábrica,
a grande questão não é sempre estar em dia com os mais ínfimos progressos que se
aplicam entre os concorrentes?231

Pouco interessado, ao mesmo nesse momento, ao que parece, nos pormenores da


política comercial e industrial das nações periféricas (que no entanto ele tivera que
cobrir como jornalista em sua estada alemã, como se pode ler nos artigos que escreveu
para a revista Duco 232 ), Sergio aplica o mesmo raciocínio à “pedagogia da
prosperidade” no que se refere ao que chamará de “miragem da alfabetização”. O que
interessa em Sorel não é tanto a crítica específica ao livre-cambismo, mas todas as
analogias que daí ele pode extrair por meio da ideia de uma falácia de composição. O

pois seu tema era a violência como oponente vitorioso da verdade. Entendia-se através dela que o destino
da verdade muito se assemelhava ao do indivíduo e até se identificava com ele, pois ambos enfrentavam
a desvalorização, o livro abria ironicamente um abismo entre a verdade e a força, a verdade e a vida, a
verdade e a coletividade”. MANN, Thomas [1947]. Doutor Fausto. A vida do compositor Adrian
Leverkühn narrada por um amigo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 425.
231
SOREL, Georges [1903, 1922]. Introduction à l’économie moderne. Chicoutimi, Québec: Cégep,
2003, p. 54-55. Tradução do autor, aproveitando o trecho traduzido e citado por Sergio Buarque de
Holanda. O grifo que aparece em Raízes do Brasil (“papel preponderante”) é de Sergio.
232
Reunidos em EC, I.
286

erro dos “pedagogos da prosperidade” está em compreender que o todo (um país
próspero) é composto pela totalidade de suas características, como se, em concerto,
elas causassem o desenvolvimento, sendo, portanto, passíveis de aplicação em outros
contextos, onde se poderiam esperar os mesmos efeitos. Na esteira do raciocínio de
Sorel, Sergio compreende que, ao contrário, essas características já são elas próprias
expressão de um contexto ao qual aplicar uma fórmula estranha não adiantará grande
coisa, pois não a ação isolada de um elemento abstraído como, no caso, a política de
universalização do letramento, não reproduz uma suposta eficiência:

Um exemplo fácil é o que ocorre com a miragem da alfabetização. Quanta inútil retórica
se tem desperdiçado para mostrar que todos os nossos males seriam resolvidos de um
momento para o outro, no dia em que estivessem difundidas as escolas e a instrução
popular! Certo publicista [...] afirma que se fizermos nesse ponto como os Estados
Unidos, “em vinte anos o Brasil estará alfabetizado e, assim, ascenderá à posição de
segunda ou terceira grande potência no mundo.” [...] Imagine-se como não ficariam
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desapontados ou indignados esses crédulos predicadores do progresso, se lhes fossem


dizer que essa alfabetização em massa, que propugnam como o nec plus ultra do
adiantamento e da civilização, não é, talvez, uma coisa absolutamente essencial e mesmo
que não é, em si, um benefício sem par. Basta-lhes, porém, que esse suposto instrumento
de prosperidade seja um dos sinais visíveis da importância de outros povos poderosos,
para que no-lo recomendem com alarde.233

Este é, talvez, o momento mais desconcertante de todo o livro, ao menos para


quem o lê a partir da terceira década do século XXI. A crítica ao letramento foi mantida
na segunda edição, por sinal, e complementada com uma referência bibliográfica – no
texto de 1936, Sergio não oferece nenhum estudo como base para seu ataque à
“miragem” dos pedagogos da prosperidade. Já em 1948, o trecho é reescrito, e o
argumento passa a ser incrementado pelo exemplo dos Estados Unidos: lá, o
analfabetismo não teria oferecido obstáculo sério a um notável desenvolvimento
material e mesmo cultural. Note-se que o símile retórico derivado do argumento de
Sorel continua operando, mesmo depois da subtração da referência ostensiva. Eis o que
a segunda edição acrescenta ao trecho:

A muitos desses pregoeiros do progresso seria difícil convencer de que a alfabetização


em massa não é condição obrigatória nem sequer para o tipo de cultura técnica e
capitalista que admiram e cujo modelo mais completo vamos encontrar na América do

233
RB, p. 128-30.
287

Norte. E de que, com seus 6 milhões de adultos analfabetos, os Estados Unidos, nesse
ponto, comparam-se desfavoravelmente a outros países menos ‘progressistas’. Em uma
só comunidade de Middle West, de cerca de 300 mil almas (e uma comunidade, por
sinal, que se vangloria de seu apreço às coisas da cultura, a ponto de se considerar uma
segunda Boston), é maior o número de crianças que não frequentam as escolas, afirmava,
não há muitos anos, uma autoridade norte-americana em questões de educação, do que
em todo o Reich alemão.234

Tais informações se afiançam numa referência ao livro Theories of Social


Progress de um certo A. J. Todd. Seria de esperar que encontrássemos um juízo
semelhante sobre ser a alfabetização universal uma “miragem” na fonte citada, talvez
na linha de uma “teoria do progresso social” heterodoxa, fundamentando aí toda a
investida contra a crença nos benefícios sociais da universalização do letramento. Não
é o caso:

Os Estados Unidos ainda confessam a vergonhosa cifra de seis milhões de adultos


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analfabetos. Ainda mais dolorosa é a alta taxa de “mortalidade escolar”. O Comitê


Nacional para o Trabalho Infantil [National Child Labor Committee] estima que um
milhão de crianças em idade escolar estão fora da escola. Somente dez por cento de toda
a população escolar completam o segundo grau [...]. Recentemente, ouvi uma autoridade
educacional [não há referência] dizer que havia mais crianças fora da escola e sem
registro [unnacounted for] numa única comunidade do Meio-Oeste de trezentos mil
habitantes (que se gabam de sua cidade como uma segunda Boston) do que em todo o
Império Alemão!235

O ponto de vista pedagógico de Sergio continua, portanto, diferentemente, talvez,


do que o autor gostaria de fazer parecer, sem o apoio de nenhuma autoridade além de
sua própria opinião. Onde Sergio poderia ter encontrado semelhante crítica da
universalização do letramento como bem em si mesmo? Leitores de Raízes do Brasil
filiados ao pensamento autoritário, mesmo quando reprochassem os ataques de Sergio
ao integralismo ou ao culto à Idade Média, não deixaram de elogiar a crítica de Sergio
à “alfabetisocracia”, neologismo do integralista Hélio Vianna236. Mas a defesa de uma

234
RBC, p. 291, 297n.
235
TODD, Arthur James. Theories of social progress. A critical study of the attempts to formulate the
conditions of human advance. Nova York : Macmillan, 1918, p. 522-3.
236
VIANNA, Hélio. “Nota sobre Raízes do Brasil. O Jornal, 30 nov 1936. Também Álvaro Augusto
Lopes considera acertada a crítica de Sergio. LOPES, Álvaro Augusto. “À margem dos livros”, A
tribuna, Santos, 9 nov 1936. Não está clara qual a filiação política de Lopes, mas seu elogio do
“Espírito”, no mesmo texto, se não o associa ao integralismo, talvez denuncie uma pertença à direita
católica.
288

educação emancipadora da família não parece autorizar que Sergio tivesse ido buscar
sua pedagogia em ideologias tradicionalistas ou reacionárias. Quando publicou Raízes
do Brasil, Sergio estava em vias de começar seu primeiro emprego como professor
universitário na Universidade do Distrito Federal, criada sob os auspícios da gestão de
Anísio Teixeira na Secretaria de Educação do Distrito Federal. Anísio, que fora
indicado ao posto pelo prefeito Pedro Ernesto, lançara em 1933 o livro Educação
progressiva: uma introdução à filosofia da educação – em suas próprias palavras, uma
exposição da doutrina pedagógica de John Dewey – e, em 1936, Educação para a
democracia: introdução à administração educacional, livro que escreveu baseado em
sua experiência frente à Secretaria. Traduziu, também, de Dewey, Democracia e
educação, cuja edição brasileira saiu em 1936. Na segunda edição de Educação
progressiva (1934), podemos ler uma censura semelhante à ideia da alfabetização
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universal como panaceia para os males nacionais237. No mesmo livro, vamos encontrar
uma passagem bastante convergente com as observações de Sergio Buarque sobre a
autonomização da criança e sua integração ativa à organização social moderna como
objetivo do processo pedagógico (cf. a seção anterior deste capítulo), o que não
surpreende, pois Dewey, cuja doutrina o livro compendia, era o mestre da nova
pedagogia americana à qual se filiava Knight Dunlap, o pedagogo que de fato é citado
em Raízes do Brasil:

A verdadeira doutrina é a que enxerga na criança o impulso e a tendência e, na


experiência organizada da espécie, o termo e o alvo dessa tendência. Por meio da
experiência já adquirida da humanidade, deve o educador traçar o roteiro do
desenvolvimento individual, dirigir o seu curso, corrigir os seus desvios, acelerar a sua
marcha, assistir, enfim, em todos os passos, a obra da educação, de que é o guarda e o
responsável. A escola fundada em tais bases não será, pois, uma escola que forme
homens sem capacidade de esforço e de resistência. Muito pelo contrário, os homens
formados nessa escola provaram, em sua plenitude, o prazer de conquistar, passo a passo,
o caminho de sua emancipação. Emancipação do desordenado, o incerto, do não
planejado, da ignorância, da prisão dos seus desejos e de suas paixões, para a liberdade
da disciplina de si mesmos, e para a força e o poder de execução e realização que lhes
deu o hábito de controlar o meio externo, subordinando-o aos seus fins e aos seus planos
lúcidos e voluntários.238

237
TEIXEIRA, Anísio. Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação. São Paulo:
Nacional, 1934.
238
Educação progressiva, cit., p. 20-1.
289

De todo modo, a crítica à “miragem da alfabetização” não parece tão importante


em seu conteúdo – do contrário, ela poderia ter sido incluída na digressão pedagógica
do capítulo V, ou realmente retomada em termos exclusivamente técnicos, coisa que
não ocorre – mas opera muito mais como um trampolim para a crítica à “pedagogia da
prosperidade” dos “crédulos predicadores do progresso” modernizantes, que parecem
estar aproximados ao liberalismo declamatório e “mal-entendido” do século XIX,
tingido, ele próprio, daquele horror ao mundo real que ganhava corpo no romantismo
e no bovarismo típicos desse período da história intelectual brasileira. Na digressão
pedagógica do capítulo V, a moderna doutrina de Knight Dunlap era contraposta a
métodos mais tradicionais como os castigos corporais, que ainda “o prodigioso Dr.
Johnson” defendia em sua época, mas que só se aplicava ao quadro de vida onde o
paradigma de racionalidade social vigente era comandado pela “obediência”, objeto da
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nostalgia tradicionalista dos neotomistas criticados no capítulo I (cf. supra a primeira


seção deste capítulo). Já aqui, os inimigos são os “crédulos predicadores do progresso”.
Parece, assim, que Sergio procura se distanciar de dois modelos não tanto políticos,
mas pedagógicos, um reacionário e católico, outro ingenuamente progressista e
iluminista – note-se, de passagem, como essa subordinação da política à pedagogia se
alinha com o pensamento do Thomas Mann das Considerações de um apolítico.
Segundo o ponto de vista de Raízes, o problema que têm em comum os dois
modelos criticados é sua deflação da autonomia nacional, pois ambos impõem um
paradigma pedagógico exógeno. O “invencível desencanto de nossa realidade e de
nossa tradição”, fruto da crença em “ficções e vaticínios enganosos” e cuja
consequência seria o “bovarismo nacional grotesco e sensaborão”239, nada mais seria
do que uma recusa de considerar os fundamentos reais da cultura para chegar-se a um
caminho para a sua adaptação à modernidade. Assim, na discussão sobre a mudança de
regime de 1889 nas últimas páginas de “Novos tempos”, a crítica de Sergio Buarque
não é tanto ao conteúdo da mudança, mas à “ideia de que o país não pode crescer pelas
suas próprias forças naturais”, devendo, ao contrário, “formar-se de fora para dentro”
e apenas para “merecer a aprovação dos outros”240, uma ideia, afinal, que reproduzia,

239
RB, p. 130.
240
RB, p. 131.
290

ainda que em chave supostamente progressista, a velha pedagogia patriarcal da


imposição externa da obediência e a “cultura da personalidade”, onde a reputação (a
visão dos outros sobre si) importava mais do que qualquer outra coisa na determinação
do valor da pessoa241. A esse propósito o império ainda teria logrado produzir uma
solução mais salutar do que a república, pois, mesmo que a monarquia corrompesse o
princípio do governo representativo com a supremacia do poder pessoal de Pedro II
sobre o falso parlamentarismo, malgrado o princípio do pouvoir neutre de Benjamin
Constant, isso se dava tão somente por causa da “inexperiência do povo”, o que era
“bem compreensível em um regime agrário e patriarcal”; mesmo assim, bem ou mal, a
adoção do “modelo inglês, em dois partidos menos representativos de ideologias do
que de personalidades e de famílias, satisfazia nossa necessidade fundamental de
solidariedade e de luta”, fornecendo o parlamento “uma imagem visível dessa
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solidariedade e dessa luta” 242 . Ou seja, para um povo ainda imaturo, uma política
tutelada era uma solução pedagógica adequada. Que o próprio Pedro II seja retratado
com os ares de um professor apenas vem confirmar que são pedagógicas as
considerações que subjazem a essa discussão.

***

A atmosfera irônica, lúdica mesmo, em meio à qual são apresentadas as diferentes


atitudes político-pedagógicas, a progressista e a conservadora, mas ambas igualmente
imaturas, dá um sabor todo especial a essas passagens, que são talvez mais
interessantes, e até substancialmente mais bem elaboradas, do que as considerações um
pouco herméticas e com algum sabor de conjuntura do capítulo final sobre a alternativa
entre democracia liberal, caudilhismo e fascismo, no último capítulo. É de se perguntar
onde Sergio Buarque teria ido buscar modelos para o senso de humor irônico e para os
tipos construídos nesse capítulo. É bem possível que não sido em nenhum tratado de

241
Outro diálogo possível é com a teoria política naïve-conservadora de Thomas Mann, Segundo a qual
a democracia tivesse sido imposta à Alemanha pela “civilização internacional”, porque o próprio Estado
nacional moderno, tendencialmente democrático-popular, seria próprio dessa, e não da “cultura
nacional”. Considérations d’um apolitique, cit., p. 231.
242
RB, p. 131.
291

teoria política ou filosofia da educação, e sim numa obra de ficção de um autor que
abordou algumas vezes o problema pedagógico, e que era dos preferidos de Sergio
Buarque: a Montanha mágica, de Thomas Mann 243 . É isso, ao menos, que se vai
procurar demonstrar nesta segunda parte da presente seção.
Já se viu anteriormente (Interlúdio) como alguns lugares literários e, ainda mais,
a estrutura narrativa e argumentativa dos romances de formação desempenham um
papel importante na elaboração das narrativas historiográficas, especialmente aquelas
ostensivamente orientadas para a formação nacional na fase moderna da construção
dos Estados. Não deveria surpreender, portanto, que um admirador tão devoto de
Thomas Mann como foi Sergio Buarque, que reproduz algumas opiniões e, sobretudo,
certa atmosfera argumentativa irônica do escritor alemão colhidas, segundo se veio
analisando até aqui, das Considerações de um apolítico, reproduzisse também alguns
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traços da sua prosa de ficção. Uma ficção, aliás, ostensivamente aproximada do ensaio,
da filosofia e até da sociologia244 . É preciso advertir que uma aproximação entre a
Montanha Mágica e Raízes do Brasil impõe algumas dificuldades. A primeira delas é
que a Montanha Mágica, como já notaram muitos intérpretes, é um livro que parece
ter sido composto como uma paródia do gênero do romance de formação 245 . No
contexto do entre-guerras, e ainda mais no caso de Sergio Buarque, a recepção do
significado desse elemento paródico, ainda mais em se tratando de sua apropriação
numa obra historiográfica ou de interpretação sociológica, como Raízes do Brasil, fica
sempre ameaçada pelo risco de superinterpretações, ou mesmo de erros de leitura.
Mesmo assim, não se pode perder a oportunidade, salvo engano, inédita na fortuna

243
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
244
Sobre a centralidade do romance na fundamentação epistemológica das ciências sociais modernas, cf.
LEPENIES, Wolf. Les trois cultures: Entre Science et Litterature, l’avènement de la sociologie. Paris:
Maison des Sciences de l’Homme, 1990. No caso de Mann, os paralelos com a sociologia contemporânea
são flagrantes; veja-se o trecho das pp. 128-9 das Considerações supracitado. A presença específica da
sociologia weberiana, bem como as afinidades eletivas entre as reflexões de Mann e Weber, foram
analisadas por Harvey Goldman em dois importantes estudos. GOLDMAN, Harvey: Max Weber and
Thomas Mann: Calling and the Shaping of the Self. Berkeley, Ca.: University of California Press, 1988;
Politics, Death, and the Devil: Self and Power in Max Weber and Thomas Mann. Berkeley, Ca.:
University of California Press, 1992.
245
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. O murmurante evocador do passado. A montanha mágica e o
romance de formação após a Primeira Guerra Mundial. História da Históriografia, v. 7, n. 16, p. 108-9.
O artigo parte dessa constatação para proceder a uma crítica da noção de paródia e das ideias comuns
sobre sua valência cultural e existencial, chegando a conclusões bastante estimulantes que poderiam ser
aplicadas, com alguns reparos, para a própria historiografia de Sergio Buarque.
292

crítica de Raízes, de tentar reconstituir alguns lugares que Sergio Buarque poderia ter
extraído do grosso volume de Mann, e suas possíveis reverberações num ensaio
relativamente curto como seu livro de 1936.
Para os fins da presente análise, importa sobretudo a segunda metade do
romance; mesmo assim, um conhecimento básico da trama é necessário para
contextualizar os comentários que se seguem. Hans Castorp é um órfão rico – assim
como Thomas Mann – de uma família de comerciantes de Hamburgo – formação social
prototípica da época “heroica” do capitalismo analisada por Max Weber – destinado a
uma carreira de engenheiro naval. No começo do livro, Castorp exibe uma alienação
da tradição cultural que patenteia a crise do paradigma de formação humanística da
burguesia alemã (ver Interlúdio). Castorp já é um jovem adulto, mas seu
comportamento e suas falas ao longo do livro, especialmente na primeira metade,
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revelam uma compreensão profundamente incompetente do mundo, especialmente de


tudo quanto se relaciona às produções do espírito – um sintoma disso é o fato de que
seus hábitos de leitura se limitam, nos meses iniciais de sua estada nos Alpes suíços,
onde se desenrola o romance, a revistas especializadas de construção naval. Sua
mediocridade é ao menos parcialmente causada pela tendência moderna de
especialização na divisão do trabalho e por sua condição de órfão. Mas há, no livro,
uma clara intenção, da parte do romancista, de traçar um painel do esgotamento da
cultura burguesa europeia do século XIX.
No momento em que chega ao hotel-sanatório de tuberculosos de Davos onde
está internado seu primo Joachim Ziemssen, militar e igualmente pouco aculturado,
também desinteressado por qualquer coisa estranha a sua profissão, Hans parece não
ter tido nenhuma iniciação consistente numa cultura não-utilitária (é possível, ao ler a
Montanha mágica, que essa personagem tenha lembrado a Sergio sua leitura juvenil
do Ariel de Rodó; cf. cap. I supra), e nem, tampouco, qualquer tipo de “educação
estética”, tal como imaginada por Schiller, como antídoto para as tendências
reificadoras da vida moderna. Com sua estada prolongada por motivos (ou pretextos)
médicos, Castorp começa a receber no sanatório a educação estética e sentimental que
não tivera, por uma via dupla e concorrente. De um lado, o jovem é iniciado no amor
romântico pela russa Clawdia Chauchat, personagem cercada de conotações “orientais”
293

e vagamente irracionais, mas casada com um francês, em aceno à geopolítica


ideologicamente contra-intuitiva do pré-Primeira Guerra; o nome Chauchat, que os
leitores do entre-guerras terão prontamente associado ao modelo de metralhadora leve
de fabricação francesa amplamente usado a partir de 1915, convida ainda a
pensamentos lúbricos, ao contrair chaud, “quente”, e chatte, “gata”, mas também
“boceta”. De outro, Castorp adquire uma espécie de formação humanística em suas
longas conversas com o livre-pensador italiano Lodovico Settembrini, um homem
idoso cuja ocupação principal é a escrita de verbetes para um projeto de enciclopédia
– não se poderia imaginar um emblema mais típico do racionalismo iluminista, que no
entanto representava, já naquela época, um ideal bastante desmoralizado,
especialmente no contexto alemão. Settembrini é uma caricatura do liberal-
progressismo caduco que alimentava a propaganda dirigida pela Entente contra a
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aliança austroalemã durante a Primeira Guerra, a própria encarnação romanesca dos


“literatos da civilização” tão duramente criticados nas Considerações de um apolítico
– o termo ali é endereçado em particular a Heinrich Mann e, de modo mais geral, a
todos os que defendiam o progresso e a democracia, isto é, o mundo burguês criado
pela Revolução, que Thomas associa à “literatura”. Pouco depois da metade da
narrativa, entretanto, Settembrini ganha um rival no plano intelectual e pedagógico, um
representante das “sombras” contra as “luzes” do italiano: o jesuíta de origem judaica
(nascido em algum vilarejo não nomeado entre a Galícia e a Volínia, isto é, na fronteira
entre os impérios austro-húngaro e russo) Leo (originalmente Leib) Naphta. Naphta
não deixa de ser, como todas as personagens do romance, algo caricato, mas é
inegavelmente mais cativante do que Settembrini. Os confrontos retóricos entre Naphta
e Settembrini dominam a narrativa até o retorno de Clawdia Chauchat, que deixara o
sanatório logo após Castorp lhe ter confessado seu amor 246 – logo antes, aliás, do
aparecimento de Naphta – e que agora retorna acompanhada de um novo amante, o
holandês Mynheer Peeperkorn, que, com sua personalidade primária mas absorvente,
acaba neutralizando os debates entre os dois. A rivalidade esfria, até que, depois de um

246
O episódio, tal como narrado e posteriormente aludido na memória do protagonista, se presta à
interpretação de que, na sequência da confissão de Hans Castorp, ele e Clawdia passam a noite juntos,
mas não há, salvo engano, uma confirmação textual disso.
294

período descrito como de “grande irritação” na atmosfera do sanatório, uma discussão


acaba levando Naphta a desafiar Settembrini para um duelo, que termina, diante da
recusa do italiano, que declara escrúpulos humanitários, em disparar contra Naphta,
com o suicídio do jesuíta. Em seguida, o leitor é transportado ao front – não se
especifica qual – da Grande Guerra, onde, entre explosões e tiros, Hans Castorp
murmura o Lied Der Lindenbaum, de Franz Schubert.
É preciso ressaltar, mais uma vez, que a presente reconstituição hipotética da
composição de Raízes do Brasil a partir de lugares literários da Montanha mágica não
é passível de comprovação documental inequívoca e que, embora seja a convicção do
autor deste estudo de que entre os fatores que presidiram, conscientemente ou não, a
escrita de Raízes do Brasil, está a leitura deste romance de Thomas Mann, a análise
que se segue só pode proceder por aproximações e está especialmente sujeita ao risco
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do erro, que no entanto parece valer a pena correr. Comprovações documentais são
especialmente difíceis com o material à disposição, principalmente porque o campo
mais fértil para a verificação documental, na ausência de indicações textuais do autor,
seria o exemplar da Montanha mágica lido por Sergio Buarque, e esse não consta da
biblioteca que os detentores de seu espólio legaram à UNICAMP. O exemplar que lá
se encontra data de 1943 (Estocolmo, Ed. Berman-Fischer), de modo que não é possível
consultar os grifos que poderiam pelo menos ajudar a corroborar a hipótese de que tal
ou qual trecho poderia ter sido especialmente marcante para Sergio em suas leituras até
1936. O mesmo se dá, diga-se de passagem, com outro livro de Mann do qual há fortes
sinais de recepção em Raízes do Brasil, as Considerações de um apolítico, cujo
exemplar deixado por Sergio é de 1956 (Frankfurt, Ed. Fischer)247. De todo modo, o

247
É folclórica a obsessão de Sergio Buarque pela aquisição de novos livros, bem como sua disposição
em desfazer-se deles – toda uma parte de sua biblioteca foi doada a Antonio Candido, e hoje está, salvo
engano, indiscriminadamente, conservada na biblioteca da FFLCH-USP. Isso impõe ao menos algumas
ressalvas, no que diz respeito ao controle das hipóteses de interpretação, a análises como a de Sergio da
Mata (“Tentativas de desmitologia”, cit.), que procuram estabelecer interpretações a partir de grifos em
exemplares e do número de livros de tal ou qual autor (no caso, Spengler, cuja influência em Raízes é
de resto inegável, fato cuja revelação é um mérito quase exclusivo da pesquisa de Sergio da Mata, que
pode ser seguramente incluído entre os melhores comentadores contemporâneos de Raízes do Brasil)
constantes de uma biblioteca que não é necessariamente representativa da bibliografia que Sergio
efetivamente consultou à época da formulação do ensaio de 1936 – dela não consta, por exemplo, um
livro importantíssimo para a argumentação de Raízes, os Studies in Classic American Literature (Cf. a
próxima seção deste capítulo).
295

que está fora de dúvida é que a personagem de Leo Naphta exerceu um fascínio
persistente sobre Sergio Buarque de Holanda, a ponto de ele não ter se furtado a referi-
lo, citando textualmente A montanha mágica, em sua dissertação de mestrado
apresentada em 1958 à Escola de Sociologia e Política de São Paulo, intitulada
Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos. Num
primeiro momento, essa referência pareceria completamente disparatada numa
dissertação de mestrado em ciências sociais sobre Portugal do fim da Idade Média até
o século XVII. Mas ela se justifica quando se tem em mente uma das teses desse
trabalho: para Sergio Buarque, a presença judaica e mourisca – isto é, semítica, ou, de
modo mais amplo, “oriental” – na formação portuguesa teria deixado um sedimento
profundo nas sociedades portuguesa e brasileira modernas, sedimento esse escondido,
porém, pelo empenho do Estado português, já na época da Contrarreforma, em extirpar
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do Reino e das colônias esses elementos ameaçadores da supremacia católica. Esse


esforço não conseguira, porém apagar algumas evidências mais antigas, denunciadas
por “aquele non placet Hispania” [não gosto da Espanha, isto é, segundo o uso da
época, da Península Ibérica] que Erasmo de Roterdã escreveu numa carta a Thomas
More,248 ou a “identidade entre ser português e ser judeu, no conceito popular”249 da
Europa Central e mesmo na América Espanhola, ou ainda alcunha de Rex Judaeorum
conferida ao rei de Portugal250. E é a persistência dessa associação entre a Península
Ibérica e o judaísmo no imaginário europeu de além-Pirineus que a citação à Montanha
mágica vem atestar:

A esse respeito, não parece descabido lembrar certa passagem de um escritor dos mais
ilustres do nosso tempo, o qual, descendente de luso-brasileiros, do lado materno, se viu
alvo, por sinal, de críticas de antissemitas que pareciam querer atribuir-lhe sangue
judaico. Apenas é de notar que no trecho lembrado, os lusitanos ou melhor luso-
brasileiros, já não surgem assimilados aos judeus, segundo o velho costume. Estes, sim,
e a circunstância não deixa de ser igualmente significativa, é que irão parecer menos
judeus, em confronto com aquela gente. De um de seus personagens, Leo Naphta, cristão
novo e jesuíta, escreve, com efeito, Thomas Mann, que tivera a vocação sacerdotal
estimulada pelo ambiente tolerante e democrático de um pensionato que frequentou na
Alemanha, mantido por padres da Companhia, cujo cosmopolitismo tornava
despercebidos seus traços raciais: entre os discípulos do mesmo Naphta havia gente de

248
EF, p. 17.
249
EF, p. 73.
250
EF, p. 75
296

lugares exóticos, sul-americanos de origem portuguesa que se diria mais “judeus” que
ele próprio, filho, no entanto, de um schochet da Galícia, rigorosamente adstrito, em seu
ofício, aos preceitos talmúdicos.251

Mas o que Sergio Buarque viu de instigante em Naphta quando escrevia Raízes
do Brasil não terá sido, provavelmente, pelo menos de maneira decisiva, sua origem
judaica, mas antes sua doutrina pedagógica, além de sua posição política radical diante
do esgotamento da cultura humanística e burguesa da Europa do século XIX. O fato de
a segunda metade do romance ter como tema central uma alternativa política, mas,
antes disso, pedagógica, que se desenha nas discussões entre Naphta e Settembrini, é o
elemento de intriga que de fato aparece reproduzido, de maneira coincidente ou não,
em Raízes. Hans Castorp, o jovem ainda indeterminado e inculto, é o objeto de uma
disputa, ao fim e ao cabo, fatal, entre os dois pedagogos. Ainda que engenheiro e
alemão, o protagonista do romance não deixa de estar numa situação mais ou menos
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análoga daquele “estouvamento de povo moço e sem juízo” de que falava Sergio
Buarque, referindo-se aos brasileiros, em “O lado oposto e outros lados” (Cf. supra
cap. II, seção 3, “Duelo”). E parece mesmo que, nos capítulos finais de Raízes do
Brasil, a pedagogia e a política se entrelaçam no núcleo da problemática da adaptação
aos novos tempos: é como se o Brasil, à maneira de Hans Castorp, estivesse diante da
necessidade de tomar uma decisão para poder superar um estágio de estagnação, de
uma forma de vida já esgotada (no caso do Brasil, a ordem rural e patriarcal) para
alcançar uma maturidade autônoma. No caso de Hans Castorp, essa indefinição assume
ares nitidamente alegóricos e prenunciadores dos dois blocos políticos unidos pelos
respectivos complexos ideológicos – ou ao menos assim Mann parece figurá-los, não
sem boa dose de ironia – que se enfrentarão na Primeira Guerra Mundial252. Assim, as
alternativas que se apresentam sob roupagens políticas são antes de mais nada formas

251
EF, p. 100-1.
252
É com uma solenidade um pouco patética, mas que não deixa de ser comovente para os leitores que
já sabem o desenlace histórico que o problema da indecisão alemã entre o Ocidente e aquilo que a
Settembrini se apresenta como “a Ásia” – isto é, o despotismo, o irracionalismo, e também a
ambiguidade moral encarnada principalmente pela russa mme. Chauchat – que o beletrista se dirige a
Hans Castorp: “Caro amico! Será necessário tomar decisões, decisões de importância inestimável para
a felicidade e o futuro da Europa, e elas caberão ao seu país. Situado entre o Oeste e o Leste, terá de
escolher [...] por uma ou outra das esferas que lhe disputam a natureza. O senhor é jovem. O senhor
participará dessa decisão, sua vocação é influir sobre ela.” A montanha mágica, cit., p. 594.
297

de pedagogia, no sentido mais amplo possível do termo, na medida em que são


pensadas como as condições de reprodução das dinâmicas sociais, culturais e
econômicas – assim, não admira que Sergio fale na “prosperidade” como signo
abarcador de uma “pedagogia”, conforme se lê no trecho de Raízes do Brasil sobre o
erro da crença na alfabetização como solução milagrosa para o atraso nacional, ao qual,
em tempo, se voltará.
E é uma perspectiva parecida com a de Naphta, muito mais do que com a de
Settembrini, que vamos ver reproduzida nos capítulos finais de Raízes do Brasil –
mesmo que suas opiniões não sejam todas vaticinadas, até porque trata-se de uma figura
dada aos mais diversos exageros, geralmente visando a efeitos polêmicos. A
personagem do pedagogo jesuíta e o universo cultural e ideológico por ele mobilizado
que podem ter pautado alguns momentos importantes do livro, e não só no final. A
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presença de Settembrini também pode ser adivinhada aqui e ali, mas sempre mediada
pelo olhar mordaz de Naphta. Independentemente da eventual intenção de Thomas
Mann, que na altura em que publicou A montanha mágica já não sustentava tão
peremptoriamente todas as opiniões antidemocráticas e anti-iluministas de suas
Considerações de guerra, não é difícil, pelo menos a um leitor desavisado, chegar à
conclusão de que Naphta leva sempre melhor nos debates que trava com seu oponente
italiano. Dito isto, quem ler atentamente os debates perceberá uma ênfase
provavelmente deliberada da narração em destacar um grau apreciável de dependência
mútua, e mesmo elementos co-constitutivos, entre as ideias do jesuíta e as do
enciclopedista: quando a confrontação de ideias entre os dois chega a certo ponto – ou
ao menos assim o percebe o despreparado Hans Castorp, cujas intervenções costumam
demonstrar uma crassa incompetência em sua tentativa de atinar para o significado dos
discursos que concorrem por sua simpatia – já não é possível perceber facilmente qual
o conteúdo das ideias de cada um, e ainda menos o que as opõe, uma vez que a dialética
entre as duas posições foi levada a um momento em que elas são estranhamente
indistinguíveis 253 . Para ser mais preciso, depois de um primeiro retrato otimista e

253
Sobre um desses debates, o narrador conclui que “não resultou clareza nem ordem, nem ao menos
uma ordem de caráter dualista e militante; pois as posições não somente eram opostas, mas confundiam-
se”, e que Settembrini e Naphta, “ao invés de se limitar a combater-se reciprocamente, amiúde
contradiziam-se a si próprios”. A montanha mágica, cit., p. 535. Mais tarde, lemos que outra conversa,
298

progressista da história ocidental como superação da menoridade humana, traçado por


Settembrini, Naphta vem trazer alguma complexidade a esse quadro, fazendo
frequentemente o elogio dos elementos “superados” e revelando a complexidade e,
sobretudo, a ambiguidade do mundo moderno – mundo esse que ele espera ver ruir
com o advento de uma Revolução ao mesmo tempo proletária e católica.
O que Hans Castorp consegue extrair dessas lições, talvez seja impossível saber,
mas o fato é que nem sempre ele compreende adequadamente o que está em jogo no
duelo de posições que se delineia com o fim exclusivo de disputar sua simpatia254. A
certa altura, ele expõe, para grande apreensão de Settembrini – que parece muito pouco
seguro da superioridade propagandística de seu próprio ideal, uma vez que está
constantemente empenhado em privar de seu jovem pupilo a oportunidade de ouvir seu
rival – um raciocínio que mescla de modo contraditório os ensinamentos que recebera
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do mestre italiano com algumas das novidades mais picantes que lhe são apresentadas
pelo jesuíta, ao afirmar sobre certo aspecto da doutrina maçônica, que ele, Castorp,
entende singelamente pela “ideia de riscar Deus”, que seria, a seu ver, “uma ideia
sumamente católica” 255 , numa de muitas interpretações desajeitadas de ideias que
recebe de seus mestres bem-formados, e que se podem ler ao longo de quase todo o
livro. Elas lembram, talvez, aqueles intelectuais brasileiros de Raízes do Brasil que,
não sendo capazes de compreender a necessidade das ideias e a lógica que lhes dá
coerência, se deixam seduzir pelas “doutrinas dos mais variados matizes”, sendo
capazes de sustentar, simultaneamente, as “convicções mais díspares”256. Pelo menos
num primeiro momento, Hans Castorp deixa-se guiar bovinamente pela argumentação
de Settembrini sobretudo pelas aparências impressionantes produzidas por sua suposta
excelência retórica257 – excelência que empalidecerá ao longo do convívio com Naphta.

precisamente a que parece a mais decisiva para Raízes do Brasil, iria “embocar naquela confusão já
mencionada” (p. 603).
254
Referindo-a à última fase das contendas entre os dois eruditos, o narrador faz uma observação que
talvez pudesse se aplicar a um período maior, considerando indicações dadas anteriormente: “Era claro
que Hans Casorp só podia falar das discussões a que assistia. Mas o jovem tinha quase certeza de não
haver perdido uma sequer, pois sua presença, ao tratar-se de um tema pedagógico, era indispensável para
dar grandeza aos colóquios”. A montanha mágica, cit., p. 798.
255
A montanha mágica, cit., p. 593.
256
RB, p. 114.
257
Ao final de um dos primeiros embates, uma longa declamação de Settembrini é seguida da observação
do narrador, que parece exprimir em discurso indireto livre a opinião de Hans Castorp: “Seria impossível
299

Em Raízes, vamos ver exatamente a maçonaria de Settembrini e o catolicismo de


Naphta entrelaçados de maneira a exemplificar um problema análogo, no episódio da
chamada Questão Eclesiástica258. No romance de Mann, ao menos se pensarmos em
como ele teria sido lido depois de 1945 e das posições que o próprio autor manifestaria
antes e no decurso da Segunda Guerra, está claro que a alternativa entre Naphta e
Settembrini é, de certo modo, uma falsa alternativa, na medida em que ambos
representam as duas faces de uma modernidade burguesa toda ela moralmente esgotada
e para além de qualquer regeneração interna – mesmo o terror revolucionário desejado
por Naphta tem seu potencial redentor desmentido, salvo engano, no fim da narrativa.
Talvez isto não estivesse tão claro assim para Sergio Buarque, que parece reproduzir
em alguns passos da argumentação de Raízes um ponto de vista próximo daquele do
jesuíta, principalmente a verve de suas invectivas contra os “crédulos predicadores do
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progresso”.
Com efeito, as tintas com que Mann carrega o retrato de Naphta são
impressionantes. Várias de suas opiniões ou elementos que lhe dizem respeito têm ecos
diretos ou indiretos em Raízes do Brasil, e não só em seus capítulos finais. A doutrina
filosófica de Naphta, espécie de síntese entre filosofia tomista e um marxismo um tanto
hermético, parece ter um forte componente hegeliano. Ouve-se dele, contra a asserção
de Settembrini de que “o espírito” e “a natureza” são idênticos, que o espírito tem um
“princípio motor, passional, dialético”, baseado no “dualismo” e na “antítese”, e que
“todo monismo é fastidioso”, ideias que ele faz questão de atribuir, em sua origem, a
Aristóteles259. Baseado em Tomás de Aquino e Boaventura, Naphta opõe o “mundo”
ao “divino” – o leitor de Raízes do Brasil, se lembrará aqui do capítulo inicial,
“Fronteiras da Europa”, onde se lê que os princípios hierárquicos sobre os quais a
filosofia escolástica pretendia erigir a ordem terrena eram uma “força inimiga [...] do

falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer” (p. 474). Settembrini
é insistentemente qualificado ao longo do livro como um mestre da palavra – embora nem tanto, talvez,
do pensamento; esse posto caberia antes a Naphta. Noutra parte, uma das perorações de Settembrini é
qualificada pelo narrador como “panegírico apologético” (p. 601) [apologetischer Lobgesang, p. 552];
logo mais, Naphta qualifica de “literário” e mentiroso o espírito do palavrório de Settembrini, opondo-
o à “vida” e à “natureza” (p. 602), ecoando os ataques do próprio Mann aos “literatos da civilização”
nas Considerações de um apolítico. A edição alemã da Montanha mágica consultada para controle é
MANN, Thomas. Der Zauberberg. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1988.
258
RB, p. 108.
259
A montanha mágica, cit., p. 432-3.
300

mundo e da vida” 260 . Crítico do Estado liberal e do progressismo burguês, Naphta


acredita, e nesse ponto sua perspectiva está afinada com a de Raízes do Brasil, que as
formas políticas sucedem-se, na História, pela superação do antigo pelo advento de
forças transcendentes: em suas palavras, “a república universal capitalista” apregoada
pelo iluminista Settembrini “tem algo de transcendente”, e também o “Estado universal
é a transcendência do Estado secular”, mas essa transcendência não será alcançada,
como pretende o rival italiano, por meios democráticos e pacíficos, pois, ecoando Jacob
Burckhardt, Naphta sustenta que “o poder é mau”; daí a “necessidade do terror”. “Para
que chegue o reino”, diz Naphta, “é preciso suspender momentaneamente
[vorubengehend aufgehoben] o dualismo entre bem e mal, aquém e além, espírito e
arbítrio [Geist und Macht], e uni-lo em um princípio que reúna o ascetismo e o
domínio”261.
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Sobre o conteúdo desse mundo ideal, Naphta se estende mais longamente em


outra de suas palestras: “a Igreja, como encarnação da ideia religiosa-ascética”, estava
longe de se empenhar em salvar o mundo que insistia em resistir à marcha das novas
forças sociais, ou seja, ela era inimiga exatamente da “formação secular” e das
“ordenações jurísticas do Estado”, e “arvorava a bandeira da revolução mais radical”,
de modo que “o Estado e a família, a arte e a ciência seculares, tudo isso sempre estivera
em oposição [...] à ideia religiosa, à Igreja”. Esta tinha por “objetivo inalterável” a
“dissolução de todas as ordenações seculares e a reorganização da sociedade segundo
o modelo da Cidade de Deus, ideal e comunista”262. Se em alguma parte de Raízes do
Brasil se pode encontrar o mesmo tom de fascinação quase reverente pelo poder e pela
dominação como manifestações de uma vontade férrea e cruel, mas também de uma
força transcendente e necessária à ordem num mundo inerentemente mau263 , é, por
certo, quando se fala nos jesuítas, ali comparados, aliás, aos “comunistas” e aos teóricos
do “Estado totalitário”264 – Naphta encerra em si os três termos da comparação. E uma

260
RB, p. 8-9.
261
A montanha mágica, cit., p. 463; Der Zauberberg, cit., p. 424.
262
A montanha mágica, cit., p. 677.
263
Lembre-se outra vez a teoria política de Pascal exposta em Auerbach (“O triunfo do mal”, cit.).
264
“Nenhum ditador moderno, nenhum teórico do comunismo ou do Estado totalitário, chegou a
vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que puderam conseguir os padres da
Companhia de Jesus em suas missões.” (RB, p. 14-5)
301

descrição semelhante do “prodígio de racionalização” se pode encontrar nas páginas


da Montanha mágica onde se aprende um pouco sobre a formação jesuítica de
Naphta265, que conseguira a simpatia de um membro da ordem após impressioná-lo em
uma conversa sobre Hegel, filósofo que ele considerava “católico” – apesar do detalhe
de ter sido, em vida, protestante. Pois, sendo ele o “filósofo oficial” do Estado
prussiano, e estando “o conceito do político” (“der Begriff des Politischen”, exatamente
como no título schmittiano posterior em alguns anos à Montanha mágica)
“psicologicamente vinculado ao de católico”, isto é, direcionado ao mundo objetivo e
a “tudo que produzisse efeitos externos”, em evidente oposição à “esfera pietista,
protestante, que tinha sua origem na mística”, Hegel tinha de ser considerado, por força,
um católico “no sentido religioso, embora naturalmente não no sentido eclesiástico-
dogmático”. E o jovem Naphta concluía afirmando que era no jesuitismo que “tornava-
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se evidente a natureza político-pedagógica do catolicismo”, concluindo, por um


raciocínio análogo ao aplicado a Hegel, que o também protestante Goethe, por seu
objetivismo e por sua doutrina da ação, era “quase jesuíta como educador” 266 . O
hegelianismo de Naphta, porém, ainda que sirva de base teórica a ideais comunistas,
não é só anti-burguês, como marcadamente anti-moderno: para ele, “a questão da
liberdade, ou a questão das cidades” estaria “historicamente ligada à mais desumana
degeneração da moral econômica, a todas as atrocidades das corporações modernas de
comerciantes e especuladores, com o domínio satânico exercido pelo dinheiro e pelos
negócios”, fato que deveria levar ao abandono do “medo covarde ante a ideia de

265
“As terras do educandário” onde Naphta foi acolhido “eram tão extensas quanto os seus edifícios, que
podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia
dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos, para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo
um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das
Musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral”. A
montanha mágica, cit., p. 511. Compare-se o trecho com a avaliação das reduções jesuíticas em Raízes:
animados pelo pensamento de que “o homem pode intervir arbitrariamente e com sucesso no curso das
coisas e de que a história não somente ‘acontece’. mas também pode ser dirigida e até fabricada”, os
jesuítas “não só o introduziram na cultura material das missões guaranis, ‘fabricando’ cidades
geométricas, de pedra lavrada e adobe, numa região rica em lenho e paupérrima em pedreiras, como
estenderam-no até as instituições, Tudo estava tão bem regulado nessas missões – refere um depoimento
– ‘ut secundum morem in Bolivia traditum cônjuges indiani media nocte sono tintinnabuli ad
exercendum coitum excitarentur’ [“À meia-noite os casais indígenas são despertados com sinos, a fim
de realizarem o coito”].” RB, p. 65.
266
A montanha mágica, cit., p. 509-10; Der Zauberberg, cit., p. 467.
302

‘reação’” 267 . Na formação jesuítica de Naphta não deixa de entrar certo elemento
iberizante, que se dá a ver em seu uso frequente de expressões castelhanas268. E essa
formação lhe legará um ideal pedagógico altamente dependente de noções de
autoridade férrea e obediência – noções aludidas, mas severamente criticadas, em
Raízes do Brasil: no primeiro capítulo, afirma-se a sua obsolescência, e, no quinto, com
a citação a Knight Dunlap, um dos “pedagogos e psicólogos mais venerados de nossos
dias”, aparece como alternativa exatamente oposta ao que Naphta diz quando expões
sua pedagogia “terrorista”:

O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos
quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje pretende ser a filha do racionalismo
[Aufklärung] e vê os seus meios formativos na crítica, na libertação e no culto do eu, na
destruição de formas de vida determinadas de um modo absoluto, ora, tal pedagogia
pode obter ainda hoje triunfos retóricos passageiros, porém o seu caráter atrasado é óbvio
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para os espíritos avisados. Todas as organizações verdadeiramente educadoras sempre


souberam qual deve ser o objetivo último da pedagogia, afinal: a autoridade absoluta, a
obrigação de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o domínio da
personalidade. Em última análise, desconhece e não ama a juventude quem pensa que
ela sente prazer diante da liberdade. O que ela aprecia mais é a obediência. [...] O segredo
e a existência [Gebot, mandamento] da nossa era não são a libertação e o
desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que ela deseja, o que criará é... o terror.269

Compare-se esta com a passagem onde aparece o único ideal que dá ordem à
“cultura da personalidade” ibérica descrita no primeiro capítulo. Ela replica, quase que
traço por traço, a exposição pedagógica de Naphta:

À autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e


que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a negação e a renúncia a
essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que rara e difícil,
a obediência aparece, por vezes, entre os povos ibéricos, como a virtude suprema entre
todas. E não é estranhável que essa obediência – obediência cega, que difere do ideal
germânico e feudal da lealdade – tenha sido até agora para eles o único princípio político
verdadeiramente forte. [...] As ditaduras e o Santo Ofício constituem formas tão típicas
de seu caráter como a inclinação para a anarquia e a desordem, não existe para os povos
ibéricos outra sorte de disciplina concebível, além da que se funde na excessiva
centralização e na obediência, ainda que só por exceção se manifeste.
Foram ainda os jesuítas que representaram, melhor de [sic] que ninguém, esse princípio
da disciplina pela obediência. Mesmo em nossa América do Sul, eles deixaram disso um

267
A montanha mágica, cit., p. 467.
268
A montanha mágica, cit., p. 515.
269
A montanha mágica, cit., p. 461; Der Zauberberg, cit., p. 422.
303

exemplo memorável com suas antigas reduções. Nenhum ditador moderno, nenhum
teórico do comunismo ou do Estado totalitário, chegou sequer a vislumbrar a
possibilidade desse prodígio de racionalização que puderam conseguir os padres da
Companhia de Jesus em suas missões.270

Outra arenga pedagógica de Naphta que encontra correspondência negativa, mas


igualmente precisa, em Raízes do Brasil, é sua tese sobre os castigos corporais. Depois
de ouvir um relato das surras humilhantes que Hans Castorp havia recebido na infância,
o jesuíta, replica, para o horror de Settembrini, que, em pedagogia, “o conceito de
dignidade humana defendido por aqueles que queriam excluir os castigos corporais”,
enraizado no “individualismo liberal da época burguesa e humanitária, no absolutismo
esclarecido do eu”, estava, por isso mesmo, destinado à superação por “ideias sociais
menos efeminadas, que já se achavam iminentes; ideias de disciplina e docilidade, de
coação e obediência, às quais era inerente uma sagrada crueldade”271. É no capítulo
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sobre o “homem cordial” que se vai ler em Raízes do Brasil a defesa de uma pedagogia
diretamente oposta a essa, ainda que Sergio preste uma homenagem aos tempos
passados em que ainda parecia razoável o ideal caduco da obediência introjetada por
meio de castigos corporais em sua referência ao “prodigioso Dr. Johnson” que fazia a
seu biógrafo, James Boswell, a “apologia crua dos castigos corporais para os educandos
e recomendava a vara” – e aqui, em citação irônica mas reverente à biografia de Samuel
Johnson por Boswell, ele usa palavras que caberiam muito bem numa das tiradas
sentenciosas e polêmicas de Naphta – “para o terror geral de todos”272.
Da crítica de Naphta ao liberalismo e à ideologia moderna e cosmopolita,
especialmente de certos dogmas iluministas bastante enraizados entre os bem-
pensantes, por outro lado, Raízes do Brasil partilha ao menos uma parte significativa.
Embora Settembrini talvez o pressinta – daí, talvez, sua apreensão em todas as ocasiões
em que Hans Castorp está exposto às doutrinações de seu rival – Naphta é
provavelmente a única personagem do livro a escancarar uma dos elementos centrais à
urdidura da trama e ao significado do romance: o fato de que os ideais pedagógicos e,
por extensão, toda a cultura burguesa europeia, se mantêm em funcionamento por

270
RB, p. 14-5.
271
A montanha mágica, cit., p. 524.
272
RB, p. 98-9.
304

forças meramente inerciais, e carece da convicção e da energia vital com que se haviam
edificado em sua fase propriamente heroica – o século XVIII, de Voltaire, Diderot e
Rousseau, e o começo do século XIX, a época de Goethe, Schiller e Hegel. Depois de
chamar Virgílio, poeta predileto de Settembrini, de um “francês de peruca empoada em
plena era de Augusto”, Naphta afirma, ante a lembrança pelo adversário de ser Naphta,
ele próprio, professor de latim, que “exercia com toda a necessária reservatio mentalis
aquela profissãozinha burguesa”, e que “[n]ão era sem ironia que se enquadrava num
sistema de ensino clássico-retórico, ao qual nem os maiores otimistas podiam prometer
mais que alguns decênios de duração” 273 . Chocado, como costuma ficar em suas
confrontações com o ardiloso adversário, Settembrini acusa nessa profecia um anseio
por “apocalipses proletários”, ao que, num dos paradoxos a que semelhantes discussões
levam de forma recorrente no livro, Naphta responde que o italiano tinha excessiva
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confiança em seu “conservadorismo latino”. Enquanto Settembrini, “esse servidor


declarado do progresso”, preparava sua resposta a essa “grande insolência”, Naphta
continua seu ataque demolidor, afirmando que a cultura erudita era, já naqueles temos,
entre os populares, motivo de riso, e descarta a “ilusão insana de que a cultura popular
era uma forma diluída da cultura erudita”, concluindo que a educação das futuras
gerações proletárias deveria abandonar seu esqueleto medieval e se dar na forma de um
“ensino livre, acessível a todos por meio de conferências públicas, exposições, cinemas
etc., [...] muitíssimo superior a qualquer ensino escolar”. É então, e finalmente
chegamos ao momento de mais flagrante coincidência entre as doutrinações de Leo
Naphta e o Sergio Buarque de Raízes do Brasil, que Settembrini tenta constranger
Naphta, imaginando apelar para sua sensibilidade de erudito, acusando nele uma
“instintiva tendência de envolver o povo e o mundo nas trevas do analfabetismo”274. A
resposta de Naphta é muito reminiscente do ataque de Sergio Buarque aos “crédulos
predicadores do progresso”, feito no mesmo tom polêmico e sarcástico. Também não
faltam na manhosa resposta de Naphta, note-se, o “estilo culto” (em espanhol no

273
A montanha mágica, cit., p. 598.
274
A montanha mágica, cit., p. 599.
305

original) e o marinismo cujas reverberações poéticas e retóricas no Brasil do presente


tanto desagradavam a Sergio Buarque275:

Naphta sorriu. O analfabetismo! Com isso seu interlocutor pensava, sem dúvida, ter
pronunciado uma verdadeira palavra de horror, persuadido de que todo mundo, ciente
de seu dever, empalideceria em face dessa cabeça de Górgona. Ele, Naphta, lamentava
ter de desapontar seu oponente ao dizer-lhe que o pavor dos humanistas ante o conceito
de analfabetismo fazia-o rir, e nada mais. Era preciso ser um [...] precioso, um homem
do Secento, um marinista, um palhaço do estilo culto, para atribuir às artes de ler e
escrever toda essa exagerada primazia pedagógica, a ponto de se imaginar que reinariam
as trevas do espírito onde faltasse o conhecimento de ambas. O Sr. Settembrini se
recordava de que o maior poeta da Idade Média, Wolfram von Eschenbach, tinha sido
analfabeto? Naquela época julgava-se vergonhoso na Alemanha enviar à escola um
menino que não quisesse ser padre, e esse menosprezo aristocrático e popular pelas artes
literárias fora em todos os tempos um sinal de nobreza fundamental da alma , ao passo
que era na verdade o literato, esse filho genuíno do humanismo e da burguesia, quem
sabia ler e escrever. O que ele sabia e entendia de tudo que havia no mundo, afinal, era
mesmo coisa nenhuma, e não passava, isso sim, de um latinista doidivanas que dominava
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a língua e deixava a vida a cargo de pessoas honradas... E por isso fazia da política algo
vão, isto é, algo cheio de vã retórica e belas-letras, o que no linguajar dos partidos se
denomina radicalismo e democracia [...].276

O retrato que Naphta faz dos literatos, dos “latinistas doidivanas” que nada sabem
das coisas deste mundo, reclusos em suas bibliotecas, é precedido, aliás, em muitas
páginas, por uma visão muito mais positiva desses mesmos personagens, exposta,
naturalmente, por Settembrini, nessa altura ainda despreocupado da influência nefasta
de Naphta sobre seu jovem amigo, que aqui ainda não conhece o jesuíta, no capítulo
em que ele fala a Hans Castorp sobre seus trabalhos de enciclopedista. Diz o italiano:

Sou humanista, [...] pois sou amigo do homem, [...] um enamorado da humanidade e de
sua nobreza. Essa nobreza, no entanto, acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso
seria em vão se o senhor me acusasse de obscurantismo cristão [...]... seria absurdamente
em vão o senhor me acusar disso [...] só porque um belo dia o humanismo, no seu nobre
orgulho, chegou a se dar conta da humilhação, da ignomínia que reside no espírito estar
ligado ao corpo, à natureza. O senhor tem conhecimento de que nos foi transmitido um

275
Curiosamente, em seu estudo sobre Cláudio Manuel da Costa, exatamente ao falar do estilo culto e
de Góngora, Sergio se refere ao alexandrinismo como a fase “barroca” da Antiguidade Clássica, num
procedimento um tanto livre de aplicação de categorias estéticas a períodos históricos a elas estranhas,
análogo ao de Naphta, quando afirma serem as filosofias de Boaventura e Tomás de Aquino
representativas da mais “pura Idade Média Clássica”, justificando para um Settembrini previsivelmente
escandalizado esse aparente anacronismo como “o movimento livre das categorias”. CLC, p. 255; A
montanha mágica, cit., p. 433.
276
A montanha mágica, cit., p. 599-600; Der Zauberberg, cit., p. 550.
306

dito do grande Plotino, segundo o qual ele sentia vergonha de ter um corpo? [...] É uma
sentença absurda, se assim quiser. Mas o absurdo é a honestidade espiritual, e no fundo
não há nada mais nobre que a objeção do absurdo, nos casos em que o espírito procura
manter sua dignidade em face da natureza [...].277

Raízes do Brasil, num trecho já citado sobre os homens de letras encerrados em


suas bibliotecas, exemplares da vida intelectual que dá as costas para a realidade,
responde a essas duas passagens, quase ponto por ponto, reproduzindo uma perspectiva
bastante afinada com as críticas de Naphta à alienação dos intelectuais pelas coisas do
mundo e do povo. É a figura de Plotino, que Settembrini qualifica de “grande”, que
Sergio Buarque invoca para encerrar o parágrafo:

Ainda quando se punham a legiferar e a cuidar da organização e outras coisas práticas,


os nossos homens de ideias eram puros homens de palavras e livros; não saíam de si
mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo assim engenhava na fabricação de uma
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realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria de asfixia. Comparsas
desatentos do mundo que habitávamos, quisemos viver fervorosamente contra nós
mesmos, viver pelo espírito e não pelo sangue. Como Plotino de Alexandria, que sentia
vergonha do próprio corpo, acabaríamos por esquecer tudo quanto fizesse pensar em
nossa própria riqueza emocional, a única força criadora que ainda nos restava, para nos
submetermos à palavra escrita, à gramática, ao Direito abstrato.278

Antes de terminar esse excurso romanesco e voltar a acompanhar o andamento


de Raízes do Brasil, convém perguntar pelo significado mais amplo dessa apropriação,
que a esta altura, espera-se ter demonstrado como, no mínimo, altamente plausível.
Que tipo de ponto de vista sobre a história brasileira embasaria esse aporte, no mínimo,
curioso? A pergunta é especialmente inquietante porque, por mais que se admita uma
estrutura tomada do gênero do romance de formação em narrativas como um ensaio
histórico composto com traços largos, eminentemente interpretativo antes que
estritamente factual e narrativo (pense-se aqui, para contraste, dentro da obra de Sergio
Buarque, em obras como Monções ou Do Império à República), A montanha mágica
está longe de ser um romance de formação convencional. Mesmo que possa ter
escapado a Sergio Buarque a complexidade do romance, com seus diferentes níveis de
ironia 279
– o que é bem plausível, se pensarmos, por exemplo, na relativa

277
A montanha mágica, cit., p. 288.
278
RB, p. 126.
279
Lembre-se outra vez do estudo de Pedro Caldas, “O murmurante evocador do passado”, cit.
307

insensibilidade do crítico Sergio à obra de Machado de Assis, ou mesmo a certos


aspectos menos superficiais do João Miramar de Oswald de Andrade (cf. supra cap.
II) – ele certamente terá notado que o livro de 1924 é uma obra onde sempre somos
lembrados das insuficiências do ideal moderno de Bildung, e, ainda, que a crise da
modernidade é vista sob um ponto de vista ostensivamente pedagógico. Por outro lado,
não se pode dizer o mesmo de Raízes do Brasil, ao menos de modo peremptório: por
mais irônica que seja a narrativa, ela participa de um anseio de formação nacional, e
talvez sua grande contribuição não esteja tanto numa dimensão propositiva. O valor de
Raízes parece se revelar melhor, se pensarmos na recepção e nas constantes
reapropriações do livro por outros autores, quer dizer, no seu próprio papel formativo
para a intelectualidade brasileira no século XX, na medida em que o grande êxito do
livro foi justamente apresentar ferramentas para a inteligibilidade da história brasileira.
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É essa, salvo engano, a chave de leitura de Antonio Candido em seu prefácio a


Raízes280, com toda a justiça o texto mais conhecido de toda a fortuna crítica do livro,
e talvez seja por esse acerto não tão valorizado quanto outras dimensões do prefácio
(hoje amplamente contestadas) que ele exerce uma influência tão persistente não só na
fortuna crítica de Raízes do Brasil, mas na identidade disciplinar das ciências sociais
brasileiras. Nesse sentido, se pensarmos na constelação dos autores alemães mais
influentes para o livro – em ordem cronológica e não necessariamente exaustiva: Hegel,
Nietzsche (de quem se falará em breve), Weber, Spengler além do próprio Thomas
Mann – veremos que os pensadores da crítica e da crise da Bildung preponderam, mas
não exatamente descartam uma visão mais otimista. As perspectivas concorrem entre
si, sem necessariamente anularem-se umas às outras. O ponto de partida do livro é uma
pergunta pela existência ou inexistência de “um tipo próprio de cultura”, pergunta cuja
resposta não é muito clara, mas que continua pairando até o final do livro.
Nesse caso, é preciso tomar muito cuidado ao tentar explicar o texto sociológico
ou historiográfico a partir do romance, pois o esquema retórico-poético do material
eventualmente apropriado não necessariamente é reproduzido no texto de destino,
ainda que elementos superficiais ou mesmo estruturais dele o sejam – ou, se de fato há
uma apropriação estrutural, essa pode ser parcial ou mesmo ter consequências bem

280
“O significado de Raízes do Brasil”, cit.
308

diferentes das que se verificam na ficção. No caso da Montanha mágica, uma


dificuldade adicional é imposta pela extraordinária plasticidade formal com que o
gênero do romance de formação se adapta às contradições internas da vida moderna281,
chegando mesmo a sobreporem-se diversas camadas de sentido narrativo – há o
romance de formação, há a paródia, e, finalmente, a estar correta uma interpretação
como a de Pedro Caldas 282 , uma espécie de “paródia da paródia” que afirma a
persistência do passado como matéria “angustiada” na psicologia do protagonista.
Assim, A montanha mágica primaria pela internalização formal das contradições
próprias da crise da cultura burguesa no pré-I Guerra, sem que essas contradições
necessariamente dessem lugar a uma “solução”. A cena de Hans Castorp murmurando
a canção Der Lindenbaum de Schubert ao final da narrativa pode, a propósito, dar
margem às mais variadas hipóteses sobre qual seria a “lição” para seus “anos de
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aprendizado”. Quanto a Raízes do Brasil, essa interpretação já encontra algumas


dificuldades, quando nada porque um ensaio de interpretação nacional não admite, ou
ao menos não se espera que ele admita, uma visão tão pouco prática e construtiva como
essa convivência impura de alternativas contraditórias de sentido. Ainda assim, não
deixa de ser sedutora a possibilidade de o livro se construir como um palimpsesto
argumentativo realmente indeciso entre três estratégias retóricas.
Muito mais do que a sempre constatada ausência de um “fecho programático”, a
ambiguidade do próprio teor, esse não prescritivo, mas descritivo-interpretativo, da
argumentação, é o aspecto mais problemático do texto de Raízes do Brasil. Sob a égide
de uma afirmação estrutural da cultura (seja qual for o seu conteúdo ou seu caráter
eventualmente contraditório), encontramos um primeiro nível onde o fundo cultural
arcaico se vê diante da necessidade de modernização; num segundo plano,
especialmente saliente nos dois últimos capítulos, essa modernização encontra uma
negação irônica, depois da qual não está certo exatamente o que sobra – além de uma
alternativa endógena às estratégias imitativas de modernização, que, entretanto, ainda
não apareceu – ; finalmente, num terceiro nível, esse dificilmente intencional, haveria
uma descompassada angústia diante das dores do parto de um mundo novo

281
Cf. Franco Moretti, O romance de formação, cit., p. 37.
282
“O murmurante evocador do passado”, cit.
309

completamente indeterminado. Nenhum ponto do texto seria capaz de confirmar esse


terceiro caminho, mas a produção crítica e historiográfica posterior de Sergio Buarque,
com sua fixação quase obsessiva e às vezes indisfarçadamente rancorosa pelas mais
diversas e sofisticadas manifestações da persistência dos arcaísmos lusitanos, sempre
temperadas por um juízo negativo, que alcança o paroxismo em Visão do paraíso,
poderia confirmar essa hipótese283. Noutras palavras, qualquer que seja o efeito retórico
dessa estrutura argumentativa internamente contraditória ou polivalente quando da
escrita de Raízes, parece que essa contradição evoluiu, não “dentro do texto” (embora
nele se sintam as consequências, com a revisão de 1948, e, novamente, em 1956, com
a descaracterização final do parágrafo de abertura284), mas na própria continuação da
reflexão de Sergio Buarque sobre o Brasil. E evoluiu, de forma pouco surpreendente,
não numa solução de compromisso ou numa mutação civilizacional, como se poderia
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depreender da redação das páginas finais da primeira edição, ou mesmo das posteriores,
mas num enrijecimento cada vez mais pessimista com as possibilidades de futuro do
Brasil285.
Em 1936, porém, ainda se abriam perspectivas mais otimistas para o
desenvolvimento de uma forma própria, aquela aventada no primeiro parágrafo do
livro, em tempos vindouros. Esse é o ponto de fuga do último capítulo, “Nossa
Revolução”, que dá fortes indicações no sentido de que o “tipo próprio” de cultura,
ainda que não se desse a ver nas manifestações mais ostensivas da vida nacional, estaria
destinado a aparecer em breve. Esse título, amplamente discutido nos comentários a

283
Muitos exemplos poderiam ser elencados aqui. Uma lista restrita às manifestações puramente
intelectuais e literárias desse ponto até Visão do paraíso (1958/9) incluiria, por ordem cronológica, o
estudo do romantismo brasileiro no prefácio a Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães
(1939), o ensaio biográfico que serve de prefácio às obras econômicas de José Joaquim de Azeredo
Coutinho (1944) (os dois reunidos em LP), a seção sobre o “realismo português” (RBC, p. 195-205),
acrescentada à segunda edição (1948) de Raízes do Brasil – que já prenuncia a problemática de Visão e
as análises da literatura colonial reunidas em Capítulos de literatura colonial, especialmente as
conclusões de Sergio Buarque no que diz respeito às persistências “barrocas” no arcadismo brasileiro
(datação incerta, provavelmente começo da década de 50, como mostram diversas passagens publicadas
na imprensa e reunidas em EL, II e EC, II; para uma reconstrução mais detalhada da origem desses
textos, a referência obrigatória é o livro de Thiago Nicodemo, Alegoria moderna).
284
Cf. RBC, p. 39-40.
285
Pode-se, talvez, fazer uma exceção parcial aos textos sobre a expansão paulista, ou ainda, sobre a
sociedade das Minas no século XVIII (Cf. RODRIGUES, Henrique Estrada Os sertões incultos e o ouro
do passado. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy Sergio Buarque de Holanda.
Perspectivas. São Paulo: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2008). De todo modo, a tônica geral
é bastante pessimista.
310

Raízes do Brasil, leva a uma última revisão da Montanha mágica. Lembre-se que o
romance termina com Hans Castorp enviado à França, ou à Rússia – as duas “pátrias”
de Mme. Chauchat, unidas por uma entente anti-alemã à qual Settembrini reage com a
confusão típica dos estágios mais avançados de seus debates com Naphta 286 – para
combater pela Alemanha. Esse desenlace é antecipado, porém, pelo sinistro duelo entre
Settembrini e Naphta, que termina com o suicídio deste último. O estopim desse
confronto final é de especial interesse para Raízes do Brasil. Trata-se de uma
constrangedora “conferência” que Naphta dá para uma plateia composta
exclusivamente composta por Hans Castorp, mas na presença de Settembrini e outros
dois convivas no refeitório de uma estalagem em Monstein, vilarejo próximo a Davos.
Ignorando completamente os outros membros da excursão, Naphta se põe a pontificar
para Hans Castorp sobre “o problema da liberdade”, o conceito de revolução e o
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romantismo. Ao romantismo – que vimos ser um dos conceitos-chave da interpretação


da psicologia brasileira durante o século XIX em Raízes – Naphta atribui uma
“inerente” e “fascinante” ambiguidade, “em face da qual fracassariam conceitos como
‘reação’ ou ‘revolução’, a não ser que se unissem sob um conceito superior”.
“Revolucionário” era um termo, segundo o jesuíta, completamente indiferente ao
“progresso” e ao “esclarecimento” triunfantes no começo do século XIX alemão, pois,
considerado o contexto das Guerras de Libertação, época dos “entusiasmos fichteanos”
– Naphta provavelmente se refere aos Discursos à Nação Alemã – ficaria patente que
os levantes populares se levantavam precisamente contra a “tirania insuportável” das
“ideias da Revolução”, o que dava a ver “a diferença, ou talvez a oposição, entre a
liberdade exterior e a interior” – a primeira, a das Luzes, e a segunda, a do Romantismo.
A consideração dessa diferença deveria levar o “jovem ouvinte” a se confrontar com a
“escabrosa questão de saber que forma de servidão é a mais ou menos compatível [...]
com a honra de uma nação” 287 . A distinção estabelecida por Naphta entre as duas
liberdades (“interior” e “exterior”) – que talvez lembre ao leitor de Raízes do “mal-
entendido” da democracia e das confusões entre as esferas pública e privada na vida
brasileira – opera no sentido de desmoralizar a pretensão iluminista ao monopólio da

286
A montanha mágica, cit., p. 821-2.
287
A montanha mágica, cit., p. 803.
311

bandeira da “liberdade”. Mas Naphta vai além, declarando que, “[e]m última análise, a
liberdade seria antes um conceito do Romantismo e não tanto da Época das Luzes; pois
com aquele ela tinha em comum o entrelaçamento inextricável dos impulsos de
expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamente individualístico”, o que
tornaria o individualismo um conceito “romântico-medieval”, do qual “teriam
resultado a doutrina da imortalidade da alma, a teoria geocêntrica e a astrologia”, que
teriam sido, afinal, as células originárias do encarecimento moderno da interioridade
humana. Já o individualismo como “aspecto do humanismo de tendências liberalistas”
era uma manifestação completamente diversa, que “penderia para a anarquia e
pretenderia, em todo caso, proteger o indivíduo contra o destino de ser imolado à
coletividade”288. Haveria, portanto, pode-se daí depreender, a Revolução burguesa e
democrática das liberdades do indivíduo, e outra, bem diferente, de inspiração
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simultaneamente religiosa e popular, coletivista, mas nem por isso inimiga da liberdade
“interior”, e que representaria a superação da modernidade burguesa, com sua ideologia
liberal e humanitária. E Naphta prossegue num crescendo de artimanhas retóricas anti-
iluministas, até que Settembrini o interrompe, chamando de “infâmia” sua tentativa de
doutrinação da “juventude indefesa” com “palavras ambíguas”289. A reação de Naphta
é pedir satisfações a sua honra num duelo, mas não sem complementar o chamado a
liquidar as diferenças “em lugar adequado” com suas últimas palavras contra a
ideologia liberal-progressista de Settembrini:

[O] seu temor devoto pela ideologia escolástica da revolução jacobina [!] vê um crime
pedagógico na minha maneira de introduzir a juventude a duvidar, de derrubar as
categorias e privar as ideias da dignidade acadêmica da virtude. Esse temor é por demais
compreensível, pois sua humanidade saiu de moda, tenha certeza disso [...]! Hoje em dia
já não passa de um rabicho, de uma sensaboria classicista, um ennui espiritual que faz
bocejar, e que a nova, a nossa Revolução [die neue, unsere Revolution], senhor, está a
ponto de abolir. [...] É apenas do ceticismo radical, do caos moral, que nasce o absoluto,
o terror sagrado de que carece o nosso tempo.290

288
A montanha mágica, cit., p. 804.
289
A Montanha mágica, cit., p. 805.
290
A montanha mágica, cit., p. 806-7; Der Zauberberg, cit., p. 738. Alterou-se, na transcrição, a versão
brasileira de Herbert Caro, no trecho sobre a “nossa Revolução”, pois Caro inverte a ordem de “nova” e
“nossa” na oração e retira a ênfase de “nossa” (“a nova Revolução, a nossa”).
312

É evidente que a “nossa revolução” de Raízes do Brasil não se confunde com a


“revolução jacobina” e “escolástica” de Naphta. Mas é possível que esse discurso
tivesse causado uma forte impressão em Sergio Buarque, na medida em que abre a
perspectiva de uma alternativa a um paradigma liberal e ocidental de modernização,
cuja tradução para o Brasil o escritor brasileiro considerava problemática e inautêntica,
como se pode perceber em sua crítica à democracia e ao papel da intelectualidade na
construção de instituições, especialmente a partir da proclamação da República. Naphta
abre aqui a possibilidade de uma outra revolução, nossa, e não importada. O problema
é que Sergio Buarque não chega a traçar contornos normativos para essa alternativa,
limitando-se a assinalar sua possibilidade. A ênfase na autonomia sobre o processo
revolucionário – autonomia a ser conquistada, pois se, por um lado, na perspectiva do
autor de Raízes, realmente havia uma revolução em curso no Brasil em 1936, o fato é
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que o país se deixava arrastar passivamente pelas forças de modernização, no máximo


conformando-as à ideologia igualmente importada da intelectualidade – essa ênfase
está presente na argumentação do capítulo final, mas um de seus marcadores é outra
referência, complementar à política radical de Naphta, essa originalmente ostensiva,
mas eliminada na revisão de 1948. Trata-se da epígrafe ao capítulo, extraída da seção
11 do Anticristo de Nietzsche.

6. Demônios e possessos
Ein Volk geht zugrunde, wenn es seine Pflicht mit dem Pflichtbegriff überhaupt
verwechselt [Um povo perece, quando confunde seu dever com o conceito de dever em
geral]291 é a frase que lemos, em alemão, antes de começar o capítulo final de Raízes
do Brasil – isso, no texto de 1936, pois a epígrafe não aparece em edições subsequentes;
o mesmo ocorre com as duas outras epígrafes da mesma edição, uma ao capítulo II
(Trabalho & Aventura), e outra ao V (O homem cordial). Acima da epígrafe, em tipo
bem maior, aparece o título do capítulo, “Nossa Revolução”. A articulação entre a
epígrafe e o título, um tanto obscura desprovida de contexto, fica mais compreensível

291
RB, p. 133; A tradução entre colchetes é a de Paulo César de Souza. Friedrich Nietzsche, O Anticristo,
cit., p. 16.
313

quando examinamos, ainda que de forma sumária, não apenas o texto de onde a
epígrafe é extraída, o Anticristo de Nietzsche, mas aquele contra o qual o filósofo faz
essa observação. Como se sabe, no Anticristo, inicialmente pensado como primeira
parte da obra projetada de Nietzsche sobre a “transvaloração de todos os valores”, o
autor faz uma devastadora crítica do pensamento cristão, que ele acredita estar na base
de toda a moral ocidental. A moral cristã, cuja origem Nietzsche remonta ao judaísmo
e a sua decisiva perversão por Paulo de Tarso (rapidamente aludida no capítulo II deste
trabalho), estaria no fundamento de todo o edifício intelectual do Ocidente, mesmo
quando já não sobrevive a mesma convicção sobre o poder divino sobre as coisas do
mundo. A seção 11 do Anticristo, a que contém a frase transcrita por Sergio Buarque,
se insere na discussão dos influxos dessa “moral de escravos” implementada pelos
sacerdotes ao longo da evolução histórica do mundo hebraico e cristão, culminando na
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cultura pretensamente secular da modernidade, da qual Immanuel Kant seria um dos


principais representantes. Na seção 9, lemos que é ao “instinto de teólogo” que perpassa
a filosofia ocidental que Nietzsche faz sua “guerra” filosófica 292 . Na seção 10, a
filosofia alemã, é caracterizada como, “no fundo”, “uma teologia insidiosa”293, gestada
no Seminário de Tübingen. Sua apoteose estaria, segundo Nietzsche, na filosofia
kantiana, isto é, nela se completa a perniciosa infiltração teológica na teologia. Isso se
dá na medida em que a moral passa a fundamento epistemológico e critério de verdade,
isto é, a verdade tem como condição sua coincidência com a moral; se algo não é moral,
há de ser mentiroso. Eis por que, para ele, os eruditos alemães tanto se entusiasmaram
com o aparecimento de Kant: “Estava aberta uma trilha oculta para o velho ideal, o
conceito de ‘mundo verdadeiro’, o conceito de moral como essência do mundo (– os
dois erros mais malignos que existem!) eram novamente, graças a um ceticismo
esperto-manhoso, se não demonstráveis, não mais refutáveis pelo menos...294 Na seção
11, é o “moralismo” do filósofo de Königsberg que o Anticristo se ocupa. Mesmo no

292
O anticristo, cit., p. 15.
293
Ibid., p. 15
294
Loc. cit. Tomou-se a licença de fazer pequenas alterações à tradução de Paulo Cesar de Souza, sempre
cuidadosa do estilo, mas nem sempre da precisão. “Sagaz e manhoso ceticismo” é como ele verte
“verschmitzt-klugen Skepsis”, numa versão que priva a caracterização nietzschiana de Kant de seu
componente de chicana teológica. A edição alemã usada para controle é a Kritische Studienausgabe de
Colli e Montinari NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke, Band 6. Kritische Studienausgabe in 15
Banden. Munique: Deutcher Taschenbuch Verlag GmbH, 1999, p. 176.
314

contexto de uma obra repleta de invectivas rancorosas contra os mais diversos


pensadores, o excerto não deixa de ser impressionante. Tomou-se a liberdade de
destacar, sublinhando, o texto que Sergio Buarque transcreve à guisa de epígrafe:

Ainda uma palavra contra Kant como moralista. Uma virtude tem de ser nossa invenção,
nossa defesa e necessidade personalíssima: em qualquer outro sentido é apenas um
perigo. O que não é condição de nossa vida a prejudica: virtude oriunda apenas de um
sentimento de respeito ao conceito de “virtude”, como queria Kant, é prejudicial. A
“virtude”, o “dever”, o “bom em si”, o bom com o caráter da impessoalidade e validade
geral – fantasias nas quais se exprime o declínio, o esgotamento final da vida, o
chinesismo königsberguiano. As mais profundas leis da conservação e do crescimento
exigem o oposto: que cada qual invente sua virtude, seu imperativo categórico. Um povo
perece, quando confunde seu dever com o conceito de dever em geral. Nada arruína mais
profundamente, mais intimamente do que todo dever “impessoal”, todo sacrifício ante o
Moloch da abstração. – Que não se tenha percebido o imperativo categórico de Kant
como perigoso para a vida!... Apenas o instinto dos teólogos o tomou em proteção! –
Uma ação imposta pelo instinto da vida tem no prazer a prova de que é uma ação justa:
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e esse niilista com vísceras cristã-dogmáticas entendeu o prazer como objeção... O que
destrói mais rapidamente do que trabalhar, pensar, sentir sem necessidade interna, sem
uma profunda escolha pessoal, sem prazer? como autômato do “dever”? É a própria
receita da décadence, até mesmo do idiotismo... Kant não viu na Revolução Francesa a
passagem da forma inorgânica de Estado para a orgânica? Não se perguntou se existe
um evento que não pode ser explicado senão por uma disposição moral da humanidade,
de modo que com ele estaria provada, de uma vez por todas, a “tendência da humanidade
para o bem”? Resposta de Kant: “é a Revolução”. O espírito equivocado em tudo e por
tudo, a antinatureza como instinto, a décadence alemã como filosofia – isso é Kant! –

Ler atentamente o trecho abre algumas perspectivas preciosas para a


interpretação do capítulo final de Raízes. Isso não significa presumir, como fez
Leopoldo Waizbort, que o trecho deva forçosamente nos conduzir à interpretação de
que a essa crítica de Nietzsche à filosofia determina, por analogia, o conteúdo
específico da perspectiva política de “Nossa Revolução”295. Ele está correto, porém, ao
perceber o vínculo profundo entre a ênfase de Nietzsche num imperativo categórico
particular a cada coletividade nacional – notem-se as duas ênfases que Nietzsche aplica
à palavra “nossa” na segunda frase do trecho transcrito, e lembre-se do título “nossa

295
“É fascinante perceber como Sérgio Buarque alinha-se à crítica nietzscheana do dever abstrato,
alienígena, estranho à vida, que não brota dos instintos e dos sentimentos! Ele impregnou-se dessa ideia,
da crítica à generalidade abstrata, e encarna apaixonado a apologia nietzscheana: cabe ao povo descobrir
e realizar a sua virtude própria, que somente pode aflorar da sua vida. [...]Assim, contextualizando a
argumentação: a democracia é um perigo, pois é hostil à vida. Já que ela não condiciona a vida do povo,
prejudica-a. O imperativo categórico do nosso povo é o nosso personalismo.” Leopoldo Waizbort, “O
mal-entendido da democracia”, cit. .p. 43.
315

Revolução”. Nossa revolução, e não a deles, isto é, a Revolução iluminista-burguesa


exausta à qual Naphta também opunha a “nova, a nossa Revolução”. O trecho de
Nietzsche também não é estranho à Revolução: um dos motivos do desprezo de
Nietzsche por Kant é o fato de ele ter visto na Revolução, isto é, a Francesa, uma prova
da “tendência da humanidade para o bem”, a ponto de ser após a menção da conclusão
de Kant sobre a significância filosófica de 1789 que Nietzsche emenda, sem mais, que
Kant é o filósofo do “espírito equivocado em tudo e por tudo”, da “antinatureza como
instinto” e da “décadence alemã como filosofia”. E de onde Nietzsche teria extraído o
material para tal acusação? É todo o edifício kantiano que ele ataca, mas a passagem
onde Nietzsche vai colher sua invectiva contra o juízo de Kant sobre a Revolução está
na segunda parte do Conflito das faculdades (O conflito da faculdade filosófica com a
faculdade jurídica). Ali, Kant diz:
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A revolução de um povo espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias, pode ter êxito
ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades de tal modo que um homem
bem pensante, se pudesse esperar, empreendendo-a uma segunda vez, leva-la a cabo com
êxito, jamais, no entanto, se resolveria a realizar o experimento com semelhantes custos
– esta revolução, afirmo, depara todavia, nos ânimos de todos os espectadores (que não
se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na
fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que, por
conseguinte, não pode ter nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral do
gênero humano.296

Note-se como Kant depreende a tendência da humanidade ao progresso moral


não do conteúdo dos acontecimentos da própria Revolução, mas da simpatia dos
observadores. Alemão, Kant vê na reação dos que “não se encontram enredados” na
revolução (ele próprio incluso) uma prova dessa tendência moral. É isso que
escandaliza Nietzsche: em sua leitura, é como se Kant procurasse dobrar as infinitas
possibilidades da história por meio de uma chicana teológica. É um sentimento
parecido que parece alimentar o desprezo zombeteiro de Sergio Buarque pelos liberais,
pelos “crédulos predicadores do progresso”, pelos “pedagogos da prosperidade”: sua
crença, que replica a posição kantiana de julgar a história a partir de uma posição de
espectador – de espectador em país retardatário, do ponto de vista de uma filosofia da

296
KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 102.
316

História como progresso, como é a de Kant – em que o país, incapaz de desenvolver-


se por forças próprias, há de “formar-se de fora para dentro” com o objetivo de
“merecer a aprovação dos outros”297 . Nada pode estar mais longe das intenções de
Sergio Buarque em “Nossa Revolução” – um texto quase destacável de Raízes do
Brasil, tão diferente ele é em seu tom e em sua matéria do restante do livro. Aqui, a
ironia cáustica encontradiça nos seis capítulos anteriores passa a ser a norma, a linha
que equilibra o texto, e a argumentação é de uma imprecisão excepcional, talvez até
intencional. Não admira: Sergio Buarque está em busca de uma superação das ideias
políticas do velho Ocidente exausto pela guerra. Só pode ser “nossa” uma revolução
realmente “nova”, e a de Sergio Buarque não é nenhuma das que já estão à disposição:
a liberal, a marxista e a fascista298. Essa ideia não demora a aparecer, mas novamente
requer uma atenção devota do leitor. Vejamos como Sergio Buarque chega a isso.
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No começo do capítulo, somos levados à impressão de que a “nossa Revolução”


trata pura e simplesmente de uma reorganização das articulações entre Estado e
sociedade civil na transição do “passado agrário” para os “novos tempos”. E, de fato,
essas são, aproximadamente, as balizas entre as quais se move o texto. Há, porém, mais
do que isso. É importantíssimo, diante da tendência recente a identificar em Raízes do
Brasil um elogio do arcaísmo rural299, afirmar que o horizonte crítico desse capítulo
está voltado para algo realmente difícil de imaginar depois do Estado Novo e da II
Guerra Mundial. Importante também é admitir que a crença de Sergio Buarque no
poder criador de forças profundas supostamente inerentes à alma brasileira, daquilo
referido no parágrafo final do livro como um “mundo de essências mais íntimas”, vista
de um ponto de vista, salvo engano, sem qualquer compromisso com forças políticas
realmente atuantes no cenário político, só podia resultar de uma compreensão
altamente idealista da vida pública, e, além disso, de um entusiasmo estetizante, quase
pueril, pela efervescência cultural e política do entre-guerras, um mundo de dilemas

297
RB, p. 131.
298
Ronaldo Vainfas foi, salvo engano, o único intérprete de Raízes até o momento que aventou a tese da
“indiferença” de Sergio diante das alternativas políticas concretas no contexto de 1936. VAINFAS,
Ronaldo. O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sergio Buarque de Holanda.
Revista Brasileira de História, v. 36, n. 73, 2016, p. 39.
299
É o caso de Schlegel (2017) , Waizbort (2011) e, sobretudo, Feldman (2015). Da Mata (2016) traça o
retrato de um Sergio Buarque de tendências fascistas, de maneira bastante persuasiva, mas desatenta a
alguns pontos que serão ressaltados na presente seção.
317

políticos e intelectuais que só podemos reconstituir, hoje, por pálidas aproximações.


Não é essa, aliás, a intenção do presente estudo, que não pretende pôr um ponto final
na ultimamente tão agitada discussão sobre a visão política encerrada na primeira
edição de Raízes do Brasil. O que se pretende é tão-somente dar relevo à hipótese de
que essa visão fosse não apenas obscura, mas na verdade uma tentativa de conjurar
forças intelectuais que o autor acreditava existir e, ao fim e ao cabo, não se
apresentaram. Para falar com mais clareza: em “Nossa Revolução”, Sergio Buarque
esperava pela criação de um mundo que não estava lá, ou para o qual fecharam-se as
portas muito rápido com o Estado Novo. Quer dizer, não importa o que estava ou não
estava lá, pois aqui se trata do texto e de sua efetiva performance da esfera pública:
neste capítulo, Sergio Buarque entra numa seara política onde acredita saber o que quer
dizer e que as ideias que lança, mesmo que pouco exatas, têm um destino dado – mas,
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a julgar pela história subsequente do pensamento de Sergio Buarque e das edições


posteriores, o autor estava longe de estar preparado para como e por quem seu livro
seria lido e apropriado.

***

A infelicidade de “Nossa Revolução”, no sentido de uma incidência infalivelmente


malsucedida da mensagem política encerrada no capítulo, pode ser verificada sem
maiores dificuldades na leitura do caderno feito por Cecilia Buarque de Holanda, irmã
de Sergio, reunindo várias resenhas de Raízes do Brasil que apareceram na imprensa
brasileira e portuguesa nos dois anos subsequentes à publicação de Raízes do Brasil,
atualmente conservado no Siarq da UNICAMP300. Parece pouquíssimo plausível que
Sergio estivesse empenhado em colaborar com um projeto fascista, pois, se o tom do
que se lê sobre o fascismo e o “estado totalitário” pode parecer ambíguo numa leitura
contemporânea, especialmente uma leitura condicionada pela hagiografia crítica que
criou de Sergio Buarque a imagem distorcida de um intelectual comprometido com a

300
Não é a intenção do presente comentário fazer uma revisão detalhada desse material. Esse trabalho
foi feito exemplarmente por André Carlos Furtado e pode ser consultado no Segundo capítulo de sua
tese. Das fortunas críticas e apropriações, cit., p. 71-118.
318

democracia desde 1936, os resenhistas de época reconheceram imediatamente,


provavelmente por alusões a um idioma político que já é difícil reconstituir
inteiramente, que a posição do livro diante do fascismo, se não era a de uma repulsa
motivada por escrúpulos humanitários – o que certamente seria mais conveniente para
a expectativa da maioria dos leitores contemporâneos – era algo desdenhosa.
Testemunho disso é a reação consistentemente negativa, às vezes até indignada, dos
resenhistas que simpatizavam com o fascismo. Apenas um resenhista, Múcio Leão,
chega a aventar a hipótese de uma simpatia fascista, perguntando, em tom de
provocação, se Sergio Buarque seria um “discípulo de Hitler”. Mas a observação que
a precede sugere na pergunta, que certamente não tinha a carga acusatória que viria a
ter alguns anos depois, apenas um desenlace retórico agudo da observação anterior.
Antes de se perguntar pelo eventual hitlerismo do ensaísta, o resenhista – que faz
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preceder o comentário do livro propriamente dito de algumas anedotas berlinenses de


Sergio Buarque, que sugerem alguma intimidade com o autor – se pergunta se Sergio
Buarque não reproduz o estilo de pensamento que critica nos intelectuais brasileiros:

Não creio que seja necessário – e confesso que seria dificílimo – precisar a posição que,
em política, assumirá o autor de Raízes do Brasil. Seu pensamento, em tal campo, parece
cheio de contradições. Em uma das páginas do livro, faz ele observar que o brasileiro
tem a tendência para aceitar as ideias mais díspares, associando em seu espírito,
convicções e preceitos que, no espírito de qualquer outro povo, serão os inimigos mais
ferrenhos. Parece-me que o senhor Sergio Buarque de Holanda incorre um pouco em sua
própria observação. Assim é que o vemos, num trabalho que aparece em apêndice no
livro [a nota E], combater vivamente o integralismo, a propósito do senhor Otávio de
Faria. E entretanto, na página 156 do volume o vemos sustentar sem nenhum propósito
possível de paradoxo, a vantagem das tiranias.301

301
LEÃO, Múcio. “Registro literário”, Jornal do Brasil, 7 nov 1936. Vale notar que outros dois
resenhistas usam a crítica de Sergio Buarque à volubilidade intellectual dos brasileiros para criticar
Raízes do Brasil. Oscar Mendes, antes de concluir afirmando que no livro “a disponibilidade gideana é
chocante”, pergunta: “Será o sr. Sergio Buarque um daqueles intelectuais ‘que se alimentam, ao mesmo
tempo, de doutrinas dos mais variados matizes’, sustentando, ‘simultaneamente, as convicções mais
díspares’?” MENDES, Oscar. “A alma dos livros”, Folha de minas, 11 jan 1937. Menos benevolente, o
integralista Henry Leonardos vê uma contradição entre a crítica de Sergio Buarque ao integralismo e seu
juízo de que a democracia brasileira resultaria de um “lamentável mal-entendido”, que ele compreende
como um elogio do Império: “A esclarecer o confronto destas duas citações entre si bastará o que se lê
à página 113: ‘É frequente entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se
alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam,
simultaneamente, as convicções mais díspares”. Também esse autor identifica na “Nota E” um ataque a
Otávio de Faria e ao integralismo: “Daquela página 158 até o final 161 [sic] e na citada nota, o autor
ataca ostensivamente o Integralismo”. LEONARDOS, Henry. “Raízes do Brasil”, publicação não
identificada.
319

Muito mais categóricas são as apreciações de integralistas e simpatizantes do


fascismo – alguns deles parecem ter ficado bastante contrariados com o livro de Sergio
Buarque. Hélio Vianna se irritou profundamente com o livro, dedicando a maior parte
de sua resenha a desqualificá-lo – os poucos elogios se endereçam à crítica à
democracia a aos “alfabetisocratas do gênero Pinto Serva” – e parece especialmente
injuriado com o “restrito conceito do fascismo” como simples “crítica do liberalismo”,
com as críticas a Oliveira Viana e com sua “singular incompreensão da tese sustentada
no livro Maquiavel e o Brasil, pelo Sr. Otávio de Faria”302. Alberto Cotrim Neto faz
uma indicação interessante, na medida em que aponta como a expressão “estado
totalitário”, citada por Sergio Buarque em sua referência a Carl Schmitt, talvez tenha
sido mobilizada com o intuito deliberado de irritar os integralistas, mais do que de
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aproximar-se da teoria schmittiana do Estado – ainda que, como aqui se procura


demonstrar, ele partilhe com o jurista alemão muito de sua crítica ao Estado liberal.
Reivindicando para o integralismo uma singularidade que o separaria do fascismo,
lembrando a descentralização administrativa da doutrina enunciada pelo “Chefe
Nacional” (Plínio Salgado), Cotrim identifica no movimento denominado por Sergio
Buarque como “mussolinismo indígena” o adversário oculto dos ataques de Sergio
Buarque à filosofia escolástica no primeiro capítulo e da citação ao Conceito do político
em “Nossa Revolução”:

Que o estreante literato queira negar a influência de Aristóteles na filosofia tomista; que
negue a grandeza da Idade Média; que afirme, contra todo o senso de observação, que
as grandes épocas não foram tradicionalistas, está certo, porque a constituição permite a
liberdade de proferir ou escrever sandices.
Onde, no entretanto, não podemos permitir que o sr. Holanda se manifeste impunemente
contra a verdade histórica é quando ele diz que “os nossos grêmios e corporações
coloniais nunca passaram de organizações incipientes [...], ou contra a doutrina do
Estado Totalitário (na qual ele intenta envolver o Integralismo) ao proclamar o professor
Carl Schmitt, da Universidade de Berlim, seu teorizador.303

Plinio Barreto, cuja resenha se limita a parafrasear e elogiar passagens de Raízes,


faz a menos apaixonada de todas descrições do desfecho “Nossa Revolução”:

302
VIANNA, Hélio. “Nota sobre Raízes do Brasil. O Jornal, 30 nov 1936.
303
COTRIM NETO, Alberto. “Raízes do Brasil”. A Ofensiva, 7 fev 1937.
320

Faz-se mister, à vista disso, que o Estado, sem descair no despotismo, o qual se não
compadece com a doçura de nosso gênio, adquira pujança e compostura, grandeza e
solicitude. Mas que Estado? O de tipo fascista? O de tipo integralista? Não. Um Estado,
que não elimine de todo o personalismo que tem sido a característica dominante da nossa
política senão de toda a América Latina.304

Somente um resenhista, Álvaro Augusto Lopes, aparentemente um direitista


católico, se engaja com o aspecto no qual está centrado o presente estudo, isto é, a
noção de “forma” cultural encerrada em Raízes do Brasil. Seus comentários a esse
respeito são de interesse, na medida em que demonstram que a recepção da época não
foi inteiramente insensível à estrutura teórica do livro:

As conclusões lógicas desse estudo, o A. sintetiza, à página 161, de maneira não muito
explícita, mas permitindo ao leitor por si mesmo tirar as deduções que lhe pareçam mais
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consentâneas com o exposto nas páginas deste livro. “O essencial de todas as


manifestações, das criações originais, como das coisas fabricadas, é a forma”. Nesta
última palavra, fixa o A. a essência do pensamento dominante nesta substanciosa
monografia.
Poderia objetar-se: estará certo, esse apelo à “forma”, com desprezo pelo “espírito”
interior que o deverá animar? Não será isso uma continuidade do erro posto em relevo,
a respeito do bacharelismo palrador e romântico?
“O espírito – acrescenta o A. – não é uma força nominativa [sic], salvo onde pode servir
à vida social e onde lhe corresponde”. Esta frase corrige a precedentemente citada. Sim,
o espírito dentro do contorno de “formas” adequadas, é que deve prevalecer.
Foi talvez porque, no Brasil, esquecemos esse “espírito” criador, deixando-nos acalentar
pelas quimeras de ideologias estranhas, - que até hoje não fomos um povo
verdadeiramente democrático, dando ensanchas para que em nosso país proliferassem as
utopias doutrinárias mais absurdas e incongruentes [...].305

Nenhum dos resenhistas, salvo, talvez, por Plínio Barreto, que apenas parafraseia
o capítulo final sem desdobrar suas conclusões, e os portugueses, que identificaram,
em leituras espantosamente seletivas de Raízes, uma apologia do colonialismo luso,
consegue discernir o programa político do livro306. Se a expectativa de Sergio Buarque
para a recepção de seu livro era mesmo essa, ou se ele procurava estimular um debate

304
BARRETO, Plínio. “Livros novos”. Publicação não identificada.
305
LOPES, Álvaro Augusto. “À margem dos livros”. A Tribuna (Santos, SP), 9 nov 1936.
306
Os resenhistas portugueses, todos concordes nesse ponto, são J. Alves Correia, Norton de Matos e
António Amorim. CORREIA, J. Alves. “Livros e Periódicos”, Seara Nova, s. d.; AMORIM, António.
“Raízes do Brasil”, s. ref.; MATOS, Norton de. “Raízes do Brasil”, O Primeiro de Janeiro (Porto), 05 e
12 nov 1938.
321

mais vivo em torno de “Nossa Revolução” – o que parece mais provável – não é
possível saber ao certo. De todo modo, diante do silêncio do autor diante de Força,
cultura e liberdade (1940) de Almir de Andrade – autor que depois seria objeto de uma
resenha extremamente mordaz de Sergio Buarque ainda em 9 de novembro de 1941307
– e A ordem privada a e organização política nacional de Nestor Duarte (1939),
demonstrações como a de Rogério Schlegel308 e Luiz Feldman309 da apropriação do
livro por ideólogos autoritários estão longe de confirmar a tese de que o Sergio Buarque
de 1936 teria visto com bons olhos as leituras que esses leitores fizeram do livro. É
possível, e até provável, que Sergio Buarque tenha repensado, entre 1936 e o final da
década, seus conceitos da democracia e do fascismo, mas nada autoriza positivamente
a atribuição de um programa autoritário num livro onde se lê que o Estado no Brasil
“não precisa e não pode ser despótico”310.
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***

O novo mundo imaginado por Sergio em 1936 deveria ter uma dimensão política, e é
disso que se ocupa a maior parte de “Nossa Revolução”, mas, segundo a concepção de
cultura de Raízes do Brasil, as “formas exteriores” de uma sociedade, como as
instituições políticas, são apenas florações de coisas mais profundas 311 . Toda uma
civilização alternativa estaria implicada na “revolução” que cabia ao Brasil efetuar.
Comecemos, pela parte mais simples, ou seja, o diagnóstico da situação política
do Brasil no pós-Abolição. Uma das teses centrais de Raízes sobre o problema político
brasileiro é que uma de suas principais causas é a insuficiência das soluções que se
apresentaram desde o desmantelamento da sociedade patriarcal. Lê-se logo na abertura
do capítulo VII que “o quadro político instituído no ano seguinte quer responder à
conveniência de uma forma adequada para a nova composição nacional”. Em torneio

307
HOLANDA, Sergio Buarque de. “A formação da sociologia brasileira”. Diário de notícias, 9 nov
1941. Texto reimpresso em Cobra de vidro, com o título “Formação da Sociologia?” p. 45-52; na edição
de 1944 pela Livraria Martins, p. 35-43.
308
Raízes do Brasil, 1936: O estatismo orgânico como contribuição original, cit.
309
Raízes do Estado Novo in Clássico por amadurecimento, cit. p.
310
RB, p. 142.
311
Cf. RB, p. 161.
322

retórico tipicamente buarquiano, o “quadro político” quer responder a uma


“composição nacional” – presume-se, uma composição de forças que se articulam
nesse quadro para dar à sociedade a parte política de sua “forma exterior”. Esse “querer
responder” – um desejo irrealizado – participa da caracterização mais completa que
Sergio vai apresentar do que vem a ser a “nossa revolução”: haveria um “elo secreto”
entre a Abolição, a Proclamação da República e “numerosos outros” acontecimentos,
estabelecendo “uma revolução lenta, mas segura e concertada, a única que,
rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional”, revolução que se
dá “sem o grande alarde de algumas convulsões de superfície”, isto é, acontecimentos
da política institucional frequentemente alardeados por historiadores, mas sem
importância estrutural312. Note-se que a “grande revolução brasileira” não é a Abolição,
a República, nem qualquer outro fato historicamente discernível – esses são os seus
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“pontos culminantes” – mas “foi antes um processo demorado e que durou pelo menos
três quartos de século”. Os acontecimentos notáveis “associam-se como os acidentes
diversos de um mesmo sistema orográfico”. Seguindo a sugestão da imagem, os
“acidentes” podem estar “associados”, mas as suas causas não estão na sua notação ou
sistematização – são mais profundas, lentas, resultam de erosão ou, em situações
excepcionais, de movimentos tectônicos. Parece ser esse o caso da revolução brasileira
– uma marcha inevitável rumo a uma nova conformação orográfica. O que se vê é
somente resultado, nunca a causa do mundo em que se vive. Parece ser nesse espírito
que Sergio insere as considerações seguintes:

Se em capítulo anterior se tentou fixar a data de 1888 como o momento talvez mais
decisivo de todo o nosso desenvolvimento nacional, é que a partir dessa data tinham
cessado de funcionar os freios tradicionais contra o advento de um novo estado de coisas,
que só então se fez inevitável.
E efetivamente, daí por diante estava preparado o terreno para um novo sistema, com
sua sede não já nos domínios rurais, mas nos centros urbanos. Se a revolução que, através
de todo o Império, não cessou de subverter as bases em que assentava nossa sociedade
ainda está longe, talvez, de ter atingido o desenlace final, parece indiscutível, porém, que
já foi transposta a sua fase mais aguda. Ainda testemunhamos presentemente, e por certo
continuaremos a testemunhar durante largo tempo, as ressonâncias últimas do lento
cataclisma, cujo sentido parece ser o do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa
cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de
americano, porque os seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério.

312
RB, p.135.
323

No Brasil, e não só no Brasil, iberismo e agrarismo confundem-se, apesar do que têm


dito em contrário alguns estudiosos eminentes, entre outros o sr. Oliveira Viana. No dia
em que o mundo rural se achou desagregado e começou a ceder à invasão impiedosa do
mundo das cidades, entrou também a decair para um e outro, todo o ciclo das influências
ultramarinas específicas de que foram portadores os portugueses.313

Quase imperceptivelmente, chegamos a uma problemática muito mais ampla do


que a simples reordenação das instituições políticas brasileiras: com o “cataclisma”
revolucionário, desaparecem os obstáculos ao “aniquilamento das raízes ibéricas de
nossa cultura”, e surge no horizonte um “estilo novo”. Sergio Buarque fala nada menos
do que de uma mutação cultural ou civilizacional em território americano. Na abertura
do livro, líamos a afirmação de que “antes de investigar até que ponto podemos
alimentar no nosso ambiente um tipo próprio de cultura, cumpriria averiguar até onde
representamos nele as formas de vida, as instituições e a visão de mundo de que somos
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herdeiros e de que nos orgulhamos”314. Muito bem, parece dizer aqui, finalmente, o
narrador: essas formas de vida, instituições e visão de mundo estão fadadas ao
aniquilamento. Chegou a hora de termos um “tipo próprio de cultura”, o nosso “estilo
novo”. Mas as coisas não são tão simples assim. As formas ibéricas continuam a existir
por força de inércia, pela incapacidade criadora de uma cultura que será adiante
caracterizada como pouco especulativa (p. 151), viciada na cópia de ideias
estrangeiras, que ainda, como se leu no capítulo sobre o “homem cordial”, “vive nos
outros”. O estilo novo ainda não existe, ainda não tomou forma:

Se a forma de nossa cultura ainda permanece nitidamente ibérica e lusitana, deve-se


atribuir tal fato sobretudo às insuficiências do “americanismo” que se resume até agora,
em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões
impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente. “Na
atividade americana o sangue é quimicamente reduzido pelos nervos”, disse um dos
poetas mais singulares e mais lúcidos de nosso tempo.315

Agora ficou claro que, se a Revolução condena o “tipo” originário (ou melhor,
adventício) de cultura ao desaparecimento, essa sentença ainda não se consumou. E
não por mérito da forma esgotada, mas em virtude das “insuficiências” do “novo” que

313
RB, p. 136-7.
314
RB, p. 3.
315
RB, p. 137.
324

teima em não surgir, que se insinua apenas na forma de “manifestações” ainda


estranhas à terra. O americano – isto é, também o brasileiro – é ainda interiormente
inexistente. Somos lembrados aqui do “pavor de viver consigo mesmo” e da ausência
de uma vida psicológica “coesa” de que Sergio falava no capítulo sobre o homem
cordial. Aparece, porém, ligada a essa afirmação, uma nova referência, os Studies in
Classic American Literature, de D. H. Lawrence. A afirmação sobre a inexistência da
interioridade americana pode ser, quando muito, uma paráfrase de uma das ideias
contidas nesse livro – ela não chega a ser inequivocamente respaldada pela hermética
frase efetivamente citada – a de que o sangue americano “é quimicamente reduzido
pelos nervos” na “atividade americana”. Será preciso fazer um excurso relativamente
longo ao redor desse livro, por muitos aspectos impressionante, mas que comentaremos
apenas na medida em que desempenha uma importância muito maior na montagem do
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argumento de Raízes do que faz parecer essa enigmática menção pontual. Como é
frequente em Sergio Buarque, o importante nem sempre é o que está citado, mesmo
dentro âmbito de um mesmo autor e livro.

***

Partamos daquilo que há de mais simples para começar a desnovelar o ânimo que a
leitura desse texto terá sugerido a Sergio Buarque: “o americano” é, na frase do inglês
D. H. Lawrence, especificamente o estadunidense – embora o livro chegue a mencionar
os hispano-americanos, não é o que acontece no contexto da frase transcrita, que está
num ensaio sobre a Letra escarlate de Nathaniel Hawthorne, e num livro onde
Hawthorne e os personagens são analisados especificamente como americanos – isto
é, herdeiros da cultura que chegou à América do Norte com os peregrinos anglo-saxões
protestantes. Isso não terá escapado, certamente, a Sergio Buarque, que, na operação
de vincular uma afirmação deste estudo ao Brasil e ao seu destino cultural e político,
parece dar voz ao que ainda restava de seu projeto original de uma Teoria da América.
Note-se que é da crítica literária que essa afirmação generalista é colhida. E uma crítica
modernista, escrita num estilo muito particular. A bem dizer, esses estudos de
325

Lawrence comportam, por assim dizer, uma espécie de “teoria da América” que deve
ter parecido bastante sugestiva para Sergio Buarque.
Em seu ensaio sobre Hawthorne, por outro lado, Lawrence não deixa de fazer
algumas afirmações que fazem coro com aspectos importantes da argumentação de
Raízes do Brasil, ainda que de forma um pouco dissonante. Uma das teses do ensaio –
e do livro – é que por trás da aparência exterior de um povo industrioso vivendo em
liberdade em terras de abundância, a ideia de um paraíso construído após a queda, aliás
ressaltada por Max Weber em seu rápido e magistral comentário a uma das passagens
mais impressionantes do Paraíso perdido de Milton316, há uma corrente subterrânea,
um interior que existe, mas nunca ousa se expressar diretamente, o que torna os
americanos um povo inerentemente dúplice, de um cinismo mais grave do que a
desilusão europeia, por ser inocentemente cínico. O que interessa a Lawrence na Letra
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escarlate é seu “tom de sugestão diabólico” 317 . “Sempre a mesma coisa”, escreve
Lawrence, “A consciência deliberada dos americanos é tão cândida, de fala tão suave,
e a subconsciência, tão diabólica. Destruir! destruir! destruir! sussurra a
subconsciência. Amar e produzir! Amar e produzir! cacareja a consciência superior”318.
“O americano tem de destruir. É seu destino.” E continua, num emprego bastante dúbio
da palavra “branca”: “É seu destino destruir todo o edifício da psique branca, da
consciência branca. E ele tem de fazê-lo secretamente.” 319 Destruir – a consciência
ocidental? A consciência “cândida”? A consciência da raça branca? Dos WASPs, os
herdeiros históricos do Mayflower que, nessa altura, às vezes relutavam em considerar
como “brancos” os americanos de origem irlandesa e italiana? Lawrence parece se
comprazer na indeterminação, mas o certo é que ele pensa que o americano está
destinado a destruir uma matéria que transita nesse campo semântico.

316
A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, cit., p. 79-80.
317
“Diabolic undertone”. Excepcionalmente, devido à natureza peculiar da prosa desse livro, marcada
por um constante destaque da própria forma, optou-se por reproduzir o texto original das passagens
citadas no rodapé. Studies in Classic American Literature, cit., p. 82.
318
“Always the same. The deliberate consciousness of Americans so fair and smooth-spoken, and the
under-consciousness so devilish. Destroy! destroy! destroy! hums the under-consciousness. Love and
produce! Love and produce! cackles the upper consciousness.” Ibid., p. 81.
319
“The American has got to destroy. It is his destiny. It is his destiny to destroy the whole corpus of the
white psyche, the white consciousness. And he's got to do it secretly.” Loc. cit.
326

Mas qual a visão geral da literatura americana por Lawrence? No prefácio, há


algumas indicações bastante sugestivas, do ponto de vista da recepção desse texto em
Raízes do Brasil. Lawrence, sempre cheio de ironia, mas também de admiração pela
literatura americana, escreve: “Ouçam os Estados Unidos afirmando: ‘Chegou a hora!
Americanos serão americanos. Os EUA agora estão crescidos artisticamente. É hora de
parar de se agarrar à barra das saias da Europa, ou de se comportar como colegiais que
se soltaram do controle seus professores europeus –’”320. A última imagem é fascinante:
a “arte americana” não estará madura enquanto não se separar da Europa – e não vale
tampouco se comportar com uma rebeldia contra a Europa, é preciso afirmar algo de
novo. Essa novidade, Lawrence não tentará encontrá-la na literatura americana mais
recente – para ele, essa é menos americana do que a dos autores “clássicos” que ele
estuda – Benjamin Franklin, St. John de Crèvecœur, Fenimore Cooper, Poe,
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Hawthorne, Mellville, Whitman. No primeiro ensaio, intitulado “O espírito do lugar”,


Lawrence afirma que “O velho discurso artístico americano contém uma qualidade
estrangeira, que pertence ao continente americano e a nenhum outro lugar. Mas, é claro,
enquanto insistirmos em ler os livros como histórias infantis, não vamos captar nada
disso”321. Olho europeu se engana quando vê a América: “tudo que há de visível ao
olho europeu nu, na América, é uma espécie de europeu recriado”, com um aspecto
infantil, mas é preciso atentar que “os americanos recusam tudo que é explícito e
sempre acrescentam uma espécie de duplo sentido”322. É preciso, então, investigar a
fundo os tons subterrâneos diabólicos, para aprender a língua nova, o novo mundo de
significados que está sendo gestado nos Estados Unidos. A analogia histórica
empregada por Lawrence para ilustrar a natureza dessa incompreensão certamente
chamou a atenção de Sergio Buarque: no mundo tardo-romano, os eruditos da cultura
clássica decadente, mas ainda capaz de se perpetuar, não conseguiam compreender “a

320
“Listen to the States asserting: ‘The hour has struck! Americans shall be American. The U.S.A. is
now grown up artistically. It is time we ceased to hang on to the skirts of Europe, or to behave like
schoolboys let loose from European schoolmasters—’. Studies in Classic American Literature, cit., p.
11.
321
“The old American art-speech contains an alien quality, which belongs to the American continent and
to nowhere else. But, of course, so long as we insist on reading the books as children's tales, we miss all
that.” Ibid., p. 13.
322
“[A]ll that is visible to the naked European eye, in America, is a sort of recreant European”, Ibid., p.
12; “the Americans refuse everything explicit and always put up a sort of double meaning”, p. 13.
327

voz estranha da Espanha Ibérica” [the uncanny voice of Iberian Spain]. “É difícil”, ele
continua, “ouvir uma voz nova, assim como é difícil ouvir uma língua desconhecida.
Simplesmente não ouvimos. Existe uma nova voz nos velhos clássicos americanos. O
mundo se recusou a ouvi-la, e balbuciou sobre histórias infantis”. O motivo, segundo
Lawrence, seria o medo, pois “o mundo” – inglês, Lawrence, naturalmente, identifica
a Europa com o mundo – “teme uma nova experiência mais do que ele teme qualquer
coisa. Porque uma nova experiência desloca tantas velhas experiências.” Novas
experiências extenuam, pois são como “tentar usar músculos talvez nunca usados, ou
que estão enrijecendo há tempos. Machuca horrivelmente. O mundo não teme uma
nova ideia. Ele pode rotular qualquer ideia. Mas ele não pode rotular uma nova
experiência. Ele pode apenas se esquivar”. O mundo sempre se esquiva, mas os
americanos superam o mundo nisso, porque, segundo Lawrence, “eles se esquivam
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exatamente de si mesmos”323.
Já se viu anteriormente como uma das teses centrais de Raízes do Brasil é a
incapacidade formativa da cultura por uma resistência à expressão da essência, por
recusa do trabalho – trabalho, em sentido estrito, que os americanos de Lawrence
executam sem problemas, mas cujo conteúdo se recusam a reconhecer em suas
“histórias infantis”, mas que expressam no sentido perverso e subterrâneo de seus livros
clássicos. Acrescente-se, de passagem, uma correspondência espantosa entre a ideia do
surgimento de uma nova experiência e outra tese importantíssima de Sergio Buarque,
essa de Visão do paraíso: a de que o “realismo português” teria obstado, por efeito de
uma recusa à fantasia, a abertura de horizontes intelectuais proporcionada, na Europa
Central, pela expansão marítima. O próprio Lawrence, ao definir a América – toda ela
– como uma terra de fugitivos, chega a afirmar que o que os espanhóis procuravam na
América era uma terra livre do humanismo renascentista. “Os espanhóis”, escreve ele,
e talvez ele se refira também aos portugueses, conforme a tradicional identificação

323
“It is hard to hear a new voice, as hard as it is to listen to an unknown language. We just don't listen.
There is a new voice in the old American classics. The world has declined to hear it, and has blabbed
about children's stories. Why?—Out of fear. The world fears a new experience more than it fears
anything. Because a new experience displaces so many old experiences. And it is like trying to use
muscles that have perhaps never been used, or that have been going stiff for ages. It hurts horribly. The
world doesn't fear a new idea. It can pigeon-hole any idea. But it can't pigeon-hole a real new experience.
It can only dodge. The world is a great dodger, and the Americans the greatest. Because they dodge their
own very selves.” Studies in Classic American Literature, cit., p. 13.
328

entre a Espanha e toda a península, os espanhóis “recusaram a liberdade pós-


renascentista da Europa”, assim como os yankees. Num momento que há de soar
familiar aos leitores de Raízes, Lawrence afirma que os ambos, espanhóis e yankees
“odiavam, antes de mais nada, os senhores” (Cf. supra a seção “Natureza e arte”), mas,
“por baixo disso, eles odiavam o novo desanuviar de ânimos que invadia a Europa. No
fundo da alma americana sempre esteve um obscuro suspense, e o mesmo no fundo da
alma hispano-americana. E esse obscuro suspense odiava e odeia a velha
espontaneidade europeia, ele a vê desmoronar com satisfação.”324 Também o homem
cordial de Raízes odeia senhores que tentam dominá-lo, e ama a liberdade, mas não é
exatamente a liberdade da democracia liberal europeia a que é realmente sua; a
democracia é uma acomodação a disposições que com ela se afinam mas que não a
compreendem: um “lamentável mal-entendido”. Lawrence parece pensar de forma
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parecida, e o que ele diz sobre a “liberdade” americana ilumina um pouco a natureza
sinistra da “democracia de mal-entendidos” que Raízes identifica no Brasil:

Liberdade como quer que seja? Terra dos livres! Esta é a terra dos livres! Como, se eu
digo qualquer coisa que os desagrade, a ralé livre vai me linchar. Livre? Como, eu nunca
estive em nenhum país onde o indivíduo tem tal medo abjeto de seus compatriotas.
Porque, como eu digo, eles são livres para linchá-lo no momento em que ele mostrar que
ele não é um deles.325

Para Lawrence, os americanos vieram para a América para fugir da dominação


na Europa. “Daqui para a frente, nenhum senhor” [Henceforth be masterless, p. 15], é
a divisa que ele lhes atribui. Não falta, aliás, no crescendo retórico que aí culmina, uma
mobilização do motivo shakespeariano do Caliban: “Ca Ca Caliban, get a new master,
be a new man”326. Na Tempestade, Caliban canta, bêbado, algo um pouco diferente:

324
“The Spaniards refused the post-Renaissance liberty of Europe. And the Spaniards filled most of
America. The Yankees, too, refused, refused the post-Renaissance humanism of Europe. First and
foremost, they hated masters. But under that, they hated the flowing ease of humour in Europe. At the
bottom of the American soul was always a dark suspense, at the bottom of the Spanish-American soul
the same. And this dark suspense hated and hates the old European spontaneity, watches it collapse with
satisfaction.” Studies in Classic American Literature, cit., p. 17.
325
“Freedom anyhow? The land of the free! This the land of the free! Why, if I say anything that
displeases them, the free mob will lynch me, and that's my freedom. Free? Why I have never been in
any country where the individual has such an abject fear of his fellow countrymen. Because, as I say,
they are free to lynch him the moment he shows he is not one of them.” Ibid., p. 15.
326
Numa tradução literal mas pouco literária: “Ca Ca Caliban, arranje um novo senhor, seja um novo
homem”. Ibid., p. 16.
329

“Ban Ban Ca-caliban/ Has a new master. Get a new man” (Ato 2, cena 2, vv. 173-
4)327. Há uma espécie de aporia nesse desejo de livrar-se dos mestres, pois, segundo
Lawrence, enquanto “domínio, reino, paternidade tiveram seu poder destruído na época
do Renascimento”328, começava a grande emigração para a América – e, como sugere
a apropriação motivo calibanesco, o êxodo não se deu tanto em busca de liberdade, mas
de um “novo mestre”. A liberdade “é certamente muito boa, mas os homens não podem
viver sem senhores”, “sempre há um senhor”329. O senhor sobrevive, para Lawrence,
como uma cicatriz no coração: “Em algum lugar profundo de todo coração americano
está uma rebelião contra a velha paternidade da Europa. Mas nenhum americano sente
que escapou completamente a esse domínio.”330 A liberdade americana não é a mesma
do europeu, a liberdade inocente que se afirma contra algum tipo injusta de domínio,
uma garantia do bom governo – “uma perigosa meia-verdade” que teria talvez
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motivado a fuga dos americanos331. A versão americana que aparenta ser a mesma que
a europeia é uma rebelião contra a hereditariedade, contra a ideia mesma de domínio:
“A verdadeira liberdade só começará quando os americanos A descobrirem, e
prosseguirem para possivelmente realizá-LA. Sendo ELA o mais profundo Eu todo do
homem, o Eu em sua inteireza, e não pela metade”332. A democracia não passa de um
compromisso provisório, resultante da existência puramente negativa dessa liberdade
ainda não realizada, “A liberdade dos americanos é uma coisa de pura vontade, pura
tensão: uma liberdade de NÃO FARÁS. E assim tem sido desde o começo. A terra do
NÃO FARÁS. Apenas o primeiro mandamento é: NÃO PRESUMIRÁS SER UM

327
Novamente, priorizando o sentido literal sobre o literário, “Ban ban Ca-Caliban/Tem um novo
senhor/Arranje outro homem”. Na tradução de Beatriz Viégas-Faria: “Ca, Ca, Caliban, Caliban, ban ban
ca cá/Tem novo amo; e o senhor que pegue novo escravo!” SHAKESPEARE, William. The Tempest.
New Haven, Ct. Yale University Press, 2006, p. 73; A tempestade. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 62.
328
“Mastery, kingship, fatherhood had their power destroyed at the time of the Renaissance.” Studies in
Classic American Literature, cit., p. 15.
329
“Liberty is all very well, but men cannot live without masters. There is always a master.” Ibid., p. 16.
330
“Somewhere deep in every American heart lies a rebellion against the old parenthood of Europe. Yet
no American feels he has completely escaped its mastery”. Loc. cit.
331
“Perhaps at the Renaissance, when kingship and fatherhood fell, Europe drifted into a very dangerous
half-truth: of liberty and equality. Perhaps the men who went to America felt this, and so repudiated the
old world altogether.” Ibid., p. 18.
332
“The true liberty will only begin when Americans discover IT, and proceed possibly to fulfill IT. IT
being the deepest whole self of man, the self in its wholeness, not idealistic halfness.” Loc. cit.
330

SENHOR. Daí a democracia” 333 . Lawrence não tem muita fé na durabilidade da


democracia americana: enquanto ela durar, tal como é, a América não estará realizada.
A democracia é apenas uma “ferramenta para minar o domínio do velho espírito
europeu”, depois do que “potencialmente, a democracia americana irá evaporar” e,
finalmente, “a América começará”334. Mas essa fase histórica estaria, quando muito,
prestes a começar a se desenrolar:

O verdadeiro dia americano ainda não começou. Ou, pelo menos, o sol ainda não se
levantou. Por enquanto tem sido uma falsa aurora. Isto é, na consciência americana
progressiva tem existido somente um desejo dominante, o de se livrar da coisa velha.
Livrar-se dos senhores, exaltar a vontade do povo. Sendo a vontade do povo nada mais
do que uma ficção, o exaltar não conta muito. Então, em nome da vontade do povo, lá
se vão os senhores. Quando você tiver se livrado dos senhores, o que lhe resta é essa
mera expressão, a vontade do povo.335
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É facilmente perceptível a forte consonância entre estas passagens e justamente


aquela onde aparece a referência ao ensaio sobre a Letra escarlate. Lá, líamos que
ainda não são perfeitamente discerníveis os traços do “novo estilo”; pouco antes, Sergio
Buarque afirmava que era talvez ilusório chamar “americanismo” a essa nova forma –
assim como Lawrence acredita ser o “americanismo” uma “nova voz” com
consequências potencialmente mundiais; daí que “o mundo” se tenha recusado a ouvi-
la. No final do ensaio, lemos algumas palavras que parecem especialmente preciosas
para a compreensão do capítulo final de Raízes:

A consciência americana tem sido até hoje uma falsa aurora. O ideal negativo da
democracia. Mas, por baixo, e contrárias a esse ideal aberto, os primeiros sinais e
revelações DISSO. ISSO, a alma americana inteira.

333
“Their liberty is a thing of sheer will, sheer tension: a liberty of THOU SHALT NOT. And it has been
so from the first. The land of THOU SHALT NOT. Only the first commandment is: THOU SHALT
NOT PRESUME TO BE A MASTER. Hence democracy.” Ibid., p. 17.
334
Democracy in America is just the tool with which the old mastery of Europe, the European spirit, is
undermined. Europe destroyed, potentially, American democracy will evaporate. America will begin.
Ibid., p. 19.
335
“The real American day hasn't begun yet. Or at least, not yet sunrise. So far it has been the false dawn.
That is, in the progressive American consciousness there has been the one dominant desire, to do away
with the old thing. Do away with masters, exalt the will of the people. The will of the people being
nothing but a figment, the exalting doesn't count for much. So, in the name of the will of the people, get
rid of masters. When you have got rid of masters, you are left with this mere phrase of the will of the
people.” Studies in Classic American Literature, cit., p. 18-9.
331

Você precisa arrancar as roupas democráticas e idealistas da fala americana, e ver o que
conseguir do corpo escuro DISSO por baixo.
Daqui para a frente, senhor nenhum.
Daqui para a frente, ser dominado.336

Mais do que apenas ter presidido parte das reflexões sobre o “americanismo” o
heterodoxo plano de estudos de Lawrence parece realmente influenciar, ainda que não
mecanicamente, toda a concepção de Raízes do Brasil em torno do problema das
culturas, seus “estilos” e a transformação de uma fase de um povo para uma nova –
isso, compreendido sob o ponto de vista do estilo, assim como da forma, conceitos que
aqui parecem, se não equivalentes, estreitamente conectados. De modo talvez
excessivamente ambicioso, como já se assinalou, Sergio Buarque espera para o Brasil
o nascimento de algo – um estilo, uma forma de política, mas também de vida e
pensamento – não apenas inaudito, mas para cuja compreensão as ferramentas ainda
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não existem, precisam ser criadas. É preciso lembrar que essa criação passa,
necessariamente, pela superação da cordialidade e de todos os arcaísmos, porque,
como se viu, eles não são capazes de produzir estímulos positivos, uma estrutura
espiritual normativa, apenas conseguindo parasitar, na ausência de trabalho intelectual,
sistemas alheios. Assim como os Estados Unidos de Lawrence, o Brasil de Raízes é um
país que já contém os germes de um estilo novo, mas que ainda não foi capaz de
articular a sua voz. O ser capaz de fazê-lo envolveria, necessariamente, despir-se das
falsas roupas que vem usando – e a democracia, ao menos tal como vinha sendo
praticada, é uma delas.
Vale lembrar, para encerrar o presente excurso, que, no último ensaio de Studies
in Classic American Literature, Lawrence identifica em Walt Whitman o arauto da
verdadeira democracia. A torção semântica que Lawrence aplica ao termo é também
de grande interesse para a leitura de Raízes do Brasil, pois parece que a argumentação
de Sergio Buarque não está imune a alguns reflexos do desfecho da interpretação da

336
“American consciousness has so far been a false dawn. The negative ideal of democracy. But
underneath, and contrary to this open ideal, the first hints and revelations of IT. IT, the American whole
soul. You have got to pull the democratic and idealistic clothes off American utterance, and see what
you can of the dusky body of IT underneath. "Henceforth be masterless.” Henceforth be mastered.”.
Ibid., p. 19.
332

América por Lawrence. Whitman se destacaria por ser um poeta da “compaixão”337,


ideia que, para Lawrence, significaria a superação do individualismo e o ponto de
maturação da cultura americana. O sentido mais profundo da poesia de Whitman, assim
como da democracia americana, estaria em ultrapassar a ideia “mental” da vida e
consumar a libertação da “alma” na “estrada aberta”. A “mente” para Lawrence,
operaria como aparato repressor da livre expansão das ideias da “alma” – em raciocínio
aliás bastante próximo da teoria de Ludwig Klages sobre o antagonismo entre “alma”
e “espírito” 338 . Assim como o filósofo vitalista alemão, mas numa linguagem mais
exuberante, atenta à própria forma e menos tingida de filosofismos, e ainda assim
bastante hermética, Lawrence identifica na alma desejos que uma “mente”, ou o “eu”
(self) repreende. Não é difícil concluir que é a sedimentação histórica de ideias feitas
sobre a moral que constituem essa subjetividade, numa linha de crítica da cultura de
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possível inspiração nietzschiana – como é também o caso de Klages. Para Lawrence, o


mérito de Whitman está em ter sido um moralista “subterrâneo”, ou melhor, sanguíneo.
Assim, atentando para a frase citada do ensaio sobre Hawthorne – um escritor que
ainda não chegou ao nível infra-mental da libertação do “sangue”, a efervescência
anímica dos americanos fica “quimicamente reduzida pelos nervos”, isto é, pela mente.
Em Whitman isso já está em vias de superação:

A função essencial da arte é moral. Não é estética, não é decorativa, não é passatempo e
recreação. E sim moral. A função essencial da arte é moral.
Mas uma moral implícita, das paixões, não didática. Uma moral que muda o sangue,
antes do que a mente. Muda o sangue primeiro. A mente segue depois, na esteira.
Vejam que Whitman era um grande moralista. Ele era um grande líder. Ele era um
grande transformador do sangue nas veias dos homens.339

337
“Sympathy”; não parece haver controvérsia na tradução escolhida, pois, atento à pouca transparência
etimológica do termo em inglês, ele o esclarece uma vez complementando-o com “feeling with” (p. 157),
e outra com “compassion” (p. 159). É interessante lembrar, nesse contexto os repetidos e fervorosos
ataques nietzschianos à compaixão cristã (mitleiden) na fase final de sua obra.
338
De l’éros cosmogonique, cit., p. 91-3.
339
“The essential function of art is moral. Not æsthetic, not decorative, not pastime and recreation. But
moral. The essential function of art is moral. But a passionate, implicit morality, not didactic. A morality
which changes the blood, rather than the mind. Changes the blood first. The mind follows later, in the
wake. Now Whitman was a great moralist. He was a great leader. He was a great changer of the blood
in the veins of men.” Studies in Classic American Literature, p. 155.
333

Para Lawrence, Whitman começa, com sua poesia, a estimular a transformação


subterrânea que liberará as “almas” americanas do “eu” para uma conformação anímica
“compassiva”, que acolhe sem medo as manifestações passionais menos pacíficas,
elevando-se ao patamar existencial que o crítico chama de “estrada aberta”:

Não sou eu quem guia minha alma para o Céu. Sou eu quem é conduzido por minha
própria alma na estrada aberta, por onde andam todos os homens. Portanto, eu devo
aceitar as suas profundas emoções de amor, ou ódio, ou compaixão, ou desgosto, ou
indiferença. E eu devo ir aonde ela me leva. Pois meus pés e meus lábios e meu corpo
são minha alma. Sou eu quem deve se submeter a ela.
Esta é a mensagem de Whitman de democracia americana.
A verdadeira democracia, onde alma encontra alma, na estrada aberta. Democracia.
Democracia americana onde todos viajam pela estrada aberta. E onde uma alma é
conhecida de uma vez só em seu curso. Não por suas roupas ou aparência. Whitman
acabou com isso. Não pelo seu sobrenome. Nem mesmo pela sua reputação.340
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Note-se como aqui a noção de um “tipo próprio” de cultura se entrelaça com uma
mutação das formas políticas, em confluência não apenas com Raízes do Brasil, mas
também com a filosofia da história morfológica de Oswald Spengler. Lembre-se
também, por sinal, como, no trajeto intelectual que levará Sergio Buarque a querer se
distanciar, com indisfarçado desconforto, de algumas posições tomadas em 1936 na
segunda edição de Raízes do Brasil não se confunde com a sua crescente aproximação
maior com o universo literário e intelectual dos Estados Unidos. Num artigo intitulado
Considerações sobre o Americanismo, que publica no Diário de Notícias em 28 de
setembro de 1941341 – isto é, antes de Brasil, e Estados Unidos terem entrado na guerra
que se deflagrava na Europa – Sergio persiste na posição tomada em Raízes do Brasil,
de que “apesar de tudo quanto nos distingue dos anglo-saxões da América, ainda restam
zonas de coincidência já nascidas nas primeiras épocas da colonização e que o tempo

340
“It is not I who guide my soul to heaven. It is I who am guided by my own soul along the open road,
where all men tread. Therefore, I must accept her deep motions of love, or hate, or compassion, or dislike,
or indifference. And I must go where she takes me. For my feet and my lips and my body are my soul.
It is I who must submit to her. This is Whitman's message of American democracy. The true democracy,
where soul meets soul, in the open road. Democracy. American democracy where all journey down the
open road. And where a soul is known at once in its going. Not by its clothes or appearance. Whitman
did away with that. Not by its family name. Not even by its reputation.” Ibid., p. 161.
341
E depois reimpresso, com o parágrafo final aumentado em algumas linhas, em 1944, na coletânea
Cobra de Vidro.
334

não apagou” 342 . Esse texto ainda guarda em larga medida o linguajar vitalista da
primeira edição, especialmente quando fala na possibilidade – aqui rejeitada – de que
o comércio de ideias com os Estados Unidos poderia representar um “perigo mortal
para nossas tradições mais autênticas, nosso caráter nacional, nosso ritmo de vida,
nossa própria razão de existir”343, sem deixar de acrescentar, contra essa posição, e
especulando sobre uma possível “síntese” do dilema de Joaquim Nabuco 344 entre
“sentimento brasileiro e fantasia europeia”, talvez numa autorreferência irônica, que
não teria dificuldade em imaginar “algum imprudente apóstolo ou inventor de mitos
que, com a intolerância e exclusivismo de todos os apóstolos, chegue a reivindicar para
nós o monopólio de autêntico americanismo”345. E, fornecendo importante subsídio à
compreensão das posições de Sergio Buarque sobre as ditaduras no contexto da II
Guerra Mundial, ou pelo menos da evolução dessa ideia, Sergio adverte que, se a
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propaganda do “americanismo” no Brasil pode dar uma ideia um pouco simplória da


cultura daquele país, é que “os partidários de uma aproximação maior com os Estados
Unidos são recrutados insistentemente entre as almas elementares, sensíveis apenas ao
apelo do superlativo e do grandiloquente”, almas que o “prestígio modernos das
ditaduras” (lembre-se, estamos em 1941) “ainda não bastou para chamar a si”346. O
vitalismo de Sergio Buarque não era necessariamente contraditório, ao mesmo nesse
momento, com uma rejeição dos regimes de força. Nada impede, é claro, que essa
posição tivesse mudado algo desde 1936. O que parece mais saliente é que o
desconforto de Sergio Buarque com o linguajar organicista de Raízes do Brasil só
tornará realmente ostensivo e resoluto no final da década de 1940.
Se voltarmos a um texto de Sergio Buarque escrito durante sua temporada
europeia de 1929-31, isto é, alguns anos antes da redação final de Raízes, teremos
acesso a outro lampejo de suas concepções sobre a política. No retrato que traça do
homem-forte da Segunda República Polonesa, o marechal Józef Piłsudski. Aqui, assim
como quer parecer ao presente estudo ser o caso de “Nossa Revolução”, Sergio

342
“Considerações sobre o americanismo”, CV, p. 26-7.
343
“Considerações sobre o americanismo, CV, p. 23.
344
Sergio se refere a Minha formação, e especificamente capítulo “A atração do mundo” (Cf. supra cap.
II, seção 2, “Heresia”).
345
“Considerações sobre o americanismo”, CV, p. 24.
346
Ibid., p. 25-6.
335

apresenta uma patente incompetência em compreender a situação política que se lhe


apresentava. É fácil julgar à confortável distância de quase cem anos, mas o caso não
deixa de ser impressionante: Sergio fala do “empenho do Primeiro Marechal em
conduzir a nação a uma nova democracia”, que não deixa de levá-lo aos “processos
mais desabusados e extremos”, acrescentando esperançosamente que pode ser que,
“adequando-se ou não aos planos de seu ditador, o país, longe de seguir o modelo das
ditaduras, ofereça, dentro em breve, uma solução sofrível para a presente crise do
regime democrático, remoçando-o e dando-lhe nova vida”347. Na origem dessa estranha
simpatia pelo Marechal que se dizia “acima dos partidos” parece estar um pronunciado
desgosto, ou talvez uma ausência fundamental de vocação para política, ao menos para
a política compreendida como livre debate na esfera pública, por sua natureza
forçosamente retórica e hiperbólica, isto é, tolerante, até certo ponto, com a mentira.
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Há razões para acreditar que é esse mesmo sentimento que leva Sergio Buarque a
concluir, numa notícia biográfica sobre a então recentemente falecida Elisabeth
Foerster-Nietzsche datada já de dezembro de 1935 – depois da publicação, em março
do mesmo ano, de Corpo e alma do Brasil, ensaio que contém, em forma ainda
esboçada, os três últimos capítulos de Raízes do Brasil – que “talvez houvesse razão”
nas censuras dos “homens de esquerda” à falsificação do pensamento de Friedrich
Nietzsche por sua irmã antissemita, mas que caberia perguntar se não seria também
“ilegítima” e “superficial” “a atitude desses homens” ao pretender “criar um Nietzsche
à sua imagem”348. Confrontado com as mentiras antissemitas de Elisabeth Foerster,
Sergio se recusa a denunciá-las irrestritamente, pois essa é a posição mantida por outros
mentirosos, os da esquerda. Se for para dar razão a mentirosos, melhor nem dizer a
verdade – essa está inteiramente interditada enquanto sua voz for inaudível em meio à
tagarelice politiqueira. A mentira lhe parece, como nas Considerações de um apolítico,
e também no pensamento de Nietzsche, um dos traços definidores da cultura política
da democracia moderna349. Note-se que essa recusa à tomada de partido em nome de

347
“Poznan, 23 de setembro, 1929”, RSBH, p. 160. Texto originalmente publicado em O Jornal, 6 nov
1929.
348
“Elisabeth Foerster”, EC, I, p.82. Texto originalmente publicado na Folha da manhã, 19 dez 1935.
349
“Democracia significa: império [Herrschaft] da política. A política implica um mínimo de
objetividade. O especialista é objetivo, quer dizer, apolítico, ou seja, ele não é um democrata. Fora com
336

uma suposta neutralidade superior, exclusivamente preocupada com a “verdade”, já


não se denuncia tanto nas “Considerações sobre o americanismo”, onde a singeleza dos
propagandistas do americanismo já não o impede de procurar elaborar uma versão mais
sofisticada de sua própria posição.
Uma última palavra sobre a recepção de D. H. Lawrence e sua articulação no
argumento deve ainda ser dita. É preciso enfatizar que a adoção da exótica teoria da
“alma” e do sangue encerrada nos estudos críticos de Lawrence e de alguns elementos
importantes da morfologia histórica spengleriana, bem como o vitalismo mais amplo
do qual participam e que desde o trabalho seminal de João Kennedy Eugênio vem sendo
apontado como matriz teórica de Raízes, não esgotam o essencial dessa primeira versão
da narrativa buarquiana da formação brasileira, pois sua ênfase na modernização e na
racionalização da vida moderna, junto do impedimento à expressão da forma
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ocasionado pela falta de trabalho, dão um acento inequivocamente trágico, ou pelo


menos extremamente problemático, ao livro. Pois há um descompasso básico entre a
formação pensada inicialmente como processo orgânico, e as forças que a arrastam
para o mundo moderno. Nesse sentido, é preciso reconhecer a importância decisiva que
a leitura de Max Weber desempenha na montagem desse símile trágico, que pode ser
resumido, muito sucintamente, como uma ausência de mecanismos de transição
conciliada do arcaísmo rural, identificado por Sergio Buarque como uma “alma”
autêntica, e a fatalidade do moderno. Por um lado, a modernização torna anônima, sem
caráter próprio, a já amorfa cultura em formação, vedando-lhe sua realização como
destino histórico, e, por outro, o arcaísmo remanescente leva a uma modernização que
não cessa de avançar, mas sempre pelos meios mais precários e problemáticos, ou
melhor, para usar uma expressão bem brasileira, aos trancos e barrancos.

***

Bem indicativo desse problema é o tom empregado em “Nossa Revolução”, entre o


melancólico, na descrição do desaparecimento dos “velhos hábitos patriarcais,

ele! Que o substituam o advogado dono de semanário, o jornalista, o artista de talento retórico.”
Considérations d’um apolitique, cit., p. 257; Betrachtingen eines Unpolitischen, cit., p. 291-2.
337

mantidos até aqui pela força da inércia e que o ambiente não só já deixou de estimular,
como começa a condenar irremediavelmente” 350 , e uma secura violenta, como no
momento em que se lê que é “deliberadamente que se frisa aqui o declínio dos centros
de produção agrária como um fator decisivo da hipertrofia urbana”. Não admira que a
linguagem adquira uma rispidez que beira o desagradável, afinal, o quadro emergente
é o exato oposto, do ponto de vista formal, do apresentado nos dois capítulos que
formam a parte mais substancial da descrição das “raízes” nacionais, isto é, os dois que
tratam do “passado agrário”. O fim do período colonial termina por significar uma
inversão geográfica da “forma” original da cultura, e a “nossa revolução” nada mais é,
numa perspectiva de maior duração, do que uma intensificação de tendências já
anunciadas desde o princípio da história brasileira:
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As cidades, que outrora tinham sido como complementos do mundo rural, proclamaram
finalmente sua vida própria e sua primazia. Em verdade podemos considerar dois
movimentos simultâneos e convergentes através de toda a nossa evolução histórica: um
tendente a dilatar a ação das comunidades urbanas e outro que restringe a influência dos
centros rurais, transformados, ao cabo, em simples fontes abastecedoras, em colônias
das cidades.351

Os processos não deslancham quando há um forte estímulo positivo, senão


quando deixam de existir os impedimentos que obstavam tendências já há muito
proteladas – o exemplo negativo disso está na narração, no capítulo III, da prematura
injeção de capitais na economia em meados do século XIX352, malfadada sobretudo
porque os “traços de civilização material” que se pretendia introduzir não encontravam
correspondência na “estrutura moral” das classes dirigentes353. Nesse momento, para
Sergio Buarque, não eram tanto as ideias, mas as próprias coisas que estavam fora do
lugar; agora, porém, a nova configuração econômica, num movimento inverso, arrasta
toda uma nova reorganização que não é devidamente correspondida, novamente, no
plano moral. Dessa vez, porém, são as coisas, e não tanto as ideias, que produzem os
estímulos. O descompasso continua, com os termos invertidos. Exemplar disso é o que

350
RB, p.140.
351
RB, p. 138.
352
RB, p. 45-6.
353
RB, p. 45.
338

se lê sobre as transformações implicadas pela difusão da cultura do café, a “planta


democrática”, cultivada em lotes menores e dispensando, no caso de São Paulo, o
latifúndio escravagista, eliminando assim os últimos “obstáculos à especialização” e à
consequente monetarização da economia, tornando a cidade, finalmente, o centro
articulador da produção354.
Especialmente interessado na psicologia dos dirigentes dessa sociedade em
transformação, Sergio Buarque não deixará de notar como a nova realidade social,
gestada em meio a um contexto vertiginoso de transformação e esgotamento de
paradigmas não conseguirá nem preservar as velhas formas políticas, e nem criar uma
nova estabilidade. Seu juízo, talvez nostálgico da monarquia, mas perfeitamente ciente
da irreversibilidade de seu fim, é bastante negativo.
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Os velhos senhores rurais, tornados impotentes pelo golpe fatal da Abolição e por outros
fatores decisivos, não tinham como intervir nas novas instituições. A República, que não
criou nenhum patriciado, mas apenas uma plutocracia, ignorou-os por completo. Daí o
melancólico silêncio a que ficou reduzida a casta de homens que no Império dirigia e
animava as instituições, assegurando ao conjunto nacional uma certa solidez orgânica,
que nunca mais foi restaurada. Essas condições não foram mais virtudes do regime
monárquico do que da estrutura em que assentava e desapareceu irremediavelmente. A
urbanização contínua, progressiva, avassaladora, fenômeno social de que as instituições
republicanas deviam representar a forma exterior complementar, destruiu esse poderoso
esteio rural, que fazia a força do regime decaído, sem lograr substituí-lo por nada de
novo.355

“Trágico” é o adjetivo empregado para qualificar a constatação de que “o quadro


formado pela monarquia ainda guarda seu prestígio, tendo perdido sua razão de ser, e
trata de manter-se como pode” 356 . Um dos grandes problemas da modernização
brasileira, para Sergio, é a dimensão psicológica do Estado. Vimos anteriormente, na
análise do patriarcado rural efetuada nos dois capítulos intermediários intitulados “O
passado agrário”, que a propriedade rural tinha o caráter de uma unidade política
autárquica, dentro da qual reinava a autoridade irrestrita do senhor. Era uma
identificação com essa figura, prefigurada na “cultura da personalidade ibérica”, que
produzia uma concepção puramente negativa do político, que presumia por trás de si,

354
RB, p. 138-9.
355
RB, p. 141.
356
Loc. cit.
339

na realidade, uma espécie de pequena “teologia política” na qual todos os corpos se


submetiam à personalidade do latifundiário – não se trata de um verdadeiro
individualismo, mas da reminiscência dos traços exteriores da “personalidade”
absorvente que se projeta sobre tudo, consumada no “homem cordial”. Isso equivale
não propriamente a uma política, mas a uma visão quase naturalista e antissocial do
mundo, onde o aristocratismo, confrontado com o espaço “virgem” e ilimitado do Novo
Mundo, pode passar por uma existência puramente estética – não admira que, seguindo
Carl Schmitt, Sergio irá perceber uma vocação especial desse contexto cultural para a
internalização, no século XIX, da cultura romântica. Na mesma linha do “cordial”
brasileiro vai o “apolítico” – talvez também meio brasileiro, na percepção do Sergio
Buarque vitalista dos anos 1930 – Thomas Mann, quando afirma ser a política, que ele
contrapõe ao esteticismo, “a esfera do indivíduo (democrata), não da personalidade
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(aristocrata)”357. Na urgência da modernização, o liberalismo democrático ocidental se


apresentava como solução para a superação do arcaísmo, mas, na ausência da cultura
associativa que Weber, mas não só ele, associou ao calvinismo, seu efeito sobre a
sociedade poderia significar a eliminação dos obstáculos à total anarquia. Porque o
“mal-entendido” da democracia, muito mais do que à confusão entre público e privado,
se refere sobretudo à negação de toda e qualquer autoridade que possa organizar a vida
coletiva. Sergio Buarque também não é, ou ao menos não parece acreditar ser, um
entusiasta dos regimes de força. Convém, então, imprimir às instituições políticas uma
certa “respeitabilidade” que pudesse ajustar as novas forças sociais às disposições
psicológicas produzidas no “passado agrário”. Eis a tentativa de síntese mais
esclarecedora (ainda assim insatisfatória) a que ele chega:

O Estado, entre nós, de fato, não precisa e não pode ser despótico – o despotismo condiz
mal com a doçura de nosso gênio – mas necessita de pujança e de compostura, de
grandeza e de solicitude, ao mesmo tempo, se quiser adquirir alguma força e também
essa respeitabilidade que os nossos pais ibéricos nos ensinaram a considerar como a
virtude suprema entre todas. Ele pode conquistar por esse meio, e só por ele, uma força
verdadeiramente assombrosa em todos os departamentos da vida nacional. Mas é
indispensável que as peças de seu mecanismo funcionem com certa harmonia e garbo.358

357
Considérations d’un apolitique, cit., p. 219. No original, “Das Politische ist die Sphäre des
(demokratischen) Individuums, nicht der (aristokratischen) Persönlichkeit.” Betrachtungen eines
Unpolitischen, cit., p. 240.
358
RB, p. 142.
340

De par com a cultura da grande “personalidade” que desconhece a igualdade


teórica entre os indivíduos, com o “viver nos outros” do homem cordial, Sergio
Buarque identifica na imagem do país no exterior o polo preferencial de atração das
energias cívicas da população, que forma do país a imagem de um “gigante” que olha
para as nações “com bonomia superior”359. É desse traço eminentemente psicológico
que Sergio depreende o grau de desmoralização e declínio do sentimento cívico a perda,
com o fim do Império, das aparências de dignidade na administração estatal. Um
Estado altivo envolto em alguma espécie de mística personalizante – que teve por
veículo durante algum tempo a figura do Imperador – mas não autoritário, é o que
Sergio acredita desejar o povo brasileiro:
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Não ambicionamos o prestígio de país conquistador e detestamos notoriamente as


soluções violentas. Desejamos ser o povo mais brando e o mais comportado do mundo.
Pugnamos constantemente pelos princípios tidos universalmente como os mais
moderados e os mais racionais. [...] Tudo isso são feições bem características do nosso
aparelhamento político, que se empenha em desarmar todas as expressões genuínas e
menos harmônicas de nossa sociedade, em negar toda espontaneidade nacional.360

Mais uma vez, Sergio ecoa de forma notável, fazendo o Brasil ocupar o lugar da
Alemanha, as opiniões afirmadas por Thomas Mann nas Considerações de um
apolítico. Em 1918, em meio a uma Alemanha exausta da guerra, Mann afirmava, com
ironia amargurada, referindo-se aos alemães, que “[n]ossa bonomia humana e apolítica
[Unsere gemütig unpolitische Menschlichkeit] nos levou a imaginar sempre que a
compreensão, a paz, a amizade, a boa vontade eram possíveis, e não suspeitávamos,
nem mesmo em nossos sonhos que só por meio da guerra aprenderíamos [...] até que
ponto eles nos odiavam”361. Assim como fará Mann no capítulo intitulado “Política”, o
mais longo de seu longuíssimo ensaio362, tendo diante de si a necessidade de que o
Estado seja capaz de preservar a soberania do povo e conduzi-lo à realização de suas
disposições metafísicas, Sergio acredita ser necessária certa correspondência espiritual

359
RB, p. 143.
360
RB, p. 143-4.
361
Considérations d’un apolitique, cit., p. 39; Betrachtungen eines Unpolitischen, cit., p. XXXIX.
362
Cf. esp. Considérations d’un apolitique, p. 211-21.
341

entre ele e a nação, ou o “povo”. São ideias que correspondem de modo bem
aproximado ao que Isaiah Berlin resumiu da escola jurídica histórica alemã a partir das
ideias de Adam Müller – o jurista “romântico” de quem Carl Schmitt traça um
demolidor retrato em seu Romantismo político. Müller, que introduz na Alemanha o
pensamento de Edmund Burke, apregoa um ideário organicista do Estado
extraordinariamente afinado com o que Sergio Buarque defende em Nossa Revolução:

A ciência só pode reproduzir um Estado político sem vida; a morte não pode representar
a vida [...] tampouco pode estagnação representar movimento. Ciência, utilitarismo, o
emprego de máquinas, não dão a ideia do Estado, que “não é só uma fábrica, fazenda,
companhia de seguros ou sociedade mercantil; ele é a ligação íntima de todas as
necessidades físicas e espirituais da nação, de todas as suas riquezas físicas e
espirituais, de toda a sua vida externa e interna, formando um todo energético,
infinitamente ativo e vivo”. Essas palavras místicas se tornam então o coração e o centro
de toda a teoria orgânica da vida política, e da lealdade ao Estado, e do estado como
organização semi-espiritual, expressão simbólica dos poderes espirituais de mistérios
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divinos, coisa que o Estado se torna, sem dúvida, entre os românticos, ao menos entre os
mais extremados.363

Nada indica que Sergio Buarque tenha se dado ao trabalho de ler Adam Müller,
figura relativamente obscura na história do pensamento alemão. Ele certamente tinha
lido os comentários zombeteiros de Schmitt sobre ele, que serve no Romantismo
político como o exemplar mais destacado da doença romântica no pensamento jurídico
alemão, além dos elogios que Thomas Mann faz a Müller nas suas Considerações de
um apolítico, dizendo de seus escritos políticos que seriam “o que de mais espiritual e
de verdadeiro já se escreveu” sobre o tema364. O certo é, porém, que o caldo de ideias
gerado no contexto romântico terá penetrado em sua reflexão, talvez pelo intermédio
de vitalistas como Spengler e Klages, ou até de Schmitt, afinal, as ideias acima descritas
não são necessariamente românticas no sentido schmittiano, isto é, “ocasionalistas”. A
teoria do direito gerada na época romântica, tal como descrita por Berlin, é quase
perfeitamente afinada com “Nossa Revolução”, inclusive no conteúdo específico da
crítica buarquiana à tradição que ele chama de “liberal”, mas que se refere sobretudo

363
Isaiah Berlin, The roots of Romanticism, cit., p. 144. A citação de Adam Müller não foi identificada
pelo organizador da edição.
364
Considérations d’un apolitique, cit., p. 230.
342

ao Iluminismo e à Revolução Francesa, com sua filosofia político-jurídica


contratualista:

Na escola alemã de jurisprudência histórica, a lei verdadeira não é algo que alguma
autoridade, um rei ou uma assembleia, calha de instituir; isso não passa de um evento
empírico, orientado talvez por pragmatismo ou outras considerações desprezíveis.
Tampouco a lei é algo eterno – como aquelas leis da natureza, aquelas leis divinas, que
qualquer alma racional poderia descobrir por si mesma, como ensinavam a Igreja de
Roma, os estoicos e os philosophes franceses do século XVIII. [...] Isto é negado. A lei
é o produto da força pulsante dentro da nação, de forças tradicionais obscuras, de sua
seiva orgânica que corre dentro de seu corpo como numa árvore, ou algo que não
podemos identificar e não podemos analisar, mas que todos aqueles que são fiéis a seu
país sentem correr pelas veias. A lei se desenvolve a partir da tradição, em parte produto
de circunstâncias, mas é também a alma interior da nação, que agora começa a ser
concebida quase como individual – aquilo que, entre si, os membros da nação geram.365

Faltaria, então, ao “democratismo liberal” o sentimento histórico das


particularidades da tradição local, daí que ele seja um veículo inadequado para a
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modernização brasileira. Essa afinidade, consciente ou não, de Sergio Buarque com o


pensamento contrarrevolucionário de extração alemã, pode ter sua origem no fato de
essa corrente intelectual se posicionar insistentemente como uma espécie de “outro” da
teoria política liberal e iluminista. Não está muito longe dessa linha o pensamento de
Alberto Torres, cujo livro O problema nacional brasileiro ganha longa citação na
sequência do trecho sobre a idealização do Brasil no imaginário popular. Parece ser de
Alberto Torres, aliás, que Sergio toma emprestado seu reiterado uso do termo
“superfetação” – empregado para caracterizar o romantismo, em “Novos Tempos”, e o
liberalismo, no último parágrafo de Raízes. Contra “todos os elementos” que “se
propunham a [sic] impulsionar e fomentar um surto social robusto e progressivo”,
nossa classe política se organizou como uma “verdadeira superfetação”, “de alto a
baixo, um mecanismo alheio à sociedade, perturbador de sua ordem, contrário a seu
progresso”366. O próprio Alberto Torres não teria escapado, na opinião de Sergio, à
atitude livresca dos estadistas do século XIX, pois “não viu, e não quis ver, todavia,
que foi justamente a pretensão de compassar os acontecimentos pelos sistemas, as leis
e os programas, uma das origens da separação que existe entre a nação e sua vida

365
The Roots of Romanticism, cit., p. 145.
366
Apud RB, p. 144.
343

política”, acreditando “que a letra morta pode influir de modo enérgico sobre os
destinos de um povo” 367 . Sua condenação da resposta de Alberto Torres ao
descompasso entre política e sociedade, isto é, a proposta de uma reforma
constitucional, é marcadamente organicista, e opõe à política e às leis o grande valor
que o autor de Raízes acredita elevar-se acima dos partidos e das pequenas disputas do
dia a dia da administração pública, a “verdade” ou “realidade”, que a tradição
intelectual brasileira sempre recusa como excessivamente “dura” ou triste”:

Escapa-nos a verdade de que não são as leis escritas e fabricadas pelos jurisconsultos,
ou o cumprimento fiel dessas leis, as mais legítimas garantias de felicidade para os povos
e de estabilidade para as nações. Costumamos julgar, ao contrário, que os bons
regulamentos e a obediência aos seus preceitos constituem a floração ideal de uma
apurada educação política, da alfabetização, da aquisição de hábitos civilizados e de
outras condições igualmente excelentes. Essa opinião enganosa tomou vulto depois de
incentivada a crença no mito do progresso, com o êxito do comtismo, do spencerismo,
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do marxismo e de tantas ideologias semelhantes [...].


O grande pecado do século passado foi justamente o ter feito preceder o mundo das
formas vivas do mundo das fórmulas e dos conceitos. Nesse pecado é que se apoiam
todas as revoluções modernas, quando pretendem fundar os seus motivos em concepções
abstratas como os famosos Direitos do Homem. Sobreestimam-se as ideias, que
usurparam decididamente um lugar excessivo na existência humana.368

Nota-se como o problema, para Sergio Buarque, não está nesta ou naquela visão
de conteúdo de como as coisas devem se organizar – ele parece muito pouco
interessado nisso, e quando fala em “liberalismo” ou “democratismo liberal” parece
quase só se referir ao esqueleto institucional do Estado, tal como imaginado na tradição
de pensamento político liberal – mas em certo quadro de compreensão de como as
coisas devem se organizar. E não está nem um pouco claro o alvo exato da
argumentação de Raízes do Brasil, que parece, lida atentamente, a despeito de toda
intenção de seu autor, uma espécie de jeremiada romântica contra toda a tradição
política brasileira. Não se trata aqui de reclamar um programa específico ou uma
tomada de posição inequívoca, mas simplesmente de constatar que, na verdade, parece
ser contra toda uma estrutura histórica bastante enraizada que se insurge o autor. Ao
mesmo tempo em que a direita católica é atacada já desde o começo do livro, o

367
RB, p. 145.
368
RB, p. 146.
344

“comtismo”, o “spencerismo” e o “marxismo” são todos igualmente encaixados no


rótulo de veículo para a incompetência dos políticos brasileiros. Não falta, aliás, a
menção a “tempos mais ditosos do que o nosso”, onde a “obediência” a “certos
preceitos obrigatórios e sanções eficazes” não se faziam sentir como forças opressoras.
Sergio não parece se referir ao período colonial, mas a algo de muito mais longínquo,
pois logo em seguida lembra que no mundo do “homem a que chamamos primitivo, a
própria segurança cósmica parece depender da regularidade dos acontecimentos”, aí
incluída a observância às normas sociais. A civilização surgiu a partir dos crescentes
graus de abstração necessários à progressiva abstração das situações concretas e
codificação das leis. Nada haveria de errado nisso, mas, em algum momento próximo
da Revolução Francesa, o racionalismo “excedeu seus limites”, ao pretender “erigir em
regra suprema os conceitos assim arquitetados”, apartando-os da “vida”, montando,
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com esses mesmos conceitos “um sistema lógico, homogêneo, aistórico” 369 . Sergio
parece acompanhar aqui o elogio de Hobbes por Carl Schmitt no segundo capítulo de
sua Teologia política:

Hobbes discutiu a demanda de que o poder estatal fosse subordinado ao poder espiritual
por ser último de uma ordem superior. A esse raciocínio ele respondeu que se um
“poder” (potestas) devesse ser subordinado a outro, o significado disso seria que quem
possui poder está subordinado a outro que possui poder [...]. Falar em superior e inferior
e tentar permanecer simultaneamente no abstrato é para ele incompreensível (“we cannot
understand”). “For Subjection, Command, Right and Power are acidentes not of Powers
but of Persons”. [Pois sujeição, comando, Direito e poder são acidentes não de poderes,
mas de pessoas]370

Ora, para Sergio Buarque foi exatamente o contrário dessa forma de pensar que
presidiu a história do pensamento político da América ibérica. Abstrações, e não pautas
concretas, eram tomadas por objetivos da ação política. Nesse idealismo entraria uma
recusa do mundo real, e seus sintomas viriam desde a atração dos movimentos
independentistas pelos “princípios da Revolução Francesa” até a mais recente adesão
aos “ideais apregoados pela Terceira Internacional”. Não ocorre a Sergio se perguntar
pela qualidade desses ideais, apenas condená-los como sintoma da incapacidade de

369
RB, p. 147.
370
Political Theology, cit., p. 33-4.
345

formação espontânea, em solo americano, de ideias próprias, e do fetichismo pelas


ideias estrangeiras, que se impõem “com um prestígio verdadeiramente mágico e por
um processo semelhante ao que transforma em tirânicas exigências certos princípios
originados por necessidades concretas precisas”. Perverte-se assim o verdadeiro
sentido dessas ideias em seu contexto de criação – o organicismo de Sergio ao menos
reconhece a sua validez nesse caso – de modo que, por exemplo, a “palavra ‘liberdade’,
que inicialmente deveria ter um sentido restrito, delimitando as aspirações de
emancipação política, valeria, ao cabo, em toda a extensão de seu significado”, isto é,
valeria em casos onde não deveria valer, transposta do âmbito dos meios para o dos
fins371. Mais grave do que isso para ele é, naturalmente, a corrosão do caráter nacional,
pois assim “os povos de nossa América” teriam sido escandalosamente levados, por
engano, por incompetência intelectual, a “enaltecer um sistema de ideias que
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contrastava em absoluto com o que há de mais positivo em seu temperamento e que,


bem compreendido, levaria à total despersonalização.372 Desenha-se aqui o ponto mais
interessante e de mais difícil compreensão desse raciocínio que os leitores acostumados
à imagem açucarada de um Sergio Buarque progressista já estarão achando, talvez, não
apenas frustrante, mas um pouco enfadonha. Sergio vai criar, aqui, uma espécie de
antítese hegeliana, na tentativa de compreender as oscilações históricas entre
“personalismo” ou “caudilhismo”, de um lado, e “liberalismo”, de outro, que
formariam um complexo histórico que cumpriria “superar”. Neste último extremo,
encontraríamos o Uruguai batllista, um regime onde os governos pouco podiam de fato
influir na conduta do Estado. Já no outro, o caudilhismo, Sergio procura encontrar o
“mesmo círculo de ideias a que pertencem os princípios do liberalismo”. Nesse sentido,
a América seria o cenário das mesmas tendências políticas da Europa (liberalismo e
ditadura), mas em versões extremadas. Previsivelmente, Sergio não manifesta simpatia
por nenhum dos dois polos, limitando-se a comentar que tudo isso é “compreensível se
lembrarmos que a História jamais nos deu o exemplo de um movimento social que não
contivesse os germens de sua negação – negação que se faz, necessariamente, dentro
do mesmo âmbito”. Sua conclusão, hegeliana e olimpicamente superior à “antítese

371
RB, p. 148.
372
RB, p. 149.
346

impersonalismo-caudilhismo”, é que “uma superação da doutrina democrática só será


possível” quando aquela tiver sido “vencida”.373 Vencidos, superados, suprassumidos
devem ser não apenas o próprio caudilhismo e o suposto ultraliberalismo que culminou
no batllismo uruguaio, mas, como se pode verificar numa etapa intermediária do
raciocínio, toda a tradição de pensamento político moderno, pois “Rousseau, o pai do
contrato social, pertence à família de Maquiavel, o pioneiro da doutrina do poder; um
e outro vieram da mesma ninhada”. Na mesma ninhada está até mesmo o fascismo,
“que nada mais é do que uma crítica do liberalismo na sua forma parlamentarista,
erigida em sistema político positivo”374.
Nessa crítica generalizada contra as “abstrações” que se infiltram na teoria
política, que recusa praticamente toda a tradição ocidental, somos lembrados da ideia
nietzschiana da perversão da filosofia pela teologia, que redunda na transformação do
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destino coletivo dos povos àquilo que na seção 11 do Anticristo Nietzsche denomina
“o Moloch da abstração”. Ou, como se lê na seção 9 do mesmo livro, “[s]e acontece de
os teólogos, através da ‘consciência’ dos príncipes (ou dos povos –), estenderem a mão
para o poder, não duvidemos do que sempre se dá: a vontade de fim, a vontade niilista
quer alcançar o poder...”375. Compreende-se melhor a estranhamente longa “Nota E”
sobre o Maquiavel no Brasil de Otávio de Faria – na verdade, uma resenha já publicada,
que Sergio transcreve integralmente, a fim de demonstrar a “idiossincrasia” e a baixa
qualidade de seu raciocínio. No primeiro parágrafo da resenha transcrita (isto é, o
segundo da nota), lê-se que, diferentemente de Maquiavel, Otávio de Faria faz uma
defesa do realismo político pretensamente baseada em valores morais – numa efetiva
desmaquiavelização de Maquiavel, feito aliás exemplar do estilo intelectual formalista
e inconsequente descrito nos capítulos V e VI de Raízes. O evidente contrassenso da
doutrina de Otávio de Faria, na opinião de Sergio, é demonstrado numa argumentação
claramente baseada no Conceito do político de Carl Schmitt. Ali, sobre Maquiavel, lê-
se que “Maquiavel, que, se tivesse sido um maquiavélico, antes teria escrito um livro
edificante do que o seu amaldiçoado Príncipe. Na verdade, Maquiavel estava na

373
RB, p. 149-50.
374
RB, p. 149.
375
O anticristo, cit., p. 15.
347

defensiva, assim como seu país, a Itália, que, no século XVI, havia sido invadido por
alemães, franceses, espanhóis e turcos.”376 Ora, Maquiavel, justamente o filósofo que
não sacrifica nada ao “Moloch” das abstrações teológicas, é transformado por Otávio
de Faria no áulico edificante imaginado por Schmitt. Pior, o fascista brasileiro, diante
da constatação de que o homem “não presta”, arquiteta uma teoria do Estado autoritário
justificada por algo que “o transcenda”, isto é, as “personalidades superiores” dos
líderes fascistas. Aventando, sarcasticamente, haver por trás de sua “atitude
desconcertante” alguma “grande ideia religiosa ou metafísica”, ainda não esclarecida
pelo autor resenhado, Sergio Buarque o inclui no mesmo balaio dos liberais, que
subordinam a vida política prática ao mundo das abstrações edificantes377. Sua teoria
está, assim como todas as outras efetivamente existentes consideradas por Sergio, do
lado oposto da “vida” e do “natural” do povo brasileiro.
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Já o “espírito legístico” encarnado por Alberto Torres, mas supostamente


representativo de toda a classe política, ignora a necessidade de que “existam pessoas
de carne e osso” para fazer funcionar os sistemas políticos existentes na teoria – nesse
erro também incorreria Otávio de Faria, pois, pretendendo tornar o Estado menos
“abstrato e impessoal” por meio da personalidade de um grande líder, não fornece os
critérios para encontrá-lo. Lembre-se, a propósito, que nas Considerações de um
apolítico, a crítica de Thomas Mann contra a ideia de um “Estado popular” e
democrático incide sobre o problema de que, seja na monarquia autoritária ou na
república democrática, não é “o povo” que governa, mas pessoas 378 . Somos então
devolvidos ao problema “cordial” do “amor” e dos afetos, que realmente determinam
as ações dos brasileiros, mas que são naturalmente restritos a círculos demasiado
pequenos para que uma teoria universal e positiva possa dar conta da política
institucional, pois “a verdadeira solidariedade só se pode sustentar realmente nos
círculos restritos e a nossa predileção, confessada ou não, pelas pessoas e interesses
concretos não encontra alimento muito substancial nos ideais teóricos em que se há de
apoiar um grande partido”379 – note-se como aqui o alvo da crítica pode ser tanto o

376
The concept of the political, cit., p. 66.
377
RB, p. 173-6.
378
Considérations d’un apolitique, cit., p. 216.
379
RB, p. 150-1.
348

liberalismo como o fascismo. Mas Sergio não vê nessa inconsistência ideológica um


problema, mas antes um sintoma de “nossa inadaptação a um regime legitimamente
democrático”. Ou melhor, o problema existe, mas sua raiz é muito mais profunda: não
uma incapacidade para o político, mas sim para o pensamento autônomo. Voltamos ao
problema da resistência à essência em razão da incompreensão da natureza do trabalho
e, consequentemente, da articulação entre pensamento e ação: “A verdade é que, como
nossa adesão a todos os formalismos denuncia apenas uma ausência de forma
espontânea, assim também a nossa confiança na excelência das fórmulas teóricas
mostra simplesmente que somos um povo pouco especulativo”380.
O que, então, se haveria de pôr no lugar das falsas doutrinas dos demagogos,
liberais ou não? Sergio acredita ser o personalismo – já presente, coerentemente, desde
o primeiro capítulo – “talvez a única” noção “verdadeiramente positiva que
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conhecemos”. Nesse ponto, Sergio mostra como o personalismo conforma a recepção


latino-americana do próprio liberalismo, tendo conseguido “abolir as resistências da
demagogia liberal, acordando os instintos e os sentimentos mais vivos do povo”381.
Aqui, se tiver sido alcançado o significado dessa estranha forma de se expressar, Sergio
não quer dizer que o personalismo tenha efetivamente vencido a democracia no plano
teórico, mas sim que ele conseguiu realizar uma acomodação aparente com as formas
institucionais liberal-democráticas. Pois é exatamente dessa acomodação que trata a
passagem que retoma o “mal-entendido da democracia” e explica as circunstâncias que
o proporcionaram, isto é, as “zonas de confluência e simpatia entre as ideias que ele
apregoa e certos fenômenos decorrentes das condições peculiares de nossa formação
nacional”382. Aqui, Sergio expõe as duas disposições, uma interna e outra externa, e
que explicitam outra vez a problemática da “revolução”, isto é, a inexistência de um
mecanismo que solucione as contradições entre a forma enraizada (e destinada a
desaparecer, pelo menos na ausência de um tal mecanismo) e a inevitabilidade da
modernização:

380
RB, p. 151.
381
RB, p. 152.
382
RB, p. 153.
349

1. a repulsa instintiva dos povos americanos, descendentes dos colonizadores e da


população aborígene, por toda hierarquia racional, por qualquer composição da
sociedade que se tornasse obstáculo à autonomia do indivíduo;
2. a impossibilidade de uma resistência eficaz contra certas influências novas (por
exemplo, do primado da vida urbana, do cosmopolitismo), que em toda parte, nos
tempos modernos, foram aliadas das ideias democrático-liberais.383

É para se notar como, nos dois casos, essa correspondência é puramente negativa,
de modo que tudo que o “democratismo liberal” oferece é uma falsa solução, que corrói
a autenticidade nacional ao mesmo tempo em que, por não estar ajustada aos “quadros
de vida” locais, não consegue realizar plenamente a transição para o mundo moderno.
Há, porém, um terceiro elemento por onde as “ideias da Revolução Francesa” exercem
uma sedução especial no Brasil: “A noção da bondade natural do homem combina
singularmente com o nosso já assinalado ‘cordialismo’. E é aqui que o ‘homem cordial
encontraria uma possibilidade de articulação entre seus sentimentos e as construções
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dogmáticas da liberal-democracia”384. Essa frase oferece uma janela excepcional para


os motivos que terão presidido a escolha da expressão “mal-entendido” para qualificar
a democracia brasileira: trata-se de tomar “construções dogmáticas” por elementos
afetivos, correspondentes a “sentimentos”, revelando a natureza romântica do
declarado amor dos políticos brasileiros pelos ideais da Revolução Francesa. Trata-se
de um erro de “fundamento antropológico”, pois, não podendo aceitar as doutrinas de
uma antropologia negativa, que considera o homem mau por natureza, os brasileiros
optam pela primeira que lhes parece contrariar esse postulado, ainda que o faça por
motivos inteiramente diferentes dos que realmente suscitaram o sistema de ideias
adotado:

Se todavia não nos detivermos na configuração exterior da vida nacional, mas


penetrarmos ainda e sobretudo as formas subjacentes, só nos cumprirá confessar que se
limita a essa coincidência o que há de comum entre as duas atitudes que tenteamos
aproximar. Com efeito, no liberalismo a ideia da bondade natural do homem é simples
argumento; seria enganoso imaginar-se que tal convicção repouse em alguma simpatia
pelo gênero humano, considerado em seu conjunto ou em cada um dos indivíduos.385

383
RB, p. 154.
384
Loc. cit.
385
RB, p. 155.
350

Mais uma vez, Sergio Buarque parafraseia de forma quase servil o Conceito do
político de Carl Schmitt – onde, aliás, a castração do poder pastoral do Estado em nome
de um individualismo radical não é uma perversão do liberalismo, mas, pelo contrário,
sua vocação – quando afirma, no sétimo capítulo, que, “[p]ara os liberais, a bondade
do homem é um mero argumento por meio do qual o Estado é obrigado a servir a
sociedade” 386
. Incapaz de identificar nos “argumentos” mais do que formas
esteticamente aproveitáveis – comportamento tipicamente romântico, novamente no
sentido schmittiano de ocasionalismo esteticamente determinado – o intelecto “cordial”
os abraça sem compreender o sentido frio e impessoal, abertamente inimigo do
“personalismo”, da ideologia liberal. Também somos lembrados aqui de D. H.
Lawrence, em trecho citado acima, quando fala na capacidade humana de ignorar o que
diz uma voz dissonante das que se acostumou a ouvir. Sergio então sublinha outra vez
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o problema da incapacidade prática de estender o “amor” a toda a coletividade política


– e que torna a política partidária o veículo ilusório das paixões políticas, que na
verdade opõem personalismos e não princípios:

Todo o pensamento liberal-democrático pode resumir-se na frase célebre de Bentham:


“A maior felicidade para o maior número.” Não é difícil perceber-se que essa ideia está
em contraste direto com qualquer forma de convívio humano de base emocional. Todo
afeto entre os homens funda-se forçosamente em preferências. Amar alguém é amá-lo
mais do que aos outros. Há nisso uma parcialidade que está em oposição com o ponto
de vista jurídico e neutro em que se baseia o liberalismo. A “bienveillance” democrática
é comparável à polidez; resulta de um comportamento social bem-definido, que pretende
orientar-se por um equilíbrio dos egoísmos. O ideal humanitário, que na melhor das
hipóteses ela predica, é paradoxalmente impessoal; sustenta-se na ideia absurda de que
o maior grau de amor está por força no maior número de homens e, por isso mesmo,
insiste na excelência, na infalibilidade, na intangibilidade do voto da maioria (“o povo
não erra”, pretendem os declamadores liberais), subordinando assim, sub-repticiamente,
os ideais qualitativos à quantidade.387

Novamente, Sergio transpõe para o Brasil argumentos antiliberais de procedência


alemã. Em seu ataque contra os “artistas da Civilização”, como Émile Zola, Thomas
Mann se pergunta, nas Considerações de um apolítico, com a intenção de demonstrar
a suposta desonestidade fundamental no humanitarismo liberal: “Será verdade que o

386
The concept of the political, cit., p. 60.
387
RB, p. 156.
351

amor ao objetivo distante, o amor universal, só prospera às custas de amar num círculo
restrito, portanto, naquele único lugar onde o amor tem uma verdadeira realidade?”388,
Mais tarde, no capítulo intitulado “Política”, encontra-se a passagem que
provavelmente terá inspirado a inclusão da “célebre frase de Bentham”, que o próprio
Mann não chega a nomear:

Todo anti-retor [Jeder unrednerische Mensch] amante da verdade e de um pessimismo


decente reconhecerá com desapego a eterna irredutibilidade do antagonismo entre o
indivíduo e a sociedade. [...] Ele declarará que a filosofia positivista do Iluminismo
[Aufklärung] ludibria o povo com seu próprio beneplácito ao atribuir-lhe a harmonia
entre os interesses individuais e os sociais. [...] Ele sabe que a política, a saber, as Luzes
[Aufklärung], o contrato social, a república, o progresso atinentes à “maior felicidade
possível para o maior número possível” não são meios de estabelecer a paz na vida em
sociedade; que essa conciliação só se pode resolver na esfera da personalidade, nunca
naquela do indivíduo, e portanto por meios psíquicos, nunca políticos [...].389
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Um pouco adiante, no mesmo capítulo, Mann volta a atacar o quantitativismo


liberal, dessa vez num ataque direto ao voto popular, afirmando que, “[s]e um povo é
mais do que a soma de suas partes, o povo não falou quando se interrogaram suas partes
isoladamente”390.
Já a referência à pretensão dos “declamadores liberais” de que “o povo não erra”
terá sido sugerida, muito provavelmente, pela citação que Schmitt faz, na sua Teologia
política, do abade Emmanuel Sieyès, autor do famoso manifesto revolucionário Que é
o Terceiro Estado? (1789). Segundo Schmitt, é Rousseau quem primeiro perverte o
conceito de soberania, fundamentalmente qualitativo, na formulação hobbesiana, para
torná-lo idêntico com a “vontade geral”, acrescentando a ele uma “determinação
quantitativa”. Nenhuma contestação da quantidade é admissível, pois, como diz Sieyès,
já no momento em que a perversão rousseauísta chega às suas últimas consequências,
“o povo é sempre virtuoso”391 – a frase deve ter causado uma impressão especial em
Schmitt, que faz questão de complementar sua paráfrase com o original em francês,

388
Considérations d’un apolitique, p. 168.
389
Ibid., p. 220. Betrachtungen eines Unpolitischen, cit., p. 240-1. Mann deve ter julgado a fórmula
benthamiana especialmente representativa do ponto de vista que estava combatendo, a ponto de repeti-
la adiante no mesmo capítulo (p. 274).
390
Considérations d’un apolitique, cit., p. 229.
391
Political Theology, cit., p. 48.
352

como quem quer causar escândalo: “Der Wille des Volkes ist Immer Gut, [a vontade
do povo é sempre boa] Le peuple est toujours vertueux”392. Também Thomas Mann se
mostra indignado com a mesma ideia, que atribui igualmente à Revolução, citando, no
caso, Robespierre: “O povo é justo, sábio e bom. Tudo que ele faz é virtuoso
[tugendhaft] e verdadeiro, nada é excessivo, errado ou criminoso”393. Sergio está se
movimentando nesse mesmo terreno argumentativo quando afirma que a democracia
subordina, “sub-repticiamente, os ideais qualitativos à quantidade”, pois insiste na
“excelência” e na “infalibilidade do voto majoritário como determinante das ações do
Estado – sendo para ele o “bom” governo, no caso, a “qualidade”; lembremos que, na
Teologia política, soberano é quem decide na exceção, é-se soberano ou não, por
princípio, independentemente de vontade majoritária. Já a essência do político, para o
Schmitt do Conceito do político, é a preservação da forma de vida de uma coletividade
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(de “amigos”) contra ameaças externas (“inimigos”). À luz do cotejo dessas passagens
com o que se leu acima, há boa razão para supor que o entendimento que Sergio faz da
“qualidade” do Estado está próximo dessa idealização schmittiana da soberania. A
vontade do “povo” idealizado pelas Luzes e pela Revolução não pode ser, para Sergio,
a portadora das aspirações brasileiras à modernidade, pois “um amor humano que se
asfixia e morre fora de seu círculo restrito, não pode servir de cimento a nenhuma
organização humana concebida em escala mais ampla”. Na sequência, ele emenda:
“[c]om a cordialidade, a bondade, não se criam os bons princípios”. A solução estaria
num “elemento normativo, sólido, inato na alma do povo, ou implantado pela tirania
para que possa haver cristalização social”. A tirania, nesse caso, não está descartada:
“A tese de que os expedientes tirânicos nada realizam de duradouro é apenas uma das
muitas invenções fraudulentas da mitologia liberal, que a história está longe de
confirmar”394.
As páginas finais do livro vão tomando um tom crescentemente nietzschiano de
denúncia da infiltração da política pela moral, a uma moral compassiva do cristianismo,
uma moral que Nietzsche identifica como criação conformada por solicitações mentais

392
Politische Theologie. Munique; Leipzig: Duncker & Humblot, 1934, p. 62.
393
Considérations d’un apolitique, cit., p. 310; Betrachtungen eines Unpolitischen, p. 365-6.
394
RB, p. 156-7.
353

de quem nasceu para servir e não para liderar. Sergio faz o elogio dos homens que, na
Revolução Pernambucana de 1817, “não desejavam em nada modificar a situação dos
negros escravos”, por sua “sinceridade”, que “nunca mais se repetiu no decurso da
nossa vida de nação. Todos os seus sucessores, mesmo “os mais sábios e os mais
prudentes” preferiram simplesmente “esquecer a realidade, feia e desconcertante” pois
nunca duvidaram “que a sã política é filha da moral e da razão”395 – nesse ponto Sergio
parece se limitar a aludir ao argumento sobre a mentalidade livresca dos bacharéis,
descrita em “Novos tempos”, mas a última observação traz à memória uma referência
que ali não aparecera, isto é, o elogio nietzschiano da virtù maquiaveliana, isto é, a
“virtude no estilo da Renascença”, contra a “virtude” no sentido corrente da cultura
cristã moderna396. Desse defeito padecem mesmo os “realistas” da política brasileira,
que sempre pretendem “agir, ao mesmo tempo, segundo os critérios morais”, em
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“atitude não muito diversa da que [...] adotaram os ‘caudilhos esclarecidos’ da Europa
moderna” 397 . É então que Sergio vai fazer sua estranhíssima crítica a o fascismo.
Estranha, sobretudo, porque desconectada de qualquer preocupação com as
consequências práticas da ideologia fascista. Para Sergio, o problema principal do
fascismo é que ele não chega a “superar” o liberalismo, ainda obedecendo à mesma
articulação entre teoria política e necessidades materiais – talvez, pensando em D. H.
Lawrence, o problema estivesse no predomínio, em ambas as correntes, da “mente”
sobre a “alma”, de modo a não permitir a libertação da América em direção ao mundo
da “estrada aberta”, identificado pelo crítico na poesia de Walt Whitman:

Hoje os partidários do fascismo já descobrem o seu grande mérito em ter tornado


possível a instauração de uma reforma espiritual abrangendo uma verdadeira tábua de
valores morais. [...] O sistema que instituiu para sustentar a estrutura imposta com
violência pretende compor-se dos elementos vitais das doutrinas que repele em muitos
dos seus aspectos; nisso está um dos títulos de orgulho prediletos dos criadores do
regime. [...] Quem não sente, porém, que sua reforma é, em essência, apenas uma sutil

395
RB, p. 157.
396
Anticristo, seção 2 do Prólogo (p. 10-11): “O que é bom? – Tudo o que eleva o sentimento de poder,
a vontade de poder, o próprio poder no homem. O que é mau? – Tudo o que vem da fraqueza. O que é
felicidade? – O sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência é superada. Não a satisfação,
mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra, não a virtude, mas a capacidade [Tuchtichkeit,
também “eficiência”, “competência”, “proeza”] (virtude à maneira da Renascença, virtù, virtude isenta
de moralina) [moralinfreie Tugend].” (KSA 6, p. 170)
397
RB, p. 157-8.
354

contrarreforma? Quem duvida que entre os seus motivos diretos subsiste o intuito [...]
de dar um sentido e um fundamento às reivindicações materiais que, em verdade, lhe
servem de base?398

Para compreender o argumento é preciso insistir na sua estranheza: Sergio


pergunta, em tom de denúncia, se o fascismo não quer fundamentar “reivindicações
materiais” que lhe serviriam de “base”. Ele parece especialmente interessado em refutar
doutrina supostamente metafísica, transcendente, do fascismo – que ele identifica,
como se viu, na leitura brasileira de Octavio de Faria. Em suma, o fascismo cria uma
engenhoca político-teológica para justificar sua doutrina do Estado totalitário, mas não
passaria de uma reelaboração mistificada da racionalidade política liberal. Resta saber
que tipo de pensamento político de fato seria capaz de cumprir essas promessas que se
apresentam a Sergio Buarque como ao menos teoricamente plausíveis – talvez, quem
sabe, uma revolução realmente digna do vocabulário teológico, presidida por uma
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doutrina fanática terrorista à la Leo Nahpta? Outro problema, para Sergio, esse de
ordem um pouco mais pragmática, estaria na falta de vocação dos fascistas brasileiros
– e também dos comunistas, que, afinal, também propõem uma política diferente da
liberal – para a violência e para o conflito. Isso transforma ambos em nada mais do que
uma nova encarnação dos positivistas, com seu bovarismo e seu horror “neurastênico”
da realidade:

Desde já podemos sentir que não existe quase mais nada de agressivo no incipiente
mussolinismo indígena. Na doutrinação dos nossos “integralistas”, com pouca corrupção
a mesma que aparece nos manuais italianos, faz falta aquela truculência desabrida e
exasperada, quase apocalíptica, que tanto colorido emprestou aos seus modelos da Itália
e da Alemanha. A energia sobranceira destes, transformou-se, aqui, em pobres
lamentações de intelectuais neurastênicos. Deu-se com eles coisa parecida com o que
resultou do comunismo, que atrai entre nós precisamente aqueles que parecem menos
aptos a realizar os princípios da Terceira Internacional.

No caso dos comunistas, há em comum com o positivismo a “tensão incoercível


para um futuro ideal e necessário”, combinada com um elemento que deve ter parecido
a Sergio Buarque especialmente afinado com o romantismo brasileiro: “a rebelião

398
RB, p. 158-9.
355

contra a moral burguesa, a exploração capitalista e o imperialismo”399. O que Sergio


Buarque parece querer enfatizar nesse trecho final é que nenhuma dessas novidades
políticas importadas rompe realmente com a lógica mais profunda dos “mal-
entendidos” que presidem a vida política brasileira desde o princípio do século XIX,
mal-entendidos que só se resolverão no longo prazo, quando – ou melhor, se – os
brasileiros aprenderem a pensar autonomamente e compreender as reais relações por
meio das quais o pensamento especulativo, sistemático e ordenador se inscreve na vida.
Isso requer um exame de consciência profundo – é esse o verdadeiro “programa” de
Raízes – que dê um fim às falsas consciências moralizantes do pensamento político,
que infectam igualmente liberalismo, fascismo e comunismo. A conclusão que se lê,
tendo isso em mente, no parágrafo final, não é, por certo, das mais reconfortantes, mas,
bem ou mal, dá um fecho bem coerente ao círculo da argumentação do livro,
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respondendo quase ponto por ponto à abertura:

O essencial de todas as manifestações, das criações originais como das cousas


fabricadas, é a forma. A realização completa de uma sociedade também depende de sua
forma. Se no terreno político e social o liberalismo revelou-se entre nós antes um
destruidor de formas preexistentes do que um criador de novas; se foi sobretudo uma
inútil e onerosa superfetação, não será pela experiência de outras elaborações
engenhosas que nos encontraremos um dia com a nossa realidade. Poderemos ensaiar a
organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude provada, mas há
de restar um mundo de essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre intacto,
irredutível, desdenhoso das invenções humanas. Querer ignorar esse mundo será
renunciar ao nosso próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do refluxo, por um
compasso mecânico e uma harmonia falsa. Já temos visto que o Estado, criatura
espiritual, opõe-se à ordem natural e a transcende. Mas também é verdade que essa
oposição deve resolver-se em um contraponto para que o quadro social seja coerente
consigo mesmo. O espírito não é uma força normativa, salvo onde pode servir à vida
social e onde lhe corresponde. As formas exteriores da sociedade devem ser como um
contorno congênito a ela e dela inseparável: emergem continuamente das suas
necessidades específicas e jamais de escolhas caprichosas. Há, porém, um demônio
pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer a nossos olhos essas verdades
singelas. Inspirados por eles, os homens se veem diversos do que são e criam novas
preferências e repugnâncias. É raro que sejam das boas.400

As “elaborações engenhosas” que Sergio insere na mesma frase que a “inútil e


onerosa superfetação” do liberalismo são essas resenhadas ao final de “Nossa

399
RB, p. 159.
400
RB, p. 160-1.
356

Revolução”, e o “demônio pérfido e pretensioso”401 da penúltima frase parece ser o que


Sergio entende pela incorporação artificial, afetada, dos “preconceitos morais”, para
usar a linguagem nietzschiana desse final de ensaio, da modernidade europeia. A ironia
contida na expressão “esquemas sábios e de virtude provada”, referente às ideias
políticas importadas, se deixa melhor compreender quando se lembra das invectivas de
Thomas Mann e Carl Schmitt contra a ideia revolucionária de que o povo é, por
definição, virtuoso – Mann fala mesmo da “república virtuosa e jacobina”402 [Tugend-
und Jakobiner-Republik], além, é claro, da crítica nietzschiana da concepção
moralizante da virtude (e a favor da virtù “no estilo da renascença”, livre de
“moralina”) 403 . Para chegar à “realização completa” da sociedade brasileira, seria
preciso responder ao “mundo de essências mais íntimas” descrito na análise da
cordialidade com um “contraponto”, isto é, uma solução conciliatória que fosse capaz
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ao mesmo tempo de “organizar a nossa desordem”. Lê-se que “o espírito não é uma
força normativa” a não ser quando possa “servir” e corresponder à “vida social” – note-
se que o “espírito”, no caso o “espírito” do Estado e das Leis, é uma dimensão
necessária desse processo; apenas as ideologias políticas já “ensaiadas” no Brasil não
cumprem a condição de que ele possa consumar a sua normatividade. O sentido da
observação é a recusa de toda e qualquer solução política da Europa para a
modernização – fascismo, liberalismo, comunismo e variantes nacionais, como o
integralismo, já que, como se viu no começo desta seção, no cotejo com D. H.
Lawrence, a “nossa revolução”, aonde quer que leve o seu desenlace, tem por horizonte
fazer florescer o “tipo próprio de cultura” pelo qual se perguntava a abertura do livro.
A solução para o dilema brasileiro fica então delegada a alguma força política nunca
nomeada, ou então para o longo prazo, cumprindo, momentaneamente, acelerá-la por
meios fundamentalmente pedagógicos antes que políticos. Sergio parece querer

401
D. H. Lawrence fala no “espírito do lugar”, ao qual depois associará o “daimon” ou “demônio” da
América, ao qual os euro-americanos teriam estado imunes até a consumação do genocídio dos povos
indígenas (“While the Red Indian existed in fairly large numbers the new colonials were in a great
measure imune from the daimon, or demon of America. The moment the last nuclei of Red life break up
in America, then the white men will have to reckon with the full force of the demon of the continent.”).
Essa noção, entretanto, parece assumir conotações mais positivas do que as aqui empregadas por Sergio
Buarque. O símile de um “espírito” ou “daimon” do lugar não parece, por outro lado, inteiramente
estranho a Raízes do Brasil. Studies in Classic American Literature, cit., p. 42-3.
402
Considérations d’un apolitique, p. 239; Betrachtungen eines Unpolitischen, p. 267.
403
O anticristo, cit., p. 11.
357

reeditar, mais de um século depois, o ponto de vista do humanismo clássico alemão de


Goethe e Schiller sobre a modernização. Embora tivessem sua reação à Revolução
condicionada por certo conservadorismo quase instintivo, os humanistas alemães não
deixavam de ter uma consciência profunda de que os problemas da Revolução eram,
mesmo numa nação pré-revolucionária e periférica como a Alemanha, os problemas de
seu futuro. A revolução, qualquer que fosse a opinião que se tivesse sobre ela, era, eles
o sabiam, um destino. Convinha, portanto, para ela “preparar lentamente o povo e as
camadas cultivadas”404.
A solução para a forma – o essencial de todas as manifestações da alma humana,
segundo Sergio Buarque – ainda não realizada se dá, antes de mais nada, por meio da
formação. No caso de Raízes, numa torção modernista, pela investigação paciente da
tradição cultural e do passado nacional do Brasil, sempre mal estudados ou estudados
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muito seletivamente pelas elites intelectuais. Somente assim, ousando saber a verdade
sobre si mesmos, ousando ouvir sua própria e verdadeira voz, encontrando-se
verdadeiramente e sem preconceitos com a própria realidade, é que os homens letrados
do Brasil poderiam dar corpo, por meio do trabalho moroso e fatigante que sempre
evitaram, ao seu pensamento original. Só assim eles poderiam exorcizar, expulsar de
suas inteligências o “demônio pérfido” que obscurece a sua autopercepção. Assim, na
pesquisa e na reflexão, e não, como sempre fizeram nossos literatos civilizadores desde
os liberais, passando pelos positivistas, e agora também comunistas e integralistas, pela
busca de soluções milagrosas, importadas ou pretensamente originais, surgidas de
alguma fantasiosa e irrefletida idealização da alma brasileira. Erraram todos, sem
exceção, porque não tiveram a coragem de olhar para o próprio corpo, de ouvir a
própria voz por trás das palavras mentirosas que lhes ensinaram os livros importados.
Porque não se dispuseram a mergulhar fundo nas profundezas anímicas apenas
provisoriamente esboçadas na análise do livro. Profundezas que cumpriria conhecer
melhor para bem compreender as “necessidades específicas” da sociedade. Até lá, só
espera, impasse e erro.

404
LUKÁCS, Georg. O Humanismo Clássico Alemão: Goethe e Schiller. In: Ensaios sobre literatura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 180-181.
358

É de se perguntar até que ponto, em sua primeira aventura no pensamento


político, a única realmente relevante de sua produção intelectual, Sergio Buarque de
fato superou o romantismo e o bovarismo que pretendia combater.
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359

Ervas daninhas (Epílogo)


À medida que este trabalho se aproxima do fim, aproveito este espaço de conclusão
para oferecer algumas indicações que me parecem complementares ao que se viu
anteriormente e esboçar, muito tentativamente, aquilo que eu gostaria de apresentar
num desdobramento da tese: uma visão representativa do desenvolvimento
subsequente da reflexão de Sergio Buarque de Holanda sobre a formação brasileira.
Pouco dado à explicação sistemática, Sergio Buarque nos deixou uma obra que
se acomoda bem à noção hegeliana de que o verdadeiro está no todo. Do mesmo modo,
procurando apresentar nosso tema a partir de suas próprias linhas de força, ou melhor,
a partir das maneiras em que a obra interpela, com suas pulsações orgânicas próprias,
a sensibilidade e a razão que a apreendem no ato da leitura, evitei deliberadamente,
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neste trabalho, a exposição do que seria uma síntese acabada do pensamento de Sergio
Buarque. Como disse no Prólogo, procurei me pautar pelo estilo de história intelectual
praticado por Sergio Buarque de Holanda nos textos onde ele teve a maior oportunidade
de exercitar a sua excepcional inteligência filológica e crítica –Visão do paraíso e os
estudos reunidos em Capítulos de História Colonial me parecem os exemplos mais
eloquentes. Ali, Sergio Buarque parte dos textos que quer interpretar e puxa longos fios
através de conexões com outras obras, pelas ocorrências prévias dos lugares-comuns,
pelos indícios que os textos oferecem da sensibilidade e da racionalidade que perfaziam
o tecido da realidade dos tempos passados, iluminadas por sua impressionante
erudição, em toda a sua estranheza. Acredito que essa inteligência foi educada
paulatinamente, desde os anos 1920, no contato assíduo com as expressões da cultura,
isto é, com aquilo que ele chamava de “formas”, mas que ela passa por um salto
qualitativo em Raízes do Brasil, onde a necessidade de oferecer um painel geral da
formação brasileira serve como uma espécie de laboratório para a investigação das
diversas maneiras como os artefatos de cultura, principalmente os literários – uso aqui
o termo no sentido mais amplo possível – se articulam com as mais diversas
possibilidades de figuração de existência.
Não sei até que ponto Sergio Buarque terá se interessado pelas ideias de Ludwig
Wittgenstein – ele tinha em sua biblioteca alguns livros do filósofo e um volume sobre
360

ele – mas acredito, como Pedro Meira Monteiro1, que ele teria encontrado no austríaco
um pensamento afinado com sua preocupação com as palavras, que se revela, para além
de sua vocação de crítico literário, em sua prosa, nem sempre fácil, mas que
normalmente exibe uma precisão que só pode ser o resultado de um cuidado quase
obsessivo. Suspeito que ele, que muito jovem se preocupava com o problema dos
poetas diante da felicidade, terá notado esta passagem 6.43 do Tractatus Logico
Philosophicus:

Se querer o bem ou querer o mal muda o mundo, isto só poderá mudar os limites do
mundo, nunca os fatos; nunca o que pode ser expresso na linguagem. Em suma, por isso,
o mundo deve em geral tornar-se outro. Deve, por assim dizer, crescer ou diminuir como
um todo. O mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes.2

Felizes ou infelizes, todos vivemos em meio aos mesmos fatos, mas vivemos
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naquilo que o primeiro Wittgenstein chama de “mundos” diferentes. O “mundo”, se


compreendo essas palavras, corresponde à organização de uma realidade material em
figurações que lhe dão uma textura semântica, isto é, o próprio ar onde respira a
existência pensante. Acredito que Raízes do Brasil representou para Sergio Buarque a
primeira formulação completa de um “mundo” brasileiro que, nos períodos anteriores,
ainda era mais ou menos desconhecido, ou melhor, não oferecia subsídios a uma visão
global da cultura, um plano cognitivo coerente a partir de onde fosse possível investigar
as suas manifestações. Foi operando a partir de dentro dele que Sergio Buarque se pôs,
nos anos seguintes, a estudar diversos assuntos da história e da arte brasileiras. Eu
destacaria aqui a poesia, pois me parece que o interesse de Sergio por ela partia da
noção romântica, já antecipada por Vico, de que os poetas são os verdadeiros criadores
do mundo humano, ao menos do mundo da inteligência. Mas, sob a rubrica de
“formas”, as formas que constituem “o essencial de todas as manifestações”, como se
leu no último parágrafo de Raízes – e não necessariamente formas linguísticas – as mais
variadas expressões da cultura podem ser abarcadas pelo “mundo” de Sergio Buarque.
Até, como em Monções e Caminhos e fronteiras, as formas da cultura material.

1
MONTEIRO, Pedro Meira. “Sergio Buarque de Holanda e as palavras”. In: Signo e desterro, cit.
2
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Companhia Editora
Nacional; EdUSP, 1968, p. 127.
361

Tomemos, muito rapidamente a título de demonstração incipiente, alguns textos


que Sergio Buarque publica após Raízes, começando por aquele que é talvez o primeiro
de maior ambição analítica, o “Prefácio literário” aos Suspiros poéticos e saudades de
Gonçalves de Magalhães, publicado em 1939. Nesse texto, Sergio aprofunda e revê a
avaliação do romantismo feita em Raízes, revelando uma estrita continuidade no estilo
de análise centrado na ideia de forma, e apontando para o estilo de história das ideias e
da literatura que ele praticará nos estudos postumamente publicados em Capítulos de
literatura colonial:

Ao lado de nosso romantismo e inseparável dele existiu no Brasil todo um cortejo de


formas e de ideias que convém pôr em relevo para a boa inteligência desse movimento,
mas que não pertence, em verdade, à história da literatura. Houve uma política, uma
sociedade, um clero obedientes à mesma inspiração que animou aquela escola de poetas,
e é explicável assim que tratassem de conformar aos seus ideais o nosso povo, enquanto
este foi matéria plástica e maleável.3
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Não convém, neste epílogo, analisar pormenorizadamente este texto infelizmente


subvalorizado na fortuna crítica da obra de Sergio Buarque. Apenas quero sublinhar
aqui o quanto ele continua a investigação de problemas que se anunciaram em Raízes,
especialmente no capítulo VI, e como ele emprega exatamente o mesmo tipo de
procedimento analítico. O parágrafo final desse estudo mostra como a avaliação de
Sergio mudou desde Raízes, de uma eminentemente negativa, para outra, mais
matizada:

O singular da trajetória do romantismo no Brasil está em que, partindo de uma


arrecadação confusa e erudita de fórmulas exóticas, ele se apurou, lenta mas
seguramente, despindo-se de todo o acessório, para ir dar um vigor novo às expressões
mais genuínas de nossa alma popular. É fácil censurá-lo por consequências às vezes
funestas que terá tido, não apenas na literatura, mas em outras manifestações de nossa
vida social. Discriminam-se sem esforço os vícios dessa atitude contagiosa que ele
representa, e pela qual os homens se extasiam ante a própria fraqueza, triunfam com a
própria derrota, descansam nos desejos não satisfeitos, conhecem a vontade apenas como
apetite ou como programa, o entusiasmo como grandiloquência, o amor como renúncia
ou como fantasia. Mas seria superficial e falso fixar em nosso romantismo, nascido em
1836 com a publicação dos Suspiros poéticos, unicamente os seus aspectos negativos.
Eles não explicariam, por si sós, como esse movimento literário chegou a atingir e a
definir tão exatamente algumas das realidades mais profundas e das riquezas mais
autênticas de nossa vida emocional.4

3
Suspiros poéticos e saudades, LP, p. 353.
4
Ibid., p. 370.
362

Mesmo com a mudança no julgamento sobre o romantismo, o parágrafo


supracitado, admiravelmente sintético e eloquente, parece quase uma versão reescrita
do fecho de Raízes do Brasil. Isso não deverá surpreender ninguém, ainda mais tendo
em vista que esse estudo de 1939 se dirige não somente à literatura, mas a todo aquele
“cortejo de formas” em meio ao qual se plasmou o povo brasileiro, enquanto ele foi
“matéria plástica e maleável”. Na elaboração desse texto, aliás, Sergio parece ter estado
muito mais preocupado com a história das formações mentais e discursivas na vida
brasileira – exatamente no caso das primeiras gerações já formadas no país
independente – do que com a poesia de Magalhães propriamente dita, da qual ele não
tinha um conceito muito alto. É neste texto, onde Sergio faz questão de ressaltar os
antecedentes do romantismo brasileiro na tradição lírica portuguesa, que vemos
aparecer pela primeira vez o conceito engenhoso do semeador e do ladrilhador que
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passará a encabeçar o quarto capítulo da segunda edição de Raízes, e que está


estreitamente relacionado às primeiras investigações de Sergio sobre o “realismo
português” exaustivamente dissecado em Visão do paraíso. Já aqui começa a pesar
sobre os portugueses a acusação de incapacidade para a fantasia desestabilizadora da
harmonia escolástica – a fantasia fáustica, como sugere a “invocação do diabo” que
Sergio atribui à poesia nórdica, mas que Oswald Spengler já associara ao Dom Quixote5
– que estaria entre as condições originadoras do pensamento moderno:

[É] certo que o lirismo português, embora comprazendo-se nesses estados, nunca os
levou ao ponto de uma dissolução total de personalidade, nem sequer depois do
romantismo — ao contrário do que sucede com frequência entre os poetas nórdicos —
e nisso revela bem que ainda pertence ao galho latino e mediterrâneo. Também não se
perde nos transes místicos ou nos desvarios metafísicos, que são, ao cabo, uma solução
para as desconformidades com o mundo. O poeta canta as suas desilusões, mas não quer
atrair tempestades, invocar o demônio ou fabricar o ouro. Perde-se na vida como ela é,
e se a vida lhe traz cuidados não trata de ajustá-la a uma ordem mental. A ordem que
aceita não é a que os homens compõem com esforço, mas a que fazem com desleixo e
abandono, a ordem do semeador, não a do ladrilhador. É também a ordem em que estão
postas as coisas divinas e naturais, pois que — já dizia Antônio Vieira — se as estrelas
estão em ordem, “é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor, não fez Deus
o céu em xadrez de estrelas...”6

5
Decline of the West, cit., p. 13, 101.
6
Ibid., p. 365.
363

Mais surpreendente do que essa continuidade na reflexão grosso modo voltada


para a história intelectual – o trecho supracitado, por sinal, foi incorporado à edição de
1948 de Raízes – é a penetração das categorias interpretativas e das ideias-mestras do
“mundo” de Raízes do Brasil numa análise da poesia de Manuel Bandeira, publicada
em 1940. Nesse texto, provavelmente o mais importante ensaio de crítica literária que
Sergio vai escrever no período em que atua como substituto de Mário de Andrade na
seção de crítica do Diário de notícias no começo dos anos 1940, Sergio faz uma espécie
de balanço da experiência poética modernista tomando Manuel Bandeira como o tema
principal, mas a título de contraste com o que lhe parecem ser as insuficiências do
modernismo. Essas serão encarnadas por dois dos poetas que estavam do “lado oposto”
ao seu em “O lado oposto e outros lados” – Ronald de Carvalho e Guilherme de
Almeida, que aqui passam por encarnações do “mau” modernismo. Vale notar como
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os termos em que ele vai destacar a excepcionalidade de Bandeira nesse contexto de


“revolta” contra a velha ordem no modernismo. Se, por um lado, a poesia de Bandeira,
voltada menos ao “coração” do que a “regiões menos exploradas da alma” – aquelas
que, lê-se em Raízes, o romantismo brasileiro não chegou a investigar – mostra certa
influência do simbolismo francês, Sergio destaca como o que o terá atraído àquele
movimento poético não fora um simples modismo, nem a “a riqueza verbal, a profusão
lírica, a prestidigitação, o pitoresco, as imagens raras”, e que seu lirismo não era
“produto de experiências de laboratório, mas vem, como toda verdadeira poesia, de
fontes misteriosas e íntimas, exigindo, para realizar-se, condições que não se podem
forjar arbitrariamente”. A educação poética que teria possibilitado a Bandeira dominar
a expressão desse fundo íntimo estaria em seu convívio assíduo com “a venerável
tradição lírica de Portugal” 7 . Note-se como a poesia de Bandeira representa quase
exatamente o contrário da descrição do tipo intelectual brasileiro que aparece em
“Novos Tempos” – desinteressado do estudo trabalhoso, afeito à incorporação
puramente superficial de fórmulas de pensamento estranhas, e ao mesmo tempo crente

7
Poesias completas de Manuel Bandeira”, EL,I, p. 277. Diário de Notícias, 6 out 1940. Este texto tem
três versões: as duas primeiras, quase iguais, são de 1940 (Diário de notícias, ) e 1944 (Cobra de vidro,
1a edição). A terceira, consideravelmente aumentada, apareceu na edição de 1958 de Poesia e prosa e
está reproduzida na segunda edição de Cobra de Vidro (1978). Uso aqui a versão reimpressa em EL, a
primeira.
364

na capacidade ilimitada do talento. É como se Bandeira fosse o poeta da “revolução”


que Sergio Buarque desejava, na qual a modernização seria condicionada pelo
profundo conhecimento da história da cultura, possibilitando uma conciliação com o
“fundo emocional extremamente rico e transbordante” da alma brasileira. No extremo
oposto dessa atitude estão os poetas que poderíamos chamar de “cordiais”, no pior
sentido possível, que também participaram do modernismo, mas para quem a
experiência de renovação poética nada mais significou do que a absorção de um novo
repertório de formas que possibilitavam aquela “atonia da inteligência” de que se falava
em Raízes. No caso de Ronald de Carvalho, a poesia assume um caráter estético
estritamente “visual”, onde o efeito poético é sempre procurado na imagem vistosa e
colorida:

Mas essa maior ou menor ênfase na revolta contra as formas consagradas, as formas
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convertidas em formas ou fórmulas, não é o suficiente para estabelecer a distinção entre


os dois autores [Bandeira e Ronald de Carvalho], marcando a posição particular de
Manuel Bandeira mesmo entre os seus companheiros de ideias. A própria concepção de
poesia diverge radicalmente de um para outro. Para Ronald de Carvalho, poesia é
principalmente estilização. Ele estiliza a natureza, de preferência a natureza já
domesticada, já “estilizada”, dos parques, das quintas, das praças ajardinadas. Um
besouro passa zunindo, uma araponga canta, um raio de sol cai reto sobre a relva, tudo
providencialmente, tudo no instante exato em que tais coisas se fazem necessárias ao
espectador para provocar o ambiente poético. A surpresa provocada, se assim se pudesse
dizer, é um dos principais elementos com que joga esta arte. Tudo é preparado para o
momento decisivo, tudo “posa” como diante de um fotógrafo.8

Em seguida, Sergio se lembra de Guilherme de Almeida, cuja poesia quer falar a


uma sensibilidade musical, mas que reproduz o mesmo formulismo artificioso e
“caprichoso” – palavra sempre posicionada estrategicamente em Raízes para
caracterizar o voluntarismo que envenena a vida intelectual brasileira – de Ronald. O
fim do parágrafo compõe, voltando a Ronald, com a imagem de uma “fruta verde” de
gosto “adstringente”, primário, que quer fere os sentidos e não o intelecto, associado a
certo tipo de sabedoria enganosamente “profunda”, quase uma descrição condensada
da análise da intelectualidade brasileira realizada nos capítulos V e VI de Raízes:

O nome de outro poeta ilustre ocorre insensivelmente neste passo, de um poeta que
utiliza algumas vezes os mesmos processos. Mas a semelhança é apenas superficial e
aparente: Guilherme de Almeida compõe musicalmente; o ritmo interior de sua poesia é

8
“Poesias completes de Manuel Bandeira”, EL,I, p. 279.
365

uma caprichosa melodia, que a dança das palavras acompanha. Ronald, ao contrário, é
antes um colorista. E entre ele e o mundo exterior intervém apenas a vontade de
estilização, “pura obra da inteligência discriminadora. A parte do artifício e deliberação
é empolgante, a do acaso, pouco mais do que nula. Nos intervalos de uma poesia que
quer ser matinal e inocente, que busca ferir o gosto como a polpa adstringente de uma
fruta verde, deparamos com meditações requintadas, de sabedoria sentenciosa e
asiática.9

O termo “asiático”, aqui empregado para caracterizar um estilo mental


tipicamente brasileiro, isto é, o daqueles entre os modernistas que, na opinião de Sergio,
não fizeram mais do que perpetuar a forma tradicional da poesia em roupagem nova,
não me parece casual. Lembro aqui da persistência, na obra madura de Sergio, da tese
do “orientalismo” da península Ibérica, indecisamente situada nas “fronteiras da
Europa”. Tese lançada em Raízes do Brasil, mas reeditada mais tarde num texto que
mereceria ser mais estudado. “Asiática”, porque plasmada em meio a influxos
mouriscos e hebraicos, é também, em boa medida, a mentalidade ibérica que Sergio
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Buarque vai descrever em sua dissertação de mestrado, Elementos formadores da


sociedade portuguesa na época dos descobrimentos, defendida em 1958 na Escola de
Sociologia e Política de São Paulo. Vários trechos poderiam ser invocados aqui, mas
reproduzo dois que se complementam a meu ver de forma especialmente pungente.

A íntima repulsa que, quase sem exceção, suscitavam os portugueses e espanhóis nos
visitantes quinhentistas, quando estes, ao visita-los em suas terras, tinham com eles
maiores ocasiões de convívio, assemelhava-se muito, em todo caso, à espécie de
idiossincrasia que a muito europeu tornou sempre intolerável o comércio e as
comunicações dos orientais, apesar do fascinante mistério que pode proporcionar sua
velha civilização. E não seriam essas mesmas afinidades asiáticas das populações
ibéricas, mais patentes, sem dúvida, no século XVI do que em nossos dias atuais, que
tinham em conta, mesmo involuntariamente, os que se serviam contra eles dos apodos
de judeu e marrano?10

Logo mais, Sergio vai traçar uma analogia entre essa “íntima repulsa” e aquela
que o poeta romano Juvenal alimentava pelos gregos que vinham para a sede do
Império exercer as mais variadas profissões, todas elas ligadas ao realce das aparências
e passíveis de serem tomadas por “parasitárias”. Através desse símile, Sergio

9
Ibid., p. 279-80.
10
EF, p. 120.
366

caracteriza a visão que povos da Europa central teriam desenvolvido sobre a península,
na época em que ela ganhava uma preponderância inédita na cristandade latina:

O fato [...] é que, maneirosos, os primeiros [os castelhanos] por honrados, galantes ou
cortesãos, estes [os gregos] por lisonjeiros; palradores, cada qual a seu jeito; dados, uns
e outros, a intrincados pleitos e demandas ou a misteres parasitários e de pouco peso, ou
ainda se preciso, a se fazerem homens de muitos instrumentos (de modo que o gréculo
do ano 100 ou 120 de nossa era se improvisava sem dificuldade em gramático, retor,
geômetra, mentor, massagista, áugure, funâmbulo, médico ou mágico, mais ou menos
como o pícaro dos tempos dos Filipes), rufiães incorrigíveis e muito afeitos, igualmente,
a amores fáceis, tanto que, segundo o caso e a época, se comprazem em folgar com suas
bárbaras lobas, de mitra multicor – a picta lupa barbara mitra do satírico—ou com gente
de raça daquelas mil españolas que saben hacer maravillas, mencionadas na Lozana
Andaluzi de certo Francisco Delgado, médico e literato espanhol que morou em Roma
entre 1523 e 1527, aproximadamente, podiam impressionar quase de forma idêntica,
apesar de diversos, por certos traços que têm em comum: o gosto das demonstrações
exteriores, dos cerimoniais, da improvisação rápida, dos requebros, das facécias, do
dizer arguto ou empolado e propriamente asiático, de todos os artifícios, enfim, que
ajudam a dissimular, e não raro dissimulam, um perfeito vácuo espiritual.11
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O “vácuo espiritual” onde Sergio Buarque sugere aqui se mover o espírito


castelhano era provavelmente, na sua opinião, ainda mais deserto no caso dos
portugueses, como se lembrarão os leitores de Visão do paraíso, livro muito pouco
generoso com os portugueses, onde o historiador se compraz em ridicularizar as
agudezas com que o frade lisboeta Antonio do Rosário desfia seus elogios às Frutas do
Brasil12, e de relatar anedotas sobre a credulidade portuguesa, que em pleno Século das
Luzes não oferecia objeções de bom senso a quem propusesse que de um ovo – mas só
se fosse um ovo de galo – poderia nascer um basilisco13. Onde estaria a origem desse
juízo tão negativo? Haveria uma visão global que integrasse esse estilo de pensamento
com uma explicação histórica mais abrangente, para além da tese, em Visão, da
persistência do “pedestre realismo” de origem escolástica no pensamento português?
Seria preciso estudar detalhadamente a obra madura de Sergio, especialmente
Elementos e Visão, estudos cuja finalização, se não a escrita, se deu na mesma época,
em 1958, só o segundo tendo sido publicado. Ainda assim, gostaria de oferecer um
esboço de hipótese.

11
EF, p. 122.
12
VP, p. 263-8 (241-5).
13
VP, p. 223-5 (204-6).
367

Uma das principais teses defendidas em Elementos formadores da sociedade


portuguesa na época dos descobrimentos é aquela, já lançada em Raízes, de que o
“caráter de feitorização” da colonização brasileira a aproximava da forma de
expansionismo marítimo praticado pelos antigos fenícios e gregos 14 . Uma das
consequências disso é um espelhamento orgânico, uma simpatia básica entre as formas
de vida das sociedades metropolitana e colonial, que, ao menos num momento inicial,
não são tão diferentes quanto se poderia pensar: “assim como [nas colônias] irão eles
reproduzir quase naturalmente e sem mudança alguns traços distintivos da vida da
metrópole, ali também, em sua pequena pátria europeia, cria-se como uma breve
epítome dos mundos explorados pelos seus homens.” 15 Menos do que um Império
articulado numa clara hierarquia entre metrópole e territórios coloniais, surge a imagem
de uma membrana transoceânica organicamente articulada pelas rotas de navegação,
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ocupada em extrair parasitariamente a riqueza de territórios do interior por meio de


feitorias costeiras bem fortificadas. Esse organismo de feição “talássica” nada tinha da
“vontade humana, criadora e organizadora, independente, em todo caso, das condições
naturais” que davam corpo e animavam as “formas de organização política, religiosa,
militar e intelectual” que engrandeciam Castela e seu império aos olhos dos europeus16.
Em contraste com a expansão castelhana, marcada pela audácia insana de Cortez e
Pizarro, e pela rápida edificação de cidades nos territórios conquistados, o ânimo que
teria presidido a contraparte portuguesa era eminentemente acomodatício e
conservador. Só muito a contragosto, e quando já não havia alternativa, caso não se
quisesse abandonar as terras feitorizadas a potências concorrentes, a coroa portuguesa
passou a de fato ocupar permanentemente suas possessões ultramarinas. E mesmo
depois disso, insistiu, até a descoberta das Minas Gerais, em restringir a colonização à
fralda do mar. Essa mesma atitude não seria uma originalidade portuguesa, mas uma
simples adaptação “natural”, espontânea, de métodos de exploração mercantil
consagrados pelas cidades-estado italianas, com precedentes na antiguidade, como se
vai ler no capítulo conclusivo de Visão do paraíso:

14
RB, p. 80, 66.
15
EF, p. 12.
16
EF, p.. 104-5.
368

[N]ão se há de crer que a preferência atribuída ao povoamento litorâneo significasse o


fruto de uma política sabiamente dosada e calculada em todos os seus pormenores.
Melhor seria dizer-se que se impôs naturalmente, por isso que era corrente, até então e
desde remota antiguidade, entre os povos colonizadores. Tendo iniciado muito cedo sua
expansão oceânica, Portugal encontrou pronta a fórmula já praticada entre esses povos,
não apenas através de grande parte da Idade Média, mas até na antiguidade clássica. Só
lhe cabia aplicá-la, na medida em que ela era aplicável em seu campo de ação cada vez
mais amplo. E está aqui um dos lados do conservantismo que caracteriza largamente a
ação colonial portuguesa.17

Eloquente no sentido da metropolização das formas de vida “coloniais” é a


descrição que Sergio faz, já num dos capítulos finais da obra, da Lisboa quinhentista.
Sergio cita fontes coevas que afiançam que em 1552 trabalhavam na capital lusitana
doze corretores de escravos, mais sessenta “tratantes” dedicados ao mesmo comércio.
Pela mesma época, grande parte dos serviços de limpeza na cidade seria desempenhada
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por escravizados africanos: mil e quinhentas negras lavavam roupas, outras mil
limpavam as ruas, “onde os moradores tinham o costume de despejar todas as
imundícies caseiras”; ainda outras mil levavam água aos domicílios; já as “negras de
pote”, em torno de quatrocentas, vendiam mariscos, arrozes e doces; duzentos
“moleques” “empregavam-se em fazer recados”. Sergio faz questão de explicitar sua
tese de que esses seriam indícios de uma contiguidade de forma social em todo o espaço
luso-colonial: “a cidade oferecia o aspecto que têm, para os nossos de hoje, as
povoações ultramarinas, onde entre os brancos abundam a gente de cor”18. Logo mais,
Sergio cita um dado relatado por João Lúcio de Azevedo, a ser tomado com alguma
suspeita, segundo ele, pois os relatos são de estrangeiros e não de portugueses, ou,
quando muito de portugueses alarmados com as mudanças que estão narrar, isto é, o
simultâneo influxo de populações de cor e o êxodo dos nativos para o ultramar. De todo
modo, ele considera válido lembrar que Azevedo estima a proporção de escravizados
para homens livres em Lisboa, em meados do século XVI, em por volta de um décimo
da população (pouco mais de nove mil numa população total de cem mil). No reino
como um todo, essa proporção baixaria, estimando-se o número de escravizados em
aproximadamente quarenta mil. A fração escravizada da população reinol teria

17
VP, p. 361 (328).
18
EF, p. 133-4.
369

começado a minguar a partir da segunda metade do século XVII 19 , quando ocorre


aquilo que Sergio vê como a europeização de Portugal, dando-se o progressivo – e às
vezes deliberado – apagamento dessa fase “oriental” de sua história. De todo modo,
sobre o período que lhe interessa, Sergio ressalva que as proporções de escravizados
na população global teriam sido muito maiores na América portuguesa. Mesmo assim,
insiste em sublinhar a excepcionalidade do caso português entre as sociedades
colonizadoras da Europa. “Nada disso altera muito [...] um fato indiscutível”, escreve
ele, depois de apresentar suas ressalvas, “o de que em Portugal prevalecia então uma
condição verdadeiramente singular para o mundo europeu no que concerne à
hospitalidade oferecida a gente de todas as castas e origens, a tal ponto que a cidade de
Lisboa, nas palavras de um contemporâneo italiano, chegava a representar una mistura
da non ritrovarne l’origine...”20
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Outra tese de Elementos é a de que, em parte devido ao enraizamento do


escravismo no reino, em parte pelo empenho em se diferenciar de judeus e mouros, a
burguesia portuguesa teria incorporado uma “ética de fidalgos” incompatível com as
virtudes econômicas que possibilitariam o desenvolvimento de um capitalismo
moderno. No mesmo momento em que definhava na Europa o feudalismo, no contexto
da expulsão de mouros e judeus, os portugueses começam a se “fazer de godos”, a
idealizar as virtudes cavalheirescas, a cultivar a mania da “limpeza de sangue” e a
praticar virtudes guerreiras, “de uma espécie que se diria antes predatória do que
produtiva”21. Daí adviria a debilidade da estrutura produtiva lusitana, assim como a
vaidade das tentativas de remediar a situação, como os incentivos governamentais às
manufaturas domésticas:

Apesar de tudo, não foi só a míngua das boas intenções e da pertinácia dos poderosos
que acabariam falhando tão completamente todas essas tentativas, mas em parte, talvez,
devido à tendência inveterada do povo, e animada pelo hábito dos largos proveitos
tirados do tráfico ultramarino ou, muito antes disso, das entradas em terras de mouros,
para se retirar do menor esforço a maior vantagem. A predileção impaciente pela
quantidade em prejuízo de outras virtudes – mais um traço próprio da produção colonial,
essencialmente quantitativa – existiu, é claro, em todas as terras e em todas as épocas.
Mas não é talvez por acaso se em Portugal, por exemplo, e não menos o Brasil, ela seja

19
EF, p. 135.
20
EF, p. 135-6.
21
EF, p. 123-5.
370

constantemente mencionada entre as causas mais decisivas do mau sucesso de inúmeros


empreendimentos destinados não só ao progresso das manufaturas, como ao manejo das
matérias primas.22

Mesmo os produtores rurais sucumbiam essa mentalidade, como atesta o caso


impressionante dos criadores de ovelhas que as faziam tosquiar na chuva, mesmo
sabendo que a prática arruinava o produto, para aumentar o preço da lã, ou dos que,
com o mesmo fito, punham pedras nas caixas. Em ambos os casos, era difícil imaginar
que compradores ingleses, que reconheciam a qualidade da lã portuguesa, se
animassem a estabelecer uma relação comercial duradoura com fornecedores dessa
índole. Sergio não perde, aliás, a oportunidade de sugerir uma afinidade entre essa
disposição predatória e a poesia épica lusa:

Os mesmos que acusaram tantas vezes aos antigos portugueses de pouca aptidão e tino
mercantil não deixaram de acusá-los dessa espécie de cobiça sôfrega, que,
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desacompanhada de certas qualidades de exatidão, previdência, temperança e


pontualidade, está longe de ser, rigorosamente, uma virtude econômica. Num plano
muito elevado essa cobiça, unida ao afã de glórias, pode estar à origem dos feitos que
mereceram a tuba alta e clangorosa dos Lusíadas.23

O parágrafo final da dissertação reafirma a convicção que Sergio tinha de que


esse quadro é muito mais assemelhado ao Brasil, ao menos ao Brasil que veio a ser
depois, do que ao Portugal progressivamente “europeizado” ao longo dos séculos:

Todos esses aspectos, por onde Portugal parece destoar do concerto europeu – o emprego
em vasta escala do braço escravo; convivência e assídua mescla com povos das mais
várias origens; inexistência ou inoperância da classe média como tal; vida econômica
apoiada, de modo predominante, na exportação de matérias primas e importação de
artigos manufaturados; valor soberano atribuído, na produção, ao simples critério
quantitativo – , fazem-no, já à época dos grandes descobrimentos marítimos, uma
espécie de compêndio e antecipação do que hão de ser as terras no Novo Mundo
povoadas e exploradas pela sua gente.24

Acredito que um dos fatores que explicam o fato de Sergio Buarque ter defendido
este texto quase ao mesmo tempo em que Visão do paraíso – lembre-se, aliás, que o
capítulo final de Visão, “América Portuguesa e Índias de Castela”, contém boa parte
do primeiro (sem título) de Elementos, sem alterações significativas – terá sido a

22
EF, p. 141-2.
23
EF, p. 142.
24
EF, p. 145.
371

convicção de Sergio de que esse quadro social estava intrinsecamente ligado ao


“realismo” português, que nada mais seria do que a forma social descrita em Elementos
traduzida para o plano da (falta de) imaginação. Incapaz de entrelaçar produtivamente
experiência e fantasia, incapaz de criar mitos, a inteligência portuguesa manifestava
sua excelência na servil descrição de uma realidade desprovida de maravilha, onde o
máximo de fantasia permitido se dava na interpretação figural da natureza como codex
vivus – daí as minuciosas e exuberantes meditações sobre frutas e outras banalidades.
Daí, também, a insistência da tradição lírica luso-brasileira na elaboração de painéis
detalhados da psicologia individual, geralmente corporificada em quadros
melancólicos ou até rancorosos, desiludidos de uma vida que não presta, onde, como
no soneto VIII de Cláudio Manuel da Costa, exaustivamente interpretado no estudo
biográfico inacabado quer Sergio escreveu sobre o poeta, “tudo cheio de horror se
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manifesta”25. Retorno ao prefácio de 1939 a Suspiros poéticos e saudades:

Uma atenção exata e dócil acompanha toda a sinuosidade dos sentimentos; as efusões
do coração, as evocações ternas e sombrias, as aspirações malogradas, os cuidados, as
imaginações e os desenganos acham-se compostos não como na arte clássica, em uma
construção pura e impessoal, mas antes em uma paisagem agreste de emoções
individuais. O anedótico não é deliberadamente omitido em proveito de um conjunto, de
um esquema: nada chega a ser acessório. Nisso a poesia lírica portuguesa recorda um
pouco as frontarias prolixas em ornamentos e arabescos que exibem certos edifícios da
Índia e do Iucatã, onde o artista não se teria deixado levar tanto pelo horror ao vazio,
como sugeriu alguém, quanto pela renúncia a sujeitar o mundo das formas a uma
estrutura simplificada, imposta pelo raciocínio ou às vezes pelo mero bom senso. E não
é acaso, certamente, se na Europa o espírito engenhador dessa espécie de monstros, em
que a arquitetura quase se converte em música, nunca esteve tão perto de realizar-se
como em Portugal, no manuelino.26

Se alguma forma de vida pode servir de metáfora para esse estilo de poesia
completamente absorvido pela servil descrição de uma vida mental puramente passiva,
que frui o mundo com abandono e sem vontade, alheio a todo intento ou esforço que
tenha por fim algo além do mínimo necessário para sua reprodução vital, creio que ela
teria de vir do reino vegetal. Mas não seria a árvore, que estamos acostumados a ver
como a própria encarnação da vida e da finalidade dos processos orgânicos, mas
alguma formação orgânica parasitária. Estão aliás muito próximas da descrição acima

25
CLC, p. 293-330.
26
LP, p. 362-3.
372

reproduzida do “mundo” da lírica lusa as observações que Sergio Buarque faz sobre o
realismo tardo-medieval que teria marcado os relatos portugueses sobre o Novo Mundo
recém-achado, no século XVI. Longe de significar uma mentalidade precursora do
pensamento moderno, ela denunciaria uma incapacidade de racionalização, entre cujas
causas estaria uma escassa disposição para a “fantasia”, essa própria um requisito ao
pensamento conceitual e ordenador da realidade:

Aquela visão relativamente plácida das terras descobertas que se espelha nas descrições
de seus viajantes já se ressente, por menos que o pareça, de um conservantismo
fundamental. Nas primeiras páginas deste livro pôde ela sugerir a lembrança dos artistas
medievais e especialmente de fins da Idade Média, “atentos ao pormenor, ao episódico,
avessos quase sempre a induções audazes” em contraste com o “idealismo, a fantasia, e
ainda o senso de unidade dos próprios renascentistas”. Poderia recordar-se ainda o que
um historiador moderno da curiosidade “terrena” que fornece aos historiadores da
mesma época matéria para suas descrições miúdas, nítidas, animadas de extraordinário
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escrúpulo e fidelidade na reprodução dos fatos, e onde a adesão ao mundo sensível


parece, ainda e sempre, de cunho antes sensitivo do que verdadeiramente conceitual,
mais imediato do que reflexo, limitado por isso ao particular e ao anedótico.27

A poesia, a literatura, mas também o pensamento em geral, exprimem, para


Sergio Buarque, uma realidade existencial dotada de uma lógica orgânica própria e
perpassada por estímulos e condicionamentos externos, formando um “mundo” aberto
à investigação filológica, sociológica e historiográfica ao qual ele esteve
constantemente atento desde a publicação de Raízes do Brasil. No ano seguinte à
publicação de seu estudo sobre Gonçalves de Magalhães, Sergio emitiu, a propósito da
poesia da época de Álvares de Azevedo, um juízo que me parece adequado para
concluir este estudo. Pensando no “prazer puramente passivo” que terá presidido a
composição e a recepção daquela poesia entorpecente, que entretém “certa inércia do
espírito e uma capacidade de abandono”, Sergio Buarque escreveu: “Cada público tem
efetivamente o lirismo que merece”28.

27
VP, p. 346-7 (315-6).
28
“Fagundes Varela”, EL, I, p. 295. Texto originalmente publicado no Diário de Notícias, 20 out 1940.
373

Bibliografia
Obras de Sergio Buarque de Holanda

LIVROS

Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936 [1948, 1956].

Cobra de vidro. São Paulo: Perspectiva, 2012 [1944, 1978].

Monções. São Paulo: Companhia das Letras, 2014 [1945].

Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 [1957].

Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos.


Dissertação de mestrado. Escola Livre de Sociologia e Política, São Paulo, 1958.
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Visão do paraíso: Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do brasil. São


Paulo: Brasiliense, 1996 [1958, 1959, 1969].

A época colonial: Administração, Economia, Sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2003 [1960] (História Geral da Civilização Brasileira, t. I, v. 2)

Do império à República. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992 [1972]. (História Geral
da Civilização Brasileira, t. II v. 5)

Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979.

ARTIGO EM JORNAL

NB.: Para não tornar excessivamente longa e redundante a lista de textos de Sergio
Buarque e, com isso, esta bibliografia, indiquei em rodapé, à medida que foram citados,
a procedência original dos artigos, deixando aqui somente a chamada para as coletâneas
onde eles estão reunidos, que foi, afinal, na maioria das vezes, minha fonte para
consulta. Estou ciente da existência de textos que não constam de nenhuma das
coletâneas mais importantes das colaborações de Sergio Buarque na imprensa (A saber,
O espírito e a letra, Escritos coligidos, Por uma nova história, Raízes de Sérgio
Buarque de Holanda e Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas) nem das duas
coletâneas publicadas por Sergio Buarque (Cobra de vidro e Tentativas de mitologia);
todos os que cheguei a descobrir são das artigos em jornal da década de 1950. Não tive
ocasião de citá-los neste trabalho. De todo modo, quase todos os textos citados podem
ser consultados separadamente na página online da Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional, acessível no endereço eletrônico http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx.

A formação da sociologia brasileira. Diário de notícias, 9 nov 1941.


374

CONFERÊNCIAS

O Brasil na vida americana. In: Vários autores. O Novo Mundo e a Europa. Texto
integral das conferências e dos debates. Sintra: Edições Europa-América, 1969, p. 59-
79

História. Palestra proferida no Centro de Estudos Históricos Afonso Taunay,


Universidade de São Paulo (CEHAT-USP) (1967-1969). Revista do IEB, n. 70, ago
2018, p. 316.

COLETÂNEAS DE TEXTOS DE SERGIO BUARQUE PUBLICADAS POSTUMAMENTE

PRADO, Antonio Arnoni (Org.). O espírito e a letra. Estudos de crítica literária. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996 (2 volumes).

COSTA, Marcos (Org.). Escritos coligidos. São Paulo: Ed. UNESP; Fundação Perseu
Abramo, 2004 (2 volumes).
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HOLANDA, Sergio Buarque de. Livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.

MELLO E SOUZA, Antonio Candido de (Org.). Capítulos de Literatura Colonial. São


Paulo: Brasiliense, 1991.

MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio Buarque de Holanda:


Perspectivas. Rio de Janeiro; Campinas: EdUERJ; Ed. UNICAMP, 2008.

MONTEIRO, Pedro Meira (Org.). Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:


Correspondência. São Paulo: Cia das Letras; IEB; EdUSP, 2012.

Sobre Sergio Buarque de Holanda

RESENHAS DE RAÍZES DO BRASIL NA IMPRENSA BRASILEIRA E PORTUGUESA, 1936-8,


COLIGIDAS EM ÁLBUM POR CECILIA BUARQUE DE HOLANDA (ARMAZENADO NO FUNDO
SERGIO BUARQUE DE HOLANDA, SIARQ- UNICAMP)

AMORIM, António. “Raízes do Brasil”, Publicação não identificada, s. d.

BARRETO, Plínio. “Livros novos”. Publicação não identificada, s.d.

CORREIA, J. Alves. “Livros e Periódicos”, Seara Nova, s. d.

COTRIM NETO, Alberto. “Raízes do Brasil”. A Ofensiva, 7 fev 1937.

LEÃO, Múcio. “Registro literário”. Jornal do Brasil, 7 nov 1936.


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LEONARDOS, Henry. “Raízes do Brasil”, publicação não identificada, s.d.

LOPES, Álvaro Augusto. “À margem dos livros”. A Tribuna (Santos, SP), 9 nov 1936.

MATOS, Norton de. “Raízes do Brasil”, O Primeiro de Janeiro (Porto), 05 e 12 nov


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FORTUNA CRÍTICA ESPECIALIZADA

CARVALHO, Marcus Vinicius Corrêa de. Outros lados. Sergio Buarque de Holanda:
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COSTA, Iná Camargo. Sergio Buarque, o “Homem Cordial” e uma crítica inepta.
Outras palavras, 11/05/2018. Texto disponível em:
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inepta/. Último acesso em 19/07/2020.

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Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sergio Buarque de Holanda: Perspectivas.
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