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CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Não sei se para todos, pelo menos para mim, essa é uma das partes mais
aguardadas da escrita de qualquer trabalho, por duas razões óbvias. A primeira,
porque indica que mais uma etapa foi concluída; a outra, porque é hora de
prestarmos contas àqueles que realmente estiveram conosco durante o processo.
Penso também que este é um espaço de celebração, de memória, deixando claro
que ausências foram por mero esquecimento, não por apagamento. Vejamos.
Do lado familiar, sou imensamente grato aos meus pais, Iuçá e Graça,
que ainda hoje não sabem exatamente do que trato em minhas pesquisas, mas
compreendem a sua importância para a formação humana e cidadã. Agradeço
também às minhas irmãs, Fernanda e Beatriz, pela preocupação constante e pela
amizade.
Ao meu primo Alexandre agradeço pelas conversas, viagens culturais,
aulas sobre rotas latino-americanas, museus e lugares de visitação mundo afora e
aos parentes distantes, Bezego, Neide, Isabel e Nivaldo (in memoriam).
Durante a última década a família cresceu e por isso mesmo agradeço
acima de tudo à Giselle, mãe da Lara, minha esposa e companheira, que com sua
amizade, carinho e excessiva paciência, compartilhou por dentro todo este processo.
Aos meus sogros, Silvio e Lea, o meu mais sincero obrigado, sobretudo por
cuidarem da nossa Larinha em momentos de ausência minha e da Giselle por
motivos de escrita e trabalho. Agradeço ainda ao bisavô da Lara, Seu Jaime, que
recém nos deixou, já centenário. Figura exemplar, que além de músico, poeta,
memorialista e escultor, foi um humanista em tempos de indiferença e presentismo
constante.
Ainda por esses lados, deixo minha gratidão à maravilhosa Profa. Dra.
Maria das Graças Dias (in memoriam) e aos seus filhos e queridos amigos, Túlio e
Michelle, bem como aos seus companheiros, Cristy e Edu; à Márcia, ao Gian, Lucas,
Júlia, Jana, Juliano, Renata e aos demais amigos desse grupo.
Na Unicamp, agradeço de forma muito especial ao professor Dr. Edgar de
Decca, que além de uma orientação precisa durante esses anos, me abriu
perspectivas de mundo a partir de sua experiência acadêmica, me instigando, a
cada encontro ou troca de e-mails, a ter o protagonismo de um pensamento crítico e
livre de quaisquer amarras.
Na Itália, durante os meses em que lá estive, agradeço ao professor Dr.
Ettore Finazzi-Agrò pela recepção e aprendizado obtido na Universidade de Roma.
Por seu intermédio, estabeleci amizade, mesmo que a distância com o professor da
Universidade de Bologna, Dr. Luca Bacchini, a quem também agradeço pelas
profícuas conversas.
De volta à Unicamp, agradeço a todo o grupo da Olimpíada Nacional em
História do Brasil, coordenada pelas professoras Dra. Cristina Meneguello e
Alessandra Pedro (Leca); ao Bruno Terlizzi, que por inúmeras vezes me recebeu em
sua casa de Barão Geraldo, local agradável e de ótimos momentos; à Jussara
agradeço a amizade e as trocas acadêmicas constantes; à Clécia e ao Mauro pela
amizade e por também terem aberto a sua casa para me receberem inúmeras vezes
no último ano, tornando a vida em Barão Geraldo muito mais leve, bem como ao
Érito, pelas longas e agradáveis conversas nos bares do centrinho. Agradeço a
dedicação dos professores Dr. Carlos Berriel e Dra. Maria Stella Bresciani pela
leitura atenta da primeira versão desta tese, pelas valiosas críticas concedidas
durante o exame de qualificação e por aceitarem o convite para a defesa. Agradeço
ainda aos maravilhos profissionais do Arquivo Central da Unicamp, representados
por Telma Murari e Neire Rossio.
Ainda em Campinas, agradeço ao “acaso” por ter convivido o ano inteiro
de 2010 na inesquecível casa da Rua Plínio Aveniente, 88, ao lado dos amigos
Vinícius (Moscão), Carlos Alberto (Carlão), Deivison, Alisson, que era “agregado”,
Marcelo Mac Cord e Dani Pistorello, que volta e meia por lá batiam ponto. Esse
grupo quando pode ainda se encontra em bares, eventos, acadêmicos ou não,
mundo afora. Raro hoje é estarmos todos. Mas já pudemos matar a nostalgia em
Campinas, Belo Horizonte, Paris, São Paulo, Coimbra, Rio de Janeiro, Florianópolis,
Brasília. As lembranças dessa casa constituem um de nossos marcos biográficos.
Tempos em que se pedia gelo no vizinho e as "únicas" responsabilidades eram dar
vida à ideia abstrata de uma tese, escolher a cerveja mais barata no mercado para
regar as longas sessões “psicanalíticas" na cozinha de casa, enquanto alguém,
nunca eu, preparava a comida, ou pagar em dia o oneroso aluguel de Barão
Geraldo. Não poderia existir um grupo mais harmônico do que esse!
Em Brasília, onde resido atualmente, não posso esquecer de agradecer
aos amigos para toda hora Alexandre e Luciana, agora na companhia do José, que
nasceu junto com o término da tese. Aqui também sou grato ao Deda e à Vanessa,
pela amizade, pelas peixadas, sem duplo sentido por estarmos na capital, e por
cuidar de nossa casa nos longos períodos em que estivemos ausentes; ao Rodrigo e
à Lili, amigos da UFSC, que anos atrás me receberam e me abriram as portas dessa
cidade tantas vezes fria.
Agradeço muito aos amigos de mais de três décadas, Juliano, Fábio,
Pablo, Cícero, Júnior, Thiago, Murilão, Silvinho e às suas respectivas famílias,
agregados, filhos, companheiras. Da UFSC, onde passei muitos anos, agradeço a
amizade sincera do Camilo, Marcão, Disma e Karlinha, Lagarto (Prof. Dr. Rafael da
Cunha Schaefer), Maíra, Marcelo, Juliana Vamerlati, responsável pela revisão do
texto, Juan (Bolívia), Karla, Juliana Sartori, todos muito presentes, uns mais, outros
menos, ao longo de mais de uma década.
Agradeço ainda aos meus “velhos" professores, Dr. Paulo Pinheiro
Machado, Dr. Adriano Luiz Duarte, Dr. João Klug e a Dra. Maria de Fátima Fontes
Piazza, interlocutora em tempo integral desta tese. Agradeço aos demais membros
da banca, professores Dr. Sérgio da Mata, Dra. Luciana Heymann, Dr. Jeferson
Cano e Dr. Rui Rodrigues por aceitarem, de prontidão, o convite.
Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa no Brasil e à
Capes pela Bolsa-Sanduíche no exterior, sem as quais o trabalho investigativo e a
redação não seriam possíveis.
“Parte substancial de nossos literatos, isto é,
de nosso público escritor e leitor de livros,
satisfaz suas necessidades religiosas
exclusivamente na forma de
culto ao gênio”.
The intellectual and biographical trajectory of Sérgio Buarque de Holanda has been
recounted with a linear and memory-based bias from the 1980s onward. In general,
this approach, which connected Sérgio’s modernist past with the mature militant of
the Worker’s Party (Partido dos Trabalhadores) and of the left at the end of his life
was constituted by a bias toward the exceptionality of the personage, still seen today
in academic publications and events which give it support. Based on this verification,
this thesis recounts the history of Sérgio Buarque de Holanda through the
perspective of memory and the sites at which it was registered and propagated
according to the understanding that at these sites we can perceive its material,
symbolic and functional dimensions. This is how we find Sérgio Buarque registered in
memorial texts, funeral speeches, books, events, streets, libraries and archives, a set
of sites of acclaim created by a specific group of scholars aiming to shape him to the
will of their memory. In this operation the erasing of political traces of Sérgio Buarque
was intentional, these being more connected to the educational and pedagogical
fields than to the old combating left as some of the official commentators currently
insist upon. Finally, this thesis also seeks through the “archive approach”, material
and functional support of this memory, to show that Sérgio Buarque de Holanda
constituted himself, in the keeping of his printed legacy, as a character of himself,
feeding the official and linear version of life exposed at these different sites.
Introdução ................................................................................................................... 1
Introdução
Centro por cinco anos, a escolha do nome de Sérgio se deu pelo fato de ele ter sido simultaneamente
um dos grandes historiadores do país e um dos fundadores do partido, num momento em que o
grosso da intelectualidade de esquerda ainda apostava em outras alternativas políticas, como o setor
"autêntico" do MDB ou o PCB. Levou-se em conta ainda as relações muito próximas entre Fundação
Perseu Abramo e a direção do PT com a família Buarque de Holanda, em especial a viúva, dona
Maria Amélia, presente na inauguração do Centro. Essas informações me foram dadas pelo próprio
Alexandre Fortes por e-mail em 31 de agosto de 2012. Para maiores detalhes sobre o acervo ver:
FORTES, Alexandre. Construção de acervos e memória da esquerda: a experiência do Centro
Sérgio Buarque de Holanda. (Mimeo.).
3
mas todo o clã. O filme conta com belos depoimentos da esposa, filhos, netos de
Sérgio e também de alguns daqueles autores de que lhe falei antes, como o Antonio
Candido. Para quem não leu "Raízes do Brasil” inteiro, o filme apresenta algumas
passagens do livro, como aquela que exprime a nossa identidade e ficou muito
famosa, que fala da alegria do brasileiro, de que a gente é cordial e tal!2
Grosso modo, para quem não é especialista na obra de Sérgio Buarque,
esta é a imagem corriqueira que passou para a memória histórica quando se trata de
falar do “maior dos nossos historiadores”. Foi a partir dela que, durante os tempos de
graduação (1999-2003) na Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, por
exemplo, imaginando a vida perfeita dessa personagem, redigi um trabalho de
conclusão de curso reproduzindo inocentemente pari passu, os ensinamentos
daqueles estudiosos citados. Como ousar questionar tamanha autoridade e lugar de
enunciação? Com exceção de uns poucos capítulos de “Raízes do Brasil”, quase
sempre "O semeador e o Ladrilhador" e o "Homem Cordial”, lidos em uma ou outra
disciplina, o que nos chegava das obras de Sérgio era uma edição de “Visão do
Paraíso” em capa dura, editada em 2000 pela “PubliFolha” que compunha a
"Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro”.
Anos mais tarde, no intuito de preparar o projeto de doutorado, cursei
como aluno ouvinte no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, uma
disciplina chamada “História Intelectual e os Estudos de Epistolografia”. Ministrada
pela professora Maria de Fátima F. Piazza, as discussões giravam em torno de
temas como “escrita de si”, biografia/autobiografia, composição de arquivos pessoais
e a possibilidade de abordagem das cartas como objeto/fontes de pesquisa. Durante
as leituras, que envolviam ainda teses e dissertações sobre intérpretes “menos
famosos”, algumas em especial nos deram a deixa para a ideia central da tese que
agora apresentamos.
2 Obviamente o personagem fictício se vale de uma leitura às avessas do conceito cunhado por
Sérgio Buarque em seu livro de estreia. A constituição desse documentário foi devidamente
problematizada em um artigo que aponta o filme como sendo a materialização imagética de um texto
biográfico de 1979, “Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarque de Holanda”, escrito por
Maria Amélia Buarque de Holanda para o lançamento da edição venezuelana de “Visão do Paraíso”.
Sua conclusão é que, dotados, ambos, de um modo de narrar tradicional e cronológico, acabam por
monumentalizar o sujeito biografado com o intuito de impor um sentido unívoco ao devir da memória
de Sérgio Buarque. CARVALHO, Raphael Guilherme de. A biografia entre o cinema e a história:
modos tradicionais de narrar na memória de Sérgio Buarque de Holanda. In: Revista Ágora (Vitória),
v. 7, pp. 1-20, 2011.
4
3 Essa tese encontra-se publicada com a seguinte referência: GONTIJO, Rebeca. O velho
vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro:
7 Letras, 2013.
4 VENÂNCIO, Giselle Martins. Na trama do arquivo: a trajetória de Oliveira Vianna. Tese
(Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de
Janeiro, 2003.
5 Dentre alguns trabalhos podemos citar: PIOVESAN, Greyce Kely. Prezado doutor, querido amigo,
caro memorialista: a sociabilidade intelectual nas cartas para Pedro Nava. Dissertação (Mestrado) -
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-
Graduação em História, Florianópolis, 2009; LEMOS, Clarice Caldini. Os bastiões da nacionalidade:
nação e nacionalismo nas obras de Elysio de Carvalho. Dissertação (Mestrado) - Universidade
Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação
em História, Florianópolis, 2010.
5
6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia das
Enquanto revisamos o texto final da tese, acaba de ser lançado outro livro que tem Sérgio como
personagem. Trata-se de uma abordagem voltada para a crítica e história literária, de autoria de
Antônio Arnoni Prado, intitulada, “Dois letrados e o Brasil nação: a obra crítica de Oliveira Lima e
Sérgio Buarque de Holanda". São Paulo: Editora 34, 2015.
8 JACOBY, Russell. Os Ú́ltimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Buarque de Holanda: História. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1985. p. 8.
7
Faire de l'histoire. Paris: Gallimard, c1974. 3v. (Collection folio/histoire). Bons exemplos da influência
de Sérgio Buarque na historiografia dos anos 1980, sobretudo a produzida na USP são: SEVCENKO,
Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São
Paulo: Brasiliense, 1983; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no
século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa
Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
Por um outro viés, podemos afirmar ainda que “na historiografia dos anos 1980, a revolução passou
por uma profunda revisão e as questões pertinentes ao contexto dos anos 1960 perderam a sua força
de atração”. DECCA, Edgar S. de. A revolução acabou…Prefácio à 5ª edição. O Silêncio dos
Vencidos: história, memória e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 28.
17 WAQUET, Françoise. Os Filhos de Sócrates: filiação intelectual e transmissão do saber do século
XVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. p. 28.
9
18 Dentre os principais trabalhos destacam-se: CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlin e depois. In:
Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, Vol.1 número 3, páginas 4 a 9, julho de 1982; DIAS, Maria
Odila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda: história. Coleção Grandes Cientistas
Sociais. São Paulo: Ática, 1985; NOGUEIRA, Arlinda (org.). Sérgio Buarque de Holanda: vida e
obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB, 1988; CANDIDO,
Antonio. (org). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 1998.
19 Utilizo aqui a noção de “arquivos pessoais” como conjuntos documentais resultantes de uma série
de gestos e práticas, conformados pelos titulares, mas também por seus colaboradores, familiares e
herdeiros, e disponibilizados por meio de estruturas institucionais que os “produzem" como fontes.
HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de
Janeiro: Contra Capa/FAPERJ, 2012. p. 74.
20 Como exemplos temos: CARVALHO, Marcus Vinicius Correa. Raízes do Brasil, 1936: tradição,
21 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. p. 42.
22 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. 1. ed. Coimbra: Quarteto, 2001. p. 23.
Col. Opúsculos.
23 HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris, PUF, 1950.
24 NORA, Pierre. Les lieux de Mémoire. Paris, Gallimard, Coll. Bibliothèque illustrée des histoires, 3
tomes, 1984-1992.
12
François (et.al). Campinas: SP: Editora Unicamp, 2007. Em especial o sub-capítulo “Pierre Nora:
insólitos lugares de memória. pp. 412-421.
13
27 SEIXAS, op.cit. p. 43; VIDAL, Laurent. Acervos pessoais e memória coletiva. Alguns elementos de
reflexão. Patrimônio e Memória, vol. 3, n. 1, 2007, p. 8. Exemplo bastante conhecido é o texto de
Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”, Estudos históricos, Rio de janeiro, vol. 2, n°3,
1989, pp. 3-15. Essas disputas pela memória, que incluem a historiografia, levou à formação em
2013, de um grupo de discussão e pesquisa coordenado pelo professor Edgar de Decca, intitulado
“Historiografia, conflito e memória”, no qual entre outros pontos, se propõe reavaliar as competências
do discurso histórico produzido na universidade e seus confrontos com o campo das memórias
coletivas desses novos sujeitos sociais emergentes. Segundo a autora, a expressão “frenesi de
memória” é autoria de Arno Mayer e está contida no artigo “Les pièges du souvenier, Esprit, nº 7, jul.,
1993. pp. 45-59.
28 SEIXAS, idem., pp. 44-45. A ideia de “memória involuntária” (aquela que existe fora de nós, inscrita
nos objetos, nos espaços, nas paisagens, nos odores, nas imagens, nos monumentos, nos arquivos,
nas comemorações, nos artefatos e nos lugares mais variados) proposta pela autora se dá com base
na leituras de Henri Bergson e Marcel Proust. Partindo deles, Seixas contrapõe essa noção à de
“memória voluntária, que deixa escapar toda a dimensão afetiva e descontínua da vida e da ação dos
homens. Para ela, a “observação proustiana é de tal modo instigante para o historiador que, de
imediato impõem-se algumas considerações de ordem historiográfica. A primeira delas parte de uma
constatação: (…) a historiografia elegeu a memória voluntária, desqualificando a memória involuntária
tida como constitutiva de um terreno de irracionalismo(s) e, por essa razão, avessa à história”. Em
seguida faz o seguinte questionamento: será esse procedimento ainda hoje pertinente e fecundo? A
resposta é negativa, porque é justamente essa dimensão afetiva e descontínua relegada pela
memória, a sua dimensão exilada, que parte das ciências humanas tem buscado precisamente
integrar, com o estudo dos mitos, das sensibilidades e paixões políticas, da imaginação e do
imaginário na história. Seixas conclui sua crítica afirmando que, “mesmo a noção de resgate ou de
recuperação da memória dos excluídos e dos vencidos na história (…) na verdade, aplica-se apenas
se referida à memória voluntária. (…) Desnecessário lembrar quanto a história contemporânea tem
presenciado a manifestação dessa instável memória involuntária, carregada de emoções,
14
ALTAMIRANO, Carlos. Ideias para um programa de história intelectual. In: Tempo Social Revista de
Sociologia da USP. São Paulo: USP, v.19, n. 1, jul. 2007. pp. 9-17; BEIRED, José Luis Bendicho.
Vertentes da História Intelectual. In: BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio; GARCIA, Tânia da Costa
(orgs). Cadernos de Seminário de Pesquisa: Cultura e Política nas Américas. Assis: UNESP,
2009. pp. 86-98; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001. pp. 194-195; CARVALHO, José Murilo de. História Intelectual no Brasil: a retórica como
chave de leitura. In: Topoi: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Social.
15
Rio de Janeiro: UFRJ, n. 1, 2000. pp. 123-152; CHARTIER, Roger. História Intelectual e História das
Mentalidades: In:_____. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2002. pp. 23-60; DOSSE, François. Biografia Intelectual. In: ____. O Desafio
Biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, 2009. pp. 361-403; GRANJON, Marie-Christine.
Une enquête compare sur l’histoire des Intellectuels: sinthèse et perspectives. In: TREBITSCH,
Michel; GRANJON, Marie-Christine (Direc). Pour une histoire compare des intellectuels. Paris:
Editions Complexe; IHTP/CNRS, 1998. pp. 19-36.
32 Como se sabe, este oficial do exército francês de origem judia foi acusado injustamente de traição.
Aqueles que assinaram a petição a seu favor e pediram a revisão do processo “em nome da justiça,
da verdade e contra a razão do Estado” foram chamados de intelectuais. O aparecimento dessa
noção estava vinculado com o posicionamento público dos intelectuais e sua intervenção para alterar
o julgamento do capitão, que os configurava como “intelectuais de esquerda”, defensores de valores
e causas universais. Intelectual, portanto, designa, originalmente, uma vanguarda cultural e política
que ousava desafiar a razão do Estado. (...) Continuando a designar um grupo político, o substantivo
“intelectual” qualifica sobretudo uma atitude e uma maneira de se posicionar no mundo”. Esse breve
histórico foi retirado do livro de Sílvia Cezar Miskulin, Os intelectuais cubanos e a política cultural
da Revolução (1961-1975). São Paulo: Alameda, 2009, p. 18, mas a referência exata da passagem
pode ser lida também na pesquisa de Helenice Rodrigues da Silva, intitulada Fragmentos da
História Intelectual. Entre questionamentos e perspectivas. Campinas: Papirus, 2002, pp. 15-16.
16
formar opiniões. Uma história social desses textos exigiria a análise sistemática de
elementos dispersos, conectados com a realidade em que estão inseridos,
possibilitando ao pesquisador reconstruir redes de sociabilidade, entendidas como
uma “ferramenta” explicativa para compreender a organização e a dinâmica do
campo intelectual, com suas amizades e inimizades, vínculos e tomadas de posição.
Mas é somente após a Segunda Guerra Mundial que o modelo do
"intelectual engajado” se torna mais concreto, já que era possível indentificá-lo, por
exemplo, na figura de Jean-Paul Sartre. Não apenas sua obra expressou seu
engajamento, mas sua trajetória também, notou Helenice Rodrigues da Silva, com a
participação de Sartre na luta de resistência aos nazistas, até seu posicionamento
público favorável à independência da Argélia, na guerra de libertação contra a
França (1954-1962)”.33
O escritor tornou-se porta-voz do chamado “terceiro-mundismo” ao pregar
o caráter revolucionário dos movimentos de libertação nacional e justificar, de certo
modo, a violência como meio válido para que o “colonizado” se afirmasse perante o
“colonizador”. O modelo de intelectual engajado personificado pelo filósofo
posicionava-se à esquerda, e, na maioria das vezes, subordinava a produção do
conhecimento e a elaboração de ideias ao político. Em suma, Jean-Paul Sartre
“encarnava a figura do ‘intelectual total’, ou seja, aquele que se posicionava sempre
sobre as mais diversas questões do tempo presente”.34
Mas se por um lado, o engajamento dos intelectuais europeus do pós-
guerra teve reflexos diretos nas lutas anticoloniais e nas utopias revolucionárias, em
especial após a Revolução Cubana de 1959, por outro, nos Estados Unidos, o que
houve foi uma inversão e os intelectuais deixaram as ruas dos centros urbanos e as
páginas da imprensa para se institucionalizarem na academia e ocuparem espaços
produtivistas nas revistas especializadas.
Essa é a tese defendida por Russel Jacoby em seu livro "Os Últimos
Intelectuais, a cultura americana na era da academia”, uma crítica violenta ao
ambiente acadêmico departamentalizado dos dias de hoje, conforme o paradoxo
exposto no título. Para Jacoby, “os últimos” expõe o fim dos intelectuais públicos que
buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação, cuja linguagem,
estilo e crítica radical pressupunha um leitor educado, amplo e sedento por debates,
ao mesmo tempo em que também seriam os “novos”, acadêmicos voltados para si
mesmos, para dentro dos muros universitários e que “escrevem uma prosa esotérica
e bizarra, dirigida principalmente para a promoção acadêmica e não para a mudança
social”.35
Por fim, a História Intelectual pode ainda ater-se à análise das ideias
políticas ou ampliar-se a um diálogo mais próximo no campo da história cultural. No
primeiro caso, por exemplo, J.G.A. Pocock preocupa-se com o contexto de
elaboração dos vocabulários políticos, ou seja, trata-se de situar os textos no seu
campo específico de ação ou de atividade intelectual, levando em consideração
quem os maneja e com quais objetivos. O autor, então, estabelece uma divisão da
linguagem política em dois níveis: língua (langue) e fala (parole), com o objetivo de
compreender como ambas interagem ao longo do tempo. Assim, por meio dos atos
de fala (speech acts) o sujeito se apropria da língua, seja para reafirmá-la ou então
para inová-la mediante a reelaboração dos conceitos do discurso.
No segundo, o historiador Roger Chartier concebe a história intelectual
como sinônimo de história cultural. Propõe um programa crítico tanto da oposição
entre a alta cultura e a cultura popular – que estariam unidas por fenômenos de
circulação e de apropriação – quanto entre criação e consumo, produção e
recepção, sustentando que o sentido da obra também é constituído por meio das
suas interpretações. Em suma, o pesquisador deve investigar a produção intelectual
na sua relação com as outras produções culturais que lhes são contemporâneas, e,
ao mesmo tempo, nas suas relações situadas em outras esferas da totalidade social
(socioeconômica ou política).
De modo geral, as pesquisas recentes no campo da História Intelectual
vislumbram certas inovações nas análises, nas quais aparecem um tratamento
explícito ao estilo ou a exploração e valores meta-históricos se pensarmos nas
polêmicas levantadas por Hayden White, que configuram os textos, ou a busca de
linguagens, no sentido de Pocock, historicamente construídas e transmitidas de texto
a texto ao longo de extensos períodos históricos. Não raro, hoje também são as
análises por meio das fontes epistolares, dos periódicos culturais, das biografias
35JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. pp. 9-12.
18
36 A biografia intelectual voltou a ter espaço a partir da década de 1980 quando da publicação do
polêmico "L’illusion biographique”, artigo no qual Pierre Bourdieu criticava a subjetividade de
biografias históricas, segundo ele "capazes exclusivamente de reconstruir a vida de forma artificial,
mesmo absurda: A história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram, de
contrabando, no universo erudito”. In : Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 62-63, juin
1986. O amplo debate que se estabeleceu desde então pode ser sintetizado da seguinte forma: “(…)
é importante termos claro que as biografias praticadas por historiadores profissionais não visam a
fazer vir à tona segredos antes escondidos, mas sim compreender historicamente os percursos de
certos personagens, de modo a entender, por exemplo, o funcionamento de determinados
mecanismos sociais e sistemas normativos, a pluralidade existente em grupos e instituições vistas
normalmente como homogêneas, a construção discursiva e não-discursiva dos indivíduos, as
margens de liberdade disponíveis às pessoas em diferentes épocas históricas, entre outras
questões”. SCHMIDT, Benito Bisso. Quando o historiador espia pelo buraco da fechadura: biografia e
ética. História (São Paulo), v. 33, n. 1, jan./jun. 2014. p. 140. Outros trabalhos relevantes para essa
discussão são: BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 19, v. 10, pp. 83-97, 1997; LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA,
M. de M.; AMADO, J. (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996;
LORIGA, Sabina A biografia como problema. In: REVEL, J. (org.). Jogos de escalas. A experiência
da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998; DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever
uma vida. Tradução de Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo, SP: EDUSP, 2009; PRIORE,
Mary Del. Biografia: quando o indivíduo encontra a história. Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009.
19
Não há gente que diz que nós documentos somos a garantia de que a alma,
o espírito, o pensamento, as vontades, as aspirações, as esperanças, as
paixões e as ações das pessoas de antanho não venham a morrer? Mesmo
aqueles pobres restos em que nos tornamos, até os simples rastros da
existência que deixamos, guardariam em seu interior pelo menos os rostos
daquele que nos criou e daquele para o qual fomos escritos, fora outros
rostos que mais fugazmente foram em nós figurados. Nós seríamos a sua
cara, teríamos mesmo nas cópias pálidas que nos tornamos o seu jeitão,
permitiríamos vê-lo através de nós. Nós seríamos uma espécie de janela
sobre a qual ao se debruçar se enxergariam os perfis destes homens que o
passado levou. 38
37 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e
documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico. ArtCultura, Uberlândia, v.
15, n. 26, pp. 7-28, jan.-jun. 2013.
38 Idem, p. 25.
20
39 RICOEUR, op.cit.
21
Capítulo 1
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: UM INTELECTUAL
"ENTRE DOIS PROJETOS”
40 CANDIDO, Antonio. Entre duas cidades. In: MARRAS, Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque
em 1986 nas Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, número 62-63, pp. 69-72.
42 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2.
43 JACOBY, Russell. Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda
Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. Ainda muito atual, o livro foi apresentado em uma
resenha publicada por mim no número 6, ano III da Revista Crítica História, em dezembro de 2012.
http://www.revista.ufal.br/criticahistorica/attachments/article/142/Os%20últimos%20intelectuais.pdf,
acessado em 10 de outubro de 2014.
44 SANTOS, Maria Cecilia Loschiavo dos. Maria Antonia: uma rua na contramao. Sao Paulo: Nobel,
́ ̃ ̃
1988.
24
Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 79.
25
Em segundo lugar, Sérgio foi crítico ferrenho dos rumos tomados pelos
modernismos, paulista e carioca, posição que deixou clara no seu famoso texto de
1926, "O lado oposto e outros lados”. Pouco depois viajou para a Alemanha como
jornalista e quando retornou ao Rio de Janeiro em 1931, institucionalizou-se em
diferentes órgãos de cultura durante o governo Vargas. Retornando a São Paulo
após a queda do ditador, dirigiu o Museu Paulista e se efetivou na Universidade de
São Paulo, vindo a se aposentar em 1969.
Como apontou Said, o trabalho intelectual poderia conviver muito bem
com o acadêmico. No caso de Sérgio isso nos parece concreto. A institucionalização
serviu para ele consolidar a sua rede de sociabilidade e colocar em prática os seus
projetos no campo de expansão do conhecimento histórico, que passavam por uma
compreensão do Brasil e pela sua divulgação em todos os níveis. Sua aposentadoria
é lembrada sobretudo como um ato político, uma resposta ao AI-5, o que não
devemos negar. Em entrevistas Sérgio falou ainda em tempo de serviço com
vencimentos integrais. Todavia, pensando pelas lentes de Jacoby, nos parece
plausível que sua decisão final também tenha passado pela mudança da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, da rua Maria Antonia para o isolamento do subúrbio,
o Butantã, local em que o regime civil-militar pôde atuar de forma mais centralizada,
retirando do espaço público as disputas políticas daquela universidade.
Nesse contexto, Sérgio teria ficado “órfão" dos colegas e amigos
cassados, e, sem o convívio com eles e com a rua, lugar por excelência dos "últimos
intelectuais”, transferiu a boemia para o espaço privado de sua casa no Bairro do
Pacaembú, famoso reduto de festas e encontros políticos, no qual circularam muitas
personalidades do campo cultural brasileiro. Certa vez, comentando o mesmo
período numa entrevista, o historiador Boris Fausto afirmou que durante o AI-5,
enquanto alguns professores foram cassados e tiveram de deixar o país, "Sérgio
Buarque também resolveu se aposentar. Ele não tinha mais nenhum estímulo para
ficar naquele departamento” de História.48
O sentido linear dado à vida de Sérgio Buarque como hoje conhecemos,
foi construído por ele próprio nas suas "Tentativas de Mitologia”, onde também
expõe pistas de seu baú de memórias, nos trabalhos que publicou, nas entrevistas
48Entrevista com Boris Fausto. In: MORAES, José Geraldo Vinci; REGO, José Márcio. Conversas
com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 97.
26
que concedeu, etc., e assegurados pela família e pelos amigos mais próximos após
sua morte, por meio de uma série de estratégias institucionais e editoriais – comuns
no universo intelectual e dos homens públicos – vistas, por exemplo, nas
homenagens póstumas, na organização de Seminários, nas publicações de
coletâneas e de textos inéditos, na montagem de arquivos, etc., e que no contexto
das décadas de 1980 e 1990, sustentaram as (re)atualizações de sua memória
histórica.49
Parte dessa narrativa nos permite pensar em um jovem que desde muito
cedo soube captar os “ventos do novo tempo”. Avant la lettre, o prodígio Sérgio
compôs e publicou, com apenas nove anos, na Revista "Tico-Tico" a valsa "Vitória-
Régia", creditada por alguns estudiosos como parte de sua obra. Pouco tempo
depois, o mesmo rótulo valeria para sua participação na militância modernista, como
bem nos lembra uma estudiosa do período: "O fato de não haver participado da
Semana de Arte Moderna, em São Paulo, não tira de Sérgio Buarque de Holanda a
condição de haver sido um modernista avant la lettre".50 Exageros à parte, Sérgio foi
partícipe indelével desse plural movimento, que ultrapassou as fronteiras do eixo
Rio-São Paulo e o marco cívico da "Semana de 22”, como demonstrou Helena
Bonemy ao tratar do modernismo mineiro.51
49 A ideia de memória histórica é aqui entendida como o produto do pensamento crítico, com uma
linguagem conceitual, abstrata e laica, e com uma função ensinável e utilitária. Diferente, portanto, da
memória coletiva, caracterizada por uma origem anônima e espontânea por ser viva, concreta,
múltipla, imagética e sacral, e por possuir um cariz normativo. Pierre Nora também estabeleceu essas
diferenças. Para esse autor, a memória, vivida e suportada por grupos sociais, é representação
afetiva, em evolução permanente, aberta à dialética entre recordação e esquecimento, insconsciente
de suas deformações e vulnerável a todas as manipulações, sendo ainda suscetível de grandes e
longas latências e de repentinas revitalizações. Ao contrário, a historiografia será uma reconstituição
sempre problemática e incompleta do que já não existe; por isso, constitui uma laicizadora operação
intelectual, assente na análise e na atitude crítica. Para mais detalhes ver: CATROGA, Fernando.
Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Fronteiras do milênio. Porto Alegre:
EdUFRGS, 2001. pp. 43-69. Vale ressaltar ainda que Catroga opera suas reflexões a partir de
autores clássicos desse campo de debates, dentre os quais podemos citar Maurice Halbwachs, Pierre
Nora, Paul Ricoeur, Paul Connerton, Joël Candau, Jacques Le Goff, Krzystof Pomian, Reinhart
Koselleck, Tzvetan Todorov, Paul Vayne, entre outros. No conjunto de (re)atualizações da memória
histórica de Sérgio ressaltam-se a elaboração de um lugar de memória a partir da compra de sua
biblioteca, a montagem de um arquivo pessoal, a realização das "Semanas Sérgio Buarque de
Holanda”, organizadas pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, USP e Unicamp, pela
publicação de livros póstumos como "O Extremo Oeste", "Capítulos de Literatura Colonial", "O espírito
e a letra (2 volumes)", "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda" ou coletâneas como "Sérgio Buarque
de Holanda: vida e obra", "Sérgio Buarque de Holanda”, coleção Grandes Cientistas Sociais, etc.
50 PRADO, Antônio Arnoni, op.cit., p. 79.
51 BONEMY, Helena. Guardiães da Razão: os modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Editora
intelectual só viria com a nossa emancipação política. Por essa lente, Sérgio estava
convencido de que um compromisso prolongado com as bases materiais da vida na
extensão de seus domínios fez brotar na América hispânica um primeiro sintoma de
"originalidade literária” voltado para a integração espiritual com a natureza e a gente
nativa. Coisa muito diferente do que ocorreu ao colonizador português, que, mais
prático que o espanhol, não teve, segundo o crítico, uma "impressão tão sutil da
natureza do Novo Mundo", fato agravado pela circunstância de que as tribos
selvagens que habitavam o nosso território "não podiam inspirar aos dominadores,
em geral incultos e rudes, senão desprezo e ódio”.53
De acordo com Antonio Arnoni Prado, o que tem de mais sugestivo na
abordagem de Sérgio Buarque são as consequências que o autor tira delas, em
especial a ideia de que, se não tivemos no Brasil nenhum poema propriamente
épico, isso se deve ao fato de que a nossa concepção da matéria épica derivava de
fatores muito diversos daqueles então existentes na América espanhola. Avaliação
fundamental para a compreensão posterior de "Raízes do Brasil”. O artigo de estreia
nos mostra como o estilo “gongórico" de Rocha Pita transforma, em 1730 a
produção literária da América portuguesa, num equivalente tropical dos melhores
talentos de Roma e da Grécia clássicas.
Isso, de um lado, nos remete ao "bovarismo" como um dos conceitos-
chave com que Sérgio, mais tarde em "Raízes", vai desenvolver a ambiguidade das
relações do brasileiro com sua própria terra (a sua repulsa à realidade). E, de outro
lado, lança os primeiros germes da interpretação da cultura que, igualmente no livro
de 1936, atribui um valor excessivo ao prestígio universal do talento que, para nós,
não significa, a seu ver, propriamente amor ao pensamento especulativo; antes "à
frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa".54
53 PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo. In: CANDIDO, Antonio. Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1998. Na ocasião Sérgio articulava
essa constatação a um sentimento de americanismo integrador, identificado por ele na épica do
poema "Araucana", do espanhol Ercilla y Zuniga, nas páginas do "Rusticatio Mexicana” (1817) do
padre Rafael Landívar, que ele desdobra na leitura da obra igualmente integradora de um Francisco
Garcia Calderon, de um Santos Chocano ou mesmo de um Vargas Villa. pp. 72-73.
54 Idem, p. 73; HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1979. pp. 118-119. Apenas como curiosidade, o historiador português Oliveira Martins (1845-
1894) ao se referir à sua “Biblioteca de Ciências Sociais”, onde publicou a sua "História de Portugal"
(a qual encontramos dois volumes de 1886 na biblioteca de Sérgio Buarque), já afirmava com o
mesmo sentido, nas últimas linhas abaixo, o seguinte: “Tampouco as investigações eruditas se
coadunam à natureza de nossa publicação, destinada a compendiar as conquistas feitas no domínio
da ciência, e não a embarcar-se em empresas de exploração no campo da arqueologia. Por isso o
29
leitor achará coordenadas e sistematizadas as investigações dos sábios e as doutrinas dos filósofos,
sem ociosas indicações de origens, nem aparato de uma erudição, aliás fácil de exibir, mas que não
convém à índole da publicação, além de que apenas valeria para iludir incautos ou encher de pasmo
os ignorantes”. PONTE, Carmo Salazar. Oliveira Martins: a história como tragédia. Coleção Temas
Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. p. 18. (Grifo nosso).
55 PRADO, Antonio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo, op.cit., p. 74.
56 PRADO, Antonio Arnoni (org). Nota sobre a edição. O espírito e a Letra: estudos de crítica
literária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 23.
57 PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e a Letra: estudos de crítica literária I-II (1920-1959). São
Paulo: Cia. das Letras, 1996; COSTA, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos
(2. vol.). São Paulo: Fundação Perseu Abramo / UNESP, 2011; NICODEMO, Thiago Lima. Alegoria
30
Moderna: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda. 2010. Tese de Doutorado. Universidade
de São Paulo-USP. Programa de Pós-Graduação em História Social. Há também os estudos do
"Grupo Clíope”, formado em 1994 por ocasião do 46º Congresso Internacional de Americanistas
realizado em Estocolmo e que conta com pesquisadores brasileiros e estrangeiros, como Ettore
Finazzi-Agrò, Roberto Vecchi, Chiara Vangelista, entre outros, nos campos de história e literatura.
Uma das publicações desse grupo, organizada por Sandra Pesavento intitula-se: Um historiador nas
fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: edUFMG, 2005; e por fim, a
inédita tese de Marcus Vinícius Corrêa Carvalho, defendida em 2003, na Pós-Graduação em História
da Unicamp e intitulada Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política
(1920-1940).
58 ANDERSON, Perry. As origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 9.
31
59 HOLANDA, Maria Amélia Buarque de. Apontamentos para uma cronologia de Sérgio Buarque
estudado por Nicolau Sevcenko em Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura
nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
32
61 No depoimento de Maria Amélia, a Confeitaria Fasoli aparece localizada na Rua São Bento.
Todavia, quem localizava-se nesse endereço, no número 47, era a Pinoni. Ambas, entretanto, além
de oferecer comida e bebida, projetavam filmes. SOUZA, José Inacio de Melo. Imagens do passado:
São Paulo e Rio de Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: Editora SENAC, 2004.
62 MILLIET, Sérgio. À margem da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Revista do Brasil. In:
BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio
Buarque de Holanda. Artigos e depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 96. É bem possível que um
desses sebos britânicos tenha sido a Livraria Craschley, localizada na Rua Ouvidor, 68.
63 HOLANDA, Maria Amélia Buarque de, Apontamentos… op.cit.
33
Sérgio, mestre dos mestres. Mas também meu amigo de dias boêmios de
nossa mocidade no Rio de Janeiro. Três amigos desses dias, sempre muito
juntos, fomos ele, Prudente de Moraes, neto, e eu. Boêmios pelo gosto da
música popular brasileira. Da afro-brasileira. Da carioca. Daí, mais de uma
vez amanhecermos, bebendo chope, em bares tradicionalmente cariocas,
ouvindo os para nós brasileiríssimos e como que nossos mestres, além de
amigos, de cultura brasileira, Donga, Patrício e Pixinguinha. 64
Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos e
depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 117.
65 GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American Historical
com São José. Amizade duradoura. Sobre ele teceu maduras considerações a
respeito de suas poesias, publicadas nos livros "A cinza das horas" (1917) e
"Carnaval" (1919). Segundo Sérgio, em artigo que saiu na revista "Fon-Fon", logo
depois da Semana, em 18 de fevereiro de 1922, foi com Bandeira que pela primeira
vez surgiu uma poesia compreendida como simples capricho, como mera efusão de
um estado lírico, qualquer que ele seja, de modo a definir, entre nós, o aparecimento
de um verbo poético desligado de qualquer plataforma que não fossem
simplesmente a emoção e as palavras.67
Como já assinalamos, os embates intelectuais não se davam apenas no
espaço das ruas, dos bares e cafés. Assim, antes que fundasse com o amigo de
faculdade a Revista "Estética", em 1924, Sérgio, que já havia passado de entusiasta
a militante de causa, resolveu se responsabilizar pela distribuição do periódico
"Klaxon" no Rio de Janeiro. Era a chave que faltava para que o jovem se firmasse
definitivamente nesse “pequeno mundo” intelectual. Seu principal interlocutor nessa
jornada foi Mário de Andrade.
Recentemente, Pedro Meira Monteiro publicou um livro em que trata das
relações estabelecidas entre os dois modernistas, localizando nos arquivos do
"Instituto de Estudos Brasileiros” da USP e no Arquivo Central da Unicamp, um
conjunto de 31 cartas trocadas por ambos, num recorte que vai de 1922 a 1944. Ou
seja, o material levantado cobria, desde os tempos “heróicos" do modernismo,
quando o jovem Sérgio era um preposto de Klaxon, até o momento em que Mário de
Andrade, já de volta a São Paulo, após uma passagem pelo Rio de Janeiro, entre
1938 e 1941, embrenhou-se pela pesquisa histórica, elegendo o amigo como uma
espécie de consultor nesses assuntos.
As anedotas sobre Graça Aranha e seu iminente rompimento com a
"Academia Brasileira de Letras”, as primeiras reações “conservadoras" dos jornais
cariocas à literatura dos modernos de São Paulo, assim como a proximidade de
Sérgio com Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, são alguns dos tópicos desse
67 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Manuel Bandeira. In: PRADO, Antonio Arnoni (org). O espírito e a
Letra: estudos de crítica literária. vol. I (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, 1996. Publicado
originalmente na revista Fon-Fon, em 18 de fevereiro de 1922.
35
conjunto.68 Para documentar o que foi dito, vale a pena reproduzir alguns trechos
dessas cartas. Em 8 de maio de 1922, Mário de Andrade escrevia o seguinte:
(…) Sei que Klaxon sairá no dia 15 sem falta. É preciso que não te
esqueças de que fazes parte dela. Trabalha pela nossa ideia, que é uma
causa universal e bela, muito alta. Estou à espera dos artigos e dos poemas
que prometeste. E não te esqueças do teu conto. Desejo conhecer-te na
ficção. Espero saída do primeiro número da revista para escrever ao
Ronald, ao Elísio aos amigos todos enfim. É preciso que digas ao Manuel
Bandeira que me lembro sempre muito dele. Recordo-me do Ribeiro Couto.
E, mais uma vez, obrigado.69
Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências Passivas,
Cp. 20.
70 Nos referimos aqui a Paulo Prado, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Caio Prado
Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos
inícios do romance brasileiro. 6. ed. São Paulo, SP: Duas Cidades: Editora 34, 2012; FRANCO, Maria
Sylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Caderno de Debates, n. 1. São Paulo: Brasiliense,
1976; PALTI, Elías José. Apêndice. Lugares y no lugares de las ideas en America Latina. In: El
tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. 1.ed. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, Argentina,
2007.
37
1922. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências
Passivas, Cp. 19.
38
movimento. Décadas mais tarde ele afirmava que, "eu próprio já me desinteressara
bastante das questões de literatura, e pensava em escrever um livro para o qual
tinha até nome pronto: deveria chamar-se ‘Teoria da América’”.77 A publicação, em
1926, do texto "O lado oposto e outros lados" na "Revista do Brasil", então dirigida
pelo amigo Rodrigo M. Franco de Andrade, aparece para alguns estudiosos de sua
obra crítica como um momento decisivo. É possível, depois de tanto tempo, perceber
naquelas linhas deixadas por Sérgio, esboços de ideias que mais tarde apareceriam,
já mediadas pelas suas leituras alemãs, em "Raízes do Brasil".
Naquele artigo, o autor não poupa “elogios” e manda ao diabo qualquer
diplomacia ao criticar duramente os modernistas academizantes que, juntando
dominar a expressão nacional, nada mais fariam do que impor a sua hierarquia ao
universo das artes, atualizando uma atitute ilustrada que o modernismo pretendera
justamente combater. Por trás do alvo aparente, formado por Ronald de Carvalho e
Guilherme de Almeida, estavam Alceu Amoroso Lima e Graça Aranha. Sérgio
Buarque conclamava seus fantasmas para depois exorcizá-los. "O Lado oposto e
outros lados” traz uma contundente discussão sobre os partidários da ordem, "de um
lado", e os que, desde os "outros lados”, desconfiavam de toda ordenação e
apostavam fundo na espontaneidade, vista como liberdade que os resguardaria de
quaisquer tentações autoritárias.78 Eis o ponto que mais tarde aparecerá de forma
símile no livro de estreia do autor. Em suas palavras:
77 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Apresentação. In: Tentativas de Mitologia. São Paulo:
Perspectiva, 1979, p. 29.
78 MONTEIRO, Pedro Meira. As raízes do Brasil no espelho de Próspero. Novos Estudos CEBRAP,
n. 83, São Paulo, mar. 2009. A respeito de Graça Aranha, Sérgio Buarque tece algumas memórias
em seu texto de apresentação para a coletânea Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva,
1979. p. 22 e seguintes.
39
Até 1929, salvo uma experiência extravagante de seis meses, como redator
de um jornal numa pequena cidade do Espírito Santo. Minha melhor
lembrança desses meses foi quando substituí um promotor numa cidade
ainda menor, que alcancei depois de seis horas de viagem a cavalo.
Precisavam de alguém com curso de direito, e eu era o único disponível.
Cheguei cansado de morrer, mas ainda fui a um baile. Desnecessário dizer
que meu caso foi tão fracamente apresentado no dia seguinte que o júri
absolveu o acusado.81
79 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O lado oposto e outros lados. In: O Espírito e a Letra, op.cit. p.
226.
80 MONTEIRO, As raízes…op.cit.
81 GRAHAM, Richard. An Interview with Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.
40
Lá passou a ser conhecido como Dr. Progresso. Pouco importa, fez-lhe bem
a estadia no interior. (…) Certa vez, nomeado promotor ad hoc na cidade de
Muniz Freire, para participar de um júri, viajou seis horas em lembro de
burro, e chegou ao destino mais morto do que vivo, esfolado de tal sorte
que se viu obrigado a tomar um banho tépido de salmoura para poder
comparecer ao tribunal no dia seguinte. O réu foi absolvido, mas havia a
viagem de volta a Cachoeiro do Itapemirim, mais penosa ainda que a
vinda.82
Sim, eu me lembro do Dr. Progresso; seus porres, afinal não eram tão
grandes, e ele nunca ofendia ninguém. Costumava tomar umas e outras
com o saudoso Cel. Ricardo Gonçalves e outros bons homens da terra, que
formavam o Clube do Alcatrão de São João da Barra, que todos bebiam de
brincadeira.83
82 BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Introdução. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de
Janeiro: Rocco, 1988. p. 27.
83 BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 154-157.
41
Santo a febre de progresso não fica apenas nas palavras e nas promessas
de plataformas de governo.84
84 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Notas do Espírito Santo. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.).
Raízes de Sérgio Buarque de Holanda, op.cit, 91.
85 Idem, p. 92.
86 A discussão proposta por Sérgio Buarque a partir de suas "Notas do Espírito Santo” encontra
à civilização. Assim, a modernização visava uma reforma total da sociedade. Modernizar significava,
de modo geral, promover o novo, que por excelência era o melhor, o positivo. À ideia de progresso e
modernização corresponde a noção de civilização. Promover o progresso representava, sobretudo,
civilizar-se, o que pressupunha uma concepção de temporalidade teleológica. Era como se as nações
ditas civilizadas estivessem à frente na escala de um suposto desenvolvimento social, cultural e
moral. Assim, o tempo linear do progresso impunha uma série de valores em escala universal. A
civilização era o objetivo supremo a ser buscado, um fim cujo meio seria a modernização constante
da sociedade pautada nos princípios progressistas. A detração do legado colonial brasileiro, portanto
de um passado arcaico e incivilizado, se tornou mais presente no imaginário social conforme a
República se aproximava, acabando por se consolidar com a proclamação do novo regime. A
República deveria tomar o lugar do Império por representar o caminho da civilização e a porta para a
sociedade positiva do futuro. Por conseguinte, a nação brasileira deveria se ‘atualizar’ frente às
nações europeias modernas, e para que isso acontecesse era preciso promover a sofisticação dos
meios de produção, reformar substancialmente as cidades construídas sobre os padrões coloniais,
além de erigir novos centros urbanos, bem como investir na ciência e na indústria. A República
desencadeava a crença no futuro, no progresso, já que este regime sintetizaria o modelo político ideal
para se gerir uma nação. No Brasil, o regime republicano representou a via do progresso à maneira
das nações europeias ocidentais; a República era o início de um futuro desejado, idealizado. O Brasil
deveria galgar os estágios do desenvolvimento, fugindo de seu atraso, e acertar o seu relógio por via
de remodelações institucionais, estruturais, legislativas, comportamentais. A ciência e a racionalidade
tecnicista seriam os fatores responsáveis pelo avanço da sociedade brasileira”. In: MENEGUELLO,
Caion Natal. Ouro Preto: a construção de uma cidade histórica. 2007. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa de Pós-Graduação em História pp.16-18;
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Do Império à República. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
(História Geral da Civilização Brasileira, t.II, v.5).
87 HOLANDA, Notas…op.cit., p. 90.
44
tema profundamente abordado por Paul Ricoeur que propunha como solução a ideia
de uma "polit́ ica da justa memória", um de seus temas civ́ icos confessos.88
Em relação a um excesso de memória, a passagem de Sérgio Buarque
pela Alemanha, próxima parada desse modernista errante, é cercada de exageros e
versões oficiais, mas que se transformaram em mantra toda vez que aparecem
questões que envolvam a sua fase de vida anterior à publicação de "Raízes do
Brasil". Sérgio Buarque não deixou quase nenhum registro sobre a sua passagem
por Berlim, entre junho 1929 e dezembro de 1930, exceto algumas entrevistas, uma
ou outra carta guardada em seu papelório, algumas linhas em "Tentativas de
Mitologia" e um caderno organizado por sua irmã, Cecília, com os recortes dos
textos que enviava de lá ao Brasil. Esse material, aliás, serviu de inspiração para
uma publicação póstuma e comemorativa, organizada por Francisco de Assis
Barbosa e sugestivamente intitulada "Raízes de Sérgio Buarque de Holanda".
De resto, muito do que sabemos é atestado por textos que detalham um
pouco mais a versão contada pelo próprio protagonista. Em linhas gerais, a história
de Sérgio na Alemanha começa com o convite feito por Assis Chateaubriand para
que o jovem partisse como correspondente de "O Jornal”, com o encargo de fazer
reportagens sobre a situação política em três países: Alemanha, Polônia e União
Soviética. O resultado do intento foi o seguinte: restou no primeiro, visitou
rapidamente o segundo e não conseguiu passar as fronteiras do terceiro.
Sérgio partiu a bordo do navio Cap Arcona no dia 17 de junho de 1929.
Seu embarque foi festivo e acompanhado por amigos como Manuel Bandeira,
Prudente de Moraes, neto, Rodrigo Melo Franco, pelos pais, Dr. Cristóvão e Dona
Heloísa e pelos irmãos, Cecília e Jaime. Na véspera, Sérgio e Josias Leão, que
embarcou junto, foram homenageados com um jantar de despedida no restaurante
português "Garota do Mercado”. Estiveram presentes amigos do jornalismo, como
Barbosa Lima Sobrinho, Múcio Leão, Austregésilo de Athayde, Osório Borba e os já
mencionados Rodrigo Melo Franco e Manuel Bandeira, entre outros.
Chegando a Berlim, Sérgio passou a residir em um dos mais agradáveis
pontos da cidade, numa esquina de Uhlandstrasse com a Kurfürstendamm, avenida
bonita e espaçosa chamada de Champs Elysées berlinense. Pouco depois se
mudou para outro apartamento na mesma rua, mais adiante, em cima do Uhlandeck,
que era o que se chamava um cabaré. Virando a esquina, ia facilmente ao
consulado do Brasil, na Kurfürstendamm, não sem antes passar pelo da Guatemala,
pelo teatro de Erwin Piscator e o café Illibrich, cuja orquestra americanizada tocava a
miúdo, entre outros sons, tangos argentinos em ritmo mais enérgico do que o
normal. 89 Além desses detalhes, que foram anotados por Antonio Candido, são
significativos de sua passagem pelo Velho Continente, uma entrevista que realizou
em Berlim com o vencedor, em 1929, do Nobel de Literatura, o escritor Thomas
Mann, registrada em "O Jornal” de 16 de fevereiro de 193090; a tradução para o
português das legendas de "O Anjo Azul", filme com Marlene Dietrich, estrela da
época, o seu trabalho na revista bilíngue, DUCO91, e mais do que qualquer outro, e
só recentemente revelado, o filho que teve com Anne Ernst.92
Dentre as poucas fontes e relatos que tratam desse período de vida de
Sérgio, talvez um deles ainda seja pouco conhecido entre os estudiosos. Trata-se de
uma carta que ele próprio enviou de Berlim à Rui Ribeiro Couto, alguns meses após
sua chegada em 1929. O documento foi encontrado nos arquivos de Couto,
localizados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. A partir desse
escrito é possível acompanhar a visita que Sérgio realizou "por uma porção de
cidades" na Polônia, a recusa de sua entrada em Moscou; o emprego que, com
89 CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.), op.cit.,
pp. 119-120.
90 Sérgio relata o encontro e a descoberta de que o escritor era filho de uma brasileira no texto,
Thomas Mann e o Brasil. A esse respeito registrou: "Não me bastava a confirmação. Desejava
conhecer novos detalhes. E Thomas Mann prestou-se amavelmente a satisfazer minha curiosidade. A
mãe dos irmãos Mann, d. Júlia Bruhn da Silva, era filha de um alemão que possuía no Brasil uma
fazenda e que se casara com uma crioula, provavelmente de sangue português e indígena. Aos seis
ou sete anos foi trazida por seu pai a Lübeck, onde teria melhores possibilidades de uma educação e
de uma instrução exemplares. A futura Frau Júlia Mann nunca se esqueceu de sua infância no Brasil
e muito mais tarde ainda se recordava de que fora salva por um negro, escravo de seu pai, de uma
serpente venenosa. Era um tipo caracteristicamente latino (“uma perfeita espanhola", disse-me
Thomas Mann), dotada de um temperamento exaltado, que se deveria adequar com bastante êxito à
sua paixão pela música. Apreciava sobretudo Chopin e acompanhava com sua voz suave as
melodias de Schubert, Schumann e Lassen. A essa mistura de sangues, que influiu acentuadamente
em seu aspecto físico, deve Thomas Mann, provavelmente, algumas das suas qualidades mais raras
de escritor, certa feição característica, que o distingue bastante no conjunto da moderna literatura
alemã".
91 Sérgio Buarque prestou serviços à revista entre 5 de fevereiro de 1930 até 30 de setembro do
mesmo ano. No atestado de dispensa, escrito em alemão, que recebeu da editora Latein-
Amerikanischer Verlag, assinado em 30 de setembro de 1930, consta que o intelectual cumpriu a sua
função na seção de português da Revista DUCO com perfeita autonomia. Arquivo Central Unicamp,
Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal, VP 11. Tradução de Luciano Cavine
Martorano.
92 BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
46
93Carta de Sérgio Buarque de Holanda à Rui Ribeiro Couto. Berlim, 7 de novembro de 1929.
Fundação Casa de Rui Barbosa. Acervo Rui Ribeiro Couto.
47
Grandes Cientistas Sociais, n. 51); IGLÉSIAS, Francisco. Exposição: Sérgio Buarque de Holanda,
historiador. In: Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º Colóquio
UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.
97 Essa pesquisa foi publicada recentemente no livro: MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana. As
origens da obra de Max Weber. 1.ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. Em especial o capítulo,
“Weberianismo tropical: caminhos e fronteiras recepção da obra de Max Weber no Brasil, pp. 189-
208, onde o autor conclui em relação a Raízes do Brasil, que “se viu ali mais Weber do que foi
efetivamente o caso”.
98 MATA, Sérgio da. II Jornada da História da Historiografia. Mesa II- “Espaços da nação, tempos
apocalíptico, tirou elementos para uma fórmula pessoal de interpretação progressista do seu país,
combinando de maneira exemplar a interpretação desmistificadora do passado com o senso
democrático do presente”. CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. In: BARBOSA, Francisco
de Assis. op.cit, p. 124. Já o próprio Sérgio Buarque admitia, décadas mais tarde, que durante sua
estadia na Alemanha, "recomecei a ler e recomecei mal, enfronhando-me agora em filosofias místicas
e irracionalistas (Klages, etc .), que iam pululando naqueles últimos anos da República de Weimar e
já às vésperas da ascensão de Hitler”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia,
op.cit. p. 30.
99 MATA, Sérgio da, II Jornada…op.cit.
51
100Uma discussão importante e recente sobre esse período alemão da República de Weimar e do
círculo pode ser acompanhada na dissertação de mestrado de Walquiria Oliveira da Silva, intitulada:
Alemanha Secreta: biografia e história no círculo de Stefan George. Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade de Brasilia, 2013. Da mesma autora, vale mencionar o artigo, “A história
como Bildung: o Círculo de Stefan George e a função formativa da História. Tempos Históricos, vol.
19, jan/jun 2015, pp. 120-137.
52
101 Sérgio Buarque aprofunda esse grau comparativo duas décadas mais tarde, quando escreve sua
tese de cátedra, "Visão do Paraíso”, defendida na USP em 1958 e publicada pela primeira vez no ano
seguinte.
102 BRESCIANI, Maria Stella Martins. Um diálogo possível entre (e com) os intérpretes do Brasil. In:
SOIHET, Raquel; GONTIJO, Rebeca; AZEVEDO, Cecilia; ALMEIDA, Maria Celestino de (orgs.).
Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009. p. 167. Vale mencionar que a ideia de “lugar-comum”, à qual a Professora Maria Stella
Bresciani recorre, para além de sua acepção usual de clichê, contém em si a noção de “fundo-
comum”, ou seja, um conjunto de asserções que permitem a troca de crenças, de palavras, de
preconceitos, argumentos e opiniões sobre um tema. Deste modo, o “lugar-comum” se estrutura na
convergência de opiniões formadas na experiência do dia a dia, estreitamente vinculadas a
expectativas formuladas e fixadas no imaginário e nas representações coletivas, mas que, todavia, se
alimentam de uma tradição filosófica e uma concepção de política. A autora se vale das reflexões de
Myriam Renault d’Allones, no livro Le dépérissement de la politique. Généalogie d’un lieu commun.
Paris: Flammarion, 1999. Stella Bresciani identifica os "fundos comuns" de onde esses autores
elaboraram as suas ideias com base na incompatibilidade entre Estado e sociedade. Seriam eles: 1)
O pressuposto mesológico; 2) As noções de raça e de etnia como um pecado de origem; 3) A
avaliação da capacidade intelectual dos pais colonizadores; 4) A ausência do cidadão; 5) A
precariedade dos hábitos de solidariedade e cooperação, fazendo do liberalismo da Constituição
53
federativa de 1891 uma ideia exótica; e, 6) A volta ao pressuposto inicial quanto ao desencontro entre
instituições políticas e sociedade.
103 Idem; p. 178; HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil, op.cit. pp. 135-137.
104 BRESCIANI, ibidem, p. 179.
54
mostravam o modo como nos encontramos um dia com nossa realidade”.105 Parecia
antever o que viria no ano seguinte ao seu livro de estreia.
Olympio em 1936, abrindo a Coleção Documentos Brasileiros. A obra foi então prefaciada por
Gilberto Freyre, que além de dirigir essa primeira fase da coleção já havia publicado Casa Grande &
Senzala em 1933.
108 BERRIEL, Carlos. Tiête, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado. 2. ed. Campinas/SP: Editora
Unicamp, 2013. O autor nos informa que Paulo Prado foi o principal braço intelectual entre a geração
literária portuguesa de 1870, que incluía nomes do peso de Eça de Queiróz ou dos historiadores
Oliveira Martins e Alexandre Herculano, com o modernismo paulista. Dentre as idas e vindas à casa
de seu tio Eduardo Prado, em Paris, absorveu dos intelectuais portugueses, amigos de seu tio, as
teses raciais da época, sobre a história portuguesa e as adaptou à realidade brasileira, buscando
justificar uma suposta superioridade de São Paulo frente aos demais estados. Isso porque, o paulista
descendia do português heróico dos descobrimentos, enquanto os demais brasileiros descendiam de
uma segunda geração, de portugueses misturados com índios lascivos e com os negros corrompidos
pela escravidão. A respeito de Oliveiras Martins, dois trabalhos que tive a oportunidade de conhecer
quando estive em Coimbra, em 2013, para um Colóquio de doutorandos, devem ser mencionados.
São eles: PONTE, Carlos Salazar. Oliveira Martins: a história como tragédia. Coleção Temas
Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998; MAURÍCIO, Carlos. A invenção de
56
para além do eixo Rio-São Paulo. Adepto dessa concepção, o historiador alemão
Peter Gay não se admirava de que os comentaristas, os entusiastas e os
comerciantes mais venais da indústria cultural costumassem mistificar as tentativas
de uma avaliação geral do modernismo. Para ele:
Carlos Berriel, resultante de sua tese de doutorado, também pode ser lido nesse contexto de uma
revisão memorialística.
113 GAY, Peter. Modernismo: o fascinio da heresia. De Baudelaire a Beckett e mais um pouco. trad.
́
Denise Bottmam. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p, 17.
114 Idem, pp. 18-19.
115 VELLOSO, op.cit, p. 29.
58
116 FARIA, Daniel. O mito modernista. Uberlândia: Editora da UFU, 2006. p. 14.
117 Idem, p. 15. Segundo Faria e na mesma direção de Peter Gay, o termo “modernismo” já existia,
mas numa outra acepção mais abrangente, que incluía movimentos intelectuais e estéticos, conjuntos
de ideias e de propostas poéticas, existentes desde o fim do século XIX. Este sentido ainda é válido
em outras línguas, como o castelhano, onde “modernismo" e “vanguardas" não são termos
equivalentes.
118 Sobre esse debate ver: Miceli, Sérgio. Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-1945).
São Paulo: Rio de Janeiro: DIFEL, 1979 e DECCA, Edgar S. de. Os intelectuais e a redemocratização
no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am
Main: Vervuert, 1991. pp. 29-42.
59
sem que esse sistema deixasse de exercer sua função corrosiva.119 Assim é que,
durante o Estado Novo, por exemplo, Candido Portinari, cumprindo encomenda
oficial, pintou no moderno prédio do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, os
"famosos murais que, pela concepção, temário e técnica, eram a negação do regime
opressor, ao mostrarem como representante da produção o trabalhador, não o
patrão branco, e ao fazê-lo conforme uma fatura que afirmava a inovação criadora
contra as normas tradicionais, de agrado dos poderes”.120
Se antes, a abertura criativa concedida a Portinari pôde ser interpretada
numa chave de resistência à opressão, hoje sabemos que Vargas tinha muito clara a
intenção de “elevação do homem brasileiro”. Numa explícita parceria entre governo e
artistas e contando ainda com cientistas sociais, o governo impôs critérios
importantes para fixar a figura ideal que “nos seja lícito imaginar como representativa
do futuro homem brasileiro”, não se furtando de análises embasadas na frenologia,
na somatologia, na antropometria e sustentadas em dados sobre a formação,
evolução e unidade racial da população brasileira.
Em outras palavras, como demonstrou em sua pesquisa Maria Bernadete
Ramos Flores, “se não se pode afirmar que Vargas tivesse criado ‘uma imagem
unívoca e definida' para seu governo, pelos editais de concursos e pelos termos das
encomendas, mostra-se clara uma escolha estética paralela àquelas utilizadas nos
diversos programas imagéticos oficiais, no entre-guerras”.121 O chamado "retorno à
ordem”, ao re-figurar o corpo fragmentado pelas vanguardas artísticas do início do
século, conclui, serviu aos programas de crença no advento do “homem novo”. O
trabalhador, a juventude e a mãe foram, em todos os governos, as figuras exaltadas,
esculpidas na sua integridade corpórea, transformadas em simióforos que
carregariam o ideal de nação.122
119 CANDIDO, Antonio. A revolução de 1930 e a cultura. In: _____. A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 194.
120 Idem, pp. 194-195. Nesse passagem, Antonio Candido vale-se do trabalho de Annateresa Fabris,
Portinari pintor social. 1977. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo (USP). Escola
de Comunicação e Artes. Nas palavras de Antonio Candido, a autora focaliza a pintura social de
Portinari à luz da teoria marxista da alienação, analisando o tratamento revolucionário do negro, cuja
função em telas e painéis dos anos 30 é uma afirmação racial, é um reconhecimento do seu papel
histórico, é símbolo do proletariado (FABRIS, op.cit. p. 176).
121 FLORES, Maria Bernadete Ramos. O nu e o vestido, o futuro e o passado, a pedra e a carne: a
123 Ibidem, p. 148. Na abertura do capítulo a autora descreve um bom exemplo dessas discussões:
Em junho de 1937, o ministro Capanema apresentara a Getúlio a proposta da estátua do homem
brasileiro a ser erigida no pátio do Edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública - MES: um
bloco de de granito, aproximadamente 11 metros de altura, sentado num soco, nu, como o Penseur,
de Rodin, mas de aspecto que denotasse calma, domínio, afirmação. (…) Porém, Censo Antônio, que
recebera a encomenda, apresentara um projeto que não correspondia ao desejado por Capanema: o
homem era de feições sertanejas, barrigudo e pouco atlético. Pouco depois a encomenda lhe foi
retirada e foi aberto um concurso público em janeiro de 1938 com as seguintes prescrições: a estátua
será constituída simplesmente com um homem que estará sentado; representativo do melhor tipo
racial brasileiro; o homem estará nu, respeitadas porém as conveniências da praça pública; será de
12 metros de altura e em granito; o pedestal terá apenas 30 ou 40 cm. Seria uma monumentalidade
em frente ao edifício do Ministério da Educação. A encomenda foi entregue a Brecheret, com a
recomendação expressa de Capanema, para que não fizesse trabalho estilizado e nem decorativo,
(…) o homem deveria ser figura sólida, forte. Nada de rapaz bonito. Um tipo moreno, de boa
qualidade, com semblante denunciando a inteligência, a elevação, a coragem, a capacidade de criar
e realizar. A estátua não fora concluída. Conta-se que a maquete de 3 metros de altura teria
desabado, sem deixar vestígios. Pelo exposto, o Homem Brasileiro seria de matriz clássica, aquele
"homem novo” que estava no centro dos interesses de todos os regimes políticos da década de 30.
FLORES, op.cit, pp. 141-142.
124 PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Os Afrescos nos tropicos: Portinari e o mecenato Capanema.
́
2003. Tese de Doutorado em História Cultural. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de
Filosofia e Ciências Humanas. p. 24. Um outro estudo importante dessa temática é a coletânea
organizada por Helena Bonemy, Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro:
Editora FGV; Bragança Paulista (SP): Editora Univ. de São Francisco, 2001.
61
125 Idem, p. 29. Especificamente sobre o SPHAN, ver: RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os
antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937-
1968). 1992. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social.
126 A coleçao publicou ainda os seguintes titulos: Viagem pitoresca atraves do Brasil, de Rugendas;
̃ ́ ́
Viagem à Província de São Paulo, de Auguste de Saint-Hilaire; Reminiscências de viagem, de Danil
Kidder; Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste Debret; Memórias de um colono no
Brasil, de Thomas Davatz; Brasil Pitoresco de Charles Ribeyrolles; Viagem à terra do Brasil de Jean
de Léry; Dez anos de Brasil de Carl Sedler; Memorável viagem marit́ ima, de Joan Nieuhof; Notas
sobre o Rio de Janeiro de John Luccock; Viagem às missões jesuit́ icas do Padre Antônio Sepp von
Rechegg; Imagem do Brasil de Frans Post; Os caduveos de Guido Boggiani; História das missões
dos padres capuchinos, de Claude d’Abbeville; Notícia do Brasil de Gabriel Soares de Souza; História
da guerra Rio e Buenos Aires e Galeria dos Brasileiros Ilustres de S. A. Sisson.
62
aqui sem conhecer a cultura brasileira porque tinha ido para a Europa com 9
anos; voltei com 20. De maneira que eu não conhecia a cultura brasileira.
Comecei a ler. Passei três meses na fazenda com um monte de livros da
biblioteca da fazenda. Os livros que havia na fazenda eram ruins. Tinha
muito José de Alencar, tinha Taunay, tinha aqueles autores que meu avô e
meu pai liam e gostavam. De maneira que eu me atualizei. Depois, como eu
tinha uma inclinação por história, fui estudar história. Eu já via história a
partir de umas teorias mais modernas, que eu tinha aprendido na
Universidade de Paris. Já não era uma história de fatos, das grandes
pessoas e tal. Falei: "-Mas está tudo errado! está tudo errado! Precisa-se
estudar o Brasil. (...) Precisamos voltar às fontes, precisamos estudar as
fontes para ver como é que se evoluiu.127
127 Entrevista concedida a Marco Aurélio Andrade de Filgueiras Gomes em 15 de agosto de 1982, na
cidade de Bragança Paulista (SP).
128 DECCA, Edgar S. Os intelectuais e a redemocratização no Brasil. In: KOHUT, Karl. Palavra e
poder: os intelectuais na sociedade brasileira. Frankfurt am Main: Vervuert, 1991. p. 46. A abordagem
dessa história intelectual feita por Edgar de Decca, é ao meu ver um desdobramento de seu livro O
silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Nele, “a
revolução de 30 como memó́ ria histórica do vencedor da luta, fazendo parte do exercício de
dominação, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado, qualificando tanto os agentes
como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 é memorizada pelo vencedor como uma
luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e a oligarquia”. No que diz respeito à construção de
uma memória histórica pelo vencedor, o autor também chama a atenção para a cronologia criada
após esse “fato”. Nesse sentido, tudo o que viria antes dele seria denominado “República Velha”, já
que “tal revolução inaugura o novo” (e nisso pode-se inserir as interpretações do Brasil). A
historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quais a mais corrente é a
da economia agroexportadora x industrialização, aspectos que marcaram profundamente a produção
acadêmica ao longo do século XX. DECCA, O silêncio…. pp. 108-110.
63
antiliberal brasileira. Esta reação, porém, não foi homogênea e incluía movimentos
sociais, políticos e intelectuais muito diversos, que iam desde o integralismo até o
comunismo. O resultado do entrechoque de forças do período culminou em 1937
com um golpe que instaurou o Estado Novo.129
129 SALLUM JR, Basílio. Sobre a noção de democracia em Raízes do Brasil. In: MARRAS, Stelio
(org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012. p. 52.
130 WAIZBORT, Leopoldo. O mal entendido da democracia: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do
Brasil, 1936. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 26, número 76, junho de 2011. p. 40;
CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
131 Destaque para os seguintes trabalhos: os já publicados WAIZBORT, Leopoldo. O mal entendido
da democracia: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1936. In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais. Vol. 26, número 76, junho de 2011. p. 40. EUGENIO, João Kennedy. Ritmo
espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina: EDUFPI,
2011; ROCHA, João Cezar de Castro. Raízes do Brasil: biografia de um livro problema. In: MARRAS,
Stelio (org). Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012 e o inédito
CARVALHO, Marcos Vinícius Corrêa. Raízes do Brasil, 1936. Campinas: Unicamp, 1997
(Dissertação de Mestrado), onde o autor procura afinar as atitudes teóricas de Sérgio Buarque com a
hermenêutica de W. Dilthey.
64
132 WAIZBORT, op.cit., p. 44. A simpatia monarquista de Sérgio Buarque também é apontada por
João Kennedy Eugênio, no artigo ‘Um horizonte de autenticidade: Sérgio Buarque de Holanda,
monarquista, modernista, romântico (1920-1935), que compõe parte da coletânea, Sérgio Buarque
de Holanda: perspectivas. Campinas/SP: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.
133 SALLUM JR, op.cit., pp. 53-54. Não cabe neste espaço adentrar essa discussão de modo
sistemático, o que inclusive já foi feito de maneira competente por outros autores, citados em nota
anterior. Todavia, é importante mencionar que a gênese do pensamento de Sérgio Buarque ao
elaborar o texto final da edição de Raízes de Brasil de 1936, encontra-se num debate do pensamento
alemão em torno das ideias de psicogênese e sociogênese. Para Leopoldo Waizbort, no período que
vai da virada do século XX até o início do período nacional-socialista na Alemanha, a discussão
acerca dos nexos de pisco e sociogênese é um dos núcleos fortes em torno do qual gravitavam os
65
debates acerca da interpretação histórico-cultural-social, debate esse difuso por toda a plêiade das
humanidades. Para Waizbort, a sociologia de então, procurou desenvolver esse problema, que pode
ser rasteado em autores como Georg Simmel, Max Weber, Ernst Troeltsch, Werner Sombart, Hans
Freyer, Karl Mannheim e Norbert Elias, todos conhecidos de Sérgio. WAIZBORT, op.cit., p. 41.
134 A resenha em questão, intitulada O Estado totalitário, encontra-se em: BARBOSA, Francisco de
Assis. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 298-301.
135 WAIZBORT, op.cit., p. 53.
136 Idem.
66
(…) uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas de
seu tempo – mas em caso contrário ainda pode se chamar historiador –
consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história. Quer
isto dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idas
137 Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema da metáfora, ver: RICOEUR, Paul; MACEDO,
Dion Davi (Coaut. de). A metáfora viva. São Paulo, SP: Loyola, 2000; BRESCIANI, Maria Stella
Martins. Uma questão de estilo. In: O charme da ciência e a sedução da objetividade. Oliveira
Vianna entre os intérpretes do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007. pp. 455-486.
138 DECCA, Edgar S. As metáforas da identidade em Raízes do Brasil: decifra-me ou te devoro. Vária
ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no
passado o bom remédio para as misérias do momento que corre. 139
139 HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1977. p.
XVIII.
140 Não nos cabe nesse capítulo e nem é nossa intenção fazer uma leitura pormenorizada dos
significados possíveis atribuídos ao livro de estreia de Sérgio Buarque. Tampouco é objetivo fazer
uma leitura através da vasta fortuna crítica, lembrando que nosso foco principal é o autor como um
personagem. Nessa parte do capítulo, "Raízes do Brasil” é visto como um produto do seu tempo e
serviu como exemplo de análise social feita a partir dos anos 1930, momento de amplas
interpretações sobre o país.
141 Vale lembrar que, já no fim da vida, Sérgio escreve um longo ensaio sobre esse historiador.
Ranke, no momento político de nacionalismos europeus do século XIX, buscou estabelecer através
da análise histórica as fronteiras políticas e culturais europeias, percebendo essa unidade a partir de
três momentos: o primeiro momento foi a intensa migração dos povos romanos e germânicos,
propiciando a formação do interior da Europa; com as Cruzadas, segundo momento, os europeus
criaram o espírito de expansão para o exterior e de luta contra o infiel, criando uma profunda divisão
entre a cristandade de Roma e a cristandade oriental; por último, como observou Sérgio Buarque, as
fronteiras europeias se expandem para além dos oceanos, com a expansão ultramarina. HOLANDA,
Sérgio Buarque. Ranke. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1979.
68
142HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. p. 4.
143DECCA, Edgar S. As metáforas…op.cit., p. 432. Uma cópia dessa tese encontra-se no Arquivo
Central da Unicamp. Nos arquivos da Escola Livre de Sociologia e Política-ELSP há um dossiê sobre
a vida universitária de Sérgio Buarque. Dentre os documentos encontram-se seus boletins, a ata de
defesa dessa tese, a cópia de seus trabalhos para as disciplinas cursadas, sua prova de proficiência
em língua alemã, entre outros.
69
não compactuava com nenhum desses sistemas de ideias e valores, que no Brasil
não deitaram raízes e seriam, portanto, ideias importadas e fora de lugar. Daí a
dificuldade de nós lidarmos com as instituições impessoais, com as normas sociais e
com as leis abstratas como previa o Estado democrático burguês. Disso derivaria
nossa tendência à anarquia e nosso apego aos líderes autoritários que nos imporiam
a ordem e o constrangimento de nossos excessos. À luz do tempo histórico vivido
pelo autor, o capítulo final de "Raízes do Brasil” se tornava profético, pois não
bastava a implementação do Estado para a superação da ordem familiar, "eis que o
novo governante se auto intitularia o pai dos pobres”.147 Em suma, "Raízes do Brasil”
se torna um instigante exemplo para pensarmos a ideia de explicação do país feita
de cima, num momento em que se buscava a modernização. Embora advindo do
modernismo, o enigmático ensaio de Sérgio Buarque, diferentemente do que
sustentou durante muito tempo sua fortuna crítica, serviu muito mais aos anseios do
“novo” que se buscava a partir de 1930, do que propriamente como um grito
democrático radical como propôs o memorialismo de Antonio Candido. O livro não
ficou isolado nessa ótica e nem foi calado pelo Estado Novo, formando ao lado de
outras explicações, como as de Gilberto Freyre e de Caio Prado Júnior, o que a
posteriori se rotulou de moderna historiografia brasileira.148
147 Idem, pp. 437-8 e também GNERRE, Maria Lúcia. A tragédia da cordialidade: Antígona, o
estado e família no homem cordial de Raízes do Brasil. (texto inédito, doutorado Unicamp).
148 FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Memoria e historia da historiografia no Brasil: a invençao de
́ ́ ̃
uma moderna tradição, anos 1940-1960. In: SOHIET, R. (et al.) Mitos, projetos e práticas políticas:
memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Vele destacar aqui a recente
obra organizada por Lincoln Secco e Luiz Bernardo Pericás, Intérpretes do Brasil: clássicos,
rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014. Mesmo propondo trazer à luz autores pouco
estudados hoje ou relegados/esquecidos propositalmente pelos meios acadêmicos, a obra não deixa
de atestar a ideia de clássico, atribuída a Sérgio Buarque, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre,
reforçando o memorialismo de Antonio Candido, também personagem da obra. Na crítica que
publicou ao livro, no jornal O Globo do dia 9 de março de 2014, o professor da IUPERJ, Francisco
Carlos Teixeira da Silva levanta questionamentos importantes: "por que os clássicos fazem
companhia aos “rebeldes” e aos “renegados”? Talvez um livro só sobre os “esquecidos” fosse, em si
mesmo, mais contundente, e abrisse espaço para outros tantos “esquecidos”, “rebeldes” e
“renegados”. Assim, nomes como Anísio Teixeira faltam nesta lista de “esquecidos” — ao lado de
outros, ainda uma vez, esquecidos. O homem que permitiu a emergência de Darcy Ribeiro e Paulo
Freire, perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura civil-militar, exilado e morto de forma vergonhosa
para o Brasil, deveria constar desta lista de “rebeldes” e de “esquecidos”. Indo além, temos ainda
dívidas com Guerreiro Ramos e Josué de Castro, homens que “explicaram” o Brasil e que, por isso
mesmo, tiveram sua “morte intelectual” decretada pelas elites. Guerreiro Ramos e Josué morreram de
tristeza, a tristeza dos tempos de chumbo. Mas, insisto, poderíamos, com certeza, sem nenhuma
injustiça com os mestres já consagrados (…) abrir algumas páginas, mais espaço, para estes outros
nomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no silêncio. Teríamos,
então, um livro com sabor de resposta e de desafio. Em vez de repetir aqueles que frequentam com
assiduidade as nossas bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de “tiro, bala ou
susto” (…) para construir um país mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos".
71
Para uma análise detalhada de Capistrano de Abreu ver: GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano:
149
Capistrano de Abreu (1853-1927), memória, historiografia, escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2013.
72
Brasil (1930-1960). In: MARRAS, Stelio. (org). Atualidades de Sérgio Buarque de Holanda, op.cit.
p. 113. Ao relatar essa passagem de Sérgio pelos Estados Unidos, Nicodemo nos informa que: “(…)
enquanto esteve em Nova Iorque, horas antes de embarcar para o Brasil, em 18 de julho de 1941,
Sérgio entrou em contato com Paulo Duarte e lhe passou informações sobre como deveria proceder
para obter cópias de manuscritos do século XVIII e XIX para a Biblioteca Municipal de São Paulo, e
sugerindo que entrasse em contato com Berrien e Hanke. Nicodemo se baseia em uma carta
localizada no CEDAE/Unicamp, Arquivo Paulo Duarte, vol. 8. De fato esse contato foi realizado. Um
Memorandum, de 18 de agosto de 1941, enviado por Geoge Sioussat, chefe da Divisão de
Manuscritos, a Paulo Duarte, aponta a lista de documentos consultados por Sérgio Buarque antes de
seu embarque de volta ao Brasil. Essa fonte afirma, ainda, que a seção de manuscritos estava
calculando os custos estimados para a microfilmagem dos seguintes documentos: Cleary, Brazil
Chronicas Lageanas. Or a record of facts and observations on manners and custons in South Brazil,
extracted from notes taken on the spot, during a period of more than 20 years. Lages, 1886. 415 pp.8-
3/4 x 13 in; Cleary, Brazil under the Monarchy. A record of facts and observations. From notes taken
in Brazil during a period of more than 20 years. n. d. 189 pp. 8 x 12-1/2in; Resolutien raeckend Brazil.
1649. 1 vol., 501 pp., 8-1/2 x 13 in; Rapports van Brazil (West India and East India companies, etc.)
16 items. 1636 - 1644. 235 pp., 8-3/4 x 13 in; Miscellaneous Papers relating to the West India
Company, Portugal and Brazil (In Dutch). 40 items. 1568, 1635-1695. 205 pp., 8-1/2 x 13. Essa
informação vai ao encontro do que já apontamos, ou seja, a ideia de uma moderna interpretação do
Brasil deveria passar pela devassa e pela leitura de documentos, sobretudo, manuscritos, de
preferência inéditos e localizados em arquivos fora do país. Na época em que localizei esse
documento, ainda em 2011, o CEDAE/Unicamp encontrava-se em fase de mudança para a atual
sede, no Instituto de Estudos da Linguagem. Dessa forma, o Memorandum estava em meio a um
grande volume de documentos avulsos, mas identificados como sendo as correspondências
recebidas por Paulo Duarte. Sobre a passagem de Sérgio Buarque pelo INL ver de maneira mais
detalhada: CARVALHO, Marcus Vinicius C. O Instituto Nacional do Livro e os modernistas: questões
para a história da educação brasileira. In: Cadernos de História da Educação, vol. 11, nº 2, jul/dez,
2012. pp. 543-557.
73
152 NICODEMO, op.cit., 113. Sobre essa "fase americana” de Sérgio Buarque vale consultar ainda:
WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo
Horizonte: EdUFMG, 2000 e o artigo cunhado pelo próprio autor na época, publicado no "Diário de
Notícias" do Rio de Janeiro e em livro na coletânea "Cobra de Vidro", de 1945, "Considerações sobre
o americanismo”. Vale mencionar ainda, que na Biblioteca que pertenceu a Sérgio Buarque há um
exemplar do livro de Turner, publicado em Nova Iorque em 1920 pela editora H. Holt. É bem possível,
portanto, que o historiador o tenha obtido durante a viagem aos Estados Unidos. A tese de Turner foi
apresentada pela primeira vez em formato de paper com o título "The significance of the Frontier in
American History", em 1893, durante um encontro da American Historical Association, em Chicago.
153 Nas correspondências trocadas entre Rubens Borba e Sérgio Buarque, Rodolfo Garcia é tratado
pelo primeiro várias vezes em tom de galhofa. Essa desavença também pode ser conferida em:
BANDEIRA, Suelena P. O mestre dos livros: Rubens Borba de Moraes. Brasília: Briquet de
Lemos/Livros, 2007. A chegada à diretoria da Biblioteca de fato ocorreu. Rubens Borba assumiu o
posto em 17 de dezembro de 1945, já sem a figura de Getúlio Vargas na presidência. Sua gestão à
frente da BN se estendeu até agosto de 1947, quando foi retirado do cargo pelo presidente Eurico
Gaspar Dutra, que deu lugar a outro indicado, o escritor maranhense Josué Montello. BANDEIRA,
Suelena, op.cit., pp. 62-67.
154 A Biblioteca Nacional em 1944. Relatório que o Exmo. Sr. Dr. Gustavo Capanema, Ministro da
Educação e Saúde apresentou em fevereiro de 1945, ao Diretor Rodolfo Augusto de Amorim Garcia.
Setor de manuscritos da Biblioteca Nacional, RJ.
74
primórdios da colonização; III- A formação étnica; IV- A expansão geográfica; V- Defesa do território;
VI- Desenvolvimento econômico; VII- Desenvolvimento espiritual; VIII- O sentimento nacional; IX- A
independência.
157 Ibidem, p. 118. Em relação ao que foi descrito ver: SOUSA, Octávio T.; HOLANDA, Sérgio B.
História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. pp. 11-30 e 125-138.
75
158 Dentre os aspectos naturais, até o clima tropical foi considerado, no século XIX, como um fator de
criação de um sentimento nacional. Sobre este assunto ver: BARBATO, Luis Fernando Tosta. Brasil,
um país tropical: o clima na construção da identidade nacional brasileira (1839-1889). 2011.
Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas.
159 A ideia de brasilidade foi bastante divulgada a partir da publicação do livro do conde Afonso Celso,
Por que me ufano do meu país (1900), "servindo para indicar uma espécie de essência dos seres e
das coisas do Brasil, capaz de inspirar o sentimento de amor à pátria”. GONTIJO, Rebeca. O velho
vaqueano. Capistrano de Abreu: memória, historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2013. p. 69. As informações do parágrafo devem-se, além do citado livro, aos trabalhos de: ZILLY,
Berthold. Minha formação (1898), de Joaquim Nabuco - a estilização do brasileiro ideal. In: DECCA,
Edgar S; LAMARIE, Ria (orgs). Pelas margens: outros caminhos da história e da literatura.
Campinas: Unicamp, 2000; NAXARA, Márcia R. C. Cientificismo e sensibilidade romântica: em
busca de um sentido explicativo para o Brasil. Brasília: UnB, 2004.
76
passou a ser visto como uma região inóspita e inabitada, por oposição ao mundo
urbanizado das cidades litorâneas.160
Dessa maneira, tal como as representações indígenas que assolavam as
mentes dos "homens de letras” de outrora, o sertão, região à margem do mundo
histórico, também foi transformado em matéria central nos campos da literatura e da
cientificidade. Duas vertentes somaram ao imaginário constituído a partir de fins do
século XIX: uma ligada à literatura de ficção, que incluía novelas, contos, romances
e peças de teatro e, outra, às expedições científicas, que abrangiam memórias e
relatos de viagens anotados por estrangeiros, bem como por militares e funcionários
do governo que percorriam o interior. O Brasil profundo se tornava, por
consequência, a inspiração de um plano de escrita da história, “dedicado a recuperar
ou inventar peculiaridades geográficas, humanas e culturais”. 161 O que pode ser
observado, por exemplo, na associação do sertanejo à "pureza" e à "honestidade" e
do interior como um lugar de "tradições genuínas” e em vias de desaparecimento.162
Advindo dessa conjuntura, Capistrano de Abreu, a exemplo de Sérgio
Buarque de Holanda, nos ensinava que "a história dos caminhos antigos era a porta
de acesso para a compreensão da ocupação territorial. Eram as vias que ligavam o
sertão ao litoral, podendo ser terrestres ou fluviais”. Também podiam ser uma forma
de compreensão do processo histórico de formação do Brasil, vista pelas lentes de
um historiador-viajante, que conhece os espaços mediante o estudo de sua
ocupação ao longo do tempo.163
Não seria, portanto, mera especulação deduzir que leituras de uma dada
tradição historiográfica somadas às pesquisas desenvolvidas por Sérgio Buarque a
partir de sua experiência nos Estados Unidos, em 1941 e cujos resultados estão em
"Caminhos e Fronteiras"(1957), tenham sido antes, incorporadas em "História do
Brasil”, mesmo que de forma parca. Ao discorrerem sobre o elemento indígena, por
exemplo, os autores identificaram e diferenciaram os principais grupos encontrados
e contatados pelos elementos brancos no decorrer da conquista e da colonização.
160 AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do Oeste no Brasil e nos EUA. In:_____ e
PIMENTEL, Sidney Valadares (orgs). Passando dos limites. Goiânia: UFG, pp. 51-78,
especialmente pp. 63-67; idem. Região, sertão, nação, Estudos Históricos - Dossiê História e
Natureza, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 145-151. Apud: GONTIJO, O velho…op.cit. p. 71.
161 GONTIJO, Rebeca, op.cit, pp. 71-72.
162 Idem.
163 Aqui faz-se referência ao livro de Capistrano de Abreu, Caminhos antigos e povoamento do
Para concluir esse breve parêntese, o que tentamos demonstrar foi o fato
de que, pouco lembrado tanto pelo autor quanto pela fortuna crítica, "História do
Brasil", além de um meio didático de divulgação da moderna historiografia, já
166 Ibidem. O termo “raça de gigantes” é atribuído por Sérgio Buarque e Octávio Tarquínio ao viajante
francês Auguste de Saint-Hilaire. p. 109.
167 HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções. Rio de Janeiro, 1945. pp. 11-14.
79
168 HOLANDA, Sérgio B. Caminhos e Fronteiras. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp.
12-13. Importante mencionar que quando Sérgio Buarque começou a estudar esses assuntos, no
limiar da década de 1940, já se podia falar de uma tradição historiográfica, que lidava com as
entradas e bandeiras, à qual é lícito dizer, remonta à obra de Capistrano de Abreu.
169 BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 56.
170 MORAES, Rubens Borba. Relatório do Diretor da Divisão de Preparação da Biblioteca Nacional ao
folhetos, formada por Diogo Barbosa Machado 171 , embrião da Biblioteca Real,
estava em péssimo estado de conservação. A maioria sem condições de reparo,
com danos irreversíveis. Amontoados pelos corredores da BN, muitos periódicos
eram depósitos de lixo e sujeira. A coleção de gravuras e mapas, comparadas em
seu valor às das melhores bibliotecas europeias, precisava ser urgentemente lavada
ou restaurada.
No que tange ao conjunto bibliográfico, o relatório aponta que "as
coleções se formavam a esmo", sem nenhum critério de seleção, sem métodos, nem
planos, aleatoriamente. As coleções de periódicos, com assinaturas suspensas há
três anos, estavam incompletas, as obras de referência desatualizadas e não se
comprava nada do que era publicado desde 1900. A atualização de cada área não
era, portanto, acompanhada pela biblioteca, prestando um desserviço aos usuários.
Na conclusão do relatório, Rubens Borba recomendava a completa
reforma da instituição, no sentido de torná-la uma "verdadeira biblioteca nacional”,
indicada ao aprofundamento de estudos e pesquisas. Ele sugeria a execução de um
plano com três pontos principais: a mudança radical do pessoal existente; a
construção de um novo prédio, e, a restauração em larga escala do acervo. Com o
relatório em mãos, o ministro Gustavo Capanema resolveu acatar boa parte dos
problemas elencados pelo relator, que contava com a experiência de ter posto de pé
a Biblioteca Pública Municipal de São Paulo.172 Embora se diga que nessa época
que Sérgio Buarque intensificou muito "seus estudos e pesquisas” 173 , restam
dúvidas: em primeiro lugar, não seria um contra-senso, já que o relatório apontava
para as péssimas condições de organização e conservação de parte do acervo? E
ainda, com tanto trabalho e problemas para resolver, que tempo restaria a Sérgio
Buarque, na rotina de seu expediente na BN, para se dedicar a estudos mais
sistemáticos?
171 Além de presbítero secular católico, Diogo B. Machado (1682-1772) foi escritor e bibliógrafo, autor
da obra "Bibliotheca Lusitana", a primeira grande obra de referência editada em Portugal. Ao longo
dos anos, reuniu uma impressionante coleção de livros, opúsculos e gravuras que ofereceu ao rei D.
José I de Portugal, após a biblioteca real ter sido consumida pelo fogo durante o terramoto de 1755.
Levada para o Brasil, quando a família real portuguesa ali se refugiou em 1808, a colecção de
Barbosa Machado constitui hoje um dos mais preciosos fundos da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.
172 BANDEIRA, Suelene, op.cit., p. 58.
173 NICODEMO, Thiago Lima, op.cit., p. 114.
81
176 Ibidem.
177 Idem.
178 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello. Trad. Berilo Vargas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. pp. 82-83. Quem tratou com detalhes do I Congresso Brasileiro de
83
Escritores foi Carlos Guilherme Mota no capítulo 3 de seu livro, Ideologia da Cultura Brasileira
(1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. 5.ed. São Paulo: Ática, 1985.
179 Livro importante de Antônio Pedro Tota que trata dessa aproximação no campo da cultura, entre
Brasil e Estados Unidos, sob a égide da política da boa vizinhança é O imperialismo sedutor: a
americanizarão do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Em
certa passagem o autor afirma: "O estado liberal, exigência mínima para a ‘americanização’ (…)
estava longe da realidade do Brasil nos anos 1940. Apocalípticos ou integrados não chegam a levar
em conta que a 'americanização' do Brasil tem sua gênese no estado não liberal de Vargas, das
décadas de 1930 e 40. Uma ‘americanização paradoxal’”. p. 16.
180 MELO, Ana Amélia de Moura C. de. Associação Brasileira de Escritores: dinâmica de uma disputa.
In: Vária História, Belo Horizonte, vol. 27, nº 46, pp. 711-732, jul/dez. 2011. Para uma leitura mais
84
Desse modo, receptora que foi das demandas do tempo, a ABDE abraçou
em seus quadros uma variedade de tendências políticas, que incluía desde liberais
conservadores até comunistas ligados ao PCB. Fora esse aspecto mais geral, ela
também deve ser pensada em consonância com a ampliação do mercado editorial e
com a prática de algumas editoras que antecipavam o pagamento de direitos
autorais, possibilitando a alguns escritores dedicarem-se somente à literatura,
mesmo que o Estado continuasse a ser o principal empregador dessa categoria
social. Casos, por exemplo, de José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico
Veríssimo.181
Mas até que se consolidasse definitivamente como "figura heróica”, o
escritor não teve vida fácil. Desde a década de 1880 eram frequentes as opiniões
acerca do baixo status de seu ofício. A vida intelectual daquela época tinha que lidar
com a falta de um público leitor, com baixas remunerações e com as dificuldades de
publicação, já que em um país de analfabetos as principais editoras preferiam
investir nas traduções de romances franceses, mais aceitos, do que arriscar com
autores desconhecidos. Mas por outro lado, foi esse quadro que estimulou a
construção da imagem sublime dos escritores que, "apresentados como honestos e
abnegados, procuravam superar todos os infortúnios, (…) em defesa de uma arte
mais ‘sincera’, ‘genuína’ e, portanto, ‘verdadeira’".182
Contudo, mais do que talento, o que garantia aos escritores prestígio
junto ao público, ascensão social ou memória póstuma, eram as redes de
sociabilidade em que estavam envoltos. Detentores ou não de diploma ou de
recursos financeiros, era "importante que obtivessem o apoio de ‘padrinhos’ com
prestígio suficiente para arrumar-lhes alguma colocação". Ambicionavam, assim,
Cárcere (2 volumes), postumamente publicado, em 1953; Caio Prado Júnior ficou preso entre 1935 e
1937, partindo em seguida para o exílio e regressando ao país em 1939; o jornalista Paulo Duarte foi
exilado por duas vezes: a primeira em 1932, após o levante paulista e a segunda em 1938, durante o
Estado Novo.
86
Não resta dúvida de que Sérgio Buarque foi um "homem de seu tempo”,
como foram tantos outros, intelectuais ou não, de sua geração. O que talvez
186 CANDIDO, Antonio. A visão política de Sérgio Buarque de Holanda. In: _____. (org.) Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998. pp. 81-82.
187 Idem, p. 86.
188 SOUZA, Laura de M. Prefácio. In: NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e
a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008. pp. 17-18.
87
diferisse Holanda dos demais fosse o fato de que, como "grande homem”, dotado de
livre arbítrio para pensar, se posicionar e escrever, escapasse do reino da
necessidade, onde vivia a maioria dos mortais.189
Desse modo, ao enaltecer de forma sublime a vida do historiador,
escolhendo apenas cores de combate para pintar sua biografia, Laura de Mello e
Souza reforça uma mística oficiosa, monumentalizada por textos celebrativos a
exemplo das práticas do século XIX, onde se buscavam nos campos da política ou
das letras os vultos exemplares da nação. Assim, a etiqueta de "socialista a vida
toda", encobre um personagem muito mais complexo e propenso, pelo menos em
parte da juventude, a modelos sociais nem tão progressistas, como sugere a autora.
A famosa aposentadoria, de 1969, por exemplo, é atenuada pelo próprio
Sérgio. Numa conversa entre amigos, na casa do historiador, em 26 de junho de
1977, Paulo Duarte relembrava o episódio: "Quando nós fomos expulsos da
universidade em 1969, o Sérgio não foi". Na sequência, Sérgio toma a palavra: "Mas
no dia seguinte eu pedi demissão!" Paulo Duarte completa: "Dá licença, deixa eu
falar (…). No dia seguinte, ele pediu a sua aposentadoria em sinal de protesto pela
nossa cassação". E, Sérgio encerra o assunto: "Em protesto e solidariedade. Agora,
eu não acho que foi heroísmo nenhum, pois eu tinha tempo garantido e me
aposentei com meus vencimentos”.190
Em 1978, a Associação dos Docentes da USP publicou um importante
relato que revelava a particular relação do poder universitário com o governo
golpista. As perseguições "macartistas" que se perpetravam tinham por objetivo
tanto colaborar com a aniquilação dos opositores da ditadura, quanto desmontar um
movimento interno de democratização e restruturação progressiva da
universidade.191 Chegou-se ao cúmulo de montar dentro do gabinete da reitoria uma
2004. Esse documento foi originalmente publicado pela Brasiliense, em 1978, sob o título O livro
negro da USP: o controle ideológico na universidade. Segundo o prefácio da edição de 2004, houve
alteração no título para não "incorrer na conotação certamente involuntária e discriminação racial,
atentos aos alertas do movimento negro quanto à recorrente associação do adjetivo ‘negro' a algo
negativo". Associação…op.cit., p. 6.
88
192 ELIAS, Beatriz. Documento comprova existência de representação do DOPS na Reitoria da USP.
nº 1, Brasília, jan/abr, 2011. Uma leitura detalhada da reforma Universitária realizada na USP durante
a década de 1960 foi feita por Macioniro Celeste Filho em seu livro, A constituição da Universidade
de São Paulo e a reforma universitária da década de 1960. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
89
Meu caro Sérgio, estou a tempo para lhe escrever afim de agradecer o seu
depoimento na Justiça Militar em meu processo. (…) pode estar certo que
grande é o meu conhecimento pelo seu gesto em especial pelos tons do
depoimento que foram comunicados pelo meu advogado. Espero poder
retribuir-lhe que fico devendo, em todo o caso pode estar certo que não
esquecerei do fato. (…) Abraço-o cordialmente o amigo de sempre, Caio.196
Meu caro Sérgio, estou lhe remetendo com esta uma reportagem acerca do
seu filho e que naturalmente interessará você, (…) Você deve ter recebido
carta minha, já há tempos, agradecendo seu depoimento a meu favor na
Justiça Militar. Reitero aqui os meus agradecimentos. Tive notícias de seu
pedido de aposentadoria (…). Mas seja como for, (…) você pode estar
seguro, de minha grande amizade e admiração que espero poder reiterar
pessoalmente logo que atravessarmos as tão desfavoráveis circunstâncias
do momento que atravessa o Brasil e de que todos somos vítimas. Aceita
com Maria Amélia expressão de meus mais cordiais e afetivos sentimentos,
(…) abraço muito amigo do Caio.197
***
195 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos Avançados [on-
line]. 1994, vol. 8, n º 22. São Paulo, set/dez. p. 273.
196 Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 296, Arquivo Central-SIARQ,
Unicamp.
197 Caio Prado Júnior. Fundo SBH. Correspondências passivas. Cp 298, Arquivo Central-SIARQ,
Unicamp.
90
Capítulo 2
O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA À
APOSENTADORIA E DEPOIS…
as portas da crítica literária ao jovem Sérgio, agora lhe deixava às voltas nos
inúmeros corredores do palacete do Ipiranga.201
A respeito desse episódio há um importante registro. Trata-se de um texto
datilografado em quatro laudas, sem indicações de local ou data, de folhas
amareladas e com breves rabiscos à caneta nas cores vermelha, preta e azul, que
corrigiam concordâncias de uma ou outra frase. Anexado a ele um pequeno pedaço
de papel branco, recortado em forma quadrada, datilografado e assinado em azul:
"Rio, abril, 1988". A leitura desse documento leva a crer que se tratava de
homenagem feita por colegas da Faculdade de Filosofia da USP, quando do
ingresso de Sérgio Buarque como docente, em 1958 e, se a memória de sua viúva
estiver mesmo correta, ele foi redigido pelo professor Cruz Costa. Tal como exposto
por Maria Amélia: "Tenho a impressão que estas palavras foram do professor Cruz
Costa, catedrático de filosofia e grande amigo”.202
Revelando por meio de lembranças, imagens de uma longeva relação de
amizade, Cruz Costa nos oferece algumas pistas das redes que trouxeram de volta o
amigo às terras que tão bem conhecia e à direção do Museu, símbolo de sua gente:
(…) Sérgio vivia na Corte, onde se passam grandes cousas e não desejaria,
por certo, transferir-se para a província, para uma faculdade tão estranha
aos hábitos nacionais. Nossa escola, àquela altura já contasse com nomes
ilustres no seu corpo docente, só produzira os famosos “chato-boys” de que
falava o saudoso Oswald as já referidas “relíquias"…Por isso, não lhe falei
uma vez sequer (…) sobre a Faculdade de Filosofia. Mas a ideia de contar
com ele, um dia, para honra nossa, como professor em São Paulo, não me
largava. Lembro-me de o haver acompanhado, no intervalo de uma das
sessões do Congresso, realizada no Centro do Professorado Paulista, na
visita em que ele fez à casa em que nasceu, à rua de S. Joaquim. E,
enquanto Sérgio Buarque examinava o casarão, eu cá com os meus botões
dizia: “este Hollanda paulista ainda para cá há de vir!”. Não sei ao certo,
quem o trouxe de volta, a essas terras cuja história ele tão bem conhece.
Creio que foram os Drs. Afonso de Taunay e Macedo Soares e que também
nisso andou o dedo do nosso amigo Dr. Fernando de Azevedo. Pois bem
hajam por isso.203
201 O primeiro artigo de Sérgio Buarque, "Originalidade Literária” foi publicado no jornal "Correio
Paulistano", quando o autor tinha 18 anos. Afonso Taunay, amigo de seu pai, foi responsável por
indicar o texto à publicação.
202 Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/UNICAMP. Série Vida Pessoal. Documento VP 180.
Esse documento também foi usado por Gisele Languardia Valente em sua tese de doutorado
intitulada As missões culturais de Sérgio Buarque de Holanda, defendida em 2009, na Unirio, área
de Memória Social. Todavia, a autora atribui a esse documento o caráter de epístola, o que discordo.
Ele é na verdade um texto escrito para ser lido em cerimônia específica. Tanto é, que no catálogo do
Fundo Sérgio Buarque, ele não consta na série Correspondências.
203 Idem.
94
204 Ibidem. José Carlos de Macedo Soares era um político influente, não apenas em São Paulo.
Presidiu a Academia Brasileira de Letras, entre 1942 e 1944 e foi partidário de Getúlio Vargas desde
a “revolução” de 1930. Em 1932 desempenhou missões diplomáticas na Europa e no ano seguinte
elegeu-se deputado federal constituinte por seu estado. Em 1934, participou da articulação que
conduziu o civil Armando Salles de Oliveira ao cargo de interventor do Estado, serenando um pouco
os ânimos da resistência paulista. Com a queda de Vargas e a posse do presidente do Supremo
Tribunal Federal, José Linhares, em outubro de 1945, Soares é indicado interventor federal em São
Paulo, permanecendo no cargo até março de 1948, quando assume Adhemar de Barros, eleito
meses antes. Encerrou sua trajetória política novamente no Ministério das Relações Exteriores,
convidado pelo interino Nereu Ramos, permanecendo até 1958, dessa vez sob a égide de Juscelino
Kubitscheck. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Jeneiro: Editora
FGV, 2001.
205 JARDIM, Eduardo. Mário de Andrade: a morte do poeta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. Vale lembrar que Mário de Andrade morre em 25 de fevereiro de 1945, logo após a
concretização do I Congresso Brasileiro de Escritores, organizado pela ABDE.
95
circulava com desenvoltura entre a elite dirigente e teve papel definitivo desde a
materialização da Universidade de São Paulo e da Escola Livre de Sociologia e
Política, antes de ter sido exilado com o golpe de 1937. Desse modo, não restaria
surpresa alguma se fosse de fato o jornalista, após o seu retorno ao Brasil em fins
de 1945, o responsável pela indicação de Sérgio Buarque, já que conhecia Macedo
Soares pelo menos desde a Revolução de 1924206, deixando, assim, as lembranças
de Maria Amélia bastante plausíveis.
Sérgio Buarque de Holanda foi nomeado por decreto em 25 de janeiro de
1946, mas somente assumiu a direção do Museu em 7 de março. A sua
administração tinha como foco a construção de um museu histórico, criando
condições para a consolidação do campo intelectual caracterizado pela
especialização acadêmica nas suas áreas de atuação; o que fez, por meio da
criação e circulação de periódicos acadêmicos, com a constituição e o
enriquecimento de acervos, com a realização de viagens e expedições e com o
intercâmbio no plano nacional e internacional. Mas não só. O novo diretor também
teve a preocupação de qualificar e aumentar a quantidade de visitantes do museu,
direcionando parte de suas ações no campo de instrução educacional, como
podemos ver, por exemplo, na contratação de guias especializados, na elaboração
de “folheto ou folhas avulsas, resenhas explicativas do material mais importante" e
no aumento dos dias da semana em que o museu deveria ficar aberto. Para tanto,
promoveu uma ampla reforma estrutural na instituição, tão logo a assumiu.207
Antes, contudo, Sérgio salientou os aspectos positivos dos tempos de
Afonso Taunay e a sua virtude em concentrar esforços para o fortalecimento do
campo histórico. Sob “a administração deste ilustre administrador e em particular
durante a presidência de Washington Luís (1920-1924), em que se celebrou o
centenário da Independência", firmou-se positivamente uma orientação visando "ao
maior desenvolvimento da seção de história". Ainda nesse período presidencial
criou-se o "Museu Republicano, Convenção de Itu”, anexado à referida seção. O
Museu Paulista encerrava definitivamente a sua fase inicial quando era
208 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Museu Paulista. In: COSTA, Marcos (org). Escritos coligidos:
Livro II, 1950-1979. São Paulo. Unesp; Perseu Abramo, 2011. p. 165. Artigo originalmente publicado
na Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1952.
209 Idem, p. 166.
210 Idem, p. 169.
211 NICODEMO, op.cit., p. 116. A esse respeito consultar: RUBINO, Silvana. Clube de Pesquisadores.
A sociedade de Etnologia e Folclore e a Sociedade de Sociologia. In: MICELI, Sérgio. História das
Ciências Sociais no Brasil. vol. 2. São Paulo: Editora Sumará; Fapesp, 1995.
97
formada, mas também fortalecia a sua própria imagem como intelectual à frente de
tão importante órgão. Segundo os seus registros:
215Ofício de 23 de abril de 1946, enviado por Ernani Lins da Cunha à Sérgio Buarque de Holanda.
Fundo Museu Paulista. Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração Série Correspondências
(jan-abr).
216 Fundo Museu Paulista, Arquivo Permanente, Grupo Direção e Administração Série
Correspondências, abril a agosto de 1946. Sobre os painéis de Luiz Gagni, ver o livro de Jonas
Soares de Souza, Painéis de azulejos do Museu Republicano “Convenção de Itú”. São Paulo:
Edusp; Museu Paulista, 2013; Relatório 1947 (MU 6137) Fundo Museu Paulista.
99
Nos anos 50, lamentando que (…) notáveis estudos de Sérgio ficassem
pouco acessíveis, (…) sugeri a um grande amigo dele e meu, Octávio
Tarquínio de Sousa, que o estimulasse a compor com alguns deles um
volume para a famosa coleção Documentos Brasileiros, que Octávio dirigia.
Este falou com José Olympio, que convidou Sérgio, e assim nasceu
"Caminhos e Fronteiras", que forma com “Monções" um par admirável (…)
de estudos históricos vinculados pela cultura material e a ocupação do
espaço.219
Assis (org.). Ano 3, n. 6/87, s/d. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Artigos e
depoimentos sobre o autor e sua obra. p. 133.
100
222 NICODEMO, op.cit, p. 118; são desse período as seguintes cartas guardadas por Sérgio Buarque:
Cp 94 (Lucien Febvre, enviada de Paris e assinada em 15 de dezembro de 1948); Cp 96 (R. Ricart,
datada de Bourg-La Reine em 6 de março de 1949) e Cp 100 (Ministério das Relações Exteriores do
Brasil, enviada do Rio de Janeiro em 31 de janeiro de 1950 e agradecendo a Sérgio pelo trabalho
realizado em missão na Unesco). Fundo SBH, Siarq-Unicamp; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Les
civilisations du miel. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 5e année, n. 1, 1950. pp. 78-
81;
223 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Sobre o Colloquium. In: COSTA, Marcos. Escritos coligidos,
op.cit., p. 52.
224 Idem, p. 53.
225 Ibidem.
102
226 Idem. p. 54. Pedro Calmon além de ter sido deputado estadual pela Bahia, entre 1927 e 1937, foi
conservador do Museu Histórico Nacional, membro da ABL e do IHGB e catedrático de Direito Público
na Universidade do Brasil (atual UFRJ) durante o Estado Novo. No governo Dutra, tornou-se diretor
do Instituto de Estudos Portugueses Afrânio Peixoto, no Liceu Literário Português, e foi nomeado
vice-reitor da Universidade do Brasil. No ano seguinte assumiu a reitoria da instituição, deixando a
direção da Faculdade de Direito. Em 1950 assumiu a pasta da Educação e Saúde e permaneceu no
cargo até janeiro de 1951, quando Getúlio Vargas tomou posse na presidência da República. Fonte:
Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Sobre a
específica atuação de Pedro Calmon frente ao Museu Histórico Nacional ver: ABREU, Regina. A
Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro:
Rocco: Lapa, 1996.
227 Ibidem.
103
Técnicas Rurais no Brasil Colonial I, II, III" e que corresponde à segunda parte de
"Caminhos e Fronteiras".228
Lembrada com pouca ênfase por seus biógrafos, só recentemente a "fase
italiana” de Sérgio Buarque vem recebendo de alguns pesquisadores certa atenção.
Assim, alguns estudos apontam que essa passagem deve ser vista, antes de tudo,
como parte de um plano maior do estado brasileiro, constituído durante o segundo
governo Vargas (1951-1954) e que visava a difusão da cultura brasileira no exterior,
sobretudo na Europa em reconstrução após a guerra. A ida de Sérgio à Roma, entre
1952 e 1954, se enquadrava, portanto, em um projeto de criação de mais de 15
cátedras de "estudos brasileiros" em universidades de renome na América Latina e
na Europa e se concretizou mediante uma influente rede de sociabilidade, ampliada
ainda mais por ele durante os anos que passou à frente do Museu Paulista.229
Como diretor e ao estabelecer definitivamente sua carreira de historiador,
Sérgio Buarque se aproximou de diversas universidades estrangeiras, disso
resultando os convites que recebeu para participar de congressos e comissões
científicas, muitas delas ligadas à Unesco. Dentre as figuras importantes com quem
se relacionou nessa época está Mário Guimarães, que era o chefe da Divisão
Cultural do Itamaraty e que, em julho de 1951 havia convidado Sérgio Buarque a
integrar uma comissão da Unesco encarregada de elaborar uma "História Científica
e Cultural da Humanidade", dirigida por ninguém menos, que Lucien Febvre. Além
de Sérgio, foram indicados Fernando Azevedo, Miguel Osório de Almeida e Gilberto
Freyre.
230Carta enviada por Lucien Febvre. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 94 P7.
231Idem. "Nós lhe seremos gratos de reservar à nossa instituição um trimestre de aula. Pedimos ao
senhor que nos informe sua resposta o mais rapidamente possível, nos indicando quando o curso
poderia começar, com o título das conferências que o senhor oferecerá aos nossos estudantes sobre
os questionamentos históricos e etnográficos relativos ao Brasil – dos quais o senhor é um dos
grandes especialistas”. (Tradução livre do autor).
105
232 NICODEMO, Thiago Lima. O itinerários de Sérgio Buarque de Holanda na Itália. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011. p. 2; Carta manuscrita de Fernand Braudel,
Paris, 25 de julho de 1948. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Siarq-Unicamp, Cp 95 P7.
233 GRAHAM, Richard. An interview with Sérgio Buarque de Holanda. Hispanic American Historical
Review (HAHR), Austin, vol. 62, n. 1, fev. 1982. In: MARTINS, Renato (org). Encontros: Sérgio
Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. p. 205.
106
possível saber que Sérgio Buarque esteve afastado de suas funções entre 15 de
março e 15 de junho de 1949, "em virtude de ato expedido” pelo secretário e
aprovado pelo governador do estado, ficando em seu lugar o chefe da Seção de
História do Museu, o professor Tito Lívio Ferreira. O motivo desse afastamento,
segundo o relatório, foi o convite que recebera do "Diretor da École Pratique des
Hautes Études, de Paris, para dar um curso acerca da história da civilização
brasileira".234
Como sabemos, Sérgio Buarque não aceitou o convite, que segundo ele,
"exigiria maior tempo de preparo e de estada no estrangeiro, mas realizou, contudo,
conferências na Sorbonne, durante o mês de maio, sobre temas relacionados à
história do Brasil". 235 Ainda nessa viagem aproveitou para estabelecer "relações
efetivas" de permuta de publicações, de informações e eventualmente de material de
estudo e exposição, com organizações tais como o "Musée des Antiguités
Françaises” e o “Musée de l’ Homme de Paris”, por meio de seus diretores,
respectivamente o Sr. Varagnac e o Sr. Paul Rivet". 236 Os contatos serviram,
segundo Sérgio mesmo diz, para apreciar os progressos realizados "nesses
estabelecimentos, especialmente no segundo, com relação à técnica de
conservação e aproveitamento do acervo".237
O relatório também aponta que entre 14 de novembro e 3 de dezembro,
durante suas férias, Sérgio esteve novamente em Paris. Dessa vez a convite da
Unesco para participar da reunião de dois Comitês, um para o Estudo de Contatos
de Civilizações e outro para Traduções de Obras Representativas. As reuniões
ocorreram entre os dias 17 e 28 de novembro, na sede da entidade, na capital
francesa. Além das reuniões, o relatório nos informa que Sérgio Buarque aproveitou
o pouco tempo que tinha para renovar os contatos estabelecidos meses antes entre
o Museu Paulista e instituições correspondentes, "especialmente a ICOM, que se
destina, de modo expresso, a manter o intercâmbio e a colaboração entre os
museus do mundo inteiro sob a direção da organização das Nações Unidas".238
234 Relatório Anual do ano de 1950, apresentado ao Secretário de Estado dos Negócios da
Educação, José Moura Resende, 30 de jan. 1950. APMP/FMPL. pp. 1-2.
235 Idem, p. 2
236 Ibidem.
237 Idem.
238 Ibidem. O International Council of Museums-ICOM é a maior organização internacional de museus
não-governamental (ONG) que mantém relações formais com a UNESCO e tem estatuto consultivo
no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Sendo uma organização sem fins lucrativos, o
ICOM é sobretudo financiado pelas quotas pagas anualmente pelos seus membros. É igualmente
apoiado por vários organismos governamentais e outros. Uma parte significativa do programa da
UNESCO para os museus é implementada pelo ICOM. O ICOM tem sede em Paris, onde se encontra
igualmente sediado o Centro de Documentação UNESCO-ICOM. Mais informações no site:
http://icom.museum, acessado em 5 de junho de 2014.
239 NICODEMO, O itinerário…op.cit., p. 3.
240 Idem. Vale ressaltar, segundo publicação da Unesco, que os encontros foram organizados e
idealizados por uma comissão ligada à Conferência Geral da entidade, de 1952, constituída pelos
professores Lucien Febvre, Gilberto Freyre, Lewis Hanke e Silvio Zavala. Em São Paulo, as reuniões
ocorreram entre 16 e 21 de agosto de 1954 e foram organizadas em colaboração com a Sociedade
Paulista de Escritores e enquadradas nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo.
El Viejo y el Nuevo Mundo. Sus Relaciones Culturales e Espirituales. Reuniones Inteletuales de São
Paulo y Rencontres Internationals de Genève, 1954. Paris: Unesco, 1956.
108
243 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tudo em cor-de-rosa. In: _____. Livro dos prefácios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. p. 423. Ao se referir a "via Del Bambino", na verdade queria dizer "via
Del Babuino", local onde se encontrava a galeria de arte em que Paulo Mendes de Almeida, o amigo
citado, havia comprado um desenho do artista italiano Giorgio Morandi (1890-1964). A via del
Babuino, forma juntamente com a via del Corso e a via di Ripetta a chamada L’area del Tridente e
ambas dão acesso à famosa Piazza del Poppolo, local próximo aos jardins e à galeria de arte da Villa
Borghese, um dos mais importantes lugares de visitação da capital italiana. Sobre esse assunto
podemos achar informações na carta enviada por Paulo Mendes a Sérgio Buarque em 27 de abril de
1953, na qual ele faz um pedido para que Sérgio passasse na Fonderia d’arte Chiurazzi, na via del
Babuino, afim de conseguir a declaração de autenticidade de um desenho de Morandi ali comprado.
Carta de Paulo Mendes de Almeida a Sérgio Buarque de Holanda, Fundo SBH, Siarq-Unicamp, Cp
119.
244 NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…op.cit., pp. 122-123.
245 CANDIDO, Antonio. Inéditos sobre Literatura Colonial. In: COLÓQUIO DA UERJ, Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
110
Segunda, das 15h às 16h, no 4º ano, curso regular, das 16h às 17h, no 4º
ano, Especialização-Orientação/Trabalhos-Seminários; terça, das 16h às
19h, no 2º ano diurno, duas aulas e um Seminário, das 19h às 20h30, no 2º
ano noturno, duas aulas e um Seminário; sexta, das 14h às 17h, 3º diurno,
duas aulas e um Seminário, 20h às 23h, no 3º noturno, duas aulas e um
Seminário. O Diretor faz lembrar que o horário do interessado no Museu
Paulista é pela manhã.246
Com isso, o parecer final foi revisto e a Comissão responsável pelo caso
decidiu pela legalidade da acumulação. Contudo, considerando que o cargo de
professor-substituto era de tempo integral, Sérgio Buarque teve de pedir
afastamentos do Museu Paulista durante o tempo em que ministrou aquela cadeira
interinamente247.
Essas duas perspectivas, a de uma aproximação não fortuita de Sérgio
com a USP e a outra, de uma personagem às voltas com problemas administrativos
como qualquer outro servidor público, como atentam os autores, atenuam em certa
medida o tom celebrativo com que normalmente essa passagem foi vista por
intelectuais próximos ao historiador. A exemplo da professora Maria Odila Leite da S.
Dias, que foi sua assistente e orientanda, o mesmo episódio é narrado da seguinte
forma:
246 Ofício nº 2638 de 5 de setembro de 1956, Processo 11787/56 folha 6. apud: SANCHES, Rodrigo
Ruiz. Sérgio Buarque de Holanda na USP. In: Revista Sociedade e Estado, volume 26, número 1,
Janeiro/Abril, 2011. p. 242.
247 SANCHES, op.cit., p. 243.
111
248 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos avançados
[online]. 1994, vol. 8, n. 22, p. 269.
249 Para uma história mais detalhada dessa instituição ver: KANTOR, Íris; MACIEL, Débora; SIMÕES,
Júlio Assis (org.). A Escola Livre de Sociologia e Política, anos de formação, 1933-1953:
depoimentos. 2. ed. São Paulo: Sociologia e Política, 2009.
250 DECCA, Edgar S. de. Ensaios de nacionalidade: cordialidade, cidadania e desterro na obra de
Sérgio Buarque de Holanda. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1 p. 147.
251 CALDEIRA, João Ricardo de Castro. Sérgio Buarque de Holanda, Mestre em Ciências Sociais. In:
252 Idem, p. 229. Vale ressaltar que todos esses textos apresentados encontram-se ainda inéditos.
113
Antônia. Por fim, em 14 de novembro de 1958 era decretado o seguinte resultado: "A
vista desses resultados foi o candidato aprovado com distinção e a comissão
julgadora indica-o para a regência efetiva, em regime de tempo integral, da Cadeira
de História da Civilização Brasileira, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo".253
Há um certo consenso em afirmar que o ingresso de Sérgio Buarque na
USP coincidiu com o ápice de sua maturidade intelectual e com o início dos anos
1960, era do romantismo revolucionário, período de grandes mudanças nos campos
político, cultural, sexual, dos costumes, juntamente com a emergência da mídia. O
momento também não poderia ser mais propício porque "pela primeira vez os
intelectuais começam a exigir autonomia e independência do saber e da cultura".
Uma comunidade propriamente universitária começa a se estruturar e os intelectuais
passam a se distanciar progressivamente da tutela política do estado.
Assim, até o final dos anos 1960, os intelectuais viriam a se encontrar
com o movimento estudantil e juntos no plano da política se autonomearam porta-
vozes das classes populares, numa dinâmica de crescente esquerdização da
universidade e da institucionalização das obras do marxismo no âmbito das ciências
humanas.254
"Coleção Brasiliana" 257 , dirigida por Américo Jacobina Lacombe, com a coleção
dirigida por Sérgio Buarque. A pesquisa no arquivo privado de Lacombe levou
ambos a encontrarem uma carta datada de 28 de outubro de 1957, endereçada a
ele por Rubem Lima, então diretor de produção da Companhia Editora Nacional, na
qual referia-se a uma "nova coleção" de que ele tinha ouvido falar e, ao que tudo
indicava, seria aquela dirigida por Sérgio Buarque. Segundo o documento:
257 A Brasiliana foi criada em 1931 pela Companhia Editora Nacional, então propriedade de Octalles
Marcondes Ferreira, estendendo-se até 1993. Ela se constituiu, segundo Gustavo Sorá, num
importante espaço de difusão da produção intelectual sobre o Brasil. O conjunto de livros organizou-
se em duas fases: uma primeira, dirigida por Fernando Azevedo e uma segunda, a partir de 1956,
dirigida por Américo J. Lacombe. Maiores detalhes ver: SORÁ, Gustavo. Brasilianas: José Olympio e
a gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo: Ed.USP/ Com-Arte, 2010.
258 Arquivo Américo Jacobina Lacombe. Fundação Casa de Rui Barbosa. Pasta Correspondência.
Direção da Brasiliana. Apud: VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e
História Geral da Civilização Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de
especialização acadêmica (1956-1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a.
2013. p. 19.
116
dar no ano seguinte à defesa, ou seja, em 1959, mas no mínimo, um ano antes, em
1957.259
Grosso modo, a série de livros objetivava dar acesso a um público leigo e
a estudantes as recentes pesquisas e análises que se produziam nas universidades
sobre a história do Brasil, seguindo os princípios das duas outras que lhe serviram
de modelo: o da heterogeneidade das áreas dos quais viriam os colaboradores e o
da liberdade de pontos de vista e divergência de interpretação entre os autores
responsáveis, o que garantiria a grandiosidade do conjunto e a pluralidade de
abordagem dos temas.
O assistente de Sérgio Buarque na empreitada foi o colega de
departamento, professor Pedro Moacyr Campos, experiente nessa seara por ter
traduzido do francês a coleção "História Geral das Civilizações". Para Thiago
Nicodemo, isso indicaria qual papel na concepção inicial da coleção que teria um
professor de História Antiga e Medieval como assistente de direção de um texto de
História do Brasil. Em outras palavras, Campos garantiria a legitimidade e a
sensação de continuidade entre o conjunto francês e o brasileiro quanto ao respeito
e às diretrizes gerais, o que explicaria o uso do termo “civilização" na coleção
brasileira.260
A segunda marca deixada por Sérgio Buarque na Universidade de São
Paulo se deu por meio de seu envolvimento direto com a criação do Instituto de
Estudos Brasileiros-IEB, em 1962, cuja pedra fundamental foi a compra da brasiliana
de Yan de Almeida Prado, contabilizada com cerca de 10 mil volumes e através da
qual se organizou um conselho de administração composto por representantes das
áreas de: História da Civilização Brasileira, Geografia do Brasil, Literatura Brasileira,
Antropologia e Etnologia do Brasil, História Econômica Geral e do Brasil, Economia
IV, História da Arquitetura do Brasil e pouco depois, Língua Indígenas. Acerca do
IEB há consenso em afirmar que ele foi idealizado nos moldes dos "area studies
center", no sentido da busca pela integração de disciplinas em torno do mesmo
objeto - no caso específico, a realidade brasileira. Assim, a organização desse
Instituto fazia parte de uma experiência de colaboração internacional que Sérgio
Buarque adquirira pelo menos desde o início da década de 1940, quando foi pela
primeira vez aos Estados Unidos.261
A criação do IEB se insere em um projeto político institucional de
estreitamento entre as unidades que compunham a USP, pensado a partir de um
espaço físico comum. Os atores políticos diretamente envolvidos na aceleração da
construção do campus universitário foram o governador do estado, Carvalho Pinto, o
reitor da USP, Ulhoa Cintra, e o industrial Cicillo Matarazzo, que já havia inclusive
intermediado, com o governador, o financiamento do estado na compra para o IEB,
da coleção de cerca de 800 documentos de Dom Luís Antônio de Souza Botelho
Mourão e Morgado de Mateus, pertencentes ao Conde de Mongualde.262
Outra preocupação de Sérgio Buarque ao participar da criação do IEB foi
a de abrir espaços, além do magistério, para que jovens universitários, sobretudo os
do curso de história, dispusessem de uma formação voltada também à pesquisa
acadêmica, tanto que o IEB ao longo dos anos adquiriu acervos como os de Mário
de Andrade, Fernando Azevedo, Caio Prado Júnior, entre outros, favorecendo,
assim, um conjunto amplo de pesquisas voltadas à realidade do país nos mais
diferentes campos.
Após 13 anos de atividades ininterruptas na USP, entre aulas,
orientações, publicações e a continuação de suas pesquisas, Sérgio Buarque se
aposenta em 1969, obtendo mais tempo livre para se dedicar a novas pesquisas, a
escrita de alguns prefácios e sobretudo às suas viagens. Em 1973, por exemplo, foi
à Grécia, Turquia, Hungria, Áustria, Alemanha, Holanda, Inglaterra e França. No ano
seguinte parte a Caracas a convite do governo venezuelano para a instalação da
Biblioteca Ayacucho. Em 1976 retorna novamente à Europa. E em 1979 publica seu
último livro, "Tentativas de Mitologia", cuja introdução é um testemunho
autobiográfico de parte de sua trajetória intelectual.
Nessa época também concedeu diversas entrevistas, para falar não
apenas de sua vida, como também da realidade do país. Uma delas, concedida à
"Folha de S. Paulo" em 1977, ao lado de Tarso de Castro e Paulo Duarte, quase lhe
rendeu o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Houve tempo ainda para
261 NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…, op.cit., pp. 123-124; CALDEIRA, João Ricardo de
Castro. IEB: Origem e Significados. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes/Imprensa
Oficial do Estado. 2002.
262 Idem; SANCHES, op.cit., p. 252.
118
263 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de História do Império. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. A organização dos manuscritos coube a Fernando Novaes, que é quem escreve a nota
introdutória do livro. Caso semelhante já havia ocorrido com os inéditos de "Capítulos de Literatura
Colonial", publicados em 1992 sob direção do amigo Antonio Candido. Escritos na década de 1950 e
com base em pesquisas feitas pelo autor em arquivos italianos, deveriam compor uma publicação da
José Olympio, chamada "Era do Barroco no Brasil". Há, entretanto, outros manuscritos de Sérgio que
permanecem no "esquecimento". O mais emblemático talvez seja a sua tese de mestrado defendida
em 1958 na Escola de Sociologia e Política, intitulada "Os Elementos Formadores da Sociedade
Portuguesa na Época dos Descobrimentos", descoberta pelo professor Edgar de Decca no acervo
que a família de Sérgio Buarque confiou à Unicamp. Esse documento é muito mais do que um relato
da atmosfera cosmopolita que impulsionou a aventura levada a cabo pelos colonizadores
portugueses. Na avaliação do próprio De Decca, o texto aprofunda, duas décadas depois, temas que
Sérgio já esboçara em "Raízes de Brasil" pressupondo uma linha de continuidade entre as duas
obras, também visível em Visão do Paraíso. KASSAB, Álvaro. Edgar de Decca leva a Lisboa o Brasil
que descobriu Portugal. Jornal da Unicamp, edição 232 de 5 a 12 de outubro de 2003. p. 5;
NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda na década de 1950. São Paulo: EdUSP, 2008.
119
264 Uma das melhores análises do período foi feita por Eder Sader no livro Quando novos
personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo
(1970-1980). 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. O conceito de “sociedade civil”, cunhado nos anos
1970 é problemático, pois sob seu leque encontram-se grupos heterogêneos, divididos em classes,
grupos corporativos, associações profissionais, frações ideológicas, instituições e movimentos sociais
que dificilmente convergem para um mesmo programa político. Essa visão obscureceu as íntimas
conexões do autoritarismo do regime no tecido social, ao mesmo tempo em que serviu de álibi para
muitos aliados civis do regime serem absolvidos diante da história, pois se colocavam sob o epíteto
vago de membros da “sociedade civil”. (Marcos Napolitano, 1964: História do Regime Militar
Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p. 249). O conceito também foi abordado no calor da hora,
exatamente em 1980, por Carlos Nelson Coutinho, que valendo-se de seu vasto conhecimento dos
escritos de Antônio Gramsci expõe que, "entre o estado que visa representar o interesse público e os
indivíduos atomizados no mundo da produção, surge uma esfera pluralista de organizações, de
sujeitos coletivos, em luta ou em aliança entre si. Essa esfera intermediária é precisamente a
“sociedade civil”, o campo dos aparelhos privados de hegemonia, o espaço da luta pelo consenso,
pela direção político-ideológica. (…) Quando surge esse mundo intermediário da “sociedade civil”, e
quando ele não está totalitariamente subordinado a um estado despótico, podemos dizer que a
sociedade passou de seu período meramente liberal para um período liberal-democrático".
COUTINHO, Carlos Nelson. Os intelectuais e a organização da cultura. In: ______. Cultura e
Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 16.
120
265 NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. p.
229.
266 Idem, p. 234.
121
267 Ibidem, pp. 234-42. Para uma definição mais precisa desses conceitos no âmbito histórico ver:
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
268 LÖWY, Michel. Notas sobre a recepção crítica ao althusserianismo no Brasil (anos 1960 e 1970).
In: BASTOS, Elide Rugai; RIDENTI, Marcelo; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais: sociedade e
política, Brasil-França. São Paulo: Cortez, 2003. pp. 213-223.
269 Um bom balanço historiográfico pode ser encontrado em: FREITAS, Marcos Cezar de (org.).
Petrópolis: Vozes, 1976. p. 191. A importância de Amaral Lapa nesse período foi destacada por
Raphael Guilherme Carvalho em artigo recente, intitulado, “A escrita de si de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1970 (Notas para estudo). Tempos Históricos, vol. 19, jan/jun 2015, pp. 80-102.
271 Idem, p. 9.
122
272 De modo geral, a ideia de uma Escola de Sociologia de São Paulo corresponde ao grupo de
investigadores que trabalhou ligado à cadeira do Professor Florestan Fernandes, na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, desde aproximadamente 1955 até 1969. Vale ressaltar
que seu líder negava a existência de tal Escola. EUFRÁSIO, Mário. A Escola de Sociologia e Política
de São Paulo e a Escola Paulista de Sociologia: um curto comentário e um breve depoimento. In:
KANTOR, op. cit, p. 118.
273 Desse conjunto podemos citar: MARSON, Isabel. O império do progresso: a revolução Praieira
em Pernambuco. São Paulo: Brasiliense, 1987; Movimento Praieiro - imprensa, ideologia e poder
político. São Paulo: Editora Moderna, 1980; MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista em
Alberto Torres. São Paulo: Duas Cidades, 1979; CONTIER, Arnaldo. Ideologia e Imprensa em São
Paulo, 1822-1842: matrizes do vocabulário político e colonial. Petrópolis: Vozez; Campinas/SP:
Unicamp, 1979; CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo. São Paulo: Brasiliense,
1989. Sobre debate do “lugar das ideias” ver: Schwarz, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao
vencedor as batatas: formas literárias e processo social nos inícios do romance brasileiro. São
Paulo: Duas Cidades, 1992; FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. As ideias estão no lugar. In: Cadernos
de Debates, nº 1. São Paulo: Brasiliense, 1976; BRESCIANI, Maria Stella. Liberalismo, ideologia e
controle social: São Paulo (1850-1910) 1976. Tese Doutorado, Programa de Pós-Graduação em
História Social, USP.
123
274 DECCA, Edgar S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. Para o autor, “a revolução de 30 como memória histórica do vencedor da luta,
fazendo parte do exercício de dominação, edifica o futuro, ao mesmo tempo que refaz o passado,
qualificando tanto os agentes como seu próprio sentido. Toda a história transcorrida até 30 é
memorizada pelo vencedor como uma luta entre dois agentes sociais, os revolucionários e a
oligarquia”. Decca também chama a atenção para a cronologia criada após esse “fato”. Nesse
sentido, tudo o que viria antes dele seria denominado “República Velha”, já que “tal revolução
inaugura o novo”. A historiografia realizaria ainda sobre este “fato” outras polarizações, entre as quais
a mais corrente é a da economia agroexportadora x industrialização, aspectos que marcaram
profundamente a produção historiográfica ao longo do século XX. pp. 108-110.
275 Dentre importantes estudos dessa fase podemos citar: "Nem pátria, nem patrão", de Francisco
Foot Hardman (Brasiliense, 1983), "Trem fantasma", também de Hardman (Companhia das Letras,
1988), "Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar", de Margareth Rago (Paz e Terra, 1985),
"Trabalho, lar e botequim", de Sidney Chalhoub (Brasiliense, 1986), "A vida fora das fábricas", de
Maria Auxiliadora Guzzo Decca (Paz e Terra, 1987), "O espelho do mundo – Juquery, a história de
um asilo", de Maria Clementina Pereira Cunha (Paz e Terra, 1986), "Sacralização da Política”, de Alcir
Lenharo (Papirus, 1988), "Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX", de Maria Odila L. da S.
124
Dias (Brasiliense, 1984), "O diabo e a Terra de Santa Cruz", de Laura de Melo e Souza (Companhia
das Letras, 1986), "Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro" (1750-
1808), de Silvia H. Lara (Paz e Terra, 1988), "Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da
pobreza”, de Maria Stella Bresciani (Brasiliense, 1982) e "Onda negra, medo branco. O negro no
imaginário das elites no século XIX", de Célia Maria A. Marinho (Paz e Terra, 1987).
276 IGLESIAS, Francisco. Sérgio Buarque de Holanda, historiador. In: Universidade Estadual do Rio
de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.
p. 44.
125
2.3. Os últimos anos de vida: Rua Buri 35, o Centro Brasil Democrático e
um pouco do Partido dos Trabalhadores
277 Após a morte de Sérgio Buarque de Holanda e a compra de sua biblioteca pela Universidade
Estadual de Campinas, em 1983, a casa passou por um longo período de abandono. Em 1992 surgiu
a ideia de transformá-la em bem público. A proposta inicial era a montagem de um centro de
pesquisas voltado para professores da rede pública. Esse projeto não saiu do papel. Em 2002, ano
do centenário de nascimento de Sérgio Buarque, o casarão foi declarado de utilidade pública pelo
município, que previa a construção de uma discoteca. Desde então o local foi alvo de um demorado
processo judicial que envolveu a família e Emérita Aparecida Carbone, ex-babá de um dos filhos de
Sérgio e Maria Amélia. Em 2010 Emétita perdeu o processo por usocapião, a casa foi devolvida à
família que a repassou à prefeitura por uma indenização de cerca de 450 mil reais, sem correção.
Hoje o casarão abriga o Memorial do Ensino Municipal de São Paulo.
278 MARTNS, Luís. Crônica, O Estado de S. Paulo, 25/04/1969. Apud: WITTER, José Sebartião.
Introdução. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense: Secretaria
do Estado da Cultura, 1986. p. 21.
126
279 PRADO, Antônio Arnoni. Sérgio, Mário e Klaxon: um encontro com Lima Barreto. In: ______.
Trincheira, palco e letras: crítica, literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. pp.
257-258.
280 WITTER, José Sebastião. Sérgio Buarque de Holanda, o professor. In: CALDEIRA, João Ricardo
de Castro (org.). Perfis Buarqueanos. Ensaios sobre Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2005. p. 45. O professor Witter faleceu no dia 7 de julho de 2014, aos 81 anos em
Mogi das Cruzes, onde morava. Para mais informações sobre sua trajetória cito entrevista concedida
ao portal da FAPESP e publicada em 2006: http://revistapesquisa.fapesp.br/2006/06/01/uma-vida-na-
sala-de-aula/ acessado em 15 de julho de 2014, às 15h 51m.
127
281 MEYER, Marlyse. No centenário de Sérgio Buarque de Holanda. In: CALDEIRA, João Ricardo de
Castro (org.). Perfis Buarqueanos. Ensaios sobre Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Imprensa
Oficial, 2005. pp. 19-20.
282 O último livro de Chico Buarque, "O irmão alemão", lançado em 14 de novembro de 2014, pela
editora Companhia das Letras, traz algumas lembranças e descrições da casa da rua Buri, da
biblioteca e do jeito que Sérgio Buarque costumava trabalhar quando estava em casa.
283 ABREU, Regina. Entre a nação e a alma: quando os mortos são comemorados. Estudos
no Portugal Contemporâneo (1867-1960). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005. p. 12.
128
de 1977 Sérgio Buarque recebeu em sua casa um grupo de jornalistas, formado por
Moacir Amâncio, Maria José, Miguel Fontoura e Sérgio Gomes. Juntos estavam os
amigos de longa data, Tarso de Castro e Paulo Duarte, este responsável pela
“excursão” ao bairro do Pacaembú.
Não se tratava necessariamente de uma entrevista em moldes
tradicionais, com roteiro prévio e temáticas determinadas, antevendo respostas que
comprovassem a capacidade intelectual dos protagonistas. Sob o título de "Sérgio
Buarque e Paulo Duarte" ou "Os velhos mestres", esse encontro estava muito mais
para uma roda de conversas à mesa de bar, do que qualquer outra coisa,
reafirmando a fama que possuía a rua Buri como "locus de sociabilidade". Tanto é
que, a certa altura, o anfitrião em meio a uma acalorada discussão sobre o papel
atual do jornalista como intelectual, interrompe sua fala a fim de completar os copos
vazios. Transcrito na íntegra, o diálogo, assim foi publicado:
Sérgio - Preciso fazer uma coisinha, passa essa bengala aí. A bengala é
meu pai nosso de cada dia nos dias de hoje! Olha, mas tem muito uísque
aqui em baixo ainda? Lá em cima tem à bessa, mas não posso subir.
Ontem, tinha uma menina aí, tomaram muito uísque (olha a garrafa). Um
restinho, não tem um restinho.
Tarso - (pega apressado outra garrafa, de baixo da mesa) - Não, não, tem
aqui, tem aqui.
Sérgio - Eu tenho medo que acabe, né?(…).285
285Sérgio Buarque e Paulo Duarte. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 de junho de 1977. Suplemento
Folhetim, p. 8.
129
A Lei de Segurança que vigorava nessa ocasião era regida pelo Decreto-
Lei 898, de 29 de setembro de 1969, assinado em pleno funcionamento do AI-5.
Caso viessem a ser enquadrados e condenados, Sérgio Buarque e Paulo Duarte
deveriam cumprir a pena de 2 a 6 anos de reclusão, conforme o artigo citado.
Embora hoje pareça absurdo pensarmos que essas acusações pudessem ser
levadas à cabo, não podemos esquecer que na mesma época, quando já se falava
em distensão, o jornalista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV
Cultura, havia sido torturado e em seguida assassinado nas dependências do DOI-
CODI, em São Paulo no dia 25 de outubro de 1975, quando se apresentou
“espontaneamente” para prestar esclarecimentos.
Outro caso emblemático ocorreu em janeiro de 1976, quando o
metalúrgico Manoel Filho também foi assassinado no mesmo DOI-CODI em
circunstâncias semelhantes. Portanto, ao se debruçarem naquilo que foi publicado,
os agentes da Divisão de Segurança e Informação nada mais faziam do que cumprir
a lei e o que previam as suas atribuições dentro da máquina pública, quais eram a
288 A Divisão de Segurança e Informações do MJ foi criada pelo decreto-Lei nº 60.940/67, que alterou
a seção de Segurança Nacional. De acordo com o decreto, cabia a essa Divisão, como órgão de
assessoramento do ministro de estado e complementar do Conselho de Segurança Nacional,
fornecer dados, observações e elementos necessários à formulação do conceito de estratégia
nacional e do Plano Nacional de Informação; colaborar na preparação dos programas particulares de
segurança e informação relativos ao MJ e acompanhar a respectiva execução. Essa Divisão só foi
extinta no ano de 1990. Fundo: Divisão de Segurança e Informação do Ministério da Justiça:
Inventário dos dossiês avulsos da série Movimentos Contestatórios: Equipe de Documentos do Poder
Executivo e Legislativo; ALVES, Marcus Vinícius Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo, 2013. p. 10.
289 Processo, GAB…op.cit.
131
290 Idem.
291 O Estado de S. Paulo, de 29 de julho de 1978. p. 15.
132
292 Ata da Assembleia Geral de Constituição do Centro Brasil Democrático. D 1/1-9 P 79. Dossiê
Centro Brasil Democrático. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. SIARQ/Unicamp.
293 Idem
294 Ibidem
133
295 Idem.
296 Ibidem.
134
297 Idem.
298 HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos: uma história. Trad. Rosaura Eichenberg. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 205.
299 Idem, p. 206.
135
300 Obviamente o título do encontro refere-se às eleições gerais que ocorreram no dia 15 daquele mês
para mandatos que se estenderiam até 1983. Na ocasião estava em jogo a disputa por 23 vagas ao
senado e 420 à Câmara Federal. Foi nessa legislatura que nos anos seguintes se votou a Lei de
Anistia e a reforma política que instituiu o pluripartidarismo. Para mais detalhes sobre os resultados
desse pleito ver o artigo de Márcio Moreira Alves e Artur Baptista, publicado em: Revista Crítica de
Ciências Sociais, nº 3, dez. 1979.
301 O Estado de S. Paulo, 12 de dezembro de 1978. p. 3. Acervo online:
http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19781212-31823-nac-0003-999-3-not, acessado em 31 de
julho de 2014. Vale ressaltar que para o evento foram convidados 37 pessoas, entre elas, políticos,
historiadores, jornalistas, economistas, cientistas sociais e líderes de classe, que debateram questões
econômicas, políticas, institucionais e sociais, distribuídos em seis painéis.
136
302 Idem.
303 Ibidem
304 Idem.
137
306 Idem.
307 Ibidem.
308 Idem, folha 33.
139
seu envolvimento no Centro Brasil Democrático tenha se efetivado muito mais por
afinidades eletivas com o grupo idealizador e por sua presença simbólica no campo
intelectual do que aquilo que foi consolidado em tom superlativo por certa memória
histórica, qual seja, a de que a sua participação foi "um ato de coragem e um
passaporte do intelectual Sérgio para o militante combativo". Atitude que revela a
“singularidade do espírito e ao mesmo tempo a sua grandeza em sendo o maior
historiador brasileiro, ser capaz de atitudes tão carregadas de sentimento, daquilo
que ele era, um homem simples (…)”.311 E se trocássemos o seu nome pelo de outro
integrante do Centro, não teríamos a mesma narrativa? Nesse caso, as noções de
"coragem" ou "grandeza" trazem consigo a ideia de que Sérgio Buarque era
excepcional, "singular" em suas tomadas de posição política, portanto, uma forma de
inscrevê-lo, resultante do trabalho de “enquadramento de lembranças construídas a
seu respeito em um complexo processo de organização da memória levado a cabo
por seus amigos e conhecidos a partir de marcos instituídos por ele próprio".312
Pouco menos de dois anos após a fundação do CBD, algumas
preocupações apresentadas pelos órgãos do estado faziam sentido. Em 1979, já
sob o governo Figueiredo, houve a dissolução da ARENA e do MDB com retorno ao
pluripartidarismo e, também, a assinatura da Lei de Anistia que possibilitou a volta
ao país de lideranças políticas, intelectuais, artistas, a reintegração ao serviço
público de servidores cassados e a soltura de presos políticos. Terreno fértil,
portanto, para que parte do Centro viesse a apoiar a organização de um novo
partido, de massas e oriundo de setores do movimento operário, dos movimentos
sociais, da ala progressista da igreja e das classes artística e intelectual. Assim, no
dia 10 de fevereiro de 1980, intelectuais ligados ao CBD como Antonio Candido,
Perseu Abramo, Hélio Pelegrino, Hélio Bicudo, Mário Pedrosa, Sérgio Buarque,
entre outros, estiveram presentes no tradicional Colégio Sion, ao lado de outras
lideranças políticas e sindicais, para assinarem a ata de fundação do Partido dos
Trabalhadores - PT.
No caso específico de Sérgio Buarque é sabido que não deixou nenhum
documento formal acerca de sua opção pelo Partido, não publicou qualquer artigo,
311 CANDIDO, Antonio. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos Cebrap, vol. 1, n. 3, julho de
de uma mulher “excepcional”. In:______; GOMES, Angela de Castro. (orgs). Memórias e narrativas
(auto)biográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV; Porto Alegre: EdUFRGS, 2009. p. 167.
141
nem deu entrevistas sobre o tema; tampouco foram encontradas em seus arquivos
anotações relativas a ele. O que conhecemos foi contado por sua viúva, D. Maria
Amélia, e por amigos próximos que estiveram presentes naquela ocasião ou, ainda,
por algumas fotografias. Logo após a morte de Sérgio em 1982, Antonio Candido,
um de seus principais “inventores”, publicou na revista do CEBRAP um texto
intitulado "Sérgio em Berlim e depois", no qual traça a linha contínua de uma
biografia excepcional em que o “jovem modernista” avant la lettre do passado se
ligava ao “intelectual maduro e combativo” do presente, preocupado com a aflição
dos oprimidos frente ao regime de exceção. Em suas palavras,
Buarque, Marilena Chauí, Antonio Candido, Paulo Freire, Mário Pedrosa, entre
vários outros, "cumpriram papel decisivo na defesa do PT e do pluralismo político-
ideológico no país. Pondo corajosamente em jogo o seu prestígio, afirmaram não só
o direito do PT a existir como também a importância histórica de sua existência para
os rumos da democracia brasileira. Uma batalha travada em vários campos: o
jurídico, o sociopolítico e o intelectual". Nesse último, afirma Dulci, "a simples
presença de alguém como Sérgio Buarque entre os proponentes do PT já alterava a
qualidade do debate".317
Já D. Maria Amélia, principal memorialista de Sérgio e organizadora de
seus papéis pessoais, recorda que até os últimos dias de vida o marido nunca
deixou de acompanhar "com entusiasmo o noticiário sobre o PT". Lembra-se de sua
indignação com o enquadramento de Lula na Lei de Segurança Nacional em outubro
de 1980. Temia que o episódio fosse utilizado para impedir a legalização do Partido,
para proscrevê-lo.318 Algumas fotos da época ficaram bastante conhecidas ao serem
reproduzidas em diversos livros em que Sérgio Buarque aparece como personagem.
A mais famosa, sem sombra de dúvida, é a que mostra o intelectual em pé apoiado
em sua bengala, enquanto assina o livro de fundação do partido. Em outras,
podemos vê-lo ao lado de Lélia Abramo, Olívio Dutra, Lula e Jacó Bittar ou de pé em
companhia de Mário Pedrosa e Hélio Pellegrino.
Segundo um dos biógrafos de Sérgio, na ocasião da fundação do Partido
dos Trabalhadores, o historiador, já muito doente, confessou ter medo da morte.
Medo no sentido de não poder acompanhar o “desenrolar de uma nova fase que se
abria na história do país em relação aos seus movimentos sociais, com a fundação
do Partido. Um medo também realista, pois sentia que algo estava por acontecer e a
morte realmente não tardaria para chegar”. 319 Em 24 de abril de 1982, morria o
“homem cordial”.
***
Capítulo 3
UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES
e trinta. A imprensa não demoraria mais do que 24 horas para informar que havia
desaparecido o “homem cordial”, rótulo que carregou desde as polêmicas que
envolveram o seu livro de estreia.
Morreu em trânsito entre o quarto de dormir e o escritório, local da
agitação intelectual. Contrariando a lógica de funerais festivos, muito em voga na
capital da República a partir da virada do século XIX para o XX, tais como ocorreram
com literatos e homens públicos, a exemplo de Machado de Assis, em 1908, Afonso
Pena e Euclides da Cunha, em 1909, Joaquim Nabuco, em 1910, o Barão do Rio
Branco, em 1912, Pinheiro Machado, em 1915, Oswaldo Cruz, em 1917, Rodrigues
Alves, também em 1917 e Rui Barbosa, em 1923, Sérgio Buarque preferiu algo bem
mais simples. Avesso, portanto, àqueles mortos que “haviam construído a nação
com seus dotes inatos e únicos, de modo que o Brasil era visto como um grande
artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com
qualidades acima do normal”. Qualidades que os tornavam capazes de materializar
valores, ideias ou instituições a serem lembradas e comemoradas.320
Os velórios eram de suma importância para os membros da elite política e
literária, devendo haver identidade entre o morto e o local onde ocorria, exigindo-se
dos organizadores cuidadosas escolhas, já que em muitos casos poder e letras
andavam atados. Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo, foram
velados na "Academia Brasileira de Letras"-ABL, o Barão do Rio Branco no Palácio
do Itamaraty, enquanto Rui Barbosa na Biblioteca Nacional. Todos caracterizados
por luxuosa decoração, repleta de veludo negro, flores, altares, dosséis e guardas
de honra. O objetivo, segundo alguns estudos, "era demonstrar a especificidade da
vida e das obras do finado por meio das instituições com as quais ele se relacionara.
Na ocasião dos funerais, esses espaços serviam como uma espécie de palco para a
performance pública das elites”, que não se ressentiam em momento algum em
deixar de fora a população.321
historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 32-33. Em especial a discussão do
primeiro capítulo, “Morre o historiador da pátria”, no qual a autora apresenta o intelectual como
símbolo da “brasilidade” a partir do velório e dos necrológios lidos e publicados a respeito de sua
personagem.
321 Idem; GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa, Estudos Históricos - Dossiê Heróis
para a televisão. Sabia que seu filho causava furor por onde passava e na sua
cerimônia não seria diferente. Preferiu a cremação e dela esvair-se no tempo e no
espaço como pó a ficar imóvel preso em uma caixa de madeira esperando o tempo
fazer o resto.
O historiador não era religioso e alegava que a fé da esposa equilibrava
as contas com o mundo desconhecido. Tinha pavor da morte e detestava cemitérios,
talvez por isso, a cremação fosse para ele o meio mais eficaz para se recalcar o
medo dos mortos, pois os antigos acreditavam que ela impedia o regresso do duplo,
isto é, o retorno da alma do defunto, eliminava as impurezas, protegia o cadáver do
ataque das feras, libertava o finado do domínio dos espíritos malignos,
proporcionava calor no mundo inferior, evitava o nojo da putrefação do corpo e
comunicava um significado salvífico evidente: o fogo purificava e iluminava o defunto
no caminho até o outro mundo, indicando que tal como o fumo, assim o espírito se
elevaria à morada dos bem-aventurados.325
Desejo respeitado. Durante o simples velório, ocorrido em sua residência
da rua Buri, estiveram presentes apenas os familiares e alguns amigos muito
próximos, como Frei Beto, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Paulo Vanzolini, Aziz
Ab’Saber, Aurélio Buarque, Mário Schemberg, Soares Amora, Perseu Abramo, entre
outros. Apenas no dia seguinte é que os jornais das principais capitais do país
estampavam manchetes sobre a morte de Sérgio. “O mundo intelectual reage diante
da notícia inesperada” publicava “O Estado de S. Paulo”, enquanto a “Folha”
anunciava “Sérgio até o fim, sem pompas”. No Rio de Janeiro, “O Globo” trazia
“Morre Sérgio Buarque de Holanda” e o "Jornal do Brasil” informava que “Historiador
é cremado na Vila Alpina”. Fora do eixo Rio-São Paulo, o curitibano “A Gazeta do
Povo” destacava que “Vítima de câncer, morre aos 80 anos o historiador Sérgio B.
de Hollanda” e o gaúcho “Correio do Povo”, de Porto Alegre, insistia em uma das
mais assinaladas características do falecido, “Um homem sem pose”.326
325Ibidem, p. 268.
326Respectivamente, O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982; Folha de S. Paulo, 26 de abril de
1982, Ilustrada, p. 19; O Globo, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1982; Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 26 de abril de 1982; A Gazeta do Povo, Curitiba, 25 de abril de 1982 e Correio do Povo,
Porto Alegre, 27 de abril de 1982. Vale mencionar que o jornal paranaense cometeu um erro em sua
manchete, já que Sérgio Buarque, falecido no dia 24 de abril, apenas completaria 80 anos no dia 11
de julho.
148
Sérgio Buarque de Holanda parte e permanece presente ali onde ele nos
ensinou a admirá-lo e a apreendê-lo: em nossos corações. Sabemos, pela
fé, que agora ele está no Senhor, porque toda a sua vida foi o esforço
constante para vivenciar isto em que se resume a religião: o amor feito
causa de justiça e de liberdade. Para um homem anticonvencional como
este querido amigo e pai, façamos esta oração anticonvencional. Nessa
despedida, fica tudo aquilo que ele representou e representa: sua firmeza,
sua fidelidade, sua coragem, sua permanente juventude. Uma árvore, diz o
evangelho, se conhece por seus frutos. As sementes plantadas por Sérgio
germinaram no talento de seus filhos e no valor de sua obra. Enquanto
tantos insistem em olhar os fatos históricos pelos olhos do opressor, da
historiografia oficial, Sérgio nos ensinou a ler a história pela ótica dos
oprimidos, dos pequenos e dos humildes. Dele, guardamos agora uma
lembrança feliz: a fina ironia, sua vontade de contar e de recontar casos, a
capacidade de acolher as pessoas com os olhos e com o coração, o dom de
ser amigo de infância após cinco minutos de conversa. Fardas e fardões
nunca o preocuparam. Este trabalhador da cultura viveu entre seus livros e
amigos. Agora, a seu pedido, seu corpo será cremado, suas cinzas tornar-
se-ão sementes de vida nova. Sérgio será comunhão e nós encontraremos
sempre na brisa que sopra, na beleza das flores, no sol que brilha pela
manhã.327
327Reprodução aproximada das palavras proferidas por Frei Betto na despedida de Sérgio Buarque
de Holanda, por ocasião de seu sepultamento. São Paulo, 25 de abril de 1982. Arquivo Central
Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 1.
149
328 A ideia de uma versão oficial passada à posteridade deve muito às discussões em torno da ideia
de "memória do vencedor”, trazidas aqui para um contexto de construção de personagem, diferente,
portanto, da demarcação temporal de um fato político, como propuseram Carlos Alberto Vesentini e
Edgar de Decca nas críticas à ideia de “revolução de 1930”. Ver a respeito: VESENTINI, Carlos
Alberto; DECCA, Edgar S. A revolução do vencedor. In: Contraponto, ano 1, n. 1, novembro de
1976. pp. 60-71; LENHARO, Alcir. Carlos Alberto Vesentini, historiador. Revista História, São Paulo,
n. 122, pp. 117-127, jan/jun, 1990; VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. Uma proposta de
estudo sobre a Memória Histórica. São Paulo: HUCITEC; História Social USP, 1997; DECCA, Edgar
S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Exemplo de culto à memória de Sérgio Buarque foi realizado no Instituto de Estudos Brasileiros da
USP-IEB, entre os dias 13 e 16 de setembro de 2011. O Seminário “Atualidade de Sérgio Buarque de
Holanda”, contou com a presença de nomes como Antonio Candido, Laura de Mello e Souza, Richard
Graham, Antônio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro, entre outros. Na ocasião os participantes
foram saudados com uma exposição sobre a trajetória intelectual de Sérgio, elaborada a partir de
documentação do seu arquivo privado. No ano seguinte foi publicada obra homônima, Atualidade de
Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012, organizada por Stelio Marras. Embora
eu me refira a textos e eventos póstumos, é importante registrar que quando era vivo, alguns amigos
lhe renderam homenagens. Uma análise daqueles textos indicam total semelhança com estes que
estou apresentando, a exemplo de “Singularidade e multiplicidade de Sérgio”, anotado por Rodrigo
Melle Franco Andrade, “O cinquentenário do mestre”, de Octávio Tarquínio de Souza ou “Sérgio,
anticafajeste", de Manuel Bandeira. Quando nos referimos à universidade como lugar de produção de
conhecimento é no sentido atribuído por Michel de Certeau, ou seja, um local privilegiado, no qual a
história é escrita, reescrita ou não escrita, visto que esse mesmo lugar possibilita e interdita o que é
possível pensar, investigar, escrever e divulgar, contribuindo para a fabricação do conhecimento e a
definição das regras que o presidem. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A
escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Por fim, a transmissão de sua memória também se concretizou com a publicação de livros póstumos,
livros celebrativos, montagem de biblioteca e arquivo pessoal, tópicos que serão desmembrados ao
longo do capítulo.
150
329 TURNER, Frederick Jackson. The frontier in American history. New York: H. Holt, 1920;
CURTIUS, Ernst Robert. Europaische Literatur und lateinisches Mittelalter. Bern: Francke, 1948.
Não por acaso, ambas as obras, em edições na língua original, faziam parte da Biblioteca que
pertenceu a Sérgio Buarque, hoje disponível ao público na Biblioteca Central da Universidade
Estadual de Campinas-UNICAMP. A esse respeito ver também: WEGNER, Robert. A conquista do
oeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000;
NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008; ______. Alegoria Moderna. Critica Literária e
História da Literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2014.
330 Importante nesse sentido é o conceito de "enquadramento da memória”, proposto por Michael
Pollak. Essa noção diz respeito a um processo de afirmação de determinadas lembranças, que
devem ser compartilhadas por um grupo a ponto de anular ou diminuir memórias concorrentes. É um
trabalho de restrição das possibilidades de interpretar aquilo que é lembrado, configurando uma
forma considerada socialmente legítima de recordação. Esse processo, todavia, não está imune a
disputas e fissuras que um determinado presente pode provocar, mas essa noção permite observar a
dinâmica da memória e do trabalho de geri-la, que transforma o que é lembrado ao mesmo tempo em
que contribui para a transformação dos indivíduos que lembram. POLLAK, Michael. Memória,
151
seu enterro, o então deputado Eduardo Suplicy, que poucos dias antes havia
almoçado com Sérgio, afirmava ao enviado do “Jornal da Tarde” que o amigo “foi um
dos principais intelectuais do PT”.331
Se por um lado, Frei Beto tentava dar unidade à vida do amigo, por outro,
alguns textos saídos na imprensa em sua homenagem apontam que sua biografia
intelectual ainda carecia de maiores ajustes. Nesse sentido, "O Estado de S. Paulo”
de 25 de abril de 1982 trazia um artigo assinado por Marcelo Ielo. No texto o autor
elenca algumas das principais características de Sérgio Buarque, dentre elas, sua
“aptidão para a leitura”, sua “índole brincalhona”, seu “viés modernista”, seu “espírito
inquieto” e claro, sua "tendência para os estudos históricos” explícita desde a sua
juventude. Tamanho brilhantismo teria levado, de "maneira natural”, Sérgio a
escrever sua obra de estreia, já que foi “um verdadeiro batalhador para que os
caminhos nacionais fossem mais bem entendidos no Brasil. Nisso conclui que
"Raízes do Brasil", publicado em 1936, foi “elogiado por todos na época”, sendo a
obra mais conhecida de Sérgio “até os dias de hoje”. Foi com este volume, segue,
que a Editora José Olympio iniciou a Coleção Documentos Brasileiros, vendo-se
obrigada a publicar várias edições devido à procura”.332
Elevado ao longo do tempo à categoria de “clássico de nascença” por
Antonio Candido e inserido na famosa tríade ao lado de "Casa Grande & Senzala"
(1933) de Gilberto Freyre e “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942) de Caio
Prado Júnior, o livro de estreia de Sérgio, diferente do que insinuou o jornalista,
também recebeu críticas negativas e “pouco a pouco sumiria do debate daqueles
esquecimento, silêncio, Estudos Históricos - Dossiê Memória, vol. 2, n. 3, 1989. pp. 3-15. Não custa
lembrar que o Centro de Documentação e Memória Política do PT, ligado à Fundação Perseu
Abramo, leva o nome de Sérgio Buarque de Holanda. A editora da Fundação também é responsável
por algumas publicações póstumas de textos inéditos de Sérgio e de outros trabalhos de cunho
comemorativo, como “Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil”, organizado por Antonio Candido e
publicado em 1998, como resultado do Seminário "Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil”, ocorrido
em 26 e 27 de novembro de 1997. Nesse volume, vale lembrar, dois textos são emblemáticos:
"Sérgio Buarque de Holanda: petista," de Luiz Dulci e “A visão política de Sérgio Buarque de
Holanda”, de Antonio Candido, que em certa passagem afirma: “Ora, Sérgio Buarque de Holanda foi o
primeiro historiador que aludiu à necessidade de despertar a iniciativa das massas, manifestando
assim um radicalismo democrático raro naquela altura fora dos pequenos agrupamentos de
esquerda”. In: CANDIDO, Antonio (org.). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 86.
331 "Assim noticiou o Jornal da Tarde a cerimônia fúnebre”. In: Revista do Brasil, Número Especial
dias sem que sua ausência se fizesse notar”, como demonstra Fábio Franzini em
seu estudo sobre a "Coleção Documentos Brasileiros”.333
Em outro exemplo, a "Academia Paulista de Letras”- APL, instituição da
qual Sérgio era membro, ocupando a cadeira de número 36, registrava em ata do
dia 6 de maio de 1982 que a sessão seria em “memória do acadêmico”. Ao se
debruçar sobre as biografias de Capistrano de Abreu, a historiadora Rebeca Gontijo
já nos alertava para o conjunto de “pequenas histórias”, que ao longo do tempo
construíram uma espécie de “folclore” a respeito de sua personagem. De modo que
ele passou a ser lembrado como alguém de quem se falava por meio de anedotas,
ditos espirituosos e epigramas, “prevalecendo a autoridade daqueles que o
conheceram pessoalmente”, criando assim, uma "rede de proximidade”, uma
espécie de "círculo de pactários”, responsável pela produção e pelo controle dos
rumores a serem divulgados.334
A esse "círculo" soma-se o próprio personagem, considerado como
alguém que atuou, passiva ou ativamente, na produção de discursos sobre si
mesmo e que, simultaneamente, foi objeto do discurso dos outros. A partir dessa via
de mão dupla é possível supor que Sérgio Buarque tenha criado para si uma versão
da própria vida, cujas pistas expostas em suas "Tentativas de Mitologia” (1979)
foram pouco depois atestadas e transmitidas pela sua "rede de proximidades”,
formada por seus pares, familiares, sobretudo sua viúva, instituições acadêmicas e
casas editoriais. Dessa simbiose é que foi surgindo um perfil no qual Sérgio se
autointitulou historiador, “minha vocação principal” 335 e foi retratado como um
intelectual sem pompas, crítico sem igual, leitor voraz, mestre, professor
Claude. Naissance du panthéon: essai sur le culte des grands hommes. Paris: Bayard, 1998. Não
por acaso, em um artigo assinado no jornal O Estado de S. Paulo, de 6 de junho de 1982, Francisco
Iglesias afirmava que “o folclore particular” Sérgio "deveria ser recolhido para que não se perdesse".
335 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de Mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 32.
153
336 Sobre a questão biográfica no século XIX brasileiro ver: OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever
vidas, narrar a história: a biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de
Janeiro: FGV, 2012.
337 Academia Paulista de Letras. Ata da Sessão Ordinária de 6 de maio de 1982. Arquivo Central
340 Do que tratava esse material? Salvo o escrito panorâmico, as partes elaboradas destinavam-se
com certeza ao volume Literatura Colonial, que seria o 7º da "História da literatura brasileira”
planejada no começo dos anos 1940 por Álvaro Lins para a editora José Olympio. No final das contas
foram publicados apenas o 6º volume, de Luis da Câmara Cascudo, "Literatura Oral", em 1952,
precedido em 1950 pelo 12º, de Lucia Miguel Pereira, "Prosa de Ficção (De 1870-1920)”. É possível
que naquela altura Sérgio estivesse trabalhando em paralelo, com tema ligado ao seu volume, o que
se percebe com a publicação de "Antologia dos poetas coloniais”, publicado em 1953 (texto que fazia
parte de um projeto do Ministério da Educação). CANDIDO, Antonio. Exposição: inéditos sobre
literatura colonial. In: Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Sérgio Buarque de Holanda: 3º
Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. p. 93.
341 HOLANDA, Sérgio. O livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
342 COSTA, Marcos (org.).Sérgio Buarque de Holanda: escritos coligidos I (1920-1949). São Paulo,
SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011 e Sérgio Buarque de Holanda: escritos
coligidos II (1950-1979). São Paulo, SP: Editora da UNESP: Fundação Perseu Abramo, 2011.
343 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos do Sertão. Revista de História, São Paulo, n. 57, pp.
59-111, 1964.
156
344 “Livro Monções é reeditado com textos inéditos”. Folha de S. Paulo, 10 de janeiro de 2015.
Versão online, acessada em 20 de fevereiro de 2015 às 17 horas. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1572902-livro-moncoes-e-reeditado-com-textos-
ineditos.shtml
345 Idem.
346 Em seu prefácio à nova edição de Monções, Laura de Mello e Souza afirma que tanto José
Sebastião Witter, quanto André Sekkel Cerqueira defendem essa ideia. O primeiro, na apresentação
da obra póstuma de Sérgio observou que “aqui está o esboço de outro livro anunciado pelo
historiador, em 1976” e o segundo, em relatório de iniciação científica, apontou que “esse seria o livro
referido pelo autor no prefácio que escreveu para Monções, em 1976, quando justificou a opção de
manter o texto de 1945 e destinar a vasta pesquisa realizada, desde então, a outro livro, em vias de
elaboração, sobre igual tema”. Mais de uma passagem comum encontrada em ambas as obras
fundamentaria essa hipótese. SOUZA, Laura de Mello. Prefácio: Estrela da vida inteira. In:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções e Capítulos de Expansão Paulista. 4. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
347 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota à segunda edição. In: ______. Monções e Capítulos de
Tamanho empenho foi financiado nos anos 1960 pela Fundação Calouste
Gulbenkian348 de Portugal e pela recém-criada Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo-FAPESP. Em relação à primeira, enviamos no dia 3 de março
de 2015 um e-mail formal solicitando mais detalhes ou se havia algum indício que
confirmasse o envolvimento de Sérgio com aquela instituição. A resposta veio rápida
e para nossa surpresa descobrimos o seguinte:
348 A Fundação Calouste Gulbenkian é uma instituição portuguesa de direito privado e utilidade
pública, cujos fins estatutários são a Arte, a Beneficência, a Ciência e a Educação. Criada por
disposição testamentária de Calouste Sarkis Gulbenkian, os seus estatutos foram aprovados pelo
Estado Português a 18 de Julho de 1956. Com mais de 50 anos de existência, a Fundação Calouste
Gulbenkian é uma das mais importantes fundações europeias, desenvolvendo uma vasta atividade
em Portugal e no estrangeiro por meio de projetos próprios, ou em parceria com outras entidades, e
através da atribuição de subsídios e bolsas. Informações retiradas do sítio:
http://www.gulbenkian.pt/Institucional/pt/Fundacao/HistoriaEMissao?a=22, acessado em 4 de março
de 2015.
349 Carlos Luis, Serviço de Bolsas Gulbenkian. Visita pesquisador brasileiro (mensagem pessoal).
do Estado de São Paulo - FAPESP concedido ao projeto "A navegação fluvial entre São Paulo e
Cuiabá nos séculos XIX E XX". s.l., 9. jun.1965 e Ofício de Alberto Bononi, Diretor Administrativo da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP a Sérgio Buarque de Holanda,
informando a aprovação das contas relativas ao auxílio que lhe foi concedido. São Paulo, 13 mar.
1969. Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida Pessoal. Vale
158
corrigir o seguinte: no Termo de outorga, o título do projeto apresenta a pesquisa entre os séculos
XIX e XX, sendo que o manuscrito original do projeto aponta para os séculos XVIII e XIX.
351 Rascunho incompleto de Sérgio Buarque de Holanda pleiteando auxílio à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo para um projeto de pesquisa referente a um estudo da navegação
dos rios entre São Paulo e o extremo oeste do Brasil durante os séculos XVIII e XIX, visando ampliar
uma nova edição da obra "Monções". 9 p. Pi1315/68:101 P55. Arquivo Central Unicamp, Fundo
Sérgio Buarque de Holanda, Sub-Série Anotações de Pesquisa. pp. 104-105.
352 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Nota à segunda edição de Monções, op.cit. Orientado na Yale
University por Richard Morse, David Michael Davidson apresentou, em 1970, o resultado dessa
empreitada em sua tese intitulada “Rivers & Empires: the Madeira Route and the Incorporation of the
Brazilian Far West, 1737-1808”, estudo que engloba a formação territorial do Brasil Colonial ao longo
do século XVIII nos seus aspectos geopolíticos e econômicos, com foco sobre a história da Rota do
Madeira (formada pelos rios Guaporé, Mamoré e Madeira), que ligava as minas do extremo oeste do
Mato Grosso a Belém do Pará. Em suma, uma "tese sobre as monções do Norte”. A estadia do
americano em terras brasileiras não foi contínua. Iniciando suas pesquisas por Mato Grosso, em
1966, apenas no ano seguinte é que temos registros dele no norte do país, quando estabelece com
Sérgio uma interessante troca de cartas, nas quais é possível, entre outros temas, identificar os
passos de sua investigação, a circulação de fontes, o intercâmbio de ideias, bem como uma relação
interpessoal marcada pela cumplicidade. A tese de Davidson não foi publicada, salvo um único
trecho, intitulado “How the Brazilian West was won: freelance and state on the Mato Grosso frontier,
1737-1752”, capítulo da coletânea organizada por Dauril Alden, intitulada “Colonial Roots of Modern
Brazil: Papers of the Newberry Library Conference”. Em relação à tese, Sérgio registrou o seguinte:
“Minha falta neste particular é suprida, aliás, com vantagem, pelo magnífico estudo que dedicou às
monções do norte (…) o professor David Davidson, da Universidade de Cornell, que ainda espero ver
impresso e traduzido”.
159
356 HOLANDA, Sérgio Buarque de. A democracia e a tradição humanista. In: COSTA, Marcos (org.).
Para uma nova história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 35. Publicado
originalmente no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1949.
357 Idem.
161
Sérgio, pai nosso, a você que está no céu assim como entre nós aqui na
terra, gostaríamos de repetir as palavras que te disse nosso queridíssimo
Frei Beto: Sérgio Buarque de Holanda sempre foi jovem, de fina e
inteligente ironia. Emprenhou-se em seu trabalho pela ótica dos humilhados,
dos pequenos e dos condenados da História. Você foi cremado para que
suas cinzas se tornem semente de uma vida nova. Vamos poder
reencontrá-lo na brisa da manhã, nas flores, na grama do jardim, nas
plantas, pois se tornará comunhão. Papioto, é como teus netos te chamam.
Papioto quer dizer Papai Outro. É isto aí. Você foi e será para sempre o pai
outro, muito grande e especial, de um mundão de jovens a quem você
encontrou tempo e paciência para se dedicar, como se não te bastasse
transmitir tanta sabedoria de vida a Miúcha, Sergito, Álvaro, Chico, Pii,
Bahia, Cristina, os sete filhos que você acarinhou a Memélia. Com certeza,
todos os seus muitos filhos aqui presentes, e também os distantes, estão
pensando em você assim: Sérgio, alegria nossa, salve. 358
358Homenagem escrita por Teresa Maria e lida por Bebel, por ocasião da Missa de Sétimo Dia,
realizada no Rio de Janeiro. São Paulo, 01 maio 1982. Arquivo Central Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio
Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 2. (Cópia datilografada com anotações
manuscritas de Maria Amélia).
162
359 Esse texto foi escrito com base nos documentos contidos na Série Homenagens Póstumas, uma
das tantas que formam o Fundo Privado Sérgio Buarque de Holanda, localizado no Arquivo Central
da Unicamp. Faço referência também ao último romance de Chico, O irmão alemão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
360 "O médico Zeferino Vaz (1908-1981) era bastante conhecido nos meios acadêmicos do país
devido à sua atuação em outras instituições universitárias: fora diretor da Faculdade de Medicina
Veterinária da USP; criador e diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP; presidente do
Conselho Estadual de Educação e reitor-interventor da UnB. Esta trajetória do Prof Zeferino Vaz deu-
lhe não só experiência administrativa mas também trânsito político nos governos estadual e federal,
beneficiando a Unicamp na aquisição de recursos para sua implantação e em seu desenvolvimento,
que deu-se à margem de perseguições políticas e ideológicas comuns nas instituições públicas da
época. A despeito de uma administração centralizadora e autoritária, as estratégias de marketing,
gerenciamento empresarial e produtividade acadêmica utilizadas pelo Prof. Zeferino à frente da
Unicamp possibilitaram que esta crescesse sem burocracia e que se mantivesse autônoma e livre de
intervenções militares”. MENEGHEL, Stela Maria. Zeferino Vaz e a UNICAMP: uma trajetória e um
modelo de universidade. 1994. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Faculdade de Educação, Campinas, SP. p. ix.
163
decisão eram bandeiras comuns, delas resultando na primeira consulta para reitores.
Mas se por um lado a crise serviu para alinhar docentes, servidores e estudantes em
busca de maior autonomia universitária, por outro, a mão autoritária do estado ainda
era presente.
Contrário a esse estado de coisas, o governador-biônico Paulo Maluf
promoveu, de maneira arbitrária, a intervenção no Conselho Diretor e nas diretorias
de unidades acadêmicas, resultando na exoneração de 8 diretores e na demissão de
14 membros da Associação dos Servidores da Unicamp-ASSUC. Em seguida houve
um clima de receio e cuidado para que a universidade se mantivesse preservada e,
após muitas manifestações contrárias aos interventores e algumas rodadas de
negociação, um governo de pacificação foi instaurado para serenar os ânimos.361
Em meio a essas questões José Aristodemo Pinotti, professor da
Faculdade de Ciências Médicas, foi nomeado reitor com o compromisso de iniciar o
processo de reconstrução física do campus e implementação da institucionalização
que previa a organização das instituições internas conforme determinavam os atos
estatutários e a atualização desses mesmos atos. No ano seguinte, em 1983,
ampliaram-se os debates em torno desses temas com ampla participação de
docentes, discentes e servidores, concluídos em 1986, com a nomeação do
economista Paulo Renato Costa Souza como reitor e pela instauração do Conselho
Universitário, órgão máximo deliberativo da universidade.362
Simultaneamente a essas querelas administrativas, a Unicamp entrava na
briga pela memória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda, materializada em sua
vasta biblioteca, nos seus documentos e objetos pessoais. A nova gestão sabia que
não poderia perder tempo, pois o tesouro deixado pelo patriarca da família já era
alvo de cobiça da Universidade de São Paulo-USP e também de casas
especializadas, como a Parke-Bennet de Nova Iorque e a Sotheby de Londres,
ambas interessadas em algumas raridades lá contidas.
361 ROSSIO, Neire Martins. Memória universitária: o Arquivo Central do Sistema de Arquivos da
363Ofício Gabinete do Reitor 366/82. “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque
de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folhas 2-3. Arquivo Central Unicamp.
165
364 Carta de Maria Amélia a José Aristodemo Pinotti, 22 de junho de 1982, Idem, Folha 5.
365 O Estado de S. Paulo, 30 de setembro de 1982, p. 17.
366 O Globo, 9 de outubro de 1982, edição matutina, Caderno de Cultura, p. 29.
367 “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º
operária durante a primeira república, mas também dos modos de narrar a história brasileira,
fortemente influenciada pela história social inglesa nos anos 1980. Na mesma época, sob a guarda
do Instituto de Estudos da Linguagem-IEL, vinham-se constituindo o “Arquivo de Línguas Indígenas",
o "Arquivo de Português Culto falado em São Paulo", o "Arquivo de falares rurais afro-brasileiros e
outros falares" e o "Arquivo Pessoal de Brito Broca” (1903-1961). Em relação às bibliotecas, a
Unicamp passou a incorporar muitos acervos, como a biblioteca de Paulo Duarte, em 1970, cujas
obras tratam de história, sociologia e antropologia do Brasil. Em seguida veio a do historiador Hélio
Vianna, adquirida pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da universidade, em 1973. Em 1980,
foi a vez da aquisição da biblioteca de Theodoro Henrique Maurer Júnior, composta de ricos materiais
de linguística românica e linguística do português do Brasil, com cerca de 5 mil obras especializadas.
No ano seguinte, o Instituto de Estudos da Linguagem recebeu a doação da coleção bibliográfica de
Müller-Carioba, contendo livros gregos, italianos, ingleses, alemães e latinos, concomitante à doação
da Biblioteca Cornélio Penna.
369 Essa ideia foi defendida por Luciana Quillet Heymann em seu livro "O lugar do arquivo: a
Portaria Interna Gabinete do Reitor 045/82. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 9. Arquivo
371
Central Unicamp.
168
primeiramente na rua Barão de Itapetininga, 40, seria dedicada ao comércio de obras raras. Em 1951
o estabelecimento passou às mãos de Álvaro Bittencourt, que começou a vender outros tipos de
livros, além das edições de luxo. Em 1978, a loja mudou-se para o novo centro financeiro de São
Paulo, a Avenida Paulista.
374 RAMUSIO, Giovan Battista. Primo volume delle navigationi et viaggi: la descrittione dell'Africa & del
paese del Prete Ianni, con varij viaggi, dalla Citta di Lisbona, & infin!all isole Molucche, doue nascono
le Spetiere, et la Navigatione attorno il Mondo. Seconda editione in molti luoghi corretta, et ampliata.
169
Veneza no século XVI, um dos seis exemplares de que se tem notícia e o único
existente no Brasil, além dos “Emblemata" de Andrea Alciati375 do mesmo período.376
Não seria exagero acreditar que essas relíquias possam ter sido adquiridas por
Sérgio durante a sua estada em Roma, entre 1953 e 1954, período em que
intensificou os estudos sobre história literária, pesquisando arquivos e bibliotecas de
diferentes cidades europeias e vasculhando livrarias e casas especializadas em
momentos de folga.
De resto, segundo Bittencourt, foram listadas coleções raras de revistas
brasileiras, como as modernistas “Klaxon" e “Estética” e estrangeiras, muitas das
quais completas e de difícil acesso, enciclopédias especializadas em história e
história da cultura, separatas, “curiosos livretos e folhetos sobre São Paulo e cidades
paulistas”, fichas de trabalho, manuscritos e inúmeros documentos datilografados ou
manualmente copiados no Brasil e no exterior. Destaque do acervo são as inúmeras
edições originais de autores brasileiros, a grande maioria com dedicatórias
autografadas, como vistos em “Há uma gota de sangue em cada poema”, de Mário
de Andrade, “Os parceiros do Rio Bonito” de Antonio Candido, “Velórios de Rodrigo
M. F. de Andrade, “A trilogia do exílio” de Oswald de Andrade, “A bolsa e a vida” de
Carlos Drummond de Andrade ou “O homem nu” de Fernando Sabino.377
In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1554; RAMUSIO, Giovan Battista. Secondo volume delle
navigationi et viaggi, nel quale si contengono l'Historia delle cose de Tartari, & diversi fatti de loro
Imperatore, descritta da M. Marco Polo Gentilhuomo Venetiano, & da Hayton Armero, varie
descrittioni di diversi autori... In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1559; RAMUSIO, Giovan Battista.
Terzo volume delle navigationi et viaggi, nel quale si contengono le Navigationi al Mondo Nuovo, a gli
Antichi incognito... Seconda edtioni. In Venetia: nella Stamperia de Giunti, 1565.
375 ALCIATI, Andrea. Andreae Alciati emblemata cum commentariis. Patavii (Italia): Typis Pauli
Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 1º Volume. Folha 21. Arquivo Central Unicamp.
377 Idem.
170
Fonte: ANDRADE, Mário de; SOBRAL, Mario (Coaut. de). Há uma gota de sangue em cada poema. São
Paulo, SP: Pocai, 1917. Coleção Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda, Biblioteca Central-Unicamp.
378“Sérgio Buarque de agá ó dois eles á êne dê á, com a parte de mim que talvez esse livro não
conte… Será que não conta mesmo? Acho que conta sim tudo o que afinal não posso de, vulgo: uma
bêsta. Adonde é mesmo que você está morando agora? De automóvel sei ir porém pelo Correio não
sei. Ergo: baldeação Prudentico. Mário de Andrade.
171
379 Para um "Centro de de Documentação da Memória Nacional” na Unicamp, op.cit., Folhas 18-19.
380 A ideia de “lugares de memória” desenvolvida por Pierre Nora ganhou vida própria e vem sendo
constantemente utilizada de maneira aleatória e sem muito entendimento preciso de seu significado
histórico. De maneira rápida, esse conceito se desenvolve dentro dos debates historiográficos
franceses da década de 1970, cujo manifesto será a coletânea ‘Faire de la Histoire’, livro publicado
em 1974 que pôs em destaque os problemas teóricos que a disciplina histórica tinha diante de si, a
exemplo do artigo de Michel de Certeau, “A operarão historiográfica”, um contraponto às provocações
de Hyden White em “Meta-História" (1973) contido no volume. Do ponto de vista político, houve na
França na mesma época a “emergência do problema da memória como preocupação histórica”,
resultante da morte do General De Gaulle e do aumento progressivo do culto ao patrimônio. Maiores
detalhes em: BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Pierre Nora ou o historiador da memória. Entrevista com
Pierre Nora. História Social, Campinas, nº 6, 1999, pp. 13-33. Nesse sentido, para não corrermos o
risco de cair no vazio conceitual, utilizamos aqui o termo de maneira um pouco mais livre, sem
referência direta à obra, todavia chamando a atenção para um ponto que ela levanta: “(...) a razão
fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento,
fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial”. NORA, Pierre. Entre mémoire
et histoire. La problemátique des lieux. In: ______. (org.). Les lieux de mémoire. vol 1. La
République. Paris: Gallimard, 1984. p. 22.
172
almofadas, assento e encosto listrados; troféus que Sérgio Buarque recebeu (Juca
Pato “O intelectual do ano" de 1979, Prêmio Jabuti, por "Tentativas de Mitologia”); e
1 placa de prata oferecida pelo Conselho Municipal de Educação de Bauru.381
O escritório ou gabinete de leitura, reordenado a partir desses objetos no
novo espaço de visitação e como o encontramos ainda hoje, era muito diferente
daquele outro, “tal como foi deixado” por Sérgio em sua residência. O exame de
alguns registros fotográficos da época aponta para a existência de um espaço
doméstico predominantemente masculino, bagunçado, que destoava de outros
cômodos da casa, de ordenação atribuída às mulheres, esposas ou governantas, tal
como apontaram em seus estudos Regina Abreu e Vania Carneiro de Carvalho382. É
sabido que Sérgio pertenceu a uma geração de intelectuais, denominada de
“homens de letras”, cujas características incluíam o bacharelado em Direito ou
Medicina, o autodidatismo, o domínio de várias línguas estrangeiras e de disciplinas
variadas, indo das artes à literatura, passando bem pela sociologia, antropologia,
etnologia, alcançando as carreiras jornalística ou política até chegarem na erudição
da disciplina histórica.
Na casa desses letrados, desde os mais ricos até os intimistas e
modestos, como demonstra a iconografia masculina da primeira parte do século XX,
estudada por Carvalho, as mesas de trabalho situadas no escritório que podiam
abrigar bibliotecas ou parte delas, como no caso de Sérgio, se constituíam como
“territórios de exceção”, imunes à ordenação doméstica supervisionada pelas
esposas ou criadas e longe da curiosidade dos filhos. Sobre as mesas podiam
figurar papéis, livros, tinteiros, canetas, telefones, carimbos, arquivos, máquinas de
escrever, etc. 383 Imagem reforçada por Chico Buarque em seu último romance,
quando Ciccio, o personagem-narrador, descreve a rotina do pai no escritório de
trabalho, local proibido, vedado às suas curiosidades. À Assunta, mãe da
personagem, cabia o papel de assistente do marido em seus delírios criativos.
Vejamos um trecho:
381 “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”. Processo nº 2891, 2º
Volume. Folhas 49-50. Arquivo Central Unicamp.
382 ABREU, Regina. A Fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996; CARVALHO, Vania Carneiro de. Gênero e artefato: o
sistema doméstico na perspectiva da cultura material - São Paulo, 1870-1920. São Paulo, SP: Editora
da USP: FAPESP, 2008.
383 CARVALHO, op.cit., p.150.
173
Figura 2: Reconstituição do escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda. BC, Unicamp, 2012
384 BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
385 CARVALHO, op.cit, pp. 43-48.
174
Figura 3: Escritório e biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, em sua residência à Rua Buri, pouco antes de
seu falecimento, São Paulo, fevereiro de 1982
Fonte: Fotografia tirada por Maria do Carmo Buarque de Holanda. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Vida
Pessoal, Arquivo Central, Unicamp
387 “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume.
Folha 23. Arquivo Central Unicamp.
388 Idem, Folha 24
389 Ibidem, Folhas 26-27.
176
391 Ibidem, Folha 53. Importante registrar, que pouco depois, em 2 de março de 1983, a Comissão
relatou à reitoria uma outra conversa que tiveram com Sérgio Buarque de Holanda Filho. Na ocasião
a família assinalava que a correção monetária deveria se dar a partir de 1º de janeiro de 1983,
favorecendo, desse modo, a Unicamp.
392 Reitoria, Resumo de Contratos, Processo 2981/82, contrato 1483. Diário Oficial do Estado de
Professor Sérgio Buarque de Holanda. In: “Aquisição da Biblioteca do falecido Professor Sérgio
Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folha 82. Arquivo Central Unicamp.
178
394 SILVA, Patrícia Helena Gomes da. op.cit. p. 85; Carta de José Sebastião Witter a Maria Amélia
Buarque de Holanda, comunicando que enviou à USP e à UNICAMP, correspondência sobre a
aquisição do acervo de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, 31 maio 1983. 1p. (anexo
correspondência mencionada), Hp 14, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp.
395 Segundo o “Relatório Preliminar sobre a mudança da ‘Biblioteca Sérgio Buarque de Holanda’”, o
traslado iniciado em 19 de julho de 1983 contava com mais duas etapas, sendo elas em 19 de agosto
e 26 de agosto. Ainda segundo o relatório, os períodos entre 22 e 25 de agosto e 29 de agosto e 2 de
setembro seriam reservados para o arranjo do material, que ficou alocado provisoriamente na antiga
sede da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp-FUNCAMP. In: In: “Aquisição da Biblioteca do
falecido Professor Sérgio Buarque de Hollanda”, op.cit.,1º Volume. Folhas 141-144. Arquivo Central
Unicamp.
179
399 Resolução 19 de 28 de abril de 1982. Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Homenagens
Póstumas, Hp 131, Arquivo Central Unicamp. Ao todo ocorreram seis "Semanas Sérgio Buarque de
Holanda”, a primeira, em 1982 e a última em 1987. Com excessão da "V Semana", que ocorreu entre
12 e 14 de agosto de 1986 na Unicamp, todas as demais se deram em julho, mês de nascimento de
Sérgio, na cidade de São Paulo. No mesmo ano de 1986, ocorreu na cidade do Rio de Janeiro a
exposição comemorativa aos 50 anos de Raízes do Brasil, intitulada, “Sérgio, o renovador”. O evento
foi organizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, que publicou um pequeno livreto contendo textos
panegíricos de José Murilo de Carvalho, Francisco de Assis Barbosa, Onestaldo de Pennaforte,
Manuel Bandeira, além da lista de peças expostas, bibliografia do homenageado e dados biográficos.
Podemos a partir desse material, citar um exemplo do que definiremos abaixo como fatalismo: o
primeiro foi retirado do texto de José Murilo de Carvalho e diz o seguinte: “Raízes do Brasil tornou-se
o livro mais conhecido de Sérgio (…) e talvez o mais influente. Não foi o seu melhor livro. Mas teve o
grande mérito de representar uma alternativa às tendências dominantes da época e de anunciar o
grande historiador do futuro”. CARVALHO, José Murilo de. Cinquentenário de Raízes do Brasil. In:
Sérgio, Renovador. Rio de Janeiro: FCRB, 1986. p. 7.
400 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Conferência - Ritual de Aurora e de Crepúsculo: a
visando o futuro. Ela está diretamente relacionada com os usos sociais, culturais e
políticos da memória, é uma das modalidades não só de sua transmissão, mas de
sua elaboração, de sua produção. Ainda segundo este autor, o ato comemorativo
não só se organiza num momento em que se instaura um dever de memória, não só
se constitui num momento em que a lembrança é voluntariamente convocada, mas
“também se constitui num momento privilegiado para a proliferação de memórias,
para a elaboração de versões daquilo ou daquele que se comemora". Pois o ato de
lembrar “é sempre realizado no presente, mas traz consigo uma expectativa de
futuro”.401
Já assinalamos no início do capítulo que a competência dos grandes
homens desaparecidos tende a ganhar o estatuto de “panteonização”, e este é posto
a serviço das práticas identitárias dos grupos. Nesse sentido, após atravessar a
esfera privada e a esfera institucional concedida pela Unicamp, a memória de Sérgio
chegava agora à esfera pública, uma vez inserida no calendário oficial de
comemorações do estado.
Vimos também, na época de sua morte, que a sua biografia carecia de
"ajustes" e que sua obra era “esparsa”. Portanto, nada mais propício para um
determinado grupo, formado por importantes acadêmicos que conheceram de perto
o morto, tomar para si a partir de um certo espaço de enunciação e com
determinados fins, cultural e político, o projeto de forjar, conforme seus próprios
interesses identitários, a biografia modelar do velho mestre baseada em princípios
de fatalismo402 e excepcionalidade, cujo resultado é visto em um livro matriz, produto
dessas “Semanas” e de nome sugestivo, "Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra”,
401Idem, p. 388.
402O fatalismo é entendido aqui como uma “doutrina" segundo a qual os acontecimentos são fixados
com antecedência pelo destino. Tudo acontece porque tem de acontecer, sem que nada possa
modificar o rumo dos acontecimentos. Propenso a um rígido determinismo, o fatalismo impõe uma
mítica inevitável à jornada humana. O fatalismo tem-se insinuado em narrativas biográficas
contemporâneas escritas. O senso fatalista coloca o biografado em função de sua obra. Sendo assim,
em vez da parcela considerável da vida, sua obra se torna a sua própria vida. VILAS-BOAS, Sérgio.
Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida. São Paulo: Unesp, 2014. p. 85. Não por acaso,
lermos na Introdução de "Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra”, a seguinte passagem: “O volume
foi organizado visando um leitor imaginário que desconheça o autor e sua obra inteiramente.
Procuramos dispor a matéria de forma que, analisada inicialmente a vida, esta possa ajudar à
compreensão da obra, estudada em seus mais diferentes ângulos, aflorando em toda a sua
importância e profundidade. Ao final, contará o leitor com um levantamento exaustivo das publicações
do autor e do que sobre ele e sobre a sua obra já foi escrito até nossos dias”. In: NOGUEIRA, Arlinda;
PACHECO, Felipe de Moura; PLINIK, Márcia; HORCH, Rosemarie Erika.(orgs). Sérgio Buarque de
Holanda: vida e obra. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura: Arquivo do Estado: USP: IEB,
1988. p. 11.
182
Hoje grande parte das pesquisas sobre Sérgio Buarque se valem de seu
papelório. Todavia, são estudos constituídos dentro de uma concepção na qual
esses papéis acumulados seriam uma espécie de “repositório de provas”,
possibilitando aos investigadores tecerem narrativas e análises sobre ele e sobre
403PALMEIRA, Miguel S. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:
TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joëlle; HEYMANN, Luciana (org.). Arquivos Pessoais: reflexões
multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 89.
404 SILVA, Rafael Pereira da. Conversas com Sérgio Buarque de Holanda. História da
sua obra. Vistos nessa chave, os arquivos pessoais como objetos tendem a ocupar
um lugar periférico nas análises interessadas na construção social dos arquivos, já
que existe uma tendência em associá-los à “memória individual”, a interpretá-los
unicamente como acúmulos que documentam as atividades do titular ou revelam
dimensões de sua personalidade. Esse tipo de abordagem, como sugere pesquisa
recente, obscurece o caráter de múltiplas interferências, que de outro ponto de vista,
nos indicam a ideia de que esses arquivos são constituídos a várias mãos.405
De maneira geral, o interesse pelos arquivos no campo das ciências
humanas é tributário de reflexões que tiveram início no princípio da década de 1990,
nas áreas da filosofia, dos estudos culturais e da antropologia. De “repositório de
provas” que permitiriam conhecer o passado, essas reflexões passaram a olhar os
arquivos como parte do processo de construção de discursos e de consolidação de
memórias sobre um certo passado em disputa, ou seja, o arquivo passa a ser uma
instância na qual e pela qual se constroem “fatos" e “verdades”.
Nos pareceu consensual dentro dessa nova perspectiva, a importância
central que tiveram os trabalhos de Jacques Derrida e Michel Foucault, cujos textos
instituíram o arquivo como metáfora do cruzamento entre memória, saber e poder;
como constructo político que produz e controla a informação, orientando a
lembrança e o esquecimento ou, de forma mais direta, como a “lei do que pode ser
dito”406, daí sugerirmos que o Fundo Sérgio Buarque de Holanda, concebido por
uma pluralidade de atores, pode atestar do ponto de vista da memória a versão que
o titular esboçou de si mesmo.
405 HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: TRAVANCAS, op.cit, p.
69. A autora trabalha com a ideia de “olhar antropológico” sobre os arquivos pessoais, propondo que
o investigador desloque a atenção dos documentos para os processos de constituição desses
acervos. Por esse ângulo, além dos gestos individuais de seleção e guarda dos registros, devem ser
considerados os contextos nos quais os conjuntos documentais se inserem: contextos sócio-
históricos mais amplos, de uma parte, e contextos arquivísticos nos quais são preservados, tratados e
disponibilizados, de outra.
406 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008;
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
2001; FRAINZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo
Capanema. Estudos Históricos, vol.11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 58-87; COOK, Terry. Arquivos
pessoais e arquivos institucionais: para um entendimento arquivístico comum na formação da
memória em um mundo pós-moderno. Estudos Históricos, vol. 11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 129-
149; FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Trad. Fátima Murad. São Paulo: EdUSP, 2009; GOMES,
Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Estudos
Históricos, vol.11, n. 21, Rio de Janeiro, pp. 121-127; KEETELAR, Eric. (De)Contruire l’archive.
Matériaux pour l’Histoire de Notre Temps, n. 82, Nanterre, avr-juin, pp. 63-69.
184
407Laurent Vidal define o termo “acervo pessoal” como “o conjunto dos documentos produzidos e/ou
pertencentes a uma pessoa, um indivíduo, resultados de uma atividade profissional ou cultural
específica. (…) O alcance cronológico dos acervos pessoais não ultrapassa a vida do indivíduo que o
constituiu”. Patrimônio e memória (Unesp), vol. 3 n. 1, 2007. p. 6.
185
seleção" daquilo que poderia e/ou deveria se tornar público, com a clara finalidade
de instituir uma narrativa oficial sobre a memória do marido.408
Se comparado ao acervo de outros intelectuais ou homens públicos, o de
Sérgio Buarque não é monumental, embora revele alguma fixação do titular no
acúmulo sistemático de papéis, porém muito diferente, por exemplo, de um Mário de
Andrade com o seu gigantismo epistolar, um Darcy Ribeiro com os seus documentos
de trabalho e diários, de um Pedro Nava memorialista ou ainda de Paulo Duarte, que
chegou a guardar um capacete do tempo da Revolta Paulista de 1932.409
Segundo D. Maria Amélia, Sérgio tinha uma dinâmica própria de
autoarquivamento. Sua biblioteca, por exemplo, era uma “bagunça”, mas organizada
de acordo com sua própria lógica de recuperação e interesse. Os seus documentos
pessoais eram mantidos em pastas, caixas e gavetas sem quaisquer critérios
rigorosos de organização e indexação e seguiam uma certa “ordem natural” de
interesses de acordo com cada época de sua trajetória. Muitas cartas, por exemplo,
foram encontradas dentro de livros410 por bibliotecários da Unicamp que as remetiam
ao Arquivo.
Pensando numa expectativa futura, no legado de seu trabalho e numa
eventual autobiografia como historiador e crítico, a suposta “bagunça" imposta pelo
408 Essa característica da constituição de acervos também foi estudada por Aleida Assmann quando
tratou dos arquivos como constituintes de uma memória histórica. Para a autora, depois que as
atividades de recolhimento e conservação foram consideradas primeiramente como as mais
importantes do arquivo, a partir do século XIX os arquivistas tiveram também que limpar o arquivo e
descartar itens dele, atividades não menos importantes que as anteriores. Para a “cassação”, jargão
que denomina a destruição de acervos de arquivos, existem em cada época determinados princípios
de segregação e medidas de valor que não são necessariamente compartilhados pelas gerações
posteriores. O que é lixo para uma geração pode ser informação preciosa para outra e, por isso, os
arquivos não são apenas locais para armazenamento de informação; são igualmente locais para as
lacunas de informações que não resgatam somente as perdas em catástrofes e em guerras, mas
também resgatam, de maneira essencial e estruturalmente indispensável, uma “cassação"
equivocada, sob o ponto de vista dos pósteros. ASSMANN, op.cit, p. 370.
409 Ponto importante a ser considerado é o fato de que nem todo gesto de arquivamento pode ser
pelo personagem principal dentro do livro “O Ramo de Ouro”, pertencente ao seu pai e que depois de
manuseado deveria ser guardado exatamente como ele o havia deixado em alguma prateleira da sua
enorme biblioteca. BUARQUE, Chico. O irmão alemão, op.cit., pp. 8-10.
186
arquivista não teria o intuito de incentivar naqueles que mais tarde encontrassem
esses papeis, a participação num jogo de adivinhações, gerando nesses
pesquisadores a surpresa em revelar cada um desses enigmas e ativando no trato
com outros rastros a composição de um “mosaico de si”?411
A última remessa de documentos feita por Maria Amélia se deu em 2004.
Nessa época o Fundo já contava com mais de 2 mil documentos em diversos
idiomas, incluíndo certidões, fotografias, cartões pessoais, postais, medalhas de
honrarias, correspondências, originais de textos, cadernos de pesquisa, textos
escritos por Sérgio em diversos jornais e revistas no Brasil e no exterior, cópias de
documentos de arquivos visitados, dossiês (Centro Brasil Democrático, Instituto de
Estudos Brasileiros-IEB, Prudente de Moraes, neto, Museu de Arte Moderna-MAM),
resenhas sobre as suas obras, etc.
Remessas posteriores ainda foram feitas, todavia, constituíam-se em
produtos de pesquisadores recebidos por Maria Amélia ou matérias de jornal e
revista que ela mesmo colecionava, em geral textos celebrativos sobre a vida e a
obra do marido, portanto, documentos que compõem o seu Fundo Privado
institucional, mas que não são originários de seu acervo pessoal.
Dadas as características de movimento desse arquivo, Neire Rossio, que
trabalhou nele diretamente, o definiu como um “fundo aberto”, já que o trabalho de
catalogação se deu ao longo de mais de uma década, demandando da equipe
arquivística constantes “(re)fazimentos”412. Com o falecimento de D. Maria Amélia, já
centenária em 2010, o fundo pôde, enfim, ser considerado fechado.
A característica de movimento desse tipo de arquivo foi estudada por
Miguel Palmeira ao se debruçar sobre o legado do historiador da Antiguidade,
Moses Finley. Para esse autor, a criação de um arquivo pessoal e os seus
deslocamentos lançam luz sobre as energias sociais consumidas no processo de
constituição e preservação desse acervo, energias que somente poderiam ser
canalizadas em razão de um capital simbólico expressivo, previamente acumulado
411 Questões dessa ordem foram formuladas por Philippe Artières ao tratar de certas práticas de
autoarquivamento. Para esse historiador, mais do que a natureza dos arquivos pessoais e as práticas
que lhes dão origem, o importante seria cotejar os modos de fabricação desses arquivos, ou seja,
buscam-se os gestos que podem transformar as práticas comuns em pequenos altares singulares ou
as experiências desse autoarquivamento numa obra de arte. ARTIÈRES, Philippe. Arquivar-se: a
propósito de certas práticas de autoarquivamento. In: TRAVANCAS, op.cit., pp. 45-54.
412 HEYMANN, Luciana Quillet. O lugar do arquivo, op.cit., sobretudo o capítulo 4, “Os papéis de
pelo titular. Por essa perspectiva, alguém como Sérgio Buarque "mereceria" ser
reproduzido em arquivo não apenas porque nele se reconhece um historiador e
crítico importante, mas porque se entende que essa importância tem sua
perpetuação favorecida pela organização de um arquivo pessoal.
O que estaria em jogo, segundo Palmeira, é a administração de um
patrimônio intelectual que não diz respeito somente ao morto, mas
fundamentalmente às pessoas e às instituições associadas a seu legado, como já
sugerimos ao longo da tese. O arquivo, em outras palavras, reteria a marca dos
interesses, dos valores e das estratégias de consagração dos grupos sociais a que
se refere e elabora uma atividade de simbolização mediante a qual certos grupos
manifestam sua existência material, política e intelectual.413
O caminho trilhado por Palmeira vai ao encontro daquilo que estamos
buscando nesse capítulo, ou seja, o de que há um princípio e um efeito de
sacralização do indivíduo na constituição de um arquivo pessoal com amparo
institucional. Assim, podemos afirmar que a inscrição de um conjunto documental
heterogêneo sob uma categoria que leva o nome de seu titular, seja ele quem for,
opera um recorte do registro de atividades intelectuais que se ajusta facilmente à
voga de restringir as forças atuantes no mundo acadêmico às ações isoladas de
alguns notáveis.414
Nisso procede o fato de que a não observação da dimensão de poder
investida na forma “arquivo pessoal” poderia levar os historiadores da historiografia
(e das ciências sociais, etc.) a relegar, como no passado, os historiadores de
“segundo time” ao limbo do esquecimento ou às trevas. Um desvio em relação a
uma linha evolutiva preestabelecida - o que atenderá às necessidades de uma
axiologia da profissão, mas não as de uma compreensão histórica das práticas dos
historiadores nos debates do tempo.415
Desse modo, mesmo que alguns biógrafos de Sérgio sugiram que ele não
estivesse lá muito preocupado em construir uma autoimagem, o discurso histórico
que emerge de seu arquivo pode ser lido como o produto de ações que envolveram
ele próprio, sua família, seus pares, a instituição detentora de seu legado e
413 PALMEIRA, Miguel. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In:
TRAVANCAS, op. cit., pp. 95-96.
414 Idem, p. 96.
415 Ibidem, pp. 96-97.
188
416 Parte delas foram publicadas em um livro organizado por Renato Martins, intitulado Sérgio
Buarque de Holanda: encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. Na época publiquei uma
resenha da obra na Revista “História da Historiografia”, da UFOP, em que exponho o seguinte: ”O
livro conta com uma apresentação, dezesseis entrevistas e uma cronologia ao final do volume. De
formato pequeno e bem acabado, ele sugere um passeio pela vida do intelectual. Desse modo, o
tempo de leitura (…) voa como uma boa conversa de amigos em um bar, também porque algumas
das entrevistas levantadas por Martins possuem essa informalidade. Da juventude modernista à
maturidade serena, é o “pai do Chico” quem conta sua vida, explica, esclarece dúvidas e as expõem
também ao leitor (…). Vale ressaltar ainda que as entrevistas apresentadas nesta obra compõem
apenas um pequeno fragmento do que há no acervo do homenageado, aberto para consulta no
Arquivo Central da Unicamp. Dos dezesseis depoimentos apresentados, apenas oito coincidem com
os trinta e dois que formam a Sub-série: entrevistas, da Série Vida Pessoal, que inclui ainda centenas
de fotografias de Sérgio Buarque, com familiares e diversos intelectuais. Quanto ao texto de
apresentação de Renato Martins, nada traz de novo. Sua leitura de Sérgio Buarque em nada difere
das de seus mais ilustres comentadores. Aqui, mais uma vez, a linha do tempo que liga o jovem
modernista ao membro fundador do Partido dos Trabalhadores é seguida à risca, ficando as nuances
de uma leitura a contrapelo, ou da busca de uma “política da boa memória”, a cargo de quem quiser
se aventurar nesses encontros. SILVA, Rafael Pereira da. Conversas com Sérgio Buarque de
Holanda, op.cit., pp. 235-236. Disponível em:
http://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/viewFile/357/255
417 A “União Brasileira de Escritores”- UBE foi criada em 17 de janeiro 1958, resultando da fusão da
Sociedade Paulista de Escritores com a Associação Brasileira de Escritores-ABDE. Esta última teve
como participantes, além do próprio Sérgio Buarque, figuras importantes de sua amizade, como
Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Antonio Candido, Paulo Duarte, entre outros.
189
418 Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Arquivo Central-SIARQ, Unicamp. Série Vida
Pessoal, sub-série Entrevistas. Campinas, maio de 2002. O grande número de entrevistas que o
historiador concedeu, entre 1976 e 1982, se inserem muito mais num momento de abertura política e
numa tentativa de inscrever-se à posteridade, do que numa "postura militante propriamente dita",
como insinua de maneira tendenciosa o historiador Marcos Costa, no intuito de colar Sérgio à imagem
da esquerda combativa do país. Segundo ele, “(…) só a partir dos anos 1970 que essa tendência até
então pouco recessiva na personalidade de Sérgio Buarque de Holanda ganha predominância. Na
última fase de sua vida, diante do conservadorismo obscurantista que havia se abatido sobre a
sociedade brasileira, Sérgio Buarque de Holanda se torna um militante propriamente dito e demonstra
isso de diversas maneiras, entre elas por meio das entrevistas que concedeu criticando o regime em
seu pleno período mais sombrio a partir da vigência do AI-5”. COSTA, Marcos. Biografia Histórica: a
trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda entre os anos de 1930 e 1980. 2007. Tese,
Doutorado em História, Universidade Estadual Paulista (UNESP)- Assis. p. 168.
190
419 Além de cenas que retratam a vida intelectual e familiar de Sérgio Buarque, é possível
vislumbrarmos uma cartografia dos principais países percorridos por ele e porque não, “enquadrá-lo”
na categoria de "turista-fotógrafo", já que seus registros fotográficos têm o potencial de nos contar
histórias, de conter o tempo e, sobretudo, de preservar a memória, "que é falha e sujeita ao
esquecimento, um instantâneo que possibilita rever em imagem a própria experiência". LAURETTI,
Patrícia. Revelando o turista-fotógrafo. Jornal da Unicamp, nº 601, Campinas, 23/06 a 3/08/2014, p.
12. A matéria citada refere-se à tese de Lívia Afonso de Aquino, Picture ahead: a Kodak e a
construção de um turista-fotógrafo, Instituto de Artes, Unicamp, 2014. Há evidentemente outras fotos
que registram cenas de Sérgio Buarque em ambiente privado, como uma em Nova Iorque na casa de
sua filha, Miúcha e de seu marido João Gilberto ou vestido de Netuno em um navio durante festa a
fantasia, doravante, nos interessou aquelas em que está na casa da rua Buri. Outras cenas
corriqueiras que revelam a intimidade da família em sua residência são atestadas, por exemplo, pelos
registros da gravação do filme "Certas Palavras", documentário dirigido por Maurício Beru sobre a
trajetória musical de Chico, Em uma das fotos, o historiador está sentado à mesa saboreando uísque
ao lado do músico e de Vinícius de Morais. Em outra, aparece ao fundo, do lado direito da imagem,
novamente ao lado do Poetinha, ambos cercados por refletores e pessoas de pé em volta à
esquerda, só que dessa vez observando Toquinho, que está de costas e em primeiro plano. Já em
uma das sequências do filme, na qual Vinícius de Moraes reconstrói a história da canção "Samba de
Orly”, é possível vermos em viradas de câmera Sérgio Buarque em movimento, talvez um dos poucos
registros desse tipo acessíveis aos pesquisadores
191
historiadores brasileiros. Realidade, nº 75. São Paulo, 1972. Apud: WEGNER, Robert. Latas de leite
em pó e garrafas de uísque: um modernista na universidade. In: MONTEIRO, Pedro Meira;
EUGÊNIO, João Kennedy. Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas. Campinas/SP; Rio de
Janeiro: Editora da Unicamp/EdUERJ, 2008. p. 495.
192
422LACERDA, Aline Lopes de. A imagem nos arquivos. In: TRAVANCAS, op.cit., p. 58.
423Esse conjunto de poucas cartas, que não chegam a duas dezenas, foi muito bem organizado por
Pedro Meira Monteiro e publicadas no livro, Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda:
correspondência. São Paulo: Companhia das Letras; EdUSP; IEB, 2012.
193
Sabemos que não foram poucas vezes que os carteiros tiveram que se
dirigir à Avenida Atlântica, esquina com a Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro, à
Via San Marino, 12, apartamento 2, em Roma ou à Rua Bury, 35 no Pacaembú em
São Paulo, entre outros endereços, procurando por um tal Dr. Sérgio Buarque de
Holanda, às vezes grafado como “Hollanda", para lhe entregar pacotes com
encomendas de livros, bilhetes, postais ou cartas. Imagina-se que o intelectual fosse
constantemente interrompido em seus afazeres sempre que o sino da campanhia
anunciasse mais uma entrega, em muitos casos recebidas primeiramente por D.
Maria Amélia.
Não raras também eram as cartas que faziam menção à família toda, nos
dando a certeza de que os Buarque de Holanda viviam na mais completa harmonia,
como visto nas despedidas, onde os amigos enviavam as mais cordiais saudações
de lembranças e saudades, a exemplo desta, recebida por Sérgio em 16 de agosto
de 1959: "Na espera da sua resposta, aqui fico, recomendando-me muito a Maria
Amélia, afilhada e demais rebentos, e mandando a você um forte abraço, mais
admirativo depois da espinafrada na competente canalha corruptora. Antonio
Candido”.424
As cartas recebidas por Sérgio vinham de muitos lugares. Às vezes de
pertinho, da mesma cidade em que residia; por outras de bem longe, como Buenos
Aires, Santiago, Viena, Sevilha, Paris, Avignon, Chicago, Londres, Roma, Siena,
Belgrado, Lisboa, Bourg-la-Reine, Genebra e tantos outros, indicando o ímpeto
cosmopolita do historiador. Indícios razoáveis para pensarmos que o historiador quis
legar à posteridade “um pequeno museu para o resto do mundo” 425 , além de
consolidar a "auto-imagem" de “mestre”, atribuída e amplamente divulgada por seus
discípulos e pares como podemos aferir a partir da leitura do instigante livro de
Françoise Waquet, “Os filhos de Sócrates”.426
424 Correspondência passiva, Cp 220, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.
425 Achei a expressão apropriada para esse capítulo. Ela foi retirada de um artigo da professora
Jeanne-Marie Gagnebin, O rastro e a cicatriz: metáforas da memória”. Revista Pro-Posições, v. 13
n. 3 (39), set- dez., 2002, p. 133. A expressão, segundo ela, é de autoria do artista russo Ilya
Kabakow.
426 WAQUET, Françoise. Os filhos de Sócrates. Filiação intelectual e transmissão do saber do
século XVII ao XXI. Trad. Marcelo Rouanet. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
194
427 No inventário do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Série Correspondências, são indicados um
total de 379 cartas. Dessas, apenas 11 são cópias de cartas enviadas pelo titular. Na Fundação Casa
de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, localizei outras 6 cartas enviadas por Sérgio entre 1929 e 1954,
coincidentemente, períodos importantes de sua formação intelectual, que remetem às experiências
alemã e italiana. Outras tantas devem estar na guarda de parentes ou de amigos próximos, não
sendo possível localizá-las.
428 Luis da Câmara Cascudo, Cp 121, Arquivo Central Unicamp, Fundo Sérgio Buarque de Holanda.
195
429 GOMES, A ̂ ngela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a tit́ ulo de prólogo. In: _____. (Org).
Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. pp. 13-14.
430 MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINKY, Karla Bessanezi; LUCA, Tânia Regina
432Anotações com sugestões de Maria Amélia Buarque: trechos selecionados de cartas de artistas e
acadêmicos enviadas a SBH e entrevistas sobre ele para composição da IV Semana Sérgio Buarque
de Holanda. São Paulo, 1985. Hp 167, Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central Unicamp.
197
Rocco, 1988. O livro é dividido em 3 partes: a primeira, com introdução de Barbosa, contém textos de
Sérgio de sua “fase modernista”, dentre eles os famosos “Originalidade Literária” e “O lado oposto e
outros lados”; a segunda parte é apresentada por Antonio Candido que reedita um texto seu já
publicado, “Sérgio em Berlim e depois” e praticamente imprime o caderno que foi organizado por
Cecília, que apresenta a famosa entrevista “Thomas Mann e o Brasil”; por fim, a última parte tem a
apresentação de Manuel Bandeira.
435 Entrevista com Edgar de Decca. Jornal da Unicamp, Edição 232, 5 a 12 de outubro de 2003.
Durante a entrevista, De Decca chegou a mencionar que a publicação do texto estava sendo
negociada com a família, todavia, o trabalho continua inédito e pouco conhecido mesmo dentro do
ambiente acadêmico.
198
2007. p. 17. Essa expressão é utilizada por meio de uma livre apropriação da ideia original do autor.
438 NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de
dos Descobrimentos.
440 MONTEIRO, Pedro Meira. Permanência e mudança: em torno de Sérgio Buarque de Holanda.
verbetes, e da família que vez ou outra foi procurada para ajudar a identificar
pessoas e a contextualizar fatos.441
O inventário, esse importante instrumento de consulta por meio do qual o
pesquisador tem acesso à descrição das unidades documentais do fundo, é
importante porque pode revelar a “biografia do arquivo”, numa perspectiva em que
ele se transforma em objeto. Em outra acepção, o inventário constitui um tipo de
narrativa biográfica sobre o titular, à medida que ele opera um encadeamento dos
fragmentos que registram a sua trajetória, dotando-a de uma inteligibilidade
específica, induzindo o olhar ou os rumos da pesquisa histórica. Há ainda a
possibilidade de entendimento do inventário como a história da construção do
conjunto documental considerado o “arquivo" de uma entidade, seja pessoal ou
institucional.442
A esse respeito, alguns autores vêm chamando a atenção para o “mito da
neutralidade” do trabalho arquivístico, propondo que a subjetividade de que se
revestem essas intervenções contribuam para uma crítica dos arquivos e,
consequentemente, para a abertura de um debate sobre conceitos como “fonte”,
“prova" e “autoria" nas pesquisas baseadas em documentos históricos. Isso porque,
ao conferir historicidade ao arquivo-fonte, revelando o caminho seguido no seu
tratamento, o arquivista assume sua condição de agente do processo de construção
da memória, fornecendo elementos que podem orientar de forma diferenciada o
acesso do pesquisador aos documentos. Essa postura crítica só recentemente vem
ganhando espaço nos meios acadêmicos, uma vez que os estudos sobre arquivos
pessoais, pensados na perspectiva de objetos, ainda são em número escasso no
país.
Os poucos investimentos nessa direção apontam para o processo de
constituição do conjunto documental pelo titular e seus herdeiros, examinando os
esforços para projetar na documentação a imagem que gostariam de ver preservada
441 Catálogo do Fundo Sérgio Buarque de Holanda, Arquivo Central do Sistema de Arquivos, Área de
Arquivo Permanente, Campinas, março de 2013.
442 CUNHA, Olívia. Do ponto de vista de quem? Diálogos, olhares e etnografias dos/nos arquivos.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, jul-dez. 2005, p. 7-32; HEYMANN Luciana. Indivíduo,
memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos
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Arquivos Pessoais em perspectiva etnográfica, In: TRAVANCAS, op.cit, pp. 67-76.
201
443 Refiro-me ao importante artigo de Pierre Bourdieu L’illusion biographique, publicado em 1986 nas
Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, número 62-63, pp. 69-72.
444 GAGNEBIN, Jeanne Marie. O rastro e a cicatriz: metáforas da memória. Revista Pro-Posições, v.
“Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu
assunto heroico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um
tipo comum. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelaire
tão assiduamente. (...) Aqui temos um homem - ele tem de recolher os
restos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o
que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que quebrou, ele o cataloga,
ele o coleciona. Compila os arquivos da devassidão, o cafarnaum da
escória; ele procede a uma separação, a uma escolha inteligente; recolhe,
como um avarento, um tesouro, o lixo que, mastigado pela deusa da
Indústria, tornar-se-á objeto de utilidade ou de gozo.' Essa descrição é uma
única metáfora ampliada do comportamento do poeta segundo o coração de
Baudelaire. Trapeiro e poeta - os dejetos dizem respeito a ambos; solitários,
ambos realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam
ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do pas saccadé
(passo intermitente) de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade
procurando a presa de rimas; deve ser também o passo ao trapeiro que, a
todo instante, se detém no seu caminho para recolher o lixo em que
tropeça”.445
445BENJAMIN, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. Capítulo "A Modernidade". In:
______. Obras Escolhidas III. Tradução (modificada) de José Carlos Martins Barbosa. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1989. pp. 78-79.
203
Considerações finais
446
Essa temática continua em voga. Basta ver o Dossiê “História Intelectual” do último número da
Revista Tempos Históricos, vol. 19, jan/jun, 2015, lançado logo após o término da redação da tese.
Em especial vale mencionar o artigo de Cláudia Wasserman, "História Intelectual: origens e
abordagens",pp.63-79.http://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/issue/view/744/showToc
447 O termo fascinação denota um tipo de encantamento intelectual, uma sedução, uma paixão. Ideia
apropriada de Sérgio da Mata em seu livro sobre as origens da obra de Max Weber. Segundo o autor,
quem primeiro teria usado a expressão “fascinação" ao se referir ao autor alemão, teria sido Nelson
Werneck Sodré, nos idos de 1950. O termo ainda remete à ideia de “culto de fé”, segundo a
concepção de Edgar Zilsel, citada por Mata, o qual aponta que, “parte substancial de nossos literatos
(…) satisfaz suas necessidades religiosas exclusivamente na forma de culto ao gênio”. MATA, Sérgio
da. A fascinação weberiana. As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. p.
12.
205
não pensar nesta “obsessão comemorativa” quando Chico Buarque revela, em cores
literárias, segredos familiares por muito tempo guardados, como a existência do seu
“Irmão Alemão”, apresentando documentos que desmontam a versão meramente
memorialística da passagem de seu pai por Berlim, causando frisson no mercado
editorial? Ou quando Antonio Candido insiste nesta mesma memória em um evento
celebrativo aos cinquenta anos do IEB?
Não seria exagero, então, afirmar que houve por parte de um pequeno
grupo de amigos e ex-orientandos o rearranjo da esparsa obra buarqueana, tanto
histórica quanto crítica, bem como o ajuste de seu perfil biográfico à esquerda,
levando em conta o envolvimento de alguns desses intelectuais com a fundação do
PT. Ou foi mero acaso que o Centro de memória política do Partido escolheu o
historiador como homenageado? O certo é que virou memória a versão de um
intelectual politicamente combativo, de posicionamento radical, anti-autoritário,
democrático, o maior de nossos historiadores, chegando sua obra em alguns casos
a ser lida como um sofisticado exemplo de história social dos excluídos, avant la
lettre.
Todavia, a leitura de algumas fontes apontou se tratar de um personagem
bem diferente, visto muito mais como um humanista e erudito, cuja obra naquele
início de década, além de esparsa, tinha pouco alcance nos meios acadêmicos fora
da órbita paulista. Daí a afirmação de Francisco Iglésias de que “Sérgio ainda há de
ser reconhecido em seu devido valor”. Se hoje o passado do historiador vive preso
nesse presentismo eterno, isso muito se deve a essas estratégias de consagração.
Um estudo recente mostrou que de nada vale a excelência de uma obra,
sem a existência de mediadores dispostos a mobilizar recursos capazes de garantir
a construção e a manutenção do “estatuto de clássico” de um determinado autor,
caso contrário muitos deles poderiam se desmanchar no ar.448 Não foi apenas por
saudade, portanto, que intelectuais como Antonio Cândido, Francisco de Assis
Barbosa, José Sebastião Witter, Fernando Novaes, Francisco Iglesias, Maria Odila
L. da S. Dias, Laura de Mello e Souza, entre outros, elaboraram e sustentaram
versões que ajudaram a cristalizar o perfil oficial do mestre-amigo, materializado em
publicações póstumas de inéditos, coletâneas, reedições e enunciações em eventos
acadêmicos, sem contar a biblioteca e o arquivo, lugares funcionais dessa memória.
como memorialista foi fundamental. Atuando nos bastidores, a viúva de Sérgio foi
quem primeiro se preocupou com atos de lembrança e esquecimento, já que
conhecia como ninguém a dinâmica de trabalho de Sérgio. Muitos registros
demonstram que ela costumava acompanhar o marido em pesquisas de campo, se
responsabilizando por copiar passagens inteiras de documentos e datilografando
muitos de seus escritos.
Para melhor discutir essas questões buscamos problematizar a questão
do arquivo, entendido como um objeto dotado de possibilidades narrativas e não
meramente um depositário institucional de memória. Daí concluirmos que, nem
mesmo a salvaguarda deste arquivo por uma instituição de pesquisa e pensamento
crítico como a universidade, conseguiu neutralizar completamente as demandas e
projeções futuras do titular e de seus herdeiros sobre a memória em questão.
Sobretudo se considerarmos hoje os efeitos desse arquivamento na revitalização de
sua obra, vistos na vasta fortuna crítica que se formou e nos muitos inéditos de sua
autoria que passaram a veicular no âmbito acadêmico a partir da década de 1990,
reforçando do ponto de vista documental o que a memória póstuma já havia
esboçado na década de 1980.
208
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