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O Código dos Marginalizados: a linguagem do Rap

Álvaro Cardoso Gomes


Márcia Aparecida Leão*

Resumo:
O artigo trata das composições do rap, tentando mostrar que elas manifestam, em suas
letras, o cotidiano da população marginalizada da periferia. Analisando os aspectos
formais das canções, o vocabulário, as imagens, os autores constatam a presença de um
dialeto específico que se contrapõe à norma culta, como forma de protesto, de defesa
contra a opressão.
Palavras-chave: rap, canção, dialeto, socioleto, verso, poesia.

Os compositores de rap (rhithm n´ poetry) orgulham-se de cantar canções que


registrem o cotidiano de quem mora na periferia. Acreditam que estão denunciando os
processos de violência, de marginalização social a que são submetidos. E mais, esperam
que as composições deixem uma mensagem para o público que as escuta, de forma a
mover alguma ação afirmativa em favor da comunidade pobre. Os adeptos deste estilo
musical formam um grupo específico que atua dentro ou fora da cultura Hip Hop. Os
cantores de rap estabelecem códigos entre si, incluindo o modo de vestir: o tênis com
cadarço desamarrado, adornos dourados (imitando jóias), jaquetas escuras e bandanas,
uma espécie de lenço que vai abaixo do boné. Mas é preciso considerar também um
modo todo especial de se comunicar, com os rappers criando uma linguagem codificada,
um modo de se expressar específico, para gerar uma compreensão restrita por parte
daqueles que não pertençam à comunidade. Na análise de Thaíde:

Para quem conhece a história sabe da sua importância porque na


verdade o rap é isso, comunicação, informação e entretenimento.
Infelizmente, muitos o estão usando como comunicação e outros como
informação. Vejam bem, se a música rap tem esses três aspectos,
porque então retalhá-la? Também não posso interferir na opinião de
todos. Cada um faz sua música da forma que decidir, mas o mais
interessante é que, não todos, mas uma boa parte, decidiu fazer do

*
Álvaro Cardoso Gomes é professor do programa de pós-graduação multidisciplinar em “Administração,
Comunicação, Educação” da Universidade São Marcos e romancista; Márcia Aparecida Leão é mestra no
mesmo programa e professora de Sociologia e História da Educação.
2

mesmo jeito. Será que todos têm que falar do mesmo jeito, e muitas
vezes errado?.
A gíria existe porque surgiu como código da área onde as
pessoas pudessem tratar de assuntos que só a elas interessavam, nunca
foi sinônimo de erro verbal. A gente se preocupa tanto com a
autenticidade das ruas que acabamos esquecendo da nossa própria
autenticidade1.
As músicas são consideradas como armas pelos seguidores do movimento rap,
porque veiculam expressões fortes, sem limites verbais, que estimulam os sentimentos
de revolta, de vazio, de perda. O ritmo, a mensagem dos pobres da periferia de que tudo
está perdido e que não há mais nada a fazer, e até mesmo o próprio cenário de miséria e
violência, fazem nascer uma espécie de convocação de guerra contra aquelas pessoas
que conquistaram algum bem ou trabalho e principalmente contra os responsáveis pela
repressão, no caso, a polícia. Seguidores da cultura Hip Hop dizem que esse tipo de rap
é muito ruim para as crianças e os mais jovens, pois os afasta de oportunidades de
estudos e até mesmo de formar uma identidade social positiva. O trabalho de
institucionalização do Hip Hop tem o propósito de mostrar o contrário para os
adolescentes, isto é, que é um movimento preocupado com a formação e informação dos
garotos, no intuito de prepará-los, em sua auto-estima, para o mercado de trabalho. O
compositor do rap, via de regra, escreve uma letra contundente que serve para alertar
sobre a realidade sofrida pelo grupo social em que os afrodescendentes estão inseridos,
assim como faz reflexões sobre o que irão enfrentar numa sociedade racista e desigual.
Seus intérpretes são chamados de repentistas eletrônicos, porque despejam frases
ininterruptas com um fundo sonoro formado por distorções do scratch (manipulação de
um disco em vai-e-vem, enquanto ele gira no prato), de baterias eletrônicas ou samplers.
A aparente agressividade do rap cativa muitos adeptos, seja da periferia ou da
classe média2. São jovens que se identificam com o estilo de letras repletas de palavras
de baixo calão, compostas por adolescentes com caras de maus. Jovens que não sabem

1
São informações de Dj Thaíde, um dos precursores do rap no Brasil e também artista do movimento, atuante
nas festas e artes de rua, no centro de São Paulo. Esta declaração foi dada em entrevista ao jornal interno da
Casa do Hip Hop, em Diadema. Informativo do Centro Cultural Canhema – Casa do Hip Hop, nº 3, maio de
2000 – 4.000 exemplares distribuídos pela comunidade. Ritmo & Poesia, caderno Ponto de Vista.
2
Os jovens de classe média não vivem o mesmo drama da população de periferia, porém como adolescentes
que são, buscam na agressividade e violência dos guetos o aumento de adrenalina e aventuras.
3

se expressar direito e só falam de “tretas”3 e do bairro onde vivem, como se fosse o


lugar mais perigoso do mundo. As características do movimento Hip Hop apresentam
elementos que Manuel Castells chamou de construção da “identidade de projeto”, cuja
formação se dá a partir de um projeto cultural. Observa-se que o rap se destaca das
outras artes de rua por criar possibilidades para a construção de uma identidade de
resistência, que Castells analisa: “criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação,
construindo assim trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios
diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes
últimos”4.
Com isso e com a desculpa de reprimir a hostilidade da sociedade racista ou
preconceituosa, jovens formou o movimento rap, o contraponto, o oposto do Hip Hop.
Os adeptos desse movimento realizam verdadeira apologia do crime, do uso de drogas,
da violência, ou simplesmente passam alguma mensagem de alerta ou reflexão sobre a
vida simples e humilde de um afro-brasileiro na periferia.

1. Aspectos Formais das Composições

A maioria dos compositores de rap declarou na mídia que pouco freqüentou a


escola, tendo que parar de estudar, a fim de ajudar a família na sobrevivência. Sem
contato didático com a música, eles se tornaram autodidatas para desenvolver letras e
temas. Em geral buscam na realidade, dentro do universo de pobreza, desemprego,
violência e até mesmo em desilusões amorosas a inspiração para compor. Devido a isso,
supõe-se que tanto o conhecimento das técnicas musicais quanto das técnicas utilizadas
para a composição das letras originam-se da espontânea influência de músicos que
admiram. A elaboração das letras se dá na práxis, no ato da escritura, da composição.
Por isso mesmo, a formação do gosto dos compositores obedece a um princípio de
imitação de modelos musicais, disseminados na comunidade a que pertencem. Como
não poderia deixar de ser, é possível identificar em todas as composições determinados
elementos básicos, presentes nas letras da música popular, como o verso, a estrofe, a
rima. Formalmente, portanto, as letras têm como unidades básicas os versos, se

3
Ao final deste capítulo vem uma lista de termos usuais no movimento Hip Hop. Dentre as palavras mais
comuns usadas pelos adeptos do movimento, a palavra treta significa conflito, confusão, bagunça, briga.
4

entendermos os versos como segmentos frasais ou segmentos de frases, com algumas


características específicas:

É a sucessão de sílabas ou fonemas formando unidade rítmica e


melódica, correspondente ou não a uma linha do poema. Cada
verso pode compor-se de subunidades ou células métricas,
caracterizadas pelo agrupamento de sílabas, chamado pé na
versificação greco-latina; ou compor-se de uma seqüência de
sílabas ou fonemas, como de uso entre as línguas românticas. No
primeiro caso, a quantidade ou duração das sílabas é que importa;
no segundo, o seu número; ali temos o sistema quantitativo, aqui o
silábico, qualitativo ou acentuativo5.

Mas os versos das composições do rap, de maneira geral, além de serem


descomprometidos com uma metrificação precisa, são também quantitativamente muito
longos. A falta do conhecimento clássico da metrificação faz com que os rappers
ignorem o ritmo silábico do verso e o substituam pela batida forte da música; mais
precisamente é possível dizer que o cantor/compositor segue o compasso do bumbo..
Nas letras de rap, portanto, não se pode falar em regularidade no sistema quantitativo,
pois a variação de sílabas de verso para verso é muito grande, como se pode verificar no
exemplo abaixo:

Diadema 2 do doze de 99.


1 2 3 4 5 6 7 8 9-12
Saudades amigo Dexter, tudo bem?
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Espero que sim e que esta o encontre na mais pura paz espiritual, e que você esteja
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 161718 19 20 21 22 23 242526
firme e forte.
27 28 29
Olha, por aqui

4
Vale lembrar o seu significado no movimento Hip Hop. Castells, op. cit., p. 24.
5
Idem, p. 508.
5

1 2 3 4 5
nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

Os versos numa mesma composição costumam ter medidas completamente


diferentes. No exemplo citado, dá para verificar que há um alexandrino clássico, com
acento, nas 2ª, 6ª e 12ª sílabas, um verso eneassílabo e outro pentassílabo. Essa
disparidade silábica dos versos implica variação rítmica muito grande, como se, na
entonação, o compositor representasse e/ou mimetizasse o ritmo da fala, do
coloquialismo, na medida em que tais composições, ainda que visando ao canto,
costumam também ser recitadas/faladas. Assim, por exemplo, os versos “olha por aqui”
e “nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis” supõem uma
natural continuidade, dentro de um contexto puramente prosaico. A transformação em
verso (e não poesia frise-se bem, como explicaremos adiante) é responsabilidade
exclusiva da entonação que dita as pausas, por meio da eliminação da pontuação, para
permitir as quebras de frases perfeitamente elaboradas e que, fora do contexto da
canção, passariam por uma seqüência frasal prosaica, desde que se evitasse a quebra e
desde que também se utilizasse com propriedade a pontuação: “Olha, por aqui, nada
anda bem. Cada dia que passa, as coisas ficam mais difíceis”.
Na composição “Pião da Vida Loka” , a variação da extensão dos versos é
levada ao extremo, pois, em alguns momentos, os versos compreendem duas linhas; em
outros, seis e mesmo dez, isso se se considerar os blocos de frases, limitados pelo ponto
final, como um conjunto de versos (e/ou estrofe). Se não se considerar desse modo, é
possível ver cada bloco, limitado pela pontuação, como um único e extensíssimo verso,
cuja medida varia intensamente. Outra coisa: a alternância entre os blocos mais curtos e
os mais longos é aleatória, não obedecendo a nenhum padrão definido. O caráter
aleatório da arrumação dessa composição e, acima de tudo, do tamanho dos versos,
serve para salientar o aspecto recitativo da composição com uma entonação mais
prosaica, que mimetiza o ritmo da fala, do coloquial.
Mas, nas letras, chama a atenção também a utilização da rima, recurso nem
sempre constante e que obedece também a padrões dos mais variados. A rima é um
recurso sonoro que tem uma função de retorno a um princípio e que, portanto, facilita
não só a memorização de uma seqüência, como também serve para prever a sonoridade
6

vindoura. Evidentemente, a rima não é garantia de poesia. É apenas um recurso que


tanto pode servir de adjuvante num texto propriamente poético (por razões intrínsecas
de ritmo e imagem), o que é mais comum, ou mesmo num texto de prosa, embora isto
seja mais raro. No caso das composições, verifica-se, numa primeira instância, a
presença das chamadas rimas soantes, que se caracterizam pela concordância sonora
completa da última sílaba tônica das palavras:

Quero saber o porquê daquele olhar


Eu tô na dela aí, vou enquadrar

As rimas em ar são consideradas ricas, porque a classe gramatical das palavras é


diferente: “olhar”, substantivo, e “enquadrar”, verbo. O mesmo acontece no exemplo
abaixo – a classe gramatical dos termos rimados é diferente (adjetivo, substantivo):

Ontem tudo bem com a família inteira


Hoje um a menos parece brincadeira

Em outros exemplos, verifica-se a presença de rimas soantes no interior de um verso:

Eu tô por aqui na fé na paz, na correria adiantos (sic) e mais

Me lembro das festas que a gente fazia, saía às dez da noite e só voltava no
outro dia

Esse recurso é levado a extremo em “Pião da vida loka”, talvez para quebrar a
monotonia dos versos muito extensos. Para temperar o prosaico com o poético, por
meio do retorno a um determinado tipo de sonoridade, o autor utiliza-se da engenhosa
repetição de um mesmo recurso: o uso da rima interna, a intervalos mais ou menos
regulares: “enquadrado/forgado”, “facção/capão”, “escadinha/minha”,
“Pinheiros/maloqueiro”, “fora/hora”, “moral/pau”, “joga (por jogar)/fica (por ficar)/luga
(por lugar)”, “hora/fora” e assim por diante.
Além da utilização das rimas soantes, os compositores usam as rimas toantes,
caracterizadas pela concordância sonora somente da vogal tônica da última palavra dos
versos:
7

nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.
Com a Laisla tudo bem, pois ela ainda uma criança e não compreende as
surpresas da vida.
Sabe meu amigo...

A concordância rímica se dá somente na identificação sonora da sílaba tônica da última


palavra (“i”). O mesmo acontece nos versos seguintes, em que se dá a identificação
sonora final da tônica “a”:

Natal de 97 passei na sua casa,


Muita treta vários amigos na parada

Ainda é preciso considerar, nas letras, a presença do refrão, que institui a


polifonia, ou seja, as vozes que se alternam entre a voz principal, enunciadora do tema,
e o coro, estabelecendo-se uma espécie de contraponto. De recorte muito antigo, essa
técnica, remontando ao teatro grego clássico, sugere a integração entre a voz de
comando do líder e a resposta da comunidade.
A existência dos versos, das rimas, do refrão, expedientes muitas vezes
utilizados pela mais autêntica poesia, contudo, não faz que as letras dessas músicas
constituam poesia em si, o que nos leva a uma reflexão mais cuidadosa das diferenças
de gênero. Em síntese, a poesia se diferencia da prosa, já numa distinção apontada por
Aristóteles, não pela existência do verso (além da rima, é claro) propriamente dito. Há
muitos exemplos da mais genuína poesia que não se utiliza do verso e nem mesmo da
rima, como se pode verificar, por exemplo, nos poemas em prosa de um Baudelaire e de
um Cruz e Sousa. Por outro lado, durante os séculos XVII e XVIII, era muito comum
ver tratados científicos escritos em verso, sem que tais textos pudessem ser
considerados como poéticos. Na realidade, um texto só é considerado poesia, se tiver
um ritmo especial e, sobretudo, se trabalhar com a imagem, como um modo específico
de traduzir o real. (consultar Octavio Paz) A imagem implica a aproximação de coisas
distintas ou a sua diferenciação, num contexto absolutamente sintético, o que supõe o
uso sistemático das chamadas figuras retóricas, principalmente a metáfora, a analogia, a
comparação, a antítese. Já o que acontece nas letras de rap é a prosa pura e simples, com
o ritmo sugerido pelas rimas e, acima de tudo, pelo suporte dado à letra pela entonação,
pelo acompanhamento dos instrumentos musicais, pela batida imposta com o auxílio da
8

bateria. Em suma, dizendo o óbvio: as letras só se sustentam quando cantadas e/ou


recitadas, ou, melhor dizendo, não constituem poesia em si, não contém poesia, sem que
isto implique um juízo de valor, no que diz respeito à eficácia e à qualidade desse tipo
de composição.
Ainda formalmente, observa-se que muitas letras seguem o modelo de prosa em
forma de narrativa porque contam histórias de um povo que sofre as conseqüências
diretas da exclusão social, num mercado com poucas oportunidades de emprego e de
sobrevivência. Também há letras em forma demonstrativa, que recorrem à oratória. Há
casos que usam uma estrutura de carta para desenvolver um tema, como no exemplo
abaixo, um modelo de carta inserida na letra de rap. É um dos trabalhos do grupo 509-
E:

Saudades Mil

Diadema 2 do doze de 99.


Saudades amigo Dexter, tudo bem?
Espero que sim e que esta o encontre na mais pura paz espiritual, e que
você esteja firme e forte.
Olha, por aqui
nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.
Com a Laisla tudo bem, pois ela ainda uma criança e não compreende as
surpresas da vida.
Sabe meu amigo...
É, vou responder essa carta agora
Mês de janeiro, ano 2000, xadrez 509-E
Saudades mil.
Alô, Alô amiga, como vai você, senti saudades resolvi te escrever
Espero que esta carta te encontre numa legal, com saúde harmonia e tal
Eu tô por aqui na fé na paz, na correria adiantos e mais
Quase dois anos que a gente não se vê, vira e mexe penso em você
Me lembro das festas que a gente fazia, saía às dez da noite e só voltava
no outro dia
Que barato só alegria, lembra? qualquer lugar a gente ía
Sempre fui considerado, você também, lembra da Simone e da Nenem?
Aquelas minas são problemas, zueira de montão, zueira a noite inteira
Natal de 97 passei na sua casa,
Muita treta vários amigos na parada
Sua irmã estava linda aquele dia, Adriana que gata ave-Maria, foi da
hora Natal cabuloso
Daria o que tenho pra viver tudo de novo
Mas aí esqueci perdi tudo, dei tiro no escuro amiga perdi tudo
Até aquela mina que dizia me amar,me esqueceu depois que eu vim pra

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É foda a vida é assim mesmo, nem tudo é do jeito do modo que


queremos
Infelizmente retrocedemos não dá mais, bola pra frente é assim que se
faz
Jorge cantou que Charles ia voltar, e como Charles eu também pode
acreditar
Com este dia não paro de sonhar, quero ver o morro inteiro feliz e pá

(Refrão):

Velha camarada, obrigado pela carta


Que saudade preta rara
"Quero viver"
De cabeça erguida logo vou sair pra vida
Qualquer dia...
"Eu vou te ver"
Eu recebi a carta que você mandou
Fiquei desnorteado, aí abalou
Não acredito que mataram seu marido, o Amarildo era meu amigo
Sempre chegou comigo em várias fitas, difícil de entender as surpresas
da vida
Ontem tudo bem com a família inteira
Hoje um a menos parece brincadeira
Meu aliado respeitado no crime
A inveja é uma merda conheço esse filme
Peço a Deus que vocês estejam bem
E que meu truta esteja em paz Aleluia Amém
Aí amiga hoje eu não tô legal
Afetaram meu lado espiritual
Vi um maluquinho me olhando diferente
Com a maldade nos olhos entende?
A cabreragem tomou conta de mim
Eu tô esperto ligeiro enfim
Quero saber o porquê daquele olhar
Eu tô na dela aí, vou enquadrar
O que ele quiser comigo eu quero em dobro, to no veneno, to disposto
Aqui nessa porra é assim
O demônio te atenta planeja seu fim
Que Deus me proteja espero que não seja nada
Mas se for topo qualquer parada
Aí amiga este lugar é o inferno
Aí Dexter, caiu mais um no pátio interno
Viver na paz é o quero, mas não aquela paz fria de um cemitério
Lâmpada para meus pés é a palavra de Deus
Senhor me proteja este filho seu
Jorge cantou que Charles ia voltar
E como Charles eu também pode acreditar
Com este dia não paro de sonhar
Serei um vencedor pode apostar
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(Refrão):

Velha camarada, obrigado pela carta


Que saudade preta rara
"Quero viver"
De cabeça erguida logo vou sair pra vida
Qualquer dia...
"Eu vou te ver"

Aí amiga tô com saudade da quebrada


Na próxima carta me fale da rapaziada
Como vai o Romildo e o Marquinhos
O Robson Ediberto e o Zinho
Aí pede pra eles me escreverem
Diga que liguei pra não esquecerem
Que o cuidado é necessário
Hoje em dia o mundão tá cheio de otários
Não pensam duas pra puxar o cão
Aí já era sobre mais um irmão
Sair é arriscado demais
A pedra tá em alta derrubou a paz
Nóias nas esquinas provocam medo
No nosso tempo não era desse jeito
Aí amiga filme triste de ver
Violência marca registrada o que fazer
No escadão se escuta vários tiros
E logo em seguida a mãe que chora por seu filho
Roberto que Deus o tenha mano
Quem me contou a fita foi o Luciano
Ele também tá por aqui
Me disse que na Vila agora tá assim
Quem sabe quando eu sair
Tudo já esteja bem melhor por aí
Quem sabe os irmãos um dia compreendam
Que o crime, as drogas não passam de doenças
É só cadeia, velório, destruição
Tristezas em família só decepção
É necessário corrigir a postura
Amor, justiça é a cura
Bem acho que já falei demais
Na próxima te escrevo mais
Amiga minha, lembranças a todos
Fiquem na fé orando por todos
Vê se não demora pra me responder
Tô com saudades de você

(Refrão):
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Velha camarada, obrigado pela carta


Que saudade preta rara
"Quero viver"
De cabeça erguida logo vou sair pra vida
Qualquer dia...
"Eu vou te ver"6

2. Um código lingüístico especial: o socioleto

Compor uma letra de rap atualmente significa expressar a contemporaneidade


do tempo histórico, da qual elementos como a agitação, ansiedade, concorrência e
muitos outros que foram adquiridos a partir do capitalismo, distanciam o aspecto
romântico da música. As letras são compostas de acordo com o modo de vida das
pessoas que apreciam o rap e que moram em lugares muito distantes do centro das
cidades. São palavras codificadas que obedecem a um padrão local de fala e
comunicação. Em cada região periférica da cidade há um código comunicativo de
determinadas palavras cujo uso só é feito quando os indivíduos se conhecem. Os
dialetos funcionam como uma espécie de passe livre para circular na área onde vivem.
Confundidas como gíria, as palavras codificadas têm duração muito curta, pois a todo
instante estão inventando novos significados para substituí-las. Nelas, a necessidade
maior está no poder da denúncia e da identificação entre membros de grupos isolados
dentro da sociedade e que formam verdadeiros guetos. Nesse sentido, não é de se
estranhar que os letristas visem à criação de um código especial que pode ser entendido
como um verdadeiro dialeto, assim definido pelo lingüista Milton M. Azevedo:

A term designating a distinct variety of languagem, often one


constrating with that taken as the standard (with thechnically is also a
dialect). As used since the end of nineteenth century, the term “dialect”
tends to designate a geographically or regionally defined variety. When
social variables intervene, social dialect or sociolectis is used. The more
generic term language variety covers both kinds. In common parlance, the

6
Música e composição de Dexter, parceiro do artista X. Ambos passaram a fazer sucesso na mídia após a
venda de seus discos. São presidiários e formam o grupo de rap 509-E.
12

term “dialect” often has negative connotations, wich are totally absent from
its use in linguistics.7

Mas acreditamos que, na realidade, o código das letras dos rappers seria mais
convenientemente classificado como um autêntico socioleto que, ainda na concepção de
Azevedo, se define como “a language variety, or dialect, defined in terms of social
features, such as the sex, age, or social classe of the speaker” (os grifos são nossos)8.
Em outras palavras, como um socioleto, esse código, estribado numa linguagem
específica, independentemente dos valores que carrega, trai a classe social a que
pertence o letrista. Tanto ele como seus ouvintes servem-se, portanto, do mesmo
vocabulário, das mesmas expressões, como se pode ver na letra abaixo, um exemplar
mais acabado desse código fechado, só acessível, muitas vezes, aos iniciados:

Trilha Sonora do Gueto - Pião de Vida Loka

Se é vida loka, é né jão não é facil não, as vezes na Diogo se pá té na


Fundão, que tem tô enquadrado, com a mão pro alto, gambé inda vem
fala que eu sou forgado.
O meu boné já pede pra olha, aí neguinho a facção come que tá, aí
chefão a fita é um seguinte só tenho a dizer que 19 num é 20, e facção, é
coisa de escadinha eu sô periferia do capão só faço a minha.
Tô num rolê voltano pra minha casa, tava curtindo um baile lá no Asa,
no Asa Branca de Pinheiros algema o neguinho Estive é maloqueiro.
O preconceito já volta a impera, gambé olha pra mim pra ve se eu vo
gela, se tem passage, tem DVC quadrilha vida loka né neguinho cê vai
vê, na madrugada só eu e Deus nenhuma testemunha pra falar o que
aconteceu, a fé de Jó derruba até montanha, gambé na nóia olha pro
outro e se estranha, não sei dize mano qualé que é só sei que Deus é
mais eu tô vivo pela fé, aquela noite tava macabra, puta gambézinho que
ele não se conformava, e eu no rolê já tava saindo fora, e eu pra ataca saí
gingando até umas hora.
Sõ vida loka jão daquele jeito, neguinho de favela pros coxinha eu sô
suspeito, é vida é né na mô moral, invejoso perde a linha pé de breke
passa mal.é vida loka jão daquele jeito neguinho de favela pros coxinha
eu sô suspeito, sou vida loka jão na moral neguinho de favela que as
menina paga um pau.
10e 20 nego, na leste noturna, bola que bola o plano quem que furtuna,

7
Milton M. Azevedo. Portuguese: A Linguistic Introduction, Cambridge: Cambridge University Press,
2005, 298.
8
Milton M. Azevedo, Op. cit., p. 303.
13

puxo pra coroa aí uns pano da hora, Brait no pulso e seus malote de
dollar, um Ímpala na garage nego novinho, estilo vida loka pra ataca os
zé povinho, então bola com ele que eu quero vê que cor que ele é e o
vidro é degrad, cê deu mô sorte mô cara de dollar reune a família
abastece e caí, não vou me joga preciso fica, na leste eu nasci, a leste é
meu luga, i vou desliga uma barcona colou aí já vai enquadra.
Que carro bem loko hein, e seu cê pago, que nada chefão herença do
meu avô cê, faz sua cara que eu preciso i os mano da sul tá esperando
por mim, pr1 estive é new por aqui, aí neguinho pego mô boi pode i,
nessa hora a gente vê chefão se vale a pena ser um vida loka
o robozinho do sistema.
As mina da quebrada fala que eu pareço mal, é será que é isso que elas
paga um pau, só sei que eu me pergunto estão cê que o que? cê tem
conceito, muié e procede, você é vida loka e canta rap cê é foda, acho
que isso que as mina se empolga, será que não fosse tudo isso era assim,
saí invejoso dá uma arruda aí pra mim, aqui é vagabundo,vida loka até
umas hora se ocê num leva mal, eu tô saindo fora.
Liguei o golfão 00 gti, aí neguinho encosta aí, dicumento, rg, hibilitação
se num tive impuni, pro camburão, aqui eu falo cê esculta eu sô
otoridade uma mentira de farda vale
tipo 10 verdade, então neguinho vida loka cê num era todo pam, pagava
de guerreiro do rap do amanhã, da uma olhada na quadrada que tá
engatilhada e se eu pá na sua cabeça cê num vale mais nada, e você vai
se vida loka lá no céu que sua cara, junto com Dimans, Bob Marley,
Malcon X e Cheguevara, aí seu guarda dá licença agora eu posso me
espressar, quem sou eu, quem é você pra quere alguém julgar, aprendi
que o ser humano nunca sabe o amanhã, hoje tudo Hoppi Hari depois
bom dia Vietinan, cê se pensa que é Deus pra quere alguém julga eu que
sô um zé nínguem que cum nada que fica, mais não sabe os comandante
o que sabe o zé nínguem que quer queira quer não queira vamos todos
pro além, o além é um misterio e quem vai nos responde, eu sou tudo
não sou nada diga então quem é você, se dissernos que é Deus eu não
vou acredita, porque se você é Deus quem esta no seu luga.
Ei Karatê cê deixa eu i, já faz algum tempo que eu gosto de ti, falei pra
minha mãe, pra gente casa, agora mudei e não sou mais de ficar.
Cê gosta de mim ou do meu malote eu vo desliga eu tô achando que é
trote, lembra quando eu não era lembrado na quebrada andava de
havaianas e bermuda rasgada você olhava só xiiiii pros bunda lele, agora
alguém já se amarrou por Karatê9

Observando-se o vocabulário, as construções frasais, o repertório de imagens,


verifica-se, acima de tudo, em diversas ocorrências, as marcas da oralidade. Algumas
palavras são grafadas, simplificando-se a ortografia, como em “loka”, em que acontece,
o ditongo sendo reduzido para a vogal e a consoante “c” substituída graficamente pelo

9
As palavras em itálico representam exemplos do dialeto desenvolvido por jovens na periferia de São Paulo.
14

“k”. A redução sonora das palavras, para obedecer à oralidade é constante também em
“qualé” (por “qual é”), em “mó” (por “maior”), em “mina” (por “menina”) e, na forma
de alguns pronomes, como “cê” (por “você”) em alguns verbos, como “tô” e “sô” (por
“estou” e “sou”) e, sobretudo, nas formas infinitivas que são reduzidas, com a
supressão do “r” indicativo da desinência verbal, como em “dize”, desliga”, “olhá”,
“enquadra”, “pega”, “quere”, “acredita”, “i”. Há no texto a presença de onomatopéias
pra reforçar a oralidade, como em “pá”, imitando o ruído de um tiro.
A letra chama a atenção pelo uso da metonímia: “coxinha” por policial (há uma
crença na periferia de que os policiais gostam de se alimentar dessa espécie de iguaria);
“coroa” por velha (talvez pela relação com a tonsura dos padres, que remete aos velhos
carecas e, por extensão, também às mulheres de idade), “quadrada” por pistola (o
formato retangular representando o todo da arma), “coisa de escadinha” para se referir a
atos praticados por marginais (aqui o efeito metonímico é alcançado pela referência ao
famoso traficante Escadinha), “malote” como indicativo de riqueza (no caso, malote
tomado por carteira, geralmente serve para levar dinheiro ao banco). O uso constante da
metonímia serve para reforçar o princípio da construção do socioleto, pois os nomes são
representados por qualidades inerentes a eles, qualidades essas que apontam para as
idiossincrasias de um determinado grupo social.
Ainda é possível fazer levantamento de um glossário específico, que serve para
acentuar a natureza de um código só acessível a iniciados: “rolê (dar um rolê)” (dar uma
volta, passear), “maloqueiro” (pessoa sem educação, arruaceira, por referência
metonímica à habitação que, supostamente, serve de moradia a esse tipo de pessoa, a
“maloca”), “gambé”, referência injuriosa a policial (corruptela de “gamberria” (pessoa
que costuma bater nas pernas do outros), “nóia”, como o viciado em drogas,
“enquadrar”, como prender, “quebrada” por região da periferia, mas precisamente,
região abandonada, “procede”, por pessoa que tem comportamento adequado e assim
por diante.
Enfim, com esses poucos exemplos, pode-se perceber a tentativa de criação de
um código próprio que reflete um modo de ver e viver uma realidade marginal. O tom
oral da fala é, de certo modo, uma resistência à norma culta, letrada, das classes mais
favorecidas, ao lado das quais se encontram as forças da repressão, representadas tanto
pela polícia (vista sempre de um modo crítico, pejorativo), e os burgueses, responsáveis
pela ostentação de riqueza, presente nos bens da “coroa”: os “dollars” e o carro de
15

marca “Impala” na garagem. A resistência dos compositores está na montagem de uma


fala “suja”, contaminada pelos palavrões, pelas palavras grosseiras, pela apropriação,
muitas vezes proposital, daquilo que poderia ser considerado um autêntico erro
gramatical, em relação à norma culta (como em “otoridade”, por exemplo). A assunção
da oralidade, do coloquial, causa uma maior e mais adequada aproximação entre o
emissor e o destinatário – ou seja, faz que haja uma quase imediata interação entre
códigos comuns, evitando-se assim a opacidade da linguagem.

Apêndice

1. Letras do Rap

8º anjo

Acharam que eu estava derrotado


Quem achou estava errado
Eu voltei to aqui
Se liga só escuta aí
Ao contrário do que você queria
To firmão to na correira
Sou guerreiro e não pago pra vacilar
Sou vaso ruim de quebrar
Oitavo anjo do apocalipse
Tenebroso como um eclipse
É seu pesadelo tá de volta
No puro ódio cheio de revolta
Vou te apresentar o que você não conhece
Anote tudo vê se não esquece
Você verá que não deixei me envolver
Pra sobreviver por aqui tem que ser
Mesmo no inferno é bom saber com quem se anda
Senão embaça vira desanda
Vejo vários irmão tomando back
O barato é feio bem pior que o crack
Quiaca todo dia cabo branco na mão
Encontrar a morte é 1 2 ladrão
Mais um pilantra foi sentenciado
Sua pena: morrer esfaqueado
Aqui é foda não tem comédia
O clima é de tensão maldade inveja
A destruição mora nesse lugar
E mesmo assim não deixei me levar
Subi chegar na humildade e pá
Faça o contrário caro pode te custar
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Obrigado deus por me guiar


Só em ti tenho forças pra lutar
Descobri que alem de ser um anjo
Eu tenho cinco inimigos...
Irmão de atitude moram comigo
Manos de estilo
Zé carneiro doidera até os ossos
Patrão de renome vários sócios
Facínoras contaminados pelo ódio
Rejeição abandono é óbvio
Estar em cana é embaçado
Quem nunca esteve não ta ligado
Uns querem te ajudar outros de afundar
Jogue o dado em quem confiar
Quem é quem difícil saber
Só mesmo deus pra te proteger
Fulano entra aqui pede licença até o pro boi
Chega devagar se vacila já foi
Maluquinho primário é cruel
Sentirá o gosto amargo do fel
As grades te fazem chorar
A saudade na direta vem te visitar
É difícil ter a mente sã
Detenção pior que o vietnã
Um cristão me ligou pra me dar uma idéia
Disse pra mim que jesus ta a minha espera
Disse também pra eu mudar de vida
Ai mano não me escondo atrás da bíblia
Sou quem sou assim sigo em frente
Deus está comigo não preciso virar crente
Nada contra quem é na fé
Mas tem canalha que se esconde né
Muitas coisas aprendi
Várias fitas erradas na prisão eu vi
Injustiças aqui humilhação ali
Cadáveres sangrando perto de mim
Obrigado meu deus por me guiar
Só em ti tenho forças pra lutar
Descobri que além de ser um anjo
Eu tenho cinco inimigos...
Cadeia um cômodo do inferno
Seja no outono no inverno
Sem anistia todo dia é foda
Cadeia ai maluco tô fora
Continuar no crime não tô afim
Não quero mais essa vida pra mim
Num pássaro voando enxerguei minha verdade
Compreendi o valor da liberdade
Na paz sigo sempre mais
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Pena que esta idéia pra você tanto faz


Escuta lá ou não qual a diferença
Representei não tive recompensa
Se conselho fosse bom não se dava
Luz pra cego que piada
Ei mano de nos ouvidos
Não seja vocês mesmo seu próprio inimigo
Termino por aqui espero que me entenda
Pra que depois não se arrependa
É tudo no seu nome decide ai
Escolha seu caminho o exemplo ta aqui
Obrigado meu deus por me guiar
Só em ti tenho forças pra lutar
Descobri que alem de ser um anjo
Eu tenho cinco inimigos.

Capítulo 4 Versículo 3

(introdução)
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram
violência policial;
a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras;
nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros;
a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São
Paulo;
aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar!
Eu tô em cima, eu tô a fim, um dois pra atirar!
Eu sou bem pior do que você tá vendo
Preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno!
A primeira faz "bum!", a segunda faz "tá!"
Eu tenho uma missão e não vou parar!
Meu estilo é pesado e faz tremer o chão!
Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição!
Na queta ou na ascenção, minha atitude vai além!
E tem disposição pro mal e pro bem!
Talvez eu seja um sádico ou um anjo
Um mágico ou juiz, ou réu
Um bandido do céu!
Malandro ou otário, quase sanguinário!
Franco atirador se for necessário!
Revolucionário ou insano. Ou marginal!
Antigo e moderno, imortal!
Fronteira do céu com o inferno!
Astral imprevisível, como um ataque cardíaco do verso!
Violentemente pacífico!
Verídico!
Vim pra sabotar seu raciocínio!
Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo!
18

Pra mim ainda é pouco, dá cachorro louco!


Número um guia terrorista da periferia!
Uni-duni-tê, eu tenho pra você,
O Rap Venenoso é uma rajada de PT!
E a profecia se fez como previsto:
Um nove nove sete, depois de Cristo.
A fúria negra ressuscita outra vez:
RACIONAIS, Capítulo 4 Versículo 3.
Aleluia...(Hamm) Aleluia...
Racionais!!!
"No ar, filhas da puta! pá! pá! pá!
Faz frio em São Paulo, pra mim tá sempre bom!
Eu tô na rua de bombeta e moleton!
Din-din-don, RAP é o som, que emana do Opala marrom!
E aí...
Chama o Guilherme, chama o Vanio, chama o Dinho,
E o Di, Marquinho chama o Éder vamo aí,
Se os outros manos vêm, pela ordem tudo bem!
Melhor, quem é quem, no bilhar no dominó. "
Rolou dois Mano,
um acenou pra mim,
de "jaco" de cetim
de tenis calça jeans.
"Hey Brown, sai fora, nem vai,
nem "cola"!
Não vale a pena "dar idéia" nesse tipo aí.
Ontem à noite eu vi, na beira do asfalto
tragando a morte, soprando a vida pro alto!
Aos caras só o pobre é rioso, no fundo do poço,
E mais flagrante no bolso!"
Veja bem, ninguém é mais que ninguém, veja bem,
veja bem e eles são nossos irmão também.
"Mas de cocaína e crack, whisky e conhaque,
os manos morrem rapidinho se é lugar de destaque!
Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma
nem dá...
Nunca te dei pôrra nenhuma!
Você fuma o que vem, entope o nariz!
Bebe tudo que vê!
Faça o diabo feliz!
Você vai terminar tipo o outro mano lá, que era preto tipo A
Ninguém "entrava numa", mó estilo!
De calça "Calvin Klein", tênis "Puma"
É... o jeito humilde de ser, no trampo e no rollé.
Curtia um funk, jogava uma bola,
buscava a preta dele no portão da escola.
Um exemplo pra nós, maior moral, "mó" IBOPE!
Mas começo "cola" com os branquinhos do shopping,
"Ai já era"...
19

Ih! Mano, outra vida, outra pique!


E só mina de elite, balada e vários drinks!
Puta de Botique, toda aquela pôrra!
Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra!
Hã... faz uns nove ano...
Tem uns 15 dias atrás eu vi o mano...
Cê tem que ver, pedindo cigarro pro "tiozinho" no ponto
Dente todo "zoado", bolso sem nem um conto!
O cara cheira mal, a sinha senti medo!
Muito louco de sei lá o quê, logo cedo!
Agora não oferece mais perigo:
viciado, doente e fudido, inofensivo!
Um dia um PM negro veio me "embaçar",
e disse pra eu me por no meu lugar.
Eu vejo mano nessas condições não dá...
Será assim que eu deveria estar?
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor!
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor,
te oferece dinheiro, conversa com calma.
Contamina seu caráter, rouba sua alma.
Depois te joga na merda sozinho!
É... transforma um um "preto tipo A" num "neguinho"!
Minha palavra alivia sua dor, ilumina minha alma
Louvado seja o meu Senhor!
Que não deixa o mano aqui desandar,
Ah! e nem "sentar o dedo" em nenhum pilantra!
Mas que nenhum filha da puta ignore minha lei:
RACIONAIS Capítulo 4 Versículo 3 !
Aleluia...Aleluia...
Racionais!!!
"No ar filhas da puta! pá!, pá!, pá!
Quatro minutos se passaram e ninguém viu,
O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil!
Talvez um mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo,
que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos!
O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol
ou o que vende chocolate de farol em farol!
Talvez o cara que defende o pobre no tribunal,
ou que procura vida nova na condicional.
Alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela,
ouvindo o rádio velho, no fundo de uma cela!
Ou da família real e negro como eu sou,
um príncipe guerreiro que defende o gol!"
E eu não mudo, mas eu eu não me iludo:
os mano "cu de burro", eu tenho eu sei de tudo!
Em troca de dinheiro e um cargo bom
tem mano que rebola e usa até batom!
Vários patrícios falam merda, pra todo mundo rir!
haha! pra ver branquinho aplaudir!
20

É... na sua área tem fulano até pior!


Cada um, cada um,
você se sente só!
Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério,
ou explode sua cara por um toca fita velho!
click! plau! plau! plau! e acabou!
Sem dó e sem dor
Foda-se sua cor!
Limpa o sangue com a camisa e manda se f...!
Você sabe porque, pra onde vai, pra quem vai
De bar em bar, de esquina em esquina,
pegar 50 conto, trocar por cocaína,
E fim! o filme acabou pra você!
A bala não é de festim! Aqui não tem dublê!
Para os manos da baixada, fluminense à Ceilândia:
eu sei. as ruas não são como a Disneylândia!
De Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro,
ser um "preto tipo A" custa caro!
É foda!
F... é assistir a propaganda e ver,
não dá pra ter aquilo pra você,
playboy "forgado" de brinco o trouxa,
Roubado dentro do carro na Avenida Rebouças!
Correntinha das moças,
Madame de bolsa, dinheiro
Não tive pai, não sou herdeiro.
Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal, por menos de um real,
minha chance era pouca,
Mas se eu fosse aquele moleque de touca,
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca,
"de quebrada".
Sem roupa, você e sua mina,
Um, dois! Nem me viu! Já sumi na neblina!
Mas não...
Permaneço vivo, prossigo a mística!
27 ano, contrariando a estatística!
Seu comercial de TV não me engana,
HÃ! Eu não preciso de status nem fama.
Seu carro e sua grana já não me seduz,
E nem a sua "PUTA" de olhos azuis!
Eu sou apenas um rapaz latino americano
apoiado por mais de 50 mil mano!
Efeito colateral que seu sistema fez,
Racionais, capítulo 4 versículo 3!

Glossário do RAP

Apê – apartamento
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Back – errando, caindo socialmente


Bico – fofoqueiro, intrometido
Bombeta – boné
Baguio – coisas, situação, drogas
Barcona – viatura da polícia
Balada – movimento, festa, saída
Buchicho – fofoca, assunto
Boi – Banheiro
Cara – amigo, conhecido
Camisa da vida loka – roupas largas
Coxinha – polícia
Colo – encostou
Chapado – drogado, bêbado
Capô – sem identidade
Cata – pegar
Comer – transar
Correria – buscando oportunidades
Cabulosa – intensa, profunda.
Cabreragem – vem da expressão “to cabrero”, ou seja estou
preocupado.
Doidera – vida agitada
Desanda – se perder nas drogas, fracassa
Embaça – confuso
Enquadrado – passar por revista policial
Esquema – plano
Facção – formação de quadrilha
Fundão – periferia
Firmeza – legal, bom
Função – acordo, negócios
Fulano – alguém, em geral estranho
Fita – roubo, encontro
Gambé – polícia
Gingando –andar malicioso, codificado entre os adeptos do rap
Goma – casa
Guela - denúncia
Impala – nome do carro opala
Jaco – jaqueta
Lokos – drogados
Ligado – esperto, atento
Mina – menina, garota
Mano – irmão
Muquiada – escondida
Migué - desentendido, esperteza
Maluco - malandro
Novim – novinho
Nóia – drogado
Opalão – marca do carro opala (muito apreciado entre os rappers)
Pedra – crack (droga)
Preto tipo A – negro decente, formado, culto, consciente
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Pé de urso – chama a atenção


Pé de breck – que atrapalha a vida dos outros
Paga um pau – fica com inveja
Passa um pano – esquecer
Quadrada – pistola
Qualéqueé – qual que é
Quebrada – lugar
Quiaca – briga, luta
Rolê – fato, sair
Responsa – responsabilidade
Serviço – roubo, denúncia
Se liga – preste atenção
Tá pela ordem – está tudo bem, tudo normal
Truta – amigo
Tabela – acerto
Talarico – que paquera a mulher de outro
Vivão – esperto
Vacilo – marcar bobeira, não prestar atenção
Vida loka – malícia, malandragem, vida bandida sem ser do crime
Venenoso – drogado, valente, agressivo
Vapor – fumando maconha
Zica – confusão, encrenca
Zé povim – pessoa insignificante

Informativo do Centro Cultural Canhema – Casa do Hip Hop, nº 3, maio de 2000.


CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 3ª. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p.24.
AZEVEDO, Milton M. Portuguese: A Linguistic Introduction, Cambridge: Cambridge
University Press, 2005.
ARISTÓTELES. Poética.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro, trad. Beas., rio de Janeiro: Nova Fronteira, 19 Letras
de rap e depoimentos de artistas do hip hop. São Paulo, 2002. Disponível em:
<www.realhiphop.com.br>. Acesso em 23 out. 2005.
CIDADÃO, Negro. Jornal da Comunidade Negra de Rio Claro. No 1, junho 2003.
Educação, Informação, Orientação Social, Notícias.
ANDRADE, Elaine Nunes de. Rap e Educação, Rap é Educação. São Paulo: Selo Negro,
2000.

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