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Resumo:
O artigo trata das composições do rap, tentando mostrar que elas manifestam, em suas
letras, o cotidiano da população marginalizada da periferia. Analisando os aspectos
formais das canções, o vocabulário, as imagens, os autores constatam a presença de um
dialeto específico que se contrapõe à norma culta, como forma de protesto, de defesa
contra a opressão.
Palavras-chave: rap, canção, dialeto, socioleto, verso, poesia.
*
Álvaro Cardoso Gomes é professor do programa de pós-graduação multidisciplinar em “Administração,
Comunicação, Educação” da Universidade São Marcos e romancista; Márcia Aparecida Leão é mestra no
mesmo programa e professora de Sociologia e História da Educação.
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mesmo jeito. Será que todos têm que falar do mesmo jeito, e muitas
vezes errado?.
A gíria existe porque surgiu como código da área onde as
pessoas pudessem tratar de assuntos que só a elas interessavam, nunca
foi sinônimo de erro verbal. A gente se preocupa tanto com a
autenticidade das ruas que acabamos esquecendo da nossa própria
autenticidade1.
As músicas são consideradas como armas pelos seguidores do movimento rap,
porque veiculam expressões fortes, sem limites verbais, que estimulam os sentimentos
de revolta, de vazio, de perda. O ritmo, a mensagem dos pobres da periferia de que tudo
está perdido e que não há mais nada a fazer, e até mesmo o próprio cenário de miséria e
violência, fazem nascer uma espécie de convocação de guerra contra aquelas pessoas
que conquistaram algum bem ou trabalho e principalmente contra os responsáveis pela
repressão, no caso, a polícia. Seguidores da cultura Hip Hop dizem que esse tipo de rap
é muito ruim para as crianças e os mais jovens, pois os afasta de oportunidades de
estudos e até mesmo de formar uma identidade social positiva. O trabalho de
institucionalização do Hip Hop tem o propósito de mostrar o contrário para os
adolescentes, isto é, que é um movimento preocupado com a formação e informação dos
garotos, no intuito de prepará-los, em sua auto-estima, para o mercado de trabalho. O
compositor do rap, via de regra, escreve uma letra contundente que serve para alertar
sobre a realidade sofrida pelo grupo social em que os afrodescendentes estão inseridos,
assim como faz reflexões sobre o que irão enfrentar numa sociedade racista e desigual.
Seus intérpretes são chamados de repentistas eletrônicos, porque despejam frases
ininterruptas com um fundo sonoro formado por distorções do scratch (manipulação de
um disco em vai-e-vem, enquanto ele gira no prato), de baterias eletrônicas ou samplers.
A aparente agressividade do rap cativa muitos adeptos, seja da periferia ou da
classe média2. São jovens que se identificam com o estilo de letras repletas de palavras
de baixo calão, compostas por adolescentes com caras de maus. Jovens que não sabem
1
São informações de Dj Thaíde, um dos precursores do rap no Brasil e também artista do movimento, atuante
nas festas e artes de rua, no centro de São Paulo. Esta declaração foi dada em entrevista ao jornal interno da
Casa do Hip Hop, em Diadema. Informativo do Centro Cultural Canhema – Casa do Hip Hop, nº 3, maio de
2000 – 4.000 exemplares distribuídos pela comunidade. Ritmo & Poesia, caderno Ponto de Vista.
2
Os jovens de classe média não vivem o mesmo drama da população de periferia, porém como adolescentes
que são, buscam na agressividade e violência dos guetos o aumento de adrenalina e aventuras.
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Ao final deste capítulo vem uma lista de termos usuais no movimento Hip Hop. Dentre as palavras mais
comuns usadas pelos adeptos do movimento, a palavra treta significa conflito, confusão, bagunça, briga.
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4
Vale lembrar o seu significado no movimento Hip Hop. Castells, op. cit., p. 24.
5
Idem, p. 508.
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nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17
Me lembro das festas que a gente fazia, saía às dez da noite e só voltava no
outro dia
Esse recurso é levado a extremo em “Pião da vida loka”, talvez para quebrar a
monotonia dos versos muito extensos. Para temperar o prosaico com o poético, por
meio do retorno a um determinado tipo de sonoridade, o autor utiliza-se da engenhosa
repetição de um mesmo recurso: o uso da rima interna, a intervalos mais ou menos
regulares: “enquadrado/forgado”, “facção/capão”, “escadinha/minha”,
“Pinheiros/maloqueiro”, “fora/hora”, “moral/pau”, “joga (por jogar)/fica (por ficar)/luga
(por lugar)”, “hora/fora” e assim por diante.
Além da utilização das rimas soantes, os compositores usam as rimas toantes,
caracterizadas pela concordância sonora somente da vogal tônica da última palavra dos
versos:
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nada anda bem, cada dia que passa as coisas ficam mais difíceis.
Com a Laisla tudo bem, pois ela ainda uma criança e não compreende as
surpresas da vida.
Sabe meu amigo...
Saudades Mil
(Refrão):
(Refrão):
(Refrão):
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Música e composição de Dexter, parceiro do artista X. Ambos passaram a fazer sucesso na mídia após a
venda de seus discos. São presidiários e formam o grupo de rap 509-E.
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term “dialect” often has negative connotations, wich are totally absent from
its use in linguistics.7
Mas acreditamos que, na realidade, o código das letras dos rappers seria mais
convenientemente classificado como um autêntico socioleto que, ainda na concepção de
Azevedo, se define como “a language variety, or dialect, defined in terms of social
features, such as the sex, age, or social classe of the speaker” (os grifos são nossos)8.
Em outras palavras, como um socioleto, esse código, estribado numa linguagem
específica, independentemente dos valores que carrega, trai a classe social a que
pertence o letrista. Tanto ele como seus ouvintes servem-se, portanto, do mesmo
vocabulário, das mesmas expressões, como se pode ver na letra abaixo, um exemplar
mais acabado desse código fechado, só acessível, muitas vezes, aos iniciados:
7
Milton M. Azevedo. Portuguese: A Linguistic Introduction, Cambridge: Cambridge University Press,
2005, 298.
8
Milton M. Azevedo, Op. cit., p. 303.
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puxo pra coroa aí uns pano da hora, Brait no pulso e seus malote de
dollar, um Ímpala na garage nego novinho, estilo vida loka pra ataca os
zé povinho, então bola com ele que eu quero vê que cor que ele é e o
vidro é degrad, cê deu mô sorte mô cara de dollar reune a família
abastece e caí, não vou me joga preciso fica, na leste eu nasci, a leste é
meu luga, i vou desliga uma barcona colou aí já vai enquadra.
Que carro bem loko hein, e seu cê pago, que nada chefão herença do
meu avô cê, faz sua cara que eu preciso i os mano da sul tá esperando
por mim, pr1 estive é new por aqui, aí neguinho pego mô boi pode i,
nessa hora a gente vê chefão se vale a pena ser um vida loka
o robozinho do sistema.
As mina da quebrada fala que eu pareço mal, é será que é isso que elas
paga um pau, só sei que eu me pergunto estão cê que o que? cê tem
conceito, muié e procede, você é vida loka e canta rap cê é foda, acho
que isso que as mina se empolga, será que não fosse tudo isso era assim,
saí invejoso dá uma arruda aí pra mim, aqui é vagabundo,vida loka até
umas hora se ocê num leva mal, eu tô saindo fora.
Liguei o golfão 00 gti, aí neguinho encosta aí, dicumento, rg, hibilitação
se num tive impuni, pro camburão, aqui eu falo cê esculta eu sô
otoridade uma mentira de farda vale
tipo 10 verdade, então neguinho vida loka cê num era todo pam, pagava
de guerreiro do rap do amanhã, da uma olhada na quadrada que tá
engatilhada e se eu pá na sua cabeça cê num vale mais nada, e você vai
se vida loka lá no céu que sua cara, junto com Dimans, Bob Marley,
Malcon X e Cheguevara, aí seu guarda dá licença agora eu posso me
espressar, quem sou eu, quem é você pra quere alguém julgar, aprendi
que o ser humano nunca sabe o amanhã, hoje tudo Hoppi Hari depois
bom dia Vietinan, cê se pensa que é Deus pra quere alguém julga eu que
sô um zé nínguem que cum nada que fica, mais não sabe os comandante
o que sabe o zé nínguem que quer queira quer não queira vamos todos
pro além, o além é um misterio e quem vai nos responde, eu sou tudo
não sou nada diga então quem é você, se dissernos que é Deus eu não
vou acredita, porque se você é Deus quem esta no seu luga.
Ei Karatê cê deixa eu i, já faz algum tempo que eu gosto de ti, falei pra
minha mãe, pra gente casa, agora mudei e não sou mais de ficar.
Cê gosta de mim ou do meu malote eu vo desliga eu tô achando que é
trote, lembra quando eu não era lembrado na quebrada andava de
havaianas e bermuda rasgada você olhava só xiiiii pros bunda lele, agora
alguém já se amarrou por Karatê9
9
As palavras em itálico representam exemplos do dialeto desenvolvido por jovens na periferia de São Paulo.
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“k”. A redução sonora das palavras, para obedecer à oralidade é constante também em
“qualé” (por “qual é”), em “mó” (por “maior”), em “mina” (por “menina”) e, na forma
de alguns pronomes, como “cê” (por “você”) em alguns verbos, como “tô” e “sô” (por
“estou” e “sou”) e, sobretudo, nas formas infinitivas que são reduzidas, com a
supressão do “r” indicativo da desinência verbal, como em “dize”, desliga”, “olhá”,
“enquadra”, “pega”, “quere”, “acredita”, “i”. Há no texto a presença de onomatopéias
pra reforçar a oralidade, como em “pá”, imitando o ruído de um tiro.
A letra chama a atenção pelo uso da metonímia: “coxinha” por policial (há uma
crença na periferia de que os policiais gostam de se alimentar dessa espécie de iguaria);
“coroa” por velha (talvez pela relação com a tonsura dos padres, que remete aos velhos
carecas e, por extensão, também às mulheres de idade), “quadrada” por pistola (o
formato retangular representando o todo da arma), “coisa de escadinha” para se referir a
atos praticados por marginais (aqui o efeito metonímico é alcançado pela referência ao
famoso traficante Escadinha), “malote” como indicativo de riqueza (no caso, malote
tomado por carteira, geralmente serve para levar dinheiro ao banco). O uso constante da
metonímia serve para reforçar o princípio da construção do socioleto, pois os nomes são
representados por qualidades inerentes a eles, qualidades essas que apontam para as
idiossincrasias de um determinado grupo social.
Ainda é possível fazer levantamento de um glossário específico, que serve para
acentuar a natureza de um código só acessível a iniciados: “rolê (dar um rolê)” (dar uma
volta, passear), “maloqueiro” (pessoa sem educação, arruaceira, por referência
metonímica à habitação que, supostamente, serve de moradia a esse tipo de pessoa, a
“maloca”), “gambé”, referência injuriosa a policial (corruptela de “gamberria” (pessoa
que costuma bater nas pernas do outros), “nóia”, como o viciado em drogas,
“enquadrar”, como prender, “quebrada” por região da periferia, mas precisamente,
região abandonada, “procede”, por pessoa que tem comportamento adequado e assim
por diante.
Enfim, com esses poucos exemplos, pode-se perceber a tentativa de criação de
um código próprio que reflete um modo de ver e viver uma realidade marginal. O tom
oral da fala é, de certo modo, uma resistência à norma culta, letrada, das classes mais
favorecidas, ao lado das quais se encontram as forças da repressão, representadas tanto
pela polícia (vista sempre de um modo crítico, pejorativo), e os burgueses, responsáveis
pela ostentação de riqueza, presente nos bens da “coroa”: os “dollars” e o carro de
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Apêndice
1. Letras do Rap
8º anjo
Capítulo 4 Versículo 3
(introdução)
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram
violência policial;
a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras;
nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros;
a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São
Paulo;
aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar!
Eu tô em cima, eu tô a fim, um dois pra atirar!
Eu sou bem pior do que você tá vendo
Preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno!
A primeira faz "bum!", a segunda faz "tá!"
Eu tenho uma missão e não vou parar!
Meu estilo é pesado e faz tremer o chão!
Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição!
Na queta ou na ascenção, minha atitude vai além!
E tem disposição pro mal e pro bem!
Talvez eu seja um sádico ou um anjo
Um mágico ou juiz, ou réu
Um bandido do céu!
Malandro ou otário, quase sanguinário!
Franco atirador se for necessário!
Revolucionário ou insano. Ou marginal!
Antigo e moderno, imortal!
Fronteira do céu com o inferno!
Astral imprevisível, como um ataque cardíaco do verso!
Violentemente pacífico!
Verídico!
Vim pra sabotar seu raciocínio!
Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo!
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Glossário do RAP
Apê – apartamento
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