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Musical e
Performance
Musical
Edward T. Cone
Tradução e editoração de Orlando Fraga
FORMA MUSICAL
PERFORMANCE MUSICAL
Edward T. Cone
Tradução e editoração: Orlando Fraga
Forma Musical
Performance Musical
EDWARD T. CONE
Professor de Música
Universidade de Princeton
1968
Conteúdo
PREFÁCIO
I O Quadro e a Moldura:
A Natureza da Forma Musical, 01
II Dentro da Pintura:
Problemas de Performance, 18
Poslúdio:
Sobre Dois Modos de Percepção Estética, 64
Apêndice, 72
Nota do Editor
Edward T. Cone
Princeton, N. J.
Junho, 1967
1 Princeton, N J.: Princeton University Press, 1950. Ver especialmente pp. 11-15.
Forma Musical
e
Performance Musical
1
I
O QUADRO
E A MOLDURA
A Natureza
da Forma Musical
________________
Tem sido dito que algumas das mais importantes descobertas científicas
resultaram do processo de se levar a sério perguntas que são aparentemente
triviais. Assim, uma resposta ampla à pergunta “Por que anoite é escura?”, leva à
teoria da expansão do universo. As perguntas que eu gostaria de propor, embora
suficientemente triviais, não levarão, eu temo, a tais conclusões prodigiosas. Eu
simplesmente espero que, se levadas à sério, elas possam lançar alguma luz a
questões que não são manifestamente triviais: como chegar a uma performance
musical válida e efetiva?
A primeira e última palavra sobre este assunto foi formulada pelo Rei de
Copas. Embora ele estive dizendo ao Coelho Branco como ler especificamente
versos, o seu conselho serve claramente a todos os artistas da performance:
“Comece pelo começo, ... e prossiga até chegar ao final: então pare.” E isto me
leva ao meu primeiro conjunto de perguntas tolas: Onde é o início de uma peça
musical? Onde é o final?
Agora, a partir do momento que levamos estas questões à sério, nos
damos conta que elas podem ser aplicadas apenas a um certo tipo de música, isto
é, aquela com um início e um final – ou, uma vez que, o mundo sendo o que é,
tudo possui um começo e um final, e na música estas são partes essenciais. Para
uma grande quantidade de músicas, começo e fim (vamos chamá-los de extremos)
não apenas não são essenciais, mas na melhor das hipóteses, constituem inter-
2
1
Erik Satie (1866-1925). (N.T.)
3
Quando eu uso o termo arte para distinguir música para ser ouvida, não
pretendo qualquer comparação insidiosa; estou apenas tentando definir a música
da qual vamos tratar daqui em diante. Além disso, se vamos definir uma peça como
uma obra de arte, isto é, como uma real composição, não apenas devemos ter
extremos, mas estes devem ser gerados pela própria música – e não somente por
exigências funcionais externas. Finalmente, para que uma composição – isto é,
uma peça composta com fundamento artístico – assim se comporte, os seus
extremos devem ser respeitados na performance.
Uma performance musical deve, então, ser um evento dramático, até
mesmo teatral, apresentando uma ação com começo, meio e fim – daí uma ação
com uma certa completude per se. Esta qualidade dramática deve estar presente
tanto em performances inteiramente privadas, quanto em leituras musicais
solitárias e silenciosas ou quando alguém toca para si mesmo, ou ainda diante de
uma plateia, que pode variar de uma pessoa até um auditório lotado. Uma peça
teatral ainda é uma peça, apesar de tudo, indiferente de ser lida para nós mesmos,
representada privadamente ou levada ao palco.
Neste ponto, votamos à nossa questão trivial original, que podemos agora
esclarecer e expandir um pouco mais: se a performance de uma composição deve
respeitar os seus extremos, como exatamente, estes devem ser definidos? Uma
composição necessariamente começa com a primeira nota e termina com a última?
Os períodos de tempo antes e depois da execução são constituintes da obra?
Nós podemos salientar o problema comparando música com quase todos
os tipos de literatura ou drama. Os extremos formais de uma peça teatral são
marcados pelo subir e cair das cortinas; mas a ação exposta sempre é apenas um
episódio temporal no fluxo histórico ou místico. As causas da tragédia de Hamlet
acorreram muito antes do começo da primeira cena, e suas consequências
continuam indefinidamente após o último ato. Indiferente da abrangência que uma
novela possa ter, sempre haverá espaço para questionamentos como “O que
aconteceu ante? O que se passou depois?” De fato, em toda a nossa tradição
ocidental, eu consigo somente pensar em dois trabalhos literários que não
pressupõem um tempo prévio (o Genesis e O Evangelho Segundo São João), e
nenhum (nem mesmo O Livro das Revelações ou o Paraíso) que chegue a um real
fim.
Voltando-nos para a pintura, percebemos que as bordas do quadro
demarcam aquela porção do assunto escolhido para a representação, porém toda
cena reproduzida ultrapassa a delimitação de suas bordas. Mesmo nas abstrações,
pode-se normalmente, imaginar os padrões indo além dos limites do quadro. A
margem é essencial, caso queiramos que este quadro seja visto como uma obra de
4
arte, como podemos perceber ao olharmos para pinturas sem bordas, como é o
caso do teto pintado por Pozzo 2 na igreja de San Ignazio, em Roma. Este teto é
digno de uma grande arte, mas não é uma obra de arte, nem foi pensada como tal:
ele é parte de outra obra de arte, isto é, a própria igreja.
A moldura de um quadro é a potencialização da borda. Ela funciona em
duas direções. Ela marca os limites não apenas do quadro, mas também o mundo
real ao redor deste quadro – da parede onde a pintura repousa. Da mesma forma,
as convenções teatrais – o apagar das luzes, a cortina – atuam como molduras; e o
layout tipográfico de um livro, seja uma estória ou um poema, implica em
molduras. Em todo caso, a sua função possui dois sentidos. Primeiro, ele separa o
assunto escolhido para observação do seu próprio entorno imaginário – que eu
chamo de ambiente interno; segundo, ele protege o trabalho da invasão do seu
ambiente externo, isto é, do tempo e espaço reais no qual o observador vive. A
moldura anuncia: aqui o mundo real termina e a obra de arte começa; aqui a obra
de arte termina e o mundo real inicia de novo.
Agora podemos reconhecer uma coisa importante pela qual a música
difere das outras artes: ela não tem ambiente interno. Uma composição não pode
ser pensada como um segmento delimitado de uma longa linha. Ela não possui
antecedentes nem consequentes. O que quer que a música seja – e eu não
intenciono levantar esta questão – esta “coisa” só começa quando a música inicia,
e termina quando a música encerra. Talvez seja esta a razão da finidade musical
ser tão completa, como também a razão de muitas pessoas acharem as óperas mais
satisfatórias emocionalmente do que o teatro.
Pode-se argumentar que música – pelo menos algumas delas – possui um
certo tipo de ambiente interno na forma do seu sistema abstrato – seja este tonal,
atonal ou dodecafônico – que, em certo sentido, existia antes e continua após a
composição concreta. Mas, isto é como dizer simplesmente que a gramática de
uma linguagem, ou na verdade a linguagem em si mesma, preexiste e sobrevive a
enunciados nesta linguagem. Se nós aceitamos esta analogia, percebemos que
estamos confundindo duas dimensões temporais diferentes. Uma gramática não
existe antes, ou durante, ou mesmo após qualquer afirmação; ela é essencialmente,
atemporal. Igual a sistemas de matemática ou lógica, ela é, por assim dizer, eterna.
Da mesma forma, um sistema musical pode ser considerado como subsistindo
independentemente da sua incorporação, mas não como existindo no seu continuo
temporal. (Por outro lado, a música que não tem forma intrínseca, no sentido de
2
Andrea Pozzo (1642 - 1709) foi um irmão leigo jesuíta e prolífico artista italiano, atuando
como decorador, arquiteto, cenógrafo, pintor, professor e teórico, e sendo uma das figuras
principais da arte barroca católica (N.T.)
5
não ter razão aparente para início e fim quando eles ocorrem, pode soar como um
segmento arbitrariamente emoldurado de um continuum sonoro que se estende
indefinidamente. Este é, na verdade, o efeito de muitas músicas serias “totalmente
organizadas”, 3 e, igualmente, de muitas músicas compostas pelo sistema de aca-
so.) 4
Para a maior parte das músicas, ambiente interno é um conceito sem
significado. Mas, apesar disto, ou talvez por causa disto, a música necessita muito
de uma moldura para separá-la do seu ambiente externo – para demarcar o tempo
musical do tempo ordinário antes e depois dela. Sem esta moldura, o fluxo caótico
e indistinto do tempo ordinário irá invadir cada extremo da composição. Ele nos
prevenirá no começo, da tomada de consciência do compasso em branco sugerido
pela música, e ao final, de apreciarmos a total descarga da sua energia. Neste
ponto, você com certeza deve ter adivinhado qual é a moldura. É o silêncio.
Se nós somos membros de uma audiência, o silêncio deveria nos ser
apresentado como um período de tempo vazio, no qual nada acontece. Ele deve
separar nossos movimentos individuais e coletivos daquele movimento que, por
enquanto, irá nos controlar a todos: a música. Esta é a razão pela qual o cantor
espera pelo retardatário se sentar e pela tosse parar. Esta é a razão pela qual o
regente repousa a sua batuta. Esta é razão pela qual não queremos que ele marque
um compasso em branco (embora, se ele reger um grupo amador, seja obrigado a
isto): isto significaria algo acontecendo momentos antes da música começar, e
nada deveria acontecer neste momento.
Da mesma forma, ao final, nós precisamos do silêncio para amparar nosso
retorno ao tempo ordinário. Esta é a razão pela qual o ouvinte sensível espera antes
de aplaudir – e o porquê do interprete superlativo apreciar mais o silêncio que o
aplauso. Realmente, por este ponto de vista, ou a maior parte das audiências – e
especialmente aquelas de ópera – são peculiarmente insensíveis, ou a maior parte
dos interpretes são alguma coisa menos que superlativos. Com certeza, muitas
vezes ouvimos interpretações excitantes que criam tanta energia a ponto de
arrebatar a plateia que imediatamente responderá com aplausos; mas, eu fico
imaginando se essas performances não são, por esta mesma razão, um tanto
meretrícias. Leo Stein 5 sugere que a música que necessita de movimento corporal
por parte do ouvinte para sua completa apreciação, como muitas danças populares,
3
Serialismo integral. (N. T.)
4
Chance music. (N. T.)
5
Leo Stein (1872 – 1947) foi um colecionador e crítico de arte americano, irmão de
Gertrude Stein. (N.T.)
6
6
Leo Stein, The ABC of Aesthetics. New York: Horace Liveright, 1927, pp. 197-98.
7
Karl Wilhelm Julius Hugo Riemann (1849-1919). Musicólogo, historiador e pedagogo
alemão. (N. T.)
7
número mínimo de pausas essenciais para uma leitura fácil; mas com frequência
eles terminam com indicações extra de tempo – uma fermata ou até mesmo um
compasso em branco. Mas, onde isto não é o caso, a implicação de compassos em
branco é também inaceitável. A partitura da 5ª Sinfonia, de Beethoven, começa
com uma pausa de colcheia, mas certamente este é um mecanismo para prevenir
erros de leitura dos três contratempos que se segue. Não se pode ouvir isso como
um tempo forte silencioso. No final do movimento, contudo, o padrão de 4-
compassos foi tão firmemente estabelecido, que somos forçados a adicionar um
compasso em branco depois do último que foi grafado – um compasso tão
essencial quanto aqueles que são escritos.
O princípio que diz que toda composição começa no primeiro ataque se
aplica igualmente àquelas que começam, como na 5ª Sinfonia, em uma anacruse
indiscutível, ou àquelas que começam, como a 7ª Sinfonia, com um tempo forte
inquestionável. Em cada caso, há uma demarcação entre o ataque e o silêncio
precedente. Entretanto, a 9ª Sinfonia exemplifica um tipo de começo que foi, até
onde sei, inédito em Beethoven, porém tornou-se progressivamente popular
durante o século 19: o quase imperceptível crescimento do som a partir do silêncio
– em termos rítmicos, o surgimento de uma enorme anacruse. Em tais casos nós
sentimos, em retrospectiva, que a música pode estar vindo sendo executada por
algum tempo, abaixo do seu limiar de audição, antes de se tornar audível suficiente
para percebermos. Se é assim, nós devemos delegar retroativamente ao silêncio
preliminar, uma cota na própria composição. Da mesma forma, obras como Das
Lied von der Erd 8, com a sua indicação final gänzlich ersterbend, 9 deveria no
último momento decrescer imperceptivelmente no tempo seguinte, de modo que
qualquer decisão em relação à quando a música é realmente encerrada, deve ser
arbitrária. Debussy, em Brouillards, avança um paço nesta direção. Aqui a
partitura, e desta forma o que ouvimos, encerra-se antes da resolução final na
tônica. Se quisermos realmente ouvir isto, teremos de fazê-lo em nossa
imaginação.
Outra forma de limiar indistinto é encontrada onde podemos chamar de
inícios eruptivos: aquele que surge tão violentamente a ponto de sugerir que não
deveria haver silêncio anterior, nenhuma moldura a separar a música do mundo
exterior. A tempestade em Otello, por exemplo, deveria, de forma ideal, começar
enquanto a audiência ainda está aplaudindo a entrada do maestro: a própria música
deveria forçar a atenção. Aqui, também, Beethoven pode ter sido um visionário,
pois ouvi uma versão bem convincente do Op. 111 que começou exatamente desta
maneira.
8
Gustav Mahler (N. T.)
9 Morrendo completamente (N. T.)
8
10
Giovanni Battista Piranesi (1720 – 1778) foi um famoso gravurista e arquiteto italiano.
(N. T.)
11
Trompe-l'oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão
ótica que faz com que formas de duas dimensões aparentem possuir três dimensões. O
termo vem de uma expressão em língua francesa que significa "enganar o olho" e é usada
principalmente em pintura ou arquitetura. (N. T.)
9
– ou pelo personagem de uma peça que fala diretamente para a audiência. Esta
tentativa de criar uma dimensionalidade extra ao envolver o mundo real do
espectador é, com certeza, especialmente efetiva no teatro – observe Le Nègres,
de Genet, 12 isto sem falar daqueles eventos conhecidos como “happenings”.
Equivalente na música podem ser achados em performances do Réquiem de
Berlioz que, ao se colocar o coro de metais ao redor da audiência (uma violação
da intenção original do compositor), inclui os próprios ouvintes na performance;
ou em composições eletrônicas (i. e. a versão original do Poème électrinique, de
Varèse) que são desenhadas para ser projetada para todos os lados da sala. Com
relação à música absoluta, a analogia não é exata. Em tais casos, o envolvimento
físico da plateia não representa necessariamente a soma de uma nova dimensão;
no máximo ela permite uma abordagem mais próxima em relação à sensação
normal da performance, para quem quase sempre está no centro da música.
Audição ativa é, acima de tudo, um tipo de performance vicária, realizada, como
Session colocou, por “reprodução interna” da música 13 – o que é, eu considero,
também o que Hindemith queria dizer por “construção mental”. 14 Para ser
incluído dentro do espaço físico devotado à reprodução sonora pode ser muito
excitante para o ouvinte, mas isto ocorre mais pela intensificação das suas reações
normais do que pelo estimulo à novidade. Assim, do ponto de vista programático,
pode ser verdade que o ouvinte envolto pela Tuba Mirum, de Berlioz, realmente
sinta uma identificação especial com o despertar da macabro do Último
Julgamento; se este é o caso, então a obra de arte como um todo se desloca para
uma nova dimensão – uma dimensão dramática. Do ponto de vista puramente
musical o ouvinte está somente experenciando uma sensação de participação, a
qual ele poderia (teoricamente, pelo menos) apreciar independentemente do
posicionamento dos metais – seja tocando na orquestra ou cantando no coro! (A
mesma distinção pode, eu penso, ser aplicada à música eletrônica. Para o ouvinte
treinado que pode, na imaginação, “executar” um trabalho eletrônico de forma
completamente abstrata, os seus aspectos espaciais assumirão seu lugar como
parte da “orquestração”. Para a maioria dos ouvintes, por outro lado, o seu efeito
adicionará uma obscura dimensão programática, da qual a sua efetividade
dependerá deste aspecto)
Até aqui estamos considerando as várias relações possíveis entre a
composição musical por um lado, e o seu entorno, por outro. Agora precisamos
começar a olhar dentro da própria composição, e aqui encontramos um tipo
diferente de moldura. Da mesma forma que o silêncio pode ser forçado a se tornar
12
Os Negros é uma peça do dramaturgo francês Jean Genet (1910-1986). Publicado em
1958, foi apresentado pela primeira vez em uma produção dirigida por Roger Blin no
Théâtre de Lutèce em Paris, que estreou em 28 de outubro de 1959. (N. T.)
13
Roger Session, The Musical Experience of Composer, Performer, Listener. Princeton, N.
J.: Princeton University Press, 1950, p. 97.
14
Paul Hindemith, A Composer’s World. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1952, p. 17.
10
15
John Marin (1870–1953) (N. T.)
16
Rahmenerzählun: literalmente, uma moldura narrativa é uma técnica narrativa que se
refere ao processo de inserir, dentro de uma história inicial, uma outra história.
Geralmente se tem como objetivo apresentar uma história introdutória como maneira de
enfatizar uma segunda narrativa ou um conjunto de histórias curtas. (N. T.)
17
Framing codas.
18
Framing introduction.
11
19
Literalmente: recuar para melhor saltar. (N. T.)
12
20
Structural downbeat.
13
21
Grosvenor W. Cooper e Leonard B. Meyer. The Rhythmic Structure of Music. Chicago:
University of Chicago Press, 1960. Este livro desenvolve um método previamente
apresentado por Meyer em Emotion and Meaning in Music. Chicago: University of
Chicago Press, 1956.
14
22
Heinrich Schenker. Der freie Satz, ver. Ed., Vienna: Universal Edition, 1956, Anhang, p.
119, ex. 157.
16
A cadência final, embora feminina, desta forma recebe mais peso do que
a meia-cadência. O período inteiro, pode ser entendido como uma anacruse
antecedente seguida de um tempo forte consequente: . (Para modelos
17
Neste ponto, vamos relembrar nosso problema básico, que era como
atingir uma performance válida e efetiva. Aqui, encontramos pelo menos uma
resposta: ao desvendar e clarear a vida rítmica da composição. Se eu estiver correto
ao localizar a forma musical na estrutura rítmica, esta é a resposta fundamental.
23
Expanded initial downbeat.
24
Cadencial downbeat.
18
II
DENTRO DO QUADRO
Problemas de Performance
_______________________
25
Op. cit., p. 86.
19
nós poderíamos também dizer que olhar para um quadro ou uma estátua por todos
os lados ou ainda andar através de um prédio, é uma performance de um quadro
ou de uma estátua ou de um prédio. Na verdade, a contemplação de uma obra de
arte espacial quase sempre envolve não apenas uma, mas várias performances –
ou pelo menos, várias performances parciais. Olhamos de um lado para o outro,
de cima para baixo, diagonalmente, em espiral, observando lentamente e
desvendando o conteúdo para nossa própria satisfação para então avançar para
outras conexões. Teria de ser uma obra simples, na verdade, cujas relações se
tornassem claras em um simples olhar – tão simples, de fato, a ponto de
dificilmente se configurar como obra de arte.
Esta observação silenciosa da obra espacial, então, é uma espécie de
multi-performance – e não é diferente da leitura silenciosa de um poema ou de
uma peça musical. Aqui, também, podemos escolher nossos paços, acelerar ou
desacelerar à vontade, olhar adiante ou para trás, pausar, repetir – de novo, a multi-
performance, ou a multiplicidade de performances parciais. Porém, quando lemos
um poema em voz alta, ou tocamos uma peça musical, devemos escolher uma
única e completa performance. Quanto mais complexo um poema ou uma
composição, mais relações a sua performance devem estar aptas a explicar – e
menor a probabilidade de uma única performance poder jamais conseguir tal
façanha. A composição avança inexoravelmente no tempo; não podemos voltar
para explica-la; devemos, portanto, decidir o que é importante e tornar isto mais
claro possível, mesmo em detrimento de outros aspectos da obra. Apesar de tudo,
haverá outras performances! Toda interpretação válida, portanto, representa, não
uma aproximação de algum ideal, mas uma escolha: quais relações implícitas nesta
peça serão enfatizadas, tornadas explicitas?
Um exemplo conhecido pode ajudar a esclarecer este ponto de vista. No
início do seu Prelúdio em Dó Menor, Chopin indicou que os dois primeiros
compassos devem ser fraseados cada um deles como uma unidade individual, mas
os dois compassos seguintes devem ser agrupados.
20
Até aqui, tudo em ordem; mas suponha que, olhando um pouco adiante,
nós achássemos outra relação – uma igualmente importante, mas incompatível na
mesma performance vista acima? Harmonicamente, pode-se ouvir o c.3 como
resolvendo ao redor de Fá, e o c.4, ao redor de Sol. Neste caso, toda a progressão
dos cc.1-5 pode ser percebida como uma expansão do I-IV-V-I do primeiro
compasso. (Incidentalmente, a chegada da tônica no c.5, piano, após o fortíssimo
que antecede, é um belo exemplo de um tempo forte estrutural 26 anunciado por
uma correlação dinâmica negativa.)
26
Structural downbeat.
21
27
Reginald Clifford Kell (1906-1981) foi um clarinetista inglês. (N.T.)
22
original de filmagem, esta seria considerada não como uma nova performance,
mas um filme inteiramente novo. Da mesma forma, por este ponto de vista,
qualquer alteração na “performance” de uma obra eletrônica consistiria em uma
mudança composicional ̶ performance e composição sendo consideradas, neste
caso, como uma só. Tal argumento pode, na verdade, clarificar a natureza da
música eletrônica, mas não prova a possibilidade de uma interpretação ideal.
Igualmente pode conduzir à concluso de que composições eletrônicas são sempre
imperfeitas.
De qualquer maneira, se decidimos que uma performance eletrônica é,
tanto quanto uma performance convencional, uma realização possível de uma
entidade musical independente, ou que seja a única incorporação da sua própria
música – em ambos os casos somo encarados com o fato de que música puramente
eletrônica é conhecida pela sua única versão. As múltiplas performances que,
como vimos, estão disponíveis em quase todas as outras formas de arte, sejam
temporais ou espaciais, pode muito bem ser a fonte de suas constantes auto-
renovação. Se assim é, então toda composição puramente eletrônica pode ser tão
intolerável quando repetida, tanto quanto qualquer filme, indiferente do quão
“artístico”, possa ser. (Quantas repetições do maior dos filmes – mesmo um dos
seus favoritos – alguém pode tolerar?) O controle absolutamente temporal possível
e necessário nestas mídias fixa permanentemente nossa taxa de varredura dos
objetos artísticos; e é isto, eu penso, mais do que qualquer outra coisa, que
realmente suaviza nossa resposta a elas. Tanto para o connoisseur quando para o
diletante, elas parecem empalidecer relativamente rápido; e o que falha em prender
a atenção do indivíduo tende, à despeito da continua renovação de novas
audiências, sair de circulação de uma vez. Tal previsão, certamente, de forma
alguma é dirigida como uma reflexão sobre a viabilidade dos meios eletrônicos;
ela meramente lança dúvidas sobre a eventual sobrevivência de qualquer obra
individual.
Para ser exato, os compositores eletrônicos são motivados por um desejo
de serem livres do mundo dos performers (ou, no mínimo, nem todos são assim
motivados). Os materiais da música tornaram-se tão complicados que em muitos
casos a realização eletrônica é agora a única possibilidade, ou a única que pode
reproduzir as imagens do compositor com razoável fidelidade. Afinal de contas,
quanto mais complexa se torna uma dimensão musical, menor liberdade de
interpretação é permitido. Uma linha de ária de Handel propositadamente simples
permite uma maior variedade de improvisação do que as linhas ornamentadas de
Bach, e com a crescente complexidade da harmonia do século XIX, a
improvisação tende a desaparecer por completo. No mesmo sentido, o rubato em
uma composição melódica de textura simples, revela-se impraticável em um
trabalho altamente polifônico. Hoje, dimensões como timbre e dinâmica estão
tentando atingir a complexidade e precisão como estruturas usufruídas por outras
dimensões, as quais, por seu turno, caminham para níveis mais avançados de
organização. Mesmo a mais cuidadosa e habilidosa composição orquestral do
passado é ainda reconhecível quando transcrita, por exemplo, para piano, da
23
mesma forma que a pintura tradicional preserva muito dos seus valores quando
reproduzidas sem cor. Mas alguns compositores estão agora caminhando em
direção a obras fundamentadas em cor tonal 28 em tal medida que seus trabalhos
serão muito pouco suscetíveis à transcrição quanto, por exemplo, a arte “op” 29 é
para a reprodução em preto-e-branco. Uma variação de timbre ou dinâmica pode
constituir uma “nota errada” comparável ao erro de altura de nota. Quando
percebemos que os mesmos compositores estão sempre investigando o uso da
escala microtonal ou algum outro sistema não convencional e de relações
temporais matematicamente intrincadas, é fácil entender por que a música assim
estruturada exigiria, não “interpretação”, mas uma extrema acuidade em todos
detalhes – uma impossibilidade, considerando-se a falibilidade da performance
humana.
Felizmente, para aqueles de nós que gostamos de tocar e cantar, algumas
das músicas do passado inda estão vivas; e à despeito dos proponentes de formas
musicais aleatórias e improvisatórias, e outras que tendem a diminuir o papel do
compositor e do interprete, existe uma grande quantidade de música não-eletrônica
sendo escrita hoje para as quais padrões antiquados de boa performance ainda se
aplicam. E embora a ideia de performance possa ser uma quimera, alguns
intérpretes são, apesar de tudo, melhores do que outros. Alguns são superlativos,
outros inaceitáveis. Apesar da impossibilidade de atingirmos a perfeição (e na
verdade, se estou certo, perfeição nesta área é um conceito sem significado), ainda
temos o dever de fazer o melhor possível.
Vamos retornar, então, ao critério previamente apresentado: aquele em
que uma performance válida depende prioritariamente da percepção e
comunicação do rítmico orgânico de uma composição. Isto sugere dizer que,
devemos primeiro descobrir o formato rítmico de uma peça – o que é que significa
a sua forma – e então tentar torna-la o mais claro possível ao nosso ouvinte. Eu já
tentei demonstrar como certos princípios rítmicos gerais sublinham unidades
formais comuns – a frase, o período, a forma canção em três partes; e eu também
sugeri que alguns destes princípios, operando em níveis mais altos dentro de
seções formais mais completas, podem ser invocados para explicar uma
composição inteira como um impulso rítmico global. Contudo, tais formas globais
podem se tornar claras na performance somente através de outro princípio: aquele
que diz que o todo é mais importante que qualquer uma de suas partes. Qualquer
conflito de interesse deve ser resolvido ao suprimir a reivindicação formal da parte
em favor daqueles do todo.
O Prelúdio em Lá Maior, de Chopin, oferece um pequeno, mas instrutivo
exemplo. (Existem, para ser exato, algumas evidências para que este Prelúdio não
deva ser considerado como uma composição completa em si mesma, mas apenas
como mais um entre os 24 Prelúdios que compõem o Opus 28. Em assim sendo, a
28
Tone-color.
29
Optical art (N. T.)
24
sua performance em contexto pode bem se diferenciar daquela que emerge da sua
suposta independência. Dito isto, vamos prosseguir).
falha em dar suporte aos outros aspectos da forma musical, pois não adiciona ao
progresso da peça em seu caminho para sua meta. Esta é a razão pela qual o metro,
como sugeri, deve dar lugar a um princípio rítmico mais orgânico.
Nós devemos olhar mais atentamente, então, aos outros elementos
musicais e tentar desvendar a forma rítmica que eles sugerem. O crescendo nos
cc. 11-12, somado ao clímax melódico e a complexidade harmônica neste ponto,
pode nos levar a realizar este par de compassos, ou talvez o próximo par, forte;
porém, devemos resistir a isto. Estes compassos são harmonicamente os mais
ativos de toda a peça; transformar um deles em meta rítmica usando o padrão de
tempo forte 30 quebraria a progressão V–I–VI–II–I. Pelo contrário, vamos seguir
a sugestão que o compositor nos oferece através do paralelismo dos cc.1-2 e 9-10,
e dividir a peça em duas frases similares. Agora, como no caso do tema de Mozart,
podemos dar a cada frase o seu tempo forte inicial e cadencial, respectivamente, e
assim relacionarmos as duas frases como antecedente e consequente. O registro do
baixo também suporta este cenário. (O início de cada frase – como de cada
hipermetro – tem uma anacruse, da mesma forma que cada cadência é feminina;
entretanto, omiti estes detalhes a fim de simplificar o diagrama.)
Mas o que funcionou tão bem no caso do Mozart aparentemente falha aqui. As
frases são muito similares, considerando que cada uma procede duas vezes da
dominante para a tônica. E embora a primeira frase não termine em uma cadência
perfeita, não obstante ela marca de forma inconteste o seu fechamento mais cedo
na peça. Assim, ao considerarmos a independência de cada frase, falhamos em
relação a unificação do todo.
Com o intuito de descobrir qual deveria ser a forma global, analisemos o
que controla a linha melódica e harmônica. Este exemplo (no qual cada compasso
grafado representa um hipercompassos de 6/4) mostra como ouço a peça:
30
Downbeat status.
26
Mas isto indica que o global pode ser ouvido como uma aumentação da segunda
metade – ou ainda, a segunda parte como uma diminuição dentro do todo! Agora,
esta relação pode ser salientada enfatizando aqueles hipercompassos que mais
claramente expressam a linha, nominalmente os cc. 1, 4, 5 e 8. Dentro de cada
frase, então, nós ainda temos nosso modelo . Mas no próximo
nível, se desejamos fazer a aumentação tão clara quanto possível, devemos
preservar o mesmo padrão para o todo. Isto significará depreciar tanto a cadência
do antecedente quanto o início do consequente. Para a composição inteira, então,
temos:
(Pode ser pura coincidência que, de acordo com a análise acima exposta, as duas
metades do Prelúdio acabem sendo retrógrados transpostos uma da outra. Porém,
esta relação só vem confirmar o quadro rítmico final!).
Note mais uma vez que as posições dos compassos fortes não são
necessariamente determinadas pelas marcas de dinâmica. Aqui, como quase
sempre, considerações lineares e harmônicas tomam precedência. A chegada de
um compasso forte nestes casos deve ser proclamada por um ajuste temporal
cuidadoso ao contrário de uma simples acentuação. Uma complicação adicional é
agora causada pela ocorrência de unidades (como o hipercompasso 4) que são
fortes em seu contexto local, mas pertencem a um grupo que se torna fraco em um
nível mais alto. Este é, naturalmente, o resultado da subordinação das demandas
da frase individual em relação à forma global. Na verdade, de tal forma é o efeito
unificador do enfraquecimento da cadência do antecedente e do tempo forte inicial
do consequente, que de fato não estamos mais tocando a peça como duas frases
balanceadas, mas como uma única e longa frase.
Naturalmente, em diferentes contextos, outras modificações dos mem-
bros individuais fornecerão meios apropriados para ligar grupos de frases 31 em
unidades mais sucintas. Em períodos de oito compassos, por exemplo, se a quebra
causada pelos dois compassos fortes consecutivos cc.4 e 5 parece excessiva,
muitas vezes teremos a impressão de que uma das seguintes leituras poderá ser
sugerida pela estrutura de frase:
31
Phrase-groups.
27
(Para o primeiro, ver Beethoven, Sonata para Piano Op. 13, Adagio, cc.1-8; para
o segundo, a Sonata para Piano Op. 90, Rondo, cc. 1-8). A frase de oito compassos
– como é chamado às vezes o modelo 2+2+4 a-a-b, para distingui-la do modelo
de período bipartite – emparelha, em uma escala maior, uma forma que já vimos
na primeira frase do tema de Mozart. Isto sugere normalmente, uma leitura
correspondente em dois níveis (Ver Beethoven, Sonata para Piano Op. 2, No. 3,
Allegro de abertura, cc.1-8).
O problema que mostra sua cara feia no meio do Prelúdio de Chopin foi
o de um fechamento prematuro: a criação de uma impressão de finitude muito cedo
na peça, normalmente através de uma cadência perfeita na tonalidade da tônica.
Neste caso a cadência não foi perfeita, apesar de autêntica; e o perigo de
encerramento era real o suficiente para nos impelir a uma atitude que a tornaria
óbvia. No exemplo de Mozart, por outro lado, encontramos a cadência perfeita
tanto no final do primeiro período quanto no final do tema integral. Aqui, contudo,
ambas as cadências eram fortemente femininas – diferentes daquelas do Chopin,
que eram femininas apenas em detalhe (uma vez que o baixo entra no primeiro
tempo de um hipercompasso). Além disso, a última cadência do Mozart deixa uma
importante linha melódica (subindo ao sexto grau) sem resolução. Se olhamos
dentro das variações que seguem, encontramos várias maneiras de exploração e
desenvolvimento de ambas características; mas somente na coda é que a linha
desce à tônica com uma cadência masculina (Note que os reais compassos desta
coda estão em desacordo com aqueles grafados. Uma versão escrita mais acurada
provavelmente combinaria o último compasso completo da variação do Allegro
com a primeira metade do compasso seguinte como um único compasso em 3/2.
A continuação em 4/4 traria, então, a coda para o seu próprio modelo métrico; ver
o exemplo abaixo)
28
em uma obra na qual ele tenha pouca familiaridade. Uma boa pista para tal
orientação poderia estar na relativa força da cadência – mais leve no retorno ao
início, quando a sensação de continuidade deveria ser mais forte do que a sensação
de chegada, e mais pesada em direção ao final, à medida que a meta se torna cada
vez mais importante. Mesmo em movimentos que parecem permanecer incorrigi-
velmente femininos, algumas diferenciações ainda podem serem feitas. No caso
da Polonaise em Lá Maior, de Chopin, por exemplo, uma ênfase inteligente sobre
uma das sincopas 32 escondidas na cadência pode fazer o último acorde soar, se não
precisamente masculino, pelo menos parecido a uma tônica forte postergada
através de uma suspensão da dominante.
32
Cross-rhythm.
33
O nó górdio é uma lenda que envolve o rei da Frígia (Ásia Menor) e Alexandre, o Grande.
É comumente usada como metáfora de um problema insolúvel (desatar um nó impossível)
resolvido facilmente por ardil astuto ou por "pensar fora da caixa". (N.T.)
30
34
A música ambiente, ou em francês musique d'ameublement (às vezes traduzida mais
literalmente como música-mobília), é música de fundo tocada por artistas ao vivo. O
termo foi cunhado por Erik Satie em 1917. (N. T.)
35
Andy Warhol (1928-1987), nascido Andrew Warhola, foi um pintor e cineasta norte-
americano, bem como uma figura maior do movimento de pop art. (N. T.)
31
36
Ver Leonard Marcus, A Musical Mutilation, in The Juilliard Review, IV/3 (Outono,
1957), pp. 6-16, para uma discussão deste ponto com alguns exemplos bem escolhidos.
32
37
Tag.
34
todas afirmando cadencialmente a tônica local. Ajustes de peso entre essas frases
podem fornecer outros meios de distinguir as duas leituras.)
Do ponto de vista puramente prático, é claro, a decisão de incluir ou
suprimir uma repetição específica deve depender das exigências de cada ocasião.
O primeiro final do Moderato da Sonata em Si Bemol, de Schubert, contém
material que não aparece em nenhum outro lugar do movimento, e o contraste de
seu direcionamento harmônico justifica a surpreendente modulação que constitui
o segundo final. No entanto, quem seria ousado o suficiente para repetir esta
exposição em um recital público?
36
38
Headlong Hall é uma novela de Thomas Love Peacock (1785-1866), seu primeiro
trabalho de ficção de folego escrito em 1815 e publicado em 1816. (N. T.)
39
Frank Laurence Lucas (1894-1967) foi um estudioso clássico inglês, crítico literário,
poeta, romancista, dramaturgo, polemista político, membro do King's College,
Cambridge e oficial de inteligência do Bletchley Park durante a Segunda Guerra
Mundial. (N. T.)
40
L. F.Lucas, Tragedy, Serious Drama in Relation to Aristotle's Poetics, rev. ed., London:
The Hogarth Press, 1957. p. 106.
37
41
Ibid., p. 106.
42
Op. cit., pp. 77-78.
43
Ibid., p. 84.
38
III
A GALEIRA DE QUADROS
Forma e Estilo
44
Alfred North Whitehead, The Aims of Education. Nova York: The Macmillan Co., 1929,
p. 19.
39
45
Ver Nicolas Slonimsky, Music Since 1900, 3rd ed., New York: Coleman-Ross Co., Inc.,
1949, p. 340.
40
St. Anne, de Bach.) 46 Nessa música, eventos do mesmo tipo tendem a acontecer na
mesma razão de velocidade ou em mudanças de velocidade precisamente
ajustadas, sejam estes eventos ciclos de tonalidades, pequenas progressões
harmônicas ou sequências de motivos melódicos. No melhor desta música, a
textura contrapontística, real ou implícita, cria uma hierarquia de eventos, cada um
progredindo em seu próprio andamento, mas todos sob um controle métrico estrito
que se estende desde a frase inteira até a menor subdivisão do tempo.
46
Arthur Mendel, A Note on Proportional Relationship in Bach Tempi, in The Musical
Times, No. 1402 (Dez. 1959), pp. 683-85.
41
42
43
47
Desde que escrevi o acima, tive o prazer de ler uma análise parecida do ritmo de Bach
por Henri Pousseur. Veja o seu The Question of Order in New Music, in Perspectives
of New Music, V / 1 (Out-Inv. 1966), pp. 95-96.
45
48
"Os episódios, embora ainda em contraponto estrito, são um tanto 'mais leves' e mantêm-
se em relação às exposições que antecedem, dentro do padrão de relaxamento e tensão."
Do verbete sobre "Fugue" no Harvard University Press, 1945, p. 285.
49
Single statements.
52
50
Ver também minha discussão de uma passagem do Quarteto para Piano em Sol Menor,
de Mozart, K. 478, em uma comunicação para Perspectives of New Music, I/2 (Prim.
1963), pp. 206-10.
51
Artur Schnabel (1882-1951) foi um pianista clássico austro-americano, compositor e
pedagogo. Schnabel era conhecido por sua seriedade intelectual como músico, evitando
a bravura técnica pura. (N.T.)
52
Sir Donald Francis Tovey (1875-1940) foi um músico, professor e musicólogo do Reino
Unido. (N.T.)
53
53
Erwin Ratz leva a aceleração harmônica ainda mais longe, analisando o último compasso
como duas harmonias implícitas, cada uma de uma semínima. Ver o seu Einführung in
die musikalische Formenlehre, Viena: Österreichischer Bundesverlag, 1957, p. 23.
55
54
Tag.
56
Bodas de Fígaro, por exemplo). Acima de tudo, isto explica o efeito cumulativo
da forma, que é a fonte do que muitos chamam de seu poder dramático. Pois em
um movimento assim construído nada se perde; tudo o que ocorre terá sua
influência no resultado e terá que ser levado em consideração antes que a peça
termine.
Se entendemos a forma sonata dessa maneira, devemos perceber que não
é tanto o contraste entre os temas, mas sua reaproximação final, que mais
impressiona. Podemos, portanto, entender por que, durante o período Clássico,
uma uniformidade geral de tempo prevalece durante cada movimento, apesar da
diversidade dos eventos que governa. É verdade que um movimento de Mozart ou
Beethoven pode, ou pelo mesmo deveria, manter mais liberdade de andamento do
que um de Bach ou Handel; mas de forma ideal, deve prevalecer um único tempo.
Mesmo as exceções óbvias às vezes são mais aparentes do que reais. O
desenvolvimento e a coda do movimento de abertura da Sonata para Piano Op.
109, de Beethoven sugerem, por exemplo, que o Vivace e o Adagio são conectados
por uma proporção aritmeticamente exata que equaliza a semínima do primeiro
com a semicolcheia do segundo, ou um compasso do Adagio igual a seis do
Vivace. Embora Beethoven, de acordo com Schindler, sentisse que sua música
exigia mudanças frequentes de tempo, a frase contundente é a qualificação: "na
maior parte, perceptível apenas para o ouvido sensível". 55
Com Schubert, no entanto, encontramos movimentos, aparentemente
compostos de um único tempo, para o qual, no entanto, não podemos encontrar
nenhum tempo que realmente funcione. Estamos agora na fronteira do
Romantismo; e uma ampla variação de tempo, implícita ou explícita, é de fato
característica do estilo posterior. Chopin pode marcar inúmeras mudanças de
tempo na primeira Ballade, ou quase nenhuma na quarta; no entanto, buscar um
único tempo governante mostra-se tão infrutífero no último caso quanto no
anterior. Os compositores posteriores desistiram completamente desta pretensão –
veja as sinfonias de Tchaikovsky.
A tendência do século XIX é a cada vez mais enfatizar as forças de
contraste sobre as de unificação; e isso se aplica não apenas ao tempo, mas também
ao material temático, progressão harmônica, ritmo e caráter. (O poder unificador
da transformação temática é muitas vezes mais aparente do que real, pois o
artificio pode enfatizar relações superficiais entre seções que são basicamente
díspares.) O princípio do contraste prevalece, também, não apenas dentro de obras
individuais, mas no conjunto da obra, sobretudo entre diferentes compositores.
Isso é o que torna a música do período Romântico tão difícil de caracterizar com
clareza. Qualquer que seja o argumento geral que alguém possa fazer, sempre
haverá pelo menos um compositor principal que pode ser citado como exceção. (E
sempre há Berlioz) Ainda assim, existem alguns pontos óbvios de diferença entre
55
Anton Schindler: Biographie von Ludwig van Beethoven, 4ª ed., Münster: Aschendorff,
1871, parte 2, p. 243. A referência específica aqui é ao Largo da Sonata para Piano, op.
10, No. 3.
57
a música desse período e as precedentes, pontos estes que têm a ver com as
questões de ritmo e articulação que vem nos preocupado no Estilos Barroco e
Clássico.
A unidade métrica na música Romântica continua a ser o compasso, como
era no período Clássico; e os compassos são combinados em frases mais ou menos
regulares. Não obstante, houve uma mudança sutil, mas importante, na orientação.
No período Clássico, como vimos, o compasso era normalmente, a maior unidade
métrica. Sua estabilidade servia como um suporte constante – ou contraponto para
– a diversidade de construções de motivos e frases. Quando os compassos se
combinavam para formar frases, eram feitos não de uma forma métrica regular,
mas como componentes de grupos rítmicos livremente articulados, cuja estrutura
dependia de seu conteúdo musical específico. Na música Romântica, por outro
lado, podem-se encontrar longos trechos em que os compassos se combinam em
frases que são, elas mesmas metricamente concebidas – no que chamo de
hipercompassos. Isso é mais provável de ocorrer sempre que vários compassos em
sucessão exibem similaridade de construção motívica, harmônica e rítmica. Estes,
quase exigem ser contados como unidades. O desejo do compasso de se comportar
como um único tempo, já perceptível nos scherzos mais rápidos de Beethoven, é
aqui intensificado – e não apenas em tempos muito rápidos. Como resultado, os
agrupamentos são freqüentemente induzidos de forma irresistível a um padrão
regular de 4-compassos. É aqui, e não no estilo anterior, que podemos seguramente
falar da tirania da frase de 4-compassos!
Os melhores compositores, com certeza, desenvolveram maneiras
individuais de chegar a um acordo com a inevitável amaça da monotonia.
Mendelssohn ocultou o padrão prevalecente com elisões inteligentes, sobrepo-
sições harmônicas e expansões. Schumann, de todos os grandes compositores do
período, parecia vangloriar-se com o Viertaktigkeit. 56 Ele era capaz de mantê-lo
continuamente ao largo de seções inteiras com uso temático de fortes síncopes e
polirritmias 57 de tal forma a tornar-se uma marca registrada de seu estilo. O último
movimento de seu Concerto para Piano é uma demonstração brilhante de como
escrever em longos períodos de unidades de 4-compassos e ao mesmo tempo
tornar o resultado interessante pela criatividade rítmica.
O compositor que realmente absorveu, digeriu, assimilou e se alimentou
do conceito de 4-compassos foi Chopin. Em suas danças, e em movimentos
derivados de formas de dança, os hipercompassos são óbvios para o ouvido. Outras
composições, entretanto, exibem o mesmo padrão firmemente sob controle,
embora oculto com uma sutileza que atenua o hipermetro sem violá-lo. Para
Chopin, a norma se tornou quase instintiva a ponto de poder temperá-la com
polirritmia 58 e sincopas em grande escala, assim como Schumann fazia nos
detalhes. Um exemplo conhecido é a seção intermediária do Fantasy-Impromptu,
56
Literalmente “4 tempos” (N. T.)
57
Cross–rhythms.
58
Cross–rhythms.
58
59
Ex.: Bach, Concerto Cravo em Ré menor, cc.7-12; Mozart, Concerto para Piano em Lá
Maior, K.488, primeiro movimento, cc.86-98; Chopin, Improvisado em Fá Sustenido
Maior, cc.82-100.
59
60
Foi dito de Weberm que ele encarava essa notação com total seriedade. Ver Peter Stadlen,
Serialism Reconsidered, in The Score, 22 (Fev. 1958), p. 15.
61
61
Stream-of-consciousness.
63
eles não respondem à pergunta para futuro. Nenhum estilo artístico – nem mesmo
o do antigo Egito – jamais se mostrou permanente no passado, e é altamente
improvável que se torne assim agora ou no futuro. Para onde as mudanças
apontam, entretanto, não podemos saber, não mais do que podemos prever a
direção da história em geral. Teremos de deixar isso para os seus responsáveis: os
compositores. São eles que devem determinar o curso da evolução estilística – e
não pelo que dizem ou escrevem sobre a música, mas pela própria música compõe.
64
________________
62
Leo Stein, op. cit., p. 46.
65
63
Alfred North Whitehead, Science and the Modern World. Nova York: The Macmillan
Company, 1935, p. 287.
64
Ibid., pp. 287-88.
65
William Wordsworth (1770-1850) foi o maior poeta romântico inglês que, ao lado de
Samuel Taylor Coleridge, ajudou a lançar o romantismo na literatura inglesa com a
publicação conjunta, em 1798, das Lyrical Ballads. A citação é a seguinte: “A poesia é o
transbordamento espontâneo de sentimentos poderosos: tem sua origem na emoção
recolhida na tranquilidade. Fora do sofrimento humano; Na fé que olha através da morte,
Nos anos que trazem a mente filosófica.” (Poetry is the spontaneous overflow of powerful
feelings: it takes its origin from emotion recollected in tranquility.” Out of human
suffering; In the faith that looks through death, In years that bring the philosophic mind).
In Lyrical Ballads, 1798. Fonte: Wikipedia (N. T.)
66
Nesse sentido, concordo com Stein: ver o objeto como um objeto é perceber sua
unidade, isto é, compreender sua estrutura. Mas a obtenção desse tipo de
compreensão está longe de ser necessária para a apreensão da qualidade estética;
na verdade, como tentarei demonstrar, alguns tipos de arte parecem resistir a ela.
Gostaria de abordar este ponto por meio de uma breve discussão sobre o
que muitas vezes é chamado de "beleza natural"; mas, uma vez que não desejo
introduzir uma frase tão cheia de conotações literárias e que implica em tantas
questões irrespondíveis, 66 tentarei evita-las usando o termo um tanto incômodo "o
continuum estético natural " para significar o mundo natural, existente no espaço
e no tempo, conforme esteticamente percebido. Qualquer que seja a estrutura do
continuum, nenhuma mente humana é capaz de conceber, muito menos percebê-
lo – exceto, possivelmente, pelo raro dom do insight místico. O que a mente
comum experimenta nunca é o continuum (espaço-tempo) como um todo, mas o
que se poderia chamar de seção transversal espaço-temporal, unida por uma
relação ponto-a-ponto, momento-a-momento, área-a-área. Não há garantia de que
essas relações produzirão uma unidade perceptível; as chances são de que não.
Não podemos, portanto, ter certeza de que nosso corte transversal pode ser
compreendido como um objeto estético – mas ainda podemos desfrutar de sua
contiguidade. Chamemos essa seção transversal de superfície estética.
Pode-se pensar em muitos tipos de superfícies: uma noite estrelada, uma
paisagem montanhosa, um pássaro em voo, uma flor. Alguns deles – por exemplo,
a noite estrelada – resistiria às tentativas de força-los a algum tipo de estrutura
estética. Eles teimosamente permanecem como seções do aparentemente amorfo
continuum, permitindo apenas uma apreensão imediata. Outros – por exemplo, as
flores – são prontamente apreendidas como unidades formais e, portanto,
facilmente transformadas pelo observador em objetos estéticos. Muitos – por
exemplo, a paisagem, os pássaros – são casos limítrofes. Por um lado, seu apelo
imediato como superfície é geralmente inegável. Por outro lado, embora seja
necessário um esforço real para impor uma forma a uma paisagem, é isso que o
olhar artisticamente treinado muitas vezes tenta fazer. E para muitos observadores,
muito do fascínio de observar o pássaro vivo não advém apenas da apreensão
imediata de suas qualidades sensoriais, mas também a partir da compreensão de
sua anatomia especializada, de seu padrão aparentemente complexo de instintos e
de seu papel na ecologia total – em uma palavra, de sua estrutura. (Parte desse
interesse até adere à fotografias de criaturas selvagens, aos grupos de habitats em
museus, e às gravações de cantos de pássaros.)
A superfície natural aponta, então, para duas direções – em direção ao
continuum e em direção ao objeto – embora geralmente desaponte nossos esforços
de compreensão sinótica completa. Assim, eu penso, é uma das razões pelas quais
66
Para uma interessante discussão sobre alguns desses pontos, ver o ensaio de R. W.
Hepbhan Contemporary Aesthetics and the Neglect of Natural Beauty, in Bernard
Williams e Alan Montefiore, orgs., British Analytical Philosophy. Londres: Routledge
and Kegan Paul, 1966, pp. 285-310.
67
o amante dos pássaros, uma vez que consegue ver, digamos, um Sanhaçu-
escarlate, acha muito difícil parar de olhá-lo. Seria como sair de um teatro antes
da peça acabar – só que esta peça nunca acaba, porque não tem começo nem fim.
Uma peça de verdade nos satisfaz pela completude de sua forma. Um enredo da
natureza nos tantaliza por meio de suas sugestões constantes de uma forma nunca
totalmente realizada. É exatamente aqui que encontramos um contrapeso para o
argumento anterior em favor das prioridades da imediata apreensão. Pois seus
encantos são, em última análise, insuficientes por si mesmos; eles precisam do
complemento da compreensão estrutural. (Pela mesma razão o amante de pássaros
odeia parar de ouvir um longo e contínuo canto de pássaro. O rouxinol costuma
oferecer esse tipo de canto à noite, quando, por causa do silêncio que o cerca, é
provável que chame a atenção. Não é de admirar que, sob essas circunstâncias, o
aparente transbordamento infinito tenha dado origem aos mitos da "Paixão eterna!
Dor eterna!")
Há outra razão pela qual o amante dos pássaros extrai todos os momentos
possíveis de seu Sanhaçu, e isso nos leva ao contraste entre os produtos estéticos
naturais (para usar um termo neutro que pode denotar tanto superfícies quanto
objetos) e aqueles que são feitos pelo homem: uma vez perdidos, os primeiros são
provavelmente irrecuperáveis; os últimos são, em princípio, reproduzíveis. O
Sanhaçu pode nunca mais retornar, todas as flores estão murchando mesmo
quando olhamos para elas, o efeito de uma paisagem depende das condições
transitórias do tempo; mas pode-se presumivelmente retornar a um quadro ou peça
musical com a frequência que se desejar (pois "perduram"). Deste ponto de vista,
existe um caso extremo entre os objetos naturais e aqueles feitos pelo homem: a
rocha, o pedaço de madeira flutuante, criado pela natureza, mas transformado em
virtude de sua posição em uma lareira em – talvez não uma obra de arte, mas no
mínimo – algo que se aproxima a um objeto artístico.
"Artístico", no sentido que uso a palavra, refere-se a produtos estéticos
feitos pelo homem – mas não é equivalente a "estética, feito pelo homem". Na
minha opinião, uma pilha de entulhos (certamente feito pelo homem) poderia ter
valor estético, mas ainda assim não seria artístico. Seu valor, seja considerado
como uma produção acidental, ou como aduzido pelo olhar sensível de um
observador, é análogo ao de uma cena natural. A qualidade artística, eu receio, só
pode ser determinada invocando a falácia intencional (que não considero falácia –
a menos que seja a falácia de acreditar que existe uma falácia intencional). A
qualidade artística é a qualidade estética produzida intencionalmente, seja em
artigos normalmente classificados como úteis ou naquilo que normalmente se
chama obra de arte.
Não desejo forçar a distinção entre objetos artísticos e obras de arte,
embora acredite que possa ser útil. Se aceitarmos a definição de um objeto artístico
como qualquer objeto estético produzido intencionalmente, o termo pode ser então
aplicado a cadeiras, colchas e abajures, bem como aos membros da categoria mais
restrita de obras de arte bonna fide. Mas como a linha que delimita a classe menor
é muito difusa (quando, por exemplo, um edifício vira obra de arte?), eu prefiro
68
não tentar delimitá-la. Prefiro examinar uma distinção muito mais importante:
aquela entre superfícies artísticas, de um lado, e objetos artísticos (incluindo obras
de arte), do outro. Pois nem todos os produtos artísticos são objetos. Alguns, que
desafiam a tentativa de compreensão sinóptica e respondem apenas ao modo
imediato de percepção, devem ser classificadas da mesma forma, como superfícies
artísticas.
Devemos agora retornar a um argumento do primeiro ensaio e examiná-
lo de um ponto de vista ligeiramente diferente. O que eu chamei então de ambiente
interno de obras de arte representacionais podemos agora vê-los como recriações
imaginativas do continuum estético natural. Uma imagem, por exemplo, está
inserida em um continuum visual e espacial. No caso de uma obra literária, o
continuum é todo o mundo do pensamento e da ação. Acho que podemos
generalizar ao ponto de afirmar que todos os exemplos de arte representacional
podem ser percebidos como cross-sections de um continuum imaginário e,
portanto, como superfícies artísticas. Para se qualificar ademais como objetos
artísticos, eles devem também contemplar a compreensão sinótica – mas
certamente nem todos o fazem. Existem as chamadas "obras de arte" que exibem,
em detalhes, habilidades de execução, beleza sensual, profundidade de ideias – ou
qualquer norma crítica que você queira aludir; mas, carecendo de uma estrutura
formal controladora, eles não são, em última análise, objetos artísticos e, portanto,
não são obras de arte. Não estou tentando confrontar aqui a forma "fechada" com
a "aberta": a forma aberta, mesmo que seja difícil de apreender, ainda é forma.
Estou comparando aqueles produtos que são suficientemente construídos para
revelar uma estrutura unificada com aqueles que não são.
Muitos exemplos de decoração renascentista e barroca (como o teto
Pozzo já mencionado) falham em se qualificar como obras de arte. Isso não impede
que alguém obtenha um grande prazer na sua apreensão imediata como superfície
(mesmo quando, ao contrário do teto de Pozzo, eles não podem ser reconhecidos
como participantes de uma unidade formal maior).
Exemplos menos felizes são fornecidos por numerosos quadros
narrativos, especialmente do século XIX. Aqui, a ambientação é tanto temporal
quanto espacial, pois a representação é um corte transversal de uma narrativa, bem
como de uma cena visual. Nossas tentativas de impor uma estrutura narrativa –
para recriar o "antes" e o "depois" ao momento descrito – muitas vezes nos
impedem de desfrutar os valores puramente visuais que a imagem pode ter, por
mínimos que possam ser. (Foi apenas recentemente que nosso treinamento em
visualizar abstrações nos ensinou a nos concentrar no imediatismo dos detalhes
descritos em alguns dos quadros pré-Rafaelita 67 e a ignorar sua deficiência em
termos estrutura geral e seu frequente sentimentalismo de temas.)
67
A Irmandade Pré-Rafaelita, também chamada Fraternidade Pré-Rafaelita ou, simples-
mente, Pré-Rafaelitas, foi um grupo artístico fundado em Inglaterra em 1848 por Dante
Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Millais e dedicado principalmente
à pintura. Wikipédia. (N. T.)
69
68
Action school, movimento artístico associado ao action painting (pintira gestual),
originado na década de 1950. Fonte: Oxford English and Spanish Dictionary. (N. T.)
70
Schenker e Lorenz, 69 e provar que cada ato wagneriano pudesse ser analisado
como uma unidade estrutural que incorporasse organicamente cada pequeno
detalhe, isso não provaria que cada ato pudesse ser ouvido desta forma. A
compreensão sinótica é de fato parcialmente conceitual – mas não mais que
parcial. Ainda é um modo de percepção. Provavelmente existe um limite de tempo
para o ouvido humano absorver estruturalmente; quando esse limite é
ultrapassado, o ouvinte recua imediatamente para a apreensão. (Ou então ele se
volta com gratidão para as formas operísticas comedidas de Mozart.)
As composições que são, em última análise, as mais satisfatórias – as
únicas que, segundo meu conceito, merecem o nome de composição – são aquelas
que convidam e recompensam ambos os modos de percepção. Já disse que o modo
imediato geralmente precede o sinóptico na abordagem de qualquer obra de arte;
no caso da música, que só pode ser compreendida estruturalmente depois de ter
sido experenciada no tempo, isto é necessariamente assim. Isso não significa,
entretanto, que a apreensão imediata seja meramente uma fase da compreensão
pela qual se deve passar a fim de desfrutar a verdadeira felicidade de compreender
a estrutura. (Isso se aplica à matemática – não à música.) A audição ideal de uma
composição é aquela que desfruta dos dois modos simultaneamente, que valoriza
cada detalhe ainda mais por cumprir sua função em relação ao conjunto total da
obra. (É esse tipo de audição que torna possível o prazer renovado do suspense em
obras mais conhecidas que discuti no segundo ensaio.)
A maior parte das instruções práticas em performance é direcionada ao
encorajamento da apreensão imediata. Beleza de sonoridade, fraseado cuidadoso,
equilíbrio instrumental, articulação rítmica – esses são geralmente apresentados
como meios de projetar uma série de sons agradáveis ou passagens interessantes
para um público que é presumivelmente incapaz de compreensão sinótica de
qualquer ordem. Como contrapeso a essa abordagem, os ensaios anteriores foram
dedicados principalmente ao que pode ser chamado de performance da forma. Mas
é igualmente verdade que a moderna teoria musical tende a enfatizar os aspectos
unificadores da forma na medida em que parece aceitar como válido apenas o
modo de percepção que "melhor apazigua nosso desejo de inventar estruturas." 70
Eu prontamente admito essa luxúria, mas também devo confessar um deleite
igualmente profano no que Edmund Gurney chama de "as sucessivas notas e os
menores fragmentos, à medida que surgem momento a momento, em qualquer
peça musical que seja intensa e propriamente apreciada.” 71 Gurney, de fato,
representa um polo extremo para as visões formalistas em voga hoje, pois sua
69
Alfred Ottokar Lorenz (1868 -1939) foi um maestro, compositor e analista musical
austro-alemão. Sua obra principal é Das Geheimnis der Form bei Richard Wagner, em
quatro volumes. Wikipédia. (N. T.)
70
J.K. Randall, A Report from Princeton. In Perspectives of New Music, III / 2 (Prim.-Ver.,
1965), p.85.
71
Edmund Gurmey, The Power of Sound . New York: Basic Books, 1966 (reimpressão de
Londres, 1880 ed.), p. 214.
71
72
Ibid., p. 97.
72
APÊNDICE