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Forma

Musical e
Performance
Musical

Um estudo lúcido e penetrante da


natureza da forma musical e sua
manifestação na performance.

Edward T. Cone
Tradução e editoração de Orlando Fraga
FORMA MUSICAL

PERFORMANCE MUSICAL

Um estudo lúcido e penetrante sobre a natureza da


forma musical e sua conformação na performance.

Edward T. Cone
Tradução e editoração: Orlando Fraga
Forma Musical

Performance Musical



EDWARD T. CONE
Professor de Música
Universidade de Princeton

1968

Tradução e editoração: Orlando Fraga


Conteúdo

PREFÁCIO

Forma Musical e Performance Musical

I O Quadro e a Moldura:
A Natureza da Forma Musical, 01

II Dentro da Pintura:
Problemas de Performance, 18

III A Galeria de Quadros


Forma e Estilo, 38

Poslúdio:
Sobre Dois Modos de Percepção Estética, 64

Apêndice, 72
Nota do Editor

Edward Toner Cone (4 de maio de 1917 - 23 de outubro de 2004) foi um


compositor, teórico musical, pianista e filantropo americano. Cone nasceu em
Greensboro, Carolina do Norte. Estudou composição com Roger Sessions na
Universidade de Princeton, recebendo seu diploma de bacharel em 1939 (primeiro
aluno de Princeton a apresentar uma composição musical em substituição a uma
tese escrita final). Cone e Milton Babbitt foram os primeiros que se formaram em
composição musical em Princeton (1942). Estudou piano com Karl Ulrich
Schnabel e Edward Steuermann. Durante a Segunda Guerra Mundial, Cone serviu
primeiro no exército (como pianista) e depois no Escritório de Serviços
Estratégicos. À partir de 1946, passa a lecionar na Universidade de Princeton. Foi
também co-editor da revista Perspectives of New Music entre 1965 e 1969. Cone,
conhecido por suas contribuições para a crítica e análise musical, também possui
um catalogo de composições musicais significativo. Seu trabalho acadêmico
abordou a forma e a estética musical, particularmente em questões de ritmo e
fraseado. Morreu em Princeton, New Jersey, aos 87 anos.

Cone foi membro de uma família tradicionalmente ligada às artes visuais.


Entre seus ancestrais diretos, estavam as irmãs Cone, Claribel Cone (1864-1929)
e Etta Cone (1870-1949). Juntas, elas reuniram uma das melhores coleções de arte
francesa moderna nos Estados Unidos. Elas foram ativas como colecionadoras,
viajantes e bons viventes durante as primeiras décadas do século XX. Muito dos
conceitos de Edward Cone expostos em seus textos analíticos, tem sua origem na
inflência que as artes visuais tiverem no seu pensamento. Neste livro, encontramos
várias menções a ideias e artistas visuias, muitos deles extranhos no ambiente
músical brasileiro. Sempre que possivel, serão feitas referencias a estas citações.

Neste estudo esclarecedor, Edward T. Cone discute o problema de como


chegar a uma performance musical válida e eficaz. Em três ensaios penetrantes,
ele considera a natureza da forma musical, os objetivos do intérprete e os meios
para alcança-los, e a relação do estilo musical com a execução. Ênfase especial é
colocada sobre a importância de perceber e comunicar as qualidades rítmicas de
uma obra musical, que o autor considera como a tarefa fundamental do intérprete.
Um capítulo final trata dos problemas da percepção estética, delineando as bases
filosóficas que permeiam a abordagem do autor. Os ensaios são ilustrados com
numerosos exemplos musicais, dando forma concreta aos princípios em discussão.
Embora dirigido principalmente ao intérprete pensante, os insights sobre
a forma e o estilo musicais serão de grande interesse para o leigo com alguma
formação musical e que deseja aumentar sua percepção e discernimento como
ouvinte.
Algumas nomenclaturas analíticas em língua inglesa não encontram
normatização em português. Entretanto, se faz necessário alguns lembretes
referentes a hipercompasso:

4-compassos = grupo de quatro compassos

4 x 3 = 4 hipercompassos de 3 compassos cada;

6 + 3 = 6 compassos, mais 3 (total= 9 compassos)


Prefácio

Os três ensaios sobre forma musical e performance (ao qual um quarto


foi adicionado como um poslúdio opcional) são versões revisadas e expandidas de
palestras dadas no Conservatório de Música do Oberlin College em Janeiro de
1967, como parte das celebrações de seu centenário. Eu estou em dívida com
Departamento de Teoria do Conservatório não apenas por ter me induzido, através
de seu convite, a tentar colocar meus pensamentos em algum tipo de ordenamento,
mas também por me oferecer uma audiência perceptiva e estimulante.
Meus agradecimentos também são dirigidos aos membros de um
seminário de análise e performance que eu conduzi na Universidade de Princeton,
no outono de 1966. Eles foram compulsoriamente expostos à versão preliminar do
conteúdo destas palestras, e seus comentários e críticas me ajudaram a chegar a
uma formulação mais clara.
Finalmente, como único responsável por quase todas as ideias contidas
nestas páginas, eu devo agradecer a meu professor e amigo Roger Sessions, embo-
ra devo admitir, assumo total responsabilidade pelo possível desenvolvimento e
pela interpretação idiossincrática das suas sugestões. Minhas ideias sobre ritmo de
frase – para tomar um exemplo simples – vem, em grande parte, de uma observa-
ção que ele fez durante uma conversa (que ele a muito deve ter esquecido!),
enquanto ao mesmo tempo, elas devem muito a sua discussão no The Musical
Experience of Composer, Performer, Listener. 1
Em reconhecimento a uma influência que, tanto para mim quanto para
muitos outros, provou-se seminal, eu gostaria de dedicar este pequeno volume a
ele como uma parcela humilde de um débito que jamais poderá ser completamente
quitado.

Edward T. Cone
Princeton, N. J.
Junho, 1967

1 Princeton, N J.: Princeton University Press, 1950. Ver especialmente pp. 11-15.
Forma Musical
e
Performance Musical
1

I


O QUADRO
E A MOLDURA

A Natureza
da Forma Musical

________________

Tem sido dito que algumas das mais importantes descobertas científicas
resultaram do processo de se levar a sério perguntas que são aparentemente
triviais. Assim, uma resposta ampla à pergunta “Por que anoite é escura?”, leva à
teoria da expansão do universo. As perguntas que eu gostaria de propor, embora
suficientemente triviais, não levarão, eu temo, a tais conclusões prodigiosas. Eu
simplesmente espero que, se levadas à sério, elas possam lançar alguma luz a
questões que não são manifestamente triviais: como chegar a uma performance
musical válida e efetiva?
A primeira e última palavra sobre este assunto foi formulada pelo Rei de
Copas. Embora ele estive dizendo ao Coelho Branco como ler especificamente
versos, o seu conselho serve claramente a todos os artistas da performance:
“Comece pelo começo, ... e prossiga até chegar ao final: então pare.” E isto me
leva ao meu primeiro conjunto de perguntas tolas: Onde é o início de uma peça
musical? Onde é o final?
Agora, a partir do momento que levamos estas questões à sério, nos
damos conta que elas podem ser aplicadas apenas a um certo tipo de música, isto
é, aquela com um início e um final – ou, uma vez que, o mundo sendo o que é,
tudo possui um começo e um final, e na música estas são partes essenciais. Para
uma grande quantidade de músicas, começo e fim (vamos chamá-los de extremos)
não apenas não são essenciais, mas na melhor das hipóteses, constituem inter-
2

rupções necessárias. Quando a dança social moderna se tornou não-formal (no


sentido de parar de se conformar às regras de comportamento e de seguir uma
ordem de paços prescritos), as pausas entre as danças deixaram de ser funcionais.
A música ideal para os salões de baile atual seria contínua, onde os dançarinos
pudessem começar e terminar sua dança no momento que desejassem. Desta
forma, as pausas seriam apenas aquelas forçadas pela exaustão da banda ou pela
mudança de um disco. Da mesma forma, uma macha militar, embora necessite de
um começo, pode não ter um final: ela pode parar a qualquer instante quando a
ordem for dada. (Daí que a marcha ideal seria teoricamente, aquela que poderia
parar a qualquer momento e ainda fazer sentido musical – seguramente um desafio
ao intelecto do compositor). A música de fundo, seja no bar ou durante o intervalo
de um teatro, deveria ser essencialmente contínua e não-descritiva – como papel
de parede, que Satie 1 tentou demonstrar com a repetição infinita em Vexations.
Todas essas músicas são, certamente, funcionais: não são pensadas para
serem realmente ouvidas, mas apenas serem apreciadas. Mas este é também um
tipo de música funcional cuja efetividade depende em parte, da existência de uma
audiência. A música para um serviço religioso, seja aquela puramente litúrgica ou
outra historicamente evocativa, ou simplesmente expressiva, depende da atenção
da congregação para sua efetividade. E mesmo que a música de órgão tenha
começado antes da nossa chegada, e o mesmo acontecendo com o poslúdio após
nossa partida, o que ouvimos da primeira funciona como uma transição entre
nossas atividades mundanas e a cerimônia que está por vir, enquanto a segunda
deveria nos despedir com fragmentos dos Céus ainda pairando sobre nós. Isto
ocorre apenas com nossa permissão – ao ouvi-las. (Por serem ouvidas de forma
incompleta, as fugas de Bach são desperdiçadas nestas ocasiões. Alguém poderia
compor um prelúdio sem um início, e um poslúdio sem um final, somente para
esta finalidade – ou talvez uma peça desenhada para ter a sua segunda parte tocada
antes da primeira).
À despeito destes casos extremos, a distinção entre música para ser
ouvida e música para ser meramente escutada é importante. Devemos lembrar a
todo instante que somos muitas vezes tentados a ligar aquela estação de rádio local
de boa música e usá-la como fundo para leituras ou conversas. O contrário também
acontece com aqueles que sentam silenciosa e solenemente durante a execuções
de divertimenti escritos obviamente para servirem como música de fundo para o
jantar.

1
Erik Satie (1866-1925). (N.T.)
3

Quando eu uso o termo arte para distinguir música para ser ouvida, não
pretendo qualquer comparação insidiosa; estou apenas tentando definir a música
da qual vamos tratar daqui em diante. Além disso, se vamos definir uma peça como
uma obra de arte, isto é, como uma real composição, não apenas devemos ter
extremos, mas estes devem ser gerados pela própria música – e não somente por
exigências funcionais externas. Finalmente, para que uma composição – isto é,
uma peça composta com fundamento artístico – assim se comporte, os seus
extremos devem ser respeitados na performance.
Uma performance musical deve, então, ser um evento dramático, até
mesmo teatral, apresentando uma ação com começo, meio e fim – daí uma ação
com uma certa completude per se. Esta qualidade dramática deve estar presente
tanto em performances inteiramente privadas, quanto em leituras musicais
solitárias e silenciosas ou quando alguém toca para si mesmo, ou ainda diante de
uma plateia, que pode variar de uma pessoa até um auditório lotado. Uma peça
teatral ainda é uma peça, apesar de tudo, indiferente de ser lida para nós mesmos,
representada privadamente ou levada ao palco.
Neste ponto, votamos à nossa questão trivial original, que podemos agora
esclarecer e expandir um pouco mais: se a performance de uma composição deve
respeitar os seus extremos, como exatamente, estes devem ser definidos? Uma
composição necessariamente começa com a primeira nota e termina com a última?
Os períodos de tempo antes e depois da execução são constituintes da obra?
Nós podemos salientar o problema comparando música com quase todos
os tipos de literatura ou drama. Os extremos formais de uma peça teatral são
marcados pelo subir e cair das cortinas; mas a ação exposta sempre é apenas um
episódio temporal no fluxo histórico ou místico. As causas da tragédia de Hamlet
acorreram muito antes do começo da primeira cena, e suas consequências
continuam indefinidamente após o último ato. Indiferente da abrangência que uma
novela possa ter, sempre haverá espaço para questionamentos como “O que
aconteceu ante? O que se passou depois?” De fato, em toda a nossa tradição
ocidental, eu consigo somente pensar em dois trabalhos literários que não
pressupõem um tempo prévio (o Genesis e O Evangelho Segundo São João), e
nenhum (nem mesmo O Livro das Revelações ou o Paraíso) que chegue a um real
fim.
Voltando-nos para a pintura, percebemos que as bordas do quadro
demarcam aquela porção do assunto escolhido para a representação, porém toda
cena reproduzida ultrapassa a delimitação de suas bordas. Mesmo nas abstrações,
pode-se normalmente, imaginar os padrões indo além dos limites do quadro. A
margem é essencial, caso queiramos que este quadro seja visto como uma obra de
4

arte, como podemos perceber ao olharmos para pinturas sem bordas, como é o
caso do teto pintado por Pozzo 2 na igreja de San Ignazio, em Roma. Este teto é
digno de uma grande arte, mas não é uma obra de arte, nem foi pensada como tal:
ele é parte de outra obra de arte, isto é, a própria igreja.
A moldura de um quadro é a potencialização da borda. Ela funciona em
duas direções. Ela marca os limites não apenas do quadro, mas também o mundo
real ao redor deste quadro – da parede onde a pintura repousa. Da mesma forma,
as convenções teatrais – o apagar das luzes, a cortina – atuam como molduras; e o
layout tipográfico de um livro, seja uma estória ou um poema, implica em
molduras. Em todo caso, a sua função possui dois sentidos. Primeiro, ele separa o
assunto escolhido para observação do seu próprio entorno imaginário – que eu
chamo de ambiente interno; segundo, ele protege o trabalho da invasão do seu
ambiente externo, isto é, do tempo e espaço reais no qual o observador vive. A
moldura anuncia: aqui o mundo real termina e a obra de arte começa; aqui a obra
de arte termina e o mundo real inicia de novo.
Agora podemos reconhecer uma coisa importante pela qual a música
difere das outras artes: ela não tem ambiente interno. Uma composição não pode
ser pensada como um segmento delimitado de uma longa linha. Ela não possui
antecedentes nem consequentes. O que quer que a música seja – e eu não
intenciono levantar esta questão – esta “coisa” só começa quando a música inicia,
e termina quando a música encerra. Talvez seja esta a razão da finidade musical
ser tão completa, como também a razão de muitas pessoas acharem as óperas mais
satisfatórias emocionalmente do que o teatro.
Pode-se argumentar que música – pelo menos algumas delas – possui um
certo tipo de ambiente interno na forma do seu sistema abstrato – seja este tonal,
atonal ou dodecafônico – que, em certo sentido, existia antes e continua após a
composição concreta. Mas, isto é como dizer simplesmente que a gramática de
uma linguagem, ou na verdade a linguagem em si mesma, preexiste e sobrevive a
enunciados nesta linguagem. Se nós aceitamos esta analogia, percebemos que
estamos confundindo duas dimensões temporais diferentes. Uma gramática não
existe antes, ou durante, ou mesmo após qualquer afirmação; ela é essencialmente,
atemporal. Igual a sistemas de matemática ou lógica, ela é, por assim dizer, eterna.
Da mesma forma, um sistema musical pode ser considerado como subsistindo
independentemente da sua incorporação, mas não como existindo no seu continuo
temporal. (Por outro lado, a música que não tem forma intrínseca, no sentido de

2
Andrea Pozzo (1642 - 1709) foi um irmão leigo jesuíta e prolífico artista italiano, atuando
como decorador, arquiteto, cenógrafo, pintor, professor e teórico, e sendo uma das figuras
principais da arte barroca católica (N.T.)
5

não ter razão aparente para início e fim quando eles ocorrem, pode soar como um
segmento arbitrariamente emoldurado de um continuum sonoro que se estende
indefinidamente. Este é, na verdade, o efeito de muitas músicas serias “totalmente
organizadas”, 3 e, igualmente, de muitas músicas compostas pelo sistema de aca-
so.) 4
Para a maior parte das músicas, ambiente interno é um conceito sem
significado. Mas, apesar disto, ou talvez por causa disto, a música necessita muito
de uma moldura para separá-la do seu ambiente externo – para demarcar o tempo
musical do tempo ordinário antes e depois dela. Sem esta moldura, o fluxo caótico
e indistinto do tempo ordinário irá invadir cada extremo da composição. Ele nos
prevenirá no começo, da tomada de consciência do compasso em branco sugerido
pela música, e ao final, de apreciarmos a total descarga da sua energia. Neste
ponto, você com certeza deve ter adivinhado qual é a moldura. É o silêncio.
Se nós somos membros de uma audiência, o silêncio deveria nos ser
apresentado como um período de tempo vazio, no qual nada acontece. Ele deve
separar nossos movimentos individuais e coletivos daquele movimento que, por
enquanto, irá nos controlar a todos: a música. Esta é a razão pela qual o cantor
espera pelo retardatário se sentar e pela tosse parar. Esta é a razão pela qual o
regente repousa a sua batuta. Esta é razão pela qual não queremos que ele marque
um compasso em branco (embora, se ele reger um grupo amador, seja obrigado a
isto): isto significaria algo acontecendo momentos antes da música começar, e
nada deveria acontecer neste momento.
Da mesma forma, ao final, nós precisamos do silêncio para amparar nosso
retorno ao tempo ordinário. Esta é a razão pela qual o ouvinte sensível espera antes
de aplaudir – e o porquê do interprete superlativo apreciar mais o silêncio que o
aplauso. Realmente, por este ponto de vista, ou a maior parte das audiências – e
especialmente aquelas de ópera – são peculiarmente insensíveis, ou a maior parte
dos interpretes são alguma coisa menos que superlativos. Com certeza, muitas
vezes ouvimos interpretações excitantes que criam tanta energia a ponto de
arrebatar a plateia que imediatamente responderá com aplausos; mas, eu fico
imaginando se essas performances não são, por esta mesma razão, um tanto
meretrícias. Leo Stein 5 sugere que a música que necessita de movimento corporal
por parte do ouvinte para sua completa apreciação, como muitas danças populares,

3
Serialismo integral. (N. T.)
4
Chance music. (N. T.)
5
Leo Stein (1872 – 1947) foi um colecionador e crítico de arte americano, irmão de
Gertrude Stein. (N.T.)
6

é artisticamente imperfeita; 6 talvez o mesmo princípio possa ser aplicado à


performance.
A decisão quanto a natureza do tempo entre os movimentos de uma obra
extensa é quase sempre difícil, pois pelo menos três possibilidades devem ser
consideradas. Se as conexões são claramente ataca, como na Sonata Quase uma
Fantasia, Op. 27, No. 1, de Beethoven, o tempo entre os movimentos é parte da
peça, consideradas como pausas internas, como são aquelas que tão
impressionantemente interrompem o primeiro movimento da Fantasia, Op. 17, de
Schumann. Em outro caso, pode-se decidir que, embora cada movimento seja
separado, interprete e audiência não devem ter espaço “livre” entre movimentos –
que estes momentos representam molduras, como as molduras intermediárias de
um tríptico. Ou pode-se querer dar ao interprete uma oportunidade para afinar seu
instrumento, e a audiência a chance de um descanso: agora os membros do tríptico
foram separados e colocados em intervalos ao longo da parede. Este é o caso de
muitos concertos clássicos – que exigem, no mínimo, aplauso ao final do primeiro
movimento – e, por razões óbvias, com muitas sinfonias de Bruckner e Mahler.
Os dois primeiros tipos de performance são um pouco exagerados hoje em dia, e
muitas vezes usadas contra as claras intensões do compositor. O modismo que
exige silêncio entre os movimentos não apenas inibe demonstrações espontâneas
de apreciação, mas também impõe uma tensão sobre o ouvinte a ponto de este não
poder atender propriamente a última metade de uma longa sinfonia.
A existência de uma conexão em attacca e a ocorrência de pausas em
geral entre os movimentos, aponta para outra possibilidade interessante. Talvez o
silêncio imediatamente anterior e posterior de uma composição seja realmente
parte, não da mesma moldura, mas da própria obra. Agora, é difícil imaginar como
muitos interpretes, carentes de indulgência na regência caricata do silêncio ou
outras ações inapropriadas, poderiam indicar o início de uma peça antes do
primeiro ataque. (Esta é uma razão do porque a doutrina de Riemann 7 do
contratempo universal, implícita onde ela não é evidente, é inaceitável.) Por outro
lado, um modelo métrico claramente definido impõe a si mesmo no acorde final
de uma composição – especialmente quando é um tempo forte bem enfático – de
tal forma a forçar vários tempos ou até mesmo vários compassos para o silêncio
que se segue. A prática de notação convencional suporta esta diferenciação. Os
compositores, via de regra, abrem uma partitura com o primeiro ataque ou com o

6
Leo Stein, The ABC of Aesthetics. New York: Horace Liveright, 1927, pp. 197-98.
7
Karl Wilhelm Julius Hugo Riemann (1849-1919). Musicólogo, historiador e pedagogo
alemão. (N. T.)
7

número mínimo de pausas essenciais para uma leitura fácil; mas com frequência
eles terminam com indicações extra de tempo – uma fermata ou até mesmo um
compasso em branco. Mas, onde isto não é o caso, a implicação de compassos em
branco é também inaceitável. A partitura da 5ª Sinfonia, de Beethoven, começa
com uma pausa de colcheia, mas certamente este é um mecanismo para prevenir
erros de leitura dos três contratempos que se segue. Não se pode ouvir isso como
um tempo forte silencioso. No final do movimento, contudo, o padrão de 4-
compassos foi tão firmemente estabelecido, que somos forçados a adicionar um
compasso em branco depois do último que foi grafado – um compasso tão
essencial quanto aqueles que são escritos.
O princípio que diz que toda composição começa no primeiro ataque se
aplica igualmente àquelas que começam, como na 5ª Sinfonia, em uma anacruse
indiscutível, ou àquelas que começam, como a 7ª Sinfonia, com um tempo forte
inquestionável. Em cada caso, há uma demarcação entre o ataque e o silêncio
precedente. Entretanto, a 9ª Sinfonia exemplifica um tipo de começo que foi, até
onde sei, inédito em Beethoven, porém tornou-se progressivamente popular
durante o século 19: o quase imperceptível crescimento do som a partir do silêncio
– em termos rítmicos, o surgimento de uma enorme anacruse. Em tais casos nós
sentimos, em retrospectiva, que a música pode estar vindo sendo executada por
algum tempo, abaixo do seu limiar de audição, antes de se tornar audível suficiente
para percebermos. Se é assim, nós devemos delegar retroativamente ao silêncio
preliminar, uma cota na própria composição. Da mesma forma, obras como Das
Lied von der Erd 8, com a sua indicação final gänzlich ersterbend, 9 deveria no
último momento decrescer imperceptivelmente no tempo seguinte, de modo que
qualquer decisão em relação à quando a música é realmente encerrada, deve ser
arbitrária. Debussy, em Brouillards, avança um paço nesta direção. Aqui a
partitura, e desta forma o que ouvimos, encerra-se antes da resolução final na
tônica. Se quisermos realmente ouvir isto, teremos de fazê-lo em nossa
imaginação.
Outra forma de limiar indistinto é encontrada onde podemos chamar de
inícios eruptivos: aquele que surge tão violentamente a ponto de sugerir que não
deveria haver silêncio anterior, nenhuma moldura a separar a música do mundo
exterior. A tempestade em Otello, por exemplo, deveria, de forma ideal, começar
enquanto a audiência ainda está aplaudindo a entrada do maestro: a própria música
deveria forçar a atenção. Aqui, também, Beethoven pode ter sido um visionário,
pois ouvi uma versão bem convincente do Op. 111 que começou exatamente desta
maneira.

8
Gustav Mahler (N. T.)
9 Morrendo completamente (N. T.)
8

O tipo correspondente de encerramento é representado por algumas das


sinfonias de Bruckner. Indiferente do quanto ele estenda a tônica final, jamais
parecerá longa o suficiente, e o silêncio que segue chegará como um choque. A
única solução, então, pareceria ser um convite para o aplauso imediato. (A mesma
solução se aplicaria ao final de Wozzeck, considerando as diferenças? Eu jamais
ouvi uma performance convincente das tríades oscilantes, que não acabam, mas
meramente param.)
Pode-se fazer uma comparação de músicas que transbordam a sua
moldura como algumas das gravuras de Piranesi, 10 onde um edifício retratado
avança pela moldura convencional sem, contudo, destruí-la. O contraste de arte
com extremos claramente definidos em relação àqueles com bordas turvas revela,
com certeza, uma distinção entre formas clássicas e românticas – uma distinção
que se manifesta em vários níveis. As Bodas de Fígaro, com sua ação restrita a um
único dia, usa formas delimitadas cujos contornos, da abertura ao finale, são
claramente perceptíveis. A ação do Anel [de Nibelungo], que cobre uma era inteira,
é acompanhada por música tão contínua quanto possível. Com o Prelúdio de Das
Rheingold, um mundo inteiro emerge do nada, de um tempo anterior ao próprio
tempo; ele retorna ao nada com o final do Götterdämmerung.
Nos dias de hoje, todas as grades parecem ter sido derrubadas, de tal
formar a ser impossível distinguir os trabalhos de arte (independente da mídia) da
sua moldura ou do mundo ao seu redor. Hoje, em uma galeria de arte uma pessoa
com frequência fica insegura sobre quais objetos são expostos para contemplação
e quais objetos devem ser tratados como mobília. Da mesma forma, às vezes é
difícil, ao escutarmos o que Varèse chamou de “som organizado”, distinguir quais
sons são realmente organizados e quais são fortuitos – isto é, quais são elementos
da composição e quais são ruídos externos. (Na estreia mundial em Paris de
Déserts, de Várese, no outono de 1954, os ouvintes de rádio não conseguiam
distinguir entre a música e o ruído provocado por membros inconformados da
audiência) Cage, com certeza, se divertia com tais ambiguidades. Como é
amplamente conhecido, certa vez ele “escreveu” e “executou” uma composição
que, de acordo com sua definição anterior, consistia inteiramente de quatro
minutos de trinta e três segundos de moldura.
Algumas formas de arte contemporânea exageram uma tendência que é
equivalente a um extravasamento, nem tanto da moldura, mas da própria dimensão
do meio. O que eu tenho em mente é ilustrado através de detalhes nos primeiros
períodos do trompe–l’oeil 11 em pintura – a mosca que alguém tenta espantar do
retrato de Petrus Christus, no Museu Metropolitano de Nova York [ver Apêndice]

10
Giovanni Battista Piranesi (1720 – 1778) foi um famoso gravurista e arquiteto italiano.
(N. T.)
11
Trompe-l'oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão
ótica que faz com que formas de duas dimensões aparentem possuir três dimensões. O
termo vem de uma expressão em língua francesa que significa "enganar o olho" e é usada
principalmente em pintura ou arquitetura. (N. T.)
9

– ou pelo personagem de uma peça que fala diretamente para a audiência. Esta
tentativa de criar uma dimensionalidade extra ao envolver o mundo real do
espectador é, com certeza, especialmente efetiva no teatro – observe Le Nègres,
de Genet, 12 isto sem falar daqueles eventos conhecidos como “happenings”.
Equivalente na música podem ser achados em performances do Réquiem de
Berlioz que, ao se colocar o coro de metais ao redor da audiência (uma violação
da intenção original do compositor), inclui os próprios ouvintes na performance;
ou em composições eletrônicas (i. e. a versão original do Poème électrinique, de
Varèse) que são desenhadas para ser projetada para todos os lados da sala. Com
relação à música absoluta, a analogia não é exata. Em tais casos, o envolvimento
físico da plateia não representa necessariamente a soma de uma nova dimensão;
no máximo ela permite uma abordagem mais próxima em relação à sensação
normal da performance, para quem quase sempre está no centro da música.
Audição ativa é, acima de tudo, um tipo de performance vicária, realizada, como
Session colocou, por “reprodução interna” da música 13 – o que é, eu considero,
também o que Hindemith queria dizer por “construção mental”. 14 Para ser
incluído dentro do espaço físico devotado à reprodução sonora pode ser muito
excitante para o ouvinte, mas isto ocorre mais pela intensificação das suas reações
normais do que pelo estimulo à novidade. Assim, do ponto de vista programático,
pode ser verdade que o ouvinte envolto pela Tuba Mirum, de Berlioz, realmente
sinta uma identificação especial com o despertar da macabro do Último
Julgamento; se este é o caso, então a obra de arte como um todo se desloca para
uma nova dimensão – uma dimensão dramática. Do ponto de vista puramente
musical o ouvinte está somente experenciando uma sensação de participação, a
qual ele poderia (teoricamente, pelo menos) apreciar independentemente do
posicionamento dos metais – seja tocando na orquestra ou cantando no coro! (A
mesma distinção pode, eu penso, ser aplicada à música eletrônica. Para o ouvinte
treinado que pode, na imaginação, “executar” um trabalho eletrônico de forma
completamente abstrata, os seus aspectos espaciais assumirão seu lugar como
parte da “orquestração”. Para a maioria dos ouvintes, por outro lado, o seu efeito
adicionará uma obscura dimensão programática, da qual a sua efetividade
dependerá deste aspecto)
Até aqui estamos considerando as várias relações possíveis entre a
composição musical por um lado, e o seu entorno, por outro. Agora precisamos
começar a olhar dentro da própria composição, e aqui encontramos um tipo
diferente de moldura. Da mesma forma que o silêncio pode ser forçado a se tornar

12
Os Negros é uma peça do dramaturgo francês Jean Genet (1910-1986). Publicado em
1958, foi apresentado pela primeira vez em uma produção dirigida por Roger Blin no
Théâtre de Lutèce em Paris, que estreou em 28 de outubro de 1959. (N. T.)
13
Roger Session, The Musical Experience of Composer, Performer, Listener. Princeton, N.
J.: Princeton University Press, 1950, p. 97.
14
Paul Hindemith, A Composer’s World. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
1952, p. 17.
10

parte da música que ele envolve, ocasionalmente os extremos de uma composição


pode se apartar do corpo da obra de tal maneira a atuar no que podemos chamar
de moldura interna. Exemplos conhecidos podem ser achados na última das
Bagatelles Op. 126, de Beethoven, e na Canção sem Palavras no. 9, de
Mendelssohn (Consolidation). Em ambos os casos, a introdução é plena e
independente, terminando em uma cadência autêntica; em ambas, o mesmo
material retorna, sem alteração, para constituir a coda. Elas formam assim parte,
ainda que incompleta, da composição. Elas realçam o restante da mesma forma
que as molduras desenhadas de janelas, que observamos às vezes, em retratos
holandeses, ou as linhas abstratas que Marin encerra as suas marinas. 15 Outra
analogia é sugerida pelo artifício que os alemães, significativamente, chamam de
Rahmenerzählung – a estória dentro da estória. 16
Estruturas completas como as acima mencionadas são comparativamente
incomuns. Codas-molduras 17 são particularmente raras, pois o que chamamos de
coda normalmente é exigência harmônica e rítmica do que precede, sendo uma
parte essencial da forma. “Peroração” seria em muitas ocasiões, um termo mais
apropriado. Introduções-moldura 18 são mais frequentes. Eventualmente elas são
bem elaboradas, porém uma expansão sempre leva consigo o perigo de uma
independência excessiva. A introdução do 1º Concerto para Piano, de
Tchaikovsky, apesar das apáticas tentativas em direção ao Allegro, permanece
essencialmente uma moldura super desenvolvida que falha em se integrar ao resto
do movimento. A introdução-moldura de Also sprach Zarathustra, embora mais
intimamente integrada motívicamente ao que segue, não obstante, chega ao clímax
de forma tão retumbante que o resto do poeta sinfônico quase soa como uma
consideração final.
Contrariamente a estes exemplos, muitas introduções, mesmo diferen-
ciadas do que segue tanto pelo andamento quanto pelo tema, prepara e conduz para
o corpo da obra e deveria, assim, não ser tocada como uma moldura semi-
independente. Tais aberturas sevem a uma variedade de funções. Às vezes a
introdução tem uma função parcialmente prática, por exemplo, quando ela permite
ao cantor se assegurar da sua nota. Em outras ocasiões, ela desenvolve uma tensão
dramática que será liberada pelo movimento principal. Do ponto de vista
puramente musical, ela pode sugerir o espaço fundamental tonal, métrico ou
dinâmico da composição como um todo. Os primeiros dois compassos da Eroica,
por exemplo, estabelecem todos os três: eles reiteram o acorde que se tornará a
tônica; pontuam os tempos fortes dos compassos; e ainda indicam o poder da

15
John Marin (1870–1953) (N. T.)
16
Rahmenerzählun: literalmente, uma moldura narrativa é uma técnica narrativa que se
refere ao processo de inserir, dentro de uma história inicial, uma outra história.
Geralmente se tem como objetivo apresentar uma história introdutória como maneira de
enfatizar uma segunda narrativa ou um conjunto de histórias curtas. (N. T.)
17
Framing codas.
18
Framing introduction.
11

orquestra como um todo, em contraste ao tema relativamente quieto que segue.


Eles até esboçam este tema, que começa, depois de tudo, como um arpejo do
acorde introdutório.
Em todos os sentidos, o começo da Eroica é concebido como uma
introdução amplamente integrada, e não como uma simples moldura. De que
forma esta distinção pode ser percebida na performance? Unicamente respeitando
o caráter rítmico básico destes dois compassos: reconhecendo que eles constituem
uma anacruse. Não interessa que eles sejam marcados como forte e o tema que
segue marcado piano, que eles sejam tutti e o tema, como realmente são,
concertino – o papel básico deles é corrompido à menos que sejam regidos e
tocados de alguma forma a serem ouvidos como uma dupla anacruse. Embora as
cordas dificilmente usem arco para cima, mantendo tal possibilidade em mente
poderia sugerir a leveza e elasticidade que passagem pede; os pesados acentos que
com frequência ouvimos, quase engolem o tema e previnem um início convin-
cente. Além disso, uma execução em anacruse destes compassos acentua a sua
familiaridade com os compassos paralelos da harmonia da dominante que
precedem imediatamente a recapitulação, como também os dois compassos de
tônica em contratempo que os equilibra bem no final.
Estes dois compassos, assim, nos oferecem a chave para a importância
vital da introdução, uma explicação da sua frequência: uma introdução é um
contratempo expandido. Mesmo quando, como na 7ª Sinfonia de Beethoven, a
introdução é longa, começa com o seu próprio tempo forte, e contém muitas
subdivisões – uma verdadeira introdução, ao contrário de uma moldura, é uma
anacruse expandida. Uma distinção cuidadosa entre os dois tipos é necessária para
uma performance inteligente. (Deve-se, também, ter cuidado em distinguir uma
verdadeira introdução de outra simplesmente assim denominada. O ritornelo
orquestral de um concerto barroco ou aria é, muitas vezes, incorretamente
chamado de introdução. Na verdade, é normalmente a primeira exposição de um
tema principal. A função de um tutti de abertura de um concerto clássico é mais
complexa, mas seu caráter expositivo normalmente predomina. Isto pode explicar
porque Beethoven, pelo menos uma vez, a antecedeu com uma introdução real.)
Este conceito de anacruse expandida – uma preparação para a seção
principal da peça – é tão pervasivo que são encontradas em muitas composições
que carecem de uma verdadeira introdução. É especialmente evidente em
composições que começam distante da tônica, como a Sonata no. 3, Op. 31, de
Beethoven. Mas mesmo na Op. 53, que inicia convencionalmente na tônica, o
primeiro tema pausa, como se reculer pour mieux sauter. 19 O começo da Sonata
Póstuma em Dó Maior, de novo na tônica, não exibe pausa aparente, mas a
abertura conduz diretamente à subdominante tão grandemente expandida que
representa uma fermata escrita; apenas após ela se conduzir cadencialmente
através da dominante de volta para a tônica, é que o movimento realmente
deslancha.

19
Literalmente: recuar para melhor saltar. (N. T.)
12

De todas as sinfonias de Beethoven, apenas a Oitava começa com um


inequívoco tempo forte e prossegue initerruptamente desde o início. É a expansão
que contradiz a regra, ou melhor dizendo, é esta que previne a generalização
apressada que diz que toda peça começa com uma introdução real ou implícita.
Além disso, note que mesmo aqui é a elisão na cadência no compasso 12 que
realmente coloca as coisas em movimento. Trata-se de um daqueles pontos
simultâneos de chegada harmônica e rítmica que eu chamo de tempo forte
estrutural, 20 pois é tão poderoso que, retrospectivamente, ele transforma o que o
precede em sua própria anacruse.
É interessante ver quão tardiamente os compositores do século XIX, ao
postergar mais e mais a chegada da tônica, expandiram a anacruse inicial a ponto
de esta dificilmente poder ser chamada tanto de preparatória quanto de
introdutória. A busca pelo tempo forte estrutural torna-se, em si mesma, a
progressão básica. O pequeno Intermezzo em Si Bemol, Op. 76, No. 4, de Brahms,
chega ao tempo forte apenas na cadência de engano que marca o final da primeira
seção. Uma realização ainda mais extraordinária é a abertura do primeiro
movimento da Fantasia, de Schumann, onde o tempo forte da tônica chega
somente ao final da longa exposição, com a aparição da seção central, “Im
Legendenton”, cuja função é de desenvolvimento. Mas composições como estas,
ao empurrarem a chegada do tempo forte estrutural para mais adiante do início,
apenas exageram a natural periodicidade pela qual a música normalmente
caminha: tensão seguida por relaxamento. Para isso, pelo menos, a insistência de
Riemann quanto a universalidade da anacruse estava no caminho certo.
Neste ponto nós entramos em uma nova fase das nossas investigações; o
que nos ocupa agora, não é mais a questão “onde o compositor começa (ou
termina)?” – mas “como?” Em poucas palavras, estamos lidando com a essência
da forma. E forma musical, como eu a entendo, é basicamente ritmo. Não é, como
a análise convencional defende, temática, nem, pace Schenker, harmônica. Ambos
os aspectos são importantes, mas ritmo é básico. Daí a razão de Ravel ter dito,
segundo a lenda, que tinha terminado a composição – “tudo, exceto os temas.”
Seria um exagero afirmar, da forma que eu estou prestes a fazer, que toda
composição tonal representa a variação de uma única forma rítmica, viz., uma
anacruse estendida seguida de seu respectivo tempo forte. Mesmo assim, esta
super-simplificação não seria a mais grosseira. Da mesma forma que em um
período musical normal, a frase antecedente se apresenta, em alguns aspectos,
como uma anacruse do consequente, também em grandes formas uma seção inteira
pode se apresentar como uma anacruse da próxima. E se, como eu acredito, existe
uma percepção na qual uma frase pode ser ouvida como uma anacruse da sua
própria cadência, seções progressivamente maiores podem também igualmente
serem percebidas. Uma composição completamente unificada poderia, então, ser
constituída de um único e grande impulso rítmico, integralizado na cadência final.
Com certeza, isto não significa necessariamente o acorde final. A resolução

20
Structural downbeat.
13

definitiva em geral requer um final feminino – às vezes bastante estendido – como


meio de descarregar o seu momentum, isto é, o seu impulso. Tais finais são
verdadeiras codas, em oposição a peroração, por um lado, e moldura, por outro.
(Um exemplo bem claro é a passagem sobre o pedal da tônica final na Fuga em
Dó Menor, do Cravo Bem Temperado, Livro I, de Bach. Outra pode ser achada
nos últimos quatro compassos do Prelúdio em Si Menor, de Chopin. Em
performance, codas reais como estas normalmente representam um diminuendo).
Se tais noções provam sua utilidade, elas ainda precisam de refinamento;
e o lugar para começar é a frase, que, se estou certo, é um microcosmo da
composição. A frase clássica tem sido com frequência analisada como uma
alternância de compassos fortes e fracos, em uma analogia ao tempo forte e fraco
dentro do compasso. Em outras palavras, a grande estrutura rítmica é tratada
simplesmente como uma estrutura métrica em um nível mais alto. Agora, eu não
nego que tais alternâncias quase sempre ocorrem, especialmente em casos onde os
compassos são curtos e rápidos; mas insisto que em alguns níveis, este princípio
métrico de balanço paralelo deve se render a um princípio rítmico mais orgânico
que suporta o contorno melódico e harmônico da frase e justifica sua aceitação
como uma unidade formal. Tal princípio deve se basear em conceitos abstratos
mais altos de energia musical, de tal forma a ser útil à uma abordagem através de
uma analogia concreta. Se eu atiro uma bola e você a apanha, a ação completa
deve consistir de três partes: o jogar, o trânsito e o pegar. Temos então, por assim
dizer, dois pontos fixos: o impulso da energia e a meta à qual ela é direcionada; o
tempo e a distância entre elas é o espaço percorrido pela bola. Da mesma forma, a
frase musical típica consiste em um tempo forte inicial ( ), um espaço de
movimento ( ), e um ponto de chegada marcada pelo tempo forte cadencial
( ). Apesar do movimento indiferenciado da bola, a passagem musical é marca-
da por pontos fortes e fracos ( ), porém, todos eles são estruturalmente leves
em comparação aos pontos acentuados inicial e final. Minha análise, assim, difere
daquela de Cooper e Meyer, 21 em sua tentativa de distinguir três tipos de pontos
“fortes”: o inicial, o terminal e o mediano. Um tempo forte inicial é marcado pelo
tipo de acento que implica um subsequente diminuendo; um tempo forte cadencial
sugere que a meta é um crescendo. Pontos fortes medianos variam de acordo com
o contexto. Se a cadência, como a meta do movimento, é percebida ainda mais
destacadamente do que o tempo forte inicial, então a frase na verdade se torna, em
certo sentido, uma anacruse expandida seguida de um tempo forte – o tempo forte
inicial – assim, aceitando uma redução de papel como “o tempo forte de uma
anacruse”. Porém, como nós veremos, por causa das grandes demandas da
composição como um todo, nem todas as frases devem ser assim consideradas.

21
Grosvenor W. Cooper e Leonard B. Meyer. The Rhythmic Structure of Music. Chicago:
University of Chicago Press, 1960. Este livro desenvolve um método previamente
apresentado por Meyer em Emotion and Meaning in Music. Chicago: University of
Chicago Press, 1956.
14

Se quisermos explorar um pouco mais a analogia do jogo da bola,


podemos imaginar o movimento do arremessador como uma anacruse preliminar
(˄), e o rebatimento do apanhador como um final feminino. (Ou talvez, neste caso
ele tenha derrubado a bola!!!) Eu não pretendo considerar isto seriamente, mas
estas comparações com certeza, apontam para as diferenças em caráter entre dois
elementos rítmicos, bem como entre estes dois, por um lado, e os tempos ou
compassos franco medianos, por outro lado ( ). Tais detalhes não alteram, mas
meramente elaboram a forma standard da frase, as quais poderiam ser
representadas da seguinte forma: . Avançando mais um pouco,
pode-se pensar em uma elisão ( ) como um retorno no tênis, que converte
uma pegada em um novo arremesso. A elisão, de fato, demonstra uma vantagem
desta análise. Uma vez que tanto os compassos cadenciais quanto os iniciais são
fortes, a elisão pode ser ouvida como uma união natural dos dois.
Neste ponto um exemplo vem a ordem. Vamos ver a abertura da Sonata
para Piano em Lá Maior, de Mozart (K. 331), que consiste de duas frases de 4-
compassos cada. Se aplicamos a alternância convencional de compassos forte-
fraco, obteremos pouco sucesso. Um compasso inicial leve contradiz a abertura
firme tônica. Além disso, um compasso inicial fraco debilita excessivamente as
cadências. Elas são estruturalmente femininas; isto é, a dominante ou tônica final
entram em um tempo relativamente fraco.
15

Tornar todo o compasso cadencial fraco em cada caso criaria cadências


duplamente femininas – ou melhor, na primeira frase, por conta da sua resolução
retardada, uma cadência triplamente feminina! A ênfase resultante no início do
terceiro compasso de cada frase dificilmente seria convincente na performance,
pois é apenas depois deste ponto que o consequente começa a se diferenciar do
antecedente. Além disso, o sforzando no penúltimo compasso empurra a ênfases
avante de tal forma a sugerir que o compasso conclusivo, mesmo em piano, torne-
se cadencialmente forte.
Vejamos agora o que a análise motívica e melódico-harmônica pode nos
revelar. A primeira frase consiste de compassos individuais sequenciais seguidos
por uma unidade de 2–compassos:

Entretanto, o b pode ser, ele mesmo, igualmente subdividido: duas unidades de


1/2–compasso (sendo que cada um pode ser ouvido como uma compressão do
motivo original) mais um compasso inteiro. Ambas as relações podem ser
incorporadas no esquema seguinte, que por sua vez incorpora um no outro. A
metade cadencial da frase é, ela mesma, uma pequena unidade rítmica, cuja metade
cadencial, por sua vez, é o último compasso.

O modelo acima é confirmado pelo contorno melódico-harmônico da


frase, que, apesar da linha descendente do Mi agudo, eu considero ser um
movimento principalmente de afastamento e retorno à posição original do acorde
de tônica, seguido pela cadência (feminina).
A segunda frase é um pouco diferente. O seu terceiro compasso desvenda
um relacionamento que estava escondido na primeira vez: o fato da subida do Lá
para Dó# pode ser percebido como um terceiro membro da sequência original (Ao
mesmo tempo, outra sequência, uma de dois membros, por sua vez escondida –
Mi-Ré-Dó# e Ré-Dó#-Si na voz de cima – emerge mais claramente. Esta é a mesma
que Schenker considerou como governando o período como um todo.) 22

22
Heinrich Schenker. Der freie Satz, ver. Ed., Vienna: Universal Edition, 1956, Anhang, p.
119, ex. 157.
16

Como resultado do deslocamento rítmico, a decida do baixo por grau conjunto da


tônica para a dominante é mais claramente perceptível, pois o Mi agora aparece na
metade forte do último compasso. Isto, juntamente com o sforzando previamente
mencionado, aponta para o seguinte modelo:

A cadência final, embora feminina, desta forma recebe mais peso do que
a meia-cadência. O período inteiro, pode ser entendido como uma anacruse
antecedente seguida de um tempo forte consequente: . (Para modelos
17

deste nível, eu considero que os símbolos neutros e sejam adequados,


e, por causa da sua familiaridade, sejam também preferíveis.)
Provavelmente seja desnecessário insistir aqui que não haja
necessariamente correlação entre compassos fortes e acentos dinâmicos, tal como
um sforzando como aquele do c.7 que indica um tempo metricamente forte.
Variação na dinâmica é apenas um dos meios que um bom interprete pode usar
para indicar – tão obviamente ou tão delicadamente quanto o contexto exige – o
contorno da frase. Ajustes temporais sutis (isto é, acento agógico ou rubato) estão
igualmente à sua disposição. Naturalmente, quanto mais explicita é a notação
rítmica na partitura, menos é exigido do performer para adicionar. A entrada da
recapitulação no primeiro movimento da Eroica sempre soará como um imenso
tempo forte estrutural, indiferente da performance!
Se adentramos um pouco mais no exemplo de Mozart, vemos que o
primeiro período é seguido por uma seção contrastante, cujo material original,
encurtado e de outra forma modificado, retorna para integralizar um ABA típico.
Do ponto de vista global, o período de abertura pode ser considerado como um
tempo forte inicial expandido 23 e o retorno como um tempo forte cadencial. 24
Dentro do retorno, também, pode-se até mesmo ouvir os primeiros quatro
compassos em piano como uma anacruse para os dois compassos fortes finais. No
todo, o tema exibe, de forma complexa, a forma básica .

Neste ponto, vamos relembrar nosso problema básico, que era como
atingir uma performance válida e efetiva. Aqui, encontramos pelo menos uma
resposta: ao desvendar e clarear a vida rítmica da composição. Se eu estiver correto
ao localizar a forma musical na estrutura rítmica, esta é a resposta fundamental.

23
Expanded initial downbeat.
24
Cadencial downbeat.
18

II


DENTRO DO QUADRO

Problemas de Performance
_______________________

Cedo ou tarde todas discussões sobre os problemas de performance


musical tendem a levantar a questão da interpretação ideal: existe tal coisa? Uma
performance perfeita de uma composição subsiste como um ideal pelo qual toda
performance deva se inspirar? Isto é verdade para toda composição? É uma
verdade geral?
A maioria das pessoas possivelmente concordaria que, mesmo se a
interpretação perfeita fosse concebível, ela dificilmente seria atingida, e que toda
real performance pode ser, no máximo, uma aproximação de um ideal. Mesmo
assim, muitos de nós somos vagamente conformados pela noção de uma
interpretação que, em algum reino platônico, constitui a música de forma tão
precisa quanto uma pintura é uma pintura, uma estátua é uma estátua e um prédio
é um prédio. De acordo com este ponto de vista, as artes espaciais são afortunadas,
uma vez que elas são fixas e imutáveis; as artes temporais (nas quais se incluem o
drama e todas as outras formas de literatura, além da música) são sujeitas à leitura,
performance e interpretações, sendo que todas distorcem a verdadeira essência da
obra de arte. Não obstante, esta essência permanece lá, para ser descoberta e, tanto
quanto possível, exposta.
Infelizmente, esta visão é falsa mesmo para as artes espaciais. Pois nós
lemos pinturas, estatuas e prédios, da mesma forma que, com certeza, lemos
poemas. Nós não podemos vê-los simultaneamente; devemos escolher nosso
próprio caminho através deles e trabalhar por nós mesmos, enquanto caminhamos,
as suas várias relações internas e significados. Como Leo Stein diz “[os elementos
visuais de um quadro] indicam muito mais possibilidades de relações entre si do
que alguém pode capturar em um dado instante.” 25 Da mesma forma que podemos
chamar a leitura de um poema – mesmo uma leitura silenciosa – de performance,

25
Op. cit., p. 86.
19

nós poderíamos também dizer que olhar para um quadro ou uma estátua por todos
os lados ou ainda andar através de um prédio, é uma performance de um quadro
ou de uma estátua ou de um prédio. Na verdade, a contemplação de uma obra de
arte espacial quase sempre envolve não apenas uma, mas várias performances –
ou pelo menos, várias performances parciais. Olhamos de um lado para o outro,
de cima para baixo, diagonalmente, em espiral, observando lentamente e
desvendando o conteúdo para nossa própria satisfação para então avançar para
outras conexões. Teria de ser uma obra simples, na verdade, cujas relações se
tornassem claras em um simples olhar – tão simples, de fato, a ponto de
dificilmente se configurar como obra de arte.
Esta observação silenciosa da obra espacial, então, é uma espécie de
multi-performance – e não é diferente da leitura silenciosa de um poema ou de
uma peça musical. Aqui, também, podemos escolher nossos paços, acelerar ou
desacelerar à vontade, olhar adiante ou para trás, pausar, repetir – de novo, a multi-
performance, ou a multiplicidade de performances parciais. Porém, quando lemos
um poema em voz alta, ou tocamos uma peça musical, devemos escolher uma
única e completa performance. Quanto mais complexo um poema ou uma
composição, mais relações a sua performance devem estar aptas a explicar – e
menor a probabilidade de uma única performance poder jamais conseguir tal
façanha. A composição avança inexoravelmente no tempo; não podemos voltar
para explica-la; devemos, portanto, decidir o que é importante e tornar isto mais
claro possível, mesmo em detrimento de outros aspectos da obra. Apesar de tudo,
haverá outras performances! Toda interpretação válida, portanto, representa, não
uma aproximação de algum ideal, mas uma escolha: quais relações implícitas nesta
peça serão enfatizadas, tornadas explicitas?
Um exemplo conhecido pode ajudar a esclarecer este ponto de vista. No
início do seu Prelúdio em Dó Menor, Chopin indicou que os dois primeiros
compassos devem ser fraseados cada um deles como uma unidade individual, mas
os dois compassos seguintes devem ser agrupados.
20

Agora, os dois primeiros compassos formam claramente uma sequência,


da qual os dois compassos seguintes variam levemente. Porém, há uma maneira
de tocar o baixo dos cc.3 e 4, claramente sugerida pela sua forma quase
palíndromo, que produz um terceiro membro da mesma sequência, por
aumentação.

Até aqui, tudo em ordem; mas suponha que, olhando um pouco adiante,
nós achássemos outra relação – uma igualmente importante, mas incompatível na
mesma performance vista acima? Harmonicamente, pode-se ouvir o c.3 como
resolvendo ao redor de Fá, e o c.4, ao redor de Sol. Neste caso, toda a progressão
dos cc.1-5 pode ser percebida como uma expansão do I-IV-V-I do primeiro
compasso. (Incidentalmente, a chegada da tônica no c.5, piano, após o fortíssimo
que antecede, é um belo exemplo de um tempo forte estrutural 26 anunciado por
uma correlação dinâmica negativa.)

26
Structural downbeat.
21

Quais entre as duas relações deve ser enfatizada? Ambas, certamente,


estão presentes, e ambas são importantes – porque ambas parecem resolver o
n
problema da disputa notória entre Mib – Mi do c. 3, em favor do Mi , assim, n
cada análise corroborando uma à outra. Seja qual for a decisão que tomemos,
ganha-se por um lado, mas perde-se por outro.
Felizmente, tais escolhas não precisam ser permanentes. E não deveriam
ser. Mesmo a performance que surge como uma revelação pode se tornar
aborrecida pela repetição. Esta é a razão do por que gravações inevitavelmente
perdem seu excitamento e por vezes, se tornam intoleráveis. (O fraseado de
Reginald Kell, 27 que parece tão sensível quando se ouve pela primeira vez a sua
gravação do Concerto para Clarinete, de Mozart, pode mais tarde, soar
excessivamente maneirista!) Além disso, à medida que o tempo passa, encaramos
a composição de um outro modo. O que agora é óbvio, pode ser esquecido e pode
ser reconsiderado novamente; o que agora parece obscuro, pode se tornar amanhã
um cliché. A interpretação deve levar em conta tais mudanças e renovar-se a partir
delas.
Compositores de música eletrônica insinuam, em razão da sua atividade
– às vezes afirmam explicitamente – que uma única e perfeita performance pode
realmente ser alcançada – aquela do próprio compositor. Agora, os compositores
podem ocasionalmente tornarem-se os melhores interpretes de si mesmos, mas não
necessariamente em todas as ocasiões. (Eu tenho certeza que temos todos os
exemplos do contrário.) Por causa de uma associação tão intima com sua própria
obra, os compositores quase sempre falham em entender como seus trabalhos
soam para aqueles menos familiarizados com eles; daí eles não serem de forma
alguma os juízes ideais da interpretação de seus trabalhos – seja por eles mesmos
ou por terceiros. A sua própria performance, por exemplo, pode deixar de destacar
pontos que precisam ser enfatizados pelo bem do ouvinte, ao mesmo tempo que
podem devotar grande cuidado em sutilezas que podem sequer serem ouvidas. Tais
performances pode ensinar bastante para aqueles que já possuem alguma
familiaridade com a obra; mas no caso de música eletrônica temos a peculiaridade
única da performance de um trabalho para o qual pode não haver sequer uma
partitura legível.
Pode-se argumentar que a música eletrônica difere em gênero da música
convencional, da mesma forma que o cinema difere do teatro. Nesta nova mídia,
é possível afirmar, o performer é a obra de arte. Certamente é verdade que, se uma
nova versão de um clássico do cinema fosse realizada hoje, usando o roteiro

27
Reginald Clifford Kell (1906-1981) foi um clarinetista inglês. (N.T.)
22

original de filmagem, esta seria considerada não como uma nova performance,
mas um filme inteiramente novo. Da mesma forma, por este ponto de vista,
qualquer alteração na “performance” de uma obra eletrônica consistiria em uma
mudança composicional ̶ performance e composição sendo consideradas, neste
caso, como uma só. Tal argumento pode, na verdade, clarificar a natureza da
música eletrônica, mas não prova a possibilidade de uma interpretação ideal.
Igualmente pode conduzir à concluso de que composições eletrônicas são sempre
imperfeitas.
De qualquer maneira, se decidimos que uma performance eletrônica é,
tanto quanto uma performance convencional, uma realização possível de uma
entidade musical independente, ou que seja a única incorporação da sua própria
música – em ambos os casos somo encarados com o fato de que música puramente
eletrônica é conhecida pela sua única versão. As múltiplas performances que,
como vimos, estão disponíveis em quase todas as outras formas de arte, sejam
temporais ou espaciais, pode muito bem ser a fonte de suas constantes auto-
renovação. Se assim é, então toda composição puramente eletrônica pode ser tão
intolerável quando repetida, tanto quanto qualquer filme, indiferente do quão
“artístico”, possa ser. (Quantas repetições do maior dos filmes – mesmo um dos
seus favoritos – alguém pode tolerar?) O controle absolutamente temporal possível
e necessário nestas mídias fixa permanentemente nossa taxa de varredura dos
objetos artísticos; e é isto, eu penso, mais do que qualquer outra coisa, que
realmente suaviza nossa resposta a elas. Tanto para o connoisseur quando para o
diletante, elas parecem empalidecer relativamente rápido; e o que falha em prender
a atenção do indivíduo tende, à despeito da continua renovação de novas
audiências, sair de circulação de uma vez. Tal previsão, certamente, de forma
alguma é dirigida como uma reflexão sobre a viabilidade dos meios eletrônicos;
ela meramente lança dúvidas sobre a eventual sobrevivência de qualquer obra
individual.
Para ser exato, os compositores eletrônicos são motivados por um desejo
de serem livres do mundo dos performers (ou, no mínimo, nem todos são assim
motivados). Os materiais da música tornaram-se tão complicados que em muitos
casos a realização eletrônica é agora a única possibilidade, ou a única que pode
reproduzir as imagens do compositor com razoável fidelidade. Afinal de contas,
quanto mais complexa se torna uma dimensão musical, menor liberdade de
interpretação é permitido. Uma linha de ária de Handel propositadamente simples
permite uma maior variedade de improvisação do que as linhas ornamentadas de
Bach, e com a crescente complexidade da harmonia do século XIX, a
improvisação tende a desaparecer por completo. No mesmo sentido, o rubato em
uma composição melódica de textura simples, revela-se impraticável em um
trabalho altamente polifônico. Hoje, dimensões como timbre e dinâmica estão
tentando atingir a complexidade e precisão como estruturas usufruídas por outras
dimensões, as quais, por seu turno, caminham para níveis mais avançados de
organização. Mesmo a mais cuidadosa e habilidosa composição orquestral do
passado é ainda reconhecível quando transcrita, por exemplo, para piano, da
23

mesma forma que a pintura tradicional preserva muito dos seus valores quando
reproduzidas sem cor. Mas alguns compositores estão agora caminhando em
direção a obras fundamentadas em cor tonal 28 em tal medida que seus trabalhos
serão muito pouco suscetíveis à transcrição quanto, por exemplo, a arte “op” 29 é
para a reprodução em preto-e-branco. Uma variação de timbre ou dinâmica pode
constituir uma “nota errada” comparável ao erro de altura de nota. Quando
percebemos que os mesmos compositores estão sempre investigando o uso da
escala microtonal ou algum outro sistema não convencional e de relações
temporais matematicamente intrincadas, é fácil entender por que a música assim
estruturada exigiria, não “interpretação”, mas uma extrema acuidade em todos
detalhes – uma impossibilidade, considerando-se a falibilidade da performance
humana.
Felizmente, para aqueles de nós que gostamos de tocar e cantar, algumas
das músicas do passado inda estão vivas; e à despeito dos proponentes de formas
musicais aleatórias e improvisatórias, e outras que tendem a diminuir o papel do
compositor e do interprete, existe uma grande quantidade de música não-eletrônica
sendo escrita hoje para as quais padrões antiquados de boa performance ainda se
aplicam. E embora a ideia de performance possa ser uma quimera, alguns
intérpretes são, apesar de tudo, melhores do que outros. Alguns são superlativos,
outros inaceitáveis. Apesar da impossibilidade de atingirmos a perfeição (e na
verdade, se estou certo, perfeição nesta área é um conceito sem significado), ainda
temos o dever de fazer o melhor possível.
Vamos retornar, então, ao critério previamente apresentado: aquele em
que uma performance válida depende prioritariamente da percepção e
comunicação do rítmico orgânico de uma composição. Isto sugere dizer que,
devemos primeiro descobrir o formato rítmico de uma peça – o que é que significa
a sua forma – e então tentar torna-la o mais claro possível ao nosso ouvinte. Eu já
tentei demonstrar como certos princípios rítmicos gerais sublinham unidades
formais comuns – a frase, o período, a forma canção em três partes; e eu também
sugeri que alguns destes princípios, operando em níveis mais altos dentro de
seções formais mais completas, podem ser invocados para explicar uma
composição inteira como um impulso rítmico global. Contudo, tais formas globais
podem se tornar claras na performance somente através de outro princípio: aquele
que diz que o todo é mais importante que qualquer uma de suas partes. Qualquer
conflito de interesse deve ser resolvido ao suprimir a reivindicação formal da parte
em favor daqueles do todo.
O Prelúdio em Lá Maior, de Chopin, oferece um pequeno, mas instrutivo
exemplo. (Existem, para ser exato, algumas evidências para que este Prelúdio não
deva ser considerado como uma composição completa em si mesma, mas apenas
como mais um entre os 24 Prelúdios que compõem o Opus 28. Em assim sendo, a

28
Tone-color.
29
Optical art (N. T.)
24

sua performance em contexto pode bem se diferenciar daquela que emerge da sua
suposta independência. Dito isto, vamos prosseguir).

Nesta pequena peça de 16 compassos, cada par de compassos de 3/4 estão


encapsulados tão proximamente que realmente ouvimos hipercompassos de 6/4
(cada um, é certo, começando com uma anacruse). Este metro é tão
consistentemente suportado pela estrutura motívica que ao se caminhar para o
final, quando o segundo compasso recebe um acento adicional, ouvimos isto como
uma síncope dentro do 6/4, ao contrário de um deslocamento métrico. O balanço
óbvio de 2-a-2 destes hipercompassos motívicos pode nos incitar a continuar esta
combinação em um nível ainda mais alto, atingindo um padrão uniforme. Porém,
qualquer tentativa como esta – seja baseada consistentemente na organização
hipermétrica de forte-fraco, ou revertendo isto em níveis mais alto – está obrigado
amostrar, talvez mais claramente do que o tema de Mozart, a deficiência de todas
as tentativas para invocar mecanicamente uma organização métrico de tempos em
um nível mais alto dentro do compasso (ou de compassos dentro de um
hipercompassos). O modelo resultante, uma vez que é indefinidamente repetível,
25

falha em dar suporte aos outros aspectos da forma musical, pois não adiciona ao
progresso da peça em seu caminho para sua meta. Esta é a razão pela qual o metro,
como sugeri, deve dar lugar a um princípio rítmico mais orgânico.
Nós devemos olhar mais atentamente, então, aos outros elementos
musicais e tentar desvendar a forma rítmica que eles sugerem. O crescendo nos
cc. 11-12, somado ao clímax melódico e a complexidade harmônica neste ponto,
pode nos levar a realizar este par de compassos, ou talvez o próximo par, forte;
porém, devemos resistir a isto. Estes compassos são harmonicamente os mais
ativos de toda a peça; transformar um deles em meta rítmica usando o padrão de
tempo forte 30 quebraria a progressão V–I–VI–II–I. Pelo contrário, vamos seguir
a sugestão que o compositor nos oferece através do paralelismo dos cc.1-2 e 9-10,
e dividir a peça em duas frases similares. Agora, como no caso do tema de Mozart,
podemos dar a cada frase o seu tempo forte inicial e cadencial, respectivamente, e
assim relacionarmos as duas frases como antecedente e consequente. O registro do
baixo também suporta este cenário. (O início de cada frase – como de cada
hipermetro – tem uma anacruse, da mesma forma que cada cadência é feminina;
entretanto, omiti estes detalhes a fim de simplificar o diagrama.)

Mas o que funcionou tão bem no caso do Mozart aparentemente falha aqui. As
frases são muito similares, considerando que cada uma procede duas vezes da
dominante para a tônica. E embora a primeira frase não termine em uma cadência
perfeita, não obstante ela marca de forma inconteste o seu fechamento mais cedo
na peça. Assim, ao considerarmos a independência de cada frase, falhamos em
relação a unificação do todo.
Com o intuito de descobrir qual deveria ser a forma global, analisemos o
que controla a linha melódica e harmônica. Este exemplo (no qual cada compasso
grafado representa um hipercompassos de 6/4) mostra como ouço a peça:

Uma simplificação adicional de cada parte resulta no seguinte:

30
Downbeat status.
26

Mas isto indica que o global pode ser ouvido como uma aumentação da segunda
metade – ou ainda, a segunda parte como uma diminuição dentro do todo! Agora,
esta relação pode ser salientada enfatizando aqueles hipercompassos que mais
claramente expressam a linha, nominalmente os cc. 1, 4, 5 e 8. Dentro de cada
frase, então, nós ainda temos nosso modelo . Mas no próximo
nível, se desejamos fazer a aumentação tão clara quanto possível, devemos
preservar o mesmo padrão para o todo. Isto significará depreciar tanto a cadência
do antecedente quanto o início do consequente. Para a composição inteira, então,
temos:

(Pode ser pura coincidência que, de acordo com a análise acima exposta, as duas
metades do Prelúdio acabem sendo retrógrados transpostos uma da outra. Porém,
esta relação só vem confirmar o quadro rítmico final!).
Note mais uma vez que as posições dos compassos fortes não são
necessariamente determinadas pelas marcas de dinâmica. Aqui, como quase
sempre, considerações lineares e harmônicas tomam precedência. A chegada de
um compasso forte nestes casos deve ser proclamada por um ajuste temporal
cuidadoso ao contrário de uma simples acentuação. Uma complicação adicional é
agora causada pela ocorrência de unidades (como o hipercompasso 4) que são
fortes em seu contexto local, mas pertencem a um grupo que se torna fraco em um
nível mais alto. Este é, naturalmente, o resultado da subordinação das demandas
da frase individual em relação à forma global. Na verdade, de tal forma é o efeito
unificador do enfraquecimento da cadência do antecedente e do tempo forte inicial
do consequente, que de fato não estamos mais tocando a peça como duas frases
balanceadas, mas como uma única e longa frase.
Naturalmente, em diferentes contextos, outras modificações dos mem-
bros individuais fornecerão meios apropriados para ligar grupos de frases 31 em
unidades mais sucintas. Em períodos de oito compassos, por exemplo, se a quebra
causada pelos dois compassos fortes consecutivos cc.4 e 5 parece excessiva,
muitas vezes teremos a impressão de que uma das seguintes leituras poderá ser
sugerida pela estrutura de frase:

31
Phrase-groups.
27

(Para o primeiro, ver Beethoven, Sonata para Piano Op. 13, Adagio, cc.1-8; para
o segundo, a Sonata para Piano Op. 90, Rondo, cc. 1-8). A frase de oito compassos
– como é chamado às vezes o modelo 2+2+4 a-a-b, para distingui-la do modelo
de período bipartite – emparelha, em uma escala maior, uma forma que já vimos
na primeira frase do tema de Mozart. Isto sugere normalmente, uma leitura
correspondente em dois níveis (Ver Beethoven, Sonata para Piano Op. 2, No. 3,
Allegro de abertura, cc.1-8).
O problema que mostra sua cara feia no meio do Prelúdio de Chopin foi
o de um fechamento prematuro: a criação de uma impressão de finitude muito cedo
na peça, normalmente através de uma cadência perfeita na tonalidade da tônica.
Neste caso a cadência não foi perfeita, apesar de autêntica; e o perigo de
encerramento era real o suficiente para nos impelir a uma atitude que a tornaria
óbvia. No exemplo de Mozart, por outro lado, encontramos a cadência perfeita
tanto no final do primeiro período quanto no final do tema integral. Aqui, contudo,
ambas as cadências eram fortemente femininas – diferentes daquelas do Chopin,
que eram femininas apenas em detalhe (uma vez que o baixo entra no primeiro
tempo de um hipercompasso). Além disso, a última cadência do Mozart deixa uma
importante linha melódica (subindo ao sexto grau) sem resolução. Se olhamos
dentro das variações que seguem, encontramos várias maneiras de exploração e
desenvolvimento de ambas características; mas somente na coda é que a linha
desce à tônica com uma cadência masculina (Note que os reais compassos desta
coda estão em desacordo com aqueles grafados. Uma versão escrita mais acurada
provavelmente combinaria o último compasso completo da variação do Allegro
com a primeira metade do compasso seguinte como um único compasso em 3/2.
A continuação em 4/4 traria, então, a coda para o seu próprio modelo métrico; ver
o exemplo abaixo)
28

A técnica composicional de Mozart desta forma é consistente com as que


aplicamos no Prelúdio de Chopin: quando um fechamento prematuro ameaça,
tente evita-lo executando a cadência mais levemente. Mesmo uma cadência
perfeita masculina pode muitas vezes ser tocada de tal forma a soar estrutu-
ralmente feminina – colocando-se o acento cadencial no compasso que precede a
tônica. Este tipo de performance enfatiza o fato de que a descida melódica para a
tônica é, neste sentido, apenas um detalhe local, e que a linha real permanece sem
resolução a fim de adiar a sua descida definitiva. Certamente, existe muitos casos
em que o ajuste do acento é desnecessário – como quando uma elisão começa uma
nova seção ao mesmo tempo que o final da anterior, ou quando uma anacruse
tradicional empresta parte do tempo necessário para a finalização da cadência
plena. Ainda assim, existem muitos exemplos onde o fechamento pode ser
postergado exclusivamente desta maneira. No minueto clássico, por exemplo, se
este for tocado pela primeira vez estruturalmente feminino, e depois do trio como
masculino, o todo atingiria uma unidade impossível de outra forma. Pode-se levar
este princípio adiante, se não o considerarmos tão literariamente. Eventualmente,
um teste de uma boa performance está no quanto o ouvinte sabe onde está, mesmo
29

em uma obra na qual ele tenha pouca familiaridade. Uma boa pista para tal
orientação poderia estar na relativa força da cadência – mais leve no retorno ao
início, quando a sensação de continuidade deveria ser mais forte do que a sensação
de chegada, e mais pesada em direção ao final, à medida que a meta se torna cada
vez mais importante. Mesmo em movimentos que parecem permanecer incorrigi-
velmente femininos, algumas diferenciações ainda podem serem feitas. No caso
da Polonaise em Lá Maior, de Chopin, por exemplo, uma ênfase inteligente sobre
uma das sincopas 32 escondidas na cadência pode fazer o último acorde soar, se não
precisamente masculino, pelo menos parecido a uma tônica forte postergada
através de uma suspensão da dominante.

A discussão acima tocou em um aspecto de um problema mais


abrangente, mais precisamente, o que fazer com uma repetição literal. Em
instancias específicas isto geralmente assume o aspecto de um tipo de nó górdio, 33
que pode apenas ser desfeito por métodos alexandrinos – isto é, cortando-o. Porém,
a esta altura, eu gostaria de interpor outra das minhas tolas questões: existe esta
coisa de repetição literal em música? Eu não pretendo sugerir algo tão profundo
quanto a impossibilidade heraclitiana de passar pelo mesmo rio duas vezes, ou
algo tão trivial quanto o fato de não se poder tocar a mesma passagem duas vezes
exatamente iguais. Eu posso explicar de maneira mais fácil dando um exemplo,
pelo qual retornamos à Polonaise de Chopin. Esta peça é notável pelas seis

32
Cross-rhythm.
33
O nó górdio é uma lenda que envolve o rei da Frígia (Ásia Menor) e Alexandre, o Grande.
É comumente usada como metáfora de um problema insolúvel (desatar um nó impossível)
resolvido facilmente por ardil astuto ou por "pensar fora da caixa". (N.T.)
30

divisões do primeiro período, cada um repetido literalmente: AABABA, Trio,


ABA – totalizando seis partes A. Entretanto, o segundo A é intrinsicamente
diferente do primeiro. Este é precedido por um silêncio e seguido por sua repeti-
ção; o segundo é precedido pelo primeiro e seguido por B. O terceiro é agora
precedido e continuado por B, e o quarto é precedido por B, mas seguido do Trio;
e assim por diante. Minha argumentação é que cada parte é influenciada por sua
posição, pelo precede e pelo que segue, assim que cada parte, em aspectos
importantes, são diferentes umas das outras.
Em geral, não existe nada que possamos chamar de verdadeira redun-
dância em música. No caso de um motivo reiterado, por exemplo, não podemos
dizer “Agora entendemos, assim vamos fazer alguma coisa diferente”. O ponto
recai precisamente no fato não de termos nada coisa diferente além de outra
repetição, e mais outra, e outra ainda. (tomando um exemplo da comunicação oral,
compare o efeito cumulativo do Rei Lear “Never, never, never, never, never!”) É
verdade, claro, que há limites psicológicos e estéticos quanto ao número de repeti-
ções possíveis. O que parece à princípio efetivo, rapidamente se torna cômico e
eventualmente aborrecido. (Tente alguns mais “never” na frase do Rei Lear.) É
somente a partir daqui que podemos falar em redundância – quando cada nova
afirmação não adiciona nada de novo. Aqui, é claro, estamos novamente olhando
para o papel de parede de Satie 34 – e para alguns dos filmes de Warhol. 35
Do ponto de vista do performer, o problema prático surge quando ele se
depara com a decisão de fazer ou não uma repetição que parece puramente
convencional. Mas com que frequência essas repetições são puramente
convencionais? Por que, por exemplo, Beethoven insistiu tanto na repetição da
exposição da Eroica? Neste e outros casos semelhantes, pode-se apresentar uma
série de razões, todas suficiente para explicar tal postura.
Em primeiro lugar, no caso de uma obra nova, a repetição da exposição
dá ao público outra oportunidade de absorver seu material. Tal consideração não
é mais válida para as sinfonias de Beethoven, mas poderia muito bem ter se sido
crucial para sua compreensão nas primeiras apresentações.
Muito mais importante hoje é a questão das proporções. Veja o primeiro
movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven. É tão curto que não pode haver
desculpa para suprimir a repetição; no entanto, é o que geralmente acontece – com
efeitos adversos. As suas quatro seções – exposição, desenvolvimento,
recapitulação e coda – têm quase o mesmo tamanho que o essência do movimento
é ofuscada pela simples alternância de partes iguais: exposição-desenvolvimento-
exposição-desenvolvimento (sendo a coda é um segundo desenvolvimento). A

34
A música ambiente, ou em francês musique d'ameublement (às vezes traduzida mais
literalmente como música-mobília), é música de fundo tocada por artistas ao vivo. O
termo foi cunhado por Erik Satie em 1917. (N. T.)
35
Andy Warhol (1928-1987), nascido Andrew Warhola, foi um pintor e cineasta norte-
americano, bem como uma figura maior do movimento de pop art. (N. T.)
31

repetição da exposição interfere no equilíbrio necessário, fortalecendo as seções


expositivas: AABAC.
Um ponto que muitas vezes parece insignificante, mas nem sempre é o
caso, diz respeito ao aparecimento frequente de um retorno transicional como um
primeiro final. Mesmo os poucos compassos neste mesmo ponto na Eroica são
bons demais para passarem despercebidos. Tão ou mais importante é o primeiro
final da Sinfonia Italiana, de Mendelssohn. Aqui, o compositor introduz um novo
tema, ao qual ele não voltará a anunciar até a coda. A supressão da primeira reprise
arruína o efeito formal pretendido.
Mesmo onde não há tal transição, as diferenças de progressão harmônica
entre retorno e continuidade são frequentemente tão impressionantes que sugere
que esse contraste é intencional por parte do compositor e essencial para o
design. Um exemplo simples pode ser encontrado na Sonata em Dó Menor, Op.
10, no. 1, de Beethoven. A súbita abertura do desenvolvimento em Dó Maior, após
o tema de final em Mi Bemol Maior, é uma violenta guinada tonal que, no
contexto, só pode ser justificada pelo contraste com a relação mais comum de Mi
Bemol com Dó Menor, proporcionada pelo retorno ao início. Um exemplo mais
sofisticado e problemático é o ponto correspondente no primeiro movimento da
Sonata em Si Bemol Menor, de Chopin. Aqui, o próprio retorno cria uma resolução
deceptiva surpreendente – mas é menos surpreendente e mais comum do que a
resolução que conduz ao desenvolvimento. 36
Provavelmente, a justificativa mais genérica para as repetições
convencionais desse tipo é a nova luz que elas lançam sobre o material anterior.
Esse princípio funciona de maneira mais óbvia na forma binária da suíte, que
afinal, é uma antecessora do padrão de repetição da forma sonata. Se dividirmos o
material musical de um movimento de suíte em Tema e Cadência, o padrão
convencional para tonalidades maiores se parece com este:

A observação de todas as repetições indicadas relacionará a Cadência ao Tema de


três maneiras diferentes: Cadência em V imediatamente seguida por Tema em I,
Cadência em V prosseguindo na mesma tonalidade e Cadência em I seguida por
Tema em V.
Relações harmônicas flutuantes como as acima podem, é claro, ser refle-
tidas em variações sutis de performance. Na verdade, seria um movimento muito

36
Ver Leonard Marcus, A Musical Mutilation, in The Juilliard Review, IV/3 (Outono,
1957), pp. 6-16, para uma discussão deste ponto com alguns exemplos bem escolhidos.
32

simples, que não admite qualquer tipo de reinterpretação durante as repetições de


suas partes. Em vez de lamentá-las como relíquias de uma convenção desatua-
lizada, devemos encará-las como oportunidades para o reexame do material
musical – assim como os intérpretes barrocos as festejavam como oportunidades
para novas ornamentações. A exposição sêxtupla na Polonaise de Chopin que deu
início a esta discussão deve, portanto, ser considerada mais um desafio do que uma
simples tarefa. Teoricamente, pode até ser viável tocar a peça de forma a tornar
cada execução do tema tão característica de seu papel específico que um ouvinte
atento, escutando fora do contexto, poderia identificar sua posição no todo.
A possibilidade de tantas leituras diferentes para uma única seção pode
levantar algumas dúvidas. Eventualmente podemos considerar que não estamos
mais alcançando uma performance que emana da própria estrutura musical, mas
uma "interpretação" mais ou menos arbitraria? Certamente, a busca da variedade
pela simples variação nos expõe a esse perigo, e por isso devemos estar sempre
seguros do nosso propósito ao adotar leituras alternativas. Não apenas cada
variação da repetição deve ser consistente com as intenções formais expressas pelo
compositor e suas orientações para a execução, mas também deve ser
especificamente justificada por alguma complexidade na partitura que a esclarece.
Ao determinar como tais distinções devem ser realizadas, o intérprete
deve novamente considerar cuidadosamente a forma rítmica da composição e de
suas partes. A segunda Valsa Op. 39, de Brahms, uma forma de canção em
miniatura, mas que também sugere uma mini forma sonata, pode servir de
exemplo. Os primeiros oito compassos completam uma tonicização da dominante,
Si Maior. Se estivermos voltando à tônica do início, não vamos querer que seja
ouvida como uma verdadeira modulação; portanto, devemos minimizar a cadên-
cia, tornando-a feminina, antecipando o tempo forte cadencial para o penúltimo
compasso. Na segunda vez, para estabelecer a dominante com mais ênfase,
devemos adiar o tempo forte até o compasso final. Como resultado, na primeira
vez, a dominante caminhará tranquilamente de volta à tônica inicial; na segunda
vez, soará como um verdadeiro ponto de chegada. (Por causa do crescendo para o
último compasso indicada em ambas as vezes, esta distinção deve ser feita por
ajuste de tempo, isto é, atrasando ligeiramente o último compasso na segunda vez.)
É mais difícil na segunda metade da peça evitar que a cadência para a tônica no
final soe conclusiva na primeira repetição. Aqui, novamente, devemos interpretá-
la como feminina; e devemos destacar a linha ascendente no baixo, abrangendo os
dois últimos compassos e conectando-os com no início da seção (A, no exemplo).
Na segunda vez, essa linha pode ser interrompida por uma leve pausa no ponto
culminante criado pelo II6 no meio do penúltimo compasso; a descida para a tônica
final no baixo agora pode ser usada para efetivar um final masculino (B, no
exemplo).
33

Muitas vezes, uma frase cadencial, confirmando a tonalidade de uma


seção, pode igualmente ser lida de duas maneiras. No Adagio da Sonata em Mi
Menor Nº 34, de Haydn (anteriormente Nº 2), a dominante, Ré Maior, é
estabelecida por uma cadência no c.18, mas isto é seguido por quase três compas-
sos de confirmação. Se esta pequena frase for tocada como um sufixo 37 feminino
para a tonicização de Ré Maior do c.18, ela prepara com mais nitidez o retorno à
verdadeira tônica da exposição na repetição. Mas os mesmos compassos podem
ser tocados com um crescendo até o último Ré Maior, que converte o c. 20 na meta
de toda a seção. Esta versão masculina por sua vez, torna a mudança repentina de
tonalidade do desenvolvimento que segue especialmente eficaz. Aqui, os dois
primeiros compassos – a única aparição do motivo inicial na dominante – servem
como uma anacruse para a exposição em Mi Menor que vem depois.

37
Tag.
34

O mesmo tipo de ajuste, pensando em grande escala, pode ser aplicado


na integra para o todo em uma forma sonata, de modo que mesmo a repetição do
desenvolvimento–cum–recapitulação não precisa parecer redundantes. A Sonata
para Piano em Lá Menor, de Mozart (K. 310) exibe a seguinte estrutura tonal: I-
II na exposição, III-V# no desenvolvimento, e I-I (permanecendo em menor) na
recapitulação. Exposição e recapitulação terminam com frases semelhantes de
cinco compassos, cada uma elaborando duas vezes uma cadência simples I-II6/5-
V-I na tonalidade apropriada. Devido a esta natureza circular, é fácil tocar cada
frase como uma expansão de seu primeiro acorde (que, sendo abordado como uma
elisão da frase anterior, pode ser ouvido como forte), ou como se encaminhando
para a sua tônica final (que, em virtude de sua posição na frase e seu layout
pianístico, pode igualmente ser ouvido como forte). Em outras palavras, as
cadências de exposição e recapitulação facilmente admitem tanto a interpretação
masculina quanto a feminina. Se alguém deseja agora fazer as repetições
indicadas, pode-se sinalizar suas intenções em cada vez pela versão feminina, que
irá suavizar as conexões III-I (do final da exposição de volta ao início) e I-III (de
do final da recapitulação para o início do desenvolvimento). Na repetição da
exposição, um final forte em III irá manter a tonalidade na continuação para o
desenvolvimento; e, claro, uma cadência masculina no final da segunda
recapitulação confirmará ritmicamente a tônica final. (Veja o exemplo seguinte.
Deve ser observado que a frase em questão é a cada turno, a última das três frases,
35

todas afirmando cadencialmente a tônica local. Ajustes de peso entre essas frases
podem fornecer outros meios de distinguir as duas leituras.)
Do ponto de vista puramente prático, é claro, a decisão de incluir ou
suprimir uma repetição específica deve depender das exigências de cada ocasião.
O primeiro final do Moderato da Sonata em Si Bemol, de Schubert, contém
material que não aparece em nenhum outro lugar do movimento, e o contraste de
seu direcionamento harmônico justifica a surpreendente modulação que constitui
o segundo final. No entanto, quem seria ousado o suficiente para repetir esta
exposição em um recital público?
36

Hoje, é provável que estejamos impacientes com toda repetição, tanto na


composição quanto na performance. Por causa de nossas próprias tentativas de
criar uma música de contínua transformação, examinamos com desconfiança até
mesmo os clássicos em busca de traços de tautologia. Tendemos a esquecer que,
de todos os efeitos artísticos, a novidade está fadada a ser a menos permanente.
Estamos um pouco na posição do Sr. Gall, no Headlong Hall, de Peacock. 38 Disse
ele, referindo-se à arquitetura paisagística: “Distingo o pitoresco e o belo, e
acrescento a eles, na disposição do terreno, um terceiro e distinto caráter, que
chamo de imprevisibilidade”. Ao que o Sr. Milestone respondeu: "Diga, senhor,
por qual nome você distingue esse personagem, quando uma pessoa anda pelo
terreno pela segunda vez?" Essa troca torna-se especial quando percebemos que,
em certo sentido, a repetição interna é apenas outra forma que nos confronta
sempre que ouvimos uma obra conhecida pela segunda vez. Em ambos os casos,
estamos contornando o caminho pela segunda vez.
O Sr. Milestone foi bem respondido, pelo menos no que diz respeito ao
drama, por F. L. Lucas, 39 cujas observações, com uma pequena mudança, são
aplicáveis também à música: "A surpresa pode ser deixada para o melodrama e
alguns tipos de comédia; a Tragédia reserva em sua aljava duas flechas mais
pontiagudas do que esta: Suspense e Ironia Trágica. De ambas, obtemos um efeito
que não se esvairá em um flash e que não se esgotará com o tempo. Para a pessoa
inquieta na estalagem não é o sapato atirado descuidadamente no quarto ao lado
que representa a fonte de agonia, mas o suspense da espera do segundo sapato
cair, 40 “Suspense aqui significa, não imaginar o que vai acontecer, mas esperar
pelo que sabemos que vai acontecer. Isso nos proporciona não apenas agonia, mas
também prazer, ou talvez os dois, em um casamento inextricavelmente parado-
xal. Aplicando este princípio à música, podemos entender por que, não importa
quantas vezes ouçamos a Eroica, o momento antes da recapitulação nunca perde
seu efeito. Na verdade, quanto melhor conhecemos a peça, mais inevitável e,
portanto, mais satisfatória, a resolução nos parece.
Provavelmente não existe na música a verdadeira inevitabilidade, exceto
a cadência final. (O analista que insiste nesta ideia, deve ser desafiado a deduzir o
global a partir da exposição em uma obra clássica desconhecida – ou ainda a partir
da sua exposição, deduzir o seu desenvolvimento. Ou talvez ele deva ser avaliado
em versões alternativas da mesma composição às vezes oferecidas por certos
compositores, por exemplo, Liszt. A revisão pode ser sempre justificada como

38
Headlong Hall é uma novela de Thomas Love Peacock (1785-1866), seu primeiro
trabalho de ficção de folego escrito em 1815 e publicado em 1816. (N. T.)
39
Frank Laurence Lucas (1894-1967) foi um estudioso clássico inglês, crítico literário,
poeta, romancista, dramaturgo, polemista político, membro do King's College,
Cambridge e oficial de inteligência do Bletchley Park durante a Segunda Guerra
Mundial. (N. T.)
40
L. F.Lucas, Tragedy, Serious Drama in Relation to Aristotle's Poetics, rev. ed., London:
The Hogarth Press, 1957. p. 106.
37

mais "inevitável" do que o original?) No entanto, um teste de uma boa composição


é aquele em que as repetidas audições criam no ouvido uma ilusão de
inevitabilidade que é fortalecida pela maior familiaridade.
Lucas prossegue apontando que "onde os efeitos surpresas são
amplamente concebidos, eles podem continuar a ser eficazes como efeitos de
suspense". 41 Isto significa dizer, se posso combinar nossos dois autores em um
mix metafórico, quando andamos ao redor terreno uma segunda vez, esperamos
que o segundo sapato caia. Podemos observar este princípio até mesmo em um
exemplo tão simples (e sem dúvida, “não muito elaborado") como o acorde
"surpresa" na Sinfonia No. 94, de Haydn. Pode ser uma das razões por que, na
música bem escrita, cadências enganosas e modulações distantes repentinas nunca
perdem seu poder de surpreender. Mas muitas vezes há outro fator agindo aqui, e
este depende do performer. Mesmo em uma peça que sabemos de memória, um
bom intérprete pode nos enganar pela cadência e nos surpreender pela modulação.
A performance convincente é aquela que absorve o ouvinte tão profundamente
para dentro do fluxo da música que, embora ele possa saber perfeitamente tudo o
que está por vir, ele ainda pode saborear cada momento como se fosse a primeira
vez.
Sobre isto comenta Sessions: "O ouvinte... reagirá ao gesto musical
apenas enquanto o atinge de primeira, ou enquanto ele é capaz de apreendê-lo
como se fora recriado e não como algo repetido mecanicamente. O agente desta
recriação é a imaginação do intérprete". 42 E novamente, "Se a música consiste em
movimento, ou do que chamei de gesto interior, é o intérprete que fornece o
impulso e a energia através dos quais o movimento e o gesto tal como concebido
na imaginação do compositor, recebe uma forma concreta. ... Quanto mais
verdadeiro for ele capaz, nestes termos, de se envolver completamente com a
música, para dar a ela seu próprio sentimento de ritmo e movimento, mais vital
será a performance”. 43
Por esses termos, então, é melhor que não possa haver uma interpretação
ideal. Pois, se existisse, poderíamos há muito ter deixado de ouvir Mozart e
Beethoven. É a vitalidade renovada de cada performance que os mantém vivos.

41
Ibid., p. 106.
42
Op. cit., pp. 77-78.
43
Ibid., p. 84.
38

III


A GALEIRA DE QUADROS

Forma e Estilo

Estilo, de acordo com Whitehead, é "a moralidade máxima da mente". 44


Se assim for, então a compreensão e a comunicação do estilo musical podem muito
bem ser a moralidade última da performance – isto é, sua responsabilidade final.
Todos nós tínhamos uma noção um tanto nebulosa sobre estilos musicais e sua
relação com a performance, embora pensássemos que fosse mais claro do que
realmente era. Bach deve ser tocado de forma direta; Beethoven, apaixo-
nadamente; Chopin, com rubato. Mozart deve ser tocado “Classicamente”;
Schumann, “Romanticamente”; e assim por diante. O que essas generalidades
normalmente representavam não era mais do que uma indicação de que alguns
compositores deveriam ser tocados com mais "liberdade" do que outros, com a
liberdade apropriada incrementada ao longo dos anos em uma linha quase
ininterrupta de Bach a Debussy, até que Stravinsky repentinamente quebrou a
continuidade com sua insistência no rigor absoluto. Uma consciência histórica
mais sofisticada agora nos mostra como era superficial e até mesmo falsa essa
visão do estilo musical. Sabemos sobre as licenças rítmicas permitidas em Bach,
sobre o rubato de Mozart e sobre a exigência de Chopin por exatidão métrica. Hoje
vamos tão longe em nossas tentativas de reconstruir interpretações historicamente
corretas que muitas vezes perdemos a própria música. Esquecemos que, até muito
recentemente, composição e performance eram quase inseparáveis, que o conceito
atual de interpretação como um objeto de estudo independente e uma arte em si
mesma é comparativamente novo e muitas vezes totalmente equivocado. Além
disso, as regras de performance do passado nunca foram feitas para serem
aplicadas de forma restritiva. Elas nunca foram concebidas para serem aplicadas:
elas eram – na medida em que existiam – meramente expressões da relação

44
Alfred North Whitehead, The Aims of Education. Nova York: The Macmillan Co., 1929,
p. 19.
39

necessária entre a forma musical e sua expressão física. Considerá-las mais


literalmente do que isto hoje em dia, é interpretá-las equivocadamente.
Idealmente, qualquer estilo musical completo deve pressupor
inequivocamente a sua performance apropriada. Por "estilo completo", quero dizer
aquele que inter-relaciona em uma unidade abrangente todos os aspectos da
composição musical: tempo, métrica, ritmo, melodia, harmonia, forma. Ainda
existe, mesmo em dias historicamente conscientes, uma grande confusão sobre
esse ponto. Falamos de "A Fuga", como se uma fuga de Beethoven tivesse mais
do que ligações superficiais em comum com uma outra de Bach ou de Stravinsky.
Uma descrição de Ionization, afirma que ela é em forma de sonata, sem questionar
o que a sonata-forma pode significar em uma música sem estrutura de altura. 45
Forma é um aspecto essencial do estilo – na verdade, deve resumir todos os
aspectos de um estilo. Quando este não é o caso, o estilo é, portanto, incompleto –
uma crítica que, como veremos, pode ser aplicada a algumas fases do romantismo
do século XIX.
As características de estilo são vistas mais claramente em comparações e
contrastes. Confrontados por um único quadro, não podemos ter certeza se é um
Rembrandt ou um Maes; em uma galeria, ao lado a outras obras destes dois
mestres, eles podem proclamar sua identidade de forma inequívoca (mesmo em
uma daquelas galerias hostis que se recusam a rotular suas possessões). O que
proponho, portanto, é um pequeno passeio por um museu onde possamos
comparar e contrastar as características dos estilos musicais que nos são mais
familiares. Começaremos pela sala marcada como Barroco Tardio, passaremos
(pulando uma pequena sala com uma variedade de denominações como Rococó,
Galante, etc.) para aquela marcada Clássica, prosseguiremos para outra chamada
Romântica e terminaremos com uma breve olhada na sala Romântico Tardio,
talvez com uma olhada através da porta Moderno. É claro que será impossível
examinar cada período em todos os seus detalhes; então, proponho concentrar nos
aspectos de ritmo e design que influenciam a performance de forma mais óbvia.
Certamente, o estilo de nosso primeiro período, a era de Bach e Handel,
é mais marcadamente caracterizado por um aspecto rítmico importante: a
uniformidade de seu pulso métrico. Isso, por sua vez, é apenas uma faceta de uma
regularidade que permeia a textura da música. Como resultado, o movimento
típico deste período é de fato um movimento, ou seja, uma peça composta em um
único andamento invariável. Certamente, existem exceções devidamente rotuladas
como fantasias; mesmo assim, permanece a regra de que cada andamento deve ser
representado por uma unidade ampla e relativamente autocontida. Mesmo quando
um movimento justapõe duas ou mais dessas unidades em tempos claramente
contrastantes, muitas vezes há uma relação aritmética implícita que, se observada
na performance, os unifica. (Ver, por exemplo, a análise de Arthur Mendel da Fuga

45
Ver Nicolas Slonimsky, Music Since 1900, 3rd ed., New York: Coleman-Ross Co., Inc.,
1949, p. 340.
40

St. Anne, de Bach.) 46 Nessa música, eventos do mesmo tipo tendem a acontecer na
mesma razão de velocidade ou em mudanças de velocidade precisamente
ajustadas, sejam estes eventos ciclos de tonalidades, pequenas progressões
harmônicas ou sequências de motivos melódicos. No melhor desta música, a
textura contrapontística, real ou implícita, cria uma hierarquia de eventos, cada um
progredindo em seu próprio andamento, mas todos sob um controle métrico estrito
que se estende desde a frase inteira até a menor subdivisão do tempo.

46
Arthur Mendel, A Note on Proportional Relationship in Bach Tempi, in The Musical
Times, No. 1402 (Dez. 1959), pp. 683-85.
41
42
43

Veja, por exemplo, o episódio que começa no c.28 do primeiro


movimento Allegro, do Concerto para Cravo em Ré Menor, de Bach. (Veja o
exemplo de música nas páginas anteriores que, por razões a serem explicadas mais
tarde, começa no c.26.) Aqui, seis compassos (cc.28-33) formam uma área de
relativa uniformidade, uma vez que consiste em um modelo de 2-compassos
seguido por duas sequências; este é o padrão geral da pequena passagem. Por sua
vez, cada grupo de 2-compassos é articulado como um par, pela imitação regular
entre o primeiro e o segundo violinos. Essa organização impõe um círculo de
quintas a cada compasso dentro do movimento harmônico global. Em cada
compasso, a organização dupla é prolongada pelo movimento do baixo, e a
posterior divisão de cada meio compasso em colcheias é indicada pela figura da
mão direita do cravo. Que esta figura não é mero preenchimento, mas sim,
motívica, é indicado pelos dois compassos anteriores no cravo, que preparam o
arpejo de semicolcheia, inicialmente em colcheias e depois em semicolcheias, e
também pela forma como a figura é estendida no final de cada unidade de 2-
compassos, a fim de se preparar para a próxima.

Podemos avançar ainda mais. Os tempos fracos de cada compasso


recebem articulação especial da viola, e a metade fraca de cada tempo é realçada
pelo salto de oitava na mão esquerda do cravo, bem como pela melodia interna
implícita na mão direita (indicado por setas no exemplo). Mas mesmo entre esses
44

meios tempos fracos, alguma diferenciação é feita. Aqueles do primeiro tempo


recebem um acento especial em virtude do motivo do violino principal (conforme
indicado por uma marca em staccato presumivelmente autêntica), e o mesmo
motivo afere uma sincopa à metade fraca do terceiro tempo. Finalmente, devemos
notar que, assim como a passagem foi introduzida por meio de uma diminuição
progressiva do arpejo do cravo, ela é deixada por uma diminuição do tamanho da
sequência (com seu consequente efeito de aceleração): a continuação (cc.34-39)
reduz a sequência primeiro a um compasso, depois a meio compasso, antes de se
conduzir para a cadência. 47
O mesmo conceito de hierarquia métrica pode ser utilizado para explicar
certas passagens intrigantes, entre elas a famosa passagem do compasso 23 do
primeiro Prelúdio do O Cravo Bem Temperado. Qual nota pertence ao acorde, o
Si ou o Dó? O compasso deve ser ouvido como uma diminuta ou um acorde de
supertônica alterada? A chave está em uma análise segundo as linhas já sugeridas.
Cada compasso é, obviamente, dividido em dois por reiteração exata; cada
semínima é articulada como o extremo inferior ou o extremo superior do motivo
de meio compasso. Mas é o movimento de colcheia que nos interessar
particularmente. Apesar da repetição interna das últimas três semicolcheias do
motivo, cada colcheia ataca um membro diferente do acorde, sugerindo uma
harmonia básica em quatro partes sob uma aparente textura a cinco vozes; mas, ao
mesmo tempo, a sincopa em semicolcheias (2 + 3) + 3 ou 2 + (3 + 3) impede a
monotonia. Na performance, entretanto, o padrão regular deve ser realçado à
despeito da sincopa, que é motívicamente evidente sem maior ênfase.

47
Desde que escrevi o acima, tive o prazer de ler uma análise parecida do ritmo de Bach
por Henri Pousseur. Veja o seu The Question of Order in New Music, in Perspectives
of New Music, V / 1 (Out-Inv. 1966), pp. 95-96.
45

Se esta leitura for mantida, o compasso em questão se revelará


automaticamente. Ambos os acordes podem ser ouvidos – primeiro a sétima
diminuta e depois a supertônico. O compositor fez uma preparação para um longo
pedal da dominante ao combinar aqui dois compassos em um. O intérprete pode
realçar isso enfatizando o soprano durante a primeira exposição, e na sequência
destacar o movimento da voz interna entre Si e Dó durante a repetição (veja o
exemplo abaixo). Talvez este compasso, com sua dupla harmonia, seja uma
justificativa para o design repetitivo persistente de todo o Prelúdio.
Com relação a isso, é importante perceber que a relação Si-Dó, que alguns
podem descartar como um mero detalhe de condução de voz, poderia estar
aparentemente nas considerações de Bach desde os primeiros estágios da
composição deste Prelúdio. Isto desempenha um papel marcante, embora de uma
forma diferente, nos primeiros rascunhos (reproduzidos na edição de Hans
Bischoff, agora publicada pela Schirmer and Kalmus).

Deve-se observar ainda que no Prelúdio nº 2, em Dó Menor, também


construído em um design repetitivo, a aproximação para o pedal da dominante é
novamente anunciada por uma duplicação harmônica dentro de um compasso, mas
neste caso, de outra forma. Desta vez (c. 18) é efetivado por uma sétima de
passagem no baixo. (A influência que uma análise desse tipo pode ter sobre uma
decisão quanto ao exato instrumento para o qual Bach estava compondo, ou quanto
à relevância do conceito de notes inégales para o intérprete dessa música, deixo
para as considerações dos historiadores.)
46

O motivo sincopado mencionado acima é um pequeno exemplo de como


as ambiguidades métricas podem ser usadas para compensar uma quadratura que
de outra forma não seria atenuada. Em ritmos ternários, a hemíola é comum nas
cadências, mas de forma alguma restrita a elas. Uma ambiguidade de alcance
maior, estritamente controlada e eventualmente resolvida, é mostrada no início do
movimento do concerto já examinado. Embora notado em 2/2, o primeiro tema
também pôde ser ouvido em 3/2. Esta possibilidade é deliberadamente explorada
pelo solo que se segue.
Na verdade, o compasso binário só é estabelecido de forma inequívoca
no episódio anteriormente analisado. Nesse ponto, podemos ver que o compositor
tem brincado com o ternário dentro de uma firme divisão binária de mínimas e de
mínimas para semínimas. A partir do início, encontramos por sua vez: um tema de
6 compassos; uma passagem de solo do mesmo tamanho, dividida em meios-
compassos de 4 x 3; o tema novamente, agora com 6 + 3 compassos; outro solo de
6 compassos, desta vez terminando com uma sugestão de sincopa 3/4 (c.27); agora
nosso episódio, que acabou por consistir em 3 x 2, mais 3 x 1, mais 3 x 1/2
compassos, com uma cadência de meio compasso (ver exemplo nas páginas
seguintes).
47
48
49
50

Podemos entender melhor esse jogo métrico se assumirmos que, neste


estilo, a unidade métrica básica não é o compasso, mas a tempo – neste caso, a
mínima ou semínima. Isso não quer dizer que a compasso seja irreal ou puramente
convencional; mas é apenas uma etapa na subdivisão hierárquica e combinação de
tempos, os quais permanecem como os elementos imutáveis. (Mesmo o Barroco
Tardio, afinal, não está tão longe do Renascimento!) Em relação ao todo do
movimento que estamos discutindo, com exceção dos episódios em uníssono de
início e final, há um ataque a cada mínima do início ao fim, mesmo em cada
semínima. Encontra-se consistência semelhante nos dois movimentos restantes do
concerto. Os tempos parecem formar uma estrutura pré-existente que é
independente dos eventos musicais que este controla. É possível até sentir que
antes que as notas fossem escritas, os tempos já estivessem no lugar, regularmente
divididos em subunidades apropriadas e regularmente combinadas em compassos;
e que somente depois que essa estrutura abstrata estava estabelecida, por assim
dizer, a música foi composta em cima. Às vezes a música se encaixa precisamente
na proporção abstrata, às vezes não – como testemunha não só as passagens que
estamos discutindo, mas também os frequentes deslocamentos sofridos pelos
sujeitos de uma fuga, especialmente durante os strettos. Em todo o caso, o
elemento comum à estrutura e à substância musical, é o tempo.
Na performance, o resultado deve ser uma relativa equalização dos
tempos. Nossa orientação dentro do compasso deveria ser afetada mais pelo perfil
musical real do que pela aplicação de acento (que, afinal, não estava disponível
em dois dos instrumentos favoritos de Bach). As ambiguidades e os deslocamentos
métricos podem, portanto, expressar-se naturalmente de acordo com um contexto
rítmico variável.
É fácil ver que uma estrutura de tal uniformidade é um fundo natural para
as formas monotemáticas características do Barroco, ou, inversamente, que as
formas monotemáticas são a expressão natural de um estilo baseado em tais
premissas rítmicas consistentes. Na verdade, não se deve falar nem mesmo de
formas monotemáticas, mas de um princípio formal, que é o mesmo incorporado
51

na fuga, no concerto ou na ária. O sujeito recorrente de uma fuga funciona da


mesma maneira que o ritornelo de um concerto ou de uma ária – para confirmar o
estabelecimento de uma área tonal importante no ciclo harmônico. Os episódios
da fuga, como as passagens solo do concerto ou da ária, em geral passam de uma
dessas área tonais para a próxima. A estabilidade da condução através das
tonalidades, partindo da tônica e a ela retornando, se reflete nas recorrências
temáticas. E o próprio movimento tonal, por sua aparente inexorabilidade, parece
refletir a progressão regular de pulso a pulso, compasso a compasso, frase a frase.
Isso é, suponho, o que as pessoas querem dizer quando falam de maneira vaga
sobre a lógica dos designs musicais de Bach: elas estão realmente se referindo à
sua total consistência de estilo.
O reconhecimento da semelhança de episódios fugais com passagens solo
vai prevenir alguém de abordá-los de acordo com o absurdo que às vezes se lê
sobre seu caráter "solto" ou "subordinado". 48 Na verdade, são quase sempre as
passagens de maior tensão, aliviadas apenas pela chegada simultânea de uma
tonalidade estável e um sujeito. Curiosamente, o par stretto-fuga pode reverter esse
efeito. Os strettos geralmente criam tensão, que é resolvida por exposições
únicas 49 ou cadências livres. (Deve ser observado, neste contexto, que quando os
strettos envolvem aumentação ou diminuição, eles incorporam tematicamente os
princípios da hierarquia métrica que são básicos ao estilo?)
É no reino métrico que encontramos o que é provavelmente o mais
marcante ponto de contraste entre o Barroco Tardio e Estilos Clássicos. De modo
geral, o período clássico parece respeitar o pulso fundamental quase tão
plenamente quanto o período anterior, pois a composição clássica típica retém um
único metro inalterado do início ao fim. Mas o pulso raramente é óbvio quanto a
sua persistência para nossos ouvidos e, de fato, o verdadeiro pulso pode mudar de
uma parte de um movimento para a próxima, mesmo que o valor indicado
permaneça o mesmo. Um movimento em 4/4 pode, para vários temas ou
desenvolvimentos, mover-se a uma razão básica de uma semínima, uma mínima
ou mesmo uma semibreve. Não haverá qualquer tipo de compulsão de marcar cada
tempo importante com um acento. Pode invocar síncopes para estabelecer
correlações muito mais drásticas do que aquelas do Barroco. E é exatamente aqui
que encontramos a chave para a abordagem clássica da métrica. Por que essas
sincopas – por exemplo, aquelas do primeiro movimento da Eroica – soam tão
poderosas? Porque representam, não apenas uma ambiguidade, mas um conflito.
A superfície rítmica está aqui insistentemente em conflito com a formula de
compasso inicial. Pois é o compasso, e não o tempo, a unidade fundamental na
música clássica. O compasso também foi importante no estilo anterior, mas
deveria ser ouvido como uma multiplicação do tempo primordial e onipotente. O

48
"Os episódios, embora ainda em contraponto estrito, são um tanto 'mais leves' e mantêm-
se em relação às exposições que antecedem, dentro do padrão de relaxamento e tensão."
Do verbete sobre "Fugue" no Harvard University Press, 1945, p. 285.
49
Single statements.
52

tempo é importante no estilo clássico, mas é obtido pela subdivisão do compasso.


É por isso que o tempo pode variar tanto de uma parte de um movimento para
outra: o compasso está sendo submetido a diferentes formas de subdivisão.
O resultado é que um tema Clássico está mais firmemente vinculado à
sua posição métrica. Por esta razão, o interprete inteligente exige uma decisão em
todos os casos ambígua, sobre qual é o real compasso (em oposição àquele
grafado). Normalmente, os dois coincidem, mas há exceções. A expansão ou a
elisão de uma cadência ocasionalmente desloca uma passagem (mesmo um retorno
temático) para a metade "errada" de um compasso 4/4. Na maioria desses casos, o
próprio compasso original foi deslocado, o compositor não sentido necessário (ou
autorizado pela convenção) alterar a notação métrica. Tais mudanças explicam
uma série de passagens intrigantes que hoje seriam esclarecidas recorrendo-se a
uma mudança métrica temporária. (Encontramos uma no final das variações da
Sonata em Lá Maior, de Mozart, causada neste caso, pela elisão de uma cadência
que ocorre no meio do compasso.) 50 A questão é que o verdadeiro compasso está
sempre lá.
É significativo que compassos mais curtos tenham um uso mais geral
durante este período: eles fornecem maior flexibilidade em agrupamentos e evitam
as contradições métricas ocasionais que surgem nos compassos mais longos. (Ao
mesmo tempo, eles criam novos problemas. Em tempos muito rápidos, os
compassos tornam-se tão curtos que realmente funcionam como pulsos, e nem
sempre é claro como eles devem ser articulados. Como você lê os compassos fortes
e fracos no Scherzo da Sonata para Piano Op. 110, de Beethoven? Os compassos
acentuados da Coda representam tempos fortes ou sincopas? Você concorda com
Schnabel 51 ou com Tovey?) 52
A variação no pulso é uma indicação de que, mesmo dentro de um único
tempo, nem todos as partes de um movimento progride na mesma velocidade. É
essa taxa variável de continuidade, ao invés da multiplicidade de contextos
musicais, que é básica para as formas bitemáticas ou politemáticas do período.
Como sabemos, Haydn costuma usar o mesmo material para o primeiro e o
segundo temas de um allegro-sonata; mas, em tais casos, uma mudança no ritmo
harmônico pode alterar a velocidade do tema a ponto de produzir um efeito
inteiramente novo. No primeiro movimento da sua Sonata para Piano em Mi
Bemol (Nº 49, anteriormente Nº 3), o tema inicial caminha lentamente: dois
compassos completos de tônica, um compasso de harmonia transicional e uma

50
Ver também minha discussão de uma passagem do Quarteto para Piano em Sol Menor,
de Mozart, K. 478, em uma comunicação para Perspectives of New Music, I/2 (Prim.
1963), pp. 206-10.
51
Artur Schnabel (1882-1951) foi um pianista clássico austro-americano, compositor e
pedagogo. Schnabel era conhecido por sua seriedade intelectual como músico, evitando
a bravura técnica pura. (N.T.)
52
Sir Donald Francis Tovey (1875-1940) foi um músico, professor e musicólogo do Reino
Unido. (N.T.)
53

cadência na dominante; em seguida, uma frase consequente que procede da mesma


maneira ao retornar de V para I. No segundo tema, o mesmo motivo é usado para
apresentar o mesmo I–V, V–I que ocupa o espaço de quatro compassos.

O exemplo anterior nos mostra em que medida o contorno rítmico dessa


música depende do conteúdo musical de cada passagem. Embora de forma alguma
livre da estrutura métrica de fundo, este contorno é governado principalmente pelo
desenvolvimento motívico no primeiro plano e pela organização harmônica da
frase. Há, nos melhores exemplos desse estilo, um equilíbrio entre as demandas
abstratas métricas e o ritmo concreto que produz um efeito único satisfatório. A
própria música gera o efeito de criar a métrica necessária para sua própria
existência.
Periodicamente, ouve-se comentários sobre a tirania da frase de quatro
compassos durante esse período. É verdade que a frase de quatro compassos – ou
melhor, qualquer tipo de equilíbrio paralelo – geralmente pode ser percebido como
norma; mas nunca é, na música dos mestres, despótica. Isso porque para eles é
uma entidade rítmica, não métrica. Concebido metricamente, tenderia a se tornar
tão fixa e invariável quanto o compasso; concebido ritmicamente, é tão flexível
54

quanto a própria superfície musical. O contraste entre os dois temas de Haydn é


um exemplo; o tema de Mozart analisado anteriormente, é outro. Mais um
exemplo, desta vez de Beethoven – o início de sua Sonata para Piano, Op. 2, No.
1 – indicará ainda a variedade de modos na qual o desenvolvimento motívico e
harmônico criam sua forma exclusiva.

A frase toda, de oito compassos, se divide naturalmente em 2 + 2 + 4. Um


exame da estrutura motívica da segunda metade nos mostra um padrão reduzido
de 1 + 1 + 2. (Uma relação semelhante foi exibida no exemplo de Mozart.) Uma
análise linear da melodia ascendente apoia essa divisão motívica, pois ela pode ser
ouvida assim: dois compassos de Fá Maior, dois compassos de Sol Maior, um em
Lá Bemol Maior, um de Si Bemol Maior e dois de um Dó Maior expandido. Agora,
um exame do baixo revela, começando no quinto compasso, uma diminuição exata
desse acento! O resultado é que a harmonia mostra um incremento constante na
velocidade até o compasso cadencial: 53

53
Erwin Ratz leva a aceleração harmônica ainda mais longe, analisando o último compasso
como duas harmonias implícitas, cada uma de uma semínima. Ver o seu Einführung in
die musikalische Formenlehre, Viena: Österreichischer Bundesverlag, 1957, p. 23.
55

Assim, esses oito compassos, que na superfície se enquadram no padrão


convencional de sentença, estão na verdade ligadas por uma progressão fortemente
unificada. Se olharmos um pouco mais adiante, na frase consequente, desco-
briremos que ela começa convencionalmente, como se fora paralela aos oito
compassos iniciais. Mas seu desenvolvimento é completamente diferente, basean-
do-se no isolamento e na expansão do seu segundo compasso, e seus oito
compassos são expandidos para doze.
O design formal ideal para o estilo clássico, como o fugatto ou o ritornello
era para o barroco, é sem dúvida, o allegro-sonata. Pode-se traçar como, durante
esse período, outros padrões, de formas de canção compactas a rondos estendidos,
aspiram à sonata – como as cadências da dominante tendem a retornar à tônica,
como episódios centrais se expandem em desenvolvimentos, e assim por diante. É
fácil ver que o Estilo Clássico, com suas possibilidades de variedade rítmica, é
admiravelmente adaptado às formas politemáticas e ao tipo de tratamento que
tipifica a seção de desenvolvimento. Porém, mais importante do que a forma como
um padrão é o princípio unificador por trás dela, que, eu acredito, não pode ser
encontrado em seu bitemátismo, ou seu desenvolvimento, ou sua estrutura binária
ou ternária (faça sua escolha!). Lembremos por um momento que o princípio
inerente tanto à fuga quanto ao concerto era a recorrência do tema em cada ponto
importante de chegada harmônica. O princípio correspondente para o Estilo
Clássico – vamos chama-lo de princípio sonata por falta de um termo melhor – é
um pouco mais complexo. Exige que enunciados importantes feitos em uma
tonalidade diferente da tonalidade principal sejam reexpostas na tônica ou para
uma relação próxima a esta, antes que o movimento termine. Expresso assim, o
princípio cobre muitos aspectos do tratamento formal. Aplica-se, mais
obviamente, ao papel do "segundo sujeito" na exposição e recapitulação. Mas
também explica por que Beethoven se esforça tanto na coda do primeiro
movimento da Eroica para reintroduzir o tema do desenvolvimento, e de tal forma
a modular diretamente para a tônica. Isto sugere por que Mozart às vezes introduz
na coda de um rondo um sufixo 54 cadencial de um episódio central (como no
Andante do Concerto para Piano em Mi Bemol Maior, K. 482); e por que
Beethoven, em uma posição semelhante, às vezes faz uma reverência especial à
tonalidade de tal episódio, embora ele possa achar desnecessário mencionar seu
tema. (Ver, por exemplo, o último movimento da Sonata Pathétique, Op. 13. Aqui,
em vez de se referir ao tema do episódio central, o compositor associa o tema
inicial com a tonalidade do episódio, que é ao mesmo tempo levado a uma relação
próxima com a tônica.). Essa interpretação do princípio da sonata também
esclarece a forma de muitas peças operísticas de Mozart (o Trio do Ato I de As

54
Tag.
56

Bodas de Fígaro, por exemplo). Acima de tudo, isto explica o efeito cumulativo
da forma, que é a fonte do que muitos chamam de seu poder dramático. Pois em
um movimento assim construído nada se perde; tudo o que ocorre terá sua
influência no resultado e terá que ser levado em consideração antes que a peça
termine.
Se entendemos a forma sonata dessa maneira, devemos perceber que não
é tanto o contraste entre os temas, mas sua reaproximação final, que mais
impressiona. Podemos, portanto, entender por que, durante o período Clássico,
uma uniformidade geral de tempo prevalece durante cada movimento, apesar da
diversidade dos eventos que governa. É verdade que um movimento de Mozart ou
Beethoven pode, ou pelo mesmo deveria, manter mais liberdade de andamento do
que um de Bach ou Handel; mas de forma ideal, deve prevalecer um único tempo.
Mesmo as exceções óbvias às vezes são mais aparentes do que reais. O
desenvolvimento e a coda do movimento de abertura da Sonata para Piano Op.
109, de Beethoven sugerem, por exemplo, que o Vivace e o Adagio são conectados
por uma proporção aritmeticamente exata que equaliza a semínima do primeiro
com a semicolcheia do segundo, ou um compasso do Adagio igual a seis do
Vivace. Embora Beethoven, de acordo com Schindler, sentisse que sua música
exigia mudanças frequentes de tempo, a frase contundente é a qualificação: "na
maior parte, perceptível apenas para o ouvido sensível". 55
Com Schubert, no entanto, encontramos movimentos, aparentemente
compostos de um único tempo, para o qual, no entanto, não podemos encontrar
nenhum tempo que realmente funcione. Estamos agora na fronteira do
Romantismo; e uma ampla variação de tempo, implícita ou explícita, é de fato
característica do estilo posterior. Chopin pode marcar inúmeras mudanças de
tempo na primeira Ballade, ou quase nenhuma na quarta; no entanto, buscar um
único tempo governante mostra-se tão infrutífero no último caso quanto no
anterior. Os compositores posteriores desistiram completamente desta pretensão –
veja as sinfonias de Tchaikovsky.
A tendência do século XIX é a cada vez mais enfatizar as forças de
contraste sobre as de unificação; e isso se aplica não apenas ao tempo, mas também
ao material temático, progressão harmônica, ritmo e caráter. (O poder unificador
da transformação temática é muitas vezes mais aparente do que real, pois o
artificio pode enfatizar relações superficiais entre seções que são basicamente
díspares.) O princípio do contraste prevalece, também, não apenas dentro de obras
individuais, mas no conjunto da obra, sobretudo entre diferentes compositores.
Isso é o que torna a música do período Romântico tão difícil de caracterizar com
clareza. Qualquer que seja o argumento geral que alguém possa fazer, sempre
haverá pelo menos um compositor principal que pode ser citado como exceção. (E
sempre há Berlioz) Ainda assim, existem alguns pontos óbvios de diferença entre

55
Anton Schindler: Biographie von Ludwig van Beethoven, 4ª ed., Münster: Aschendorff,
1871, parte 2, p. 243. A referência específica aqui é ao Largo da Sonata para Piano, op.
10, No. 3.
57

a música desse período e as precedentes, pontos estes que têm a ver com as
questões de ritmo e articulação que vem nos preocupado no Estilos Barroco e
Clássico.
A unidade métrica na música Romântica continua a ser o compasso, como
era no período Clássico; e os compassos são combinados em frases mais ou menos
regulares. Não obstante, houve uma mudança sutil, mas importante, na orientação.
No período Clássico, como vimos, o compasso era normalmente, a maior unidade
métrica. Sua estabilidade servia como um suporte constante – ou contraponto para
– a diversidade de construções de motivos e frases. Quando os compassos se
combinavam para formar frases, eram feitos não de uma forma métrica regular,
mas como componentes de grupos rítmicos livremente articulados, cuja estrutura
dependia de seu conteúdo musical específico. Na música Romântica, por outro
lado, podem-se encontrar longos trechos em que os compassos se combinam em
frases que são, elas mesmas metricamente concebidas – no que chamo de
hipercompassos. Isso é mais provável de ocorrer sempre que vários compassos em
sucessão exibem similaridade de construção motívica, harmônica e rítmica. Estes,
quase exigem ser contados como unidades. O desejo do compasso de se comportar
como um único tempo, já perceptível nos scherzos mais rápidos de Beethoven, é
aqui intensificado – e não apenas em tempos muito rápidos. Como resultado, os
agrupamentos são freqüentemente induzidos de forma irresistível a um padrão
regular de 4-compassos. É aqui, e não no estilo anterior, que podemos seguramente
falar da tirania da frase de 4-compassos!
Os melhores compositores, com certeza, desenvolveram maneiras
individuais de chegar a um acordo com a inevitável amaça da monotonia.
Mendelssohn ocultou o padrão prevalecente com elisões inteligentes, sobrepo-
sições harmônicas e expansões. Schumann, de todos os grandes compositores do
período, parecia vangloriar-se com o Viertaktigkeit. 56 Ele era capaz de mantê-lo
continuamente ao largo de seções inteiras com uso temático de fortes síncopes e
polirritmias 57 de tal forma a tornar-se uma marca registrada de seu estilo. O último
movimento de seu Concerto para Piano é uma demonstração brilhante de como
escrever em longos períodos de unidades de 4-compassos e ao mesmo tempo
tornar o resultado interessante pela criatividade rítmica.
O compositor que realmente absorveu, digeriu, assimilou e se alimentou
do conceito de 4-compassos foi Chopin. Em suas danças, e em movimentos
derivados de formas de dança, os hipercompassos são óbvios para o ouvido. Outras
composições, entretanto, exibem o mesmo padrão firmemente sob controle,
embora oculto com uma sutileza que atenua o hipermetro sem violá-lo. Para
Chopin, a norma se tornou quase instintiva a ponto de poder temperá-la com
polirritmia 58 e sincopas em grande escala, assim como Schumann fazia nos
detalhes. Um exemplo conhecido é a seção intermediária do Fantasy-Impromptu,

56
Literalmente “4 tempos” (N. T.)
57
Cross–rhythms.
58
Cross–rhythms.
58

onde as aparentes irregularidades do fraseado são apenas detalhes na superfície de


um design estrito de 4x4. Um tratamento mais sofisticado pode ser encontrado em
toda a Polonaise-Fantasy, que nesse respeito é de fato uma fantástica polonaise.
O efeito na performance do uso de unidades métricas cada vez maiores
pode ser percebido em um experimento bem simples. Tome alguns compassos de
uma passagem para teclado de Bach, de Mozart e de Chopin. 59 Toque cada um
deles no seu próprio tempo e com a articulação apropriada; em seguida,
experimente com o ritmo e a articulação dos demais. Em todos os casos, você
descobrirá que o que parece natural em cada um deles faz com que os outros
pareçam exercícios de dedos. A figuração de Bach precisa ser tocada
metricamente, ou seja, com cada tempo e subtempo claramente articulados. O
Mozart deve ser tocado melodicamente, com atenção às relações motívicas que
determinam o contorno rítmico. A figuração de Chopin, ao contrário, é colorística.
Observando-se áreas maiores, as passagens se distinguem mais pelo contorno e
sonoridade geral do que pelos detalhes estruturais. Resumindo, elas se submetem
à subdivisão métrica.
Só no final do século é que o problema rítmico se torna realmente agudo.
Assim, a uniformidade métrica é aliada a uma tendência relacionada ao período de
tal forma que as duas se exacerbam. Refiro-me ao hábito de escrever sequências e
quase-sequências. Schubert havia muito explorado esse dispositivo como uma
maneira fácil de preencher transições e desenvolvimentos. Algumas de suas seções
de desenvolvimento de maior sucesso (por exemplo, a do primeiro movimento do
Quinteto para Violoncelo, Op. 163) são baseadas em enormes sequências; e pelo
menos um movimento completo, o final do Quinteto Trutas, pode ser descrito
como um molde, mais uma sequência baseada nele (I–IV, V–I)! Compositores
posteriores, especialmente Liszt, usam o mesmo recurso para a construção
temática. Mesmo a impressionante abertura do Vallée d'Obermann perde um
pouco de sua magia quando percebemos que consiste em apenas um molde
seguido por uma sequência uma terça menor acima. O mesmo tipo de tratamento
confere uma atmosfera quase mecânica a algumas das páginas mais nobres de
Wagner.
O que aconteceu, durante a profusão de estilos que vai do Barroco Tardio
ao Romântico, é que o foco do interesse musical mudou, por assim dizer, na
direção oposta ao foco métrico. Não ouvimos essas sequências da mesma maneira
que as de períodos anteriores. Quando ouvimos uma sequência de Bach (como a
analisada acima), nossa atenção está menos no material em si (que é, afinal,
tematicamente familiar nesta altura do movimento) do que na direção geral de todo
a passagem. Ao ouvir uma sequência típica de Wagner ou Liszt (digamos, a
abertura de Obermann que acabamos de citar), nos concentramos no detalhe – no
conteúdo de cada etapa, em vez da progressão como um todo. Assim, uma vez que

59
Ex.: Bach, Concerto Cravo em Ré menor, cc.7-12; Mozart, Concerto para Piano em Lá
Maior, K.488, primeiro movimento, cc.86-98; Chopin, Improvisado em Fá Sustenido
Maior, cc.82-100.
59

as unidades métricas se tornaram cada vez maiores, as unidades da atenção


musical, por assim dizer, diminuíram. É no período Clássico que, como de
costume, encontramos um equilíbrio único: detalhe e progressão exigem igual
atenção e se mostram igualmente recompensadora.
Eventualmente, com em Franck e Bruckner, as unidades métricas
parecem ter se expandido a tal ponto que às vezes alguém se sente tentado a contar,
não batimentos, nem medidas, mas hipercompassos, ou seja, as próprias sequên-
cias! (Excessos nessa direção podem ser ouvidos ao longo do final do Quarteto de
Cordas, de Franck). Aqui, a articulação métrica e hipermétrica foi longe demais, e
não é surpreendente descobrir que com Strauss, Mahler e especialmente Debussy,
um novo princípio, mais flexível, às vezes um princípio quase anti-métrico,
começa a emergir. Os compositores do início do século XX movem-se na direção
de uma articulação rítmica muito mais livre, governada menos pela métrica do que
por considerações motivacionais. Para muitos compositores posteriores, a métrica
abstrata parece nem mesmo existir: a métrica existente se expressa apenas por
meio dos motivos rítmicos da superfície musical e, portanto, está em um estado de
fluxo constante. Inevitavelmente, tal estilo carece de uma tensão que caracteriza
muitas músicas do passado. Isso pode explicar por que Webern aparentemente
insistiu na importância de sua notação métrica regular, apesar de sua persistente
contradição com o conteúdo rítmico em suas partituras.
Talvez a principal razão pela qual é difícil encontrar um novo princípio
formal unificador em ação durante o Romantismo, comparável aos de períodos
anteriores, seja a reverência com que os compositores do século XIX mantêm a
sonata Clássica – vista não mais como um princípio, mas como uma "forma". Para
Mendelssohn e Brahms, os velhos padrões mostram-se adequados. Brahms, de
fato, entende o ideal Clássico tão bem, a ponto de ser capaz de controlar as
inovações harmônicas de Schubert e de compositores posteriores em formas quase
tão restritas quanto as de Beethoven. Outros, entretanto, de Chopin a Bruckner e
além, zelosamente tentam, de forma individuais, forçar o material difícil em um
molde inflexível. Felizmente, muitos deles perceberam a eventual natureza imi-
nentemente abstrata e historicamente espúria da estrutura que procuravam impor
às suas ideias e passam a produzir trabalhos – mesmo em grande escala –
revelando novas abordagens para a forma.
Berlioz, no seu mais característico, experimenta o que pode ser chamado
de contraponto de espaços musicais, quando combina temas ou revela ideias
estacionárias em formas constantemente novas, criando um movimento em torno
delas. Às vezes, como em seu Réquiem, o espaço musical é até mesmo traduzido
em espaço físico.
Há uma tendência semelhante em Schumann, com suas vozes distantes
ou interiores em contraponto antagonizando o fluxo normal da música. Às vezes,
como durante a melodia silenciosa de seu Humoresque, isso sugere a possibilidade
de duas formas musicais simultâneas – uma para ser ouvida pelo público e outra
para ser pensada pelo intérprete. Na verdade, pode até haver uma terceira forma
presente, conhecida apenas pelo compositor. Esse conceito múlti-formal também
60

pode explicar aquelas passagens em que as sincopas de Schumann são tão


persistentes que o ouvinte não consegue perceber o fundamento métrico; tais
seções podem apresentar formas diferentes, mas igualmente inteligíveis, para o
intérprete e para o público. O mesmo conceito pode explicar dificuldades
semelhantes na música do século XX, incluindo, por exemplo, as sincopas de
Webern e sua notação extraordinária, nas Variações para Piano, de um compasso
vazio em accelerando seguido por uma fermata. 60
Os primeiros trabalhos de Chopin exibem uma fundamental falta de
compreensão do princípio da sonata, até mesmo um certo desprezo deliberado
desta; mas, de todos os compositores do período, ele finalmente consegue a
transformação da forma de maneira mais pessoal e, em certa medida, a mais bem-
sucedida para seus próprios objetivos. Refiro-me não apenas à Fantasia e às duas
últimas Baladas, todas abertamente baseadas em padrões modificados de sonata,
mas também na Fantasia-Polonaise e na Barcarola, que aplicam os princípios da
forma sonata derivados de outros lugares. Na maioria dessas obras, Chopin usa
um dispositivo importante que, ao qual eu me refiro, um tanto extravagantemente,
como apoteose: um tipo especial de recapitulação que revela riquezas harmônicas
inesperadas e excitamento textural em um tema anteriormente apresentado com
uma harmonização deliberadamente restrita e um acompanhamento relativamente
monótono. O exemplo mais claro é provavelmente a reprise do tema principal da
Polonesa-Fantasia (ver exemplo na página 85?). Esta é a versão de Chopin do que,
em Liszt e Wagner, se torna o método completo de transformação temática; é uma
pista para o que finalmente emerge como candidata ao princípio da forma
romântica.
O que isso implica, pode ser deduzido de um exame dos movimentos mais
extensos de Liszt, sejam nas formas de sonata expandidas, ou nas formas em arco
(por exemplo, ABCBA), ou ainda em uma combinação das duas. O que é
surpreendente é sua frequente relutância em recapitular um tema sem qualquer
alteração importante. Isso é especialmente verdadeiro nas ocasiões em que é
necessário trazer de volta um tema em uma tonalidade diferente daquela original.
Sente-se que, para Liszt, uma dada versão de um tema pertence apenas a uma
tonalidade – e muitas vezes somente a um lugar no tempo. A mudança necessária
não precisa implicar em uma completa transformação rítmica ou harmônica:
muitas vezes, uma nova figura de acompanhamento ou um layout instrumental
diferente é suficiente. Mas mesmo esse fato é sintomático de uma nova visão da
natureza de um tema. Para os compositores Clássicos, um tema era tipicamente
uma unidade completa melódico-harmônica-rítmica-textural; para os Românticos,
é antes uma melodia capaz de aparecer em muitas roupagens harmônicas, rítmicas
e texturais variadas. (A distinção se aplica também a formas de variação explícitas,
embora cada variação seja, em certa medida, uma transformação. Os compositores
Clássicos usam a forma para examinar ou – especialmente no caso de Beethoven

60
Foi dito de Weberm que ele encarava essa notação com total seriedade. Ver Peter Stadlen,
Serialism Reconsidered, in The Score, 22 (Fev. 1958), p. 15.
61

– para explorar o tema; os Românticos tendem a usar o tema como um ponto de


partida.)
62

As tonalidades preferidas para os temas Românticos, e os vários disfarces


que assumem quando forçados a mudar de tonalidade, podem ser justificadas em
parte, pela idiomátismo instrumental que muitos deles são concebidos por seus
compositores. Uma passagem para piano, por exemplo, pode ficar desajeitada sob
os dedos quando transposta – como sabe qualquer estudante que tenha trabalhado
o Scherzo em Dó Sustenido Menor, de Chopin. Esse fato pode ajudar a explicar o
tratamento idiossincrático de Chopin das relações entre as tonalidades em seus
concertos. Com suas obras posteriores, o novo princípio começa a predominar,
notadamente na Quarta Ballade, que apresenta seu primeiro tema em figurações
sempre novas, que engrandecem o retorno de seu segundo tema. Mesmo com
Schumann, encontramos indícios de um conceito semelhante. O primeiro
movimento do seu Concerto para Piano é um allegro-sonata, mas onde cada
sucessiva área tonal é marcada por uma nova versão do tema principal, até que as
exigências da recapitulação, que ele considera mandatória, o obrigam a se repetir.
Mesmo assim, a coda lhe oferece mais uma oportunidade para uma apresentação
única. (É interessante, a este respeito, ver como Schumann, mais tarde, em suas
sinfonias, às vezes comprime ou contorna a recapitulação em favor de uma coda
expandida. Veja o finale da Segunda Sinfonia, ou o primeiro movimento da
Quarta)
Com frequência se observa que, nos dramas musicais robustos de
Wagner, motivos importantes pertencem a certas tonalidades e não se adaptam em
nenhum outro lugar. A "Espada" pertence a Dó Maior, "Valhalla" a Ré Bemol
Maior e assim por diante. A escolha de tais tonalidades pode ser, novamente,
influenciada pelo desejo de eficácia orquestral, mas também é, pelo menos em
parte, governada por considerações músico-dramáticas. Pois quando esses motivos
aparecem em novas tonalidades, geralmente são transformados de alguma forma
dramaticamente significativa. A recapitulação exata é em geral tão rara em
Wagner a ponto de despertar a curiosidade quanto à sua justificativa, e o mesmo
se aplica a Strauss tanto no poema sinfônico quanto na opera. Não estamos nos
movendo aqui em direção a uma forma musical de completo fluxo-de-
consciência, 61 no qual nenhuma recapitulação exata é possível porque nunca dois
momentos de nossas vidas são iguais? Não é uma coincidência que o compositor
que argumenta mais explicitamente que a música reproduz nossa vida interior
interiormente possa produzir uma obra dramática notável por sua aparente
completa falta de recapitulação – Erwartung. Pode-se dizer que neste monodrama
cada momento é representado por seu próprio leitmotiv.
Assim, passamos do ponto de vista Barroco, onde um tema está
igualmente em casa em todos os lugares, para o desejo Clássico de relacionar todos
os temas com a tônica, e então para o princípio de que cada tema pertence
exclusivamente a uma tonalidade e talvez até mesmo a uma exposição. Se estão
certos aqueles que agora acreditam que o próximo passo é dispensar totalmente o
tema, provavelmente é muito cedo para dizer. Mesmo que estejam no presente,

61
Stream-of-consciousness.
63

eles não respondem à pergunta para futuro. Nenhum estilo artístico – nem mesmo
o do antigo Egito – jamais se mostrou permanente no passado, e é altamente
improvável que se torne assim agora ou no futuro. Para onde as mudanças
apontam, entretanto, não podemos saber, não mais do que podemos prever a
direção da história em geral. Teremos de deixar isso para os seus responsáveis: os
compositores. São eles que devem determinar o curso da evolução estilística – e
não pelo que dizem ou escrevem sobre a música, mas pela própria música compõe.
64



SOBRE DOIS MODOS DE


PERCEPÇÃO ESTÉTICA

________________

Os ensaios anteriores podem dar a impressão que se baseiam na suposição


implícita de que existe apenas um modo de percepção pelo qual devemos
experenciar adequadamente uma obra de arte: a saber, a compreensão sinótica de
sua estrutura. Certamente este modo obteve destaque nestas páginas, mas seria um
erro supor que seja o único possível ou mesmo o único adequado. A percepção
estética depende de pelo menos um outro modo, igualmente importante. Um
esclarecimento da distinção entre os dois pode ser útil para sugerir maneiras de
equilibrar minha percepção intencionalmente unilateral dos problemas da
performance musical. Embora a discussão envolva necessariamente alguma
sobreposição com as ideias já apresentadas, tentarei manter essa redundância ao
mínimo.
Segundo alguns autores, compreensão sinótica, que de um lado reconhece
uma unidade no que é percebido ou então, por outro, a impõe, é essencial para a
experiência estética. Assim, Stein sugere ao dizer que a experiência exclusiva do
objeto estético, "tem três propriedades – é reconhecido; é unificado; é permanente,
isto é, não expira pelo uso". 62 Mas "estética", como pretendo definir a palavra,
aplica-se a qualquer percepção desfrutada em si mesma (ou mesmo empreendida
em si mesma, uma vez que as experiências estéticas negativas ainda são, em certo
sentido, estéticas). Assim, aplica-se ao desfrute direto das cores de uma pintura,
ou do puro som de uma orquestra, independentemente de como ou se contribuem
para qualquer unidade hipotética. Novamente, no primeiro nível de organização,
aplica-se à apreciação dos detalhes da imagem ou dos motivos de uma sinfonia,
sem referência necessária ao papel destes na composição total. Em um nível um
pouco mais alto, ele se aplica a um sentido das conexões entre detalhes contíguos
ou motivos ponto-a-ponto ou um relacionamento momento-a-momento.
O modo pelo qual percebemos diretamente o meio sensorial, seus
elementos primitivos e suas interrelações mais próximas é aquele que desejo

62
Leo Stein, op. cit., p. 46.
65

contrastar com o da compreensão sinótica. Vou chama-lo de modo de apreensão


imediata. É, acredito, o que Whitehead tinha em mente quando escreveu: "O
hábito da arte é o hábito de desfrutar de valores vívidos." 63 Mais adiante, em uma
discussão sobre a apreciação estética em domínios não artísticos, ele exibe sua
consciência de ambos os modos: "Uma fábrica ... é um organismo expondo uma
variedade de valores vívidos. O que queremos treinar é o hábito de apreender tal
organismo em sua plenitude." 64 Em parte, o contraste entre os dois é aquele entre
experiência e contemplação. A apreensão imediata é nossa resposta a um contato
direto – nosso reconhecimento dos "valores vívidos" de Whitehead. A
compreensão sinótica é até certo ponto, conceitual: é a nossa realização da forma
a partir do que percebemos – o "organismo" de Whitehead. (O mesmo contraste
poderia ser feito com respeito aos estágios da criação artística, como Wordsworth
sugeriu em sua famosa definição de poesia.) 65
A cerca dos dois modos, é imediatamente perceptível que desfrutam de
prioridade temporal e lógica em nossa percepção da arte. Temporal, no sentido de
que nossa apreciação de um objeto estético geralmente começa com nossa
apreensão de suas qualidades sensoriais e, especialmente no caso de uma arte
temporal, de seus detalhes; lógico, porque, a meu ver, o desfrute de tal apreensão
pode levar a alguma medida de satisfação estética, seja acompanhada ou não de
compreensão sinótica, ou ainda se tal compreensão, caso alcançada, encontra ou
não um objeto digno. Por outro lado, pode-se, com certeza, considerar
esteticamente uma estrutura pura, ou seja, completa em si mesma. Mas se a sua
incorporação, do ponto de vista da apreensão imediata, for negativa (como, por
exemplo, o significado para a maioria das pessoas de um tumor maligno ou sua a
imagem), é improvável que se obtenha prazer estético desta estrutura, não importa
quão perfeita esta possa ser. Quando a incorporação é neutra, como na geometria
pura, o apelo estético da estrutura pode de fato revelar-se à compreensão sinótica;
mas a neutralidade indica uma distinção importante entre matemática e arte. A
matemática, ao contrário da arte, falha em responder à apreensão imediata.
O modo sinóptico, por sua vez, é essencial para a percepção de objetos
estéticos como objetos e, particularmente, de obras de arte como obras individuais.

63
Alfred North Whitehead, Science and the Modern World. Nova York: The Macmillan
Company, 1935, p. 287.
64
Ibid., pp. 287-88.
65
William Wordsworth (1770-1850) foi o maior poeta romântico inglês que, ao lado de
Samuel Taylor Coleridge, ajudou a lançar o romantismo na literatura inglesa com a
publicação conjunta, em 1798, das Lyrical Ballads. A citação é a seguinte: “A poesia é o
transbordamento espontâneo de sentimentos poderosos: tem sua origem na emoção
recolhida na tranquilidade. Fora do sofrimento humano; Na fé que olha através da morte,
Nos anos que trazem a mente filosófica.” (Poetry is the spontaneous overflow of powerful
feelings: it takes its origin from emotion recollected in tranquility.” Out of human
suffering; In the faith that looks through death, In years that bring the philosophic mind).
In Lyrical Ballads, 1798. Fonte: Wikipedia (N. T.)
66

Nesse sentido, concordo com Stein: ver o objeto como um objeto é perceber sua
unidade, isto é, compreender sua estrutura. Mas a obtenção desse tipo de
compreensão está longe de ser necessária para a apreensão da qualidade estética;
na verdade, como tentarei demonstrar, alguns tipos de arte parecem resistir a ela.
Gostaria de abordar este ponto por meio de uma breve discussão sobre o
que muitas vezes é chamado de "beleza natural"; mas, uma vez que não desejo
introduzir uma frase tão cheia de conotações literárias e que implica em tantas
questões irrespondíveis, 66 tentarei evita-las usando o termo um tanto incômodo "o
continuum estético natural " para significar o mundo natural, existente no espaço
e no tempo, conforme esteticamente percebido. Qualquer que seja a estrutura do
continuum, nenhuma mente humana é capaz de conceber, muito menos percebê-
lo – exceto, possivelmente, pelo raro dom do insight místico. O que a mente
comum experimenta nunca é o continuum (espaço-tempo) como um todo, mas o
que se poderia chamar de seção transversal espaço-temporal, unida por uma
relação ponto-a-ponto, momento-a-momento, área-a-área. Não há garantia de que
essas relações produzirão uma unidade perceptível; as chances são de que não.
Não podemos, portanto, ter certeza de que nosso corte transversal pode ser
compreendido como um objeto estético – mas ainda podemos desfrutar de sua
contiguidade. Chamemos essa seção transversal de superfície estética.
Pode-se pensar em muitos tipos de superfícies: uma noite estrelada, uma
paisagem montanhosa, um pássaro em voo, uma flor. Alguns deles – por exemplo,
a noite estrelada – resistiria às tentativas de força-los a algum tipo de estrutura
estética. Eles teimosamente permanecem como seções do aparentemente amorfo
continuum, permitindo apenas uma apreensão imediata. Outros – por exemplo, as
flores – são prontamente apreendidas como unidades formais e, portanto,
facilmente transformadas pelo observador em objetos estéticos. Muitos – por
exemplo, a paisagem, os pássaros – são casos limítrofes. Por um lado, seu apelo
imediato como superfície é geralmente inegável. Por outro lado, embora seja
necessário um esforço real para impor uma forma a uma paisagem, é isso que o
olhar artisticamente treinado muitas vezes tenta fazer. E para muitos observadores,
muito do fascínio de observar o pássaro vivo não advém apenas da apreensão
imediata de suas qualidades sensoriais, mas também a partir da compreensão de
sua anatomia especializada, de seu padrão aparentemente complexo de instintos e
de seu papel na ecologia total – em uma palavra, de sua estrutura. (Parte desse
interesse até adere à fotografias de criaturas selvagens, aos grupos de habitats em
museus, e às gravações de cantos de pássaros.)
A superfície natural aponta, então, para duas direções – em direção ao
continuum e em direção ao objeto – embora geralmente desaponte nossos esforços
de compreensão sinótica completa. Assim, eu penso, é uma das razões pelas quais

66
Para uma interessante discussão sobre alguns desses pontos, ver o ensaio de R. W.
Hepbhan Contemporary Aesthetics and the Neglect of Natural Beauty, in Bernard
Williams e Alan Montefiore, orgs., British Analytical Philosophy. Londres: Routledge
and Kegan Paul, 1966, pp. 285-310.
67

o amante dos pássaros, uma vez que consegue ver, digamos, um Sanhaçu-
escarlate, acha muito difícil parar de olhá-lo. Seria como sair de um teatro antes
da peça acabar – só que esta peça nunca acaba, porque não tem começo nem fim.
Uma peça de verdade nos satisfaz pela completude de sua forma. Um enredo da
natureza nos tantaliza por meio de suas sugestões constantes de uma forma nunca
totalmente realizada. É exatamente aqui que encontramos um contrapeso para o
argumento anterior em favor das prioridades da imediata apreensão. Pois seus
encantos são, em última análise, insuficientes por si mesmos; eles precisam do
complemento da compreensão estrutural. (Pela mesma razão o amante de pássaros
odeia parar de ouvir um longo e contínuo canto de pássaro. O rouxinol costuma
oferecer esse tipo de canto à noite, quando, por causa do silêncio que o cerca, é
provável que chame a atenção. Não é de admirar que, sob essas circunstâncias, o
aparente transbordamento infinito tenha dado origem aos mitos da "Paixão eterna!
Dor eterna!")
Há outra razão pela qual o amante dos pássaros extrai todos os momentos
possíveis de seu Sanhaçu, e isso nos leva ao contraste entre os produtos estéticos
naturais (para usar um termo neutro que pode denotar tanto superfícies quanto
objetos) e aqueles que são feitos pelo homem: uma vez perdidos, os primeiros são
provavelmente irrecuperáveis; os últimos são, em princípio, reproduzíveis. O
Sanhaçu pode nunca mais retornar, todas as flores estão murchando mesmo
quando olhamos para elas, o efeito de uma paisagem depende das condições
transitórias do tempo; mas pode-se presumivelmente retornar a um quadro ou peça
musical com a frequência que se desejar (pois "perduram"). Deste ponto de vista,
existe um caso extremo entre os objetos naturais e aqueles feitos pelo homem: a
rocha, o pedaço de madeira flutuante, criado pela natureza, mas transformado em
virtude de sua posição em uma lareira em – talvez não uma obra de arte, mas no
mínimo – algo que se aproxima a um objeto artístico.
"Artístico", no sentido que uso a palavra, refere-se a produtos estéticos
feitos pelo homem – mas não é equivalente a "estética, feito pelo homem". Na
minha opinião, uma pilha de entulhos (certamente feito pelo homem) poderia ter
valor estético, mas ainda assim não seria artístico. Seu valor, seja considerado
como uma produção acidental, ou como aduzido pelo olhar sensível de um
observador, é análogo ao de uma cena natural. A qualidade artística, eu receio, só
pode ser determinada invocando a falácia intencional (que não considero falácia –
a menos que seja a falácia de acreditar que existe uma falácia intencional). A
qualidade artística é a qualidade estética produzida intencionalmente, seja em
artigos normalmente classificados como úteis ou naquilo que normalmente se
chama obra de arte.
Não desejo forçar a distinção entre objetos artísticos e obras de arte,
embora acredite que possa ser útil. Se aceitarmos a definição de um objeto artístico
como qualquer objeto estético produzido intencionalmente, o termo pode ser então
aplicado a cadeiras, colchas e abajures, bem como aos membros da categoria mais
restrita de obras de arte bonna fide. Mas como a linha que delimita a classe menor
é muito difusa (quando, por exemplo, um edifício vira obra de arte?), eu prefiro
68

não tentar delimitá-la. Prefiro examinar uma distinção muito mais importante:
aquela entre superfícies artísticas, de um lado, e objetos artísticos (incluindo obras
de arte), do outro. Pois nem todos os produtos artísticos são objetos. Alguns, que
desafiam a tentativa de compreensão sinóptica e respondem apenas ao modo
imediato de percepção, devem ser classificadas da mesma forma, como superfícies
artísticas.
Devemos agora retornar a um argumento do primeiro ensaio e examiná-
lo de um ponto de vista ligeiramente diferente. O que eu chamei então de ambiente
interno de obras de arte representacionais podemos agora vê-los como recriações
imaginativas do continuum estético natural. Uma imagem, por exemplo, está
inserida em um continuum visual e espacial. No caso de uma obra literária, o
continuum é todo o mundo do pensamento e da ação. Acho que podemos
generalizar ao ponto de afirmar que todos os exemplos de arte representacional
podem ser percebidos como cross-sections de um continuum imaginário e,
portanto, como superfícies artísticas. Para se qualificar ademais como objetos
artísticos, eles devem também contemplar a compreensão sinótica – mas
certamente nem todos o fazem. Existem as chamadas "obras de arte" que exibem,
em detalhes, habilidades de execução, beleza sensual, profundidade de ideias – ou
qualquer norma crítica que você queira aludir; mas, carecendo de uma estrutura
formal controladora, eles não são, em última análise, objetos artísticos e, portanto,
não são obras de arte. Não estou tentando confrontar aqui a forma "fechada" com
a "aberta": a forma aberta, mesmo que seja difícil de apreender, ainda é forma.
Estou comparando aqueles produtos que são suficientemente construídos para
revelar uma estrutura unificada com aqueles que não são.
Muitos exemplos de decoração renascentista e barroca (como o teto
Pozzo já mencionado) falham em se qualificar como obras de arte. Isso não impede
que alguém obtenha um grande prazer na sua apreensão imediata como superfície
(mesmo quando, ao contrário do teto de Pozzo, eles não podem ser reconhecidos
como participantes de uma unidade formal maior).
Exemplos menos felizes são fornecidos por numerosos quadros
narrativos, especialmente do século XIX. Aqui, a ambientação é tanto temporal
quanto espacial, pois a representação é um corte transversal de uma narrativa, bem
como de uma cena visual. Nossas tentativas de impor uma estrutura narrativa –
para recriar o "antes" e o "depois" ao momento descrito – muitas vezes nos
impedem de desfrutar os valores puramente visuais que a imagem pode ter, por
mínimos que possam ser. (Foi apenas recentemente que nosso treinamento em
visualizar abstrações nos ensinou a nos concentrar no imediatismo dos detalhes
descritos em alguns dos quadros pré-Rafaelita 67 e a ignorar sua deficiência em
termos estrutura geral e seu frequente sentimentalismo de temas.)

67
A Irmandade Pré-Rafaelita, também chamada Fraternidade Pré-Rafaelita ou, simples-
mente, Pré-Rafaelitas, foi um grupo artístico fundado em Inglaterra em 1848 por Dante
Gabriel Rossetti, William Holman Hunt e John Everett Millais e dedicado principalmente
à pintura. Wikipédia. (N. T.)
69

A pintura não-objetiva, também, pode sugerir um continuum, embora


artificial. As telas da escola gestual 68 que estão repletas de eventos visuais – e
aquelas que parecem particularmente vazias dos mesmos – sugerem que o que
vemos dentro do quadro também está acontecendo além de seus limites, e que a
borda delimita uma seção transversal de um continuum que se estende
indefinidamente. Muitas dessas obras, incluindo algumas das mais célebres,
parecem ser apreensíveis apenas dessa maneira. Assim, algumas das pinturas
tardias de Jackson Pollock parecem ser superfícies em vez de obras de arte. Uma
justificativa oferecida para a pintura gestual – o apelo de que cada obra deve ser
tomada como a expressão de uma ação do artista, e não como um objeto puro –
confirma esse julgamento.
Não discutirei a arquitetura neste contexto, exceto para observar que seus
ambientes interno e externo são os mesmos; em outras palavras, provavelmente
única entre as principais artes, ela existe diretamente dentro do continuum natural.
A música, em contraste, como já indiquei, é singular entre as artes por não ter, em
princípio, qualquer continuum que lhe incorpore. Mas, assim como algumas
esculturas abstratas podem parecer tão herméticas a ponto de, excepcionalmente,
desafiar alguém a fornecer qualquer ambiente interno circundante, também
algumas músicas (à qual podemos também aplicar a palavra "abstrata" em um
sentido especial) vai contra a regra e parece não apenas sugerir, mas até mesmo
depender de um continuum artificial. Sugeri que a música construída sob o
“serialismo integral” parece dar o efeito de ser um segmento de um continuum de
12-tons estendido indefinidamente. Da mesma forma, a música "não determi-
nada", seja a sequência de eventos deixada para o intérprete resolver ou então
liberada ao puro acaso, pode implicar em um continuum que muitas vezes parece
combinar o puramente musical com o quase-dramático. Os dois determinismos de
fórmula e acaso levam ao mesmo resultado: a maneira arbitrária como tais
produtos começam e terminam e a natureza fortuita de suas conexões internas
garantem que eles podem, na melhor das hipóteses, ser experienciados apenas
como superfícies.
Do que foi dito antes, pode-se concluir que sempre que a música parece
sugerir ou exigir que seja ouvida como um segmento de um continuum artificial,
ela, em virtude dessa característica, resistirá à compreensão sinótica. Acredito que
isso seja verdade, embora não possa demonstrá-lo. O inverso é obviamente falso;
pois há uma grande quantidade de música que, embora repousando
confortavelmente em seus extremos e não fazendo exigências a um ambiente
hipotético, não pode ser compreendida estruturalmente. Suspeito que os dramas
musicais de Wagner e alguns dos poemas musicais mais longos de Strauss se
enquadram nessa categoria. É certamente verdade que o que estamos desfrutando
(se essa é a palavra certa) por meio de longos trechos, digamos, de Also sprach
Zaratustra ou Siegfried é a superfície. Mesmo se alguém pudesse combinar

68
Action school, movimento artístico associado ao action painting (pintira gestual),
originado na década de 1950. Fonte: Oxford English and Spanish Dictionary. (N. T.)
70

Schenker e Lorenz, 69 e provar que cada ato wagneriano pudesse ser analisado
como uma unidade estrutural que incorporasse organicamente cada pequeno
detalhe, isso não provaria que cada ato pudesse ser ouvido desta forma. A
compreensão sinótica é de fato parcialmente conceitual – mas não mais que
parcial. Ainda é um modo de percepção. Provavelmente existe um limite de tempo
para o ouvido humano absorver estruturalmente; quando esse limite é
ultrapassado, o ouvinte recua imediatamente para a apreensão. (Ou então ele se
volta com gratidão para as formas operísticas comedidas de Mozart.)
As composições que são, em última análise, as mais satisfatórias – as
únicas que, segundo meu conceito, merecem o nome de composição – são aquelas
que convidam e recompensam ambos os modos de percepção. Já disse que o modo
imediato geralmente precede o sinóptico na abordagem de qualquer obra de arte;
no caso da música, que só pode ser compreendida estruturalmente depois de ter
sido experenciada no tempo, isto é necessariamente assim. Isso não significa,
entretanto, que a apreensão imediata seja meramente uma fase da compreensão
pela qual se deve passar a fim de desfrutar a verdadeira felicidade de compreender
a estrutura. (Isso se aplica à matemática – não à música.) A audição ideal de uma
composição é aquela que desfruta dos dois modos simultaneamente, que valoriza
cada detalhe ainda mais por cumprir sua função em relação ao conjunto total da
obra. (É esse tipo de audição que torna possível o prazer renovado do suspense em
obras mais conhecidas que discuti no segundo ensaio.)
A maior parte das instruções práticas em performance é direcionada ao
encorajamento da apreensão imediata. Beleza de sonoridade, fraseado cuidadoso,
equilíbrio instrumental, articulação rítmica – esses são geralmente apresentados
como meios de projetar uma série de sons agradáveis ou passagens interessantes
para um público que é presumivelmente incapaz de compreensão sinótica de
qualquer ordem. Como contrapeso a essa abordagem, os ensaios anteriores foram
dedicados principalmente ao que pode ser chamado de performance da forma. Mas
é igualmente verdade que a moderna teoria musical tende a enfatizar os aspectos
unificadores da forma na medida em que parece aceitar como válido apenas o
modo de percepção que "melhor apazigua nosso desejo de inventar estruturas." 70
Eu prontamente admito essa luxúria, mas também devo confessar um deleite
igualmente profano no que Edmund Gurney chama de "as sucessivas notas e os
menores fragmentos, à medida que surgem momento a momento, em qualquer
peça musical que seja intensa e propriamente apreciada.” 71 Gurney, de fato,
representa um polo extremo para as visões formalistas em voga hoje, pois sua

69
Alfred Ottokar Lorenz (1868 -1939) foi um maestro, compositor e analista musical
austro-alemão. Sua obra principal é Das Geheimnis der Form bei Richard Wagner, em
quatro volumes. Wikipédia. (N. T.)
70
J.K. Randall, A Report from Princeton. In Perspectives of New Music, III / 2 (Prim.-Ver.,
1965), p.85.
71
Edmund Gurmey, The Power of Sound . New York: Basic Books, 1966 (reimpressão de
Londres, 1880 ed.), p. 214.
71

reivindicação quanto à primazia do detalhe é completa: “... indiferente do quão


orgânico o resultado do todo possa parecer quando amplamente conhecido, as
partes podem ser ditas aqui, no sentido mais verdadeiro, serem mais importantes
e primordiais do que o todo; pois o todo, sendo uma combinação de partes
sucessivamente (e muitas delas em grande medida independentes) apreciadas, só
podem ser impressionantes na medida em que as partes são impressionantes; e a
impressionabilidade só pode ser percebida ao se focar a atenção em cada uma das
partes de cada vez, e não pode ser resumida em olhares rápidos e abrangentes." 72
Poucos de nós iremos tão longe quanto Gurney; mas o exemplo de sua atenção
hedonista saudável em relação à superfície musical deve permanecer como um
lembrete constante de que há alternativas para a arrebatada exaltação de fórmulas
debilitadas e diagramas insípidos aos quais nossa ânsia hoje por estruturas às vezes
nos leva.

72
Ibid., p. 97.
72

APÊNDICE

Petrus Christus (1410 - 1475), Portrait of a Carthusian.


The Metropolita Museum of Art, NY.

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