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Introdução

Poderá parecer estranho que uma análise de Grande sertão: veredas parta de um
diálogo, embora mais implícito que explícito, com Teoria do romance, de Georg
Lukács, e as preleções de Hegel sobre a epopéia em sua Estética. Talvez pareça
mais estranho ainda ignorar os teóricos do romance, de Clara Reeve e o bispo
Huet a E.M. Forster, Wolfgang Kayser, R. Scholes e outros inumeráveis, sem
esquecer a moda recente do estruturalismo,* cujos princípios, válidos ou
supostamente válidos, são aplicados indiscriminadamente e com um incrível
desprezo pela História.

A tentativa de analisar a obra de João Guimarães Rosa a partir de um diálogo com


Hegel e Lukács, como pretendo, encontra sua explicação em vários fatores,
possíveis de serem reduzidos todos a um denominador comum. Contudo, para
clareza, serão apresentados separadamente.

1 – A nova narrativa épica latino-americana , à qual pertence Grande sertão:


veredas, representa um fenômeno qualitativo radicalmente novo no âmbito
daquela ficção romanesca ocidental cujo primeiro grande marco indiscutível é
Cervantes, com seu Dom Quixote, e cujo momento mais remoto talvez possa ser
detectado no Dolopathos, de Johannes de Alta Silva.

Quando Johannes de Alta Silva, ao escrever sua obra, achou necessário encontra-
la pedindo a benevolência e a compreensão do leitor para a incredibilidade dos
episódios que coletara, argumentando que o fizera apenas com intuito de deleitar,
o que, para ele, justificava os elementos de fantasia pura neles contidos, estava
definindo, in nuce e por contraposição, o que viria ser um dos caracteres
fundamentais, talvez mesmo o caráter fundamental, de toda a narrativa de ficção
surgida posteriormente na Europa e, de maneira particular e específica, do grande
romance do real-naturalismo, cujo ponto culminante é atingido nos séc. XVIII e
XIX.

Este caráter essencial, ao qual até hoje não se deu a atenção devida, talvez por
ser considerado algo implícito ou por inexistir um terminus comparationis , é o que
chamo de perspectiva ficcional lógico-racionalista. Esta perspectiva contém em si
dois elementos que sempre informaram a ficção cujos limites diacrônicos foram já
definidos:

A – A busca da verossimilhança, exigida por uma estrutura consciência lógico-


racional.

B – O distanciamento perante tudo quanto não for verossímil para uma consciência
cuja estrutura é a mencionada em ª

 
A – A busca da verossimilhança

Pode-se dizer que, em relação ao problema aqui analisado, esta característica não
é mais importante, por ela ser o normal, o mais comum na ficção ocidental cujos
primórdios se identificam com a decadência da épica medieval. Ela é simplesmente
a regra geral na grande ficção romanesca e os truques para salvar as aparências,
por mínima que seja a ameaça de um cético torcer de boca, que leitor de
romances não os conhece? Ou a história é apresentada sem mais nem menos
como vida dada, presenciada ou “ouvida” pelo narrador onisciente, do qual não é
lícito duvidar, já que ele tem o contínuo cuidado de não fugir ao verossímil, ou os
truques se multiplicam: memórias diretas, velhos papéis encontrados no fundo de
uma gaveta de uma cômoda ainda mais velha, o relatório do único sobrevivente
salvo miraculosamente de um naufrágio, de preferência depois de passar alguns
anos em uma ilha inóspita, etc. A gama dos truques, se assim podem ser
chamados tais processos, é ampla e variada. A norma geral, porém, é invariável.
Se a narração é realista, a verossimilhança deve ser mantida até às últimas
conseqüências, em que pese o perigo do resíduo. Sem esquecer que estes truques
foram utilizados algumas vezes com um certo distanciamento que poderia ser
chamado de irônico (é o caso do próprio Cervantes em seu Dom Quixote e de
Thomas em Dr. Faustus ), creio ser possível afirmar que eles estabelecem na
ficção ocidental o que chamo de continuidade racionalista.

B – O dinamismo perante tudo quanto for verossímil para uma


consciência lógico-racional

Quando Johannes de Alta Silva roga por compreensão e faz com que o leitor,
automaticamente, tome uma posição de diferenciação crítica, talvez seja possível
dizer que, naquele momento, o monge de Haute-Seille estava definindo, por
contraposição implícita, a exata natureza da perspectiva ficcional lógico-racionalista
e dava início ao processo de continuidade racionalista de que já se falou.

Por outra parte, este primeiro afirmar-se per negatione , da perspectiva ficcional
lógico-racionalista é ponto de eclosão daquele que poderia ser qualificado de
gênero menor da ficção ocidental: aquele gênero que se ocupa do inverossímil e
que, por exigência da consciência lógico-racional, que impôs sua perspectiva
também e de maneira óbvia ao campo da ficção, é obrigado a tomar como ponto
de partida o distanciamento.

Os meios pelos quais é obtido tal distanciamento também variam


consideravelmente e são, quase sempre, utilizados com a convivência implícita do
leitor. O autor do Dolopathos, em sua honradez ingênua e em seu primitivismo,
não dominava ainda tais sutilezas e obrigava-se quase a pedir desculpas. Nos
séculos posteriores, apesar do aumento da malícia nos ficcionistas do inverossímil,
nenhum deles, parece, conseguiu justapor, de forma inocente, fatos ou
acontecimentos verossímeis, possíveis no mundo empírico, a outros de ordem
inverossímil, quer dizer, impossíveis de serem aceitos por uma consciência de
estrutura lógico-racional. Também aqui as soluções encontradas foram as mais
diversas.

Na inviabilidade de uma análise exaustiva da questão, o mais fácil talvez seja dizer
que o processo mais simples empregado para alcançar o que chamei de
distanciamento é o próprio distanciamento. Em outros termos, o autor aceita as
regras do jogo imposto pela consciência lógico-racional do leitor e dele próprio e
confessa, explícita ou implicitamente que os fatos narrados são anormais,
incomuns, estranhos ao mundo do dia-a-dia, em suma, inverossímeis. É verdade,
permanece sempre uma pequena margem de dúvida que se baseia sobre a
eventual possibilidade de os fatos apresentados terem ocorrido. Contudo, esta
possibilidade não configura senão o que se poderia chamar de credibilidade
artística do autor, a qual, em última instância, justifica seu trabalho criador.

Retornando, o autor aceita e cria, ele próprio, o distanciamento. Este é o processo


utilizado por quase todos os autores do conto fantástico francês, por exemplo,
começando com o do extraordinário Lê Diable amoureux, Jaques Cazotte, e pelos
do romance gótico inglês, de Maturin a Walpole e M.G. Lewis até, já nos Estados
Unidos e bem posteriormente, Edgar ª Poe. “Românticos” alemães como
Eichendorf e Tieck podem também ser aqui enquadrados.

Não desprezando as diferenças entre eles, em todos estes autores há um traço


comum: não buscam a credibilidade ingênua do leitor. O narrado é mesmo
anormal, incomum,aterrador, ocorreu em eras remotas, em negros castelos
medievais, não raras vezes com a intervenção direta do elemento ou como
produto de maldições milenares (E. Sue, por exemplo) e crimes terríveis. Walpone
é um mestre, mas quem poderia imaginar o castelo de Otranto tendo como palco a
mansão de um conde inglês do séc. XVIII? O leitor de hoje o aceitaria, mas não o
da época da Aufklaerung. Bem o mostra o cuidado do autor em manter oculta sua
identidade, apesar de ter localizado seu conto nas terras da então – para os
ingleses – misteriosa e religiosa Itália.

Uma solução diversa, que se tornou depois clássica, foi encontrada por Ann
Radcliffe. O enredo de The mysteries of Udolfho é aterrador, o que não impede
que tudo, ao final, encontre uma solução e uma explicação naturais. Não é o que
se poderia qualificar de jogo limpo mas o romance policial demonstrou que a
fórmula foi muito bem aceita pelo menos em seu núcleo. Willian Beckford, tão
isolado e perturbador na literatura inglesa como no Brasil Jorge de Lima com
Calunga, utilizou um caminho todo próprio. Os estranhos episódios de Vathek são
narrados, tecnicamente, da mesma forma com que Stendhal escreveu O vermelho
e o negro. Não possuem nem mesmo o sarcasmo de Candide. O que é essencial,
porém, é que a ação se passa no misterioso Oriente, onde, por uma convenção
aceita implicitamente pela consciência lógico-racional européia, tudo é (era)
possível.

No universo ficcional do chamado romantismo alemão, mundo por excelência da


desilusão diante do real, não há nem a relação dialética ou de contraposição entre
o real, ou verossímil, e o irreal, ou inverossímil. As Maerchen se passam em um
mundo ideal, desligado a priori da terra, mundo no qual os seres se regem por
outras leis costumes, como é o caso de Von Amim, os Grimm Novalis, etc. Há uma
exceção importantíssima e fundamental: E.T.A> Hoffmann. É indiscutível que em
toda a literatura alemã e mesmo européia foi ele quem obteve maior êxito ao
tentar colocar lado a lado o verossímil e inverossímil. Daí resulta sua extrema
importância nesta breve introdução. Já de início é preciso dizer que o êxito de
Hoffmann é apenas parcial. No mesmo momento em que parece aproximar-se da
realização completa de seu objetivo, fracassa e demonstra, de forma indiscutível,
que na ficção européia ou de vertente européia era, não só técnica mas antes de
tudo consciencialmente impossível a criação de mundos regidos pela perspectiva
ficcional lógico-racionalista.

Deixemos Der goldene Topf de lado, pois neste conto se sucedem as insinuações
sobre a anormalidade psíquica do protagonista, e detenhamo-nos em Die
Brautwahl. Sem mesmo tocar no discutido tema do princípio serapiônico e da
conseqüente viabilidade ou inviabilidade de isolar os contos de Hoffmann da
moldura em que encontram na edição conjunta o assunto não teria aqui interesse
-, não há dúvida de que Die Brautwahl exemplifica de maneira drástica a
impossibilidade consciência acima mencionada. Depois de um impressionante tour
de force, depois de aplicar uma técnica da qual nenhum ficcionista europeu do
fantástico se aproximou, depois de conseguir colocar lado a lado e de forma que
se poderia chamar realmente de inocente os dois mundos opostos dos
acontecimentos possíveis no dia-a-dia, verossímeis, e o dos inverossímeis,
Hoffmann não resiste. Cede totalmente e ironiza sua própria técnica. Mais ainda,
encerra seu conto insinuando não ser ele senão uma parábola: a da relação entre
o artista e a arte. O fracasso de Hoffmann no último instante pode ser considerado
um símbolo da vitória absoluta da perspectiva ficcional lógico-racional em toda
ficção européia. Hoffmann parece ser realmente o limite e o sintoma. A prova da
inviabilidade da criação de um mundo ficcional que não fosse, direta ou
indiretamente, analógico às estruturas da consciência lógico-racional da civilização
européia que, na ficção, fazem seu primeiro tímido aparecimento do Dolopathos.

Aceito, em princípio, o que foi dito até aqui, apesar da esquematização inevitável,
seria desnecessário ir diante não fosse a existência de outros caminhos pelos quais
inverossímil, o fantástico, conseguiu sempre manter-se à tona, pelo menos
aparentemente, na ficção ocidental.Apenas aparentemente, porque, na verdade,
tais caminhos, que são essencialmente dois, resultam de um distanciamento maior
ou de um duplo distanciamento. No primeiro caso estão, por exemplo, o próprio
Cervantes e Dostoiewski, nos quais fatos inverossímeis ou inegavelmente
fantásticos são explicados através da perturbação psicológica das personagens,
mais exatamente através da anormalidade das mesmas. O doentio é, por
definição, anormal, incomum.

Um duplo distanciamento é o que ocorre na sátira, na alegoria e na ficção


simbólica, por difícil que seja estabelecer os limites exatos destas categorias, quer
entre si, quer isoladamente, ou por impossível que seja rotular autores. Não
obstante, é claro que para o autor satírico não interessa a descrição do real ou a
apresentação do verossímil mas sim a ação sobre o real, o que justifica, a priori,
todos os meios utilizados visando a consecução do objetivo. Desaparece, portanto,
por desnecessária, a pequena margem de dúvida ou eventual possibilidade, de que
se falou pouco antes. O efeito deste desaparecimento é que chamo de duplo
distanciamento. Rabelais, Swift e Voltaire são exemplos clássicos.

Para o autor da ficção alegórica ou simbólica, por outro lado, não interessa a
descrição do real e, esta a diferença essencial em relação ao autor satírico,
também não a ação sobre o real. Seu objetivo fundamental é a descoberta do
sentido do real ou a atribuição de um sentido ao real. A linha divisória entre a
ficção alegórica e a simbólica é muito tênue às vezes e, não raro, há o
entrelaçamento de ambas. Não estará contudo, longe do meio termo verdadeiro
quem considerar, por exemplo, as obras de Bunyn e Nuno Marques Pereira como
ficção alegórica e as de Melville, Hawthorne, Wilde e Balzac (A pele do onagro)
como ficção simbólica.

Retirando as conseqüências do que foi até aqui, pode-se concluir:

•  O mundo da ficção romanesca européia ou de vertente européia – por extensão,


da ficção romanesca ocidental – é construída a partir da perspectiva de uma
consciência lógico-racional.Internamente, quer dizer, no interior da própria ficção,
esta perspectiva tem como resultado o distanciamento em relação a todos os
fenômenos e elementos que não podem ser aceitos como verossímeis por esta
estrutura consciencial lógico-racional. A elevação deste distanciamento à categoria
de norma geral na ficção romanesca ocidental e sua presença nela é o que chamo
de continuidade racionalista.

•  Os teóricos desta ficção, de Huet aos mais modernos, movimentaram-se sempre


nos limites estritos e no interior de suas características essenciais, no interior da
própria natureza dela. Evidentemente, assim o fizeram pela simples e óbvia razão
de não possuírem, por não existir, um terminus comparationais.

•  Se, como foi afirmado, a nova narrativa épica latino-americana, ao colocar lado
a lado, de forma inocente, sem distanciamento, o mundo real, verossímil, e o
mundo mítico-sacral, inverossímil, assume elementos integrantes de estruturas
conscienciais diversas daquelas que informaram, até o presente, a ficção ocidental
cujos limites diacrônicos estabelecemos anteriormente, é lógico e necessário então
ignorar todas as categorias críticas criadas em um e para um outro mundo
ficcional. Temos que, em certo sentido, partir da estaca zero.

2 – Em certo sentido apenas, pois se recorda a intenção, manifesta logo no início,


de manter um diálogo implícito com Hegel e Lukács. Por que Hegel e por que
Lukács?

Antes de tudo, se Grande sertão: veredas foi qualificado como obra que integra a
nova narrativa épica latino-americana é fácil concluir que a pretendida tabula rasa,
que fora proposta como ponto de partida da análise, não é tão radical como à
primeira vista pareceria. Movimentamo-nos dentro dos limites do conceito de
épica, conceito que, na literatura ocidental, pode ser aplicado com propriedade,
segundo creio, baseado em um consenso mais ou menos geral, a três momentos.
Em primeiro lugar à única épica propriamente dita, o epos grego; em segundo a
obras da literatura medieval como Os Nibelungos, Parsifal, El Cid.

A canção de Rolando e a vasta produção de Chrétien de Troyes, além de outros,


menos importantes. Mas bem se sabe que a Weltanschauung idealista dentro do
qual tais se inscrevem e a enorme incidência do lírico e, às vezes, do trágico nelas
notada impõem perguntar até que ponto, no conjunto, se trata realmente de um
mundo épico. Para Hegel, por exemplo, e esta tendência parece ser a mais forte
hoje, além dos epos grego apenas o romance da idade burguesa européia deveria
ser qualificado como épico, particularmente na sua fase culminante atingida nos
séc. XVIII e XIX.

Os três momentos aos quais é comumente aplicado o conceito de épica são


mundos ficcionais de natureza diversa que surgem em mundos de estruturas
conscienciais obviamente também diversas, o mundo grego, o da baixa idade
Média e o da moderna idade burguesa européia. O que possuem em comum e
permite, pelo menos metodologicamente, engloba-los sob um conceito único é o
fato de neles, apesar das diferenças de natureza e intensidade, ser fixada, narrada
e celebrada a ação do homem sobre o mundo, fórmula que poderia definir de
maneira simples mas aproximadamente correta o conceito de épico.

Ora, se Grande sertão integra, como quer me parecer, aquele que se poderia
talvez chamar de um terceiro (ou quarto) momento da épica, então é claro que,
apesar de fazermos tabula rasa das categorias críticas aplicadas a um outro
momento da épica, aquele da moderna idade burguesa européia, não eliminados
as categorias críticas aplicadas à épica em geral. E seria possível então partir de
Aristóteles. Mas por que Hegel e por que Lukács?
Hegel, em suas lições de estética, colocou bases e definiu conceitos, apesar de
progressos posteriores, ainda hoje permanecem como dados fundamentais para a
tentativa de determinar a natureza, a função e a forma da épica. De tal maneira
que hoje surpreende ver como os conceitos hegelianos – que também não devem
ter surgido do nada, como é lógico- estão presentes implicitamente em autores
que partem de pressupostos metodológicos tão diversos como Lukács e Emil
Staiger.

Tais conceitos se incorporam ao patrimônio comum da cultura ocidental e quase


ninguém mais sente a necessidade de citar as fontes.

Além de tudo isto, foi Hegel quem pela primeira vez, de forma clara e indubitável,
qualificou a ficção romanesca européia – resumidamente, o romance – como
epopéia burguesa, afirmando que o objetivo da mesma é a realidade tornada
prosaica. Depois de Hegel as definições podem ter ganho em clareza mas a
verdade é que, seja na definição do conceito de épica, seja na definição de
romance, ficou-se mais ou menos a marcar passo. Não raro, porém, ocorreu coisa
pior e criou-se confusão. No que diz respeito ao romance, por exemplo, a definição
de Hegel é hoje tão atual como quando foi estabelecida pela primeira vez, com a
diferença, talvez, de ser hoje mais necessária para tentar ordenar o caos e colocar
no seu devido lugar as pretensiosas elucubrações dos que falam da existência ou
inexistência da crise no romance sem mesmo saber o que é na verdade romance e
sem tomar consciência de sua (deles) lamentável e imperdoável miopia histórica.

Se, portanto, a referência a Hegel tem, neste contexto e pelo menos para o leitor
de suas Lições de estética, clara justificação e motivos evidentes, o mesmo não
ocorre com a menção de Teoria do romance, de Georg Lukács. Esta obra,
fortemente abstrata, de não fácil compreensão, escrita em 1914, possui longa e
complicada história cujos detalhes, que não podem ser aqui abordados pelo
próprio autor para a edição alemã de 1962. Quase totalmente inaproveitável hoje
na segunda parte, a não ser como testemunho da trajetória espiritual de um dos
mais fascinantes e completos espíritos europeus deste século, superado pelo
distanciamento no tempo e pela evolução vertiginosa da história européia nos
últimos cinqüenta anos, confusa e falha de unidade por tentar unir pressupostos
ontológicos Kantianos e posições éticas hegelianas, com certa razão renegado pelo
próprio autor, esquecido por quase meio século, mal -aproveitamento

E mal-interpretado, Teoria do romance conversa profundo e indiscutível valor na


primeira parte, na qual a influência da dialética histórica de Hegel é considerável.

Nesta primeira parte se encontra o que permaneceu do livro e o que, explícita ou


implicitamente, impregna todos os que, com alguma inteligência, voltaram seu
interesse para o romance. O que Hegel esboçara sumariamente, sem alcançar
plena clareza, Lukács retrabalha e amplia: a caracterização e o enquadramento
definitivos do romance como forma do que se poderia chamar de um novo gênero
épico e como único fenômeno literário possível de ser, com propriedade, assim
qualificado, ao lado do epos grego, por ser um mundo completo em si próprio,
completo mesmo em sua intrínseca problematicidade.

Hoje, decênios depois do naufrágio final da idade burguesa européia, as intuições


de Lukács, baseadas em Hegel e ampliadas, conservam perfeita validade e
parecem adquirir uma transparência cada vez maior no horizonte do
distanciamento histórico. É fácil agora atacar as limitações e os equívocos de
Lukács – por ele próprio reconhecidos, aliás, mal grado tenha incorrido em novo
equívoco ao exagerar as implicações políticas diretas -, mas não se pode esquecer
que Teoria do romance foi escrito quando a débâcle começava seu caminho e –
não é por certo mera coincidência – pela época em que surgiram as grandes obras
de Marcel Prost, James Joyce, Thomas Mann, Virginia Woolf e Henry James. A
conversão de Lukács ao marxismo foi o resultado da intuição de um espírito eleito,
convencido, mas sem jamais tomar disso consciência clara, de que a filosofia
marxista era e é o derradeiro grande produto e a herdeira legítima da idade
burguesa européia, idade fixada, no plano artístico, nas obras do romance real-
naturalista. Teoria do romance está no início desta conversão e é quase coetânea
à explosão da I Grande Guerra, mensageira do fim inevitável de uma época
histórica. Não é mera coincidência que a partir, aproximadamente, da publicação
da obra de Lukács a ficção romanesca européia nos apresente mundos em crise
nos quais a consciência individual burguesa está em descaminhos, sem encontrar
saída, ou nos quais esta consciência simplesmente desapareceu.

Porque “a coruja de Minerva levanta vôo apenas ao cair do crepúsculo”, Teoria do


romance está no fim e no início. No fim do simples existir histórico, da epifania
inocente de um mundo; no início da consciência, ao debruçar reflexivamente sobre
este mundo. Porque a consciência é, fundamento e tragédia do fazer humano,
sempre passado.

Lukács, nas nem sempre claras intuições da primeira parte, age como um divisor
de águas. Depois ele não será mais possível esquecer - sob pena de não se
entender nada – que o romance europeu é realmente a epopéia de “um mundo
sem deuses”, dessacralizado, onde todos o valores são relativos e onde esta
relativização é, paradoxalmente, a própria plenitude. Um mundo estilhaçado, órfão
de um catalisador ou, melhor, mundo cuja própria unidade é a de não possuí-la.
Este é o sentido da expressão lukacsiana mundo degralado, dentro do qual
caminha um herói também degralado, problemático, isto é, incapaz de recolher os
fios e repor os estilhaços. Cada romance é um mundo próprio, cada herói busca
outros, diversos, valores. Eis por que o romance é o mundo da total relatividade
ou, em termos lukacsianos, da total degradação. Se nos afastarmos um pouco da
terminologia um tanto poetizadora do autor, torna-se claro que, ampliando os
esboços de Hegel, Lukács historiza o mundo das formas eternas e define o
romance como a nova européia,. Esta idade sem deuses, dessacralizada , de
valores relativizados, não é senão o lar da consciência lógico-racional. E o romance
não é senão a forma homóloga desta mesma consciência.

Talvez agora seja fácil compreender por que o pressuposto que informa esta nova
forma é o que chamei de perspectiva ficcional lógico-racionalista e por que tudo o
que nela não se enquadra é visto à distância. As conclusões a tirar são tão lógicas
que nem sempre é fácil compreender a confusão reinante, na Europa e em outros
lugares no debate sobre a chamada crise do romance. No romance do real-
naturalismo o mundo

Sem deuses burguesa encontrou sua forma artística. Esta forma é a vida vivida e
narrada a partir da perspectiva ficcional lógico-racional. Como já foi dito há pouco,
o romance é, portanto, a forma artístico-espiritual homóloga à visão de mundo em
cujo horizonte nasceu e cresceu. Ora, a crise desta visão de mundo, provocava
pelo abalo e/ou desaparecimento das realidades sócio-históricas das quais era a
superestrutura, necessariamente deveria gerar a crise e o desaparecimento da sua
forma artística homóloga. A idade burguesa européia e sua síntese se
desintegraram completamente na primeira metade do séc. XX. Eis por que a
narrativa ainda pode existir na Europa. O romance europeu, desapareceu no
horizonte histórico para jamais retornar.

Estas me parecem ser as conclusões das lições, implícitas evidentemente, de Hegel


e Lukács. Então é pelo menos humanamente compreensível o fato de serem as
lições de ambos, neste setor, esquecidos ou até ignoradas pela quase totalidade
da crítica européia, em particular na Alemanha e na Inglaterra. As feridas ainda
não cicratrizaram e qual a consciência, qual a estrutura histórico-cultural disposta a
reconhecer seu crepúsculo, mesmo se o dia foi glorioso?

Hegel e Lukács são importantes como ponto de referência na análise de uma obra
da nova épica latino-americana na medida em que ambos captam as coordenadas
históricas dentro das quais surgiu e desapareceu o romance: a estrutura
consciencial localizada, dessacralizada, do mundo europeu; na medida em que, por
terem desvelado o essencial, esclarecem, por contraposição, a especificidade de
uma obra nascida dentro de outras coordenadas históricas. Por outra parte, só
Hegel e Lukács interessam porque, neste contexto, todos os demais teóricos do
romance, com raras exceções, produziram apenas variações sobre ou ampliações
do mesmo tema, como não poderia deixar de ser. Ora, a nova narrativa épica
latino-americana é, para mim, um outro tema, um terminus comparationis,
inexistente até então, para o romance europeu.

Para encerrar esta introdução, seja dito de imediato, antes de entrar de grande
sertão: veredas: a obra de Guimarães Rosa, para mim, não integra um novo
gênero literário, o que seria exagerado e falso, mas sim uma nova forma de
narrativa épica, talvez num novo momento da épica, possuidor de uma
essencialidade própria e surgido dentro de coordenadas históricas específicas. Por
tudo isto este novo momento representa um corte na narrativa ocidental e, em
conseqüência, deve ser analisado a partir dele próprio, sem forçar relações falsas
com o romance real-naturalista europeu e derivados, com que nada tem a ver.
Para este novo momento da épica aplico a expressão nova narrativa épica latino-
americana, segundo ficou estabelecido na nota 1.

Finalmente, reconheço como provisórias todas as conclusões desta breve análise


da extraordinária obra rosiana e, assim fazendo, curvo-me à condição do espírito e
do fazer humanos. Um julgamento definitivo de uma obra de arte, caso aceitamos
seja isto possível, só o distanciamento histórico o permite. O que não deve impedir
a dúvida e a inquietação presentes, instrumentos para olvidar o transitório. Em
tudo o mais.

Vien dietro, e lascia dir lê genti...

Notas

1. Sendo impossível, neste momento, apresentar uma introdução à nova narrativa


épica latino-americana e definir-lhe exatamente o sentido e os limites – o que
talvez me seja permitido tentar futuramente -, torna-se necessário solicitar a
benevolência do leitor para esquematização e a falta quase completa de indicações
bibliográficas nesta introdução. Na verdade, apesar de considerar, neste ensaio,
como periféricos vários temas aqui abordados, o rigor metodológico exigiria que
eles não fossem apresentados apenas de forma esquematizada ao extremo.
Contudo, por vários motivos, optei pela publicação imediata de alguns resultados
que penso ter colhido na leitura aprofundada de Grande sertão: veredas, para o
que julguei conveniente iniciar com esta introdução, apesar de incompleta. Dada
uma série de fatores, um adiantamento que permitisse aplicar todo o rigor possível
implicaria a não-publicação deste pequeno ensaio dentro de um tempo previsível.
Havia que escolher.

No que se refere à expressão nova narrativa épica latino-americana, ela foi


adotada na falta de outra melhor. Novo romance latino-americano não seria
expressão muito clara, primeiramente por se ligar, no que tange à terminologia, ao
nouveau roman, qualificativo reservado a uma parte importante da narrativa
francesa do segundo pós-guerra e, além disto, porque, com tal denominação, as
obras fortemente europeizadas de Jorge Luís Borges, Júlio Cortazar e outros
dificilmente poderiam ser excluídas sem se entrar em longas argumentações.
Também Poe esta última razão preferi o adjetivo épico expressão nova narrativa
latino-americana. É preciso dizer imediatamente que épico recebe aqui o sentido
amplo e aproximado de romanesco, como verá mais adiante.
Dissecando a expressão, temos, portanto: o termo nova, que indica a existência de
uma narrativa épica (romanesca) anterior, e qualitativamente diversa, no espaço
latino-americano; o termo narrativa, que se refere à forma com que se apresenta o
fenômeno em questão, ou seja, como narração, forma clássica do romance
europeu do real-naturalismo; e, finalmente, o adjetivo épica quer deixar claro que
se trata da narração da ação do homem no e sobre o mundo, no mesmo sentido
com que Hegel e Lukács chamaram de épico (adjetivo) o acima mencionado
romance do real-naturalismo europeu.

Entre as obras que poderiam ser consideradas típicas que defini como nova
narrativa épica latino-americana estão O reino deste mundo e O recurso do
método (Alejo Carpentier), cem anos de solidão e O outono do patriarca (Gabriel
Garcia Márquez), Eu, o supremo (Roa Bastos), Bom dia para os defuntos (Manuel
Scorza), Pedro Páramo (Juan Rulfo), Grande sertão: veredas João Guimarães
Rosa), O coronel e o lobisomem (José Cândido de Carvalho), A pedra do reino
(Ariano Suassuna), Os Guaianãs (Benito Barreto), Sargento Getúlio (João Ubaldo
Ribeiro) e O romance da Besta Fubana (Luiz Berto). A relação é incompleta,
certamente, mas suficiente para deixar claras algumas características comuns a
todas elas, características estas discutidas ao longo destes ensaios.

2. O monge cisterciente Johannes de Alta Silva (Haute-Seille) viveu no mosteiro


que lhe dá o sobrenome, no bispado de Nancy, por volta do fim do séc.XII. Seu
Opusculum de rege septem sapientibes, conhecido também por Dolopathos,
principalmente na França, foi dedicado ao bispo Bertrand, de Metz, e é a primeira
versão cujo autor se conhece do ciclo ocidental da História dos sete mestres
sábios. A edição crítica aqui utilizada é a de Alfons Hilka, publicada em 1913 pela
Carl Winter's Universitaetsbuchhandlung, de Heidellerg.

3. “Hic ergo narrationi mee finem imponens lectorem rogo ne incredibilia uel
impossibilia me scripsisse contendt nec me iudicet reprehensibiliem, quase eos
imitatus sim quorum uitia in libri prefatiuncula carpserim, quia non ut uisa ut
audita ad delectationem et utulutatem legentium, si qua foprte ibi sint, a me
scripta sunt; quamquam etiam etsi facta non sint, fieri tamen potuisse credendum.
Ceterum autem cogetur nemo múnus habere meun, neminem hec legere compello.
Verum siquis malicia aut inuidia magis quam iusto zelo sucensus nostra dampnat
nec nostram recipit satisfactionem, dicat et ipse michi quomodo magi Pharaonis
uirgas suas in colubros mutauerint, quomodo produxerint ranas de palidibus,
quomodo aquas Nili uertrint in sanguinem; dicat st ipsi michi quomodo Pythonissa
propheram suscitauerint Samuelem, quodomo etiam, Solis filia, Vlixis in diversa
transformanuerint animália, quod vere factum beatus Augustnus Ysidorusque
Hyspalensis testantur. Et cum negare omnia non possit, nostra quoque ut recipiat
necesse est”.
No texto pode ser perfeitamente captado o alvorecer do racionalismo na ficção
ocidental (como o nota Também de passagem Helmuth Himmel em sua Geshiche
der deutschen Novelle. Brn und Münchemn, Francke Verlag, 1963. p.10) Johanes
de Alta Silva, de forma primitiva e ingênua, mas muito clara apesar disto,
estabelece um distanciamento em relação à sua própria obra, acentuando que
apenas ouvira relatar e não presenciara (non uisa sed audita) os fatos narrados,
Paradoxalmente, contudo, logo em seguida se apóia na autoridade da Bíblia e em
antigas lendas – endossadas pelo beato Austinus e por um certo Isidorus
Hyspalensis! – para defender seus contos. E termina com uma frase lapidar, com a
qual julga arrasar a possível desconfiança racionalista do leitor – e talvez a sua
própria! – e obter uma vitória sem apelação: “E como ele (isto é o, desconfiado,
descrente) não pode negar tais fatos (as histórias da Bíblia e as endossadas pelo
beato Augustinus), necessariamente terá que aceitar os nossos”. O que o ingênuo
monge de Haute-Seille não podia ainda era distinguir entre o não poder gerado
pelo domínio absoluto de uma estrutura cultural fundada sobre bases jurídico-
conscienciais religiosas e o não poder de alguém que se baseasse em uma
argumentação lógico-racional. No primeiro caso, realmente, não era possível. No
segundo começava a ser possível, como mostra o próprio Johannes com seu
racionalismo, tateante ainda e cuja forma posterior parece começar a delinear-se
no horizonte.

4. Sem esquecer a ficção de vertente claramente européia, como o é, por


exemplo, o romance brasileiro do séc.XIX, quase todo norte-americano deste
século e o ciclo do romance de 30.

5. Não há dúvida de que Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis,


pode ser considerado uma sátira genial a tudo isto.

6. Quando empregada, a palavra ficção tem ensaio, o sentido aproximado de


narrativa ficcional,em prosa.

7. Fica subentendido que o mundo ideal da épica medieval, de Os Nibelungos a


Chrétiem de Troyes, se situa em outro plano de criação artística que não o da
narrativa ficcional em prosa como ela é entendida aqui, ou seja, em relação direta
com o real, empírico.

8. Não tenho a pretensão de ter lido todos, nem de longe. Apenas os que são, de
forma geral, considerados os mais importantes.

9. Veja-se a esclarecedora introdução de P.G. Gastex em seu Lê conte fantastique


em France. Paris , José Corti 1951.

10. Uma exceção é Balzac em la peau de chrgrin, outro exemplo fundamental da


mencionada impossibilidade consciencial. No último parágrafo do livro, Balzac
alegoriza; dir-se-ia que sem necessidade, sua obra ao definir a personagem
Foedora como símbolo da sociedade: C'est, si vous, la société. Em resumo, todo o
epílogo era perfeitamente dispensável. Contudo, foi escrito! Como Hoffmam,
Balzac destrói o enorme esforço despendido em juntar o verossímil e o
inverossímil.

11. Em lugar do termo fantástico, mágico ou qualquer outro semelhante, prefiro


mítico-sacral, termo que será justificado mais adiante, para qualificar o inverossímil
quando presente na nova narrativa épica latino-americana.

12. Dada a densidade do texto original, as traduções neolatinas existentes


simplesmente não conseguem muitas vezes eliminar seqüências de raciocínios que
parecem confusos e até incompreensíveis.

13. Cf. G. Bruun em Nineteenth-century europeu civilization, 1815-1914. London ,


1959.

•  Entre o passado e o presente

O descaminho ou a ausência de resultados satisfatórios da maior parte da critica


que abordou Grande sertão: veredas procede, ao que tudo indica, da incapacidade
de perceber as conseqüências daquilo que é evidente: Guimarães Rosa é
completamente novo e não possui precedentes na longa história da ficção
romanesca ou de vertente européia; da incapacidade de formar uma visão de
conjunto, de captar os fundamentos sobre os quais repousa a mundividência de
Riobaldo e se dá seu agir. Ninguém parece ter sentido a necessidade de definir
com precisão as bases ético-espirituais que informam um mundo povoado por
heróis à primeira vista tão estranhos, por serem tão novos e tão únicos. A
originalidade da obra rosiana explica o impressionismo laudatório, a impotência
sem rumo das raras depreciadoras ou o silêncio, pelo menos inteligente, daqueles
que não falam sobre a mesma porque realmente não sabem o que fazer com ela.
Mas de maneira alguma explica as referências “a épica medieval ou, pior, as
aproximações com romancistas da decadência do real-naturalismo como Joyce e
Thomas Mann. Qual a relação existente entre o mundo da era medieval e a rudeza
de uma terra em que vivem os catrumanos? Entre a busca do Graal e a narração
de Riobaldo a um doutor motorizado? Entre a Idade Média e a era pós-européia?
Qual o elo de união os heróis decadentes e decaídos de Thomas Mann e Joyce e a
inabalável crença laica de Riobaldo na descoberta, fruto de sua trajetória
existencial, de que existe é homem humano? A comparação com obras simbólicas
modernas como Moby Dick seria bastante mais lógica. É preciso, porém, fugir aos
desvios.
Para começar pelo princípio, toda análise de Grande sertão veredas, explícita ou
implicitamente, querendo ou não, se ocupa de uma obra cuja estrutura é a
contínua contraposição entre passado e presente, em todos os aspectos. Esta
dialética informa e é toda a obra. A análise cujo ponto de partida ou, pelo menos,
cujo campo de movimento não for este corre o sério risco de se tornar periférica, o
que não significa sempre não ter nenhum valor, pois a multiplicidade temática de
Grande sertão; veredas possibilita as perspectivas mais diversas. É evidente, o
sentido dos ensaios de interpretação global de obra tão complexa variará sempre.
Contudo, se não se tomar consciência do contínuo variar do plano temporal, se
não se compreender que a totalidade resultante deste alternar-se contínuo é a
obra, não é possível tentar uma interpretação global justificável e lógica, seja ela
qual for.

O alternar-se dos planos temporais, a dialética entre passado e presente, funciona


como totalidade informadora e indivisível. Entretanto, por necessidade
metodológica e de clareza, parece recomendável aceitar uma análise por etapas
progressivas, que são: a estrutura técnica, o mundo interior e, finalmente, o
mundo exterior.

A ESTRUTURA TÉCNICA

Grande sertão: veredas é construído com um longo diálogo-monólogo de Riobaldo,


protagonista, com um interlocutor imaginário. Talvez a expressão interlocutor
imaginário não seja a mais apropriada. Melhor seria denomina-lo interlocutor
oculto, pois é quase desconhecido para o leitor. Interlocutor mundo, é verdade,
mas de forma paradoxal, já que intervém no diálogo, como é claro em várias
passagens, o que pode ser exemplificado com o momento em que Riobaldo
menciona “o diabo na rua, no meio do redemunho...”, “a p.13. Tendo em vista ser
esta a primeira vez que Riobaldo faz referências ao assunto, o interlocutor pede
explicações (sua voz não é ouvida e jamais o será), ao que responde o
protagonista, parecendo não ter ouvido bem: “Hem? Hem? Ah. Figuração minha,
de pior para trás, as certas lembranças.” O interlocutor – e não coloco palavra
entre aspas exatamente por isto – existe.

As informações sobre ele são parcas mas bastante objetivas: trata-se de um


doutor que percorre os gerais em seu jipe e que numa terça-feira qualquer (p.22)
chega “ fazenda em que vive Riobaldo com a mulher, Otacília. O doutor ali
permanece até quinta-feira e neste espaço de tempo o fazendeiro e ex-jagunço
narra sua vida. Esta narração, entrecortada por breves mas numerosos diálogos
com o interlocutor, que de vez em quando interrompe a contínua seqüência da
recordações do narrador, é a obra de cerca de 450 páginas.
A estrutura temporal da narrativa, portanto ,é, neste nível, de perfeita
transparência. Há o presente e o passado, separados por uma linha divisória cuja
nitidez não poderia ser maior. O presente temporal – porque há um outro
presente, como se verá mais adiante – do narrador se prolonga por três dias,
como ficou dito, formando um espaço homogêneo, estático. Em terminologia
bergsoniana dir-se-ia que a durée existe, e são os três dias necessários “a
narração; tempo psicológico, porém não existe e, sob este ângulo, pouco importa
a extensão temporal do diálogo monológico.

Um segundo, três dias ou um milênio: nenhuma diferença faz, Riobaldo é. E o


presente é seu tempo verbal.

O segundo elemento do alternar-se na estrutura temporal de narrativa é,


evidentemente, o passado. Se o presente é o plano no qual ocorre a narração, o
passado é o plano do acontecer dos eventos que são, no presente, a própria
narração. Tecnicamente, o plano narrativo do passado não é claro. Melhor, é claro
mas não transparente. O plano do presente, como se viu, é simples. O do passado,
porém, possui um alternar-se próprio, intrínseco, no qual os eventos não são
narrados cronológica e sim desordenadamente, pelo menos em grande parte. De
tal forma que um fato da infância (o encontro com Diadorim), o primeiro na ordem
cronológica, aparece “a p.80, depois de Riobaldo ter narrado façanhas do tempo
da jagunçagem. Importante, porém, no âmbito deste estudo, é que o último
evento narrado por Riobaldo é também o último, cronologicamente, no plano do
passado: a visita ao compadre Quelemém, relatada na página final da obra. Isto
serve para marcar com maior vigor ainda a linha divisória dos dois planos
temporais que são os elementos da contraposição. Narrada a visita, retorna o
tempo verbal do presente. Quer dizer, até o encontro com Quelemém existe e
vigora o plano do passado, narrado por Riobaldo no tempo verbal do passado.

Neste plano há uma durée e há um tempo psicológico. A partir do encontro com o


compadre o fluir do tempo pára e somente reaparece extrinsecamente, como o
espaço temporal necessário à narração.

Estas características técnicas, juntamente com as implicações do alternar-se e, ao


mesmo tempo, da separação radical e intransponível dos dois planos temporais,
somente podem ser compreendidos perfeitamente se colocadas em relação com a
interioridade de Riobaldo, também fundada sobre o oscilar entre passado e
presente.

O MUNDO INTERIOR

Grande sertão: veredas é a narração, feita pelo próprio protagonista, Riobaldo, de


seu caminho existencial: se sua vida e, mais especificamente, de sua trajetória
interior. Como fica evidente pela análise da estrutura técnica da narrativa, a
narração dos eventos se dá no tempo estático, sem, fluir, do presente. Estático
seja no período de tempo exigido pela narração propriamente dita (três dias, nos
quais o tempo psicológico não existe, pois Riobaldo é), seja no período que vai
desde o acontecer do último evento (a visita a Quemelém) até a palavra que
encerra o diálogo-monológico, período, portanto, que reúne em si os três dias nos
quais Riobaldo assume a função de narrador. Em todo este período-aquele que vai
da visita a Quelemém à última palavra do diálogo-monólogo – inexiste o tempo
psicológico. O que daí resulta é evidente. Riobaldo, ao começar a narração,
encontra-se em um – seja assim chamado por enquanto – estado anímico
alcançado em algum momento de seu passado (visita a Quemelém), sem que se
possa determinar com exatidão o quando. Determinar isto não é possível, porque a
respeito do período estático do presente sabe-se apenas que ele começa com a
visita a Quemelém e termina com a chegada do doutor, ou, se quiser, com a
última palavra da narração. Nada, absolutamente nada, se sabe a mais. Da visita a
Quemelém até a chegada do doutor temos um tempo sem eventos, sem fluir
portanto. A narração tem apenas seu fluir temporal próprio, externo a Riobaldo.
Daí resulta, portanto, que Riobaldo seja, no plano do presente, intemporal e possa
recomeçar a narração ad infinitum. Aliás, esta possui uma evidente estrutura
circular. Em resumo, no plano do presente – que se prolonga até a palavra final da
obra – o tempo é absolutamente estático. Assim se pode compreender pó que,
caso queiramos imaginar visualmente a situação dos dois interlocutores durante a
narração de Riobaldo, só podemos compor mentalmente uma cena estática, sem
qualquer movimento espacial. Duas cadeiras frente a frente! Não importa que
Riobaldo ofereça o cafezinho ao doutor (p.234). O cafezinho não é oferecido nem
o cigarro é pitado. Aristides (p.9) e Jisé Simplício (p.10) existem no plano temporal
do presente, tal como deve existir a empregada que traz ou traria o café. No
entanto, eles não existem em relação a Riobaldo. Nada existe e ninguém existe em
relação a Riobaldo e, em conseqüência, nada pode afetar Riobaldo, muda-lo,
exercer influência sobre ele. Riobaldo vive um mundo estático, desde então e para
sempre. A presença do doutor não o afeta, pelo simples fato deste pertencer a
outro mundo, como se verá adiante.

Se o caráter do plano temporal do presente é absolutamente estático, o do


passado não. O passado, isto é, o tempo do acontecer dos eventos narrados, flui
como durée e como tempo psicológico, criando a separação radical entre os dois
planos e fazendo da dialética entre passado e presente o elemento essencial da
estrutura da obra. Para se compreender a natureza desta contraposição de planos
temporais é necessário, antes de mais nada, definir a natureza dos elementos que
a compõem: o estado anímico de Riobaldo no presente e no passado.

•  NO PRESENTE
Mais uma vez, a divisão é exigida por questão de clareza, pois o presente em
Grande sertão: veredas não pode ser compreendido senão em relação ao passado.
E vice-versa. É viável, porém, tentar determinar separadamente suas
características desde que, ao final, se chegue a uma conclusão que englobe ambos
os planos.

Antes de tudo, o presente é o ponto final, o último estágio da travessia de


Riobaldo. Em todos os sentidos: existencial, especificamente interior ou espiritual
e, até, geográfico, social e econômico. Qual é, portanto, nos limites deste
presente, a condição espiritual, o estado interior ou, como antes foi definido, o
estado anímico do protagonista?

A resposta, obviamente, só pode ser encontrada de maneira imediata naquelas


partes da narrativa nas quais vigora o plano do presente. Naquelas partes em que
Riobaldo dialoga com seu interlocutor oculto. Ora, a situação espiritual e interior
de Riobaldo e o plano temporal do presente em seu todo – realidades que, como
vimos, são, ambas, estáticas – são condicionadas pela experiência existencial do
protagonista e pelo plano do passado em seu conjunto, aquela como este
envolvidos no fluir do tempo exterior (durée) e do tempo psicológico. Em
conseqüência, a condição estática do presente, se isola, surge apenas como sendo
a outra margem, o estágio final. Sua compreensão, porém, só é possível na
medida em que for relacionada com o outro elo da corrente, que é o passado.

•  NO PASSADO

É verdade que há o risco de se entrar em um círculo vicioso, porque o passado


também apenas existe e pode ser analisado em relação ao presente. Mas resta a
vantagem acaciana: o passado, a travessia de Riobaldo, é anterior ao presente, à
condição estática final. Lógico, então, é Tentar agarrar os elos anteriores da
corrente, mas sem receio de tocar nos derradeiros, sempre que isto for necessário.

O passado de Riobaldo é um caminho. Que se inicia com o encontro com o


menino, Diadorim, à margem do São Francisco. Falecida a mãe, Bigri, vai para a
fazenda de Selorico Mendes, seu pai natural (a prova definitiva de que ele
realmente o é vem ao final, com a herança das fazendas). Aprende a ler com
Mestre Lucas. Desgostoso com os comentários sobre sua filiação, foge da fazenda
de Selorico Mendes e acaba como professor de Zé Bebelo, folclórico figura de
cacique do interior, mistura de cangaceiro e político, nada rara, aliás, nos tempos
da República Velha. Decidido a seguir seu próprio destino, deserta do grupo de Zé
Bebelo e pouco depois, ocasião em que se inicia propriamente sua vida de
jagunço, ocorre seu segundo encontro com Diadorim, que já integrava então, ao
lado de Hermógenes e Ricardão, o bando de jagunços comandado por Joça
Ramiro, posteriormente assassinado à traição. Riobaldo serve no grupo
comandado por Medeiro Vaz, que, para vingar a morte de Joça Ramiro, tenta a
travessia fracassada do liso do Sussuarão com o objetivo de surpreender
desprevenido o grupo dos assassinos, Hermógenes e Ricardão. Ainda simples
jagunço, mas já famoso como atirador, Riobaldo aceita o comando de Zé Bebelo,
que se tornara o líder do bando. Aos poucos vai perdendo a confiança em sua
retórica muito nacional e, finalmente, o expulsa, assumindo ele próprio, Riobaldo,
a chefia dos jagunços. Atravessa o Liso e, sempre ao lado de Diadorim, retorna e
enfrenta os traidores. Hermógenes e Ricardão morrem. Mas Diadorim também,
revelando-se como mulher, filha de Joça Ramiro. Com isto, Riobaldo abandona a
vida de jagunçagem e se casa com Otacília, filha do proprietário da fazenda Santa
Catarina, nos Buritis Altos, herdando em seguida duas fazendas com a morte de
seu padrinho (e pai) Selorico Mendes. Em uma destas, a maior, o encontra o
doutor, que ouve sua narração.

Esta é, fortemente esquematizada, a travessia exterior de Riobaldo, que, no plano


social, passa do nada fazendeiro no sertão de Minas/Gerais. Mas neste momento
nosso interesse está voltado especialmente para sua travessia interior, para seu
caminho espiritual, cujo marco derradeiro é o encontro com Quelemém, quando,
segundo afirma o próprio Riobaldo ao final, a narração é feita pela primeira vez.
Uma catarse evidente, uma confissão laica.

Claro que o passado de Riobaldo é conhecido apenas através de sua narração no


presente. Contudo,é possível e necessário ressaltar alguns aspectos essenciais
neste passado, tentando capta-los em sua objetividade como passado, isto é,
antes de passarem a integrar a consciência reflexiva de Riobaldo.
Metodologicamente esta tentativa é, se dúvida alguma, válida, pois através do
destrinçar o passado talvez seja possível identificar dados e momentos
fundamentais no caminho de Riobaldo dados e momentos que em meio ao
explodir da narração no presente correm o risco de parecerem sem importância ou
secundárias, quando, na verdade, são os primeiros elos da corrente, tão
importantes quanto os últimos, apesar de sua menor evidência.

A travessia interior de Riobaldo parece marcada fundamentalmente pelo problema


– que, se fizermos uma referência à literatura européia, poderemos qualificar de
hamletiano – da consciência isolada, elitária, eleita. Se há, em essência, uma
dialética entre passado e o presente, não menos verdadeira é a existência de um
conflito no próprio passado do protagonista. E este conflito surge do que se
poderia chamar a eleição de Riobaldo. Todo o leitor atento de Grande sertão:
veredas poderia definir tal conflito exatamente em termos de eleição: Riobaldo foi
um jagunço entelectualizado, pelo menos em relação ao seu meio. O perguntar
pelo sentido da existência, surgido nas auroras da vida do protagonista, é ilógico e
absurdo se levarmos em conta o ambiente em que vivia. Riobaldo foi, na verdade,
um jagunço civilizado a meio, um meio paradoxo ambulante. Até que ponto este
conflito era consciente no plano do passado é impossível dize-lo. No presente,
contudo, Riobaldo o entrevê com clareza perfeita como se pode observar às p.133
(“Então eu era diferente de todos ali?Era.”) e 149 (“Aqueles?Diadorim e os outros?
Eu era diferente deles”.)

De onde provinha tal diferença? Não há dificuldade em localizar suas raízes.


Riobaldo, antes de ser engolido pelo sertão, fora educado por Mestre Lucas e
chegara a ser professor e secretário de Zé Bebelo. Eis o elemento detonador do
conflito que perpassa e, mais ainda, determina a trajetória existencial do
protagonista.

•  OS ELEMENTOS DO CONFLITO (NO PASSADO)

É necessário não perder de vista que estamos tentando ver Riobaldo de fora e
apenas no plano do passado, onde foi localizada a existência de um conflito. Será
possível detectar os elementos que o integram?

Os sinais parecem bastante claros. Na consciência de Riobaldo se digladiam dois


mundos. O mundo de estruturas conscienciais mítico-sacral, primitivo, e outro, o
mundo da civilização, o mundo de uma consciência reflexiva já no plano lógico-
racional (Riobaldo vê claro: “Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse,
eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu
não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte.” P.110). O
jagunço, segundo a própria definição de Riobaldo, é o não-reflexivo, o primitivo
(“Mas eu entiquei: – Não podendo entender a razão da vida, é só assim que se
pode ser vero e bom jagunço... ”, p. 432; o grifo é de João Guimarães Rosa).
Daqui é que procede o choque, o drama íntimo de Riobaldo. Seu refletir, ainda que
no alvorecer, não se casa com seu agir. Assim nasce na alma de Riobaldo o que se
poderia chamar de um conflito hamletiano sui generis, cuja solução, também sui
generis, virá apenas mais tarde. Hamlet é um ser dividido entre a reflexão e a ação
mas é psicologicamente unitário na medida em que seu conflito se dá no plano de
uma Weltanschauung lógico-racional, levada ao paroxismo da intelectualização, em
choque com o mundo real, empírico, podre, do reino da Dinamarca. Riobaldo vive
e age em um mundo, em um plano de consciência, mas concomitantemente inicia
– de forma mais ou menos inconsciente, pois a consciência plena de sua situação e
de sua trajetória surge apenas depois de Quelemém, quer dizer, no limite com o
presente – a caminhada que o levará à superação deste mundo e deste plano de
consciência. O conflito de Riobaldo não é, portanto, o conflito hamletiano (do qual
externamente se aproxima) entre teoria e práxis mas sim o choque entre dois
mundos de estruturas conscienciais apostas e irreconciliáveis quando colocadas
frente a frente.

A semente do mundo lógico-racional lançada por Mestre Lucas fora inchando. E


explode no episódio das Veredas Mortas (p. 136), sempre de novo adiado por
Riobaldo (“só não quis arrependimento: porque aquilo era sempre começo, e
descoroçoamento era modo-de-matéria que eu já tinha aprendido a protelar.” p.
110). Não há dúvida, o que está em jogo neste episódio central de Grande sertão:
veredas é a luta entre dois mundos, entre dois planos de consciência. O plano dos
terrores sacrais, das superstições, das crenças e devoções ecléticas – que vão do
corpo fechado até à aceitação da existência do Diabo – e o mundo laicizado da
consciência lógico-racional. O choque entre a consciência de um primitivo e a
consciência do homem civilizado ou pré-civilizado (no sentido ocidental europeu).

No episódio das Veredas Mortas – aliás, mais exatamente, Veredas Altas, como
posteriormente tanto Riobaldo como o leitor são informados – ocorre o duelo final.
O Diabo não aparece porque não existe (p. 319) e o mundo mítico-sacral começa a
ruir. A partir de então Hermógenes passa a ser identificado com o próprio Demônio
e deve ser destruído. As recaídas (p. 355-6) e as ameaças que pairam sobre a
encontrada maioridade espiritual de Riobaldo têm seu fim e desfecho na luta final,
de insuperável grandeza artística e de simbolismo inequívoco. Diadorim, um dos
elementos essenciais do destino de Riobaldo (p. 310-409), mata Hermógenes, o
outro elemento do destino, e se revela como mulher. Parece claro : Diadorim,
cumprindo também seu próprio destino – secundário, pois só existe na medida da
relação com o de Riobaldo –, se desvelando como mulher e, ao lado de Riobaldo-
homem, surgindo como último fundamento objetivável da condição humana para
uma consciência que aceita apenas o mundo imanente, destrói Hermógenes,
personificação do mal, isto é, do Demônio. Mas o Demônio não existe depois de
Veredas Altas.' Personificação, portanto, em última instância, dos terrores
primitivos, inerentes a um mundo de estruturas conscienciais mítico-sacrais.
Terrores estes já vencidos por Riobaldo pela primeira vez nas Veredas Altas.
Depois daquele episódio central terminara praticamente a travessia interior de
Riobaldo. Restava apenas levá-la às últimas conseqüências, o que é feito na
batalha final, que permanecerá sem dúvida como uma das criações épicas mais
impressionantes e definitivas da literatura ocidental deste século.

O conflito entre os dois planos de consciência encerra-se com a vitória das


estruturas conscienciais lógico-racionais e com a aceitação, por parte de Riobaldo,
de uma visão de mundo imanente, agnóstica, temperada por certo estoicismo
(“Existe é homem humano, Travessia.”). Riobaldo deixa a jagunçagem e, na senda
indicada pelo sacrifício de Diadorim, vai em busca de Otacília, não sem antes, por
indicação de Zé Bebelo, fazer a visita a Quelemém, fecho derradeiro, definitivo, de
seu caminho.

Este é, portanto, o conflito no plano temporal do passado, plano caracterizado pelo


fluir como tempo psicológico e como durée e encerrado no momento em que se
inicia o plano temporal do presente, de características estáticas, como antes se
viu, e que, por isto mesmo, se torna o segundo elemento da contraposição
dialética que informa a obra.
 

•  A RE-FLEXÃO (NO PRESENTE)

Tentou-se, na medida do possível, ver o passado como passado, de fora, isolado


da re-flexão no presente psicologicamente estático do protagonista. Esta re-flexão,
porém, sendo identificável com o próprio presente, é o segundo elemento da
dialética dos planos temporais. Qual é, portanto, a natureza desta re-flexão?

Em primeiro lugar, ela é consciência do conflito, mas uma consciência claramente


a posteriori. Riobaldo, como consciência que reflete sobre o passado, compreende
sem dificuldade que o plano do presente é a outra margem, não sendo mais
possível, portanto, narrar este passado de forma imparcial, objetiva, apresentando
os fatos tais como exata-mente aconteceram. Glosa Hegel (“ – e no meio da
travessia não vejo! – ”, p. 30) e problematiza sua própria narração (“A qualquer
narração dessas depõe em falso, porque o extenso de todo sofrido se escapole da
memória.”, p. 304). Mas nem por isto Riobaldo deixa de ver de forma clara as
verdadeiras bases do conflito que nele se desenvolve. O relato detalhado do
episódio fáustico (fáustico às avessas, naturalmente)' das Veredas Altas bem o
demonstra. Riobaldo queria “ficar sendo” (p. 318), desejava a libertação, a
maioridade existencial. Nasce da noite, como homem novo (“Porque a noite tinha
de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto para parir, ou,
quando o que fala, a gente não entende?” p. 320), no momento em que o dia
nascia, “no mermar da alva” (ib.), e parte para seu destino marcado, o duelo final
com Hermógenes, símbolo das ameaças à vitória total e completa de uma visão de
mundo existencial-imanente, possível no âmbito de uma consciência lógico-
racional, sobre as estruturas conscienciais mítico-sacrais.

Ora, se a re-flexão no plano temporal e psicológico do presente é a consciência do


conflito desenrolado no plano temporal e psicológico do passado, surge para
Riobaldo um sério problema: o de como justificar, aceitando, este passado. O
problema, na seqüência da análise desenvolvida até este momento, é claro. Como
se viu, o plano do passado flui, psicologicamente e como durée, flui até o
momento do corte (a visita a Quelemém), momento em que começa o plano do
presente.

O importante é o corte. No espaço anterior a ele ocorrem as transformações de


Riobaldo, dá-se sua travessia. No espaço posterior a ele, Riobaldo detém-se,
imutável, na outra margem. O essencial é que este corte delimita não só dois
planos temporais de características diversas mas antes de tudo dois planos
conscienciais qualitativamente opostos. Na verdade, os dois planos são os pólos de
uma existência, da mesma travessia. Contudo, afirmar tal não soluciona a questão
antes levantada e que pode ser resumida na seguinte pergunta : Como um oposto
pode justificar ou aceitar o outro sem negá-la? (Riobaldo não pode negar seu
passado, pois isto equivaleria a negar sua travessia e colocar em xeque seu papel
de narrador de eventos passados que tinham sido sua própria existência.)
Responder a esta pergunta e solucionar este dilema é, parece, construir a ponte
entre os dois pólos da contraposição dialética que informa Grande sertão: veredas.
É compreender a estrutura mais profunda da obra, é captar sua especificidade, sua
novidade absoluta – lado a lado com outras obras da nova narrativa épica latino-
americana – no panorama da literatura ocidental.

Para Lukács e Hegel – este, implicitamente – e para todos os teóricos que


conseguiram captar sua essência como gênero, a realidade que informa e
determina a natureza do romance real-naturalista é o fluir do tempo e, neste, da
consciência dos personagens. Ao contrário do que acontece no epos clássico, onde
o tempo existe, mas existe estático, suspenso (como durée é apenas contado, não
vivido, e psicologicamente simplesmente não existe, pois os caracteres são dados,
imutáveis, in-transformáveis), no romance o fluir é sua própria natureza. Eu
chamaria o romance de epopéia na finitude, expressão tão paradoxal quanto o é a
realidade artística que define. Epopéia: ação e celebração da ação do homem
sobre o mundo que o cerca. Na finitude : ação no tempo, no fluxo geral do
mundo. Em última instância, ação que se nega a si própria, implícita ou
explicitamente. Nega-se porque, ao enquadrar-se nos limites do fluir do tempo,
reconhece sua provisoriedade como realidade mutável e finita, na qual tudo é
relativo.

É isto que Lukács qualifica como o problemático e que, bem no fim, não é senão o
contraponto artístico da consciência lógico-racional da idade burguesa européia. A
contradição interna existente no romance, o fundamento sobre o qual o gênero
surge no horizonte histórico, não perturba, 6 claro, em nenhum momento, a
trajetória arrivista de Moll Flanders e não sobe à tona da consciência de seu
criador. Não perturba o caminho ascendente de Julien Sorel mas parece
determinar implicitamente a destruição final. A explosão que Julien Sorel já
prenuncia – resta-lhe ainda, intacto, o teatral! – é a subida à tona da contradição
latente em todo o romance real-naturalista. Esta contradição ficará patente, às
escâncaras, mais tarde, seja na massificação de Leopold Bloom, seja na aceitação
quase contrita da finitude por parte de Hans Castorp, portadores, ambos, da crise
da consciência burguesa e da crise e morte definitivas do romance real-naturalista
europeu propriamente dito.

O fluir do tempo, dentro do qual o herói agia e completava seu caminho, passa, na
crise do gênero, a determinar a consciência do herói, em outros termos, a
problematizar, a colocar em xeque sua ação, enfim, a destruí-lo como portador da
ação épica, a destruí-lo, simplesmente. Não é mais possível escrever “a marquesa
saiu às cinco” (Nathalie Sarraute) porque não há mais uma consciência não
marcada explicitamente pela consciência da finitude. A crise e a morte do romance
europeu representam, ao nível sócio-histórico, a crise e a morte das estruturas nas
quais nasceu. Outros tipos de narrativa existem e poderão surgir mas a epopéia na
finitude desapareceu, pelo menos no espaço histórico-geográfico europeu. No
romance real-naturalista o fluir do tempo é o âmbito do agir e da trajetória das
personagens. Nele, no fluir do tempo, mora uma consciência que sempre é,
positiva ou negativamente, lógico-racional, segundo se viu na introdução. No
alvorecer, no ápice, na decadência e crise definitiva do romance real-naturalista,
fluir e consciência mantêm suas características essenciais, sua idêntica natureza.
Enorme é a distância entre Manon Lescaut e Adrian Leverkuehn, entre Pamela e
Strávoguin, entre Sancho e o anti-herói de La modification, mas quem ousaria
afirmar que uma diferença de natureza separa suas consciências?

Ora, esta é a diferença em relação a Grande sertão: veredas e a outras obras da


nova narrativa épica latino-americana. Em Grande sertão: veredas há dois planos
temporais nitidamente distintos, morada de dois planos de estruturas conscienciais
de natureza diversa, aposta. Eis um paradoxo aparente que deve encontrar
explicação e integração no âmbito da própria obra. O plano da consciência
presente, lógico-racional, de Riobaldo não pode negar o plano da consciência
passada, mítico-sacral. Negá-lo seria negar a própria travessia. Por outra parte,
não pode simplesmente aceitá-la, pois seria negar o presente. Este o dilema, o
impasse, que, à primeira vista, surge como insolúvel na dialética que contrapõe
dois planos temporais e conscienciais. Há que descobrir a ponte que os liga e dá,
em conseqüência, unidade ficcional à obra.

Esta ponte é a posição filosófico-existencial de Riobaldo. Explicando melhor, o


impasse tem sua solução – tornando-se, com isto, integrante essencial da
estrutura da obra – na aceitação, por parte do protagonista, de uma visão de
mundo existencial-imanente, horizontal, sem

que tal venha a significar – ponto básico! – cair na crise de fundamento própria
dos heróis romanescos – e do momento sócio-histórico do qual nascem – do
mundo da burguesia européia em seu declinar.

Agora se pode compreender melhor por que o plano do presente – temporal e


psicológico – em Grande sertão: veredas é e deve ser estático, porque sua
estrutura é circular, não se projetando no tempo (como ocorria no romance real-
naturalista) e impondo o retorno ao início, ad infinitum (a propósito, alguém já
tentou interpretar o símbolo do que encerra o livro?).”' Para Riobaldo, o caráter
imutável e estático do presente é o penhor de sua própria existência, é o que
garante a manutenção da ponte entre dois mundos de estruturas conscienciais de
natureza diversa, oposta. A Weltanschauung existencial-imanente de Riobaldo:

a) permite a aceitação do plano do passado como parte da travessia, como


experiência (... “aprender-a-viver é que é o viver, mesmo”, p. 443) ;

b) impede, por seu caráter estático, qualquer evolução posterior, evolução cujo
estágio primeiro seria o ingresso em um plano de consciência cética, em crise,
consciência que negaria até a possibilidade de uma Weltanschauung existencial-
imanente e, consequentemente, criaria um fosso intransponível entre os dois
planos, pois para ela, para a consciência cético-racionalista, o passado mítico-
sacral não poderia ser aceito como tendo valor equivalente ao plano lógico-
racional. O doutor, que apóia Riobaldo e no qual este busca amparo
continuamente para sua certeza de que o Diabo não existe (“E as idéias instruídas
do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o

Tal não existe ; Pois é não?”, p. 33), está sem dúvida no plano de uma consciência
cética e racionalista. Riobaldo o nota mas não chega naturalmente a penetrar
neste mundo em cujo limiar se detivera (“O senhor ri certas risadas...”, p. 9).

*Nota à segunda edição: em decisão absurda e tecnicamente


irresponsável, a atual editora de Grande sertão: veredas – com o
inexplicável apoio de familiares de João Guimarães Rosa – resolveu
eliminar o referido símbolo, mutilando assim a obra, numa lamentável
demonstração não se sabe se de crasso amadorismo editorial ou de
pedestre e muito mal entendida oportunismo comercial!

Riobaldo, na construção rosiana, percebe que vivera um mundo de estruturas


conscienciais mítico-sacrais e aceita instintivamente seu passado, integrando-o em
sua Weltanschauung. Esta integração dá-se, porém, de uma forma natural, não
reflexiva no sentido analítico do termo. Com efeito, se Riobaldo não integrasse ao
natural seu passado, vê-lo-ia à distância, para além do fosso inatingível, e teria,
aproximadamente, a estrutura consciencial de um moderno teórico do pensamento
mítico, do que resultaria sua destruição ou, melhor, sua impossibilidade de existir
como herói, digamos, romanesco ou épico. Enfim, como arte, como produção
simbólica.

A visão de mundo de Riobaldo é uma visão de mundo positiva. Sua fé no homem


humano, e na experiência, que é para ele a própria existência, é a conseqüência
lógica de sua opção no episódio das Veredas Altas, onde em vez de vender sua
alma a comprara, de acordo com a explicação definitiva do compadre Quelemém
(“Comprar ou vender, às vezes, são as ações as quase iguais...”, p. 460),
libertando-se dos terrores sacrais e passando a aceitar a pura imanência. É esta
aceitação decisiva, radical, da existência como experiência, como horizontalidade,
como desligada de qualquer transcendente, que gera, como se verá, os valores
épicos que informam a obra de Guimarães Rosa.

Isto posto, não mais se torna necessário reafirmar o caráter absurdo das
comparações apressadas de Grande sertão: veredas com obras do real-naturalismo
europeu ou, pior ainda, com obras nascidas da crise da consciência lógico-racional
da idade burguesa européia. A obra de Guimarães Rosa é um mundo novo e deve
ser analisado a partir dele próprio. As interpretações podem e devem ser variadas,
apostas, diversas. Ninguém, para citar Auerbach, tem o monopólio da crítica e da
verdade, apesar dos que assim pensam. Há, porém, uma exigência cujo
desrespeito é imperdoável: o ponto de partida deve sempre ser objetivo, adequado
à realidade artística analisada. E a arte, por mais que não concordem os
defensores do reacionarismo implícito na crítica esteticista e em parte da crítica
estruturalista, não cai do céu, a não ser para os ignorantes. Para os demais ela
está ligada, de uma ou de outra forma, às realidades históricas no seio das quais
nasceu.

O MUNDO EXTERIOR

l. AS TRANSFORMAÇÕES

A contraposição dialética entre passado e presente, realidade primeira que informa


a estrutura narrativa de Grande sertão: veredas e a interioridade de Riobaldo, se
prolonga e existe também, como não poderia deixar de ser, no mundo exterior,
isto é, o meio sócio-geográfico, através do qual e no qual se dá – ou, melhor, se
deu – a travessia do herói.

Os gerais são um tanto fluidos, historicamente. Riobaldo também. Difícil datá-los,


ambos, com precisão. Contudo – sem qualquer pretensão a uma afirmação
categórica –, o plano temporal do presente, no qual se dá a narração, deve ter
como terminus post quem histórico a Revolução de 30, quando começa, pela
crescente centralização federal,

a decadência do fenômeno da jagunçagem e do coronelismo.' Riobaldo está velho


e reumático (p. 15 e 23) e os antigos jagunços se submetem à necessidade
degradante de pedir esmolas (p. 23). Não há também nenhum terminus ante
quem exato. Mas se observarmos que Grande sertão: veredas foi publicado em
1956, o doutor deve ter ouvido a narração nos anos da década de 1940 ou pouco
depois. Claro, estes são dados apenas aproximativos e de caráter secundário,
auxiliar. Afinal – no clássico exemplo – não estamos querendo saber quem foram
os professores de Filosofia de Hamlet na Universidade de Wittemberg! Bobéia,
diria o herói de Guimarães Rosa. Estas observações, porém, permitem identificar
com maior precisão a verdadeira natureza das transformações que sofre o mundo
exterior, palco dos eventos narrados e, em época posterior, da própria narração.
Talvez seja possível afirmar, desde que o façamos sempre de maneira
aproximativa, que os eventos narrados se passam – se passaram – no tempo da
República Velha, quando o interior do país se mantinha, por partes, como
realidade sócio-política pratica-mente autônoma, fator fundamental, ao lado do
feudalismo explorador e da injustiça social que até hoje continuam, para a
compreensão das causas da jagunçagem e do coronelismo. Na verdade, o governo
central é, em Grande sertão: veredas, apenas uma entidade longínqua (p. 230),
completamente desligada e insciente do mundo do sertão. E Zé Bebelo, muito
nacional, é representante de uma casta típica da época, casta variada, aliás, e de
vida tão longa que alguns de seus últimos representantes, no papel de
inconscientes clowns históricos, continuam em circulação, depois de se adaptarem
custosamente à modernização da sociedade brasileira das últimas décadas.
Naturalmente, sua situação continua sendo bem melhor que a dos pobres
explorados do campo, até hoje esquecidos por todos os governos centrais.

Quanto à narração de Riobaldo, ela ocorre, historicamente, depois do início da


industrialização do país sob o governo de Vargas, talvez no início da segunda
arrancada industrial no período da II República, que acabaria fragosamente em
1964 exatamente por fracassar sempre de novo ao tentar manter o controle sobre
a complexa realidade sócio-política do país, que, do ponto de vista dos grupos de
pressão, nos quais os governos buscam sempre sua legitimação, é de uma
heterogeneidade impressionante. Este, porém, é outro assunto.

Retornando à literatura – o senso de humor é sempre necessário, particularmente


na fase que atravessamos* –, nada é tão claro como a existência da contraposição
dialética em Grande sertão: veredas também no mundo exterior, palco sobre o
qual se realiza a travessia de Riobaldo. Os planos temporais do presente e do
passado são elementos opostos, irreconciliáveis: “Ah, tempo de jagunço tinha
mesmo de acabar. Cidade acaba com o sertão. Acaba?” (p. 129). A pergunta
retórica final, lançada ao doutor, só pode receber uma resposta afirmativa, mesmo
que também neste âmbito – o mundo exterior – Riobaldo seja a ponte que liga
passado e presente.

*Nota à 2' edição: eram os negros tempos do consulado Médici!

Na contraposição entre passado e presente no mundo exterior o que está em jogo


não é apenas o saudosismo lírico (“Até os pássaros, consoante os lugares, vão
sendo muito diferentes. Ou são os tempos, travessia da gente?” p. 304) mas um
fenômeno real, de profundas e radicais transformações sócio-históricas (“Agora, o
mundo quer ficar sem sertão”, p. 220.). Eis uma frase antológica e terrível pela
extrema importância do fenômeno histórico que define – em termos não só
brasileiros como planetários também –, o fenômeno do avanço do Brasil litorâneo,
da urbs e de suas estruturas sociais e mentais, contra o sertão, do que resultará
inevitavelmente a destruição deste pelas estruturas conscienciais dessacralizadas,
pragmático-racionalistas e capitalistas, próprias do mundo urbanizado. Riobaldo,
resultado deste choque, é a tentativa de um compromisso, como se verá. Um
compromisso talvez apenas possível no plano da arte, em face da oposição de
morte entre os dois elementos em conflito.

1. AS PRETENSÕES
Neste ponto, ao analisar as pretensões de Riobaldo, corre-se o sério risco de
desagradar os construtores apressados de um impressionismo laudatório sem base
e os de apaixonados incondicionais do que chamo de “existencialismo lírico” de
Guimarães Rosa – parte importante, como é óbvio, de Grande sertão: veredas.
Seja permitido, contudo, dissecar a obra sem ser acusado de despoetizá-la, pois a
intenção é sempre a maior e melhor compreensão da mesma. Tal acusação
esqueceria o que deve, a todo o momento, ser recordado: o caráter meramente
secundário e circunstancial, em relação à obra artística em si, de qualquer crítica.

Na travessia de Riobaldo há um tema de nítido caráter social, tema secundário,


sim, mas nem por isto menos real, que perpassa toda a obra e cria, mais no plano
exterior que interior, outro campo de contraposição entre passado e presente.
Riobaldo, filho natural de Bigri e Selorico Mendes, é um arrivista no plano social.
Por sê-la de uma forma sui generis não deixa de o ser menos. Nascido e crescido
às margens do São Francisco, Riobaldo difere por completo, neste ponto, de Joca
Ramiro – o fazendeiro e latifundiário tradicional – e de Ricardão – “bruto
comercial”, “dono de muitas fazendas”, talvez com um passado algo parecido com
o de Paulo Honório, de Graciliano –, aproximando-se muito de Hermógenes –
“bom jagunço, cabo de turma” (p. 138). O sonhar de Riobaldo por Otacília não é
apenas o sonhar romanticamente Penélope em uma Itaca qualquer (por exemplo,
à p. 268 : “Mesmo com a minha vontade toda...” etc., onde a necessidade de uma
companheira termina na recordação das grandes fazendas da mesma!...). Os bens
de Otacília, portanto, são um tema que sempre retorna (“Conheci que Otacília era
moça direta e opiniosa, sensata mas de muita ação. Ela não tinha irmão nem irmã.
Sôr Amadeu chefiava largo : grandes gados em léguas de alqueires. Otacília não
estava noiva de ninguém.”, p. 148).

Aqui está um tema viável e interessante para uma crítica marxista dogmática que
até agora, o mais das vezes, se limitou simplesmente a atirar contra a pessoa do
escritor Guimarães Rosa a pecha de reacionário. Riobaldo, socialmente, é um
jagunço calculista e arrivista, flor de reacionarismo, que consegue chegar a grande
fazendeiro, colocando-se ao final em uma posição digna do mais puro filisteu:
“Mas o que mormente me fortaleceu foi o repetido saber que eles pelo sincero me
prezavam como talentoso homem-de-bem, e louvavam meus feitos. eu tivesse
vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da
jagunçagem. Fui indo melhor.” (p. 456) Realmente, ir além é impossível! Riobaldo
surge assim renegando suas origens, satisfeito por ter sido o instrumento de
destruição de seus próprios iguais, de seus companheiros do passado.
Socialmente, o herói de Guimarães Rosa é um inocente útil. Talvez mais útil do
que inocente...!

Levar este tema adiante não é pretensão que possa ser aqui realizada. No âmbito
das análises até aqui desenvolvidas, o fundamental é notar a formação de mais um
campo de contraposição entre passado e presente, contraposição identificada
anteriormente com a estrutura mais profunda da narrativa rosiana.

NOTAS

'Entre as exceções a destacar estão; Walnice Nogueira Galvão (As formas do falso.
São Paulo, Perspectiva, 1972), que, apesar de defender a tese (muito discutível,
em particular na questão do suposto pacto) que faz da ambigüidade o
fundamental em Grande sertão: veredas, chegou a descobertas objetivas que
nenhum crítico mais poderá ignorar; Alan Viggiano (Itinerário de Riobaldo
Tatarana. Belo Horizonte, Comunicação/MEC, 1974), cujo estudo dedicado ao
levantamento da trajetória geográfica dos heróis da obra de João Guimarães Rosa
é, no que a isto tange, de seriedade, objetividade e adequação exemplares;
finalmente, Antonio Candido (O homem das avessos. In: Tese e antítese. São
Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964). Este, sem atingir o nível tão
absolutamente definitivo e insuperável de um estudo como Dialética da
malandragem (Jornalivro, nº. 8, agosto de 1972, sobre Memórias de um sargento
de milícias, entreviu, na última frase do penúltimo parágrafo de seu ensaio
publicado há quase dez anos, aquilo que, para mim, é o elemento fundamental em
Grande sertão : veredas: a luta entre o mito e o logos na consciência de Riobaldo.

2 Esta e todas as citações são feitas de acordo com a 6' ed, da obra, publicada
pela José Olympio, Rio de Janeiro, 1968.

3 tb.

4 Não pode ser esta uma tarefa a ser realizada no âmbito desta breve análise,
porque seus objetivos fundamentais são outros, mas algum dia será necessário
fazer a cronologia rigorosa, progressiva, dos eventos narrados por Riobaldo, Este
trabalho crítico está fazendo falta.

5 A necessidade da negação, a necessidade da não existência do Demônio, tema


essencial em Grande sertão: veredas, encontra seu pleno e perfeito
enquadramento nesta interpretação. Para Riobaldo/narrador, isto é, no plano
temporal e espiritual do presente, o Diabo simplesmente não pode existir, não
deve existir, não existe. Aceitar ou reconhecer sua existência seria recair no
passado, no mundo de estruturas conscienciais mítico-sacrais, seria negar o
presente, o mundo de estruturas conscienciais lógico-racionais. E recair no
passado seria negar o caminho, a travessia de Riobaldo/jagunço, levada a efeito
no sertão e, dado central, na alma (“O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui.
Não fui! – porque não sou, não sou, não quero ser. Deus esteja.”, p. 166).
Apesar do respeito devido a Roberto Schwartz, que considero um dos poucos que
no Brasil merecem o qualificativo de críticos literários, não posso aceitar em
absoluto seu ensaio sobre Grande sertão: veredas em A sereia e o desconfiado
(Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965). Há um equívoco evidente. Riobaldo
jamais vendeu a alma. Ele a comprou, isto sim, em Veredas Altas. Temos , pois,
um problema fáustico às avessas.

Como subsídio ao leitor interessado: o fenômeno da jagunçagem encontrou seu


primeiro estudioso sério em Ruy Facó (Cangaceiros e fanáticos. 3 ed. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1972), tragicamente desaparecido em 1963.

2. O mítico-sacral

Inúmeras vezes, até o momento, foi utilizada a expressão mítico-sacral (como


adjetivo ou substantivada) para caracterizar o plano de consciência superado por
Riobaldo ao longo de sua travessia. Cabe agora perguntar :

– Qual o sentido da expressão? Que realidade ela defìne?

– Por que é empregada esta e não outra expressão para caracterizar tal realidade?

– Qual o caráter específico desta realidade em Grande sertão: veredas?

– Quais as origens da problemática demonológica?

SENTIDO E REALIDADE

Movimentamo-nos no âmbito do fenômeno literário. Um termo ou expressão


utilizados neste âmbito devem encontrar dentro dele sua definição, já que ali se
encontra a realidade para a qual eles, o termo ou a expressão, são o nome, o
conceito. Além disto, trata-se, como é provável, de um conceito utilizado pela
primeira vez, cujo uso e definição exatos nos limites da nova narrativa épica latino-
americana não foram ainda fixados, sendo necessária a discussão.'

Portanto, em que pesem possíveis e óbvias coincidências, não nos movimentamos


especificamente no campo dos estudos antropológicos (Lévy-Strauss, por
exemplo), dos estudos sobre a história comparada da religião e dos mitos (Mircea
Eliade), nem no campo das pesquisas sobre o inconsciente e as estruturas
psicológicas (Freud, Jung, Reich, etc.). Além do fato óbvio de não possuir
conhecimentos aprofundados em tais campos, deve ficar bem claro que tudo o que
for afirmado se limita ao âmbito de um fenômeno literário particular que penso ter
identificado em Grande sertão: veredas. Isto não impede, é claro, a futura e talvez
mesmo presente ampliação do conceito e sua utilização para caracterizar
fenômenos literários semelhantes ou idênticos em outras obras que integram a
nova narrativa épica latino-americana, da qual se falou na introdução. De
momento, porém, o tema é o mítico-sacral em Grande sertão: veredas.

O termo mítico-sacral foi utilizado no âmbito destas análises para definir uma
determinada estrutura de consciência. O que é uma estrutura de consciência? É
uma forma do homem ver o mundo que o cerca, de interpretar o real, isto é, o
mundo dos seres cuja epifania, cuja revelação atinge e marca sua (do homem)
consciência. Neste contexto, consciência é a capacidade do indivíduo isolado de
ordenar o real dentro das co-ordenadas próprias às estruturas de captação do
mesmo real, estruturas estas que lhe são (ao indivíduo) dadas pela sociedade na
qual nasceu e viveu e conquistadas através das vicissitudes de seu caminho, de
sua experiência existencial. Conseqüentemente – deixando de lado os problemas
da recorrência que se manifesta entre estrutura de consciência e captação do real,
entre indivíduo isolado e grupo social – uma estrutura de consciência mítico-sacral
pode ser definida como a forma mítico-sacral através da qual determinado
indivíduo ou determinado grupo – o indivíduo só existe como parte do grupo –
realiza a captação e a interpretação dos fenômenos cuja epifania presencia. Em
suma, a captação dos seres – até mesmo de seres portadores de outra estrutura
consciencial –, do outro homem e do outro grupo. Ou, finalmente, no caso do
indivíduo isolado, de sua própria realidade física.

Depois da colocação rápida destas premissas, o passo seguinte é procurar saber


como se dá a captação e a interpretação do mundo por uma consciência de
estruturas mítico-sacrais. Talvez seja mais fácil chegar a tal objetivo tomando
como ponto de partida uma contraposição : a consciência lógico-racional. Para
esta, os fenômenos – isto é, o captado ou captável através dos sentidos – têm
apenas uma dimensão, a da sua objetividade. Uma árvore é uma árvore, um raio é
o resultado do encontro de forças elétricas de cargas contrárias, a morte é a
irrupção do desequilíbrio num complexo sistema orgânico regido pela lei da
compensação, a economia é um sistema cujas leis podem ser descobertas pela
observação empírica e Deus – entre São Tomás e Voltaire a diferença
praticamente inexiste neste ponto – é a causa última e necessária, o motor
primeiro do sistema cósmico.

Para uma consciência de estruturas lógico-racionais, portanto, o mundo exterior


existe e é interpretado na medida em que possuir objetividade empírica – os
fenômenos – ou lógica. Com isto se afirma, conseqüentemente, que tal estrutura
consciencial simplesmente rejeita ou vê à distância tudo o que não possuir tal
objetividade. Para ela existe apenas o fenômeno como fenômeno, em sua
imediaticidade captada ou captável, empírica ou lógica (as leis resultantes da
observação das relações entre os fenômenos). O fenômeno tem apenas e sempre
o valor de fenômeno e jamais é o portador de um significado que o ultrapasse.

Para uma consciência de estruturas mítico-sacrais, ao contrário o fenômeno pode


carregar um sentido, uma mensagem que ultrapassa sua realidade empírica ou
lógica. Assim, o raio pode ser o mensageiro de um poder transcendente, um gesto
pode possuir e até transmitir um valor ou um não-valor (exemplo clássico : os ritos
religiosos) e um número ou um conjunto de números pode carregar um sentido
que nada tem propriamente a ver com a realidade empírica do algarismo em si ou
das quantidades (relação lógica) representadas. Por isto, uma consciência de
estruturas mítico-sacrais é capaz de aceitar como existentes entidades que não
possuam existência nem empírica nem lógica. Entidades que o são apenas para ela
e jamais para uma consciência de estruturas lógico-racionais, cuja craveira é a
observação direta ou a dedução.

Até aqui foi mais ou menos definida a maneira pela qual uma consciência mítico-
sacral capta o mundo e o interpreta. Resta um difícil problema, que será
brevemente mencionado. Por que é que indivíduos ou grupos portadores de uma
consciência de características mítico-sacrais são caracterizados como fenômenos
de ignorância quando localizados num espaço sócio-geográfico-histórico no qual
predomina a estrutura lógico-racional ao passo que quando localizados em espaço
sócio-geográfico-histórico autônomo são considerados um fenômeno antropológico
fundamental para o estudo da evolução dos grupos humanos?

Antes de tudo é necessário observar que esta distinção é feita a partir do plano de
consciência lógico-racional. Esta consciência parece supor como ponto pacífico,
óbvio e provado que, sendo a estrutura mítico-sacral diacronicamente anterior à
estrutura lógico-racional na evolução dos grupos humanos, o fenômeno de uma
consciência mítico-sacral é apenas autêntico e historicamente válido na medida em
que não for uma defasagem interior (gerada pela ignorância do evoluir histórico) a
um meio de estruturas conscienciais lógico-racionais.‘ Há duas possibilidades de
que o fenômeno não seja uma defasagem, algo assim como restos que em
determinado momento se desligaram ou passaram a ser ignorados pelo processo
histórico fundamental. A primeira destas possibilidades é a de grupos humanos,
indígenas por exemplo, que jamais mantiveram contatos sólidos com a civilização
lógico-racional do Ocidente.' A segunda é a de grupos que, por seu progressivo
isolamento, tornado total em determinado momento, perderam por completo ou
quase o contato com a civilização, desligando-se dela, regredindo e constituindo
por fim um fenômeno cultural eclético, é verdade, mas próprio e autêntico.

Os antropólogos têm aqui a palavra. Parece, contudo, que este é o caso de grupos
humanos localizados no hinterland latino-americano e que, agora,
inesperadamente, passaram a integrar novamente o processo histórico
manifestando sua vitalidade em criações artísticas de extremo vigor como o são as
da nova narrativa épica latino-americana.

AS RAZÕES DO TERMO

Em segundo lugar é preciso perguntar o porquê da utilização do termo mítico-


sacral neste contexto. Talvez seja necessário recordar que o termo foi definido por
contraposição a lógico-racional, termo empregado, por sua parte, para definir as
características das estruturas conscienciais presentes na ficção real-naturalista
européia e seus derivados, na Europa ou fora dela. Portanto, como já acentuamos,
o espaço em que nos movimentamos é o do fenômeno literário. Ora, para
caracterizar o fenômeno literário cuja novidade e cujas características essenciais
parecem ser o aflorar – e suas causas e conseqüências – de estruturas
conscienciais opostas às estruturas conscienciais presentes na ficção real-
naturalista havia na língua portuguesa quatro' termos viáveis à disposição: mágico,
mítico, sacral e mítico-sacral.

O termo mágico pareceu por demais fluido, de conotações ocultistas e sem


aplicação tradicional anterior no âmbito literário. O termo é sem dúvida viável na
expressão realismo mágico, pois neste caso sua flui-dez desaparece por ser
implicitamente contraposto a realismo realista ou realismo empírico, expressões
que, descontando a redundância, equivaleriam aproximadamente a real-
naturalismo. De qualquer forma, ao ser empregada como adjetivo ou substantivo,
isolada, a palavra mágico exigiria uma redefinição ou reatribuição de sentido
particularmente forte. Ora, procurou-se não complicar, buscando na língua outros
termos consagrados há mais tempo e cujo sentido possuísse limites mais claros.
Entre estes estão os termos mítico e sacral. O primeiro deles, ao contrário do que
ocorrera com mágico, pareceu comprometedor e claro demais. Seu sentido – se
bem que nem sempre o sentido da realidade que define – é mais ou menos
unívoco e definitivamente consagrado no campo da antropologia, da história das
religiões e da filosofia. Para utilizá-lo seria necessário arrancá-la dali e, mais uma
vez, construir uma re-definição. Sacral possui, sem dúvida, viabilidade maior. Se
falamos em mundo sacral ou consciência sacral pensamos imediatamente em
realidades apostas ou, pelo menos, completamente diferentes daquelas definidas
pelo termo lógico-racional. Ora, é bem isto que procuramos. Existe, contudo, uma
dificuldade que poderia gerar confusão em virtude do termo sacral formar parte do
vocabulário específico das exposições teológicas do padre-cientista Teilhard de
Chardin' e do teólogo Jean Daniélou'. Ambos propõem, ao indivíduo que aceitar a
concepção cristã de mundo, uma espiritualidade de conotações evidentemente
místicas e baseada na sacralização do mundo. Isto significa que o mundo – os
fenômenos, sejam eles quais forem, mesmo o mal – deve ser visto como uma
epifania, como uma revelação do divino. O paradoxo de tal proposta é o de que
ela seja feita a partir de uma consciência lógico-racional pois Teilhard de Chardin
era um cientista de reconhecidos méritos e as bases de Daniélou são, pelo menos
implicitamente, neotomistas. Paradoxo ou não, as propostas de sacralização do
mundo encontraram em Bernanos uma espécie de profeta literário quando este
escreveu, ao final de O Diário de um pároco de aldeia, sua famosa frase : “Tudo é
graça.”

Evidentemente não é este o mundo sacral ou sacralizado que nos interessa no


âmbito deste estudo. Simplesmente por não ser este o mundo de Riobaldo. Em
conseqüência, também este termo exigiria o afastamento de cargas semânticas já
adquiridas. Assim, optou-se pelo termo híbrido mítico-sacral. Contra esta opção
poder-se-ia argumentar que a razão de sua escolha talvez tenha sido sua pouca
clareza. Até certo ponto objeção é correta. Quando um termo ou expressão não
carrega um sentido definido e consagrado pode-se, com facilidade, atribuir-lhe um.

Se os termos mítico e sacral isolados possuíam viabilidade relativa mas exigiam


uma redefinição cuidadosa, podemos juntá-los e dar-lhes viabilidade,
simplesmente. O sucesso ou o fracasso do ensaio e das idéias nele expostas não
dependerá do termo – foi escolhido o menos comprometedor – mas da capacidade
de identificar, delimitar e explicar o fenômeno que ele, o termo, identifica. Este
fenômeno, segundo estamos tentando demonstrar, se manifesta em um
determinado mundo ficcional no qual a consciência lógico-racional não é mais o
ordenador onipotente e onipresente, tendo cedido lugar ao seu oposto. O novo
fenômeno ordenador deste novo mundo ficcional, eis o que chamamos, como
substantivo, de mítico-sacral. Como adjetivo, o termo qualifica, naturalmente, o
conjunto das partes integrantes deste mundo ficcional. Este conjunto poderá ser
chamado de visão de mundo mítico-sacral desde que utilizemos a expressão
especificamente nos limites do fenômeno literário que analisamos.

A REALIDADE QUE DEFINE

EM GRANDE SERTAO : VEREDAS

Depois de ter tentado definir o que se entende por mítico-sacral no âmbito desta
análise de Grande sertão: veredas, deve-se partir agora para a identificação clara
desta realidade. Que é mítico-sacral e qual seu caráter específico na obra de
Guimarães Rosa?

É possível afirmar que o mítico-sacral aparece em Grande sertão: veredas sob


duas formas ou, melhor, de duas maneiras distintas, diversas, seja em relação à
sua importância na estruturação da obra, seja objetivamente. Tal divisão, mais
uma vez, tem um caráter meramente didático e encontra sua justificação apenas
por servir para aumentar a clareza da exposição. É claro que, se aceitamos a
existência do elemento mítico-sacral na obra rosiana, possuirá ele, como dado
estruturador da obra, uma única natureza. Tal, porém, não impede que sua
manifestação se dê sob formas diferentes. Estas são essencialmente duas. Em
primeiro lugar o elemento mítico-sacral se manifesta no que poderíamos
denominar de problemática demonológica de Riobaldo. Em segundo na atmosfera
que envolve toda a obra e que ou possui também características dermonológicas
ou permanece no plano daquilo que a consciência lógico-racional qualifica de
crendices e superstições.

Antes de entrar na exemplificação e análise do que já foi estabelecido, é


fundamental chamar a atenção para um fato cuja importância deve ser acentuada
a todo momento sob pena de se perder a visão correta do conjunto: não se pode
esquecer que Grande sertão:veredas é a narração, feita por um herói possuidor de
uma consciência lógico-racional, da trajetória existencial que o levara a alcançar tal
consciência ao superar o estágio anterior e oposto, estágio que foi definido como o
plano de consciência mítico-sacral. Portanto, como é evidente, ressurgem aqui os
elementos da contraposição dialética que informa a obra rosiana presente e
passado. A conclusão é óbvia: o mítico-sacral existe para Riobaldo

•  como narração, isto é, como passado, no plano do problemática dermonológica


pessoal, sendo o presente a negação do mítico-sacral e a solução, em termos
lógico-racionais, da referida problemática demonológica (“Amável o senhor me
ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe”, p460). Esta é a primeira
forma através da qual se manifesta o mítico-sacral em Grande sertão: veredas. É a
essencial dentro das linhas gerais destas duas análises aqui desenvolvidas;

2 como elemento que não está diretamente ligado à problemática pessoal de


Riobaldo nem tem características dermonológicas específicas. Esta forma se
identifica com que uma consciência lógico-racional chama de crendices ou
superstições. Um exemplo é a crença no poder mágico de objetos ou fórmulas –
corpo fechado, etc. – e que aparece muitas vezes na obra.

2. O MÍTICO-SACRAL COMO NARRAÇÃO/PASSADO

Aqui se localiza o núcleo central da problemática mítico-sacral/dermonológico de


Grande sertão: veredas. Para alguns dos críticos que analisaram a obra – sem
chegar a resultados satisfatórios em virtude de confusões lamentáveis – esta
problemática é o fio integrador da mesma. Aceite-se ou não esta perspectiva
crítica, não há como negar a obsessão de Riobaldo na busca do apoio de seu
interlocutor para sua certeza, vacilante porque nova (“Eu, pessoalmente, quase
que já perdi nele a crença, mercês a Deus”, como diz Riobaldo no início da
narração, à p.10.

Ao final, com o apoio do doutor, sua certeza terá se firmado: “Amável ...”, etc.
p.460), da não-existência do Demônio. Mais, Riobaldo tem uma necessidade
profunda, obsessiva, de negar o suposto pacto passado e o faz através da negação
da existência de um dos pactantes (o demônio). Contudo – e este é um dado
responsável por grande parte das confusões – o leitor e, muito mais, o crítico não
podem perder de vista, em nenhum momento, que os fatos portadores da
problemática mítico-sacral/dermonológica pessoal de Riobaldo são passado, tanto
no plano temporal como também no plano consciencial. Riobaldo narra, em outros
termos, fala do passado.

Esclarecido este ponto, é possível perguntar: qual ou o que é a problemática


dermonológica pessoal de Riobaldo, identificada como o elemento essencial em
que se manifesta o mítico-sacral em Grande sertão:veredas?

Na selva/mundo da obra rosiana toda tentativa de interpretação crítica se processa


em meio a um perigoso trabalho de destrinça. Perigoso porque acentuam-se os
temas, escolhem-se ou esquecem-se intenciosamente as passagens, de acordo
com a orientação da interpretação. Os fios são tantos que talvez apenas o
distanciamento no tempo, o choque de opiniões dos ensaios interpretativos e a
pequena réstia de luz – apesar, talvez, de outras tantas sombras – lançada por
cada um deles permitirá aos poucos descobrir as linhas essenciais. Na análise do
sentido da problemática dermonológica, por exemplo, o emaranhado é quase
desanimador. Tanto é que até o presente o tema não gerou uma interpretação
digna deste nome. Por isto mesmo, em virtude da complexibilidade do assunto, a
interpretação que segue deve ser tomada como provisória e tateante, além de
condicionada, como é natural, pelas coordenadas do ensaio de análise global em
que se enquadra.

No tempo da narração, quer dizer, no presente, Riobaldo é um obsessionado pelo


problema dermonológico. No diálogo/monológico de três dias – de terça a quinta-
feira, p.22 – com seu oculto interlocutor o tema retorna constantemente, sob duas
formas.

A primeira é a negação – apoiada sempre a concordância do doutor – da


existência do Demônio. Negação a princípio insegura que, enfim, culmina em
certeza total, sempre com indispensável apoio do doutor (“Amável ...”,etc p.460).
A segunda é o relato, iniciando várias vezes e outras tantas postergado, do
episódio das Veredas Mortas/Altas. É claro, as duas formas do problema procedem
do mesmo fato: a experiência do protagonista nas Veredas Mortas/Altas,
experiência que já é passado distante , possibilita a Riobaldo a negação no
presente. Qual é esta experiência?
A resposta a esta pergunta, na medida em que puder ser encontrada e for
satisfatória, poderia desvelar o núcleo central da obra, se não de forma total, pois
seria negar a especificidade da obra artística, pelo menos da forma mais
aproximada possível. Tentemos, portanto, respondê-la a partir da própria narração
do episódio das Veredas Mortas/Altas.

Tendo conseguido fugir, por um golpe de astúcia do chefe Zé Bebelo, ao cerco do


bando inimigo dos Hermógenes e, ao mesmo tempo, da própria polícia, o grupo de
Riobaldo, ainda sob as ordens do mesmo Zé Bebelo – que já começava a perder o
poder de liderança (p. 303) –, chega “na Coruja, um retiro taperado” (p. 303).'
Neste ponto, a narração de Riobaldo começa a prenunciar que o relato do
episódio-clímax se aproxima: “E ali, redizendo o que foi meu primeiro
pressentimento, eu ponho: que era por minha sina o lugar demarcado.” (p. 303).
Não distante da Coruja estão as Veredas Mortas (onde “o chão cheira a outrora”,
p. 304) e onde há uma encruzilhada (logo em seguida, ib.).

Os companheiros caem doentes e Riobaldo sente aproximar-se o momento crucial


– a encruzilhada de sua existência. A crise surge quando Riobaldo, fracassada (p.
305) a primeira tentativa de levar a cabo o que viria a ser a ação central de sua
trajetória existencial, descobre que não passava de “um raso jagunço atirador,
cachorrando por este sertão” (ib.), apesar de “tanta coisa já passada” (ib.). Num
raio, compreende seu destino elitário e identifica como culpados de sua condição,
naquele momento, a rotina pessoal e os outros (“Mas, por quê? – eu pensava”,
etc., p. 305), empecilhos à conquista do “alto destino possível da gente” (p. 306).

Logo em seguida é narrado um episódio que, à primeira vista, não possui qualquer
conexão com o evoluir dos acontecimentos que leva-riam Riobaldo àquele
momento em que soaria seu destino. O jagunço Siduíno, cansado do marasmo, da
inação doentia – nos dois sentidos do termo – em que o bando se encontrava,
propõe atacar uma vila, num “vero tiroteio, para exercício de não se minguar...”
(p. 307). Riobaldo estremece, Se apenas por exercício um bando de jagunços se
sentia no direito de atacar uma pacata vila sertaneja, que escala de valores regia a
vida? Perante estas e “outras doideiras assim” (p. 307) ele sente sua impotência
em “acertar com todas elas, de uma vez” (ib.), quer dizer, de encontrar para a
vida um sentido totalizador que não desmoronasse diante do primeiro fato
inesperado. Desnorteado, começa a repetir o nome do Demônio em seus mais
variados sinônimos. No relatavismo total, somente o mal (“...Só o demo...”, p.
308) pode ter logicidade. Neste momento, quando Riobaldo ameaça desviar-se
para uma crise que não o levaria a seu destino, surge Diadorim, “que quando
ferrava não largava” (ib.), a indicar-lhe o rumo: “O inimigo é o Hermógenes” (ib.).
Riobaldo reencontra o caminho, Diadorim reassume junto a ele seu papel como
parte de seu destino, em oposição a Hermógenes, a outra parte. Em
conseqüência, o episódio que explode com as palavras de Siduíno apenas parece
não ter conexão. Tem, porque, em primeiro lugar, repõe o tema da incompletude
de Riobaldo, de sua condição existencial/psicológica ainda provisória – a partir do
episódio de Siduíno, Riobaldo sabe que terá que ir a Veredas Mortas e desta vez
não fracassará. Em segundo lugar tem sentido porque a insegurança de Riobaldo
permite a retomada da outra linha temática fundamental: a oposição de morte
entre Diadorim e Hermógenes, que será conseqüência e complementação das
Veredas Mortas/Altas e, portanto, da própria travessia de Riobaldo.

A partir deste ponto da narração tudo é tão complicado que temos que avançar
tateando pela selva rosiana. Os tema,s se emaranham ainda mais. Como se viu,
Riobaldo quer reorientar sua existência a fim de conquistar seu alto destino.
Confusamente, compreende que é chegado seu momento. Tenta a primeira vez e
fracassa (p. 305) por parecer não saber exatamente o que pretendia com o pacto
(as origens da problemática demonológica pessoal de Riobaldo são pouco claras.
Voltaremos ao tema mais adiante). Vê que deve encontrar um denominador
comum para ordenar os fenômenos contraditórios que compõem o mundo, a
existência. Diadorim surge então como guia para a realização desta obra e
Hermógenes como o objetivo a destruir. Ou seja, Diadorim como Riobaldo (na
qualidade do que se poderia chamar um alter ego em vias de formar-se, segundo
a expressão de Riobaldo ao narrar ao doutor: “...sabendo deste, o senhor sabe
minha vida...”, p. 242) e Hermógenes como o anti-Riobaldo. Sob o signo de
Diadorim, Hermógenes se transforma inesperadamente (para Riobaldo, no
passado, é inesperada-mente, como se verá nas próximas linhas) no catalisador da
crise e no alvo sobre o qual explodirão as forças vitais, ainda cegas, do
protagonista. Na verdade, mesmo depois de decidida a morte de Hermógenes,
tudo é confuso para Riobaldo/Diadorim: “Mas, entre nós dois, sem ninguém saber,
nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos
fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do Hermógenes.” (p. 308)

Quem era Hermógenes, cuja morte fora acertada? Para Diadorim – e para a
maioria dos leitores, inclusive os críticos apressados – Hermógenes é apenas o
assassino de Joca Ramiro. Para Riobaldo – eis outro dado fundamental para o qual
nenhum crítico chamou devidamente a atenção até agora – Hermógenes Saranhó
Rodrigue Felipes surge, à p. 309, como o supremo ideal existencial. Destemido,
rico (“...possuía gados e fazendas...”, ib.), “nunca perdia nem adoecia; e, o que
queria arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha
para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro” (ib.). Para Riobaldo,
pois, um eleito, acima do bem e do mal. “Os outros, o resto, essas criaturas. Só o
Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Ruim, mas inteirado, legítimo,
para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar
com Joca Ramiro (o grifo é meu, JHD), em tantas alturas. Assim eu discerni,
sorrateiro, muito estudantemente... Nem birra nem agarre eu estava acautelando
(o grifo é meu, JHD). Em tudo reconheci : que o Hermógenes era grande
destacado daquele porte, igual ao pico do serro de Itambé, quando se vê quando
se vem da banda da Mãe-dos-Homens – surgido alto nas nuvens nos horizontes.
Até amigo meu pudesse mesmo ser ; um homem, que havia.” (p. 309).'

Mas Hermógenes era também o pactário, eis a causa de seu agir sobranceiro, pelo
menos era isto que Riobaldo pensava naquela ocasião (absolutamente não mais
depois de Veredas Mortas/Altas e, muito menos, no presente, durante a narração
ao doutor): “E como era a razão deste segredo?” – “Ah, que essas coisas são por
um prazo... Assinou a alma em pagamento.” (ib.) Aos poucos, a confusa
efervescência das forças interiores de Riobaldo começa a definir-se, à sombra de
Diadorim. Avancemos também.

Riobaldo marcha para a transformação com a qual pretendia alcançar dois


objetivos: encontrar, como foi visto, um fundamento que pudesse dar sentido
totalizante às realidades desconexas, contraditórias, do mundo e subir
socialmente, deixando de cachorrar pelo sertão como um raso jagunço.
Hermógenes reúne tudo : seguro de si, inteirado, legítimo, senhoraço, elitário,
rico. Ruim, claro, mas inteirado. Em resumo, um Fortimbrás sertanejo, dono do
poder, da glória e da ação. Senhor, portanto, da vida ; ideal, portanto, do Hamlet
sertanejo que era Riobaldo (“Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse,
eram pessoas ma-¿ando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e
eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte. Ab.alado
deste tanto, transtornei um imaginar”, p. 110).

Ao surgir, pois, como um ideal para Riobaldo, Hermógenes ameaça ser o


descaminho, porque Riobaldo chegar a chefe de bando, tal como Hermógenes,
seria um fato meramente periférico, absolutamente não essencial. O essencial
seria sua transformação interior, sua travessia, na qual a ascensão econômica e
social, apesar de importante, é secundária'. Mas, diante do perigo do descaminho,
Diadorim está atento. Sua presença e a lembrança do primeiro encontro não dão
trégua: “Mas Diadorim era que estava certo; o acontecimento que se carecia era
de ter-minar com um (o grifo é meu, JHD). Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele
como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando meu
ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa afundadeira. Esse
menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do
Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.” (p.
310)

Riobaldo, a partir deste momento, inicia a derradeira etapa de seu caminho e


passa a agir como um predestinado, apesar da névoa que ainda envolvia sua
consciência. Não é por nada que, depois de aceitar de forma total a sombra tutelar
de Diadorim, aflora para Riobaldo o tema de Otacília, último elo de sua longa
odisséia, descanso e paz sempre buscados. A lembrança de Otacília é, sem dúvida,
bifronte. De um lado, está enquadrada implicitamente na estratégia de Diadorim,
pois a vida de Riobaldo – no plano do presente, da narração – não é senão a cada
de um movimento já encerrado e cuja mola propulsora fora sempre a
contraposição Diadorim/Hermógenes. De outro lado, porém, Riobaldo parece agir
de forma independente ao analisar as dificuldades a serem enfrentadas para
realizar um casamento que lhe daria o status de Hermógenes: “Só um vexame, de
minha extração e de minha pessoa: a certeza de que o pai dela nunca havia de
conceder o casamento, nem tolerar meu remarcado de jagunço, entalado na
perdição, sem honradez costumeira. (p 310) Atrás desta frase está subentendido
Hermógenes como ideal, digamos, social e econômico, revelado à p. 309 : “A terra
dele, não se tinha noção qual era; mas redito que possuía gados e fazendas...”,
etc.

Riobaldo age, portanto, em certo sentido de forma independente ao lembrar


Otacília. Esta independência, porém, é apenas aparente, Diadorim, sua sombra, se
insinua num movimento sutilíssimo: o segredo de Hermógenes era o pacto. Logo,
para poder conquistar Otacília e deixar de ser raso jagunço era necessária também
a decisão para a qual era empurrado maquiavelicamente por Diadorim que – se
assim se pode falar – antevendo instintivamente em Riobaldo o chefe do bando o
guia rumo aos seus próprios objetivos: a luta contra Hermógenes para vingar a
morte do pai, Joca Ramiro.'º E é após o episódio de Veredas Altas/ Mortas que
Riobaldo encampará o comando!

Apesar do emaranhado de temas que se entrecruzam e alternam, todos eles


podem ser captados pelo leitor atento. Riobaldo, depois de lembrar Otacília, está
maduro para o grande momento. Adia-o ainda por um dia (p. 311). A chegada de
Habão, o pragmático (p. 312 et. seq.), não chega a ser transtorno. Pelo contrário,
pode ser considerada como um incentivo à ação. A notícia sobre a chegada de
João Goanhá, que poderia permitir aos jagunços abandonarem o “retiro taperado”
da Coruja, é a gota d'água a faltar. Riobaldo não sabe explicar por que escolhe
aquele momento (“Afora eu. A resolução final, que tornei em consciência”, etc., p.
316). Sabe apenas, intuitivamente, que não há volta. Solitário, a ninguém revela o
decidido. Nem a Zé Bebelo, cuja consciência de estruturas lógico-racionais não
entenderia nada e daria uma explicação tipicamente ' ' racionalista (“Retrocedi de
todos. De Zé Bebelo, demais: que ele havia de desconfiar, dizer o que era
desordens que cabeça de homem não cogita.”, p. 316), nem a Diadorim, a quem
deseja poupar “confusão e perigos” (ib.).

“Eu caminhei para as Veredas Mortas.” (ib.) Aqui começa um dos mais densos
momentos da literatura brasileira e da narrativa ocidental, capaz de exigir,
exclusivo, um livro inteiro. Não tanto pelo que ocorre – em última instância não
ocorre absolutamente nada! – mas pela força patética da narração, por sua
importância fundamental e única para toda a obra e por sua total originalidade. O
episódio de Veredas Mortas/Altas é um tournant qualitativo, radical e único.
Já foi dito que em Grande sertão: veredas não há a sublimação estética' ‘ da
problemática demonológica. O episódio de Veredas Mortas/ Altas é narrado por
Riobaldo no mesmo plano e possui a mesma realidade objetiva, empírica, que o
episódio do julgamento de Zé Bebelo, por exemplo! Não existe o distanciamento. A
possibilidade do pacto faz parte do mundo de Riobaldo/jagunço – quer dizer, no
plano temporal e psicológico do passado – da mesma forma que sua mira certeira.
Existe, sim, a tomada de consciência do evento. Mas em nenhum momento este
evento é visto como algo estranho, anormal. & Bebelo, porém, julgaria Riobaldo
doente. Riobaldo instintivamente compreende a distância que medeia entre seu
mundo e o de Zé Bebelo e evita o choque por julgá-la sem sentido. Riobaldo sabe
que a opinião de Zé Bebelo seria falsa. Falsa porque, para as estruturas
conscienciais mítico-sacrais de Riobaldo, o pacto é um fato normal, possível (an1es
de Veredas Mortas/ Altas, naturalmente).

Na verdade, pode-se objetar que é difícil dizer se Riobaldo real-mente acreditava


no Demônio como ente pessoal, real. As referências são contraditórias, mesmo à
distância de uma página. “Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu
não cria”, diz Riobaldo à p. 310. Não pode haver dúvida: o tempo do verbo 5
imperfeito. O narrador se refere à sua situação psicológica antes do episódio de
Veredas Mortas/

Altas. No entanto, à p. 309, depois de ter ouvido o relato do pacto de


Hermógenes, Riobaldo afirma: “Sem crer, cri.”'' E logo depois, à p. 311, torna a
negar (mais uma vez com planos temporais bem definidos)". “Eu não acreditava,
mesmo quando estremecia”. Baseando-se em afirmações como esta bem se
poderia negar" a existência de uma problemática demonológica na obra. Ora, tal
será absurdo, pois o tema é obsessivo na narração de Riobaldo. Em face disto não
se trata de negar, o que seria impossível, a existência de tal problemática mas de
definir exatamente sua natureza, o que será possível na interpretação simbólica
que será dada adiante. De momento, porém, é suficiente aceitar a evidência do
fato de ser a problemática demonológica um dos elementos essenciais que
constituem o protagonista como personagem. Para Riobaldo o Demônio é um dado
fundamental. Como foi visto (nota 11), a menção à reação instintiva e natural de
Zé Bebelo caso lhe fosse comunicada a decisão da próxima ida às Veredas
Mortas/Altas estabelece a nítida oposição dos planos conscienciais. O que para um
– a consciência lógico-racional – não passaria de um sintoma de anormalidade
psíquica, para o outro – a consciência mítico-sacral – é um elemento vital,
integrante de seu próprio ser. Para a consciência de Riobaldo a problemática
demonológica não é algo visto à distância, seja como elemento integrante de uma
crença religiosa, seja como dado estranho ao fluir normal do mundo. Para ele, ela
é uma realidade que empenha toda sua existência e seu mundo – é isto que
qualifico ter estruturas conscienciais mítico-sacrais. A problemática demonológica é
inerente à Welt-anschauung do protagonista, antes e depois de Veredas
Mortas/Altas. O que varia é a solução dada. E na solução está o salto qualitativo.
Antes de Veredas Mortas/Altas, Riobaldo nada tinha a contrapor aos terrores
mítico-sacrais e a seus descaminhos. Depois, dá-se a superação do plano mítico-
sacral através do encontro e da aceitação progressivos de uma vi-são de mundo
agnóstico-existencial, própria de um plano consciencial lógico-racional, encontrado
e aceito concomitantemente.

Seria naturalmente fácil dizer que Riobaldo/narrador é obrigado a negar a


existência do Diabo porque – tendo alcançado todo o desejado:, o comando, as
fazendas e a mulher! – se não a negar estará aceitando a existência do pacto –
que lhe dera os bens! – e terá que considerar sua alma como propriedade do
Outro. Fácil e verdadeiro, como parece evidente. Há, porém, algo muito mais
profundo em jogo. A negação da existência do Demônio é necessária, lógica e
conseqüente no tempo do presente (“Amável o senhor me ouviu, minha idéia
confirmou: que o Diabo não existe”, etc., p. 460) em virtude da passagem, da
mudança de nível ocorrida no episódio das Veredas Mortas/Altas. A negação da
existência do Demônio é uma necessidade vital do presente de Riobaldo/narrador.
Riobaldo ignoraria Veredas Mortas/Altas, desconheceria o salto qualitativo
ocorrido, ponto de partida de sua condição psicológico-espiritual do plano temporal
do presente, isto é, no plano temporal da narração. Levando o raciocínio ad
absurdum: Riobaldo tem que negar a existência do Demônio e aceitar,
conseguintemente, o salto qualitativo ocorrido em Veredas Mortas /Altas porque se
assim não o fizesse estaria colocando em xeque sua própria narração ao doutor e
destruindo-se como personagem ficcional na medida em que negaria sua própria
capacidade de organizar seu passado de forma lógico-racional. E é óbvio que é
apenas na medida desta organização que o doutor o ouve pacientemente durante
os três dias da narração. Evidente, é perigoso prosseguir em elucubrações que
facilmente desandam para o lado de bizantinices inconseqüentes. Fique, porém, a
menção como exemplo do impressionante rigor da construção artística rosiana.

Em Grande sertão: veredas é fundamental nunca perder de vista a floresta,


mesmo ao se examinar mais detidamente uma ou outra das árvores. De tudo o
que foi visto até aqui a conclusão só pode ser uma: a problemática demonológica
é o dado essencial da obra. A contínua negação da existência do Demônio não
afeta a questão. Pelo contrário, é exatamente esta preocupação em negá-la que é
a própria problemática demonológica. Em outros termos, a obsessão de Riobaldo
pelo tema define seu caráter único (ver nota 11) como personagem da literatura
ocidental e provoca o corte de que se falou na introdução. A trajetória de Riobaldo
não é uma sucessão de eventos ocorridos no interior de um plano de consciência.
O evento essencial desta trajetória é a superação de um plano de consciência por
outro; o mítico-sacral pelo lógico-racional. Voltaremos em breve ao tema.
Retornemos, porém, agora à análise do episódio das Veredas Mortas/Altas, há
algum tempo abandonado.
Riobaldo caminha para a encruzilhada. Em uma visão de conjunto, o mais
impressionante em todo o episódio é a atmosfera de revolta que o impregna. O
orgulho satânico, o violento desejo de alcançar a auto-superação, de abarcar em si
o sentido do mundo e da vida.' ' Esta idéia obsessiva retorna várias vezes (por
exemplo, p. 318: “Uma coisa, a coisa, esta coisa; eu somente queria era – ficar
sendo!” E, na mesma página, logo em seguida: “Eu queria ser mais do que eu.”)' ',
culminando na explicação que tudo resume : “eu estava bêbado de meu”.

É nesta situação interior que Riobaldo lança o tríplice e terrífico grito de desafio,
invocando a presença do Demônio (p. 319). Só responde o silêncio. Diante do
doutor, no plano já da consciência lógico-racional, Riobaldo explicará: “O senhor
sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. Com o que retorna a
orgulhosa auto-suficiência humana que explodira no passado. No presente da
narração, contudo, ela já é certeza, calma, pois existe é homem humano.

E Riobaldo continua a narração de sua experiência: “E foi aí. Ele não existe, e não
apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado.” (ib.) Agora – seja no
momento da narração, seja no momento imediato à terrífica invocação – a certeza
de Riobaldo sobre a não-existência do Demônio é clara, definitiva, ficando
subentendido que antes da invocação sua alma estava em dúvida. O tema voltará
mais adiante (“E, mesmo, na dita madrugada de noite, não tinha sucedido, tão
pois. O pacto nenhum – negócio não feito”, p. 354), sempre como conclusão do
seguinte raciocínio implícito: o Demônio não apareceu, logo, ele não existe. Se ele
não existe, o pacto é impossível (“E eu estava livre limpo de contrato de culpa,
podia carregar nômina; rezo o bendito!”, p. 354).

Tendo em vista esta absoluta certeza a respeito da não-existência do segundo


elemento indispensável para a assinatura do pacto, a afirmação de Riobaldo à p.
319 (“Mas eu supri que ele tinha me ouvido”, etc.) só pode ser entendida como
referência à sua situação psicológico-espiritual momentânea logo após a
invocação. Riobaldo imagina para si ter sido ouvido. Realmente o fora, mas ao
diverso, pois ao tentar vender sua alma ele a comprara (afirmação de Quelemém,
p. 460) nas Veredas Mortas/Altas, agora somente Altas. Comprara sua alma, isto
é, a libertara dos terrores mítico-sacrais, dando início à caminhada que o levaria à
conquista de uma visão de mundo agnóstico-existencial, dentro da qual ser-lhe-ia
possível integrar todos os fenômenos contraditórios da existência humana, pois
existe é homem humano e tudo, absolutamente tudo, parte desta realidade e tem
nela seus fundamentos.

O episódio de Veredas Altas se encerra com um sentimento de alegria indizível


(“Ao que eu recebi de volta um adejo...”, etc., p. 319), com o alvorecer, o nascer
de um novo dia (p. 320), contraponto do nascer do homem novo, nascido da
noite, tema explicitamente presente (“Porque a noite tinha de fazer para mim um
corpo de mãe – que mais não fala”, etc., ib.), e com a presença da água, elemento
de purificação e batismo, que completa o episódio (“Curvei, bebi, bebi”, etc., ib.).
Agora, Riobaldo está pronto para assumir o comando dos jagunços e, através da
contraposição Diadorim/Hermógenes e da conquista de Otacília, entrar na
plenitude de seu destino, misto de trajetória cultural-filosófica – a superação do
plano consciencial mítico-sacral e o encontro de uma visão de mundo agnóstico-
existencial, capaz de integrar a totalidade dos fenômenos da condição humana – e
de arrivismo social e econômico – o casamento e a nova posição sócio-econômica
de fazendeiro e, last but not least, de ultra-reacionário e filisteu.

É fundamental observar que em Grande sertão: veredas o momento em que o


herói encontra sua identidade, o momento em que soa a hora da realização de seu
destino e se completa – ou começa a completar-se – sua trajetória existencial, este
momento não nasce da experiência da morte – Werther, Hans Castorp, o Quixote
–, da ascensão social – Moll Flanders, Rastignac –, da incapacidade de ordenar o
mundo à sua volta – Rubião, Raskolnikov –, da entrega ao Demônio – Adrian
Leverkuehn –, do desespero teatralizado – Julien Sorel –, da renúncia – Julie – ou
de qualquer outro catalisador próprio do romance real-naturalista. Em Grande
sertão: veredas este momento nasce do salto qualitativo de um plano de
consciência para outro, através da negação do elemento essencial integrante de
estruturas conscienciais mítico-sacrais – o Demônio – e da subseqüente aceitação
de uma visão de mundo agnóstico-existencial, só possível dentro de um plano de
consciência lógico-racional.

As várias conseqüências que resultam, para Riobaldo, do episódio das Veredas


Altas podem receber interpretações diversas. O fato capital, porém, é que a
temática fundamental, o fio integrador e o clímax da obra são o nascer, no
horizonte existencial do protagonista, de uma consciência agnóstica, liberta dos
terrores mítico-sacrais do estágio anterior. Ora, é isto que me parece ser
radicalmente novo na literatura ocidental, particularmente em relação ao romance
real-naturalista, lar por excelência da consciência laica e lógico-racionalista da
burguesia européia, no qual tudo o que não se enquadrasse na esfera do captável
pelos sentidos ou do aceito pela dedução lógica sempre foi visto à distância.

É por tudo isto que o suposto problema fáustico de Grande sertão: veredas nada
tem a ver com o tema tal como é tratado nas obras de Marlowe, Goethe ou
Thomas Mann, onde o Demônio entra em cena como um artifício aceito e
sublimado esteticamente pela consciência lógico-racional do espectador ou do
leitor. Em Grande sertão: veredas, pelo contrário, a problemática demonológica é o
núcleo real, imediato, da obra, não sendo submetido a sublimação de qualquer
espécie. O drama de Riobaldo é simplesmente o de ter aceito no passado a
possibilidade da existência do Demônio e ter alcançado, depois de Veredas Altas,
um plano consciencial que o obriga a negar aquela possibilidade. Em outras
palavras, o núcleo central da obra de Guimarães Rosa e da travessia de Riobaldo é
o salto qualitativo antes mencionado.
No que diz respeito ao problema fáustico, trata-se evidentemente de um
pseudoproblema nascido de interpretações baseadas em aproximações indevidas
com obras da literatura européia. A consciência de Riobaldo/narrador – o que
significa: no plano temporal do presente – é a negação da possibilidade de
qualquer problemática fáustica. Exata-mente porque a problemática demonológica
é real em Grande sertão: veredas e não existe apenas no plano da sublimação
estética, realizada no âmbito de uma consciência lógico-racional, é que o Demônio
não aparece. Se não ficou ainda claro : Riobaldo é um anti-Fausto. Precisa negar o
Demônio para ser. Não houve pacto. Mais ainda, não pode ter havido, pois a
aceitação da existência do Demônio como ente real por parte de Riobaldo/narrador
seria autodestruir-se através da volta ao passado e do abandono do plano
temporal e psicológico estático do presente, seria negar-se a si próprio como
consciência lógico-racional de narra-dor, ordenadora do passado.

2. O MÍTICO-SACRAL COMO PRESENTE

Até aqui foi analisada a manifestação do mítico-sacral no plano do passado, em


outras palavras, na narração, feita pelo protagonista, de sua problemática
demonológica pessoal e de sua evolução.' ' Ora, a problemática do mítico-sacral,
mais especificamente, do demonológico em Grande sertão: veredas aparece
também sob outra forma: como presente e, para Riobaldo, como antivalor.

Quando o doutor chega, o fazendeiro Riobaldo não está em casa. Retorna em


seguida e principia a narração, começando por explicar a causa dos disparos de
carabina há pouco ouvidos. Habituado a atirar para não perder sua famosa
pontaria, Riobaldo fora ao quintal “no baixo do córrego” (p. 9), onde o vêm
chamar para matar um bezerro branco nascido defeituoso, o Demônio, segundo
diziam. Riobaldo recusa-se a ir mas empresta sua arma. O animal é morto e, ao
retornar e encontrar o doutor, Riobaldo utiliza a oportunidade para relatar outros
fatos semelhantes e para iniciar a narração de sua vida, não sem antes fazer uma
violenta catilinária contra a “superstição”, “doideira”, a “fantasiação”, o “povo
prascóvio”. Em seguida acrescenta: “Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a
crença, mercês a Deus ; é o que ao senhor lhe digo, à puridade.” (p. 10). Para
Riobaldo/narrador, em sua condição psicológico-espiritual do presente, a crença na
existência do Demônio como entidade real, pessoal, é, evidentemente, um
antivalor, um produto da ignorância crassa do “povo prascóvio” (p. 9), o que vem
novamente provar o salto ocorrido em Veredas Altas.

Os ataques sempre renovados de Riobaldo contra estas crenças (veja-se, por


exemplo: “O pacto! Se diz – o senhor sabe. Bobéia”, p. 40) procedem da
defasagem de estruturas conscienciais existente entre ele e o mundo que o cerca,
no qual não consegue encontrar parceiro para um diálogo, excetuando Quelemém
e o próprio doutor.' ' Esta defasagem não é senão a distância qualitativa que
medeia entre o plano de estruturas conscienciais mítico-sacrais do meio em que
vive e o plano lógico-racional alcançado a partir de Veredas Altas. Portanto, o
Demônio, no sentido de uma entidade real e pessoal, naturalmente não faz parte
da visão agnóstico-existencial de Riobaldo/narrador a não ser como elemento a ser
negado, quando relacionado com sua própria evolução psicológico-espiritual, ou
como antivalor, no meio sócio-cultural que o cerca. Por outro lado, é claro que o
Demônio, para Riobaldo, existe como símbolo, como a personificação do mal
inerente à condição humana (a história de Valtêi, p. 13),‘º mais ainda, inerente ao
próprio mundo, segundo o dualismo panteísta que transparece à p. 12: “E o demo
– que é só assim o significado de um azougue maligno – tem ordem de seguir o
caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.”

Para encerrar, algo sobre o mítico-sacral no plano do que a consciência lógico-


racional qualifica de crendices e superstições, sejam elas ligadas ou não à
existência do Demônio. Por toda a extensão da obra surgem sempre fatos
relacionados com tal problema. No plano do presente, de Riobaldo/narrador, é
evidente que este recusa veementemente acreditar nos mesmos. Desde a violenta
catilinária inicial, de que já falamos, contra as crendices e superstições, ficamos
cientes de que o protagonista não acredita mais em nada disto (o que não impede
que ele sempre busque apoio no doutor para sua descrença), como se viu há
pouco. Apenas o meio em que vive ainda acredita em tais bobéias.

No que se refere às crendices quando integrantes de eventos narrados – ocorridos


ao tempo da jagunçagem do narrador – Riobaldo porta-se com mais comedimento,
sem atacáias violentamente, narrando-as e mantendo um certo distanciamento
crítico, como nos episódios do pacto de Davidão e Faustino (p. 6) e de Maria
Mutema (p. 170 et. seq,), em ambos os quais, aliás, existe uma narração dentro
da narração. Os dois episódios são típicos. Riobaldo não os narra diretamente,
utilizando outra personagem (história de Maria Mutema) ou apenas transmitindo
pelo “se diz que...” (Davidão e Faustino), sem afiançar ele próprio os relatos. Tal
solução tem dois efeitos: em primeiro lugar cria-se uma ambiência mítico-sacral –
tal como existiria mais ou menos no tempo de Riobaldo/jagunço –, já que ele não
intervém diretamente. Se interviesse teria que destruir a ambiência mítico-sacral,
pois sua consciência no presente está em outro plano. Em segundo lugar, ao não
intervir Riobaldo atua mais ou menos como um aedo que, ao narrar, suspende o
julgamento, Este suspender o julgamento não se liga direta-mente às crendices –
pois tanto o doutor como o leitor sabem que Riobaldo não acredita mais nelas –
mas sim ao caráter épico global da obra, como se verá adiante. O passado
realmente não existe mais, em nenhum sentido. Aliás, existe : como narração
épica. Que o narrador seja o próprio protagonista ou participante dos eventos
narrados, personagem épica e aedo ao mesmo tempo portanto, eis o que dá à
obra de Guimarães Rosa características específicas que a aproximam e, ao mesmo
tempo, afastam do epos grego, fazendo dela uma obra única no panorama da
literatura ocidental.
 

AS ORIGENS DA PROBLEMÁTICA DEMONOLÕGICA

Temos agora que perguntar pelas origens da problemática demonológica pessoal


de Riobaldo.

É lógico, segundo se viu, dizer que de um ponto de vista imediato a decisão de ir


até Veredas Mortas fora tomada em virtude do violento desejo de auto-superação
e da vontade de deixar de ser “raso jagunço... cachorrando pelo sertão”. Como
explicação, porém, não parece suficiente, pois não faz jus à densidade da obra e
permanece à mera superfície. Talvez seja possível descer mais fundo se seguirmos
a trilha interpretativa até aqui adotada. Nesta, a problemática demonológica
pessoal de Riobaldo procede de um conflito profundo que informa sua caminhada
existencial e determina as contradições de sua Weltanschauung. Este conflito é
subjacente a uma consciência, de um lado, iniciada nos elementos ordenadores de
um plano lógico-racional – Mestre Lucas, as matemáticas – e, de outro, desviada e
integrada, pelo menos temporariamente, em um mundo habitado por consciências
de estruturas diversas. A problemática demonológica é, portanto, o catalisador de
um conflito que subjaz (e que transparece sempre na certeza do “ser diferente”
dos demais: p. 110, 133 e 169, por exemplo) e cuja solução se eleva no horizonte
no momento do episódio de Veredas Mortas/Altas, começo da caminhada do herói
rumo à conquista e aceitação de uma visão de mundo agnóstico-existencial que,
se não lhe permitirá ter “os todos pastos demarcados... que dum lado esteja o
preto e do outro o branco” (p. 169), pelo menos o fará aceitar que o mundo seja
um pasto só, possivelmente de cor cinzenta! Depois da manifestação de um tal
conflito, a solução agnóstico-existencial é a única saída, no caso de Riobaldo, para
o encontro de uma visão de mundo totalizante, por precária e provisória que ela
seja. E, como se viu, uma visão agnóstico-existencial só é possível no âmbito de
uma consciência lógico-racional, plano que Riobaldo alcança em Veredas Mortas
/Altas.

No contexto desta interpretação, Diadorim é a Mulher/Ariel cujo papel essencial


mas oculto é o de a) guiar Riobaldo até a encruzilhada de Veredas Mortas/Altas; b)
destruir Hermógenes (é Diadorim que o mata), identificado por Riobaldo – pela
estratégia do próprio Diadorim – como o Demônio, o símbolo de sua condição
antes de Veredas

Mortas/Altas, e c) revelar-se como mulher, permitindo a Riobaldo, através de sua


morte, entrar na plenitude de seu destino, como desconfia Riobaldo ao final: “Para
poder matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e gostado dele,
e seguido essas mal aventuranças, por toda a parte?” (p. 409). Ao mesmo tempo
em que tudo isto ocorre, Diadorim dá a Riobaldo outro elemento de importância
essencial para a estruturação de sua visão de mundo agnóstico-existencial: a
aceitação do amor e da relação homem/mulher como fundamento último da
condição humana: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a
começar!...” (p. 353)

Finalizando : que Grande sertão: veredas gire em torno de um conflito de níveis de


consciência não está escrito na obra, forçoso é reconhecê-lo. Aliás, se estivesse ali
escrito seria ensaio ou pesquisa científica e não literatura, arte. Contudo, os
marcos semeados do longo da travessia de Riobaldo trazem ou – na perspectiva
histórica de hoje – parecem trazer em si elementos suficientes para que a obra
possa ser analisada sob este ângulo crítico. Penso tenho demonstrado.

NOTAS

1 - Que será bem-vinda, se estas análises terem dela merecedoras.

2 - No romance real-naturalista europeu nunca se manifestou nem o problema de


um conflito entre estruturas de consciência de natureza diversa nem uma visão
mítico-sacral da História, pois a consciência das elites foi sempre leiga (é verdade
que, já na decadência, surgiram Greene, Bernanos, Green, Mauriac, Chesterton,
Waugh e outros, mas isto não afeta o núcleo real-naturalista. Estes autores são
apenas periféricos e de importância reduzida). Quer se queira, quer não, a visão
sacral de mundo das igrejas cristãs não moldou em nada a história espiritual do
Ocidente depois de São Tomás (aliás, o próprio São Tomás, ao aceitar as leis de
uma consciência lógico-racional em suas argumentações teológicas, inicia, sem o
querer, o processo de laicização). Dante, como afirma Auerbach, já reflete a
laicização do mundo. E as catedrais góticas não são mais que os primórdios
triunfais de uma sociedade baseada sobre o capitalismo nascente das cidades da
lle-de-France. A longa persistência das estruturas eclesiásticas – cm particular no
que se refere à Igreja Católica – é sem dúvida um impressionante fenômeno
sociológico, impressionante por realizar o quase milagre histórico de manter
fechado o ghetto por uma meia dúzia de séculos, isolando-se do mundo, isto í;, do
evoluir da consciência ocidental. Isto significa que na Europa, a partir da baixa
Idade Média (Giotto também não tem mais nada de artista religioso), os grupos
que possuíam uma consciência mítico-sacral nunca for¿ historicamente autênticos.
Por isto mesmo, suas preocupações nada produziram no campo artístico. Quanto
ao chamado Barroco, é uma arte fundamentalmente áulica, cortesã, mesmo
quando nas igrejas. Pelo menos na Europa.

3 Realidade distinta é a das civilizações não-acidentais avançadas, como a chinesa,

a hindu e a anamita.

4- O termo fantástico não foi levado em consideração por ser a denominação


tradicional dada às obras que, na ficção européia ou de vertente européia.
Apresentam elementos e fenômenos estranhos, anormais, inverossímeis (ver a
introdução), Sendo que este ensaio tem exatamente o objetivo de mostrar a
distância que medeia entre a obra analisada e tais produtos da literatura européia,
não teria sentido nem mesmo discutir a viabilidade do termo. Ele era inviável a
priori.

5 - Em La messe sur le monde, por exemplo.

6 - Daniélou apresentou sua visão místico-teológica de mundo em Sobre o mistério

da História (há uma tradução portuguesa da Herder, 1962). O cardeal francês se


afasta consideravelmente da visão tomista de mundo mas não deixa de aceitá-la
como base implícita, se bem que distante.

Coruja, o nome seria uma referência sutil a Minerva, ao mundo do pensamento


lógico-racional?

8 - Não há como negar, os valores de Riobaldo eram bem outros que os de


Diadorim. E quem tender a uma crítica na qual Diadorim não seja visto
essencialmente como elemento simbólico terá que levar esta passagem na devida
conta, apesar das dores de cabeça que certamente provocará.

9 - Isto mostra mais uma vez a inviabilidade de uma crítica que não veja Diadorim
e Hermógenes como símbolos na trajetória de Riobaldo, A não ser que se parta
para uma crítica – sem dúvida muito mais lógica que o impressionismo laudatório
inconseqüente que anda ainda por aí na crítica brasileira – brutalmente sociológica
e se qualifique Diadorim como a filha de um latifundiário frustrado em seu desejo
patriarcal de ter um filho varão para reger o clã. Diadorim, dentro desta linha de
raciocínio, seria fundamentalmente um indivíduo que utilizaria tanto a habilidade
de tiro como o arrivismo social e econômico de Riobaldo como instrumentos para
consumar a vingança contra os assassinos do pai. E Riobaldo, usado e explorado
por Diadorim, poderia ser considerado o arrivista sempre favorecido pela fortuna,
que, sem o saber, rompe as amarras que o prendiam a seu tutor e explorador e
realiza seu próprio destino, tornando-se o que poderia ter sido o filho que Joca
Ramiro não tivera.

10 Minha opinião, parte integrante da perspectiva das análises aqui elaboradas, é


de

que a contraposição Diadorim/Hermógenes, como já foi mencionado e como se


verá mais claramente adiante, só pode ser entendida simbolicamente. O assunto
não é abordado neste momento para evitar maiores emaranhados, nos quais, dada
a riqueza do alternar-se temático, nos poderíamos perder. Se já não estamos...
Esta passagem é Fundamental Nela temos mais uma prova evidente da tese aqui
defendida; Riobaldo e Zé Bebelo não podem entender-se, ou seja, suas estruturas
conscienciais são de natureza diversa. As de Riobaldo mítico-sacrais, as de Zé
Bebelo lógico-racionais. Para Riobaldo, a problemática demonológica faz parte de
sua natureza, não importa que ele marche no sentido de solucionar tal
problemática. Para Zé Bebelo, a preocupação fundamental de Riobaldo só pode ser
vista à distância, com desconfiança, como algo estranho, não normal na ordem
natural do mundo e das coisas. Ora, como foi visto na introdução, é exatamente
assim que a consciência lógico-racional que determina a estrutura narrativa do
romance real-naturalista vê os fenômenos que não podem encontrar explicação no
âmbito de uma estrutura consciencial lógico-racional.

Muito clara em Marlowe (Dr. Faustus), Goethe (Fausto/, Dostoiewski (Os irmãos
Karamázovi e Thomas Mann (Dr. Faustus). Nestas obras o Demônio é a
representação e a encarnação das forças da negação e da desordem que se
encontram no íntimo do ser humano.

Esta afirmação (e a da p. 311) pode ser assim interpretada; “Cri quando não tinha
a consciência que tenho hoje (no momento da narração). Na ignorância ninguém
pode crer realmente em algo. Portanto , na realidade não cri. Apenas hoje existem
as condições para crer ou não crer nas coisas”.

•  E, negando-se a existência de tal problemática, cairiam por terra todas as


interpretações críticas que giram em torno da existência ou não-existência de um
pacto (entre parênteses: pelo menos a existência de um pacto é difícil dizer de
onde tais críticos a tiraram! Da obra de Guimarães Rosa é que não!). Se Riobaldo
não acreditava no Diabo, se o Diabo não aparece, se não houve pacto, que fazer
então com tais interpretações? É por isto que acentuo a necessidade de uma
interpretação fundamentalmente simbólica para a obra, sem esquecer alguns
traços realistas. Na interpretação simbólica que adoto – que vê na travessia de
Riobaldo o caminho entre dois planos de estruturas conscienciais de natureza
diversa – contradições como as acima indicadas encontram um denominador
comum, o que em análises de tendências pretensamente realistas não acontece.

15 Grande sertão: veredas pode também ser visto como a constante busca, por
par-

te do ser humano, de uma Weltanschauung, de uma visão englobante da


existência, que permita um mínimo de tranqüilidade existencial. Riobaldo, nesta
perspectiva, quer despedaçar as amarras que impedem seu vôo rumo à
possibilidade da estruturação de uma visão de' mundo conseqüente que lhe dê
uma explicação ou, pelo menos, um denominador comum para os fenômenos
contraditórios que se lhe deparavam. Isto é evidente nos dois grandes parágrafos
da p. 366 (“Sempre sei”, etc.).
Quando ainda distante do relato do episódio de Veredas Mortas/ Altas (p. 296),
Riobaldo dizia: “Eu ainda não era ainda.”

17 O termo evolução é suficiente para saber que se fala do passado, pois, como
vimos, o plano do presente, de Riobaldo/narrador, é estático.

Talvez seja possível tentar uma análise decididamente psicológica e identificar


Quelemém como o superego e o doutor como alter-ego de Riobaldo, À p. 33
(“Falar com o estranho assim...”, etc.) há uma passagem que permite a defesa de
tal tese.

Nesta defasagem é o meio o elemento defasado negativamente. Riobaldo


representa, digamos, o processo histórico fundamental. No momento em que ele
dá o salto qualitativo ocorre a defasagem, E o meio, que ainda vive outros
(não-)valores, passa a ser periférico no processo. Riobaldo é a consciência, o
exemplar típico, de seu grupo dentro do processo histórico. Tudo o que ficou para
trás já é escória histórica e, portanto, não-valor (ver nota 2 e a conclusão deste
ensaio).

20 Quanto ao mal inerente à condição humana, ele parece ser, para Riobaldo, algo

de sanável pela experiência do sofrimento (“Que o que gasta, vai gastando o diabo
de dentro da gente”, etc., p. 12) e pela Itaca espiritual representada pela vida
familiar: “E a alegria de amor – compadre meu Quelemém diz. Família.” (ib.) Em
re-sumo, Riobaldo parece afirmar que o viver, a compreensão da existência em
sua totalidade e realidade, incluindo seu caráter transitório, enfim, que a
consciência (existencial) torna o homem tolerante, fazendo-o esquecer suas
origens infernais, suas profundezas diabólicas (“A gente viemos do inferno...”, etc.,
p. 40)

3. O problema de Deus

É relativamente fácil captar a verdadeira posição de Riobaldo em face do problema


do Demônio, se bem que não o seja dar uma interpretação da mesma. Mais difícil
é definir de maneira exata a curiosa e, às vezes, quase impenetrável teologia lírica
riobaldina. Difícil ou impossível.

Tendo já analisado os elementos religiosos em Grande sertão. veredas, definindo-


os como parte da ambiência mítico-sacral da obra, nos ocuparemos aqui
especificamente do problema de Deus a partir de algumas passagens nas quais o
protagonista faz a Ele referências diretas e, se for permitida a expressão,
racionaliza o problema. É preciso antes
acentuar que, dentro da análise desenvolvida no presente ensaio, o problema de
Deus é um elemento importante, sim, mas não o essencial da obra. O núcleo de
Grande sertão: veredas é, a meu ver, a problemática tratada no cap. 2.

Talvez seja prático iniciar com a citação, um tanto longa, na qual Riobaldo
organiza, de modo direto e claro, um credo pessoal e seu generis:

“Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher
eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior
transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso
figurar minha idéia nisso. Refiro ao senhor : um outro doutor, doutor rapaz, que
explorava as pedras turmalinas no vale do Asassuaí, discorreu me dizendo que a
vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há.
Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre
um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente
perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas
horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos
grave se descuidar um pouquinho, pois,no fim dá certo. Mas, se não tem Deus,
então, agente não tem licença de coisa nenhuma. Porque existe dor. E a vida do
homem

está presa, encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses,dos meninos sem
pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói
sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem
sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo
mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado de demônio. Deus existe
mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente
sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-
fim que nem não se pode ver.

Mas a gente quer céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente
tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este.
Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução
do senhor...” (p. 48-9)

Se outras passagens – como se verá – carregam um sentido um tanto obscuro,


esta apresenta razoável clareza, pelo menos em alguns pontos, se não em todos.
A primeira coisa a observar é a construção de uma teodicéia (justificação de
Deus), mesmo se rudimentar, que pode ser resumida assim: “Se Deus não existe,
nada é permitido”.' Com

uma linguagem clara, sem deixar margens a dúvidas, Riobaldo defende a


necessidade da existência de Deus e seu principal argumento para tanto é a
existência da dor. O sofrimento e a dor fazem parte do mundo e da vida. Se se
negar a existência de Deus, como fazia um outro doutor, doutor rapaz, a
existência da dor, elemento inerente à condição humana, não deixa outra saída
que a de aceitar o absurdo ou, na expressão do protagonista, a burrice da vida.
Mas, se Deus existe, “tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo
se resolve”. Até aqui tudo perfeitamente claro. Contudo, Riobaldo continua seu
raciocínio, lançando aparente confusão no seio da clareza manifestada inicialmente
: “O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo
quando não há. Mas o demônio não precisa existir para haver – a gente sabendo
que ele não existe, aí é que ele

aroma conta de tudo.” O sentido destas afirmações, ao que parece, é o seguinte: o


mundo está aí, é um dado gratuito e, por ser gratuito, uma engrenagem que
deveria funcionar perfeitamente. Mas existe a dor, o sofrimento, isto é, o defeito
na engrenagem, Por isto, “Deus existe mesmo quando não há”, quer dizer, o bom,
o bem, o ótimo funcionar identifica-se com Deus, que é, na teologia riobaldina, a
realidade primeira (“Deus é definitivamente ; o demo é o contrário dele...”, p. 35).
Todo defeito, o mau funcionar, 8 negação, eis ó sentido da frase “o que não é
Deus, é estado do demônio.” E, por ser negação, o Demônio “não precisa de
existir para haver...” A negação do bem, do normal funciona-mento da
engrenagem do mundo, é sua existência. Continuemos a exegese : “ – a gente
sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”. Esta frase,
explicada a parte anterior, é clara. Sabendo-se que o Demônio, como entidade
real, pessoal, não existe, é então que ele – agora como personificação do mal –
“toma conta de tudo'. Por que to-ma conta de tudo? Porque se o
Demônio/entidade real não existe – e Veredas Mortas/Altas o provou!!! –, então os
limites do Demônio/personificação do mal são os limites da “ruindade nativa do
homem” (p. 33), da própria condição humana. E a maldade humana, inerente à
condição humana, é um mistério insondável e inabarcável (a história de Valtêi, p.
13), como parece pensar Riobaldo.‘

Desta análise podem ser tiradas algumas conclusões. Deus, para Riobaldo, não é
uma necessitas religiosa ou teológica mas sim existencial. Colocando-se em uma
posição mais ou menos próxima à do autor' do Gênesis, que, confuso perante a
desordem do mundo, reconstrói o passado de tal forma que nele possa ser
enquadrada.a culpa original, explicação da desordem, Riobaldo também se
desarvora perante o caráter contraditório dos fenômenos que integram a
existência humana (p. 112, 169, 236, 237, por exemplo), em particular o mal e a
dor, e organiza uma teodicéia que, em última instância, se transforma em
panacéia. O problema de Deus, portanto, não é discutido em termos
dostoiewskianos ou sartreanos, ou seja, filosófico-teológicos. Nem mesmo em
termos de existência ou não existência na forma de entidade real, pessoal,
discussão que ocorre no caso do problema do Demônio. Deus, para Riobaldo, não
é uma necessitas per se mas apenas um bom achado, um calmante para qualquer
situação de crise. Por outra parte, integra também seu curioso ecletismo religioso
(p. 15-6), utilizado como o provocador de uma catarse destinada a facilitar a
existência. Tal é possível para ele porque, apesar de encontrar-se em um nível de
consciência lógico-racional, não é ainda um cético' como seu oculto interlocutor
(“O senhor ri certas risadas...”, p. 9), do qual sempre inveja a instrução,
reconhecendo a distância que medeia entre os dois.

Uma outra maneira de definir sua concepção – se assim se pode falar – de Deus é
o conceito da gastança, da paciência: “Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe
dizia: o ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera
esta gastança. Moço! : Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O
senhor zela faca em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma
dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola”, etc. (p. 16).

Esta passagem e a do caso da faca que caíra em uma solução ácida, restando ao
final apenas o cabo (p. 21), mostram a forma com que Deus, “traiçoeiro” (ib.), age
“se divertindo, se economizando” (ib.). O raciocínio de Riobaldo parece
permanecer unicamente no plano do existencial, podendo ser compreendido da
seguinte forma: o ponto de partida é “a ruindade nativa do homem”, fator
extremamente importante na visão de mundo de Riobaldo.' Esta condição primeira
– isto é, nasce com o homem – de todo ser humano vai se mudando, se gastando,
à medida que a vida passa, com o correr do tempo e das vivências. Deus está em
tudo (e por isto é traiçoeiro), vem só no fim, Deus é o próprio fluir do mundo e do
homem ou, o que dá no mesmo, é o resultado deste fluir. Talvez – se esta
interpretação das afirmações de Riobaldo for carreta – a melhor maneira de captar
a visão riobaldina de mundo nas passagens citadas é a de definir Deus como a
experiência existencial. E vice-versa. Tendo o homem “a nativa ruindade” (p. 33)
como condição inicial, o gastar-se desta maldade exterioriza-se através do mal
como ação (ver nota 4) dos indivíduos : “Até podendo ser, de alguém algum dia
ouvir e entender assim: quem sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que
Deus só pode às vezes manobrar os homens é mandando por intermédio do dia?
Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade
nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro.¿
(p. 33) É difícil encontrar um denominador comum para definir as dilacerações nas
quais se debate a alma do protagonista. No caso do problema de Deus, contudo,
parece ser possível afirmar que a questão não existe em termos de uma
problemática filosófico-teológica propriamente dita. Riobaldo jamais tenta afirmar
ou negar, neste terreno, em bases lógico-racionais. Mesmo a teodicéia/panacéia
(p. 48-9) não é apresentada em tais bases, devendo ter provocado um natural
torcer de boca (“Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte”, p. 49) no
semblante do cético doutor. A questão permanece em um plano existencial muito
próprio, no qual Deus é identificado com a experiência, com a própria trajetória
existencial do homem, enfim, com a própria condição humana. Há duas passagens
bastante claras, melhor, três. A primeira (p.258) : “Deus é uma plantação – a
gente e as areias.” A segunda (p. 260) :“Que Deus existe, sim, devagarinho,
depressa. Ele existe – mas que só por intermédio da ação das pessoas : de bons e
maus.” Finalmente, uma passagem indireta (p. 308) : “O que Diadorim
reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto Deus dura”, onde a
palavra 0eus substitui, evidentemente, a palavra vida.

Sem pretender forçar relações, esta interpretação ajusta-se também à obscura


passagem da p. 248 : “Aí ergui mão para coçar minha testa, aí me cismei: e fiz,
com todo o respeito, o pelo-sinal. Sei que o cristão não se concerta pela má vida
levável, mas sim porém sucinto pela boa morte – ao que a morte é o sobrevir de
Deus, entornadamente.”

De acordo com a espiritualidade cristã, como afirma Riobaldo, a “boa morte” dá o


sentido à existência, não interessando o passado. Em seguida, Riobaldo joga com
os termos e, ao eliminar qualquer relação transcendente – fundamental na
espiritualidade cristã –, identifica a morte com o sentido da existência e o sentido
da existência com Deus. O raciocínio de Riobaldo parece ser o seguinte : se a
morte dá o sentido – e é aqui que ele elimina o fator transcendente implícito na
perspectiva cristã da morte – à existência, então a morte, que é o término da
existência, é a própria realidade última que se abate sobre o ser humano. Se ela é
a realidade última, ela é o sentido, o momento em que a condição humana se
desvela em sua fragilidade absoluta. Se ela é o sentido, então pode ser
identificada com Deus (no sentido que Riobaldo dá ao termo, não no da visão
teológica cristã).'

Em Grande sertão: veredas o problema de Deus não é discutido em termos


filosófico-teológicos como em Dostoiewski mas também não se pode afirmar que
esteja ausente como nas grandes obras do real-naturalismo. Não é também, para
citar um exemplo conhecido, um curioso acessório sem sentido profundo na
estrutura da obra, tal como em Hamlet. Sua presença em Grande sertão: veredas
se manifesta de forma original e única na literatura romanesca ocidental.
Concluindo, não é propriamente o problema de Deus o aspecto realmente
importante sob este ponto de vista em Grande sertão: veredas. Importante é o
fato de ser este elemento, integrante de um plano de consciência mítico-sacral (no
caso de Riobaldo), solucionado em bases agnóstico-existenciais, permanecendo no
plano horizontal, não-transcendente, solução de extrema importância para a tese
defendida nestas análises e abordada de uma forma um pouco mais ampla nas
próximas páginas.

NOTAS

1. Trata-se, como é óbvio, da inversão do famoso conceito dostoiewskiano. “Se


Deus não existe, tudo é permitido” (Ivã, em Os Irmãos Karamázovi ), conceito no
qual o sentido do dever moral e da conseqüente sanção formam o núcleo da
questão (Sartre o transformaria em: “Deus não existe, logo, tudo é permitido”).
Este sentido do dever moral, fundamental em Dostoiewski, inexiste em Grande
sertão: veredas. Seja como for, o autor russo é o único grande romancista do real-
naturalismo em cujas obras a problemática teológica faz parte da estrutura mais
profunda das mesmas.

Foi na encruzilhada – existencial e geográfica – de Veredas Mortas/Altas que


Riobaldo encontrou este denominador comum para os fenômenos da existência
humana. Foi ao aceitar uma visão de mundo agnóstico-existencial que ele
conseguiu a tranqüilidade existencial, pois alcançara, enfim, uma visão de mundo
na qual os fenômenos da existência podiam enquadrar-se como totalidade. Eis o
que não me cansarei de acentuar: sua novidade completa como personagem da
ficção ocidental é o fato de parar aí, exatamente no limite, sem avançar – caindo
no nacionalismo cético do homem urbano ocidental – nem retroceder, o que o
levaria a destruir seu passado épico de jagunço ao analisá-la historicamente, como
passado, como um mundo que desapareceu e jamais retornará. Em definitivo, isto
só era possível no sertão de um país do Terceiro Mundo onde a ação épica era – e
talvez ainda seja, por pouco tempo – possível.

Emprego o termo autor em sentido amplo, isto é, como o catalisador de um


contexto cultural.

O interlocutor de Riobaldo certamente explicaria, geneticamente, o nascimento do


bezerro defeituoso e a falta de braços e pernas dos filhos do casal que eram,
marido e mulher, primos carnais. Riobaldo não tem uma consciência científica e
confunde dois males de natureza diferente: o mal natural, procedente de uma
falha biológica, e o mal que nasce da ruindade nativa do homem. Em
compensação, Riobaldo, através de sua visão do mundo agnóstico-existencial,
consegue uma solução satisfatória para o mal que procede da ruindade nativa.
Para o ceticismo e a consciência científica do doutor, que possui a explicação para
o mal natural (desorganização cromossomática, predominância, etc.), certamente
não é mais possível nem mesmo a visão agnóstico-existencial, penhor da
tranqüilidade de Riobaldo: Existe é homem humano. É natural, o doutor deve
possuir, ao que se presume por suas risadas, as estruturas conscienciais cético-
racionalistas dos habitantes do mundo urbano, ocidentalizado e em crise de
fundamento.

O protagonista acha apenas “proseável” (p. 40) as afirmações de Quelemém


segundo as quais “a gente viemos do inferno” (ib.). Riobaldo (que não crê em
nada a não ser no homem humano) interpreta tais palavras em relação com o
desconcerto do mundo, que é sempre sua preocupação fundamental, apesar de,
para sua vi-são agnóstico-existencial, ser um problema solucionado.

Como curiosidade não deixa de ser interessante citar a definição de Deus que
Aldous Huxley apresenta em Contraponto: “Deus é a resultante total, espiritual e
física de todo pensamento, de toda ação que signifique vida, de toda relação vital
com o mundo” (Edições Abril Cultural, p. 434). Esta definição, parece-me, talvez
possa ser a tradução, em conceitos filosófico-teológicos tradicionais, daquilo que,
em termos existenciais, Riobaldo entende por Deus.

4. O épico

Antes de delimitar o que se entende por épico em Grande sertão: veredas e no


âmbito deste ensaio, é preciso retomar rapidamente alguns pontos abordados na
introdução.

Principiando por tomar o cuidado de evitar desnecessários equívocos, é


conveniente esclarecer logo que o termo épico, empregado como substantivo ou
adjetivo, possui aqui o sentido amplo com que é utilizado seja na Estética de
Hegel, seja em Teoria do romance, de Lukács. Sem pretender discutir a
propriedade da utilização do termo quando re-ferido às obras épicas artificiais (Os
Lusíadas, Eneida, Jerusalém liberta, Uraguai, etc.) ou aos poemas medievais (Os
Nibelungos, El Cid, Parsifal, etc.), a amplitude do mesmo nos interessa na medida
em que é aplicado não somente ao epos clássico ocidental (Homero) mas também
ao romance real-naturalista (Defoe, Balzac e Tolstoi podem ser considerados
expoentes capitais do mesmo).

Um segundo ponto a esclarecer é o da exata definição de épico. Aqui também,


para evitar explicações que, por ser o tema tão complexo, poderiam tornar-se
intermináveis, é preferível ficar apenas com a definição implícita no parágrafo
anterior e verbalizada na introdução: o termo épico define a forma literária
(ficcional) cujos exemplos mais puros são o epos grego e o romance (real-
naturalista). Esta forma é a da narração da ação (e a celebração desta ação) do
indivíduo sobre o mundo que o cerca.'

Estas seriam as observações preliminares a fazer. Agora, é inevitável – como em


todos os demais aspectos – retornar à estrutura fundamental de Grande sertão:
veredas, anteriormente definida como o alternar-se contínuo dos planos temporais
do presente e do passado. Apenas depois de se ter plena clareza a respeito da
característica temporal dos momentos em que se manifesta o épico na obra será
possível a análise e a discussão.

Riobaldo, no tempo estático do presente (ver cap. 2), narra os acontecimentos do


passado, plano ao qual era inerente, como vimos, o fluir temporal e psicológico.
Como narrador, Riobaldo não pode furtar-se a comentar o passado, criando o
contínuo alternar-se dos planos (narração/comentário, narração/comentário,
narração/comentário... ). Em conseqüência, tanto a narração como o
comentário/problematização – que não é propriamente problematização, como
veremos – dos eventos são feitos a partir da consciência presente do protagonista,
consciência cujo nível (cap. 3) é qualitativamente diverso do nível próprio a ela no
plano temporal do passado, isto é, antes da visita a Quelemém ou, a rigor, se se
quiser, antes de Veredas Mortas/Altas.

Esta diferença qualitativa de níveis conscienciais deveria, num processo normal,


provocar no presente a destruição ou a negação do nível inerente ao plano do
passado. Em outros termos, a narração épica – inocente, não problemática por
definição – não poderia existir pois o protagonista começaria a perguntar-se pelo
porquê de uma travessia, de uma trajetória tão brutal, pelo porquê histórico do
fato de ter ele tido necessidade de descobrir em pleno séc. XX a inexistência do
Demônio (em outros termos, de aceder a uma consciência lógico-racional) quando,
no Ocidente, há pelo menos seis ou sete séculos tal questão não é mais problema
para as elites, possuidoras de uma consciência laica, lógico-racional. Neste
momento o épico deixaria de existir e Guimarães Rosa não seria um romancista,
um artista, e sim um ensaísta. Riobaldo não existiria e muito menos seu agir épico.

Mas é evidente que o épico existe em Grande sertão: veredas. Existe porque o
nível consciencial do presente se estrutura sobre postulados agnóstico-existenciais,
imanentes, que constituem a ponte entre os dois níveis, permitindo a valoração do
passado como experiência existencial, vital, imanente, positiva e, em
conseqüência, épica. Aqui se situa a originalidade absoluta de Grande sertão:
veredas. Riobaldo, ao superar o nível de consciência mítico-sacral, não passa ao
nível cético-racionalista próprio dos centros urbanizados do Ocidente desde a
segunda metade do séc. XIX (ver a introdução) – do que resultou a crise e,
finalmente, o desaparecimento do romance real-naturalista – mas permanece em
defasagem. Sua consciência atinge o nível lógico-racional no pleno sentido da
palavra mas não chega a sentir a crise de fundamento do pensamento ocidental
(europeu), a crise que destruiu o épico romanesco.

Contudo, mesmo a presença das reflexões de Riobaldo, apesar de serem elas


inerentes a postulados responsáveis pela construção da ponte entre passado e
presente (estes postulados resultam da visão de mundo agnóstico-existencial,
imanente, não transcendente), poderia tornar impossível o surgimento do épico.
Poderia mas, em virtude da defasagem de Riobaldo em relação a seus pares
(elites) do Ocidente urbanizado, isto não ocorre. As reflexões de Riobaldo
impedem, é verdade, no momento em que sobem à tona (plano temporal do
presente), a narração épica, mas jamais destroem sua possibilidade. A
conseqüência disto é o aflorar do épico sempre que a reflexão desaparece. O épico
em Grande sertão: veredas deve ser procurado e só existe nos momentos em que
o narrador, Riobaldo, esquece o presente, esquece seu próprio nível consciencial
lógico-racional, esquece o doutor – e o que este representa: a consciência cético-
racionalista – e mergulha no passado. Talvez se possa dizer : nos momentos em
que o leitor esquece que a narração se dá na fazenda do protagonista,
possivelmente sob uma varanda, com Riobaldo sentado diante de seu interlocutor
e queixando-se ocasionalmente de dores reumáticas. No momento em que o
próprio protagonista e o leitor esquecem tudo isto, Riobaldo torna-se um aedo: o
cantor de feitos heróicos existentes em definitivo num tempo mítico (do passado
que jamais retornará). As reflexões que entremeiam tais feitos não chegam a
problematizá-los ou a destruir seu caráter épico. Pelo contrário, tais re-flexões,
baseadas na aceitação do mundo como experiência e como realidade imanente,
permitem – em virtude da defasagem de que se falou acima – valorizar o passado
sem cair no ensaio de antropologia (a evolução do pensamento racional) ou de
história (realidades do Terceiro Mundo, etc.).

À semelhança do epos clássico, os eventos narrados por Riobaldo são passado


definitivo. No tempo da narração não é mais possível a repetição de uma trajetória
semelhante. O tempo passado, o tempo dos eventos, está perdido
irremediavelmente para Riobaldo e para a comunidade que ele representa. Eis o
que diferencia Grande sertão: veredas do romance real-naturalista. Neste a
experiência passada é sempre recuperável, pelo menos teoricamente, desde que
surja um outro portador do destino do herói (Moll Flanders, Rastignac, Julien Sorel,
etc.). Na obra de Guimarães Rosa parece-me que não. Repetir a trajetória não é
mais possível porque houve um corte (é este corte, ocorrido em Veredas Mortas
/Altas, que torna o passado definitivo e permite, em conseqüência, o
distanciamento épico). O mundo no qual Riobaldo/jagunço viveu não existe mais,
desapareceu para sempre‘ no horizonte histórico. Ninguém mais poderá repetir sua
travessia. Da mesma forma que para o aedo ninguém mais podia repetir as
façanhas dos heróis argivos da idade minóico-micênica.

Claro, Riobaldo é uma solução de compromisso. Em sua Ítaca/fazenda ele


permanecerá eternamente íntegro, unitário, não problemático. Ali, ao lado de
Penélope/Otacília, permite-se até o participar de experiências religiosas ecléticas,
de características (externas) mítico-sacrais, que lhe proporcionam calma interior e
agem sobre ele provocando um processo de catarse, ajudando-o a manter-se em
equilíbrio, aquém do problemático. Naturalmente, Riobaldo não adere
interiormente a tais experiências. Ele apenas as usa como calmantes para
esquecer o desconcerto do mundo que sempre o perturba apesar da solução
agnóstico-existencial-imanente que soubera encontrar.

Ao contrário do romance real-naturalista e à semelhança do epos clássico, a obra


de Guimarães Rosa não se projeta. Porque Riobaldo não pode dar um passo além
dos limites de sua ilha/fazenda – tomada em sentido simbólico, mas sem eliminar
totalmente o sentido literal, geográfico – pois se o fizesse se tornaria problemático
ao ter que admitir, ao nível de uma consciência cético-racionalista, que hoje
ninguém mais está em condições de viver um mundo unitário, seja ele qual for.
Abandonando sua Itaca, Riobaldo não conseguiria manter sua defasagem em
relação ao mundo urbano ocidentalizado, ou seja, não consegui-ria manter sua
visão de mundo tranqüila, baseada em fundamentos agnóstico-existencial-
imanentes. O ser do herói moderno – e do homem ocidental moderno – é um ser
estilhaçadamente. O de Riobaldo ainda não. E jamais o será, pois seu mundo
épico, como personagem romanesco, é o mundo imutável, perdido e imutável,
para sempre.

Somente no sertão de um país do Terceiro Mundo – ainda não plenamente


integrado na crise de fundamento da consciência ocidental e palco hoje (o Terceiro
Mundo) de um processo de transição em que se inicia o abandono das visões de
mundo mítico-sacrais ainda existentes e começa, portanto, o caminho que
desembocará fatalmente no estágio de uma consciência racionalista e cética –
apenas ali seria possível localizar e recriar um mundo épico. Esta é a genialidade
de Guimarães Rosa. Sua intuição permitiu-lhe identificar, longe dos grandes
centros urbanos ocidentalizados, a matéria ainda bruta, própria para a criação do
épico. Conseguiu o que antes parecia inacreditável que viesse a ocorrer em pleno
séc. XX: construir um herói equilibrado e unitário, um herói que mergulhara na
ação e se justifica ao aceitar a condição humana – sem problematizá-la – num
contexto de pura horizontalidade.

Grande sertão: veredas representa um fato completamente novo na literatura


ocidental, não sendo possível, em absoluto, ligá-lo à problemática do moderno
romance europeu, muito menos daquele que co-meça com Dostoiewski e Zola.
Está próximo, antes, do grande romance real-naturalista dos sécs. XVIII e XIX e,
mais ainda, do epos clássico. Mas apenas próximo. Seguindo a trilha aberta por
Lukács em Teoria do romance, considero Grande sertão: veredas como o principal
representante de uma terceira forma, uma terceira manifestação do épico no

Ocidente, nascida no seio de um contexto sócio-histórico radicalmente novo, ou


seja, o fenômeno de vastíssimas áreas geográficas e humanas do Terceiro Mundo
que, depois de séculos de estagnação, depois de séculos de serem apenas objetos
da História e áreas de rapina econômica e cultural dos grandes impérios europeus
e norte-americano, começa agora a movimentar-se e a destruir seu ilhamento. A
movimentação política, econômica, filosófica e religiosa destas áreas e destas
culturas até agora exploradas da maneira mais brutal desencadeou, ao que
parece, uma força vetorial que marcará – e já está marcando, o Vietname, a Líbia
e a América Latina que o digam – de forma indelével a história do Ocidente – e do
mundo. Para mim – passe a frase de efeito – Grande sertão: veredas é o Terceiro
Mundo em marcha.

NOTAS

1 Na palavra ação está implícita a experiência inversa que sofre o personagem


épico em virtude de seu agir. Esta reciprocidade existe e é fundamental no
romance (real-naturalista).
Ao contrário do de Moll Flanders, Raskolnikov, Hans Castorp, etc., que são
modernos, isto é, neste contexto, racionalistas e até céticos.

5. Para além-fronteiras

Se a literatura e a crítica literária não são – nem poderiam ser – história, sociologia
ou política, isto não quer dizer que seja permitido ou possível esquecer que ambas
são integrantes do processo histórico do qual surgem e, como tal, dele
inseparáveis. Hoje o sabemos muito bem. No campo da crítica literária, o
esteticismo castrante – tão estrábico quanto o dogmatismo ideológico – continuará
fazendo suas reaparições periódicas, seja pela ignorância ou pela falta de
perspectiva histórica de seus promotores e defensores, seja sob a pressão de
fatores transitórios gerados pelo próprio processo histórico que, na defesa dos
interesses dos grupos dominantes, frequentemente esmaga qualquer tentativa ou
ameaça de tentativa de uma auto-análise e, quanto mais, de uma autocrítica.
Daqueles e deste, non ragionam di lar.

Se o que foi dito é incontestável, menos certo e muito mais difícil é o querer situar
ou desvelar historicamente uma obra ou um conjunto de obras de arte quando
julgamos ainda não dispor de um suficiente distanciamento no tempo para evitar
extrapolações ou julgamentos apressados. No presente tudo faz crer que ainda
não tenhamos todo o distancia-mento histórico necessário para uma apreciação
segura de Grande sertão: veredas e – por extensão – de toda a obra rosiana e de
toda a de seus pares latino-americanos, responsáveis, todos eles, pelo mais
importante surto da narrativa do Ocidente depois daquele que foi o da decadência
do real-naturalismo europeu. Portanto, tudo o que foi insinuado anteriormente ou
será dito a seguir deve ser aceito sob a perspectiva do provisório, perspectiva que,
como julgo, não deve impedir que o digamos.

Tudo leva a crer que a espinha dorsal do processo histórico que atravessa o séc.
XX se estruture em torno de um movimento ascendente/descendente entre dois
pontos. Na parte superior está a decadência da idade européia, com o
desaparecimento da cena histórica dos grandes impérios coloniais da Inglaterra,
França e Alemanha (além de seus imitadores de segunda categoria: Itália, Bélgica,
etc.) e sua substituição – entre 1914 e 1945 – por duas novas potências, Estados
Unidos e União Soviética, as quais, ainda hoje, dispõem de força suficiente' para
dominar a cena do jogo de poder no mundo por mais algumas décadas, não
obstante a desvantagem inerente à posição que ocupam em face da anulação
recíproca de sua potência nuclear, tão aterradora que se torna praticamente inútil.
Na parte inferior deste movimento ascendente/ descendente‘ se encontra o
Terceiro Mundo. Ou, mais especificamente, os grupos nacionais, étnicos e culturais
que até o momento tinham sido marginalizados e, na condição de explorados,
permaneciam como simples objeto da história do planeta dos últimos séculos. Tais
grupos, ameaçados de desaparecimento diante do avanço implacável do novo
colonialismo global representado pelo avanço da civilização racionalista e
tecnicizada ad nauseam da era da computação e pressionados pelo instinto de
sobrevivência, são levados a reagir. Dado que uma reação negativa – quer dizer,
de recusa total, de não aceitação – representaria, no contexto de uma economia
mundial de mercado, regida pela lei do mais forte, e no jogo dos interesses
nacionalistas imperialistas ou subimperialistas, o suicídio livremente escolhido,
estes grupos são obrigados, na medida de suas possibilidades, a optar pela única
saída existente. um movimento dialético de recusa de seu estágio anterior e de
aceitação mais ou menos rápida do processo. A situação é dramática particular-
mente quando a defasagem não é apenas sócio-econômica – o que é até certo
ponto secundário – mas antes de tudo cultural. Existem grupos que, em face das
condições extremamente desfavoráveis em que se encontram,‘ seja por sua
reduzida importância numérica, seja por se encontrarem em tal grau de
defasagem cultural que se lhes torne impossível o participar do movimento
dialético de recusa/aceitação, não dispõem das condições de reagir e que, por isto
mesmo, estão condenados a desaparecer definitivamente e para sempre da face
do planeta e da face da História dentro de algumas décadas. Os demais, porém –
e o Vietname é um exemplo –, os que dispuserem de condições para participar da
História como sujeitos, destruirão – e já começam a destruir – os esquemas de
poder até agora vigentes no planeta e, por suas contribuições artísticas e culturais
de características completamente novas, inaugurarão a idade pós-européia e
planetária.

Este processo está em marcha. Tanto é que enquanto a intelligen-tsia européia


discute ainda Heidegger e Sartre ou se debate entre Joyce e Beckett, pelo Terceiro
Mundo sopra um vento épico que permite a epopéia vietnamita, a destruição de
todos os esquemas da secular diplomacia européia por parte de Kadhafi' e, o que
mais interessa aqui, permite ou possibilita a construção de obras épicas ao estilo
de Grande sertão: veredas, O coronel e o lobisomem, Sargento Getúlio, A pedra do
reino, Cem anos de solidão, Os Guaianãs e outras.

Mas este processo de ascensão do Terceiro Mundo é, evidente-mente,


contraditório e doloroso. Porque ao mesmo tempo em que tais grupos nacionais,
étnicos ou culturais se movimentam para cima em busca de sua sobrevivência e da
manutenção de seus valores próprios, eles são obrigados a modernizar-se, a
aceitar, se não totalmente, pelo menos em parte a civilização racionalista,
tecnicizada e pragmática do Ocidente. Ora, esta aceitação da modernização
provoca necessariamente a destruição de seus valores mais profundos, de seu
próprio mundo até hoje guardado no mais recôndito de seu ser. Porque não se
pode esquecer que a epopéia vietnamita não teria sido possível sem os modernos
fuzis tchecos e chineses e os sofisticados foguetes SAM da União Soviética, o que
quer dizer, não teria sido possível sem a aceitação da técnica altamente
aperfeiçoada e do racionalismo científico, os quais, natural-mente, nada têm – ou,
melhor, nada tinham – a ver com a cultura dos camponeses anamitas. Talvez não
seja mero acaso que as grandes obras do realismo mágico ou, na expressão
utilizada na introdução deste ensaio, as grandes obras da nova narrativa épica
latino-americana se encerrem com cataclismas em que – com exceção da solução
de compromisso em Grande sertão: veredas – os personagens são destruídos,
varridos da face da terra juntamente com o mundo que os cerca. Se isto for um
simples acaso sem importância ou não, apenas o futuro poderá dizê-la. Na
perspectiva histórica que hoje possuem as elites progressistas do Terceiro Mundo,
porém, parece que não se trata de simples acaso. Tudo in-dica que tais
personagens e tais mundos “não terão outra oportunidade sobre a Terra.”' Mas
antes de desaparecerem ou, melhor, ao desaparecerem marcarão de forma
profunda e indelével a consciência ocidental e a história do planeta. A partir de
agora esta será também a sua história, o que determina, assim, dialeticamente, o
fim definitivo do Ocidente pós-renascentista e das estruturas sócio-econômicas
dele específicas: a expansão capitalista, o colonialismo de rapina e o
neocolonialismo tecnológico e militar.

NOTAS

1 A derrota do neocolonialismo imperialista norte-americano, que pretendia


destruir pela base as estruturas sócio-históricas anamitas através do napalm e das

ambas, demonstra que o poderio dos impérios pós-europeus começa a tornar-se

relativo.

2 Cf. G. Barraclough em Introdução à história contemporânea e Europa, uma re-


visão histórica (Zahar, 1966 c 1964, respectivamente) e G. Bruum em Nineteenth-
century european civilization, London, 1959.

3 E o caso dos grupos indígenas no Brasil e em outros países americanos. O que


restou da “colonização” sangrenta começa agora a ser destruído totalmente. E não
é necessário lembrar o “exemplo” do general Custer e tantos outros! Por outra
parte, não se pode esquecer o grande exemplo – este sim exemplo, sem o trágico
sentido dado pelas aspas – do Marechal Rondon e dos irmãos Vitelas-Boas no
Brasil.

Kadhafi, o jovem coronel e presidente da Líbia (31 anos), é sem dúvida hoje um
dos líderes mais típicos do Terceiro Mundo, exatamente por seu caráter
carismático e contraditório. Ao mesmo tempo em que põe abaixo a tradição
diplomática ocidental ao confessar publicamente seu apoio econômico e político às
guerrilhas na Irlanda, aos golpes de Estado (frustrados) no Marrocos e na Jordânia
e ao fazer discursos que devem eriçar os cabelos dos tortuosos diplomatas
europeus, Kadhafi moderniza e inova de forma violenta no setor econômico – a
exploração do petróleo – e sócio-jurídico, introduzindo as leis ocidentais na
legislação matrimonial e destruindo, em conseqüência, séculos da tradição árabe-
muçulmana. Pode tal comportamento não ser qualificado de contraditório? E, por
outra parte, não é tal comportamento inevitável? Há outra saída? Frase final de
Cem anos de solidão, de García Márquez.

6. Uma observação final exigida por lamentável equivoco"

Alguns críticos, levados não se sabe por que razões, pretenderam descobrir uma
problemática homossexual em Grande sertão: veredas. A afirmação é, no mínimo,
ridícula. Contudo, serve como exemplo típico da leviandade e da facilidade festiva
que campeia pela crítica brasileira ou no meio daqueles que dela pensam fazer
parte. Apenas alguém que não leu ou, então, que tresleu a obra de João
Guimarães Rosa pode falar da existência de uma problemática homossexual em
Riobaldo. Existe , isto sim, um pseudoproblema, originado do fato de uma mulher,
travestida de cangaceiro, ter despertado a cobiça sexual em um companheiro de
luta. Até quem lê pela primeira vez a obra desconfia da identidade de Diadorim.
Mas isto nem vem ao caso. Aceitemos que o leitor descubra apenas na parte final
do relato de Riobaldo – a batalha – quem era na realidade Diadorim. E daí? Existe
uma problemática homossexual latente em Riobaldo? Ridículo! Até pelo contrário,
pois com muito mais razão se pode afirmar que o problema de Riobaldo 6 o de
uma sensibilidade masculina exacerbada a tal ponto que já no primeiro encontro
com Diadorim/menino (p. 80) e, posteriormente, ao conviver com
Diadorim/cangaceiro intui, ao contrário dos demais, que Diadorim não é homem.
Não interessa – pois é este o pseudoproblema! – que seu consciente não capte as
razões de sua inclinação por Diadorim e, enganado pelas aparências, se rebele
contra tal tendência, pois assim reage em virtude da repulsa que possui pelo
comércio carnal homossexual. Seu faro de macho e sua sensibilidade mais
profunda estavam corretos., como fica provado ao final.

Problemática homossexual? De forma alguma! Tanto é que os que a descobriram


em Grande sertão: veredas devem ser considerados os responsáveis pelo maior e
mais irritante equívoco da crítica brasileira – e há tantos! – da década de 60/70. O
que, convenhamos, não é pouco.

*Pretendia eliminar esta “observação final” nesta 2' edição. Mas, ainda recente-
mente, alguns voltaram à carga, insistindo na questão. Diante disto, só resta uma
explicação: não é em Riobaldo que existe um problema homossexual e sim nos
críticos que tal pretendem ver em Grande sertão: veredas. Gostos e tendências
pessoais não se discutem, mas a insistência em tal assunto, além de ridícula, é
uma espantosa traição ao texto.

In Nova Narrativa Épica no Brasil , José Hildebrando Dacanal, Mercado


Aberto, 1988

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