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O Jacques Lacan de Élisabeth Roudinesco: uma vida como um romance

Nathalie Jaudel*

Apresentado em 1993 como um “romance verdadeiro” [roman vrai], o Jacques


Lacan de Élisabeth Roudinesco suscita uma reflexão sobre os respectivos status da
biografia e da ficção hoje. Sob a pressão dos pós-modernos, que se dedicam a apagar a
fronteira entre a narrativa histórica e a narrativa de ficção [1], os historiadores
contemporâneos se aplicam a tornar suas operações visíveis, a justificar e a defender
seus métodos a fim de sustentar o status de verdade ao qual seus trabalhos permitem
chegar. De qual verdade se trata?

Enquanto ela afirma trabalhar a partir do lugar de historiadora, Elisabeth


Roudinesco escreve no prefácio: “A história de Jacques Lacan é a história de uma
paixão francesa, balzaquiana. É a história da juventude de Louis Lambert, da
maturidade de Horace Bianchon, da velhice de Balthazar Claës”[2]. Uma vida que se
esgota então em três tipos que se sucedem cronologicamente: o herói do conhecimento,
jovem filósofo prodígio, apaixonado pela verdade e incompreendido pelos seus; o
médico reconhecido, um erudito glorioso e incontornável de sua época; o velho homem
possuído, demoníaco, Prometeu cuja busca pelo absoluto sem perdas leva a ele e a sua
família ao desastre. Com ainda mais precisão, quase dez anos mais tarde, no segundo
volume de História da Psicanálise na França, ela conta com honestidade, no começo
da parte intitulada “Jacques Lacan, romance da juventude”, o dilema com o qual
confronta-se o biógrafo, entre “recobrir com um manto principesco o esqueleto do
diplódoco e preencher com palavras os espaços vazios do animal” e “fixar sua escolha
na técnica fotográfica: investigação policial, informação direta, estilo telegráfico”. Eis
como ela resolve o caso: “[o autor] teria que interrogar os arquivos, os testemunhos, as
lembranças, a memória coletiva, e depois compor com o conjunto uma espécie de
romance a meio caminho da restituição integral dos fatos e da necessária invenção da
história: entre a exatidão furtada ao documento e a transformação de um diplódoco em
animal de feira, existe uma maneira de imaginar a verdade sem ceder à falsa
transparência do enunciado dos arquivos”[3].
Curiosamente, essas linhas desapareceram na edição de bolso.[4]
“Imaginar a verdade”: não saberíamos melhor dizer a falha, inscrita no coração
de sua narrativa, entre o propósito historiador e a tentação romanesca, entre o lugar do
historikos e o do poiètes, entre atração do particular – que se aplica a alguns – e
aspiração ao geral – que diz respeito à maioria. Investigar, logo de entrada, essa
diferença, tem o mérito de redobrar e de tornar ainda mais sensível a dilaceração que
afeta o termo história e que exacerba a ambiguidade, própria à língua francesa, que
designa num mesmo termo os fatos que realmente aconteceram, a disciplina que se
dedica ao seu estudo, e toda mise en intrigue [ver nota de tradução], qualquer que seja
seu teor de ficção. O método que Élisabeth Roudinesco reinvindica para “vestir o
diplódoco” está conforme àquele que, desde a Poética de Aristóteles, constitui no
Ocidente a norma, quer ela seja declarada ou não, e que preside a todo enredamento
[mise em intrigue]. No coração desse método jaz uma função: a verossimilhança – a
qual invocou Jacques Le Goff no prefácio de São Luís quando disse ter-se fixado na
ambição de “chegar a um São Luís mais verossímil e acessível ao leitor”, aquela
também que desencadeou as críticas contra Corneillle e Madame de Lafayette por terem
quebrado as regras em Le Cid ou em A princesa de Clèves. Como admitir que uma
jovem moça se case com o assassino de seu pai, exclama Madeleine de Scudéry? Como
acreditar que o Duque de Nemours pôde passar a noite na floresta sem se constipar,
acrescenta Valincour? A guilhotina cai: inverossímil[5].
Sem dúvidas, o Lacan que Élisabeth Roudinesco nos traz realiza o programa
aristotélico. Ele é verossímil – no mais alto nível. Mas o que essa verossimilhança, da
qual fazemos tanto caso, recupera?
Lá onde o cronista (o historiador), preso à contingência do que aconteceu, e cuja
memória ele registra, sujeito à uma exigência de verdade empírica ou factual, limita-se a
imitar o dado e fica circunscrito ao particular – o que fez Alcebíades ou o que lhe
aconteceu- graças à verossimilhança, o poeta, o mimêtês, alcança um objetivo ainda
maior, mesmo que não o alcance com a dignidade suprema reservada apenas à ciência,
aquela de abordar o universal: permitir o reconhecimento, suscitar adesão – e, por
conseguinte, se elevar ao geral, ainda que tratasse de fatos consumados.
Como o mimêtês alcança seu objetivo? Pelo ordenamento dos acontecimentos e
pelo estabelecimento da relação de causalidade entre eles. A mimésis não se limita a
registrar a sucessão dos eventos em sua própria contingência, ao contrário da crônica
histórica; ela organiza e ordena em narrativa, a sucessão temporal desconexa e a
causalidade, o encadeamento acidental e a consequência – pois é bem diferente dizer
“isso acontece por causa daquilo” e “isso acontece depois daquilo”[6].
Poeta é aquele que compõe (poiètès) histórias cujo desenvolvimento apresenta a
aparência de verossimilhança ou de necessidade. Ou, essa construção, que constitui a
essência do trabalho do poeta, terá profundas ligações com a falsificação. O verbo
poiein significa “compor uma obra”, mas é frequentemente carregado de uma conotação
pejorativa: “forjar, fabricar totalmente” [7] – permanecendo o traço em nossa língua
onde ‘contar história’ é também mentir. Pouco importa se a construção tem o poder de
suscitar “tristeza e pena”. No coração da verossimilhança jaz uma função de adesão. Ela
é o que, tendo um ar de verdade, provoca o consentimento, a crença da maioria, antes de
tudo, ela deve ser persuasiva. E é preciso preferir a verossimilhança à verdade que
Aristóteles chega a escrever: “é preciso preferir o impossível verossímil ao possível não
persuasivo”[8]. Depurando a diversidade do real e do verdadeiro, a verossimilhança
eleva a obra à categoria de generalidade – de modelo universal: a ação se torna exemplo
(paradeigma), o caráter adquire a perfeição do tipo [9].
Não poderíamos defender que quanto mais o biógrafo (ou o historiador) faz
apelo às regras aristotélicas que regem a verossimilhança, tanto na construção de seu
enredo quanto na submissão à opinião comum, mais ele realiza uma obra de poesia – de
ficção, portanto?
Fazer-se forte, no que Élisabeth Roudinesco não hesita em chamar de uma
“saga”, em pintar uma existência humana, um caráter, em orgulhar-se de conjugar a
exatidão exigida do historiador e os poderes ficcionais do romancista, é garantir o prazer
e a satisfação do leitor. Isso é ainda mais verdadeiro quando se soma um certo talento
pela narrativa épica, com belas firulas, mesmo que elas não sejam sempre
compreensíveis – como se o autor sacrificasse às vezes a clareza de suas palavras pelo
gosto da bela fórmula – a uma incontestável ousadia. Longe dela a ideia de se
interrogar, de duvidar. Ela não emite hipóteses, ela afirma, ela decreta. Pois o que dá
sem dúvida ao leitor a maior satisfação, ainda que a mais perigosa, é a inclusão de um
sentido, de uma orientação a essa história de vida – a mise-em-scène de um muthos, de
um destino que se conforma quase em todos os pontos à opinião comum, mas que
pressupõe acrescentar sobre o artifício do enredamento [mise en intrigue], da teologia.
Permitiria ela, no entanto, alcançar naquele que ela chama às vezes de “nosso
herói”, incomparável, a diferença absoluta, que se aplica apenas a ele mesmo e o
distingue do todos os outros, que escapa a todo reconhecimento, e o faz único do seu
gênero, sem igual – a sua singularidade? De modo nenhum. Enredada no geral,
prisioneira de seu projeto de fazer de Lacan o protótipo do gênio irreconhecido, ávido
de poder, apaixonado pelo reconhecimento, que faria qualquer coisa para obtê-lo, e que
sofre por não conseguí-lo, o sucesso de Élisabeth Roudinesco é também seu fracasso:
ela falha no mesmo ponto onde tem sucesso. Pois tal projeto obriga a uma dupla
forçagem: face à fragmentação, restabelecer a continuidade da narração; face aos
fragmentos do real, ao inesperado e ao singular, construir um telos conforme a doxa.

* Nathalie Jaudel é psicanalista, membro da ECF. Ela é autora de A lenda de Jacques


Lacan. Élisabeth Roudinesco e seu método histórico (publicado no Brasil pela editora
Contra Capa, 2016)
N.T A expressão “mise en intrigue”, que aparece ao longo de todo o texto, corresponde
à ideia da articulação de uma série fatos ou eventos a um enredo ou trama, poderia ser
traduzido por enredamento. A palavra intrigue em francês tem tanto o sentido de intriga
e de enredo, assim como a palavra plot em inglês.
[1] Cf. exemplo White H., “The Historical Text as Literary Artifact”, Clio, no 3, 1974.
[2] Roudinesco, E. Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento,
Cia. das Letras, 2016, segundo parágrafo do prefácio
[3] Roudinesco, E. História da Psicanálise na França, vol 2, Zahar, 1988, p. 118
[4] A integralidade do parágrafo correspondente foi suprimida na versão francesa de
bolso
[5] Genette G. “Vraisemblance et motivation” [1968], Figures II, Paris, Seuil, Points
essais, 1969, p. 71-99. Ver também o número 2 da revista Temps Zéro, “Vraisemblance
et fictions contemporaines. Une nouvelle adhésion pour les héritiers du soupçon”, 2009
e Nathalie Kremer, “Vraisemblance et reconnaissance de la fiction. Pour une
redéfinition
de la vraisemblance dans le cadre d’une poétique romanesque”, Fictions classiques
disponível na internet
[6] Aristóteles, Poétique, edição realizada por Roselyne Dupont-Roc & Jean Lallot,
Paris, Seuil, 1980, chap. 10, 52a20, p. 69.
[7] Ibid., in « Notes », p. 225.
[8] Ibid., chap. 25, 61b13, p. 133.
[9] Ibid., in « Notes », p. 222.
[10] JL, p. 1537.

Tradução: Arryson Zenith Jr.

Texto original em francês: https://www.cairn.info/revue-la-cause-du-desir-2014-2-page-


38.htm
Revista La Cause du Désir, 2014, p, 38-41

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