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Eduardo de Faria Carniel

Universidade de São Paulo

Pesadelo como herança


Terror e choque de temporalidades em The Witch

História e Literatura: Diálogos e Contaminações


Prof. Júlio Pimentel Pinto

São Paulo
2021
Na Poética, Aristóteles apresenta uma definição sobre a diferença entre ficção
e História que orientou a reflexão sobre essas duas categorias de maneira
hegemônica no pensamento ocidental, pelo menos por um largo período de tempo. O
filósofo coloca que

Fica também patente, pelo que foi dito, que a função do poeta
não é dizer o que efetivamente aconteceu, mas o tipo de coisa possível
de acontecer, mais precisamente o que é possível segundo o
verossímil ou o necessário (...) é nisto que consiste a diferença, em
dizer um o que efetivamente aconteceu, outro, o tipo de coisa possível
de acontecer.1

À primeira leitura, essa definição trabalha para situar dois “campos” do


engajamento intelectual: o da realidade ou da “verdade”, objeto de trabalho do
historiador, que é acessível por meio de cuidadosa investigação de registros e
documentos; e o da fantasia, da qual se ocupa o ficcionista, que não teria, a priori,
compromisso com essa verdade, mas apenas com a verossimilhança - ou seja, com a
lógica interna da sua própria imaginação. Grosso modo, essa definição se tornou
senso comum em relação a esses diferentes ofícios, e a ficção, por mais que possa ser
vista como necessária, no geral é reivindicada como o espaço onde não se é possível
ter acesso à “verdade” histórica, que seria encontrada nos “documentos”, categoria de
outro tipo.
A essa definição foi aplicada todo tipo de escrutínio: no que consiste essa
suposta “verdade” histórica, o que distingue um “documento” que tem caráter
historiográfico de um texto literário ou ficcional, entre outros em uma série de
debates. Mas nos apegando à formulação aristotélica, a questão da verossimilhança
nos coloca elementos interessantes de desenvolvimento. A Poética, mais do que
apenas um tratado de análise, buscava prescrever à forma narrativa predominante do
seu período - o drama, e centralmente a tragédia - quais seriam as estruturas formais
que mais a aproximariam do que era considerado “verossímil”. Entre essas
estruturas estavam desde elementos narrativos - a unidade de tempo e espaço, e a
proibição de deslocamentos espaciotemporais, por exemplo - até o conteúdo do que
era mostrado em cena. Não seria verossímil, por exemplo, que um personagem que
recebesse determinada sentença do destino, como Édipo recebe sua sina, conseguisse

1 ARISTÓTELES. Poética. Tradução comentada apresentada como dissertação de mestrado de


Alessandro Barriviera, IEL-UNICAMP, 2006, p. 43
por ação própria reverter a fatalidade a que está submetido. A lei divina deveria
prevalecer sobre a hybris, ou a ilusão dos homens em cena de que teriam mais
agência sobre seu futuro do que a eles já foi oferecido quando o fio da sua vida foi
tecido.
Em contraste, podemos examinar os preceitos formais de outra forma
narrativa que predominou por um período de tempo, o romance. Também concebido
teoricamente como romance realista, a caracterização de “realista” vem a partir de
um deslocamento de foco em relação a formas épicas que o precederam,
caracterizado por Ian Watt em seus estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.
Estes, considerados os inauguradores da forma moderna do romance, buscaram uma
apreensão da realidade pela ficção baseada fundamentalmente na percepção
individual de seus personagens (que muitas vezes inclusive nomeavam suas obras).
Tomando por exemplo o componente do tempo, Watt apresenta sobre o drama da
Antiguidade:
A restrição da ação da tragédia a 24 horas, por exemplo, a
decantada unidade de tempo, na verdade equivale a uma negação da
importância da dimensão temporal na vida humana; pois, de acordo
com a concepção da realidade pelo mundo clássico - subsistindo em
universais atemporais -, implica que a verdade da existência pode se
revelar inteiramente no espaço de um dia como no espaço de uma
vida toda.2

Já para a forma do romance realista, o tempo se organiza em relação à


personagem, que é apresentada frequentemente durante um período longo da sua
vida, com deslocamentos temporais que refletem o desenvolvimento da sua
subjetividade. Robinson Crusoe, Moll Flanders e Pamela não são vistas como peças
de um sistema preordenado, mas o desenvolvimento de suas ações e escolhas se
torna ele próprio a finalidade da narrativa, delineando um perfil de indivíduo que até
então não tinha ocupado tanta centralidade como motor e agente das narrativas
ficcionais:

Em seus melhores momentos ele [Defoe] nos convence


inteiramente de que sua narrativa se desenrola em determinado lugar
e em determinado tempo, e ao lembrarmo-nos de seus romances
pensamos basicamente naqueles momentos intensos da vida das
personagens, encadeados de maneira a propor uma perspectiva

2 WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 23 (original:
1957; tradução: Hildegard Feist).
biográfica convincente. Percebemos um sentido de identidade
pessoal que subsiste através da duração e no entanto se altera em
função da experiência.3

Essas diferenças formais não são apresentadas arbitrariamente. Na verdade, a


imposição da unidade do tempo para o drama antigo é justificada pela mesma
preocupação na qual se fundamenta a predominância da percepção subjetiva de
tempo para os modernos. Aos primeiros com o nome de “verossimilhança”, aos
seguintes chamada de “realismo”, a atenção nos dois casos é para que a ficção seja
uma representação que capture a realidade. Realidade essa impossível de ser
capturada na sua totalidade, e que exatamente por conta disso, necessita de
determinados compromissos e seleções por parte do ficcionista, que escolhe a
ferramenta que mais o “aproxima” da “essência” dessa realidade. Naturalmente,
essas escolhas são influenciadas por um conjunto de suposições teóricas ao qual o
romancista está exposto pelas visões de mundo concorrentes no seu tempo histórico.
Essas pressuposições sobre o que é mais “próximo” da realidade permeiam
não apenas os elementos estruturantes, ou a maneira como a história é contada, mas
também os elementos do seu desenvolvimento interno. Vimos como a escolha pela
verossimilhança pressupunha para a tragédia um enredo no qual o personagem
encontra o seu destino. Para o romance, com o seu foco na experiência individual, o
interesse muda para abordar as consequências das escolhas pessoais de cada
personagem, tornando-se elas próprias os encadeadores do enredo, e não as
demonstrações de uma determinação prévia. O problema, contudo, surgia quando
era tarefa do romancista elaborar qual seria a consequência mais apropriada para
resultar de uma determinada ação para os personagens - para si, e para o seu público
leitor. Pois não bastava apenas que as repercussões das escolhas de Pamela ou
Robinson Crusoe fizessem sentido de um ponto de vista objetivo. Era importante que
a comunidade leitora do romance reconhecesse no enredo um encadeamento que
fizesse sentido para a sua visão de mundo. Na sua tese de doutorado sobre a história
do romance, Julián Fuks nos conta sobre o desafio de Defoe para cumprir com essa
necessidade ao levar ao mundo a história de Moll Flanders, uma ladra e vigarista, e
ironiza sobre o que a saída que o romancista assume traz de implícito sobre a sua
posição na ordem moral do seu tempo e lugar:

3 WATT, p. 24, grifos meus


O mais recatado leitor, prometia Defoe, podia estar sossegado
quanto à moralidade do livro; ele mesmo se certificara de que todo
destino tivesse justiça, de que toda mensagem encontrasse proveito:
"não há, em nenhuma parte dele, uma ação perversa que não dê
origem a consequências infelizes; não se põe em cena um grande
vilão que não acabe mal ou se arrependa; não se menciona ato
criminoso qualquer que não seja condenado na própria narrativa,
nem ação virtuosa e justa qualquer que não receba louvor." Se isso
era uma narrativa realista, a única conclusão possível era de que, na
Inglaterra do início do século dezoito, na Inglaterra de Defoe e das
leitoras ávidas à luz de velas, a justiça dos deuses e dos homens
funcionava incrivelmente bem.4

Ou seja, a escolha de trazer para a ficção o que é “verossímil” ou “real”


necessariamente traz consigo pressupostos sobre o que é “correto” de um ponto de
vista moral. Retornando à nossa divisão do senso comum sobre o historiador como
conhecedor da verdade, e o ficcionista como artesão da imaginação, a busca pela
apreensão das pressões e dos limites envolvidos nessas elaborações imaginativas
podem abrir possibilidades de compreensão de desenvolvimentos históricos, que não
estão necessariamente acessíveis ao trabalho historiográfico tradicionalmente
concebido. Quando se pensa no que se convencionou chamar de “documentos
históricos” (anais, registros, discursos oficiais), estamos lidando com discursos em
um registro do manifesto, do que é dito. O trabalho da ficção e da crítica literária
necessariamente precisa se ver com o que não é dito, com o registro do latente, com o
que se está deixando de lado de uma realidade multiforme e contraditória, com os
pontos cegos de uma narrativa coerente, “verossímil” ou “realista”.
Essa atitude interpretativa ganha uma série de camadas de complexidade
quando refletimos que as mediações entre imaginação e história estão presentes não
apenas no momento da escrita, ou da produção literária, mas também,
marcadamente, no momento da leitura. Muitos são os exemplos de obras literárias
que emprestaram seu interesse a momentos diferentes da História, dialogando com
elementos de um momento da sua recepção que dão um giro em relação a momentos
anteriores - o caso paradigmático para os brasileiros é Dom Casmurro, que foi de
história de infidelidade a retrato mordaz da elite nacional em um intervalo de
noventa anos.

4 FUKS, Julián. História abstrata do romance. Tese de Doutoramento. Universidade de São Paulo,
Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, 2016, p. 32
Qualquer processo interpretativo se dá então em um choque entre a
temporalidade do texto e a temporalidade da(s) leitura(s), com todos os elementos
que lhe estabelecem pressões e limites em ambos os vértices desse cabo de guerra.
Como nos propõe Scholes:

A leitura tem duas faces e orienta-se para duas direcções


distintas, uma das quais visa a fonte e contexto original dos sinais
que se decifram, baseando-se a outra na situação textual da pessoa
que procede à leitura. Pelo facto de a leitura constituir sempre
matéria de, pelo menos, dois tempos, dois locais e duas consciências,
a interpretação mantém-se infinitamente fascinante, difícil e
essencial.5

Se o trabalho de leitura e interpretação de determinado texto pode nos trazer à


compreensão de determinadas estruturas de caráter histórico com as quais aquele
texto dialoga, estender esse trabalho ao próprio processo de leitura oferece uma visão
tridimensional do processo, pois salienta particularidades do olhar de outrem, ou do
nosso próprio, sobre a matéria trazida pelo texto - orientando nosso olhar menos ao
texto literário base como um receptáculo de verdades sobre o passado, mas como um
gatilho de choque entre a temporalidade que o permeou e a temporalidade da leitura.
Através desse choque, contrastes e semelhanças entre as diferentes temporalidades
podem surgir como resultantes a serem apreendidas. Nossa possibilidade de
reconhecimento do passado como algo que pode ser conceitualizado através das
ferramentas do presente depende da existência de algum fio de continuidade sobre as
duas temporalidades, como diz Collingwood quando formula que “o passado
simplesmente como passado é totalmente incognoscível" e "somente o passado
residualmente preservado no presente é cognoscível".
Sendo assim, que tipo de aproveitamento, de investigação histórica e estética,
pode resultar de uma obra que se propõe a representar esse mesmo processo de
choque de temporalidades? Que busca refletir sobre fios de continuidade entre o
presente e um determinado momento histórico, propondo simultaneamente uma
incorporação dos pontos cegos da representação ficcional da época como dados
formais da obra no presente?
O objeto de estudo deste pesquisador é um filme produzido no ano de 2015 de
nome The Witch (traduzido em português como A Bruxa), longa-metragem de

5 SCHOLES, Robert. Protocolos de leitura. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 23


estreia do cineasta estadunidense Robert Eggers. O filme se passa na Nova Inglaterra
dos anos 1630, e acompanha uma família que é expulsa, por conta de crenças
religiosas e sociais demasiadamente ortodoxas, da colônia recém-estabelecida, que
jura alinhamento à igreja anglicana em nome do Commonwealth. Liderados pelo pai
William, a família, composta ainda pela mãe, a filha mais velha, o filho púbere, duas
crianças gêmeas e um bebê, monta acampamento na beira de uma floresta e constrói
uma vida rústica, subsistindo do trabalho da terra e fortemente ligada aos preceitos
cristãos, de maneira radicalmente tradicional. Após o desaparecimento do bebê pelas
mãos de alguma criatura desconhecida, que se revela ser um covil de bruxas que
habita a floresta (imaginado ou não pela família), a família entra numa espiral de
tragédia e desconfiança, centrada principalmente na filha mais velha, Thomasin,
cada vez mais responsabilizada pelos eventos macabros que assombram a família e
acusada de bruxaria. Thomasin se apresenta para nós como o foco narrativo do filme,
não apenas sendo responsabilizada pelos familiares pelos eventos trágicos, mas
sendo ela mesma um fio de continuidade que atravessa todos eles, estando presente
desde o desaparecimento do bebê (que estava sob sua guarda) até o assassinato da
mãe, que é morta por Thomasin em legítima defesa. A garota sobrevive aos demais
membros da família e é tentada por Black Philip, uma encarnação do Diabo no bode
da família (que não se revela até o momento final) a “viver deliciosamente”.
Thomasin então se despe, assina o livro do demônio com seu nome e se junta ao sabá
das demais bruxas, flutuando no ar na última cena.
A obra é reconhecida por uma proposta formal marcante: a sua ambientação
histórica. Recriada com obcecada precisão, a plantação do século XVII tem cenários,
adereços e figurinos baseados em intensa pesquisa e reconstrução. A ambientação
não para no visual: para a trilha sonora, foram escolhidos instrumentos musicais
utilizados na época, e o roteiro é todo escrito através de um resgate linguístico do
inglês moderno, inclusive se utilizando de registros de diários e epístolas de colonos
reais do século XVII. Em entrevistas, Eggers relata que esse nível de acurácia
histórica não é um fim em si mesmo, e sim um meio para alcançar o que chama de
“pesadelo herdado”.6 A reconstrução serve para transmitir, mais do que um cenário,
uma visão de mundo, e ambiciona trazer o sentimento de medo e ansiedade vivido
pelos colonos para ser sentido como uma memória viva, não apenas observado. O

6 CRUMP, Andy. "An Inherited Nightmare". 21 de fevereiro de 2016. Disponível em


https://www.pastemagazine.com/movies/an-inherited-nightmare /
registro da vida no século XVII na Nova Inglaterra é representado aqui não para ser
apenas reconhecido intelectualmente, mas como ferramentas da transmissão de uma
experiência e de uma estrutura de sentimento particular.
Retomando o debate que fazíamos neste trabalho, não podemos, contudo,
conceber o filme de Eggers como uma janela ao passado, de onde extrairemos a fina
flor da verdade histórica sobre o processo de colonização norte-americano. Por mais
que a busca pela reconstrução histórica seja impecável, o filme é concebido e
mediado por uma temporalidade do presente que vai exercer pressões e estabelecer
limites sobre a seleção dos elementos da realidade que serão incorporados à matéria
do filme, bem como sobre a sua organização dentro dele. O significado da escolha
desse assunto em específico já aponta no sentido do estabelecimento de elos e
choques entre passado e presente, no âmbito individual e coletivo: ao mesmo tempo
que a Nova Inglaterra do século XVII é de importância pessoal ao próprio Eggers,
que nasceu e viveu na região, ela também é de importância histórica, por ter sido um
dos lugares onde se iniciou a instalação dos colonos ingleses na América e, portanto,
ser um dos berços dos EUA.
Uma das contradições que vai emergir a partir do choque de temporalidades
tem a ver exatamente com o limite da ambição quase arqueológica do filme, exposta
quando consideramos que o filme se utiliza das ferramentas do terror. O crítico
Ismail Xavier se utiliza da categoria de “efeito naturalista” para caracterizar a maior
parte dos critérios estéticos hegemônicos do cinema ocidental:

Em todos os níveis, a palavra de ordem é "parecer


verdadeiro"; montar um sistema de representação que procura
anular a sua presença como trabalho de representação (...) Quando
aponto a presença de critérios naturalistas, refiro-me, em particular,
à construção de espaço cujo esforço se dá na direção de uma
reprodução fiel das aparências imediatas do mundo físico (...) o
estabelecimento da ilusão de que a plateia está em contato direto com
o mundo representado, sem mediações, como se todos os aparatos de
linguagem utilizados constituíssem um discurso transparente (o
discurso como natureza).7

A ambientação história de The Witch funciona de maneira ambígua em


relação a esse sentido: se por um lado ela traz para o primeiro plano uma

7 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e


Terra, 2008, pp. 41-42
experiência, em tese, bastante próxima às “aparências imediatas do mundo físico”
daquele tempo e espaço, também a distância estabelecida entre o horizonte de
expectativas do público e o que é mostrado (o choque de temporalidades) acaba por
criar um efeito de estranhamento, que evidencia o seu caráter representacional. Os
elementos aterrorizantes e sobrenaturais surgem como mais uma camada nessa
mediação, distanciando ainda mais o público da possibilidade de registrar o que
estão vendo como uma narrativa “real”. Resta a possibilidade, então, de que a
presença dos elementos de composição do filme, tanto os históricos quanto os
sobrenaturais, não surgem aqui como uma representação literal do passado - mas
que sejam, por conta da tensão criada entre o documental e o impossível, um meio de
sinalizar ao espectador que ele deve ter uma postura ativa em relação ao que é
mostrado; de abrir a obra para a interpretação, através do que Umberto Eco chama
de uma “poética da sugestão”:

Com esta "poética da sugestão", a obra se coloca


intencionalmente aberta à livre reação do fruidor. A obra que
"sugere" realiza-se de cada vez integrada pelas contribuições
emotivas e imaginativas do intérprete (...) o texto se propõe estimular
justamente o mundo pessoal do intérprete, para que este extraia de
sua interioridade uma resposta profunda, elaborada através de
misteriosas consonâncias (...) Nessa linha, grande parte da literatura
contemporânea baseia-se no uso do símbolo como comunicação do
indefinido, aberto a reações e compreensões sempre novas.8

Nessa chave do “símbolo como comunicação do indefinido” é que podemos


pensar a produtividade da abordagem dessa matéria, inclusive dos seus elementos
históricos, por meio dos elementos sobrenaturais. Falamos sobre como qualquer
discurso produzido como narrativa tem os seus pontos cegos, as lacunas deixadas
como o preço de se organizar uma narrativa. Em The Witch, esses pontos cegos se
tornam ferramentas de construção de sentido. Dizíamos antes como a representação
dos elementos no presente da narrativa, na diegese, é truncada por conta da tensão
entre os elementos históricos e o presente do público espectador, assim como pela
tensão entre acurácia histórica e componentes sobrenaturais. No passado da
narrativa, contudo, também notamos uma representação truncada. Durante todo o
filme, a nostalgia e a perda são partes constituintes da sua estrutura de sentimento. A
8 ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo:
Perspectiva, 1968, p. 46 (original: 1962; tradução: Alberto Guzik e Geraldo Gerson de Souza), grifos
meus
presença dos personagens no Novo Mundo é vista com maus olhos desde o início, na
primeira fala do filme, do patriarca William, direcionada aos colonos:

What went we out into this wilderness to find? Leaving our


country, kindred, our father’s houses? We have travailed a vast
ocean... For what?”9

Em diferentes momentos, essa vontade do passado retorna, com os


personagens levantando diferentes aspectos da vida na metrópole que superam a
realidade do presente.10 Contudo, em nenhum momento temos um flashback das
suas vidas na Inglaterra. Todas as lembranças desse momento de felicidade se dão
através de narrativas, e que inclusive entram em conflito determinadas vezes, como
no desacordo de Thomasin e seu irmão Caleb sobre a presença ou não de janelas de
vidro na sua casa antiga.

THOMASIN
Aye but we did!
CALEB
Nay.
THOMASIN
We did.
CALEB
No!
THOMASIN
We had glass windows in England. We have not been hither so
long that you can forget that? (...)
THOMASIN
Dost not remember Fowler laying on the floor i’the sun? You
must! And the curious-curled shadows upon his back...? (...)
CALEB
I remember that day, but no glass. 11

O passado então, representado pela Inglaterra, se torna ele mesmo uma


construção mental dos personagens, ao qual temos acesso apenas pela visão pessoal e
ao mesmo tempo distorcida dos personagens. O contraste dessa falta de
representação do passado diegético e a representação brutalmente acurada do
passado da plateia na mise-en-scène apresenta mais uma tensão. Já apresentamos
9 EGGERS, Robert. The Witch: A New England Folktale (script). Brooklyn, New York: 2015, p.1
10 BRIEFEL, Aviva. "Devil in the Details: The Uncanny History of The Witch". Film & History: An
Interdisciplinary Journal, vol. 49, n. 1, Summer 2019, p. 10
11 EGGERS, pp. 49-50
antes que a personagem que serve como foco narrativo no filme é Thomasin, por
conta do privilégio de ponto de vista que o filme lhe oferece. Momentos como a
discussão entre ela e Caleb sobre esse passado colocam em questão a sua
confiabilidade como foco narrativo - e nos perguntamos se o que estamos vendo,
mesmo com um grau intenso de correspondência histórica, não está sendo filtrado
pela perspectiva da personagem, inclusive os elementos sobrenaturais.
Esse possível filtro de Thomasin adiciona mais uma camada de mediações
sobre o que é mostrado a nós, e coloca os pontos cegos da narrativa não em um lugar
abstrato, mas associados a uma tomada de posição de uma personagem, que assume
dessa maneira um caráter historicamente localizado. É importante notar que a
tomada de posição não é feita pela personagem, a quem a própria perspectiva é
natural. Essa atitude é tomada pelo ponto de vista da obra, que faz uma escolha de
acompanhar Thomasin e, a partir do seu foco narrativo, colocar em marcha um
processo de distanciamento e de montagem dos elementos da obra, como é descrito
por Didi-Huberman:

Distanciar é demonstrar desmontando as relações de coisas


mostradas juntas e agrupadas segundo suas diferenças. Não há
distanciamento sem trabalho de montagem, que é a dialética da
desmontagem e da remontagem, da decomposição e da recomposição
de toda coisa.12

Entre esses elementos que são desmontados e remontados, estão certos


objetos que fazem referência ao passado que não pode ser mais representado,
aludindo a esses tempos de bonança que são agora impossíveis, como o cálice de
prata que é vendido por Wiliam sem o conhecimento de sua mulher Katherine 13, as
maçãs que Caleb diz sentir falta 14, ou as próprias janelas de vidro lembradas por
Thomasin. Esses objetos compartilham uma mesma característica, além de serem
todos ligados ao passado na Inglaterra: nenhum deles é mostrado. O cálice é apenas
mencionado quando já foi vendido, a caça às maçãs é apenas usada como desculpa
para a ausência dos homens e as janelas não existem nem na lembrança de Caleb.
Aqui mais uma vez a conexão entre o passado que recusa representação e os
elementos do presente que estão ocultos do primeiro plano é estabelecida.

12 DIDI-HUBERMAN, Georges. O olho da história. Vol. I. Quando as imagens tomam posição. Belo
Horizonte: UFMG, 2017, p. 65 (original: 2009; tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão).
13 EGGERS, p. 15
14 EGGERS, p. 31
Mas o filme dá mais uma volta no parafuso depois do estabelecimento dessa
conexão. Na verdade, esses objetos aparecem sim na diegese da obra, mas não no
plano do “objetivo”. O cálice é mostrado pela câmera durante a cena do delírio da
mãe, onde Katherine encontra-o são e salvo junto dos seus falecidos filhos num
momento de possessão pela bruxa.15 E durante a cena da possessão de Caleb, o seu
êxtase é propiciado pelo vômito de uma maçã apodrecida. 16 Finalmente, as janelas de
vidro de Thomasin não aparecem de fato, mas a palavra que ela usa para descrevê-las
na conversa com Caleb (“pretty”) aparece só mais uma vez no filme, quando Black
Philip está tentando Thomasin com os prazeres que ela pode ter se render-se a ele
“What dost thou want? [...] A pretty dress?”17 Os pontos cegos da representação
histórica, estes que recusam representação no passado, aparecem no presente
localizados nos momentos de delírio e assombração, os espaços onde o que estava
oculto e reprimido consegue emergir. E nos dois primeiros casos, emergir de forma
destrutiva: a maçã que sai de dentro de Caleb está coberta de sangue, assim como o
peito de Katherine em que, no seu delírio, um corvo bica como se mamasse leite.
Um último elemento de conexão entre esses objetos dá o encaminhamento
final do locus desses pontos cegos. Em mais uma demonstração de Thomasin como o
centro ideológico do filme, todos os objetos se ligam a ela. Logo que Katherine dá o
cálice por desaparecido, sua disposição é acusar a filha sobre seu paradeiro 18,
assumindo sua culpa até que William a assume. Da mesma maneira, no momento do
vômito da maçã, a primeira reação dos gêmeos é acusá-la de ter amaldiçoado o
irmão. Mas essa relação não é estabelecida apenas pelos outros para com ela. Na
cena do vômito da maçã, a câmera segue uma alternância de plano-contraplano que
claramente estabelece Thomasin como o ponto que organiza a cena, mostrando todos
os eventos a partir da sua visão - predominância reforçada pela iluminação, que a
mostra como a única personagem completamente iluminada. Da mesma maneira, no
delírio de Katherine, a câmera mostra o cálice na sua cômoda antes da própria vê-lo,
quase como se a câmera - ou a instância do filme que organiza a câmera - tenha
colocado o cálice ali. E os únicos usos da palavra “pretty” sendo advindos da própria
Thomasin e do Diabo implica uma proximidade entre essas duas vozes.

15 EGGERS, p. 92
16 EGGERS, p. 73
17 EGGERS, p.102
18 EGGERS, p. 40
Uma conclusão que se pode tirar desses elementos de análise é que Thomasin,
cuja posição o ponto de vista da obra escolheu tomar, passa por um processo de
interiorização do discurso das outras personagens sobre si. A filha é desde o começo
a mais hesitante da família quanto ao plano eremítico do pai, e internaliza suas
dúvidas de maneira a questionar a própria fé. Katherine expressa insegurança quanto
à sua independência, e comunica ao pai a necessidade de encontrar uma maneira de
transformá-la na esposa de alguém; e no ambiente repressor e autófago da casa na
floresta, ela começa a se tornar um confuso objeto de desejo de Caleb. Até o próprio
autor implícito parece estar “contra” ela, colocando marcas de pecado em seu próprio
nome: além do mais óbvio “-sin” no final, o apóstolo Tomás foi o que duvidou de
Jesus após a sua ressurreição, espelhando a dúvida de Thomasin sobre a santidade
das regras de onde vive e a sua própria castidade. Cercada de todos os lados por
diferentes afirmações sobre o seu caráter impuro, a própria demonstra a aceitação
desse discurso, como quando, ao declarar “I be the Witch of the Wood”19 em uma
brincadeira de assustar seus irmãos, sua voz e seus trejeitos se transformam de
maneira sensual, roçando as saias e se impondo de maneira dominadora aos gêmeos
chocados.
Esse processo de progressiva aceitação do seu lugar de indesejável, codificado
no lugar da bruxa, a partir da internalização de um repertório providenciado pelos
seus pares ecoa o processo histórico real de confissão de mulheres no período da caça
às bruxas. Louise Jackson documenta como o discurso das mulheres como bruxas
surgia como um atalho para a interpretação das experiências de sofrimento e
autoquestionamento de mulheres, fragilizando-as em direção a essa posição:

The standard formula of the witchcraft confession provided a


set framework of meanings within which the accused witch presented
and thereby defined her own experiences (...) we can see that
emotional responses to events and concerns were being articulated
through the medium of the witchcraft confession; demonological
language and the conventions of witchcraft belief were used to cover
or explain personal traumas, insecurities or dilemmas (...) Women’s
insecurities about their roles as wives and mothers were being played
out within the context of the witchcraft confession. 20

19 EGGERS, p. 34
20 JACKSON, Louise, “Witches, Wives and Mothers.” In: Women’s History Review vol. 4, no. 1
(1995), pp. 80-81
É na posição de Thomasin, tomada pelo ponto de vista do filme, onde a
experiência de violência e de angústia retratada pelo filme se sintetiza, com o símbolo
das bruxas servindo como a comunicação de uma experiência indefinida, já que o
repertório providenciado pelos personagens não permite definição. O pesadelo
herdado de Eggers é transmitido não pela literal ambientação histórica, mas pelo que
fica implícito através do filtro da jovem mulher da sua vivência de uma experiência
de brutalidade. O uso de ferramentas mais tradicionais do terror, como o jump scare,
não combina com o argumento formal do filme pois o verdadeiro pesadelo não está
no que é mostrado, mas no que está assumido sem se precisar mostrar, justamente
por ser tão natural - e a identificação de nós, como público do século XXI, com o que
passa pela cabeça de Thomasin, é uma demonstração de que os procedimentos que
são operados para a internalização do seu papel de monstro não são alheios à nossa
realidade, mas permanecem como “dejetos da história” benjaminianos, como
passado residualmente preservado no presente, e portanto, terrivelmente
cognoscível.
Ao buscar colocar em cena a representação de temporalidades em choque - a
dos documentos historiográficos que serviram de base física para o roteiro, e a sua
própria como leitor desses registros em 2015 nos EUA -, Eggers propõe uma tomada
de posição que lhe permite um distanciamento, através do qual opera uma
montagem que cria pontos de contato entre esses sistemas de realidade. O resultado
não é agradável, pois hipotetiza que as fontes de violência e desumanização, tanto em
1630 como agora, estão mais próximas do que uma bruxa na floresta. O terror surge
como uma ferramenta estética mobilizadora desse choque, simultaneamente
distanciando e aproximando o espectador de um tipo de verdade que foi
majoritariamente ignorada pela historiografia oficial do período - e que não pode
ressurgir senão carregando o peso dos que foram colocados em uma posição de
subalternidade.

Obras citadas
ARISTÓTELES. Poética. Tradução comentada apresentada como dissertação de
mestrado de Alessandro Barriviera, IEL-UNICAMP, 2006.

BRIEFEL, Aviva. "Devil in the Details: The Uncanny History of The Witch". In: Film
& History: An Interdisciplinary Journal, vol. 49, n. 1, Summer 2019.

CRUMP, Andy. "An Inherited Nightmare". 21 de fevereiro de 2016. Disponível em


https://www.pastemagazine.com/movies/an-inherited-nightmare/

DIDI-HUBERMAN, Georges. O olho da história. Vol. I. Quando as imagens tomam


posição. Belo Horizonte: UFMG, 2017 (original: 2009; tradução: Cleonice Paes
Barreto Mourão).

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