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São Paulo
2021
Na Poética, Aristóteles apresenta uma definição sobre a diferença entre ficção
e História que orientou a reflexão sobre essas duas categorias de maneira
hegemônica no pensamento ocidental, pelo menos por um largo período de tempo. O
filósofo coloca que
Fica também patente, pelo que foi dito, que a função do poeta
não é dizer o que efetivamente aconteceu, mas o tipo de coisa possível
de acontecer, mais precisamente o que é possível segundo o
verossímil ou o necessário (...) é nisto que consiste a diferença, em
dizer um o que efetivamente aconteceu, outro, o tipo de coisa possível
de acontecer.1
2 WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 23 (original:
1957; tradução: Hildegard Feist).
biográfica convincente. Percebemos um sentido de identidade
pessoal que subsiste através da duração e no entanto se altera em
função da experiência.3
4 FUKS, Julián. História abstrata do romance. Tese de Doutoramento. Universidade de São Paulo,
Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, 2016, p. 32
Qualquer processo interpretativo se dá então em um choque entre a
temporalidade do texto e a temporalidade da(s) leitura(s), com todos os elementos
que lhe estabelecem pressões e limites em ambos os vértices desse cabo de guerra.
Como nos propõe Scholes:
THOMASIN
Aye but we did!
CALEB
Nay.
THOMASIN
We did.
CALEB
No!
THOMASIN
We had glass windows in England. We have not been hither so
long that you can forget that? (...)
THOMASIN
Dost not remember Fowler laying on the floor i’the sun? You
must! And the curious-curled shadows upon his back...? (...)
CALEB
I remember that day, but no glass. 11
12 DIDI-HUBERMAN, Georges. O olho da história. Vol. I. Quando as imagens tomam posição. Belo
Horizonte: UFMG, 2017, p. 65 (original: 2009; tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão).
13 EGGERS, p. 15
14 EGGERS, p. 31
Mas o filme dá mais uma volta no parafuso depois do estabelecimento dessa
conexão. Na verdade, esses objetos aparecem sim na diegese da obra, mas não no
plano do “objetivo”. O cálice é mostrado pela câmera durante a cena do delírio da
mãe, onde Katherine encontra-o são e salvo junto dos seus falecidos filhos num
momento de possessão pela bruxa.15 E durante a cena da possessão de Caleb, o seu
êxtase é propiciado pelo vômito de uma maçã apodrecida. 16 Finalmente, as janelas de
vidro de Thomasin não aparecem de fato, mas a palavra que ela usa para descrevê-las
na conversa com Caleb (“pretty”) aparece só mais uma vez no filme, quando Black
Philip está tentando Thomasin com os prazeres que ela pode ter se render-se a ele
“What dost thou want? [...] A pretty dress?”17 Os pontos cegos da representação
histórica, estes que recusam representação no passado, aparecem no presente
localizados nos momentos de delírio e assombração, os espaços onde o que estava
oculto e reprimido consegue emergir. E nos dois primeiros casos, emergir de forma
destrutiva: a maçã que sai de dentro de Caleb está coberta de sangue, assim como o
peito de Katherine em que, no seu delírio, um corvo bica como se mamasse leite.
Um último elemento de conexão entre esses objetos dá o encaminhamento
final do locus desses pontos cegos. Em mais uma demonstração de Thomasin como o
centro ideológico do filme, todos os objetos se ligam a ela. Logo que Katherine dá o
cálice por desaparecido, sua disposição é acusar a filha sobre seu paradeiro 18,
assumindo sua culpa até que William a assume. Da mesma maneira, no momento do
vômito da maçã, a primeira reação dos gêmeos é acusá-la de ter amaldiçoado o
irmão. Mas essa relação não é estabelecida apenas pelos outros para com ela. Na
cena do vômito da maçã, a câmera segue uma alternância de plano-contraplano que
claramente estabelece Thomasin como o ponto que organiza a cena, mostrando todos
os eventos a partir da sua visão - predominância reforçada pela iluminação, que a
mostra como a única personagem completamente iluminada. Da mesma maneira, no
delírio de Katherine, a câmera mostra o cálice na sua cômoda antes da própria vê-lo,
quase como se a câmera - ou a instância do filme que organiza a câmera - tenha
colocado o cálice ali. E os únicos usos da palavra “pretty” sendo advindos da própria
Thomasin e do Diabo implica uma proximidade entre essas duas vozes.
15 EGGERS, p. 92
16 EGGERS, p. 73
17 EGGERS, p.102
18 EGGERS, p. 40
Uma conclusão que se pode tirar desses elementos de análise é que Thomasin,
cuja posição o ponto de vista da obra escolheu tomar, passa por um processo de
interiorização do discurso das outras personagens sobre si. A filha é desde o começo
a mais hesitante da família quanto ao plano eremítico do pai, e internaliza suas
dúvidas de maneira a questionar a própria fé. Katherine expressa insegurança quanto
à sua independência, e comunica ao pai a necessidade de encontrar uma maneira de
transformá-la na esposa de alguém; e no ambiente repressor e autófago da casa na
floresta, ela começa a se tornar um confuso objeto de desejo de Caleb. Até o próprio
autor implícito parece estar “contra” ela, colocando marcas de pecado em seu próprio
nome: além do mais óbvio “-sin” no final, o apóstolo Tomás foi o que duvidou de
Jesus após a sua ressurreição, espelhando a dúvida de Thomasin sobre a santidade
das regras de onde vive e a sua própria castidade. Cercada de todos os lados por
diferentes afirmações sobre o seu caráter impuro, a própria demonstra a aceitação
desse discurso, como quando, ao declarar “I be the Witch of the Wood”19 em uma
brincadeira de assustar seus irmãos, sua voz e seus trejeitos se transformam de
maneira sensual, roçando as saias e se impondo de maneira dominadora aos gêmeos
chocados.
Esse processo de progressiva aceitação do seu lugar de indesejável, codificado
no lugar da bruxa, a partir da internalização de um repertório providenciado pelos
seus pares ecoa o processo histórico real de confissão de mulheres no período da caça
às bruxas. Louise Jackson documenta como o discurso das mulheres como bruxas
surgia como um atalho para a interpretação das experiências de sofrimento e
autoquestionamento de mulheres, fragilizando-as em direção a essa posição:
19 EGGERS, p. 34
20 JACKSON, Louise, “Witches, Wives and Mothers.” In: Women’s History Review vol. 4, no. 1
(1995), pp. 80-81
É na posição de Thomasin, tomada pelo ponto de vista do filme, onde a
experiência de violência e de angústia retratada pelo filme se sintetiza, com o símbolo
das bruxas servindo como a comunicação de uma experiência indefinida, já que o
repertório providenciado pelos personagens não permite definição. O pesadelo
herdado de Eggers é transmitido não pela literal ambientação histórica, mas pelo que
fica implícito através do filtro da jovem mulher da sua vivência de uma experiência
de brutalidade. O uso de ferramentas mais tradicionais do terror, como o jump scare,
não combina com o argumento formal do filme pois o verdadeiro pesadelo não está
no que é mostrado, mas no que está assumido sem se precisar mostrar, justamente
por ser tão natural - e a identificação de nós, como público do século XXI, com o que
passa pela cabeça de Thomasin, é uma demonstração de que os procedimentos que
são operados para a internalização do seu papel de monstro não são alheios à nossa
realidade, mas permanecem como “dejetos da história” benjaminianos, como
passado residualmente preservado no presente, e portanto, terrivelmente
cognoscível.
Ao buscar colocar em cena a representação de temporalidades em choque - a
dos documentos historiográficos que serviram de base física para o roteiro, e a sua
própria como leitor desses registros em 2015 nos EUA -, Eggers propõe uma tomada
de posição que lhe permite um distanciamento, através do qual opera uma
montagem que cria pontos de contato entre esses sistemas de realidade. O resultado
não é agradável, pois hipotetiza que as fontes de violência e desumanização, tanto em
1630 como agora, estão mais próximas do que uma bruxa na floresta. O terror surge
como uma ferramenta estética mobilizadora desse choque, simultaneamente
distanciando e aproximando o espectador de um tipo de verdade que foi
majoritariamente ignorada pela historiografia oficial do período - e que não pode
ressurgir senão carregando o peso dos que foram colocados em uma posição de
subalternidade.
Obras citadas
ARISTÓTELES. Poética. Tradução comentada apresentada como dissertação de
mestrado de Alessandro Barriviera, IEL-UNICAMP, 2006.
BRIEFEL, Aviva. "Devil in the Details: The Uncanny History of The Witch". In: Film
& History: An Interdisciplinary Journal, vol. 49, n. 1, Summer 2019.
EGGERS, Robert. The Witch: A New England Folktale (script). Brooklyn, New York:
2015.
JACKSON, Louise, “Witches, Wives and Mothers.” In: Women’s History Review vol.
4, no. 1 (1995).
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
(original: 1957; tradução: Hildegard Feist).