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21/09/22, 13:23 Resumo de Introdução Ao Verossímil

Introdução ao Verossímil

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Um dia, no século V antes de Cristo, na Sicília, dois indivíduos discutiam; seguiu-se um acidente. Eles
comparecem no dia seguinte diante das autoridades que devem decidir qual dos dois é o culpado. Mas como
escolher? Os juízes não tinham presenciado a disputa, não puderam observar nem constatar a verdade; as
opiniões são insuficientes; só resta um meio: escutar as narrativas dos litigantes. Este fato vem modificar a
posição destes últimos: já não se trata de estabelecer uma verdade (o que é impossível), mas de se acercarem
dela, de darem a impressão da verdade; e esta impressão será tanto mais forte quanto mais hábil for a
narrativa. Para ganhar o processo, é mais importante falar bem do que ter procedido bem. Platão escreverá
amargamente: "Com efeito, nos tribunais, ninguém tem a mínima preocupação de dizer a verdade, mas de
persuadir, e a persuasão depende da verossimilhança". Mas, por isso mesmo, a narrativa, o discurso, deixa de
ser, na consciência dos que falam, um reflexo submetido às coisas, para adquirir um valor independente.
Portanto, as palavras não são simplesmente os nomes transparentes das coisas, elas formam uma entidade
autônoma, regida por leis próprias, e que pode ser julgada em si mesma. A importância das palavras
ultrapassa a das coisas que elas supostamente refletiam. Nesse dia assistiu-se ao nascimento simultâneo da
consciência da linguagem, de uma ciência que formula as leis da linguagem, a retórica, e de um conceito, o
verossímil, que vem preencher o vazio entre essas leis e o que se pretende ser a propriedade constitutiva da
linguagem: a sua referência ao real. A descoberta da linguagem dará em breve os seus primeiros resultados: a
teoria retórica, a filosofia da linguagem dos sofistas. Mas mais tarde, pelo contrário, vai tentar-se esquecer a
linguagem, proceder como se as palavras não fossem, mais uma vez, senão os dóceis nomes das coisas; e
começa-se hoje a entrever o fim do período anti-verbal da história da humanidade. Durante vinte e cinco
séculos tentar-se-á fazer crer que o real é uma razão suficiente da palavra; durante vinte e cinco séculos será
preciso reconquistar continuamente o direito de perceber a linguagem. A literatura, que simboliza a
autonomia do discurso, não foi suficiente para vencer a idéia de que as palavras refletem as coisas. O traço
fundamental de toda a nossa civilização continua a ser esta concepção da linguagem-sombra, com formas
talvez modificáveis, mas que não deixam de ser as conseqüências diretas dos objetos que refletem. Estudar o
verossímil significa mostrar que os discursos não são regidos por uma correspondência com o seu referente,
mas pelas suas próprias leis, e denunciar a fraseologia que, no interior desses discursos, quer fazer-nos
acreditar no contrário. Trata-se de fazer sair a linguagem da sua transparência ilusória, de ensinar a percebê-
la e de, ao mesmo tempo, estudar as técnicas de que ela se serve para, como o invisível de Wells engolindo a
sua poção química, deixar de existir a nossos olhos. O conceito de verossímil já não está em moda. Não o
encontramos na literatura científica "séria"; em compensação, continua a dominar nos comentários de
segunda ordem, nas edições escolares dos clássicos, na prática pedagógica. Eis um exemplo desta utilização,
extraído de um comentário ao Mariage de Figaro: "O movimento faz esquecer a inverossimilhança. O Conde,
no fim do segundo ato, tinha enviado Bazile e Gripe-Soleil à aldeia, por dois motivos precisos: prevenir os
juízes; encontrar o camponês do bilhete. (...) É muito pouco verossímil que o Conde, agora perfeitamente ao
corrente da presença de Chérubin, pela manhã, no quarto da Condessa, não peça nenhuma explicação a
Bazile sobre a sua mentira e não tente confrontá-lo com Figaro cuja atitude lhe parece cada vez mais
equívoca. Sabemos, e isso é confirmado no quinto ato, que a espera do seu encontro com Suzanne não basta
para o perturbar a esse ponto quando se trata da Condessa. Beaumarchais tinha consciência dessa
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inverossimilhança (anotou-a nos seus manuscritos) mas pensava, e com razão, que, no teatro, nenhum
espectador se aperceberia disso". Ou ainda: "Beaumarchais confessava espontaneamente ao seu amigo Gudin
de la Branellerie que havia pouca verossimilhança nos enganos das cenas noturnas. Mas acrescentava: os
espectadores prestam-se de boa mente a esta espécie de ilusão quando dela resulta um imbroglio divertido".
O termo "verossímil" é utilizado aqui no sentido mais ingênuo de "conforme a realidade". Consideram-se
inverossímeis certas ações ou atitudes que parecem não poder produzir-se na realidade. Corax, primeiro
teórico do verossímil, já tinha conseguido ir mais longe: o verossímil não era, para ele, uma relação com o
real (como é o verdadeiro), mas com o que a maioria das pessoas julga ser o real, por outras palavras, está
em relação com um outro discurso (anônimo, impessoal), e não com o seu referente. Mas se lermos com
atenção o comentário precedente, verificaremos que Beaumarchais se referia ainda a outra coisa: ele explica
a situação do texto com uma referência, não à opinião comum, mas às regras particulares do gênero que
adota ("no teatro, nenhum espectador se aperceberia disso", "os espectadores prestam-se de boa mente a esta
espécie de ilusão", etc). No primeiro caso, não se trata, portanto, da opinião pública, mas simplesmente de
um gênero literário que não é o de Beaumarchais. Assim nascem vários sentidos do termo verossímil e é
deveras necessário distingui-los, porque a polissemia da palavra é preciosa e não nos podemos desembaraçar
dela. Separaremos apenas o primeiro sentido ingênuo, segundo o qual se trata de uma relação com a
realidade. O segundo sentido é o de Platão e Aristóteles: o verossímil é a relação do texto particular com um
outro texto, geral e difuso, que se chama: opinião pública. Encontramos já, nos clássicos franceses, um
terceiro sentido: a comédia tem o seu próprio verossímil, diferente do da tragédia: há tantos verossímeis
como gêneros, e as duas noções têm tendência para se reunir (o aparecimento deste sentido da palavra marca
um passo importante na descoberta da linguagem: passa-se aqui do nível do dito para o nível do dizer).
Enfim, nos nossos dias, torna-se predominante um outro emprego da palavra: fala-se da verossimilhança de
uma obra, na medida em que ela tenta fazer-nos crer que se submete ao real e não às suas próprias leis; quer
dizer, o verossímil é a máscara com que se dissimulam as leis do texto, e que nos daria a impressão de uma
relação com a realidade. Consideremos ainda um exemplo desses diferentes sentidos (e diferentes níveis) do
verossímil. Encontramo-lo num dos livros mais contrários à fraseologia realista: Jacques le Fataliste. Em
todos os momentos da narrativa, Diderot está consciente das múltiplas possibilidades que se lhe oferecem: a
narrativa não é determinada a priori, todos os percursos são (em absoluto) bons. A essa censura, que vai
obrigar o autor a escolher um deles, chamamos: verossímil. "... Viram um grupo de homens armados de
varapaus e de forquilhas que avançavam para eles em grande correria. vão julgar que eram os homens da estalagem,
os criados e os aventureiros brigões de que falamos. (...) Vão pensar que este pequeno exército vai cair sobre Jacques e o seu amo, que
vai haver uma coisa sangrenta, pancadaria e tiros, e só de mim dependeria que isso acontecesse; mas, nesse caso, adeus verdade da
história, adeus narrativa dos amores de Jacques. (...) É bem evidente que o que faço não é um romance, pois desprezo aquilo que um
romancista não deixaria de utilizar. Quem acreditasse que o que escrevo é a verdade estaria talvez menos enganado do que quem julgue
tratar-se de uma fábula". Neste breve trecho, é feita uma alusão às propriedades do verossímil. A liberdade da narrativa é limitada pelas
exigências internas do próprio livro ("a verdade da história", "a narrativa dos amores de Jacques"), por outras palavras, porque o livro
pertence a um gênero

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