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Alexandre Pandolfo*
*
Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor da Universidade Federal de Rio Grande (FURG).
1
Pouco importa à sua “validade” que este documento esteja amplamente divulgado na internet, porque os
leitores da obra de Eugenio Zaffaroni que conhecem o seu pensamento e a sua forma de escrita podem
facilmente percebê-lo.
2
cujas reflexões pretendem “refundar el derecho penal liberal en nuestros dias”.2 É, pois,
tão claro quanto cinza que refundar, significa a intenção de ir ao fundo e de lá sacar os
elementos fundamentais para qualquer coisa que seja uma espécie de nova fundação;
uma fundação que ao longo do texto, entretanto, parece acometida de um despropósito
original ao fundamento, na medida em que se vincula a uma perspectiva jurídico-penal e
liberal – e, pois, nada pode apresentar de efetivamente novo àquela “dialética” entre
autoritarismo e garantismo que perfaz a origem e a evolução dos discursos jurídico-
penais ocidentais.3 É o que fica literalmente esclarecido pela “homenaje a la síntesis
abarcativa”,4 homenagem que é prestada, em última instância, a Hegel, esse que a todo
instante Zaffaroni parece querer criticar,5 sem se dar conta de que “síntese abarcativa” é
já a expressão absoluta do espírito, o mito da dominação total da realidade pelo logos
hegemônico, a expressão da violência mesma.
2
ZAFFARONI, Eugenio. La pena como vingança razonable, p. 02.
3
Conferir ZAFFARONI, Eugenio. Origen y evolución del discurso critico en el derecho penal.
4
ZAFFARONI, La pena como vingança razonable, p. 02.
5
Conferir ZAFFARONI, Eugenio. Criminología: aproximación desde un margen, pp. 120 e ss.
6
No seu pequeno texto A sutileza de um ato falho, Sigmund Freud afirma: “contentamo-nos rapidamente
com uma explicação parcial, por trás da qual a resistência mantém algo possivelmente mais importante”;
e constantemente esse mecanismo intelectual, e sua grandiloqüência, encobrem pequenas reminiscências
a título de manutenção de si mesmo, do próprio mecanismo que, entre sutis falhas, fendas, e apesar delas,
faz esquecer que “tinha de haver algo que receava vir à luz”, como escreve Freud. Conferir FREUD,
Sigmund. A sutileza de um ato falho, pp. 472 e 473.
7
ZAFFARONI, La pena como vingança razonable, p. 02.
8
Conferir BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia.
9
Conferir DERRIDA, Jacques. Força de lei.
3
ainda que seu discurso esteja corroído até a espinha, é justificada por Zaffaroni na
medida da “retribuição justa”. Assenta-se, pois, na medida do “ainda que”, uma locução
que é, fatidicamente, a negação à urgência, a espera pelo progresso, à espera dos
bárbaros e a sua caça, a velha nau, Godot, para citar Samuel Beckett.
Dois “pólos fundamentais” que sequer existem enquanto “pólos” – pois “sin
poner en duda la legitimidad del poder punitivo, afirman que debe ser de modo tal que
cumpla alguna función positiva y racional”16 – se erguem para legitimar o devir
punitivo, de tal modo que o “resistir à expansão” é aquilo que faz erguer o direito penal
e, ao mesmo tempo, aquilo que permitiria “negar” o sistema penal, cuja lógica, no
entanto, jamais conseguiu prescindir, obviamente, do potestas puniendi. – Como se
“razão de estado” já não esboçasse as razões do estado de direito; como se o poder
jurisdicional existisse a despeito das agências policiais, e como se não fossem já as
expressões para o mesmo; como se a oposição entre estado de direito e estado de polícia
tivesse significado para além da tautologia autóctone do “estado de direito”, Zaffaroni
erige, elege e eleva o poder jurídico dos juízes como instante de contenção. Numa
crença infantil de que o estado de direito e seus juízes justificam-se pela abstração da
suas ausências, ele deriva a sua suma importância, congratulando-se, venerando a si
mesmo, narcisicamente. “Lo cierto es que el poder jurídico de contención es de la
máxima importancia, porque cuando los jueces desaparecen o se convierten en policías,
los acompaña en retirada el estado de derecho”.17 O que só pode ser levantado por uma
consideração que percebe o estado de polícia encapsulado no seio do estado de direito,
uma estória mal contada em que o “estado de derecho real es una constante dinámica
confrontativa con el estado de policía”,18 uma profissão de fé; pois, então, o “estado de
direito real” não é já a realidade das agências policiais? Não é a violência do sistema
penal a realidade contra a qual o pensamento precisa se voltar, desconstruindo-a? Ou é
ainda necessário crer que o estado de direito realizar-se-á “por sobre os corpos dos que
estão prostrados no chão”19? – O cortejo triunfal do estado de direito, realizado
diariamente através, por exemplo, da valorosa presunção testemunhal dos policiais nos
julgamentos, é já a expressão para a salvaguarda dos seus próprios valores
fundamentais. Nesse sentido a afirmação de Jacques Derrida no Prenome de Benjamin:
“a polícia é o Estado, é o espectro do Estado”, significando ela mesma a Aufhebung –
16
ZAFFARONI, op cit. p. 02.
17
ZAFFARONI, op. cit, p. 05.
18
ZAFFARONI, op. cit, p. 06.
19
BENJAMIN, Sobre o conceito de história. Tese 7.
6
“alucinante e espectral porque ela assombra tudo”.20 A polícia, que suspende a distinção
entre a violência que funda e a que conserva o direito, este “equívoco ignóbil,
ignominioso, revoltante”,21 a exceção que é a regra, lógica, é monumento para a
proveniência do logos hegemônico, fantasmagórico, violência governante, expressão da
sua proeminência, testemunha assombrosa do fato de que “o que toca na violência do
direito não é natural, mas espiritual” – assombro que não gera, propriamente, nenhum
conhecimento, “a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana
semelhante assombro é insustentável”,22 concepção contra a qual urge a crítica radical à
violência. Mas o desprestígio que marca a legitimação do poder punitivo, desprestígio
não meramente científico como pretende Zaffaroni, mas filosófico – serve, antes, de
motivo para a manutenção em abstrato do prestígio atual e futuro do direito penal, e
ainda não serviu para corroer a sua lógica.
Expressão para isso foi a publicação do “dossiê” Pierre Rivière por Michel
Foucault e sua equipe. Ora, que Rivière tenha sido reduzido à “abstração de um caso
clínico” e o assassinato propriamente dito à sua “dimensão sintomática”, é a
manifestação de que se operou ali uma espécie de mecanismo civilizatório,
negligenciado tanto pelos folhetins, quanto pela ciência – “chamemos a isso de
mecanismo do „calibene‟ ou „albaletre‟”, diz Foucault24 – mecanismo segundo o qual
Pierre Rivière é objetificado, capturado como exemplo “em negativo”, negado na sua
negatividade, e celebrado porque serve ao positivo: a afirmação do assassinato através
da legitimação do uso da força, esse domínio de saber, monumento ao logos
hegemônico realizado pelo direito em cumprimento à sua restauração, e auto-oferecido à
própria hegemonia;25 “o jogo da lei, do assassino”, diz Foucault “ilustra o código e
20
DERRIDA, Prenome de Benjamin, pp. 99 e 105, respectivamente.
21
DERRIDA, Prenome de Benjamin, p. 100.
22
BENJAMIN, Sobre o conceito de história. Tese 8, p. 226.
23
SOUZA, Ricardo Timm de. O século XX e a desagregação da totalidade, p. 22.
24
FOUCAULT, Michel. Os assassinatos que se conta, p. 214.
25
PETER, Jean-Pierre; FAVRET, Jeanne. O animal, o louco, a morte, p. 203.
7
26
FOUCAULT, op. cit. pp. 220, 217/18.
27
PETER; FAVRET, op. cit. p. 203.
28
BENJAMIN, Para una crítica de la violencia, p.18.
29
ZAFFARONI, op. cit. p. 11.
30
ZAFFARONI, op. cit, p. 06. Itálico por minha conta.
31
BENJAMIN, Para una crítica de la violencia, p. 18.
32
ZAFFARONI, op. cit, p. 07.
8
33
SOUZA, Ricardo Timm de. O nervo exposto.
34
ZAFFARONI, op cit, p. 05.
35
ZAFFARONI, op cit, p. 05
36
Há a importante elaboração de Moysés Pinto Neto, no seu trabalho O rosto do inimigo, a este respeito.
37
DERRIDA, Prenome de Benjamin, p. 89/90.
9
42
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento, p. 72.
43
SOUZA, O nervo exposto.
44
ZAFFARONI, op. cit. p. 10.
45
BENJAMIN, Para una crítica de la violencia, p. 15.
46
PETER; FAVRET. O animal, o louco, a morte, p. 200.
11
47
MOULIN, Patrícia. As circunstâncias atenuantes, p. 227.
48
MOULIN, op. cit. p. 228, para ambas citações.
49
BENJAMIN, op. cit. p. 21.
50
ZAFFARONI, Eugenio. Globalização, sistema penal e ameaças ao estado democrático de direito, p.
29.
51
ZAFFARONI, La pena como venganza razonable, p. 10.
52
DERRIDA, Prenome de Benjamin, p. 111.
53
DERRIDA, Prenome de Benjamin, p. 95.
54
BENJAMIN, Para una crítica de la violencia, p. 37.
12
55
CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo: o exemplo
privilegiado da aplicação da pena.
56
ZAFFARONI, op. cit. p. 10.
57
ZAFFARONI, op. cit. p. 10/11.
13
hoje – e talvez em decorrência deles, essa articulação “tende a ver até mesmo as
relações de dominação social como inevitáveis”, citando, pois, Theodor Adorno.58
58
ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. Décima terceira aula, p. 270.
59
ADORNO, Introdução à sociologia. Décima segunda aula, p. 257.
60
DERRIDA, Prenome de Benjamin, p. 82.
61
ZAFFARONI, op. cit, p. 16.
14
instância contra a qual deve o direito penal se opor,62 como se paranóica não fosse já a
estrutura jurídica, a ordem do seu discurso,63 e como se tudo o que até hoje serviu-lha
de motivo pudesse realmente legitimá-la e não denunciá-la. Porque o desejo é esperar,
isto é, manter, é preciso suportar, afirma o autor argentino. Mas não é justamente contra
as artimanhas racionalizatórias que fazem suportar o insuportável que o pensamento
crítico precisa se voltar? Que o poder jurídico seja “necessário” é uma crença
civilizatória bastante ingênua, diria mesmo infantil, mas que ele seja “necesario pero no
suficiente”64 é de um evidente esquematismo eficientista, vazio de sentido porque já
está prontamente tomado de significado absoluto, tomado pelo absoluto, de antemão
incrivelmente abonado pelas atrocidades cometidas (no passado e no devir) em seu
nome. E não obstante, para Zaffaroni “el ejercicio del poder jurídico de contención si
bien no es suficiente, siempre es indispensable para la neutralización de las pulsiones
del estado de policía”,65 a partir do que deve-se “reafirmar su legitimidad en la
contención de la venganza”.66
62
ZAFFARONI, op. cit, pp. 15/6. Nas palavras do autor: para um novo modelo integrado de direito penal
e criminologia “es inevitable que los admita como necesaria revolución epistemológica para estar en
condiciones de proporcionar al derecho penal el alerta ante cualquier tentativa de instalación de un mundo
paranoico que condicione el reclamo de una venganza también paranoica y el consiguiente riesgo del
masacre” – revolução epistemológica que faz pouco sentido num texto dedicado eminentemente a
manutenção do conhecimento e da sua consequente aplicação técnica; a „revolução‟, então serve para
manter o mesmo, dolorosamente real.
63
A paranóia foi trabalhada de forma muito perspicaz por Sigmund Freud, Jacques Lacan e outros
psicanalistas, assim como por psiquiatras e classificadores em geral. “Esta forma de loucura, Freud
preferia comparar a um sistema filosófico em razão de seu modo de expressão lógico e de sua
intelectualidade próxima do raciocínio „normal‟”. Entre debates nosográficos e psicanalíticos
fundamentais, a psicose se caracteriza “por um delírio sistematizado, pela predominância da interpretação
e pela inexistência de deterioração intelectual”. ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de
psicanálise, p. 57-575. Itálico por minha conta.
64
ZAFFARONI, op. cit, p. 16.
65
ZAFFARONI, op. cit, p. 16. Itálico por minha conta.
66
ZAFFARONI, op. cit, p. 17.
67
ADORNO, Introdução à sociologia. Sétima aula, p. 154.
15
68
Conferir FREUD, Sigmund. Por que a guerra? [carta a Einstein, 1932].
69
FREUD, Por que a guerra? p. 421.
70
FREUD, Por que a guerra? pp. 431 e 434, respectivamente.
16
71
FREUD, Por que a guerra? p. 432.
72
ADORNO, Introdução à sociologia, Décima primeira aula, p. 194.
73
ADORNO, Introdução à sociologia, Terceira aula, p. 94.
17
74
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz, p. 104.
75
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz, p. 109.
76
PASSETTI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal, p. 19.
77
ADORNO, T. Educação após Auschwitz, p. 114.
78
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz, p. 121. As palavras do autor: “gostaria de referir-me a
algumas possibilidades da conscientização dos mecanismos subjetivos, sem os quais Auschwitz
dificilmente teria sido possível. É necessário o conhecimento de tais mecanismos, assim como o da defesa
estereotipada que bloqueia essa tomada de consciência. Os que ainda dizem, atualmente, que as coisas
não forma bem assim, ou que não foram tão más, defendem em realidade o ocorrido...”
18
***
79
ZAFFARONI, op cit, p. 10.
80
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka, p. 162.
81
BENJAMIN, Franz Kafka, p. 140.
82
BENJAMIN, Franz Kafka, p. 144.
83
KARAM, Maria Lúcia. Monitoramento eletrônico, p. 04.
19
Bibliografia
84
JOBIM, Augusto. A cultura do controle penal da contemporaneidade, p. 05
20