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Discursos de justificação da pena

Salah H. Khaled Jr.

Introdução

Praticamente todos os penalistas contemporâneos são reféns de discursos de


justificação da pena e, logo, de legitimação do poder punitivo. Com isso, digo que
procuram responder ao "por que punir?", sustentando que a pena cumpre um dado
propósito e que por isso é desejável a sua aplicação. São infinitas as leituras e releituras
sobre a questão, expressadas através de variantes isoladas e combinatórias da prevenção
geral (+) e (-), prevenção especial (+) e (-) e retribuição.
Minha compreensão da questão tem como postulado a assunção de um horizonte
que não é apenas jurídico, mas também político: não vejo como uma estratégia de
contenção do poder punitivo – condição necessária para o desenvolvimento do Estado
Democrático de Direito – possa se beneficiar de um exercício de adivinhação sobre a sua
essência. Como disse Zaffaroni, "se o saber jurídico-penal decidisse ignorar a função do
poder punitivo, reconhecendo sua irracionalidade e sua existência como mero factum,
assumiria diante dele a nobre função de projetar normativamente sua contenção para
preservar o estado de direito e prevenir os massacres, e recuperaria a dignidade que, em
boa medida, perdeu ao longo da história, ao justificar os mais horrorosos crimes de
Estado"1
Todo discurso que responde ao "por que punir?" inevitavelmente assume um
horizonte de crença na bondade do poder punitivo, fazendo com que a interrogação
original deslize para a justificação: para intimidar, para ressocializar, para pura e
simplesmente castigar, para neutralizar e assim por diante. Com isso são esfaceladas as
promessas de rejeição da irracionalidade e os penalistas acabam servindo a um triste – e
indigno – papel: a reprodução ideológica do poder punitivo.
Os resultados são verdadeiramente catastróficos, particularmente na América
Latina, terra de jardins devastados e com condições muito peculiares, que a diferenciam
dos jardins floridos que originaram uma dogmática jurídico-penal que não pode ser tida
como universal. O Direito Penal precisa ser confrontado com a realidade e pensado a

1
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo:
Saraiva, 2013. p.404.
partir dela, ainda que por séculos os penalistas tenham se preocupado muito mais com a
construção de um sistema complexo de conceitos do que com a forma com que tais
conceitos dialogam com a realidade. É preciso abandonar a abstração e enxergar a coisa:
como disse recentemente Amilton Bueno de Carvalho, enxergar a prisão e não o discurso
sobre a prisão.2
Como é possível que um intelectual enojado com as práticas punitivas brasileiras
tenha a ingenuidade de aderir a qualquer teoria da pena? Diante da catástrofe que
conforma a realidade operativa do sistema penal, como participar de uma profissão de fé
que atribui finalidades nobres ao poder punitivo? Finalidades que ele não tem como
cumprir e que integram um devaneio jurídico divorciado da realidade concreta da sua
manifestação?
Como demonstrou Zaffaroni, as teorias da pena servem a um propósito político
de justificação do poder punitivo, estranho ao âmbito de um Direito Penal comprometido
com o avanço do Estado Constitucional de Direito. Portanto, como não interessa aos
penalistas – ao menos aos que estão comprometidos com a contenção do poder punitivo
– legitimar a pena, resta a conclusão de que todas as leituras legitimantes do discurso
penológico devem ser rechaçadas.3 Todas as teorias que respondem positivamente ao “por
que punir?” conformam construções narrativas que – mesmo indiretamente – produzem
continuamente catástrofes, visto que suas funções latentes garantem o espaço necessário
para a prosperidade irrestrita do poder punitivo e afirmação do totalitarismo: promovem
o Estado de Polícia e fragilizam o Estado Constitucional de Direito. Quem não enxerga
isso só pode estar sofrendo de cegueira normativa, que obstaculiza a percepção dos
cadáveres produzidos pelo direito penal.4
Diante dessas conclusões, fica claro que qualquer discurso verdadeiramente
crítico ao arbítrio do poder punitivo no âmbito da aplicação da pena privativa de liberdade

2
No Seminário Tolerante Contra a Redução da Maioridade Penal, realizado no dia 05/05 no Foro Central
II, em Porto Alegre.
3
Como percebeu Carvalho, o “[...] discurso jurídico, em particular jurídico-penal, em razão de sua tradição
metafísica, acaba neutralizando as formas de enfrentamento da situação, pois, invariavelmente, remete a
discussão de problemas reais ao plano dos fundamentos da punição, dos critérios de definição das penas,
do grau de lesão da conduta ao bem jurídico entre outros temas extremamente caros aos teóricos da pena e
do delito”. CARVALHO, Salo de. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: GAUER, Ruth
Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. Porto Alegre, Editora
PUCRS, 2010. p.162.
4
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo:
Saraiva, 2013. p.39.
deve rechaçar todos os vetores das teorias legitimantes da pena.5 Não é através de um
lamento pela não realização ou realização parcial de uma dada teoria a que se professa
aderência que avançaremos. É urgente o rompimento com o sonambulismo dogmático
que nega a agonia experimentada pelos recolhidos aos calabouços ilegais que chamamos
de presídios. É preciso lutar pela minimização da dor, aceitando que inevitavelmente a
pena produzirá sofrimento, algo do qual podemos ter certeza, diferentemente dos
devaneios que ocuparam a mente dos penalistas nos últimos séculos. Temos que romper
com a síndrome do que Zaffaroni referiu como revelação do penalista: será que o teórico
penal recebe a visita de alguma entidade misteriosa ou nos sonhos esta o faz chegar a uma
revelação acerca do fim, sentido, objeto ou essência do poder punitivo?6
Não é possível que enquanto a realidade desmente de forma escandalosa todas as
funções atribuídas a pena – ignoradas pelo texto constitucional – , os penalistas
permaneçam fazendo desse tópico objeto de fetiche, continuando a indagar qual a resposta
mais apropriada à singela pergunta “por que punir?”, quando o que interessa é limitar os
níveis de dor intencional que são impostos aos que são tragados pelo sistema penal.7
Minha intenção neste pequeno texto consiste em apresentar ao leitor apertadas
sínteses e problematizações das teorias da pena de autores contemporâneos que
normalmente não são lidos na fonte.8 Enfrentarei as teorias de autores como Faria Costa,
Ferrajoli, Roxin e Hassemer. Todas elas justificam – ainda que a seu modo – o poder
punitivo, como veremos logo a seguir. São mais do que teorias: são artifícios discursivos
de legitimação e como tais, devem ser objeto de uma descontrução.

1. A teoria unificadora preventiva de Roxin

5
O penalista comprometido com a contenção do poder punitivo deve ter como horizonte de ação o combate
sem trégua contra toda e qualquer teoria justificante da pena. Essa rejeição deve abarcar necessariamente
todas as respostas positivas ao “por que punir?”, o que inclui todas as variantes clássicas e contemporâneas
da questão e, logo, vale também para as construções discursivas de autores contemporâneos como Ferrajoli,
Faria Costa, Roxin, Hassemer e Jakobs, que não ultrapassam os limites narrativos do justificacionismo.
6
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo:
Saraiva, 2013. p.403.
7
Como observou Christie, “Despues de la muerte, el encarcelamiento es el ejercicio de poder mas severo
que el Estado tiene a su disposicion. Todos nosotros tenemos la libertad limitada de alguna manera: forzados
a trabajar para subsistir, obligados a subordinamos a nuestros superiores, encerrados en clases sociales o
aulas, prisioneros del nucleo familiar . Pero a excepcion de la pena de muerte y la tortura fisica -medidas
de uso limitado en la mayoria de lós paises de los que trata este libro-, nada es tan extremo en cuanto a
restricciones, degradacion y despliegue de poder como la carcel”. CHRISTIE, Nils. La industria del control
del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p.33.
8
Evidentemente, será uma exposição sucinta e condizente com as dimensões de um capítulo. Uma
abordagem mais aprofundada ficará reservada para outro momento e local: uma obra específica sobre
Direito Penal, cuja elaboração está em curso.
Como já estabeleci, toda teoria positiva da pena considera que a pena é um bem
para alguém e Roxin não escapa desta regra. Certamente o leitor minimamente
familiarizado com as discussões contemporâneas sobre o sentido do Direito Penal
conhece Claus Roxin e seu funcionalismo orientado por critérios político criminais.
Segundo Roxin, os pontos de vista valorativos reitores, que constituem o sistema do
Direito Penal, só podem ser de índole político-criminal, pois os pressupostos da
punibilidade têm, naturalmente, de se orientar segundo os fins do Direito Penal. Sob essa
perspectiva, as categorias fundamentais do sistema tradicional são vistas como
instrumentos de valorações político-criminais, que se mostram indispensáveis também
para um sistema teleológico. Sendo assim, os direitos humanos e os princípios do Estado
de Direito e do Estado Social integram as valorações político-criminais e, através de sua
vigência supranacional, tornam-se pedras de base do Direito Penal europeu.
Roxin é hoje provavelmente o penalista mais lido no mundo, ainda que possam
ser levantadas inúmeras restrições no que diz respeito ao protagonismo concedido ao
âmbito político criminal diante da normatividade penal. Penso que a maioria dessas
críticas é absolutamente acertada.9 Também é motivo de preocupação a recepção
apressada e equivocada de aspectos de sua teoria, como foi o caso da imputação objetiva,
incompreendida por muitos autores brasileiros.10 Nestes casos a crítica seria ainda mais
dura do que a normalmente é reservada a autores que reproduzem de forma impensada
teorias desenvolvidas para outras realidades, profundamente distintas da catástrofe que
prospera na América Latina.
De qualquer modo, a intenção aqui não é discutir de forma abrangente o
funcionalismo de Roxin: o foco consiste na forma com que ele justifica a pena e, logo,
legitima o poder punitivo. Roxin enfrenta o tema inicialmente a partir de uma exposição
abrangente das leituras clássicas sobre a pena: retribuição, prevenção geral (-) e (+) e
prevenção especial (-) e (+), embora pouco discuta a prevenção especial (-) e prevenção
geral (+).11

9
Ver D'AVILA, Fábio. O direito e a legislação penal brasileiros no séc.XXI: entre a normatividade e a
política criminal. In: GAUER, Ruth Maria Chittó. Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
10
Como demonstrou Paulo Queiroz em crítica devastadora dirigida a Damásio de Jesus. Ver QUEIROZ,
Paulo. Direito Penal parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp.191-196.
11
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general: tomo I. Fundamentos. La estructura del delito. Madrid:
Civitas, 1997.
Roxin aponta que o sentido da retribuição consiste na imposição de um mal
merecido, através do qual se retribui, equilibra e expia a culpabilidade do autor por um
fato cometido. A teoria é "absoluta" por estar desvinculada de uma finalidade social. De
acordo com essa lógica, qualquer pena é retribuição diante da causação de um mal e deve
existir uma correspondência entre magnitude da pena imposta e a culpabilidade. Nesse
sentido, a retribuição representaria um limite ao poder punitivo do Estado.
No entanto, Roxin afirma que não é mais possível afirmar a retribuição
cientificamente: se a finalidade do Direito Penal consiste na proteção subsidiária de bens
jurídicos (uma função com a qual eu não concordaria, pelo menos não com o sentido por
ele proposto), não é aceitável que para o cumprimento desse propósito ele se valha de
uma pena que prescinda de qualquer finalidade social. A retribuição exigiria uma pena
em situações nas quais a base de proteção de bens jurídicos não exigiria, de modo que
não serviria ao sentido do Direito Penal e perderia sua legitimidade social. Para Roxin, o
Estado não está legitimado para realizar a ideia metafísica de justiça. A ideia de que se
pode compensar ou suprimir um mal (o delito) com outro mal (o sofrimento da pena)
somente é suscetível de uma crença ou fé e o Estado não pode obrigar ninguém nesse
sentido, já que não recebe seu poder de Deus, mas do povo.
Tampouco a tese de uma "culpabilidade" que deve ser retribuída pode
fundamentar por si própria a pena: a culpabilidade individual está assentada na existência
de uma liberdade de vontade, cuja indemonstrabilidade faz com que ela seja inadequada
como único fundamento das intervenções estatais.
Roxin considera que a teoria de prevenção especial representa uma posição
diametralmente oposta ao que sustenta a retribuição: segundo a prevenção especial, o
sentido da pena consiste somente em impedir que o apenado cometa novos delitos. A
prevenção é dirigida ao autor individual (especial). É uma teoria relativa, pois se refere à
finalidade de prevenção de delitos. Para Roxin, seus méritos teóricos e práticos são
evidentes: cumpre extraordinariamente bem a finalidade do Direito Penal, uma vez que
se dedica exclusivamente à proteção do indivíduo e da sociedade, mas ao mesmo tempo
quer ajudar o autor; ou seja, não visa sua expulsão, mas sim a sua integração. Desse modo,
cumpre melhor do que qualquer doutrina as exigências do Estado social. Estabelecendo
um programa de execução assentado no treinamento social e um tratamento de
recuperação, o Estado possibilita reformas construtivas e se afasta da esterilidade prática
do princípio de retribuição.
Para Roxin, seu maior problema consiste no fato de – diferentemente da
retribuição – não estabelecer um parâmetro de limitação da pena, pois se o tempo exigido
é o necessário para a ressocialização, isso poderia conduzir a uma pena indeterminada:
poderia até se pensar em ressocialização para percebidos como perigosos, ainda que não
fosse possível provar que tivessem cometido um delito até o momento. Nesse sentido, a
prevenção especial poderia limitar a liberdade do indivíduo de forma muito mais radical
do que seria aceitável em um Estado Democrático de Direito. Além disso, outra objeção
seria a inexistência de um direito estatal para educar forçosamente cidadãos adultos, o
que exige a proibição de qualquer intenção de educação forçada, uma vez que violaria o
núcleo intocável que é a personalidade de um adulto. Restaria também a questão do que
fazer com agentes que não necessitam de ressocialização, como é o caso de autores de
fatos imprudentes ou de autores ocasionais de pequenos delitos.
Roxin enfrenta todas essas questões com a sua teoria unificadora preventiva e
acredita que congregando aspectos de várias teorias consegue superar os impasses que
com que elas individualmente se deparam, como veremos.
A terceira das teorias tradicionais – como definidas por Roxin – define o sentido
da pena a partir da comunidade e da influencia negativa que exerce sobre ela através das
ameaças penais e da execução da pena. Também é uma teoria voltada para a prevenção
de delitos – e, logo, relativa –, com a diferença de que não deve atuar especialmente sobre
o condenado, mas geralmente sobre a comunidade. Por isso se fala de uma teoria de
prevenção geral. Roxin faz uma citação de Feuerbach – autor da celebre teoria da coação
psicológica – que merece reprodução: "Todas las infracciones tienen el fundamento
psicológico de su origen en la sensualidad, hasta el punto de que la facultad de deseo del
hombre es incitada por el placer de la acción de cometer el hecho. Este impulso sensitivo
puede suprimirse al saber cada cual que con toda seguridad su hecho irá seguido de un
mal inevitable, que será más grande que el desagrado que surge del impulso no satisfecho
por la comisión".
Segundo Roxin, trata-se de uma concepção racionalista e determinista. Ele afirma
que essa doutrina – ao pretender reduzir os delitos através de normas penais – constitui
fundamentalmente uma teoria da ameaça penal, bem como também uma teoria da
imposição e execução da pena, visto que depende disso a eficácia da ameaça. Roxin
considera que hoje existe unanimidade quanto ao fato de que somente uma parte das
pessoas com "tendência para a criminalidade" cometem crimes com tanto cálculo que
uma "intimidação" possa ter efeito. Para Roxin, é preciso compreender que não é de um
aumento generalizado de penas – como exige ocasionalmente o público – mas sim de uma
intensificação da persecução penal que depende o êxito da prevenção geral.
Roxin considera que a teoria da prevenção geral negativa tem duas vantagens
fundamentais frente à prevenção especial positiva: em primeiro lugar, pode demonstrar
com facilidade que inclusive em casos nos quais não há risco de reincidência não se deve
renunciar totalmente à pena; o castigo é necessário para que os delitos não punidos não
incitem imitação. Em segundo lugar, não tem a tendência de substituir descrições claras
e objetivas de fatos por prognósticos vagos de periculosidade que colocam em questão o
Estado de Direito; pelo contrário, exige disposições exatas, já que o objeto da proibição
deve estar fixado de forma precisa se a intenção é que o cidadão se abstenha de
determinadas condutas.
Por outro lado, a teoria da prevenção geral também apresenta consideráveis
deficiências teóricas e práticas: em primeiro lugar, porque assim como a teoria da
prevenção especial, não estabelece nenhum critério claro para a delimitação da duração
da pena, correndo sempre o perigo de se converter em terror estatal. A ideia de que penas
mais altas e mais duras intimidam com maior eficiência foi historicamente conducente a
penas "sem medida". A objeção de que um castigo com fins preventivos atenta contra a
dignidade da pessoa humana tem maior peso na prevenção geral do que na especial:
enquanto a ressocialização deve (também) ajudar o condenado, o castigo por motivos de
prevenção geral recai sobre o autor por motivos derivados da comunidade (ou seja, de
outro) e isso exige uma justificação que a teoria não é capaz de oferecer por si só.
Roxin está apenas preparando o terreno para expor sua própria teoria. De qualquer
modo, ainda que não tenha delineado sua teoria unificadora preventiva, o leitor
certamente já percebeu que: a) Roxin está preocupado com a justificação da pena e, logo,
construirá um sistema de legitimação do poder punitivo; b) Ainda que possa perceber
alguns dos problemas típicos da prevenção especial (+) e da prevenção geral (-) dá crédito
a elas, diferentemente da retribuição, da qual extrairá apenas o sentido de culpabilidade
como limitação; c) sua teoria combinará elementos de todas as elas, em um sistema que
– segundo ele – é capaz de oferecer um fundamento teórico para a pena estatal.
Roxin a enfrenta a consideração de que cada delito demonstra a ineficácia da
prevenção geral argumentando que sua efetividade é demonstrada pelo fato de que apesar
de toda criminalidade, a maioria da população se comporta de acordo com o direito. A
afirmação não é suficientemente discutida: não fica claro se Roxin fala em termos
absolutos ou se quer dizer que a maioria da população se comporta de acordo com o
direito na maioria das vezes. Pelo menos ele diz que não é possível dizer até que ponto
isso pode ser atribuído aos aspectos positivos e negativos da prevenção geral.
De qualquer modo, o conceito de cifra negra absolutamente destrói qualquer
argumentação nesse sentido. A criminalidade "real" é infinitamente superior à
criminalidade conhecida. Mas Roxin obviamente não incorpora essa noção ao seu
argumento, já que ela põe completamente em questão qualquer teoria preventiva,
enquanto ele defende que o ponto de partida de qualquer teoria defendível hoje em dia
deve ser o preventivo, o que significa que a prevenção especial (+) e a prevenção geral (-
) devem figurar conjuntamente como fins da pena. Para ele, uma vez que os delitos podem
ser evitados tanto através da influência sobre o particular como sobre a coletividade (uma
verdade que ele jamais coloca em questão), os dois meios se subordinam ao fim último a
que se propõem (a proteção de bens jurídicos) e, logo, são igualmente legítimos.12
Percebe-se que Roxin efetivamente acredita na capacidade da pena para promover
tais milagres metafísicos: embora ele sistematize de forma distinta as leituras de
legitimação da pena, não deixa de sucumbir aos velhos artifícios de justificação do poder
punitivo. É importante que o leitor compreenda que para Roxin a legitimidade do Direito
Penal não representa um problema: simplesmente está dada diante de uma finalidade
social por ele tida como nobre e que por si só justifica a existência do próprio Direito
Penal.
Demonstrando que efetivamente pensa que a pena pode ser um bem, Roxin
considera que quando o condenado – por iniciativa própria – colabora para o
desenvolvimento da execução, ele não contribui para a violação de sua personalidade,
mas para o desenvolvimento dela: ou seja, Roxin acredita na capacidade da pena para
desenvolver a personalidade de alguém através da segregação. Nesse sentido, ele
subscreve ao mito da ressocialização, desconsiderando que a experiência concreta da
realidade vivida nega a abstração da justificação. Como destaca Pavarini, “após dois
séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão
efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo”.13 A
suposta vocação da prisão para transformar o anormal em normal, ou seja, para normalizar
é rotineiramente desmentida, sem que sequer seja necessário aprofundar a discussão em

12
ROXIN, Claus. Derecho penal parte general: tomo I. Fundamentos. La estructura del delito. Madrid:
Civitas, 1997.
13
PAVARINI, Massimo. Punir mais só piora crime e agrava insegurança (entrevista). Folha de São Paulo,
São Paulo, 31/08/2009. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3108200916.htm
Acesso em 02/02/2014.
torno do que, afinal, é esse ser “normal” que seria tão desejável para o bem estar social.
Afinal, o que é – ou poderia ser – ressocializar? Ou mesmo socializar? De que forma o
tempo do condenado deve ser utilizado para atingir um padrão de vida aceitável, curando
o indivíduo que padece dessa enfermidade que é a propensão ao crime? Será uma
concepção ético-religiosa de expiação apta a concretizar o mito burguês da reeducação e
reinserção social do condenado, como provocou Baratta?
As histórias de “sucesso” daqueles que emergem do sistema penitenciário são
histórias de sobrevivência. Não são demonstrações da capacidade da pena para fazer o
bem. A prisão não ressocializa. Ela dessocializa. Ela não integra, mas segrega. Se ela
ensina algo, são estratégias de sujeição e sobrevivência na própria prisão. Como evitar a
reincidência se o “tratamento” prescrito visa a pura e simples neutralização? Como
impedir que a prisão dessocialize e estigmatize, o que ela inevitavelmente faz, mesmo
nos programas mais renomados e cercados de garantias? Como educar para a liberdade
em condição de não liberdade? São perguntas que as ideologias (re) não conseguem
responder, ou que não respondem de forma minimamente satisfatória, ainda mais
considerando o quanto o direito penal opera de forma seletiva. Como observou Baratta, o
direito penal é o direito desigual por excelência.14 Mas curiosamente, é manejado e
vendido como se igualitário fosse. Enfim, são inúmeros os argumentos que demonstram
o quanto a prisão é incapaz de promover quaisquer efeitos benéficos para os apenados.15

14
Para Baratta, “Las relaciones sociales y de poder de la subcultura carcelaria tienen una serie de
características que las distinguen de la sociedad externa, y que dependen de la particular función del
universo carcelario, pero que en su estructura más elemental no son más que la ampliación en forma menos
mistificada y más “pura”, de las características típicas de la sociedad capitalista. Son relaciones sociales
basadas en el egoísmo y en la violencia ilegal, em el interior de las cuales los individuos socialmente más
débiles son llevados a desempeñar funciones de sumisión y explotación” BARATTA, Alessandro.
Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004. pp.370-371. Como indica Bitencourt, “O recluso
adapta-se às formas de vida, uso e costumes impostos pelos próprios internos no estabelecimento
penitenciário, porque não tem outra alternativa. Adota, por exemplo, uma nova forma de linguagem,
desenvolve hábitos novos no comer, vestir, aceita papel de líder ou papel secundário nos grupos de internos,
faz novas amizades etc. Essa aprendizagem de uma nova vida é mais ou menos rápida, dependendo do
tempo em que estará sujeito à prisão, do tipo de atividade que nela realiza, sua personalidade, suas relações
com o mundo exterior etc.”. BITENCOURT, Cezar Roberto, Falência da pena de prisão: Causas e
Alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p.187.
15
Como aponta Bitencourt, “Será possível evitar a produção de danos físicos, e de certos danos psíquicos,
com prisões que contem com uma adequada planta física, com melhores condições de higiene e com
tratamento mais condizente com a dignidade do recluso. No entanto, sempre se produzirão algumas lesões
invisíveis, visto que quando se interrompe o ciclo normal de desenvolvimento de uma pessoa se provoca
dano irreparável. O isolamento da pessoa, excluindo-a da vida social normal – mesmo que seja internada
em uma “jaula de ouro” –, é um dos efeitos mais grave da pena privativa de liberdade, sendo em muitos
casos irreversível. É impossível pretender que a pena privativa de liberdade ressocialize por meio da
exclusão e do isolamento”. BITENCOURT, Cezar Roberto, Falência da pena de prisão: Causas e
Alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p.160.
Também é preciso considerar que as chamadas teorias mistas ou unitárias são
frequentemente atacadas devido ao elevado número de contradições existentes, uma vez
que a proposição de um sistema conjunto acaba ressaltando ainda mais os problemas das
teorias individualmente consideradas.16 Roxin está ciente dessas críticas e de certo modo
as contempla em seu sistema. Pensa que a persecução simultânea de um fim preventivo
geral e especial não representa problema quando a pena concretamente aplicada é
adequada para alcançar ambos os fins da forma mais eficaz possível. Segundo ele, um
conflito entre prevenção geral e especial somente ocorre quando os diferentes fins
perseguidos sugerem diferentes medidas de pena.
Roxin reconhece de forma velada que uma pena prolongada pode ser contrária ao
efeito desejado de ressocialização, o que não deixa de representar uma contradição. Ele
enfrenta a questão apontando que uma primazia da prevenção geral pode frustrar a
finalidade de prevenção especial, enquanto o contrário não ocorre: a preferência por uma
pena reduzida de acordo com a finalidade de ressocialização não elimina a intimidação
social da prevenção geral, apenas a debilita de forma dificilmente mensurável: mesmo
uma pena atenuada funciona de forma preventivo geral. Por outro lado, uma pena jamais
pode ser reduzida a ponto da sanção não ser levada a sério pela comunidade: isso
quebraria a confiança no ordenamento jurídico, o que estimularia a imitação de condutas
criminosas. Para ele o marco mínimo dos tipos penais cumpre a função de "mínimo
preventivo geral", impedindo que a "ameaça não seja levada a sério".
Sua argumentação contrasta com o que sustentam Zaffaroni e Nilo Batista, que
mostram várias situações em que uma pena abaixo do mínimo legal não seria apenas
desejável, mas exigível.17 É um dos muitos momentos nos quais fica evidente a distinção
entre um sistema orientado por uma abstração – a metafísica proteção de bens jurídicos –
e um sistema voltado para a concretude do real, que tem como eixo central a contenção
do poder punitivo.
Roxin considera que o significado da prevenção geral e da prevenção especial é
perceptível de forma diferenciada no processo de aplicação do Direito Penal. Em primeiro
lugar, o sentido da cominação penal é de pura prevenção geral; por outro lado, na
imposição da pena a sentença deve considerar na mesma medida necessidades

16
Ver ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
17
Ver ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
preventivas gerais e especiais; por último, na execução da pena a prevenção especial passa
ao primeiro plano. Não se trata de uma distinção rígida entre fases, mas de uma
ponderação diferenciada: se a cominação penal deve conservar sua função motivadora, a
execução também não pode perder um efeito preventivo geral. Segundo Roxin, é certo
que em casos de contradição entre os dois fins, o fim preventivo especial – de
ressocialização – deve se colocar em primeiro lugar. De qualquer modo, a prevenção geral
justifica por si só a pena, mesmo em casos de fracasso da ressocialização.
Parece claro que Roxin subordina todo o sistema ao âmbito da intimidação
dirigida ao corpo social. Não há dúvida de que sua teoria pode ser nomeada com a
expressão que ele mesmo utilizou para descrever a prevenção geral negativa clássica:
teoria da ameaça penal.
Para Roxin, a teoria unificadora por ele proposta coloca ambos os fins em um
sistema cuidadosamente equilibrado, que oferece um fundamento teórico para a pena
estatal. As próprias palavras do autor mostram o quanto ele está engajado com a questão
da justificação. E aqui se faz necessária uma pertinente e sempre retomada provocação:
interessa aos penalistas comprometidos com a contenção do poder punitivo assumir um
compromisso com a reprodução ideológica do sistema, quando está mais do que claro que
todas as tentativas de combinação entre direito penal liberal e autoritário resultam na
contaminação e neutralização da função limitativa?18
Por outro lado, se Roxin assume inteiramente a prevenção geral (-) e a prevenção
especial (+) como critérios reitores do sistema, rejeita completamente a retribuição: para
ele, a retribuição não pode integrar uma teoria unificadora ou mista como a por ele
proposta, nem mesmo como um fim atendível conjuntamente com a prevenção. Também
não interessa integrá-la com base na ideia de que a "essência" da pena consiste na
causação retributiva de um mal e que seu fim justificador estaria nos objetivos preventivos
do Direito Penal. Roxin considera que instituições jurídicas não tem uma "essência"
independente de seus fins: a "essência" somente se determina a partir dos objetivos que
se quer alcançar.
Peço perdão ao leitor para novamente fazer uma citação referida na introdução:
"será que o teórico penal recebe a visita de alguma entidade misteriosa ou nos sonhos esta

18
Ver Ver ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
o faz chegar a uma revelação acerca do fim, sentido, objeto ou essência do poder
punitivo?"19
De fato, a construção teórica de Roxin parece resistir ao tom irônico empregado
por Zaffaroni: afinal, como visto anteriormente, ele explicitamente rejeita a ideia de uma
essência metafísica, deixando bem claro que pensa que o poder vem do povo e não de
Deus. Mas por outro lado, uma "essência" determinada a partir de fins não verificáveis
na realidade concreta, ou seja, dada a partir da capacidade do Direito Penal para tutelar
bens jurídicos, não deixa de ser também metafísica. Como observou Zaffaroni, o Direito
Penal é estruturado com base em falsos dados sociais e o penalismo insiste em atribuir a
ele funções e missões que não tem como desempenhar. 20
De certo modo Roxin percebe o que está em jogo, mas não é capaz de dar um
passo além do horizonte de justificação. Isso fica nítido quando ele diz que "certo é
somente que toda pena é uma intervenção coercitiva do Estado e um fardo para o
condenado, uma vez que é inerente a ela um elemento repressivo".
Penso que a questão central consiste na luta pela redução dos níveis de dor
provocado pelo aparato em questão.21 Mas para isso é preciso abandonar a crença na
bondade do poder punitivo, algo que definitivamente Roxin não faz. Pelo contrário:
aposta na capacidade do poder punitivo para promover o bem para a coletividade através
da abstração da norma legal ou da imposição concreta do castigo e inclusive sustenta que
o castigo pode ser benéfico para o próprio apenado. O problema é que a história dos
últimos séculos mostra que nada ceifou tantos bens jurídicos quanto o poder punitivo,
embora muitos penalistas permaneçam lhe dando tanto crédito.
Roxin sustenta que é correto dizer que no castigo existe uma "reprovação ético-
social", mas disso não se deduz que a pena é essencialmente retribuição nem tampouco
que é causação de um mal: da desaprovação da conduta também pode se derivar
igualmente a consequência de que deve ser evitada, no sentido de uma influência
ressocializadora. Para ele o elemento da teoria da retribuição que deve ser incorporado é

19
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo:
Saraiva, 2013. p.403.
20
Ver Ver ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR,
Alejandro. Direito penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
21
Como observou Christie, “Despues de la muerte, el encarcelamiento es el ejercicio de poder mas severo
que el Estado tiene a su disposicion. Todos nosotros tenemos la libertad limitada de alguna manera: forzados
a trabajar para subsistir, obligados a subordinamos a nuestros superiores, encerrados en clases sociales o
aulas, prisioneros del nucleo familiar . Pero a excepcion de la pena de muerte y la tortura fisica -medidas
de uso limitado en la mayoria de lós paises de los que trata este libro-, nada es tan extremo en cuanto a
restricciones, degradacion y despliegue de poder como la carcel”. CHRISTIE, Nils. La industria del control
del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p.33.
a culpabilidade como limite da pena: a pena não deve ultrapassar a culpabilidade ainda
que interesses de tratamento, segurança ou intimidação possam ter como desejável uma
detenção mais prolongada. Roxin considera que a sensação de justiça – que representa
muito para a estabilização da consciência jurídico-penal – exige que ninguém seja
castigado mais duramente do que merece e "merecida" é a pena de acordo com a
culpabilidade. Para ele, a culpabilidade deve ser compreendida como o comportamento
injusto apesar da orientação normativa. Ele considera que a culpabilidade deve operar em
sentido normativo, prescindindo da irresolúvel questão do livre-arbítrio e optando por
simplesmente "tratar o homem como se livre fosse". Segundo ele, com isto não se quer
dizer mais do que a capacidade psíquica de uma pessoa de se conduzir por si mesma,
portanto, de reagir psiquicamente sobre as normas, de modo que ela inclua estas em sua
condução do agir. Para Roxin, "não se significa com isto que o agente teria podido
faticamente agir de outra maneira – coisa que na verdade nós não podemos saber – mas
apenas que ele, em caso de capacidade de orientação intacta e assim de ‘apelabilidade’
normativa com aquela dada, é tratado como livre". Ele afirma que esta possibilidade de
condução "na maioria dos casos é dada ao adulto sadio". Quem tem essa qualidade, é
"tratado como livre", e esta seria uma "disposição normativa (...) da qual a valoração
social do problema teórico-cognitivo e científico natural do livre-arbítrio é independente".
Dessa forma, a capacidade de comportamento conforme a norma assume a noção de
pressuposição daquela liberdade não demonstrável, desde que não perturbada por ruídos.
O problema é que essa permeabilidade, apelabilidade ou dirigibilidade ao apelo
normativo parece ter uma identidade com a liberdade de vontade, sucumbindo – pelo
menos em alguma medida – ao mesmo problema.
Outra questão que surge é que por mais que seja conveniente abraçar essa
concepção, não parece que ela seja sustentável ou se coadune com um conceito de
culpabilidade como limite ao poder punitivo. A cisão proposta por Roxin entre lei e
realidade ("como não posso demonstrar a liberdade, assumo que ela existe") somente é
justificável a partir do que se mostra necessário para a aplicação do critério. De fato, não
há como negar que essa proposição resolve o problema de demonstrabilidade (pois
prescinde dela, na medida em que deixa de ser relevante: o homem é tratado como livre).
Mas é uma orientação político-criminalmente aceitável? Se coaduna com direitos e
garantias fundamentais? Esse questionamento conduziria inclusive a críticas mais
abrangentes à diluição proposta por Roxin da culpabilidade em uma categoria maior
chamada responsabilidade, que consideraria inclusive as exigências de prevenção geral.
Sem adentrar o assunto, mas não deixando de fazer breve menção a ele, não parece que a
consideração do que há de mais frágil no pensamento jurídico-penal (as teorias
legitimadoras da pena) possa contribuir para limitar satisfatoriamente o poder punitivo.
Claramente abre uma caixa de pandora para que exigências preventivo gerais operem para
a satisfação da realização positiva do Direito Penal, desde a concretização dos fins de
proteção de bens jurídicos que são designados como função do sistema por Roxin. Nada
poderia estar mais distante da proposta de co-culpabilidade de Zaffaroni, cuja aptidão
para contenção do poder punitivo é mais do que (re)conhecida.
Para Roxin, a adoção da culpabilidade no sentido por ele proposto seria suficiente
para rechaçar eventuais críticas ao emprego do homem como "meio para um fim" – em
prejuízo de sua dignidade –, como é comum que se faça em relação às teorias preventivas.
Roxin reconhece que dentro do marco merecido, toda pena que é imposta ao
sujeito contra a sua vontade supõe que ele seja tratado como meio para um fim que não é
primordialmente seu; que esse fim seja preventivo-social, ou ao contrário ideal
(retribuição compensadora da culpabilidade) não muda em nada o fato de que o
condenado é sempre objeto de poder coercitivo do Estado. Para ele, considerar isso
inadmissível significaria que o Estado teria que abandonar completamente a coerção, algo
do qual não foi capaz nenhum ordenamento jurídico conhecido.
É preciso reconhecer que ele tem alguma razão e tem o mérito de pelo menos
reconhecer a inevitabilidade dessa condição. Mas o exercício desse poder deve se dar
dentro dos marcos da legalidade e para isso é preciso deslocar a discussão dos fins
(argumentos de justificação) para os meios (proposição de mecanismos de contenção e
limitação dos níveis de dor intencionalmente impostos).
Por mais que Roxin diga que é da intensificação da persecução penal que
dependeria a eficácia preventivo geral, o fato é que toda teoria da ameaça penal é
facilmente sequestrável pelos adeptos da hipertrofia legislativa, conduzindo a cada vez
mais mandamentos e proibições penais e motivando a ampliação das penas existentes.
Afinal, se o Direito Penal protege e faz isso com o remédio mais amargo de que o Estado
dispõe, ou seja, a pena, quanto maior a "proteção" penal mais "protegidos" estaremos.
A expansão da criminalização primária já é suficiente para estabelecer um Direito
Penal do terror, mas o reflexo mais agudo consiste na ampliação de forma irrestrita do
poder controlador da criminalização secundária, que não apenas atua com espetacular
nível de seletividade – particularmente na realidade marginal da América Latina – como
afeta as liberdades civis de todos, ainda que atinja de forma mais pronunciada quem está
em situação de vulnerabilidade.
Em última análise, um pensamento jurídico-penal como abstração é vocacionado
para a destruição, pois geneticamente contém a semente do estado de polícia e facilita a
sua expansão.
Roxin resume sua proposta da seguinte forma:
a) a pena serve aos fins de prevenção geral e prevenção especial;
b) é limitada em sua extensão pela culpabilidade, mas pode ficar abaixo deste limite caso
seja necessário por motivos preventivo especiais e a eles não se oponham exigências
mínimas preventivo gerais.
Segundo ele, uma concepção assim estruturada não tem de modo algum um
significado predominantemente teórico: tem também muitas e importantes consequências
jurídicas.

2. A prevenção geral positiva de Hassemer

As inúmeras contribuições de Winfried Hassemer para o Direito Penal são mais


do que reconhecidas. Acadêmico com numerosa e significativa produção e juiz da Corte
Constitucional alemã, teve inclusive algumas obras publicadas no Brasil (Introdução aos
fundamentos do Direito Penal; Direito penal: fundamentos, estrutura, política e
Introdução à criminologia, em parceria com Munõz Conde). Faleceu em 2014 e deixou
um legado que merece todo respeito.
Evidentemente isso não impede que existam discordâncias. A teoria de Hassemer
também é passível de desconstrução como discurso de justificação da pena. Assim como
Roxin, Hassemer também dá crédito ao poder punitivo, justificando a pena através de
uma argumentação que efetivamente responde ao "por que punir?" e com isso funciona
como elemento discursivo de legitimação.
Hassemer introduz a discussão sobre o sentido da pena criticando a retribuição e
o conhecido exemplo da ilha de Kant.22 Para ele a situação retratada por Kant contraria
as bases sociais e humanitárias dos fins preventivos do Direito Penal; não há nenhuma
intenção de ressocialização ou intimidação, nem mesmo de reparação de danos (já que
com a dissolução da sociedade nada disso teria sentido): resta somente a realização da

22
HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Bogotá: Temis, 1999.
justiça. Uma justiça definida por Hassemer como peculiar, rígida, estrita, vingativa e que
visa destruir a vida do condenado. Para Hassemer é uma concepção peculiar do sentido
da pena, elitista e quase arrogante.
Não há dúvida de que a leitura de Kant é inaceitável e quanto a isso certamente é
preciso concordar com Hassemer, ainda que a crítica pudesse contemplar também outros
aspectos. Mas como já vimos desde o princípio, a simples rejeição da retribuição não é
suficiente para a concretização de um horizonte agnóstico de descrença no poder punitivo.
Se por um lado Hassemer critica a retribuição, por outro lado recepciona a
prevenção geral negativa e a prevenção especial positiva, ainda que de forma muito
distinta do que encontramos em Roxin, por exemplo. De qualquer modo, Hassemer
entende que elas não são mais suficientes para esgotar o sentido da pena no contexto
contemporâneo.
Segundo Hassemer, as teorias preventivas prometem a recuperação dos
delinquentes condenados ou a intimidação dos delinquentes potenciais, ou seja, de todos
nós. A sociedade pensa assim e os políticos também pensam assim: baseiam suas posições
na eficácia do Direito Penal e o fazem criando novas figuras penais e endurecendo as
penas, confiando ao Direito Penal a solução de inúmeros problemas que esperam resolver
com a ameaça penal e em casos extremos, com a pena de prisão. Não é por acaso que eu
disse em outras oportunidades que o discurso da prevenção geral negativa é facilmente
cooptado pelos adeptos da maximização do sistema penal. Roxin também reconhece esse
problema, mas assim como Hassemer, foi incapaz de romper com a prevenção geral
negativa e abrir mão dos aspectos de legitimação que ela representa. Como vimos, o
máximo que fez foi colocar a prevenção especial a culpabilidade como limites a tais
necessidades preventivas gerais.
Mas Hassemer considera que não se sustenta mais a ideia de que a pena deva ser
compreendida exclusivamente a partir dos vetores assentados das teorias preventivas.
Para ele, está superada a ideia de que o conceito de ressocialização deve ter relação
somente com o delinquente: a vítima não aparece mais como uma simples figura de papel
que encarna desde o ponto de vista sistemático a lesão ao bem jurídico, mas sim como
uma pessoa viva (alguém de carne e osso), cujos interesses devem ser contemplados –
desde um ponto de vista sistemático – na teoria dos fins da pena. Nesse sentido, para ele
está superada a orientação ao futuro dos conceitos de intimidação e ressocialização: uma
visão retrospectiva que considere os interesses da vítima pressupõe necessariamente
considerar os fatos ocorridos no passado e tê-los em conta para estabelecer a finalidade
da pena, não como lesão abstrata da norma, mas como acontecimento concreto. Hassemer
enfatiza que não recorre ao passado com o sentido vingativo de uma retribuição mas de
uma reparação, o que de algum modo permite falar em uma perspectiva de ressocialização
da vítima.
Segundo Hassemer, a atenção para a vítima agrega algo mais ao conceito
normativo de pena: a satisfação ou reparação da vítima não significa apenas reparação do
dano material causado; com a reparação da vítima é também feita referência a algo
normativo, ou seja, a reabilitação da pessoa lesionada, a reconstrução de sua dignidade
pessoal, a demarcação de uma linha divisória entre o comportamento justo e o injusto, a
constatação ulterior para a vítima de que efetivamente foi vítima (e não delinquente nem
tampouco protagonista de um simples acidente). Para Hassemer, é um sentido da pena
muito diferente da ressocialização e da intimidação.
O dimensionamento apropriado dessa questão exigiria considerações quanto ao
que efetivamente implica a introdução da vítima nos aspectos referidos por Hassemer na
realidade alemã. De imediato os argumentos encontrariam muita ressonância no que se
refere às vítimas da ditadura militar brasileira, por exemplo. Mas Hassemer não fala
somente em situações dessa ordem. O sentido é muito mais abrangente. Sob esse aspecto,
um diálogo com Garland pode ilustrar os reflexos na realidade estadunidense, que por
sinal são muito semelhantes ao que testemunhamos no Brasil.23
Garland mostra como a preocupação com a vítima começou a interferir na
individualização da pena, que passou a ser determinada muito mais de acordo com o
sofrimento da vítima do que de acordo com a conduta do criminoso. Muitas leis foram
batizadas com o nome de vítimas. Qualquer preocupação com o delinquente começou a
ser vista como uma manifestação de desprezo pelo sofrimento da vítima. O criminoso
passou a ser representado de forma estereotipada e distante da pessoa real. Os interesses
dos criminosos (quando levados em consideração) são agora vistos como essencialmente
opostos aos do público, conformando uma “autorização” tácita para a desconsideração de
seus direitos. A lógica do valor do criminoso “zero” fez com que o espaço fosse
preenchido pela vítima: se não há vítima identificável, refere-se uma vítima coletiva: a
“comunidade” e sua “qualidade de vida”.
Nesse sentido, de acordo com Hassemer, no Direito Penal não há apenas uma
pessoa em particular que foi lesionada: a categoria vítima está configurada de forma mais

23
GARLAND, David. A Cultura do Controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de.
Janeiro: Revan, 2008
ambiciosa e maior. "Vítima" de um delito somos todos nós, naturalmente não em sentido
empírico mas em sentido normativo, já que o objetivo consiste em assegurar normas
fundamentais. Para Hassemer, o Direito Penal não se ocupa somente da relação entre
delinquente e vítima. Segundo ele, o que poderia ter alguma importância para a amizade
e o amor (mesmo sobre eles o autor mostra dúvidas), não serve desde logo para o Direito
Penal: na "relação" penal o delinquente e a vítima não estão sozinhos, pois todos somos
afetados, mesmo quando o fato não é percebido pela coletividade. O Código Penal protege
bens jurídicos, cujo reconhecimento é essencial para a convivência normativa e social de
nossa configuração democrática. A vida em sociedade hoje em dia seria impossível de
outra forma.
Apesar de ter elaborado um respeitável livro de introdução à Criminologia com
Munõz Conde, Hassemer não consegue escapar do limite discursivo que é a atribuição de
uma função de proteção de bens jurídicos ao Direito Penal. Como já referi em outras
oportunidades, essa premissa não apenas parte de falsos dados sociais, como identifica o
Direito Penal com a totalidade da cultura.24
Segundo Hassemer, o delito ataca normas de comportamento que pretendem
proteger tais bens jurídicos, o que no caso concreto as deixa sem efeito. Para ele, este não
é um problema exclusivo da vítima, mas de todos: as normas de comportamento somente
podem sobreviver quando seu descumprimento é corrigido de forma pública e enérgica,
quando se deixa claro que não vamos tolerar qualquer violação da norma, julgando essa
violação e preservando a norma de qualquer tipo de negação.
Com certeza o leitor tem subsídios suficientes para fazer as conexões com Garland
e perceber como essa argumentação é facilmente passível de apropriação por discursos
que alavancam práticas punitivas típicas de um estado de polícia. Não parece aceitável
que a vítima seja incorporada ao discurso penal para legitimar o exercício autoritário do
poder punitivo estatal, quando foi justamente o poder punitivo que historicamente
sequestrou o conflito e com isso eliminou as possibilidades de sua efetiva resolução.25 Se
a vítima deve ser reintroduzida e com isso revertida a sua expulsão, não deve ser como
argumento de legitimação, mas como outro horizonte de significação, como propõem os
defensores da justiça restaurativa.

24
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, , ALAGIA, Alejandro,. SLOKAR, Alejandro. Direito
penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
25
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, , ALAGIA, Alejandro,. SLOKAR, Alejandro. Direito
penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010
Para Hassemer, vista assim, a sanção penal se orienta tanto para o passado quanto
para o futuro: a sanção penal é uma resposta que corrige a violação de uma norma
imprescindível para a vida em sociedade. Para ele, o Direito Penal estabelece um modelo
de normas de comportamento fundamentais e irrenunciáveis e as impõe. Os fins
preventivos da pena (ressocialização do delinquente e intimidação da coletividade) têm
seu lugar (ainda que modesto) neste contexto, pois ambos são meios de assegurar normas
fundamentais. Hassemer chama seu ponto de vista sobre a questão da pena de prevenção
geral positiva (que não deve ser confundida com a prevenção geral positiva de Welzel).
É evidente que poderia se dizer em defesa de Hassemer que o Direito Penal por
ele defendido é mínimo. E isso é mais do que conhecido pelas valiosas discussões do
autor sobre Direito Penal simbólico, bem como é visível pela proposta de um Direito
Interventivo. Mas a realidade concreta de um Direito Penal hipertrofiado como o
brasileiro torna de escassa valia a contribuição de Hassemer para quem argumenta com
intenções de hostilizar o poder punitivo. Penso que é mais um caso de necessário cuidado
para evitar que construções teóricas desenvolvidas para outros contextos sejam
importadas de forma impensada e irrefletida para a nossa realidade marginal, que
definitivamente exige uma maior ênfase no aspecto de contenção do poder punitivo
necessário para a promoção da justiça social e combate da seletividade do sistema penal.

3. O utilitarismo renovado de Ferrajoli

O chamado garantismo de Luigi Ferrajoli chegou de forma significativa ao Brasil


no início do milênio. Recepcionado festivamente pelos penalistas brasileiros entusiastas
da democracia, foi submetido a um processo de estigmatização nos anos posteriores que
transformou a expressão "garantista" em etiqueta com conotação visivelmente pejorativa.
Os garantistas foram considerados verdadeiras pragas: para quem estava acostumado com
o status quo antidemocrático, o garantismo era visto como uma epidemia que precisava
ser combatida e de forma ferrenha. O discurso que associava garantismo com impunidade
se disseminou de tal maneira que a proposta de um "juiz de garantias" praticamente foi
sepultada simplesmente com base na nomenclatura escolhida.
De qualquer modo, não tenho intenção de estabelecer aqui uma abordagem
extensiva do garantismo. A proposta é bem mais modesta: identificar a teoria de
justificação da pena presente na obra de Ferrajoli, ainda que de forma sintética. Como se
sabe, Direito e Razão: teoria do garantismo penal é o produto mais acabado da construção
teórica do Direito Penal moderno. Ferrajoli efetivamente sistematizou os postulados da
narrativa jurídico-penal que emergiu no século XVIII, concebendo um sistema garantista
por ele tido como condizente com o Estado Democrático de Direito contemporâneo.
Como herdeiro dessa significativa tradição, Ferrajoli pode ser visto como expressão
máxima tanto de suas qualidades – e de fato, não são poucas – como também de seus –
muitos – limites discursivos, particularmente no que se refere ao aspecto de
legitimação/deslegitimação do poder punitivo. A antinomia instalada por Beccaria entre
legitimação e contenção do poder punitivo também é visível na estrutura de pensamento
de Ferrajoli, como também são visíveis muitas outras incongruências – ou no mínimo
reservas – que de algum modo comprometem a vocação democrática da teoria. Poderia
citar, por exemplo, a manutenção da expressão "busca da verdade", bem como de um
conceito de verdade como correspondência, a ideia de contrato social como metáfora da
democracia e muitas outras interrogações. Mas por uma questão de recorte, o objeto da
análise aqui proposta – de forma sucinta e compatível com um texto de pequenas
dimensões – é o utilitarismo renovado de Ferrajoli.26
Ferrajoli critica o utilitarismo clássico, estruturado com base no viés preventivo.
Ele reconhece que o utilitarismo sucumbe facilmente a tentativas de autolegitimação
autoritária e argumenta que ele acaba fornecendo critérios de deslegitimação.
A questão que imediatamente surge é mais que óbvia: o utilitarismo renovado não
é também vulnerável a tais críticas? Eu particularmente penso que sim: um sistema como
o proposto por Ferrajoli também é passível de desconstrução, tanto pela via abolicionista
como pela leitura do realismo marginal de Zaffaroni, ou mesmo da criminologia de verniz
crítico.
Ferrajoli estrutura a lógica de seu sistema em torno de dois vetores: a) o máximo
bem-estar dos não desviantes; b) mínimo mal-estar necessário dos desviantes. Desse
modo, a intenção preventiva compreenderia tanto a prevenção de delitos como de penas
informais, sendo estes os objetivos justificantes do Direito Penal. Uma vez que ele
também acaba dando crédito ao aspecto de prevenção de delitos e com isso, designando
ao Direito Penal funções positivas, logicamente torna-se receptáculo de críticas
destinadas a Roxin e Hassemer, como visto anteriormente. Não há como evitar a
conclusão de que Ferrajoli efetivamente justifica o exercício do poder punitivo, uma
estratégia que considero particularmente contraproducente. De qualquer modo, não se

26
Ver FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002.
pode culpar Ferrajoli por pensar assim. Um autor comprometido com a tradição na qual
ele está inserido dificilmente poderia dar um passo além de algo que é tão constitutivo do
Direito Penal moderno. Por outro lado, a catástrofe brasileira precisa de algo mais do que
justificacionismo e por isso tenho dito insistentemente que é necessário conceber o
sentido do Direito Penal de acordo com a especificidade da nossa realidade marginal. E
para isso, é preciso abandonar o fetiche pelo pensamento importado e desconectado com
os problemas locais, o que exige uma atitude positivamente decolonial, que deve partir
de uma rejeição à tentação que representa acreditar na capacidade do Direito Penal para
proteger, tutelar e prevenir danos a bens jurídicos. Como já repeti inúmeras vezes, o poder
punitivo é o maior agente de destruição de bens jurídicos que a história recente da
humanidade conheceu, não só na América Latina como no mundo.
Ferrajoli pensa de forma bastante diferente. Para ele, o desenvolvimento do
Direito Penal se dá como negação da vingança privada. Trata-se de uma argumentação
rotineiramente desenvolvida nos cursos, manuais e tratados de Direito Penal, o que – com
o perdão da palavra – conforma um verdadeiro delírio que contraria de forma flagrante a
história de institucionalização do poder punitivo.27 O autor nutre uma visão romântica do
Direito Penal, típica de quem tem uma percepção muito mais positiva do advento da
modernidade do que permitiria a realidade concreta das práticas punitivas
contemporâneas.
Ferrajoli considera que a função do Direito Penal guarda relação com um papel
positivo que ele é chamado a desempenhar: para ele, as proibições penais são dirigidas
para a tutela de direitos fundamentais. Em um modelo de Direito Penal mínimo, uma
argumentação nesse sentido certamente despertaria maior simpatia. Mas a legislação
penal contemporânea caminha em direção tão apartada da ultima ratio que pensar assim
parece quase que uma alucinação de quem está tão preocupado com o dever ser que acaba
se esquecendo do próprio ser. E o pior de tudo é o quanto essa ideia é facilmente
sequestrável pelo pensamento autoritário, como elemento de legitimação de práticas
típicas de um estado de polícia. Não é por acaso que a expressão garantismo integral
ganhou tanto espaço recentemente. Ferrajoli não está livre deste mal que é a crença na
bondade do poder punitivo e por isso vários crentes encontraram nele um inesperado lugar

27
Ver FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003 e
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, SLOKAR, Alejandro e ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal: parte general.
Buenos Aires: Ediar, 2002.
de conforto, o que vale inclusive para devotos dessa religião que no passado satanizaram
o garantismo.
Segundo Ferrajoli, os objetivos justificantes do Direito Penal podem ser
visualizados no processo: acusação e defesa se confrontam em contraditório diante de um
juiz que deve ser um terceiro imparcial. A primeira está interessada na defesa social, na
prevenção e punição de delitos, enquanto a segunda na defesa individual e prevenção de
penas arbitrárias. Que não se tenha uma impressão equivocada: é evidente que Ferrajoli
não concordaria com a apropriação discursiva que é feita de sua teoria. Mas não é difícil
perceber que nos deparamos aqui com um dos núcleos do discurso autoritário: a ideia de
que no processo temos uma espécie de confronto entre os interesses do acusado e os
interesses da sociedade, que facilmente degenera na falácia de que a forma e até mesmo
as garantias podem ser flexibilizadas em nome dos interesses de dita "sociedade" ou da
opinião pública (na verdade, opinião publicada). Caminham nessa direção tanto o
famigerado in dubio pro societate como uma certa leitura da proporcionalidade que é
particularmente apta a capacitar o decisionismo típico de um magistrado travestido de
inquisidor, algo que certamente não teria a simpatia de Ferrajoli.
Ferrajoli reconhece que existem objetivos e interesses conflitantes, uma vez que a
possibilidade de prevenção de delitos é efetivamente mínima, enquanto que a
possibilidade de prevenção de penas arbitrárias é máxima, desde que os postulados do
sistema por ele proposto sejam seguidos, é claro. Logicamente essa consideração
deve(ria) demarcar a ênfase do funcionamento do sistema penal, que para ele tem
capacidade para desempenhar uma dupla função proibitiva do exercício das próprias
razões e com isso proteger tanto possíveis ofendidos como acusados (e inocentes
ameaçados). Ferrajoli considera que a "tutela de valores e direitos fundamentais e sua
satisfação mesmo contra interesses da maioria é o objetivo justificante do DP". Isso
compreende: a) proibição de proibições e punições arbitrárias; b) Respeito às regras do
jogo; c) preservação da dignidade da pessoa do imputado.
Segundo Ferrajoli, a justificação do Direito Penal só é possível se a soma das
violências (delitos, vinganças e punições arbitrárias) que ele é capaz de prevenir é
superior à violência dos delitos não prevenidos e penas cominadas. O próprio Ferrajoli
considera que um cálculo dessa espécie é impossível, restando para ele a pena justificada
como mal menor e, logo, necessária.
De minha parte, não há como não se sentir insatisfeito com a conclusão do
argumento. A provocação que merece ser esboçada aqui é mais do que clara: qual o nível
de benefício que extraímos de um sistema como o nosso – que sem dúvida nem
remotamente se assemelha ao que Ferrajoli define como garantismo – desde a perspectiva
do critério proposto pelo autor? Mesmo que a pergunta não possa ser respondida – até
porque a cifra negra sempre colocará em questão o seu próprio fundamento – a realidade
vivida por um sistema com o nível de seletividade e brutalidade do brasileiro parece fazer
com que ele seja irremediavelmente vítima de uma profunda deslegitimação. Sem dúvida
isso parece mostrar o quanto é irresponsável a tentativa de legitimação do sistema penal
brasileiro com base na teoria de Ferrajoli e mais ainda, as tentativas de fazer com que ele
atue de forma ainda mais incisiva com base em "leituras inovadoras" de tal teoria.

4. A pena como bem e direito indisponível - Faria Costa

De todos os autores discutidos aqui, Faria Costa é sem dúvida o que causa maior
perplexidade e que certamente exigirá uma desconstrução mais cuidadosa do que os
limites de um texto como este permite. Representante da excelência típica dos penalistas
portugueses, Faria Costa é um erudito e um acadêmico de primeira linha. Não é um mero
dogmático: conecta o universo jurídico-penal com outros saberes e oxigena a discussão
sobre os fundamentos da pena a partir de conexões com a antropologia, a filosofia, a
história e a hermenêutica filosófica.
E apesar de tudo isso, não só não foi capaz de romper com o justificacionismo
como propôs uma robusta releitura da retribuição, que embora possa merecer respeito
pela consistência da construção, não escapa da armadilha que é a tentativa de legitimação
do que é ilegitimável por definição.
Faria Costa não esconde o jogo. Coloca as cartas na mesa logo no princípio da
argumentação. Propõe uma função neo-retributiva de fundamento onto-antropológico
para justificar a existência das penas de forma consistente e poderosa.28 Nesse sentido,
ele se diferencia de todos os autores anteriormente discutidos, que rejeitam a retribuição
e abraçam diferentes leituras preventivas, como tivemos a oportunidade de observar.
De qualquer modo, para que o leitor não interprete mal o que é dito, é importante
deixar claro que a questão aqui é de escolhas: de posicionamentos político-criminais e de
estratégias condizentes com tais posicionamentos. Não se trata pura e simplesmente de
certo e errado, mas de tomada de posição. Sendo assim, também não escondo o jogo:

28
COSTA, José de Faria. Linhas de direito penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra:
Coimbra Editora, 2005.
lamento que alguém ainda possa comprometer seu tempo – ainda mais um acadêmico
com a erudição de Faria Costa – com uma tarefa tão odiosa como a justificação da pena.
Não que isso faça necessariamente de mim um abolicionista, caso um leitor apressado
queira etiquetar. Não assumo integralmente o rótulo, ainda que tenha manifesta simpatia
pelo abolicionismo. Mas decididamente penso que a pena deve ser assumida como
realidade concreta de violência a ser contida e que estrategicamente é preciso renunciar
aos projetos de legitimação, que invariavelmente acabam sendo catalisadores de
destruição.29 No caso de Faria Costa, a argumentação chega a causar aflição, já que o
autor acerta inúmeras vezes, mas acaba igualmente sucumbindo à crença na bondade do
poder punitivo, como também sucumbem Roxin, Hassemer e Ferrajoli, como discutido
anteriormente. Mas nele há algo mais. Impressiona o quanto ele Faria Costa é agudo no
aspecto de justificação. Certamente muito mais ousado do que qualquer outro autor
contemporâneo, salvo melhor juízo.
Faria Costa refere que o problema da pena exige uma conexão entre direito penal
e filosofia penal. Ele inclusive rejeita os normativismos exacerbados típicos de
funcionalismos autopoiéticos, conducentes a inúmeros problemas. Para ele, o problema
da pena é metajurídico. Quanto a isso, não é possível discordar: o problema da pena exige
argumentos que extrapolam o âmbito jurídico. Mesmo autores que escolhem ignorar esses
aspectos inevitavelmente acabam se referindo a eles, visto que todos os discursos sobre a
pena remetem a realidades externas ao aspecto normativo, referindo finalidades
comprováveis (ou não) na prática, como já discutido nas linhas anteriores.
Faria Costa considera inadequada a acusação de metafísica e irracional que é feita
ao princípio da retribuição. Ele expõe que o debate sobre a pena costuma ser apresentado
a partir de uma oposição entre retribuição (rotineiramente relacionada à tradição, passado
e conservadorismo e, logo, com conotação pejorativa) e prevenção (associada a
progresso, futuro e visão aberta, com conotação positiva). Faria Costa demonstra – diga-
se de passagem, acertadamente – que foram muitos os Iluminismos e que a retribuição
também fez parte do horizonte compreensivo moderno. A tarefa por ele empreendida é
mais do que clara: o autor está propondo o resgate da retribuição no contexto
contemporâneo.
Será a retribuição passível de redenção? O juízo, como sempre, é do leitor. A
minha opinião já foi assinalada desde o princípio desta exposição. Mas vejamos como

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Ver trabalhos de Zaffaroni, Nilo Batista e Salo de Carvalho, todos fortemente recomendados.
Faria Costa constrói o argumento. Por mais que se possa discordar das conclusões, é
preciso dizer reconhecer que a retórica é formidável.
Faria Costa indica que rotineiramente dizemos que o Direito Penal é sancionador,
sendo direcionado para o crime, que é entendido como um mal, ou seja, um desvalor
comunitariamente assumido. E qual é a resposta que é dada à prática deste mal? Um outro
mal: a pena. Sendo assim, ele pergunta: mas neste caso não será o direito penal um
instrumento de potenciação do mal, que promoveria uma verdadeira adição de males?
Uma leitura de deslegitimação poderia facilmente caminhar em tal direção. Mas
para Faria Costa, este não é um caminho aceitável, já que o que ele propõe é uma
justificação "poderosa" para a pena. Sendo assim, para ele é inevitável concluir que a
pena não deve ser percebida como um mal.
E como deve ser compreendida então?
A passagem a seguir é bastante esclarecedora:
A estrutura normativa do direito, a estrutura normativa do direito penal, muito
embora se mostre também e indiscutivelmente como dinâmica e historicamente situada,
logo, de geometria variável, perfila-se dá mesma maneira com igual intensidade, através
de um modo-de-ser que o seu segmento principal não pode deixar de ser visto como
estabilização de conflitos. O direito penal avança e recua pelo conflito, pela ruptura. Pelos
conflitos de valores. Pela violação, pela ruptura de valores comunitariamente assumidos
como mínimo ético. O direito penal constrói-se, pois, entre outras coisas, pela resposta
legislativa, historicamente legitimada, à conflitualidade e à ruptura violadora. Tal
conflitualidade e ruptura violadora são expressões fenoménicas da perversão em que
mergulha o nosso primevo modo-de-ser. A uma relação de cuidado-de-perigo de
fundamento onto-antropólogico – que é aquela que é matricial ao nosso modo-de-ser com
os outros – corresponde, no patamar da dimensão fenoménica, pura e dura, a relação ético-
existencial de um "eu" concreto, de carne e osso, que, precisamente, pela sua condição,
só pode ser se tiver o "outro", cuidar do "outro", cuidar de si cuidando do "outro" e
cuidando este, cuidar de si. Só que essa relação de cuidado pode romper-se. E tantas vezes
se rompe. Mais. De certa maneira, a relação só tem sentido se admitir a ruptura. Todavia,
e ponderando meticulosamente tudo o que se acaba, por último, de afirmar, a ruptura
dessa relação primeva constitui também uma perversão,uma inversão, um passar, um
exceder, uma desconformidade, uma desmedida. Ora, é este lado negativo da relação que
constitui o elemento ou segmento fundante para a existência de um crime. E esse
momento de ruptura, de fractura, de convulsão no cuidado genésico só se refaz com a
pena. A aplicação da pena, nesta compreensão fundante, repõe o sentido primevo da
relação de cuidado-de-perigo. A nossa condição é sempre uma condição de perigo,
enquanto manifestação, entre outros dados, de incompletude, de projecto, ser em aberto.
Se somos tudo isso, não somos necessariamente acabamento, consumação, fechamento.
Porém, a abertura, o projecto, a incompletude faz de nós seres' frágeis. Seres de cuidado,
Seres de cuidado-do-perigo. O "eu", por isso, para "ser", exige o cuidado do "outro". Mas
se há cuidado é porque há um magma, uma turbulência que nos faz frágeis. Fragilidade
dó "eu" para consigo próprio. Fragilidade do "eu" para' com o "outro'. Fragilidade do "eu"
para com o mundo. E essa fragilidade assume dimensão de ruptura quando há um crime.
Aí dá-se o desnudamento que exige a compensação de uma pena para que o equilíbrio se
refaça. Porque também só desse "eu" posso ver, olhar e amar o "outro". Porque se não
houver pena impossível reconstruir a primitiva relação de cuidado-de-perigo. A pena, se
quisermos, assume assim, o papel da reposição, da repristinação, e, por conseguinte, da
eficácia de um bem. Ou, se ousarmos ser ainda mais radicais, ela é um bem.
Evidentemente aqui surgiriam muitas oposições, que exigiriam um artigo
exclusivamente dedicado ao pensamento de Faria Costa. Mas por uma questão de recorte,
irei delegar a interlocução ao leitor. A ideia de que a pena é um bem certamente motivaria
inúmeras discussões, assim como outros pontos que serão enfrentados oportunamente.
Faria Costa sustenta que a pena não tem relação com a "natureza das coisas" ou com um
“direito natural de tonalidade quase divina”. Assumindo a pena como um bem, ele
considera que existe um direito a ser punido com a pena justa, que não se confunde com
o direito à pena de Hegel, como não se confunde com um desencarnado imperativo
categórico Kantiano.
Finalmente, ele afirma que o direito a ser punido com a pena justa não se confunde
com a possibilidade de abrir mão do direito, uma vez que é um direito indisponível,
verdadeira manifestação da dignidade da pessoa humana.
Hora de parar e respirar.
Aqui a tentação é grande: o autor parece se aproximar dos meus próprios pontos
de vista, pelo menos dentro do que é possível em um horizonte imediato de ação. Se a
pena é uma realidade concreta, que ela ao menos seja justa, ou seja, que tenha
conformidade legal. Que respeite as leis de execução da pena de um dado país e,
especialmente os direitos fundamentais do apenado.
No entanto, é preciso resistir ao artifício de sedução. Há uma grande distância
entre a proposta de deslocamento da discussão dos fins para os meios e, logo, para um
horizonte de redução de danos e a assunção de uma crença na pena enquanto bem dado a
restaurar uma dada relação de cuidado-de-perigo pervertida. A distância é inequívoca e
pode ser facilmente contemplada na conclusão do artigo do próprio Faria Costa.
Em apertada síntese trazida no corpo do texto, ele sustenta que o direito à pena
justa é um direito especial, que:

a) é indisponível;
b) tem a natureza de um direito fundamental;
c) o seu sentido jurídico encontra-se na prossecução do bem da pena, rectius, no bem que
a execução concreta da pena pode propiciar;
d) o limite está em que a sua plenitude de realização se atinge ou, consegue, precisamente,
com o cumprimento integral da pena.

Como compaginar tais fundamentos com a realidade concreta da pena vivida? É


a pergunta que não quer calar. O autor parece falar de outra pena, que certamente não é
que conhecemos. E aqui não me refiro ao contexto catastrófico da América Latina, que
daria ainda mais peso a essa consideração. E o mais curioso é que no final do artigo Faria
Costa sustenta que a sua construção representa uma espécie de porto seguro diante do que
pode representar o direito penal do inimigo.
Será mesmo?

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