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A culpabilidade costuma ser tratada sob três aspectos distintos: como princípio
que proíbe a responsabilidade objetiva, como exigência do Direito Penal moderno e do
Estado Democrático de Direito; como fundamento da pena, impondo uma série de
requisitos dogmáticos (que constituem os elementos positivos específicos do conceito
de culpabilidade: imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade da conduta) e
como limite da pena, impedindo que a pena seja imposta além da medida prevista pela
própria ideia de culpabilidade, o que não exclui outros critérios.1 Enquanto elemento
integrante da teoria do delito, ou seja, como fundamento da pena, a culpabilidade está
fundada em torno da ideia de reprovabilidade, ou seja, de juízo de censura, que
necessariamente deve recepcionar a culpabilidade como princípio, vedando
completamente a responsabilidade objetiva.
No entanto, embora a reestruturação do conceito de culpabilidade como
culpabilidade normativa pura – notadamente com Welzel – tenha representado um
esforço notável de readequação dogmática que acertadamente deslocou o dolo e a culpa
para o injusto, isso não significa de modo algum que o conceito esteja suficientemente
(re)definido: existe um espaço de discricionariedade gigantesco, particularmente no que
se refere ao objeto da consciência do injusto – no erro de proibição – que dá enorme
margem para o transbordamento do dique de contenção do poder punitivo2, fazendo
valer o que provocativamente chamamos de moralismo da reprovação. Não é por acaso
que Cirino dos Santos sustenta que a concepção de culpabilidade como fundamento da
pena deve ser abandonada e substituída por uma concepção de culpabilidade como
limitação do poder de punir: a culpabilidade como fundamento da pena legitima o poder
do Estado contra o indivíduo, enquanto a culpabilidade como limitação da pena garante
1
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo, Saraiva: 2009. p.16
2
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.p.39.
a liberdade do cidadão contra o poder do Estado.3 A questão é como (re)definir um
conceito de culpabilidade apto a cumprir essa função e reconhecer a complexidade e
heterogeneidade do corpo social.
É notório que o conceito de culpabilidade está em crise, tanto no que se refere ao
seu pressuposto – o livre-arbítrio4 – quanto no que diz respeito ao moralismo subjacente
a própria ideia de reprovação, particularmente no que se refere ao erro de proibição: o
objeto da consciência do injusto é compreendido por grande parte da doutrina como
discordância entre comportamento real e ordem comunitária e não como conhecimento
de contrariar um mandamento ou proibição penal. Ironicamente, isso faz com que a
culpabilidade normativa pura não faça jus a própria nomenclatura, já que
paradoxalmente o critério não é o conhecimento da punibilidade do fato, enquanto
prescrição legal.
É nesse sentido que propomos uma discussão que coloca em questão o
moralismo da reprovação inerente ao conceito de culpabilidade, particularmente na
questão do erro de proibição. Se a culpabilidade – como elemento integrante da teoria
do delito – deve servir ao propósito de contenção do poder punitivo que é exigível ao
Direito Penal no Estado Democrático de Direito, ela não pode autorizar juízos morais
que desconsideram a diferença do outro e a heterogeneidade do corpo social. No
mínimo ela deve se mostrar conducente a frear – e não a potencializar – os espaços
potestativos de subjetividade do juiz, pois em última análise o juízo de censura será
sempre seu: contra um outro identificado como inimigo e desconforme ao padrão do
“homem médio”, ou como exercício interpretativo de encontro com a alteridade e
compreensão de seu lugar original de fala.
Devemos estar atentos para a proliferação desses espaços potestativos, pois eles
facilmente podem se mostrar conducentes a perpetuar o substancialismo nas práticas
punitivas, reafirmando o estoque de imagens lombrosianas da criminalidade, como é
comum em um sistema que notoriamente opera com alto índice de seletividade. Se
mesmo inconscientemente é aceita a ideia de que as proibições e mandamentos penais
conformam uma espécie de substrato ético, como se fossem o reflexo acabado da
homogeneidade cultural do corpo social, o juízo de censura acaba mostrando-se
conducente a concretizar positivamente – através da pena – o programa legislativo
3
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.288.
4
KHALED JR, Salah H. Justiça social e sistema penal. 2ª edição revista e reorganizada em volume
único. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
oficial, como se ele fosse equivalente, representativo ou até mesmo responsável pela
fundação e reafirmação da nossa moral, atuando como pedagogia social. Sob essa ótica,
o juiz atua como braço armado do programa oficial, enquanto o que interessa é o
desenvolvimento de estratégias para a contenção de danos que ele inevitavelmente
provoca ao ser deslocado da normatividade para a realidade, através da pena. A
culpabilidade – assim como os outros elementos do conceito analítico de crime – deve
ser acima de tudo limitação do poder punitivo.
5
ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro V.1:
parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.518
6
GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral: volume 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2007. p.558.
7
BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de janeiro: Forense, 2008. p.201.
se um dos elementos, resta impossibilitada a reprovação e, por conseguinte, a
configuração do crime, devendo ser analisados no caso concreto.8
No entanto, é forçoso reconhecer que Welzel não foi capaz de superar as aporias
do conceito de culpabilidade. Se a reprovabilidade se dirige à configuração da vontade e
se somente é possível reprovar ao agente como culpabilidade, aquilo a respeito do qual
pode algo voluntariamente, o pressuposto básico para esse juízo de censura é
necessariamente o livre-arbítrio do homem. Sendo assim, embora seja um juízo de
ordem normativa, a reprovabilidade inegavelmente depende de critérios que extrapolam
a mera normatividade, o que representa um problema substancial para dogmática
jurídico-penal.
Não é por acaso que a culpabilidade é o conceito mais debatido e questionado
do conceito analítico de crime. Como referem Zaffaroni e Pierangeli, ainda que em toda
teoria do delito esteja presente o homem, é na culpabilidade que o enfrentamos mais do
que nunca.9 Segundo Cirino dos Santos, “o problema central da culpabilidade é o
problema do seu fundamento – o chamado fundamento ontológico da culpabilidade –
acentuado pela redefinição da culpabilidade como reprovabilidade: a capacidade de
livre decisão do sujeito”.10 A culpabilidade tem como postulado uma determinada
concepção de homem, residindo aí o problema central desse elemento da teoria do
delito, uma vez que a tese da liberdade da vontade pressuposta pelo conceito é
indemonstrável .11 Logo, pode ser percebido que o conceito de culpabilidade baseado no
poder de agir de outra maneira é um conceito alicerçado em premissas de difícil
sustentação. Para Bitencourt, “o livre-arbítrio como fundamento da culpabilidade tem
sido o grande vilão na construção moderna do conceito de culpabilidade e, por isso
mesmo, é o grande responsável pela sua atual crise”.12 Para Hassemer, sem a condição
positiva da capacidade humana de responsabilidade não seria lógico e nem justo o juízo
de censura da culpabilidade e a aplicação de pena, decorrendo daí a necessidade de
estabelecimento de um critério dogmático nesse sentido.13
8
BRANDÃO, Cláudio, Curso de direito penal: parte geral – 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.258
9
ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro V.1:
parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.517.
10
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.287
11
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. P.287.
12
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo, Saraiva: 2009. p.357.
13
HASSEMER, Winfried. Culpabilidade. In: Revista de Estudos Criminais, 2001, n.03. p.19.
A questão do livre-arbítrio costuma ser revolvida através do emprego de uma
“suposição de liberdade”.14 Nesse sentido, para Roxin, a culpabilidade deve ser
compreendida como o comportamento injusto apesar da orientação normativa. Com isto
não se quer dizer mais do que a capacidade psíquica de uma pessoa de se conduzir por
si mesma, portanto, de reagir psiquicamente sobre as normas, de modo que ela inclua
estas em sua condução do agir. Segundo Roxin, “não se significa com isto que o agente
teria podido faticamente agir de outra maneira – coisa que na verdade nós não podemos
saber – mas apenas que ele, em caso de capacidade de orientação intacta e assim de
‘apelabilidade’ normativa com aquela dada, é tratado como livre”..15 Roxin afirma que
esta possibilidade de condução “na maioria dos casos é dada ao adulto sadio”. Quem
tem essa qualidade, é “tratado como livre”, e esta seria uma “disposição normativa (...)
da qual a valoração social do problema teórico-cognitivo e científico natural do livre-
arbítrio é independente”.16
Dessa forma, a capacidade de comportamento conforme a norma assume a
noção de pressuposição daquela liberdade não demonstrável, desde que não perturbada
por ruídos. O problema é que essa permeabilidade, apelabilidade ou dirigibilidade ao
apelo normativo parece ter uma identidade com a liberdade de vontade, o que parece
conduzir ao mesmo problema, de modo que o impasse permanece. Além disso, Roxin
dilui a culpabilidade dentro de uma categoria maior, a responsabilidade, em que convive
também a exigência de prevenção geral negativa. Certamente que essa redefinição não
parece conducente à contenção do poder punitivo, já que a prevenção geral conforma
uma teoria de justificação da pena. Temos que encontrar outro caminho.
Precisamos de um conceito que rompa com a barreira da
normalidade/anormalidade e que efetivamente reconheça a diferença, mostrando-se apto
a conter a violência. É nesse sentido que ainda há um aspecto crucial a considerar, que
está para além da questão da própria questão da liberdade, ainda que não prescinda dela:
o conceito de culpabilidade não exige apenas que o homem seja livre, mas que ele tenha
plenas condições de exercício dessa liberdade, que deve ser informada pelo
conhecimento real ou ao menos possível da ilicitude da conduta.
14
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p.480-
481.
15
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del
delito. Madrid: Civitas, 1997. p.807.
16
GÜNTHER, Klaus. Responsável pelos próprios atos? O Direito Penal e o conceito de culpabilidade
– Uma velha discussão com novos impulsos. Trad. de Pablo Rodrigo Alflen. In: Forschung Frankfurt
4/2005. p.28.
Em outras palavras, somente é possível a reprovabilidade quando o autor teve
condições de conhecer – mesmo que potencialmente – a ilicitude de sua conduta:
somente assim o autor pode formar sua vontade em conformidade com o direito e não
antijuridicamente. Se lhe era possível conhecer a ilicitude, a reprovação é mais branda
do que se a conhecesse, mas se não lhe era possível, o autor deve ser exculpado: se
elimina completamente a pena e a reprovação.17 Para Cirino dos Santos, a consciência
da antijuridicidade é o conhecimento concreto do valor que permite ao autor imputável
saber, realmente, o que faz, excluída ou reduzida em casos de erro de proibição.18
O que nos interessa em particular aqui é o chamado erro de proibição direto, ou
seja, o erro que tem por objeto a lei penal, considerada do ponto de vista da existência,
da validade e do significado da norma, que exclui ou reduz a reprovação da
culpabilidade.19 Juarez Cirino dos Santos refere que três posições principais tratam do
que ele refere como objeto da consciência do injusto20:
17
WELZEL, Hans. Derecho penal. Parte General. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1957.
18
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.282.
19
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.308.
20
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.311-312.
21
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.312.
inteiramente inaceitável, pois é o conhecimento de infringir uma prescrição penal e,
portanto, o conhecimento da punibilidade do fato o conceito compatível com o princípio
da culpabilidade, que caracteriza o Direito Penal no moderno Estado Democrático de
Direito.22 De particular relevância neste aspecto é o argumento de Cirino dos Santos no
que diz respeito ao desconhecimento da lei e o erro de proibição, enfatizando que o
princípio da culpabilidade não pode ser cancelado para garantir a eficácia da lei penal,
como pretende parte da doutrina brasileira (ele especificamente refere Jesus, Mirabete,
Regis Prado e Flávio Gomes). É a lei que deve se adaptar ao princípio e não o contrário.
Para ele, a ignorância da lei pode fundamentar a ignorância do injusto, sendo rotineiro o
erro de proibição direto e inevitável em muitos setores da vasta legislação penal
especial, como é o caso dos crimes contra o meio ambiente.23
A provocação é mais do que clara: a forma com que a potencial consciência da
ilicitude é rotineiramente interpretada conforma uma espécie de responsabilidade
objetiva, que contraria a exigência de responsabilidade subjetiva do princípio da
culpabilidade, particularmente nos casos de desconhecimento da lei. Como refere Cirino
dos Santos,
22
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.312
23
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.321-323.
24
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.324-325.
25
WELZEL, Hans. Derecho penal. Parte General. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1957. p.3-4.
jurídicos.26 Nesse sentido, a função ético-social garantiria de forma mais eficaz a
proteção de bens jurídicos do que a mera ideia de amparo a esses bens. O autor
inclusive aponta que o Direito deve exercer influência sobre a consciência dos cidadãos
e sobre os costumes, fazendo valer a sua força sobre os instintos egoístas, sendo essa
uma das missões fundamentais de todo o Direito, quem dirá do Direito Penal e do
Direito Público.27 Partindo desse pressuposto, parece claro que todos teriam obrigação
de conhecimento das prescrições penais e que o desconhecimento da lei seria
inescusável: afinal o Direito Penal seria nosso mínimo ético. Se mesmo a função de
proteção de bens jurídicos soa como delírio metafísico, o que dizer da função ético-
social e da assunção – mesmo que inconsciente – de seus pressupostos?
Cirino dos Santos denuncia que a doutrina empregou um artifício generalizado:
utilizar situações de necessário conhecimento do injusto (como a proibição de matar
alguém) para encobrir situações em que ele necessariamente depende do conhecimento
da lei penal (proibição de guardar lenha ou carvão sem o conhecimento da autoridade
competente, por exemplo).28 Como esse desconhecimento da lei pode ser irrelevante
para a culpabilidade? Como observa Morais da Rosa, o princípio de que o
desconhecimento da lei não exculpa, serve a um propósito bem definido, “plenamente
eficiente para cumprir a função de manter o ‘medo’; a incerteza do proibido e do pavor
de se cometer o pecado”.29
Não há exagero em dizer que, nesse sentido, o moralismo da reprovação impera:
a legislação penal acaba sendo identificada de modo integral com a cultura, o que é
completamente absurdo. Não só não há uma unidade cultural, como a identificação da
legislação penal com ela é produto do delírio dos penalistas, como observou Zaffaroni.30
Para ele, não há delito se o injusto não é reprovável ao autor.31 A questão é estabelecer
em que circunstâncias efetivamente pode haver essa reprovação e em que grau, o que
não pode caracterizar uma violência contra o acusado e a complexidade de uma
realidade que não se conforma aos esquemas interpretativos grosseiros do penalismo.
26
WELZEL, Hans. Derecho penal. Parte General. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1957. p.4-5.
27
WELZEL, Hans. Derecho penal. Parte General. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1957. p.5.
28
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: Lumen Juris, 2008. p.326
29
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como bricolage de significante. Curitiba:
UFPR, 2004, 434f. Doutorado Tese. Curso de pós-graduação da Faculdade de Direito. Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2004. p.340.
30
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.119.
31
ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro
V.1: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.455.
2. A criminologia e a diferença do outro: confronto com a heterogenidade cultural
32
PANDOLFO, Alexandre Costi. Criminologia Traumatizada. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2010. p.1
33
BIRMAN, Joel. Genealogia da reprovação – sobre a periculosidade, a normalização e a
responsabilidade na cena penal. In: BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação: Uma contribuição
transdisciplinar para a crise da culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.94.
34
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução a sociologia
do direito penal. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.69
a violação da lei.35 O autor buscou entender como surgiam essas significações,
chegando à sua teoria das associações diferenciais. Sutherland identificou que os
processos de aprendizado dos comportamentos criminosos se dão de maneira idêntica
aos comportamentos legais, através de associação e relacionamentos com pessoas que
estariam em conflito normativo com a lógica social vigente, logo, adotando os valores
dos subgrupos, passados por esses relacionamentos, e não os das normas legais.36 Nesse
sentido, as ações típicas dos subgrupos não podem ser julgadas simplesmente “boas” ou
“más”, pois apenas obedecem a outro código de valores éticos que nada tem a ver com o
legal e, por isso, “diferentes grupos sociais abraçariam diferentes visões quanto à forma
apropriada de se conduzir em circunstâncias e ocasiões específicas.”.37 Quando essa
diferença está em descompasso com a lei, seria construída uma subcultura criminosa.38
Segundo Baratta,
35
NASCIMENTO, André. Uma ausência sentida: a crítica criminológica da culpabilidade. In:
BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação: Uma contribuição transdisciplinar para a crise da
culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.37.
36
NASCIMENTO, André. Uma ausência sentida: a crítica criminológica da culpabilidade. In:
BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação: Uma contribuição transdisciplinar para a crise da
culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.40.
37
NASCIMENTO, André. Uma ausência sentida: a crítica criminológica da culpabilidade. In:
BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação: Uma contribuição transdisciplinar para a crise da
culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.42.
38
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan:
Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p.493.
39
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução a sociologia
do direito penal. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.70.
40
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 4. Ed. Ver. E atual. – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012. p.219.
41
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan:
Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p.499.
A provocação que podemos extrair dessas criminologias parece clara: a) existem
grupos que transitam em outra esfera de valores, diferente da relativamente hegemônica;
b) mesmo entre o padrão moral prevalecente – que na verdade não temos como definir –
não existe identificação entre ordem moral e a moralidade programática dos
mandamentos e proibições penais. Logo, como é possível censurar na forma com que
normalmente esse juízo é feito, senão como violência?
Uma culpabilidade que desconsidere essas questões parece restrita a um grupo
relativamente pequeno – ou até mesmo inexistente – de pessoas: aquelas que não só
conhecem o conjunto das prescrições penais como as têm como norteadoras da própria
vida em sociedade. Mas quem seriam esses indivíduos? Os criminalistas? Nem mesmo
eles conhecem inteiramente o catálogo de proibições e mandamentos penais, que
certamente não são assumidos como imperativos morais, por quem quer que seja.
Por outro lado, essa constatação parece absolutamente devastadora em sentido
político-criminal, pois levaria inevitavelmente à conclusão de que o indivíduo mais
engajado em uma subcultura contrária à moralidade programática seria o merecedor da
censura mais branda, o que certamente seria inaceitável para muitos: afinal, pensam a
culpabilidade como fundamento a ser preenchido e não como limite da pena. Zaffaroni e
Pierangeli destacam que a vigência do direito não pode ser deixada ao arbítrio da
consciência individual. Mas por outro lado, apontam que “[...] deve ser aceito como
realidade que quem age com consciência dissidente, ou seja, que assume sua conduta
como resultado de um esquema de valores distintos do nosso, tem ao menos, em algo,
reduzida sua capacidade de entender a ilicitude”.42
Sykes e Matza formularam a teoria da neutralização, que levanta outra espécie
de questão: uma vez que um subgrupo ainda permanece inserido na sociedade, é
inteiramente possível que o indivíduo internalize as condutas sociais hegemônicas, mas
opte por não segui-las. Os autores constatam que entre as subculturas existe, sim, o
reconhecimento dos valores sociais e alguns deles são seguidos, porém, em algumas
situações há o conflito de valores que são resolvidos utilizando técnicas de neutralização
que inibem o controle social quando da prática de um ato delinquente e justificam o
comportamento para o próprio agente, independentemente de justificarem para a
42
ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro
V.1: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.55.
sociedade.43 Nesse sentido, surge outra provocação: as técnicas de neutralização não são
necessariamente a expressão inequívoca de uma livre e espontânea adesão. Ou seja, sua
internalização pode ser o resultado de um processo do qual o indivíduo não é
necessariamente consciente, que lhe é opaco. O que isso pode representar para a livre
capacidade de compreensão e autodeterminação de acordo com essa compreensão
prévia? Sem dúvida, a coloca em questão. Talvez Zaffaroni e Pierangeli não tenham
sido tão ousados, mas essa condição certamente pode ser articulada ao que dizem
quando afirmam que
43
SYKES, Gresham; MATZA, David. Techniques of neutralization: a theory of delinquency. American
Sociological Review, V. 22, Issue 6 (1957).
44
ZAFFARONI, Eugenio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro
V.1: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p.557.
45
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.17.
46
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.21.
47
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução a sociologia
do direito penal. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.87.
48
CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.16.
entendimento, ser capaz de avaliar seu uso e quem o usa”, é, pois, “apenas um ponto de
vista sobre a conduta anti-social que logrou impor-se sobre outros pontos de vista”.49
Além disso, o processo de rotulação não passa apenas pela criminalização ou pela
realização da conduta, mas por interações sociais que fazem com que a pessoa seja
identificada com o estigma de desviante, logo há uma seletividade inerente aos
processos de interação, “O crime aqui se transforma em um conceito incerto,
inevitavelmente impreciso, se comparado com as sutis distinções e significados
necessários”.50
Logo, há muitos filtros de significados que influenciam até que uma ação seja
considerada desviante, assim “o mesmo comportamento pode ser considerado uma
infração de regras em um momento e não em outro; pode ser uma infração quando
cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por outra”.51 Isso se dá porque é
difícil rotular como criminoso alguém que se conhece e com quem se identifica, porém,
é mais fácil se considerar crime os atos dos nossos inimigos.52 Assim, o processo de
rotulação se dá sempre ao outro, ao diferente, que é quem acaba sendo reprovado, como
se a reprovação com base nessa invenção fosse equivalente a uma ordem moral
homogênea e hegemônica, da qual um inimigo social propositalmente se desvia.
Nesse sentido, é importante criar inimigos que possam vestir adequadamente o
rótulo de criminoso criado pela lei. Como lembra Christie: “Mau e perigoso é o que o
inimigo deve ser; e forte. Forte o suficiente para render honras e deferência ao herói que
retorna para casa da guerra. Mas não tão forte que impeça o herói de retornar”.53 Para
isso, “construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua
inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes
uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social”.54
Portanto, o sistema penal é seletivo em mais de um sentido: porque persegue
fundamentalmente as pessoas em situação de vulnerabilidade e porque as trata de forma
a desconsiderar a sua outridade. Nesse sentido, uma das principais variáveis a serem
consideradas na aplicação da lei penal seria a cadeia de significados em torno do
fenômeno crime: a possibilidade de deslocamento para a posição do outro de quem
49
CASTRO, Lola Anyar. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983. p.65.
50
CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.20.
51
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.26.
52
CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.27.
53
CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.69.
54
GOFFMAN, Ervin. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1988. p.8.
reprova e que deve estar ciente de que criminosos em certo sentido, todos nós somos. A
diferença é que alguns não conseguem ficar escondidos na cifra negra.
55
BIRMAN, Joel. Genealogia da reprovação – sobre a periculosidade, a normalização e a
responsabilidade na cena penal. In: BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação: Uma contribuição
transdisciplinar para a crise da culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.90.
56
COSTA JUNIOR, Heitor. Culpabilidade e reprovação. In: BATISTA, Nilo. Cem anos de reprovação:
Uma contribuição transdisciplinar para a crise da culpabilidade. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p.14.
de uma responsabilidade do indivíduo, localizada em um ato espontâneo de
determinação pelo ou contra o sistema institucional de valores.57
57
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução a sociologia
do direito penal. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.74.
58
CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (exemplo
privilegiado da Aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p.179.
59
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como brigolage de significante. Curitiba:
UFPR, 2004, 434f. Doutorado Tese. Curso de pós-graduação da Faculdade de Direito. Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2004. p.295.
culpabilidade como reprovabilidade está em crise, tornando-se insustentável devido à
deslegitimação da reprovação, dado que a seletividade e a reprodução da violência
subtraem-lhe todo sentido ético”.60
A ideia de reprovação fundamenta-se numa tendência de normalização do ser,
entranhada no discurso da culpabilidade, que parece violar por excelência a
culpabilidade como princípio, potencializando juízos que violam a exigência de
responsabilidade subjetiva.
Analisando os motivos que sustentam a reprovabilidade nas decisões judiciais,
pode-se chegar à ideia de que diante de um sentimento, ao menos inconsciente, de culpa
que carregam por reprovar o Outro, sem um mínimo ético, é que os juízes formulam
suas próprias técnicas de neutralização, muito parecidas com as das gangues juvenis,
para justificarem seus julgados:
a) excluí a própria responsabilidade, pautando seu julgamento em simples
apreensão dos elementos objetivos; b) Afirmação da ilicitude, todos os crimes
constituem um mala in se e, portanto, devem ser punidos; c) Super-vitimização; a
vítima, ao contrário do que acontecia na técnica típica dos membros de gangues, ganha
o status de indefesa e sofredora; d) Condenação de todos os que condenam a ideia de
ética dominante, como se a realidade se prestasse à simples separação entre bons e
maus; e) Apelo à instâncias superiores: baseando a aplicação da pena em ideais como
defesa da sociedade e da moral.
Quando se analisa a potencial consciência da ilicitude é necessário que seja
considerada a efetiva consciência do agente no caso concreto, para além de uma
“potencial consciência” que passa ao largo do conhecimento da lei, ou de um “dever de
informar-se”, pois do contrário, o Direito Penal, ao manter-se partidário dessa ideia,
egocêntrica, de que todos têm a obrigação de lhe conhecer, ignora, mais uma vez, a
pluralidade das sociedades contemporâneas que foi denunciada pelo discurso
criminológico, além da subjetividade do próprio agente em relação à ação que pratica.
Assim, fica claro o conteúdo normalizador dessa leitura, como afirma Alexandre
Morais da Rosa:
60
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Rio de Janeiro: Revan, 2010. p.264.
pressuposto da convivência social: o conhecimento do Direito. Aceita a
ignorância, todavia, o sistema jurídico fura. Sua obrigatoriedade cogente é
um dos baluartes de sua eficácia, mesmo que ficcional e atrelada às
diferenças sociais cada vez mais marcantes, abissais.61
61
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como brigolage de significante. Curitiba:
UFPR, 2004, 434f. Doutorado Tese. Curso de pós-graduação da Faculdade de Direito. Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2004. p.341.
62
BAUMAN, Z.ygmunt. Vida Liquida. Rio de Janeiro: Zahar Editores: 2007. p.7.
interpretações das pessoas envolvidas, podendo ser enquadradas um número infinito de
ações. Logo, é forçoso pensar que o acusado pode ter agido sem consciência alguma da
ilicitude da conduta praticada e mesmo assim ser enquadrado no tipo de estupro, o que
depende muito de interpretação.
Zaffaroni, por sua vez, refere o que chama de “erro culturalmente
condicionado”, para o qual a possibilidade da compreensão da norma deve ser
constatada no caso concreto, de acordo com a posição cultural do agente, ou sua
subcultura, para analisar a estrita possibilidade que o autor tinha de conhecer sobre o
ilícito, possibilidade que, entende-se, é capaz de proporcionar uma qualificada avaliação
da consciência da ilicitude, uma vez que redimensiona o objeto da consciência do
injusto adequadamente.
Não se abdica do fato de que a culpabilidade como elemento do crime é um
importante aliado contra o poder punitivo, mas deve ser fixada com signos objetivos,
logo, falseáveis, garantindo, assim, o contraditório. É preciso analisar profundamente as
determinantes do caso, para evitar que a análise normativa se dê mecanicamente através
da coisificação do Outro-réu num julgar em que “os conflitos são adequados em
standarts dogmáticos, cuja atribuição de sentido é formulada pelo senso comum
teórico”63, restringindo a análise entre adequação e inadequação, amordaçando toda a
cadeia de significados que pulsa no real e tem o condão de transformar ações,
aparentemente normais, em crimes.
É preciso combater a ideia de que o crime é em si mesmo, fazendo com que a
análise desses elementos por parte dos magistrados seja mecânica, vaga e infundada. É
comum que o acusado tenha que provar o improvável, em uma nefasta inversão do ônus
da prova. Assim, cabe a ele comprovar que era impossível conhecer sobre a ilicitude, ou
que seu desconhecimento era admissível, que não poderia agir de outro modo ou que,
no momento do fato, não tinha condições intelectivas, de acordo com um padrão
inteiramente abstrato de normalidade.
Deve-se ter em mente um exercício de consciência a partir do qual o julgador
coloca-se no lugar do Outro, como o outro, tentando entender as realidades culturais que
o influenciam, em seu meio e, a partir daí, avaliar os elementos da culpabilidade,
analisando se são exculpáveis ou contém erros, evitáveis ou inevitáveis, de acordo com
63
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como brigolage de significante. Curitiba:
UFPR, 2004, 434f. Doutorado Tese. Curso de pós-graduação da Faculdade de Direito. Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2004. p.203.
o outro. Um julgar amparado na diferença, na diversidade e não na adequação com um
ideal de homem seguidor das leis que remete ao vazio.
Considerações finais
As consequências da incomunicabilidade entre Direito Penal e realidade são
absolutamente perversas, pois permitem que o juízo de censura tenha como fundamento
valores morais que matam o contraditório em nome de um padrão de normalidade – o
chamado homem médio – que em última análise remete inteiramente ao vazio: um
sistema normativo-moral oficial não pode ser tido como verdadeira e legítima expressão
de um corpo social homogêneo. Ele é inventado, incoerente e absolutamente
desconhecido até mesmo por aqueles que lhe dão crédito. O que é, afinal, normal e
anormal para efeito da culpabilidade jurídico-penal? Ainda mais considerando um
sistema normativo tão hipertrofiado quanto o penal, que certamente assumiu dimensões
muito mais abrangentes do que o próprio Welzel admitiria. É preciso romper com o
isolamento normativo do conceito e dialogar com a criminologia e com outras áreas do
conhecimento, destacando o potencial violento do discurso da reprovação,
particularmente para a persecução do outro, do diferente, daquele que não se encaixa na
moralidade programática dos atos de poder legislativos, ou seja, das condutas
criminalizadas e da respectiva exigência de obediência a seus mandamentos ou
proibições. É preciso repensar o alcance do potencial conhecimento da ilicitude para
além das amarras de um conceito restritivo de cultura, que compreende que ela é
essencialmente homogênea, enquanto na realidade convivem paralelamente vários
sistemas culturais. Precisamos pensar em diferença e não em anormalidade.
Não se pode admitir, em uma sociedade pluralista e laica, que a reprovação se
ampare sempre em questões morais ou de valores, que em última análise remetem a
uma moral inteiramente à la carte. Sob este aspecto, expor a ferida que foi aberta pelos
discursos criminológicos no Direito Penal e, particularmente, no conceito de
culpabilidade, nos dá a possibilidade de desconstruir a barreira entre o saber jurídico-
penal e a realidade concreta com que ele pouco se comunica, autorizando
discursivamente a continuidade da barbárie nas práticas punitivas.
Ressalve-se que a culpabilidade como elemento do conceito analítico de crime é
indispensável e fundamental, pois dá ao criminalizado a garantia de que os elementos
mínimos, imputabilidade, consciência do ilícito e exigibilidade de conduta diversa,
sejam exigidos para que a culpabilidade se perfaça.
Porém, borbulha o questionamento: não estamos vivendo uma forma mascarada
de responsabilidade objetiva, contrária ao próprio sentido da culpabilidade como
princípio? É comum que a não ser que os motivos saltem aos olhos do julgador, o réu
seja automaticamente considerado imputável, consciente da ilicitude e plenamente
responsável pela prática de suas condutas na fantástica terra das circunstâncias normais.
Temos que partir de um pressuposto irrenunciável: a carga da prova pertence ao
acusador. Cabe a ele derrubar a fortaleza da presunção de inocência, o que só pode
significar que é sobre o acusador que pesa o ônus de provar a inexistência de causas de
justificação e também de exculpação. O raciocínio precisa ser invertido urgentemente
para que deixemos de compactuar com a manifestação verticalizada e arbitrária do
poder punitivo.
Para que se fuja dessa responsabilidade “pseudo-objetiva”, cabe ao juiz, na
analise desses elementos, permanecer aberto à cadeia de significados e atuações que
levaram ao drama criminal, se colocando não como reprovador, mas no lugar do Outro,
pois como se tentou demonstrar, o criminoso é apenas um eu-rotulado. É preciso para
isso, repensar a ideia de reprovabilidade e todo o significado moralista que ela carrega,
pois fundado em um ideal de normalidade social que a sociologia mostrou a muito não
existir e que, cada vez mais, distancia-se da realidade. O juiz deve analisar o contexto
social em que o agente está inserido e as possíveis interpretações que levaram aquele
agente, em meio a milhares de outros, à seleção penal. Deve refletir se os requisitos da
culpabilidade estavam efetivamente preenchidos e não considerados como realidade
preexistente que o acusado deve confrontar no processo, literalmente tendo que “provar
sua inocência” por meio de uma causa de exculpação.
É necessário, principalmente, repensar a ideia de reprovação que fez com que
penetrasse no discurso penal um sentido moralista, que dá o tom do arbítrio provocado
tanto pelo juízo de reprovação, quanto pela constatação da culpabilidade baseada numa
ideia caricata de que algo era exigível porque “qualquer um” deveria fazê-lo,
desconsiderando a complexidade do real. Assim, a literatura, emprestando ao
significado a complexidade que só ela pode ter, nos brinda com a célebre frase de Mário
Quintana e que, em muito, sintetiza a ideia que delineou o presente artigo: “Ah, esses
moralistas... Não há nada que empeste mais do que um desinfetante!”.
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