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Aluna: Tamara Arianne Gallo da Silva

A Culpabilidade no Direito Penal Brasileiro

A culpabilidade é um dos institutos mais polêmicos da teoria do delito. Muito


embora apareça em variados dispositivos, não foi conceituada no Código
Penal, gerando discussões acerca de sua posição sistemática, ou seja, como
integrante do conceito de crime ou não, e de suas funções.

A ausência de uniformidade no tratamento da culpabilidade termina por


dificultar o cotidiano do operador do direito e sua conclusão acerca da
responsabilização do agente.

No presente trabalho, com o escopo de possibilitar uma maior compreensão da


teoria do fato punível e de demonstrar quais são os pontos de debate entre os
doutrinadores, partir-se-á da conceituação da culpabilidade penal, para que
sejam mais bem elucidadas as teorias acerca da posição sistemática do
instituto, passando-se à sua evolução histórica, com a consagração do conceito
normativo puro da culpabilidade e, por fim, ao ponto central deste estudo, qual
seja, explicar o instituto enquanto pressuposto para a aplicação da pena,
enquanto limitador do jus puniendi e enquanto fator de gradação da punição ao
agente.  

CONCEITO E POSIÇÃO SISTEMÁTICA

A culpabilidade deriva da noção de censura pessoal. A palavra “culpado”


carrega uma carga axiológica negativa, por referir-se a um juízo de reprovação
que se faz ao autor de um fato.

De acordo com conceituação de Luiz Regis Prado:

A culpabilidade é a reprovabilidade pessoal pela realização de uma ação ou


omissão típica e ilícita. Assim, não há culpabilidade sem tipicidade e ilicitude,
embora possa existir ação típica e ilícita inculpável. Devem ser levados em
consideração, além de todos os elementos objetivos e subjetivos da conduta
típica e ilícita realizada, também, suas circunstâncias e aspectos relativos à
autoria.

Do mesmo modo, consoante preceituam Eugenio Raul Zaffaroni e José


Henrique Pierangeli, “esse conceito é um conceito de caráter normativo, que se
funda em que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez, e que, nas
circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse”.

Cumpre observar, destarte, que a culpabilidade refere-se a um fato praticado,


que necessita ser típico e antijurídico, e não a um modo de ser ou agir,
afastando-se, de logo, o chamado Direito Penal do Autor e a criação aristotélica
da “culpabilidade pela conduta de vida”, segundo a qual tanto o vício quanto a
virtude são voluntários, devendo ser censurado o indivíduo que se afasta da
primeira.

O Código Penal Brasileiro não traz definição para a culpabilidade, elevando-a a


um dos conceitos mais debatidos na teoria do delito. A discussão repousa,
sobretudo, na sua posição sistemática, se integrante do conceito de crime ou
se considerada à parte, como pressuposto da pena.

Atualmente, a doutrina majoritária conceitua o crime como fato típico,


antijurídico e culpável, adotando a teoria tripartida do delito. O crime, para
Guilherme de Souza Nucci, partidário dessa teoria:

“trata-se de uma conduta típica, antijurídica e culpável, vale dizer, uma ação ou
omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária
ao direito (antijuridicidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente
sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência
potencial de ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito.”

Semelhantemente, para Heleno Cláudio Fragoso:

“crime é, assim, o conjunto de todos os requisitos gerais indispensáveis para


que possa ser aplicável a sanção penal. A análise revela que tais requisitos são
a conduta típica, antijurídica e culpável.”

Não obstante, parcela considerável da doutrina defende que o crime, do ponto


de vista analítico, comporta apenas dois elementos, a tipicidade e a
antijuridicidade, sendo a culpabilidade somente um pressuposto de aplicação
da pena.

Defensor da teoria bipartida explicitada supra, Damásio de Jesus justifica sua


posição afirmando que o Código Penal Brasileiro, em diversas passagens,
considerou o crime como fato típico e antijurídico, porquanto ao tratar das
causas de exclusão da culpabilidade referiu-se apenas à isenção da pena,
como por exemplo, os artigos 26, caput, e 28, parágrafo primeiro:

Quando o CP trata de causa excludente da antijuridicidade, emprega


expressões como 'não há crime' (art. 23, caput), 'não se pune o aborto' (art.
128, caput), 'não constituem injúria ou difamação punível' (art. 142, caput), 'não
constitui crime' (art. 150, §3) etc. Quando, porém, cuida de causa excludente
da culpabilidade, emprega expressões diferentes: 'é isento de pena' (26 caput,
e 28 §1º), 'só é punível o autor da coação ou da ordem' (art. 22, pelo que se
entende que 'não é punível o autor do fato'). Qual a razão da diferença?

Adiante responde:

“Para a existência do crime, segundo a lei penal brasileira, é suficiente que o


sujeito haja praticado um fato típico e antijurídico. Objetivamente, para a
existência do crime, é prescindível a culpabilidade. O crime existe por si
mesmo com os requisitos "fato típico" e "ilicitude". Mas o crime só será ligado
ao agente se este for culpável. É por isso que o CP, no art. 23, emprega a
expressão 'não ha crime' (as causas de excludente da antijuridicidade excluem
o crime); nos arts. 26, caput e 28 §1º, emprega a expressão "é isento de pena"
(corresponde a "não culpável"). Se a expressão "é isento de pena" significa
"não é culpável", subentende-se que o código considera o crime mesmo
quando não existe a culpabilidade em face do erro de proibição (art. 21 caput,
2ª parte).”

Luiz Flávio Gomes, contudo, adota posição intermediária entre as duas teorias,
sustentando que a culpabilidade não faz parte do conceito de crime, nem
tampouco é “só” pressuposto da pena, pois pressuposto da pena é tudo,
incluindo-se a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. Desse modo, para
ele:
“mais que um pressuposto, a culpabilidade é um dos fundamentos da pena.
Para nós, em síntese, a culpabilidade é juízo de valor (de reprovação) que
recai sobre o agente do crime que podia se motivar de acordo com a norma e
agir de modo diverso (conforme o Direito). Como juízo de valor ou de
reprovação (que recai sobre o agente do crime) não pode evidentemente
pertencer nem à teoria do delito nem à teoria da pena. Ela cumpre exatamente
o papel de ligação ou de união entre o crime e a pena, justamente porque sua
primeira e distinguida função é a de constituir um dos fundamentos
indeclináveis da pena.”

A polêmica sobre o acerto e a conveniência da adoção de determinada teoria


para a ideia jurídico-penal de delito subsiste e ainda se encontra longe de uma
solução. O entendimento do autor Luiz Flávio Gomes, exposto acima, concilia
as diversas correntes e mostra-se de adequada aplicação prática, afinal, é de
se ter em mente que, elemento do crime ou não, só haverá aplicação da pena
se houver culpabilidade.

Ademais, para a evolução do presente estudo, necessário se faz enfatizar o


conceito normativo de culpabilidade, como um juízo de reprovação que está na
cabeça de quem julga, mas que tem por objeto o agente do crime e sua ação
criminosa.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Adotado hodiernamente, o conceito normativo de culpabilidade é o resultado de


uma longa evolução, que pode ser destacada em várias fases.

A primeira fase remonta ao causalismo naturalista de Liszt e Beling, e nela a


culpabilidade era tida como o vínculo psicológico entre o agente e o fato. Nesse
momento, com a influência do positivismo científico do final do século XIX,
houve uma redução do pensamento, pois o Direito passou a ser explicado a
partir da causa e do efeito.

De acordo com Luiz Greco “o sistema naturalista, também chamado sistema


clássico do delito, foi construído sobre a influência do positivismo, para o qual
ciência é somente aquilo que se pode apreender através dos sentidos, o
mensurável. Valores são emoções, meramente subjetivos, inexistindo
conhecimento científico de valores”.

A teoria psicológica da culpabilidade, adotada durante esse período, dividia o


crime em aspectos objetivos e aspectos subjetivos. Estes últimos ficavam fora
da conduta, que era uma mera relação de causa e efeito, e tratam-se do dolo e
da culpa, as duas espécies de culpabilidade.

Sintetizando essa fase, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:

“Para a teoria psicológica, a culpabilidade seria o vínculo do agente com seu


fato, que ocorre pelo dolo ou pela culpa. Dolo e culpa, como se vê, eram a
culpabilidade (constituíam a essência da culpabilidade), que já tinha como
pressuposto a imputabilidade. Nesse tempo, portanto, a culpabilidade contava
com dois requisitos: 1) imputabilidade e 2) dolo ou culpa. A imputabilidade, de
outro lado, era enfocada como algo pertencente à cabeça do agente (em outras
palavras: era concebida como requisito subjetivo). O crime, aliás, de acordo
com essa construção causalista (ou natural causalista ou naturalista), possuía
duas partes: uma objetiva e outra subjetiva. Integravam a primeira a tipicidade
e a antijuridicidade; a culpabilidade pertencia à segunda.”

Prosseguindo, afirmam:

“Para a teoria psicológica da culpabilidade esta é o liame, o vínculo ou o nexo


psicológico que liga o agente ou pelo dolo ou pela culpa ao seu fato típico e
antijurídico. Ela é vista num plano puramente naturalístico ou psicológico,
desprovido de qualquer valoração e esgota-se na simples constatação da
posição do agente perante sua própria conduta.”

Convém enfatizar que imperava, à época, a influência das ideias deterministas


sobre a teoria do delito, com a consequente negação do livre-arbítrio do
homem. Entendia-se que o crime era determinado por fatores biológicos e
sociais. Em decorrência disto é que não se analisava a reprovação ou a
valoração da conduta do agente, já que certos homens eram predeterminados
a comportamentos delinquentes. A questão se resumia ao atuar com dolo ou
culpa.

Sobre a teoria psicológica, critica o alemão Hans-Heinrich Jescheck:


“A concepção psicológica da culpabilidade logo se mostrou, sem dúvida, como
insuficiente porque não dava respostas às questões de quais relações
psíquicas deviam considerar-se relevantes jurídico-penalmente e porque sua
presença fundamenta a culpabilidade e sua ausência a exclui. Assim, não
poder-se-ia explicar porque ainda quando o autor atuasse dolosamente e,
portanto, tenha produzido uma relação psíquica com o resultado, deve negar-
se sua culpabilidade se ele é um doente mental ou se agiu em  Estado de
necessidade (§ 35). Tampouco poder-se-ia fundar o conteúdo da culpabilidade
da culpa inconsciente com fundamento na concepção psicológica da
culpabilidade, já que nela falta precisamente toda relação psíquica com o
resultado.”

Críticas à parte, a teoria psicológica da culpabilidade representou um avanço


na medida em que rompeu de vez com qualquer resquício de responsabilidade
objetiva no Direito Penal, ao exigir o liame subjetivo entre o autor e o fato.

Em 1907 houve uma revolução no pensamento até então dominante sobre a


culpabilidade, quando Reinhardt Frank acrescentou novo elemento a esta,
intitulado por ele de normalidade das circunstâncias, transformando-a em um
juízo de valor apoiado em uma situação psíquica.

Sintetizando a nova fase, Cezar Roberto Bitencourt aduz que:

“A elaboração normativa da culpabilidade produziu-se no contexto cultural da


superação do positivismo-naturalista e sua substituição pela metodologia
neokantiana do chamado conceito neoclássico de delito. Sintetizando, em toda
a evolução da teoria normativa da culpabilidade ocorre algo semelhante ao que
aconteceu com a teoria do injusto. No injusto, naquela base natural-causalista,
acrescentou-se a teoria dos valores; ao positivismo do século XIX, somou-se
simplesmente o neokantismo da primeira metade do século XX. Na
culpabilidade, a uma base naturalista-psicológica acrescenta-se também a
teoria dos valores, primeiro com Frank, de forma vaga e difusa, posteriormente
com maior clareza, com os autores já citados. Com isso, se superpõe na
culpabilidade um critério de caráter eticizante e de nítido cunho retributivo.”

Partindo do critério da normalidade das circunstâncias elaborado por Frank,


que levaria à reprovação do agente, outros autores neokantistas chegaram ao
que hoje em dia é conhecido por exigibilidade de conduta diversa. Assim, o
agente autor de um injusto penal só pode ser reprovado se, nas circunstâncias
em que praticou a conduta, lhe era possível exigir comportamento diverso,
conforme o Direito. 

A culpabilidade, então, passou a ser ao mesmo tempo psicológica e normativa,


dando origem a uma nova teoria, a teoria psicológico-normativa da
culpabilidade, cujos elementos são a imputabilidade, a exigibilidade de conduta
diversa e o dolo e a culpa.

Observa-se que a imputabilidade deixou de ser um pressuposto, como era na


teoria psicológica, para figurar como um dos elementos da culpabilidade.
Outrossim, o dolo passou a abrigar também o conhecimento do Direito,
conceituando-se como dolus malus.

Sobre o dolus malus, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:

“Já desde o Direito romano distinguia-se o dolus bonus do dolus malus,


segundo a maliciosa intenção do agente dirigida “para enganar” ou “para
cometer crime”. Mas é sobretudo depois da concepção teleológica do delito e
da culpabilidade normativa que, divorciando-se do posicionamento de Von
Liszt, passa-se a aceitar a consciência da ilicitude como requisito da
culpabilidade, mais precisamente como dado que se agrega ao dolo e assim
acolhe-se o denominado dolus malus (dolo normativo ou dolo jurídico), isto é,
dolo mais consciência da ilicitude. Exige-se que o agente, no momento da
conduta, além de representar a realidade fática (requisito intelectual do dolo) e
de desejar realizar a conduta (requisito volitivo do dolo), tenha consciência real
e inequívoca (ainda que num juízo leigo) de que sua conduta contraria o
ordenamento jurídico (é a consciência real da ilicitude ou da antijuridicidade do
fato).”

Com o finalismo de Hans Welzel, na metade do século XX, retiraram-se todos


os elementos psicológicos da culpabilidade e ela se tornou, enfim, puramente
normativa, como puro juízo de valor, de reprovação. O dolo passou para o
âmbito da tipicidade, contudo, sem a consciência de ilicitude, que continuou
como elemento normativo da culpabilidade, passando a ser concebido como
dolo natural.
Têm-se como elementos da culpabilidade na teoria normativa pura: a) a
imputabilidade; b) possibilidade de conhecimento da ilicitude; c) exigibilidade de
conduta diversa.

Explicando a teoria, ensina Welzel:

“A teoria da culpabilidade elimina os elementos subjetivo-psíquicos e retém


somente o elemento normativo da reprovabilidade. Neste processo, nenhum
dos elementos anteriores se perdeu, cada um passa a ocupar seu lugar mais
adequado sobre a base de compreensão da estrutura finalista da ação, com a
qual nos capacitamos para as soluções mais corretas, nos problemas de
participação, da culpabilidade, do injusto, da lesão de diligência, do erro de
proibição etc. portanto, as objeções repetidas contra a teoria da ação finalista
da ‘subjetivação do injusto’ ou do ‘esvaziamento do conceito de culpabilidade’
são completamente infundadas.”

Impende destacar que, no finalismo, a conduta, ao receber o dolo e a culpa,


deixou de ser tratada como mero impulso mecânico e a vontade passou a
constituir a sua “espinha dorsal”. Sob a ótica do finalismo, a conduta é uma
movimentação corpórea, voluntária e consciente, com uma finalidade. Logo, ao
agir, o ser humano possui uma finalidade, que é analisada, desde logo, sob o
prisma doloso ou culposo.

Além disso, a consciência da ilicitude passou a ser potencial, porquanto basta


que o agente tenha a possibilidade de ter essa consciência, ainda que, no
momento do fato, não houvesse realizado o conhecimento.

Após a teoria normativa pura da culpabilidade, que é a teoria adotada pelo


Código Penal Brasileiro, surgiram diversas outras, entre as quais merecem
breve análise a teoria da responsabilidade e a teoria complexa da
culpabilidade.

A primeira teoria foi criada por Claus Roxin, preconizando que a culpabilidade
se encontra inserida em um contexto mais amplo, chamado responsabilidade,
formado por esta e pela necessidade preventiva da pena.

Ou seja, Para Roxin:


“a responsabilidade, como categoria político-criminal, é definida como uma
valoração, posterior à ilicitude, para tornar penalmente responsável o agente
(para atribuir-lhe responsabilidade). Para a imposição da pena, faz-se mister,
além da culpabilidade, estar comprovada ainda sua necessidade”.

A última teoria preconiza que o dolo e a culpa têm dupla função no Direito
Penal, pois, apesar de situados na tipicidade, são valorados também no âmbito
da culpabilidade, para majorá-la ou minorá-la, com reflexos na aplicação da
pena.

Não obstante, a doutrina majoritária continua adotando a teoria normativa pura


da culpabilidade, afirmando, em crítica à teoria complexa, que não são
propriamente o dolo e a culpa que são valorados duplamente dentro do Direito
Penal. O que ocorre é que, como se verá a seguir, do dolo e da culpa, como
requisitos do fato típico, extrai-se a posição do agente frente ao bem jurídico e
é esse fator que é valorado pelo juiz para efeitos de fixação da pena, na
utilização da culpabilidade como fator de graduação da penalidade.

AS FUNÇÕES DA CULPABILIDADE

Adotado nos dias de hoje, o conceito normativo da culpabilidade traduz um


juízo de reprovação pessoal pela prática de um fato lesivo a um interesse
penalmente protegido.

Não obstante, o Código Penal Brasileiro, em diversos dispositivos, menciona o


termo “culpabilidade”, usando-o para significados diversos. Sendo assim, como
bem observa Luiz Flávio Gomes, pode-se dizer que a culpabilidade cumpre três
funções: a) um dos fundamentos da pena; b) limite da pena e c) fator de
graduação.

No tocante à primeira função, como já bem exposto acima, considerada


elemento do crime ou pressuposto da pena, a culpabilidade é fundamental para
que haja aplicação da pena a um agente autor de um fato típico e antijurídico,
já que se torna imprescindível a reprovação do ordenamento jurídico.

Nesse caso, tem-se a culpabilidade com a mais clara de suas funções,


referindo-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor
de um fato típico e antijurídico. Para isso, analisa-se a presença dos requisitos
da culpabilidade – como a imputabilidade penal, a potencial consciência da
ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

Além disso, serve ela também como limite da pena, nos termos do artigo 29, do
Código Penal, segundo o qual “quem, de qualquer modo, concorre para o crime
incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Tal
dispositivo reflete o princípio da individualização da pena, permitindo a
mensuração da reprovabilidade que recai sobre o agente.

Ademais, a culpabilidade neste sentido aparece como uma limitação no jus


puniendi do Estado, no sentido de se impedir um castigo mais severo do que o
merecido e imposições de sanções desproporcionais, mais gravosas do que a
própria conduta, ou seja, acima do limite da culpabilidade.

Assim, o juízo de reprovação ou a culpabilidade interfere diretamente na


aplicação e fixação da sanção penal, pois visa submeter o acusado à pena
mais consentânea com sua conduta, promovendo-se o equilíbrio entre a
reprovação penal e o ato delituoso.

Do mesmo modo, também como reflexo do princípio da individualização da


pena é que a culpabilidade é considerada como circunstância judicial, no artigo
59, do Código Penal, ou seja, na primeira fase da dosimetria penal. Nesta, o
juiz deverá levar em conta o grau de reprovabilidade da conduta ou aquilo que
se entende por posição do agente frente ao bem jurídico ofendido.

Em uma síntese explicativa, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de


Molina:

“A palavra culpabilidade, contida no CP, art. 59, expressa a posição do agente


frente ao bem jurídico violado. Essa posição do agente pode ser: a) de total
menosprezo (que deriva do dolo direto de primeiro grau); b) de indiferença
(decorre do dolo direto de segundo grau ou dolo eventual) e c) de descuido
(emana do crime culposo). As duas primeiras retratam o que a doutrina ou
teoria complexa da culpabilidade chama de “culpabilidade dolosa”; a terceira
espelha a “culpabilidade culposa”.
Ainda, há quem sustente, como o faz Guilherme de Souza Nucci, que a
culpabilidade prevista no artigo 59 é o conjunto de todos os demais fatores
unidos: antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos do
crime, circunstâncias do delito, consequências do crime e comportamento da
vítima, que será maior ou menor, conforme o caso.

Vale registrar, por fim, que atualmente muitos autores vêm mencionando a
chamada coculpabilidade, consubstanciada na reprovação conjunta que deve
ser exercida sobre o Estado tanto quanto se faz em relação ao autor de
infração penal, quando se verifica não ter sido proporcionada a todos iguais
oportunidades na vida.

Para Zaffaroni e Pierangeli:

“Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de


autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma
contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade –
por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos
os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que
têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por
causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e
sobrecarregá-lo com elas no momento de reprovação de culpabilidade.
Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘coculpabilidade’, com a qual a própria
sociedade deve arcar.”

O conceito de coculpabilidade vem sendo considerado em países que adotam


o Estado Social de Direito e reconhecem direitos econômicos e sociais. No
Brasil, consoante propõe a doutrina, o juiz poderá analisar a culpabilidade
concorrente da sociedade, diminuindo a reprovação que recai sobre o agente,
se for o caso, nas circunstâncias judiciais do artigo 59 ou na atenuação
genérica do artigo 66, do Código Penal.

CONCLUSÃO:
A culpabilidade é um dos conceitos mais tormentosos em matéria de Direito
Penal. É certo que o instituto, que já passou por transformações significativas,
continuará evoluindo concomitantemente à evolução da vida em sociedade.

Como já dito, o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar as


discussões sobre o debatido tema, trata-se de uma contribuição ao estudo,
com o objetivo de esclarecer os seus contornos para o operador do direito.

Em síntese, sobre o instituto da culpabilidade pode-se estabelecer que,


primeiro, prevalece o conceito normativo da culpabilidade, vista como um juízo
de reprovação que recai sobre o agente de um fato ilícito, o qual, consciente da
ilicitude, podia agir conforme o direito e não o faz. Como desdobramento de tal
conceito, emergem suas três funções: a culpabilidade como fundamento da
pena, como limite da punição Estatal e como fator de mensuração da
penalidade aplicada.

REFERÊNCIAS:
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Vol. II. Tradução por PAULO JOSÉ DA
COSTA JÚNIOR e ALBERTO SILVA FRANCO, notas por EVERARDO DA
CUNHA LUNA. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971.
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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – parte geral. 13ª ed. Rio
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GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito: em
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PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1:parte geral. 1.
7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2007.
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Penal Brasileiro, volume 1: parte geral. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006.

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