DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA NOS DOMÍNIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO
PUNITIVO
Glênio Sabbad Guedes
Procurador da Fazenda Nacional com assento no CRSFN
Os estudos acerca da responsabilidade em matéria de ilícitos administrativos vêm se avolumando
sensivelmente, a ponto de já termos obras específicas nesta área, autóctones e alóctones, em que o tema é explorado acuradamente ( vide, e.g., "Direito Administrativo Sancionador", do Prof. Fábio Medina Osório, e "Droit Pénal et Droit Administratif Répressif", do Prof. Georges Delli ). E, por virtude dessa constatação, propomo-nos aqui tecer algumas considerações a esse respeito, abordando, máxime, o problema no âmbito do CRSFN. A tendência, em todo o mundo, é o aproveitamento dos princípios do Direito Penal, na órbita da responsabilidade criminal, pelo Direito Administrativo Punitivo, desde que, obviamente, lhe sejam coadunáveis. Assim, tipicidade ( com certa flexibilidade ), legalidade ( com algumas ressalvas a serem feitas ), responsabilidade subjetiva, proibição da "reformatio in pejus" direta e indireta, continuidade infrativa ( baseada na tese do crime continuado ), motivação e proporcionalidade da pena são já pontos ou elementos do Direito Penal inteiramente adaptáveis ao Direito Administrativo Punitivo. Cada um desses tópicos mereceria, claramente, um capítulo ou artigo à parte. Deter-nos-emos, a princípio, na responsabilidade subjetiva, fazendo breves comentários acerca de sua concepção no Direito Criminal. DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA No Direito Penal brasileiro não há falar-se em responsabilidade objetiva. Está-se no campo do direito penal da culpabilidade. Contudo, não devemos confundir responsabilidade baseada em culpa ou dolo com o ônus de prová-los. Toda ação humana, voltada para o cometimento de um crime, tem que ser investigada, ao lume de uma postura finalista hoje em vigor, dentro dos critérios de culpa ou dolo ( note-se falar-se em "postura finalista", não que todo o código penal tenha aderido ao finalismo. Sobremais, hoje já se discute no Brasil a questão da teoria da "imputação objetiva", uma espécie de refinamento da teoria da adequação social ou ação socialmente relevante. Embora recente no Brasil, já há mais de vinte anos tem-se discutido essa tese na Europa, e mesmo aqui, no Brasil, já existem críticas a essa "suposta recente doutrina" ). Ou, por outras palavras, integrando dolo e culpa o tipo penal, é de mister saber se certo comportamento revestiu-se daqueles elementos, a saber: vontade de praticar o ilícito ou de correr- lhe o risco; ou a presença de imprudência, imperícia ou negligência. Tal fato é indisputável e indene de dúvidas. Contudo, reitere-se: quem os prova? A quem pertence o ônus de tal prova? A segunda pergunta nos remete ao Direito Processual Penal. O art.15 do DPP estatui expressamente pertencer tal ônus à acusação, isto é, o dever de provar a existência de um fato considerado crime por força de lei é atribuído ao agente acusador. Mas nossa jurisprudência criminal, debruçando-se sobre a questão, construiu a seguinte interpretação: o dolo é presumido, emergindo desde que provadas materialidade e autoria do ilícito, enquanto a culpa necessita ser demonstrada pela acusação. E a doutrina não discrepa desse entendimento, se não vejamos: "a acusação deve comprovar a forma de inobservância da cautela devida no crime culposo: imprudência, negligência ou imperícia, sendo o dolo presumido diante da experiência de que os atos praticados pelo homem são conscientes e voluntários, cabendo ao réu demonstrar o contrário ( Júlio Fabrini Mirabete, Processo Penal, págs.252 )". O mesmo é afirmado por Magalhães Noronha em seu Curso de Direito Processual Penal, às págs.119 ( registre-se aqui a opinião dissidente do Prof. Tourinho Filho, para quem, ambos, culpa e dolo, devem ser provados indistintamente ). A posição da jurisprudência, neste setor, é, a nosso conceber, irreprochável. O comportamento doloso corresponde a uma normalidade psíquica quanto à figura delituosa; já a culpa deve ser provada porque se trata de uma exceção, uma anormalidade psíquica ( aliás, essa excepcionalidade está dogmatizada no art.18 do CP ). Já podemos, pois, construir a primeira ilação: no Direito Criminal, a responsabilidade objetiva está banida do sistema. Já o ônus da prova ganhou, da jurisprudência, uma peculiaridade: o dolo é presumido - contanto que comprovadas materialidade e autoria - , devendo o órgão acusador provar apenas a culpa, em uma de suas modalidades. Se afirmamos, logo no início, estarem os princípios do Direito Penal sendo aplicados no âmbito do Direito Administrativo Punitivo, de plano nos indagamos: não há responsabilidade objetiva no Direito Administrativo Punitivo? Ou, por outra, só se lhe deve falar de responsabilidade subjetiva? A resposta a essas perguntas há de ser categórica: sim, não há responsabilidade objetiva nesta área. Em outras palavras: culpa e dolo hão de integrar o tipo administrativo punitivo, em consonância, portanto, com nossa CF/88 e CP vigentes ( o princípio da culpabilidade foi à evidência insculpido em nosso Códice Supremo em sede de infrações comportamentais ). Mas, repita-se, o que a nosso pensar vem sendo objeto de confusões conceituais ou doutrinárias é o aspecto do ônus da prova. Que a culpa e o dolo sejam elementos ínsitos ao tipo administrativo, disso não há duvidar. Mas, a quem pertine ônus de provar-lhes a existência? ÔNUS DA PROVA Perfilha-se, nessa questão, o seguinte ponto de vista: comprovadas materialidade e autoria, por parte do agente fiscalizador ( ex.: Bacen, CVM e Agências Reguladoras ), há presumir-se o dolo - como também o entende a Justiça Criminal e, "a fortiori", há de entender a Administração Pública - , e por igual a culpa, nas modalidades "in vigilando, in ommitendo aut in eligendo". E assim entendemos pelos motivos a seguir expostos : a. o combate ao ilícito administrativo tem por objetivo proteger os interesses da Administração Pública, punindo-se aqueles atos consistentes em embaraços ao desenvolvimento regular da ação administrativa, causadores de prejuízos à causa pública. Portanto, a pauta axiológica, continente dos bens maiores da Sociedade dá legitimidade ao entendimento suso exposto ; b. o próprio sistema legal, muitas vezes, veda a que a Administração Pública obtenha provas importantes para a prova do fato, como, v.g., o sigilo bancário ou fiscal, ou a proteção a intimidade. Daí a necessidade de inverter-se o ônus da prova, desde que satisfeitos os requisitos supra-expostos ( materialidade e autoria ); c. poderá o indiciado ou condenado continuar com o direito de provar não ser culpado, com a diferença de que, dessa vez, o ônus é seu, o dever de desincumbir-se da prova de inocência é seu, não da autoridade indiciante. Um caso em concreto ajudará a entender nosso raciocínio. Se o Banco Central, v.g., autua determinada instituição financeira e seus administradores por prática de operações não permitidas legalmente ( ex.: concessão de empréstimos com incorporação de encargos a pessoas com restrições cadastrais ), e junta aos autos as atas assembleares autorizativas das operações, com a assinatura dos administradores; documentos demonstrativos das restrições cadastrais dos mutuários envolvidos; balanço demonstrativo dos valores objeto do mútuo. Tais elementos, documentados e anexados aos autos, esgotam, a nosso juízo, o dever de provar da autarquia, não lhe cabendo mais perquirir a respeito do psiquismo dos envolvidos ( quiseram ou não a operação? correram ou não o risco? ) ou de sua modalidade culposa ( negligência "lato sensu" ). Obviamente deverá a autoridade, com base nos fatores pertinentes ao caso - freqüência dos atos, valor das operações, volume etc. - , caracterizar a presença de dolo ou culpa. Inferidos tais elementos, deverão os indiciados contraprovar, contra-indiciar, incisivamente demonstrar que não são culpados pelos fatos em razão dos quais foram processados. Mais uma vez reiteramos: só assim, separando a responsabilidade subjetiva do "onus probandi", é que salvaguardaremos melhor o bem público dos infratores da Administração.