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JORGE DE FIGUEIREDO DIAS

NUNO BRANDÃO

Sujeitos Processuais Penais:


o Arguido e o Defensor

Texto de apoio ao estudo da unidade


curricular de Direito Processual Penal do
Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses
da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra (2020/2021)

Coimbra

2020
2

Este estudo toma por base o 2.º Capítulo (“O arguido e o seu defensor”) da Parte II (“Os
Sujeitos Processuais”) da obra Direito Processual Penal publicada pelo primeiro
subscritor em 1974, aqui revisto e atualizado pelo segundo subscritor.

O texto encontra-se disponível em https://apps.uc.pt/mypage/faculty/nbrandao/pt/003.

Coimbra, dezembro de 2020

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS

NUNO BRANDÃO
3

ÍNDICE

ABREVIATURAS ............................................................................................................................. 4

PARTE I: O ARGUIDO ................................................................................................................... 5

§ 1. Conceito e terminologia .................................................................................................... 6

§ 2. Posição jurídica do arguido no processo penal: fundamentos gerais ................................ 7

§ 3. Aquisição da qualidade de arguido ................................................................................. 11

I. Constituição de arguido .............................................................................................. 12

II. Atribuição ope legis da qualidade de arguido ............................................................ 22

III. Procedimento e formalidades ................................................................................... 24

§ 4. Estatuto processual do arguido ........................................................................................ 27

I. O direito de defesa ...................................................................................................... 27

II. O direito à presunção de inocência ............................................................................ 35

III. O direito ao respeito pela decisão de vontade do arguido (em especial, o direito à
não autoincriminação) ............................................................................................... 38

IV. Os deveres processuais do arguido........................................................................... 46

PARTE II: O DEFENSOR ............................................................................................................... 50

§ 1. Função e posição jurídica do defensor em processo penal .............................................. 51

§ 2. Admissibilidade e obrigatoriedade da assistência por defensor ...................................... 56

§ 3. A assunção da defesa ....................................................................................................... 62

§ 4. O exercício da função de defesa ...................................................................................... 66

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................. 77
4

ABREVIATURAS

BFDUC – Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


BGH – Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal alemão)
BMJ – Boletim do Ministério da Justiça
BVerfGE – Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts
CDFUE – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
CEDH – Convenção Europeia dos Direitos Humanos
CEPMPL – Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade
CJ – Coletânea de Jurisprudência
CJ STJ – Coletânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
CRP – Constituição da República Portuguesa
CP – Código Penal
CPP – Código de Processo Penal
CRP – Constituição da República Portuguesa
DAR – Diário da Assembleia da República
DL – Decreto-Lei
DR – Diário da República
GG – Grundgesetz (Lei Constitucional da República Federal da Alemanha)
LAD – Lei do Acesso ao Direito
LOSJ – Lei da Organização do Sistema Judiciário
NJW – Neue Juristische Wochenschrift
NStZ – Neue Zeitschrift für Strafrecht

PICDP – Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos


RLJ – Revista de Legislação e de Jurisprudência
RMP – Revista do Ministério Público
ROA – Revista da Ordem dos Advogados
RPCC – Revista Portuguesa de Ciência Criminal
StPO – Strafprozeβordnung (Código de Processo Penal alemão)
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
ZStW – Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft

 Pertencem ao CPP os preceitos legais indicados em texto sem menção expressa do diploma a que se referem.
5

PARTE I

O ARGUIDO
6

§ 1. CONCEITO E TERMINOLOGIA

1. O arguido constitui o “sujeito passivo” do processo penal, a pessoa, singular ou


coletiva, visada pelo processo a quem é atribuída tal qualidade. Se na fase do inquérito a
aquisição da qualidade de arguido se mostra dependente de diversas contingências
processuais, podendo dar-se o caso de o processo correr sem que haja qualquer arguido
constituído, uma vez entrando ele em uma das fases subsequentes, do julgamento ou
(mesmo antes) da instrução, deverá obrigatoriamente desenrolar-se contra pessoa
determinada, a quem deve imperativamente caber a qualidade de arguido. Embora se trate
da figura central do processo, e diferentemente do que sucede em relação ao suspeito (art.
1.º, e)), o Código não apresenta qualquer definição de arguido1. O reconhecimento de
que certa pessoa é detentora da qualidade de arguido decorre antes da concessão dessa
condição através de uma das vias legalmente previstas (arts. 57.º a 59.º).

À constituição de uma pessoa como arguido devem ligar-se, do ponto de vista do


processo penal, efeitos da maior importância que se afastam notoriamente, quanto ao seu
regime, dos que são cabidos às pessoas que intervenham em outra veste processual,
maxime como simples testemunhas. Assim, por exemplo, é profundamente diverso o
regime do interrogatório do arguido (art. 140.º e ss.), relativamente ao das testemunhas
(art. 128.º e ss.), revestindo-se aquele de um formalismo mais complexo e de muito
maiores garantias do que este.

Sem prejuízo de a categoria de arguido servir para acorrer à necessidade de


imposição de deveres ao sujeito passivo do processo, a emancipação do arguido como
autónomo sujeito processual liga-se sobretudo ao interesse em dotar essa pessoa de um
estatuto processual próprio que lhe assegure a possibilidade de efetivar a sua defesa no
processo, mediante exercício dos direitos, liberdades e garantias que para esse efeito lhe
são constitucional e legalmente reconhecidos (cf. art. 60.º). Esta teleologia legal vem
entrando, porém, em choque com as perceções sociais dirigidas à figura do arguido e com
o estigma que a acompanha, em larga medida alimentado por parte relevante da

1
Diversamente do Código anterior, que, no art. 251.º, definia arguido como “aquele sobre quem recaia
forte suspeita de ter perpetrado uma infração, cuja existência esteja suficientemente comprovada” – cf.
FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 425 e ss.
7

comunicação social no conhecido fenómeno do “trial by media”2. O legislador nacional


não foi insensível a esta situação paradoxal e respondeu-lhe, na revisão de 2007 do CPP,
com uma reformulação do teor de algumas das normas relativas à constituição de
arguido3.

2. O sistema da nossa lei actual dá ensejo a que se distinga o arguido – tal como
acaba de ser juridicamente caracterizado – do simplesmente suspeito, ou seja, de “toda a
pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um
crime, ou que nele participou ou se prepara para participar” (art. 1.º, e)); numa indiciação,
em todo o caso, sem força bastante para que possa considerar-se que sobre tal pessoa recai
já uma suspeita fundada, nos termos previstos pelos arts. 58.º/1/a) e 59.º/2. De todo modo,
não se pode deixar de assinalar que o n.º 2 do art. 59.º permite ao simples suspeito requerer
que passe a ser tratado, no processo, como verdadeiro arguido; a ideia aqui latente – a de
assim obviar a que, através de uma recusa ou demora na formal constituição de arguido,
se encurtem ilegitimamente os direitos e as garantias que devem ser dados materialmente
a quem vê dirigir-se contra si um processo penal – merece incondicional aplauso.

§ 2. POSIÇÃO JURÍDICA DO ARGUIDO NO PROCESSO PENAL: FUNDAMENTOS GERAIS

1. O estatuto jurídico que ao arguido seja assegurado em um certo processo penal


constitui, por excelência, a pedra de toque para avaliar do espírito do ordenamento
jurídico processual penal respetivo, enquanto é naquele que faz crise a questão decisiva
nesta matéria: a da forma de conceber as relações entre o Estado e a pessoa individual e
a consequente posição desta na comunidade4. “Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o
processo penal que tens e o Estado que o instituiu” – eis um slogan que poderá caracterizar
impressivamente a relevância do problema de que agora curamos.

2
JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS, “O arguido detido e o seu interrogatório”, in: Liber Discipulorum para
Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora 2003, p. 1273 ss.
3
Cf. MARQUES DA SILVA, I2, p. 304, nota 2.
4
Cf. FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 58 e ss.
8

As afirmações feitas são amplamente confirmadas por uma análise, mesmo


perfunctória, da evolução histórica – não só entre nós, aliás, mas em todas os outros países
de idênticos níveis de civilização e de cultura5 – do estatuto jurídico do arguido no
processo penal: ele esteve sempre em correspondência direta com os fundamentos
políticos da respetiva ideia do Estado.

Assim se compreende que – dentro dos limites consentidos pelo primitivismo das
instituições processuais penais – o estatuto do arguido no nosso direito processual penal
do tempo da reconquista lhe fosse favorável, até ao ponto de permitir a Dias da Silva6
afirmar que neste período “a autoridade defendia menos os particulares contra os
delinquentes, do que os delinquentes contra os particulares ofendidos”.

Igualmente se compreende a rápida e progressiva deterioração daquele estatuto


com o advento das ideias inquisitórias – como se mostra pela autorização, dada pelas
Ordenações Filipinas, ao uso da tortura e, exemplarmente, pelo simulacro de direito de
defesa do arguido contido nos diversos regimentos do Santo Ofício da Inquisição dos
Reinos de Portugal (maxime no de 1640)7. No processo inquisitório, com efeito, é toda a
força de um Estado fundado em um princípio totalitário que se põe ao serviço da
investigação da verdade material; com uma tal desconsideração, porém, pelas liberdades
fundamentais do arguido e pela sua dignidade de pessoa, que o direito de defesa se torna
de real em aparente e o arguido se transforma em mero “objeto” de um processo que nada
mais visa do que obter a sua “confissão”; tudo a justificar completamente a afirmação de
um documento coevo: “Evidente é que saírem tantos confessos não é realidade da culpa,
mas culpa do processo”8.

Foi intenção primacial das reformas processuais do séc. XIX, operadas sob o
influxo das ideias revolucionárias, ligar a investigação da verdade material aos
pressupostos do Estado de Direito, limitando-a assim pela observância escrupulosa dos

5
No sentido preciso das considerações que se seguem, HENKEL2 § 38 II.
6
MANUEL DIAS DA SILVA, Estudo sobre a Responsabilidade Civil Connexa com a Criminal, I,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1886, p. 51.
7
Sobre tudo isto pode ler-se ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA, Inquisição e Cristãos-Novos, Editorial Inova,
1969, III (esp. p. 108 ss.: “o processo inquisitorial e o processo comum”).
8
Cf. as Notícias reconditas do modo de proceder da Inquisição com os seus presos (ca. de 1673),
referidas em A. J. SARAIVA, cit., p. 107. Para uma caracterização paralela da situação do arguido no
processo inquisitório, CAVALEIRO DE FERREIRA, I, p. 143 s.
9

direitos, liberdades e garantias do cidadão. Daí, justamente, que importasse assegurar ao


arguido, no processo penal, a posição de sujeito dotado de um real e efetivo direito de
defesa. Com isto não se pretendeu apenas – ou nem tanto – limitar o poder do Estado e o
arbítrio dos seus representantes, mas corresponder à ideia, finalmente adquirida por uma
consciência jurídica mais desperta, de que não há verdade material onde não tenha sido
dada ao arguido a mais ampla e efetiva possibilidade de se defender da suspeita que
sobre ele pesa, onde, numa palavra, não tenha sido conferida ao arguido a proteção do
direito.

É sob a perspetiva desta evolução civilizacional do processo penal na direção da


jus-estadualidade que adquire sentido a determinação constitucional de que “o processo
criminal tem estrutura acusatória” (art. 32.º/5 da CRP). Decisivo para esse efeito será o
estatuto atribuído ao arguido. Se a estrutura acusatória não poderá prescindir de uma
conformação do processo segundo o princípio da acusação9, a sua materialização
dependerá ainda, de forma decisiva, da posição que nele é reconhecida ao arguido. Com
efeito, a máxima constitucional de que o processo criminal tem estrutura acusatória
cumpre-se fundamentalmente através de uma consideração do arguido como autêntico
sujeito processual10. É nessa qualidade de sujeito que deve o arguido ser encarado e
tratado por todos os poderes públicos, nomeadamente, pelo legislador, pelas autoridades
judiciárias11 e pelos órgãos de polícia criminal.

2. Afirmar-se pois, como agora se afirma, que o arguido é sujeito e não objeto do
processo significa, em geral, ter de se assegurar àquele uma posição jurídica que lhe
permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através

9
FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1988, p. 199 e ss.
10
Assim, logo JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “La protection des Droits de L'Homme dans la procedure
penale portugaise”, BMJ, n.º 291, 1979, p. 167, e agora, pela generalidade da doutrina nacional, MARQUES
DA SILVA / HENRIQUE SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada, I2, Art. 32.º, XVII.
11
Lapidar, o Ac. do TRP de 25-02-2009 (Proc. n.º 0846910): “Sem desconsiderar, em absoluto, no
caso, a posição processual do arguido, o Ministério Público, na 1.ª instância, não pode presumir que os
esclarecimentos que o arguido pudesse vir a pedir ou a nova perícia que pudesse vir a requerer seriam
irrelevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. Na posição “fechada” de se ater à
acusação deduzida, no desprezo dos contributos que, em resultado da iniciativa do arguido, pudessem
chegar ao processo, o Ministério Público, na 1.ª instância, deixou de ter em atenção que, na sua atuação, se
deve orientar por critérios de legalidade e objetividade, sempre visando a descoberta da verdade e a
realização do direito”.
10

da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão de ser


respeitados por todos os intervenientes no processo penal.

Não quer isto dizer que o arguido não possa, em termos demarcados pela lei por
forma estrita e expressa, ser objeto de medidas coativas e constituir, ele próprio, um meio
de prova12. Quer dizer, sim, que as medidas coativas e probatórias que sobre ele se
exerçam não poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de qualquer forma de
autoincriminação, e que, pelo contrário, todos os atos processuais do arguido deverão
ser expressão da sua livre personalidade.

Por aqui passará o essencial da previsão constitucional de que “o processo


criminal assegura todas as garantias de defesa” (art. 32.º/1 da CRP), naturalmente válida
para todos os arguidos, sem distinções, e em qualquer estádio ou fase de desenvolvimento
do processo. Contando estas garantias de defesa entre os direitos, liberdades e garantias
fundamentais dos cidadãos, revela já a Constituição que a posição jurídica dentro do
processo penal é a mesma para todos os arguidos, com negação de qualquer privilégio
de nascimento, raça, sexo, religião ou condição social13 — o que aliás corresponde só ao
princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (art. 13.º da CRP).

Ao direito de defesa e ao respeito pela decisão de vontade do arguido liga-se, na


conformação da posição processual do arguido, um direito à presunção de inocência até
ao trânsito em julgado da condenação (art. 32.º/2 da CRP). É sobre este tripé,
constitucionalmente fundado, que o Código determina a posição processual que ao
arguido cabe no processo14: “ Desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade
de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e de deveres processuais, sem prejuízo
da aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e da efetivação de diligências
probatórias, nos termos especificados na lei” (art. 60.º). A ela voltaremos infra, para uma
sua análise mais detida.

12
ROXIN / SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht28, § 25, 1.
13
É neste sentido, claramente, que deve tomar-se a igualdade referida, e já não no de igualdade
concreta de toda e qualquer manifestação do direito de defesa, que pode efetivamente (e legitimamente)
variar consoante o particular condicionalismo processual de que se revista a posição do arguido — v. g.
estar presente ou ausente, ser imputável ou inimputável, ser ou não surdo-mudo, etc.
14
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”,
in: CEJ (org.), Jornadas de Direito Processual Penal: o Novo Código de Processo Penal, Coimbra,
Almedina, 1988, p. 26 e ss., e agora também MARIA JOÃO ANTUNES, DPP2, p. 39 e ss.
11

§ 3. AQUISIÇÃO DA QUALIDADE DE ARGUIDO

Apesar de não apresentar uma definição de arguido, o Código não deixa de


estabelecer vias e pressupostos de atribuição dessa qualidade, designadamente, nos arts.
57.º a 59.º, tendo especialmente em conta a necessidade de assegurar ao visado pelo
processo a titularidade e o gozo efetivos dos direitos e garantias processuais conferidos
ao arguido precisamente em função da circunstância de o processo contra ele correr. Fá-
lo em cumprimento da injunção nesta matéria estabelecida pela Lei de Autorização do
CPP de 1987 (art. 2.º/8 da Lei n.º 43/86, de 26/9): “Definição rigorosa do momento e do
modo de obtenção do estatuto de arguido, com carácter irreversível e concomitante
estatuição da obrigatoriedade para as autoridades judiciárias e de polícia criminal de
explicitarem os direitos e deveres inerentes a tal qualidade”. Estando em questão a
aquisição de uma qualidade que fará do visado sujeito passivo do processo, tornando-o
na sua figura central, a constituição de um suspeito como arguido é matéria que não
poderia deixar de ser estrita e legalmente regulada.

Encontramo-nos, com efeito, num domínio legalmente vinculado, seja no sentido


de vedar a atribuição da qualidade de arguido quando não haja fundamento legal para tal,
seja no de exigir a colocação do visado nessa posição processual no caso de se verificar
determinada situação. Nesta segunda vertente, como veremos, está mesmo em causa a
prática de um ato legalmente obrigatório, isto é, que não resulta do exercício de um poder
discricionário atribuído às autoridades judiciárias ou aos órgãos de polícia criminal, mas
antes releva do cumprimento de um dever legal. Pois se a definição do momento da
realização do ato pressuposto pela constituição de arguido (v. g., o interrogatório de
pessoa sobre a qual recai suspeita fundada, a promoção da aplicação de medida de coação,
a detenção fora de flagrante delito) pode caber na margem de liberdade de atuação do
Ministério Público em função da estratégia definida para a investigação15, já o mesmo
não sucede com a constituição de arguido. Esta é legalmente vinculada não só quanto ao

15
Em termos semelhantes, PAULO DÁ MESQUITA, Comentário Judiciário do CPP, I, Art. 58.º, § 10.
Em direção contrária, JOSÉ LOBO MOUTINHO, Arguido e Imputado no Processo Penal Português, Univ.
Católica Editora, 2000, p. 64 e ss.
12

seu se, como também em relação ao seu quando: verificado o circunstancialismo de que
depende a sua concretização, ela deve ter imediatamente lugar (cf. o proémio do n.º 1 do
art. 58.º: “é obrigatória a constituição de arguido logo que”).

O CPP prevê três vias através das quais um suspeito adquirirá a qualidade de
arguido no processo: de forma automática, ope legis, no caso de ser visado por uma
acusação ou por um requerimento de abertura da instrução (art. 57.º/1); por decisão de
uma autoridade judiciária ou de um órgão de polícia criminal, legalmente imposta no caso
de se verificarem determinadas circunstâncias (arts. 58.º/1 e 59.º/1); e a pedido do próprio
suspeito (art. 59.º/2). Fora destes casos, não haverá razão nem base legal para que alguém
seja constituído arguido no processo.

I. Constituição de arguido

1. No processo comum, desde que se passou a prever, no art. 272.º/1, que,


correndo inquérito contra pessoa determinada, é obrigatório interrogá-la como arguido16,
na generalidade dos casos a aquisição da qualidade de arguido passou a ocorrer logo na
fase de inquérito. A via prevista no art. 57.º/1, que na versão originária do Código
correspondia à forma por excelência de atribuição da qualidade de arguido, passou a ter
assim um caráter residual17.

É no quadro do cumprimento de um dever legal, de constituição de um suspeito


como arguido, que, as mais das vezes, essa qualidade é adquirida, logo na fase de
inquérito.

Os arts. 58.º/1 e 59.º/1 preveem os casos em que essa constituição é imediatamente


obrigatória.

Trata-se sempre de casos em que o suspeito se confronta direta e pessoalmente


com o processo, tendo como interlocutor imediato uma autoridade judiciária ou um órgão
de polícia criminal, intensificando-se, por isso, a necessidade, referida supra, de

16
Exigência introduzida na revisão de 1998 do CPP e revista em 2007, impondo-se, desde então, que
“correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime
é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la”.
17
LOBO MOUTINHO, Arguido e Imputado no Processo Penal Português, p. 53.
13

asseguramento efetivo dos direitos de defesa que cabem ao arguido. Em tais situações,
sobreleva o risco de uma autoincriminação inadvertida ou enganosamente induzida.
Consciente desse risco, o legislador fulmina com uma terminante proibição de prova as
declarações prestadas pelo suspeito que não foi constituído arguido quando o deveria ter
sido ou que, embora constituído arguido, não tenha sido devidamente informado dos
direitos e deveres processuais inerentes a essa qualidade (art. 58.º/5)18. Proibição de prova
esta que é reveladora de que a proteção do princípio da proibição da autoincriminação,
em especial na sua vertente do direito ao silêncio, é uma preocupação central nesta
matéria e que confirma que o regime legal de constituição de arguido se encontra em larga
medida teleologicamente conformado em função de um propósito de tutela dessa garantia
fundamental.

Assim se compreende a forma particularmente impositiva com que o legislador se


exprime neste contexto: “é obrigatória a constituição de arguido logo que” (art. 58.º/1);
“se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita
de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e
procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do artigo anterior”. Um rigor que
não pode deixar de ser acompanhado pelo aplicador, seja no cumprimento destas
obrigações legalmente estabelecidas, seja no controlo da sua observância.

2. É obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra


pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta
prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal
(art. 58.º/1/a)).

2.1 A norma dirige-se, em primeira linha, aos atos processuais de tomada de


declarações a um suspeito que tenham lugar durante o inquérito, legalmente designados

18
Nesta direção, no domínio do CPP de 1929, já FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 446 e ss., e no
quadro atual, MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra
Editora, 1992, pp. 88 e s. e 126, PINTO DE ALBUQUERQUE, CPP4, Art. 58.º, 12., HENRIQUES GASPAR, CPP
Comentado, Art. 58.º, 2., PAULO DÁ MESQUITA, Comentário Judiciário do CPP, I, Art. 58.º, § 26 e ss., e
SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, Almedina, 2018, p. 362 e ss.
E na jurisprudência, v. g., o Ac. do STJ de 04.01.2007 (Proc. n.º 3111/06).
14

como interrogatórios (arts. 140.º a 144.º). Quando as autoridades judiciárias ou os órgãos


de polícia criminal pretendam ouvir um suspeito sobre factos objeto do processo deverão,
antes de lhe tomarem declarações, nomeadamente se a suspeita for fundada, constituí-lo
arguido, procedendo às comunicações que se preveem no n.º 2 do art. 58.º: comunicando-
lhe que, a partir desse momento, passa a ser arguido no processo penal em curso; e
indicando-lhe os direitos e deveres processuais que por essa razão passam a caber-lhe,
como, por exemplo, o direito a não prestar declarações sobre os factos que lhe são
imputados ou o direito a constituir defensor e a ser por ele assistido.

Visa-se, por esta forma, viabilizar e garantir uma efetiva liberdade de declaração
da pessoa contra quem o processo corre: quer a liberdade positiva, isto é, de prestar
declarações sobre os factos objeto do processo; quer a liberdade negativa, isto é, de, pura
e simplesmente, não falar sobre eles. Uma vez constituído arguido, o visado deverá ser
informado dos factos que lhe são imputados antes de ser interrogado sobre eles (arts.
61.º/1/c) e 141.º/4/d), aplicáveis aos vários tipos de interrogatórios que podem ter lugar
durante o inquérito) e, em regra, deverá poder consultar o processo (arts. 86.º/1, 86.º/6/c)
e 89.º/1). Decorrendo o interrogatório perante uma autoridade judiciária, será obrigatória
a assistência do defensor (art. 64.º/1/b)); e decorrendo perante um órgão de polícia
criminal, não estando o arguido detido, deverá ser informado, antes de iniciado o
interrogatório, de que tem o direito a ser assistido por advogado (art. 144.º/4). Tudo o
que, naturalmente, favorecerá um exercício informado e esclarecido da sua liberdade de
declaração, positiva e negativa.

Embora vise imediata e essencialmente tutelar o direito de defesa da pessoa visada


pelo processo, a obrigação da constituição dessa pessoa como arguido, quando sobre ela
recaia uma suspeita fundada, não deixa de se ligar também, pelo menos reflexa e
mediatamente, ao cumprimento do dever de investigar19 inerente ao princípio da
legalidade da promoção processual20. Em regra, a observância desse dever implica a
abertura de um (novo) inquérito quando seja adquirida a notícia de um crime (art. 263.º/3).
Mas implica ainda, se existir uma conexão processual (cf. arts. 24.º e 25.º)21, sob pena de

19
PEDRO CAEIRO, “Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da «justiça absoluta»
e o fetiche da «gestão eficiente» do sistema”, RMP, n.º 84, 2000, p. 32.
20
GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, CRP Anotada4, I, Art. 32.º, IV.
21
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS / NUNO BRANDÃO, Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal, FDUC,
2015, p. 55 e ss.
15

nulidade insanável por falta de promoção processual (art. 119.º/b)), o alargamento do


objeto de um inquérito já em curso e das pessoas que nele são investigadas se forem
descobertos novos factos com relevo criminal ou se forem recolhidos indícios de que
outras pessoas, para além daquelas contra quem o inquérito já corre, tiveram participação
nos factos sob indagação22. Pretendendo-se tomar declarações a pessoa que, considerando
os meios de prova existentes no processo, não pode deixar de considerar-se alvo de
suspeita fundada de (com)participação na factualidade objeto do inquérito, o dever de a
constituir arguido imposto pela al. a) do n.º 1 do art. 58.º serve a proteção do direito de
defesa dessa pessoa, mas também serve, assim, indiretamente, o cumprimento da
obrigação de promoção processual que impende sobre os investigadores. Deste modo,
uma colaboração probatória obtida de pessoa sobre quem possa, objetivamente, formar-
se um juízo de suspeita fundada que não seja precedida da sua constituição como arguido,
para a poupar ao procedimento criminal e assim viabilizar um contributo probatório
incriminador de terceiros objeto da investigação (sc., uma colaboração premiada), não
deixa de representar uma violação da exigência estatuída pelo art. 58.º/1/a), que se
repercute numa proibição de utilização da prova assim fraudulentamente obtida23.

2.2 O art. 58.º/1/a) vale também ainda fora de um ambiente formal de tomada de
declarações em sede de interrogatório. Pode suceder que, logo numa fase embrionária da
investigação, sejam recolhidos elementos e informações que, objetivamente, permitam
formar um juízo de suspeita fundada da prática de crime por pessoa determinada. Em tais
situações, quando haja uma abordagem, mesmo que informal, a tal pessoa, com vista a
averiguar uma sua eventual participação nos factos sob averiguação, por parte de quem
materialmente conduz a investigação, deverá a indagação que se pretenda realizar com a
sua colaboração ser precedida da sua constituição como arguido24. Só deste modo se
garante que a cooperação eventualmente recebida do investigado representa um exercício
esclarecido da sua liberdade de declaração e uma expressão real do seu direito de
autodeterminação pessoal. Recaindo suspeita sobre pessoa determinada, vale aqui um

22
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS / NUNO BRANDÃO, “Uma instrução inadmissível”, RPCC, 2009, p. 666
e ss.
NUNO BRANDÃO, “Colaboração probatória no sistema penal português: prémios penais e
23

processuais”, Julgar, n.º 38, 2019, p. 128 e s.


24
SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p. 528 e ss.
16

critério subjetivo-objetivo, à luz do qual importa saber se há um intuito de averiguação


do seu papel na prática do crime (vertente subjetiva) e se tal intenção se exterioriza na
realização de atos processuais dirigidos a essa finalidade (vertente objetiva)25. Se tal
suceder, o visado deverá ser então constituído arguido, se a suspeita for fundada, ou, pelo
menos, não havendo ainda razão para considerar a suspeita como fundada, ser informado
de que sobre ele pende um juízo de suspeição e que, por isso, não está obrigado a
colaborar com a investigação26.

Pistas e provas informalmente obtidas de visado que não foi previamente


constituído arguido27, quando o deveria ter sido, não poderão ser utilizadas como prova
(art. 58.º/5), nem em primeira, nem em segunda mão, através da sua reprodução em
momento processual posterior pelo investigador que as recolheu num contacto informal
com o visado. Proibição que é imprescindível para prevenir e desincentivar práticas de
investigação desleais que passem por retardar a constituição do investigado como arguido
com o intuito de dele obter dados com relevo para o apuramento dos factos 28. Nesse
sentido, declarações assim obtidas deverão considerar-se, do mesmo passo, abrangidas
pela proibição prevista no n.º 7 do art. 356.º, pois só desse modo se garantirá que uma tal
deslealdade não compensa. Atento o referido critério subjetivo-objetivo, esta proibição
de valoração não deverá abranger, em todo o caso, as revelações espontaneamente feitas
pelo agente do crime a agentes policiais, por exemplo, à chegada ao local do facto logo
após o recebimento da sua notícia, nas averiguações iniciais sobre o ocorrido que se
realizem sem sombra de suspeita sobre o declarante29.

25
Ac. do BGH de 28.02.1997 e KLAUS ROGALL, “Vernehmung eines Beschuldigten als Zeugen”,
NStZ, 1997, p. 399.
26
ROXIN / SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht28, § 25, 11.
27
A situação ora em consideração distingue-se das chamadas conversas informais, nas quais estão em
causa informações recolhidas por órgãos de polícia criminal através de conversas travadas, num ambiente
de informalidade, com aquele que já foi formalmente constituído arguido. Pronunciando-se, com razão,
pela inadmissibilidade da utilização de tais informações como prova, pela generalidade da doutrina e
jurisprudência, respetivamente, J. M. DAMIÃO DA CUNHA, “O regime processual de leitura de declarações
na audiência de julgamento (arts. 356º e 357º do CPP)”, RPCC, 1997, p. 422 e ss., e o Ac. do STJ de
04.01.2007 (Proc. n.º 3111/06).
28
Cf., não obstante, o Acórdão STJ de 22.04.2004 (Proc. n.º 04P902), adotando um inaceitável critério
formalista. Na direção que se defende em texto, cf. a posição do TEDH no caso Aleksandr Zaichenko v.
Rússia (Ac. de 28.06.2010), 42. e 52 e ss.
29
ROXIN / SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht28, § 25, 11, e GRIESBAUM, KK-StPO8, § 163a, nm. 2.
Desenvolvidamente, SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p. 524
e ss.
17

2.3 Na revisão de 2007 do CPP, o legislador reformulou o conteúdo da alínea a)


do n.º 1 do art. 58.º, clarificando30 que a obrigatoriedade de constituição de arguido nela
prevista só vale quando sobre a pessoa visada, a quem se queira tomar declarações, incida
uma suspeita fundada da prática de crime. Com esta explicitação de que a suspeita, para
poder acionar o dever de constituição de arguido, deve ser fundada ter-se-á pretendido
refrear uma certa tendência que se vinha manifestando na praxis judiciária de ligeireza na
atribuição da qualidade de arguido, apesar do crescente estigma social associado à figura
do arguido. Embora justificada31, esta clarificação intensificou a exposição do ato de
constituição de arguido a manipulações desleais, traduzidas, nomeadamente, na
inquirição de pessoas sob investigação como testemunha, e não como arguido, com o
pretexto de que a suspeita existente não chega a ser fundada, reservando-se para momento
ulterior a formalização da sua constituição como arguido32.

A suspeita deverá considerar-se fundada se, no momento em que se pretenda obter


declarações do visado, tiverem sido já recolhidos elementos e informações que indiciem
de forma sólida e consistente a sua participação na prática de crime sob investigação33.
Caso tal suceda, o visado deverá ser constituído arguido e interrogado nessa qualidade.
Se não, põe-se o problema de saber em que qualidade deverá ser ouvido.

O Código não esclarece esta questão, não existindo disciplina que regule a
inquirição daquele que, sendo alvo de suspeita (objetivamente, não fundada), é chamado
a prestar declarações no inquérito que contra si corre. Na ausência de uma regulação sobre
a matéria, disseminou-se, sobretudo a partir da revisão de 2007 do CPP, a prática de ouvir
o suspeito como testemunha34, com o que fica ele obrigado a prestar juramento quando
ouvido por autoridade judiciária (132.º/1/b)) e a responder com verdade às perguntas que

30
LOBO MOUTINHO, Arguido e Imputado no Processo Penal Português, p. 97 e ss.
31
Cf. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, CRP Anotada4, I, Art. 32.º, V.
32
Um perigo para o qual alertou logo MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão
Passado”, a Reforma do Código de Processo Penal, Coimbra Editora, 2009, p. 76 e s., e de que dá conta
também PINTO DE ALBUQUERQUE, CPP4, Art. 58.º, 3.
33
Critério que se aproxima do que valia na vigência do CPP de 1929, cujo art. 251.º (Definição de
arguido) prescrevia “é arguido aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infração, cuja
existência esteja suficientemente comprovada” – cf. FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 425, e MARIA JOÃO
ANTUNES, DPP2, p. 38.
34
Nesta direção, MARQUES DA SILVA, I2, p. 308.
18

lhe forem dirigidas (132.º/1/d)), estando sujeito ao ónus de alegar o risco de


autoincriminação para ficar desobrigado a responder a perguntas que lhe sejam
colocadas35 (132.º/2). Parece-nos que se trata de um enquadramento desajustado, que não
se coaduna com o perfil típico de uma testemunha, o de alguém que, não tendo tido uma
participação penalmente relevante nos factos sob averiguação, possui conhecimento
direto deles (art. 128.º).

Estando prevista e até definida no Código a figura do suspeito (art. 1.º/e)) é a ela
que se deverá recorrer nestes casos: não devendo ser interrogado como arguido, por sobre
ele não incidir suspeita fundada, o visado deverá ser ouvido como suspeito. Nessa
qualidade, assistir-lhe-ão certos direitos processuais, como, por exemplo, os inerentes ao
princípio da proibição da autoincriminação, de que é titular não só o arguido como
também o suspeito36/37, o de ser assistido por advogado, o de aceder ao processo nos casos
em que o acesso pode ser facultado ao arguido e o de ser notificado do despacho de
encerramento do inquérito38.

3. Próxima da hipótese prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 58.º é a hipótese


descrita no art. 59.º/1: “Se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido,
surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto
suspende-o imediatamente e procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do
artigo anterior”.

No art. 59.º/1 têm-se em vista os casos em que alguém, encontrando-se a depor


numa qualidade diferente da de arguido (v. g., como suspeito, testemunha ou até mesmo

35
ANTÓNIO ALBERTO MEDINA DE SEIÇA, O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Coimbra
Editora, 1999, p. 26 e ss.
36
Nesta direção, LOBO MOUTINHO, Arguido e Imputado no Processo Penal Português, p. 170 e ss.,
PINTO DE ALBUQUERQUE, CPP4, Art. 57.º, 22., PAULO DE SOUSA MENDES, Lições de Direito Processual
Penal, p. 123 e ss. Contra SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p.
531 e ss.
37
Cf. o art. 7.º (Direito de guardar silêncio e direito de não se autoincriminar) da Diretiva (UE)
2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 09.03.2016, relativa ao reforço de certos aspetos da
presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal: “1. Os Estados-
Membros asseguram que o suspeito ou o arguido têm o direito de guardar silêncio em relação ao ilícito
penal que é suspeito de ter cometido ou em relação ao qual é arguido. 2. Os Estados-Membros asseguram
que o suspeito ou o arguido têm o direito de não se autoincriminar”.
38
Para mais exemplos, PINTO DE ALBUQUERQUE, CPP4, Art. 57.º, 22.
19

como assistente) presta declarações que implica a formação de uma suspeita fundada da
sua participação num crime. Quando tal suceda, deverá a entidade que procede ao ato
suspendê-lo imediatamente e proceder à constituição do depoente como arguido, para
salvaguarda, sobretudo, do seu direito à não autoincriminação.

Diferentemente do que sucede no art. 58.º/1/a), em que é feita expressa menção


ao inquérito, no art. 59.º/1 não se circunscreve o seu alcance apenas a essa fase processual,
parecendo, até tendo em conta a sua teleologia, que deverá valer noutras fases
processuais39.

Sendo cumprida a obrigação estabelecida pelo art. 59.º/1, as declarações prestadas


pelo visado antes da sua constituição como arguido não poderão valer como prova, a
menos que ele, já depois de constituído arguido, nisso consinta, por exemplo, dando-as
por reiteradas. Declarações obtidas em violação da obrigação prevista neste preceito estão
sujeitas à proibição de valoração prevista no art. 58.º/5 (ex vi art. 59.º/340).

4. É obrigatória a constituição de arguido logo que tenha de ser aplicada a


qualquer pessoa uma medida de coação ou de garantia patrimonial, ressalvado o
disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 192.º (art. 58.º/1/b)).

A aplicação de qualquer medida de coação depende da prévia constituição como


arguido, nos termos do artigo 58.º, da pessoa que dela for objeto (art. 192.º/1) e a aplicação
de medidas de garantia patrimonial também dependerá, em regra41, dessa condição (art.
192.º/2). Nestes casos, a prévia constituição do visado como arguido destina-se a garantir
que ele possa defender-se plena e cabalmente face às pretensões de ingerência nas suas
liberdades fundamentais e nos seus direitos patrimoniais que a aplicação daquelas
medidas implica. De uma outra perspetiva, a sua constituição como arguido viabiliza a

39
Contra, limitando o âmbito do art. 59.º/1 à fase de inquérito, PAULO DÁ MESQUITA, Comentário
Judiciário do CPP, I, Art. 59.º, § 3.
40
A remissão constante do art. 59.º/3 deve considerar-se feita para os n.ºs 4 e 5 do art. 58.º, por ser
manifesto o lapso do legislador: não atualizou a redação do art. 59.º/3 quando, na revisão de 2007 do CPP,
introduziu no art. 58.º o seu atual n.º 3, passando o anterior n.ºs 3 a n.º 4 e por aí fora,
41
As exceções, previstas nos n.ºs 3 a 5 do art. 192.º, foram introduzidas pela Lei n.º 30/2007, com o
intuito de viabilizar a imposição de medidas de garantia patrimonial sem contraditório prévio do visado.
Sobre o regime anterior à Lei n.º 30/2007, MANUEL DA COSTA ANDRADE / MARIA JOÃO ANTUNES, “Da
natureza processual penal do arresto preventivo”, RPCC, 2017, p. 137 e ss.
20

imposição do dever de se sujeitar às regras de execução das medidas de coação e de


garantia patrimonial que lhe forem aplicadas (art. 61.º/6/d)).

5. É obrigatória a constituição de arguido logo que um suspeito for detido, nos


termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º (art. 58.º/1/c)).

Sendo um suspeito privado da liberdade, mediante detenção, em flagrante delito


ou fora dele, deverá ser imediatamente constituído arguido, de forma a que possa ficar
perfeitamente ciente de que sobre ele recai uma suspeita da prática de um crime42, sendo
essa a justificação para a sua privação de liberdade, e a que passe a dispor das garantias
de defesa asseguradas ao arguido.

Deparando-se uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal com um


flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, a detenção, se concretamente
exequível, surgirá não como uma opção, mas como um dever a cumprir (art. 255.º/1/a)).
Significa isto que, num caso de flagrante delito relativo a crime punível com pena de
prisão, havendo uma abordagem policial ao suspeito, deverá ela, em princípio, envolver
a detenção do visado, devendo seguir-se, ato contínuo, a sua constituição como arguido.
O que implicará, sem prejuízo do disposto no art. 143.º/1, no caso da sua sujeição a
interrogatório policial, a obrigatoriedade da assistência do defensor (art. 64.º/1/a)). Nesse
sentido, não é legalmente admitida, porque contrária ao disposto nos arts. 254.º/1/a) e
58.º/1/c), a condução de um suspeito surpreendido em flagrante delito a um posto policial,
sem prévia efetivação de detenção, e portanto aparentemente em liberdade, para aí o
sujeitar a um interrogatório como arguido. Práticas desse jaez visam iludir a aplicação
dos arts. 143.º/1 e 64.º/1/a) e não devem, por isso, ser toleradas.

6. É obrigatória a constituição de arguido logo que for levantado auto de notícia


que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a
notícia for manifestamente infundada (art. 58.º/1/d)).

42
Cf. INÊS HORTA PINTO, “O significado de informar «imediatamente e de forma compreensível» no
art. 27º, n.º 4 da Constituição”, ROA, 2006, III, p. 1313 e ss.
21

7. O último caso de constituição de arguido é o que se prevê no art. 59.º/2, aquele


em que essa condição é adquirida a pedido do próprio suspeito: “A pessoa sobre quem
recair suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como
arguido sempre que estiverem a ser efetuadas diligências, destinadas a comprovar a
imputação, que pessoalmente a afetem”. Deste modo, pretende-se assegurar que o visado
por uma investigação possa, para sua própria proteção, impulsionar a aquisição da
qualidade de arguido, seja em casos em que a constituição como arguido não é obrigatória
(porque a suspeita, por exemplo, não é fundada; ou porque está em causa uma diligência
que não implica a prestação de declarações, como uma busca) seja em situações em que
a entidade com quem o suspeito se confronta não dá cumprimento ao dever de o constituir
arguido, dessa forma privando-o das garantias de defesa que lhe devem ser asseguradas.

O pedido para a constituição como arguido só deverá ser atendido se estiverem


cumulativamente verificadas duas condições: i) que sobre o requerente recaia uma
suspeita (ainda que não fundada); e ii) que estejam a ser efetuadas diligências, destinadas
a comprovar a imputação, que pessoalmente o afetem43. V. g., o suspeito depara-se com
uma busca ao seu domicílio na qual se procuram provas do seu envolvimento no crime
sob investigação; o denunciado, em relação ao qual a autoridade judiciária considera não
existir uma suspeita fundada, é chamado para ser ouvido no processo que contra ele corre.

Se o requerente estiver a ser alvo de diligências que pessoalmente o afetem, mas


que não se destinem a comprovar uma imputação que sobre ele incida, não sendo suspeito,
não haverá razão para o constituir como arguido. E o mesmo se dirá na hipótese de o
interessado em adquirir a qualidade de arguido ser, de facto, suspeito, mas não estiver a
ser sujeito, no momento em que pede para ser constituído arguido44, a diligências que
pessoalmente o afetem, ou porque ainda nem sequer tiveram lugar ou porque, embora
tenham ocorrido, entretanto já cessaram.

43
LOBO MOUTINHO, Arguido e Imputado no Processo Penal Português, p. 136 e ss.
44
Diversamente, PAULO DÁ MESQUITA, Comentário Judiciário do CPP, I, Art. 58.º, § 10 e Art. 59.º,
§ 5 e ss.
22

II. Atribuição ope legis da qualidade de arguido

1. Determina o art. 57.º/1 que “assume a qualidade de arguido todo aquele contra
quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal”. A aquisição da
qualidade de arguido por esta via só ocorrerá naqueles casos em que o visado pela
acusação ou pelo requerimento de abertura da instrução não haja sido já antes, no decurso
do inquérito, constituído arguido, nos termos, analisados supra, do art. 58.º ou do art. 59.º

Aqui, é a própria lei que associa direta e automaticamente a aquisição da


qualidade de arguido aos atos processuais de dedução de acusação e de requerimento da
instrução, não fazendo depender a assunção dessa posição de uma decisão de uma
autoridade judiciária ou de um órgão de polícia criminal, como sucede nas hipóteses
previstas nos arts. 58.º/1 e 59.º/1/2. Nas hipóteses em que o art. 57.º/1 cobra aplicação,
ainda que haja o dever de comunicar ao visado que é arguido num processo penal (art.
58.º/2, ex vi art. 57.º/3), é por via da lei e não dessa comunicação que aquele passa a deter
a qualidade de arguido, tratando-se, por isso, de uma via de aquisição ope legis da
qualidade de arguido45.

2. No processo comum, a assunção da qualidade de arguido com a dedução da


acusação só ocorrerá excecionalmente, mais precisamente quando, durante o inquérito,
não tiver sido possível notificar aquele contra quem o processo corre e é alvo de uma
suspeita fundada para ser interrogado como arguido (art. 272.º/1). Sendo possível a
notificação, há o dever de o interrogar nessa qualidade, pelo que, as mais das vezes, sendo
o inquérito encerrado com um despacho de acusação este é deduzido contra quem já foi
previamente constituído arguido.

No processo abreviado, não havendo uma previsão legal de obrigatoriedade de


audição do suspeito na qualidade de arguido, o art. 57.º/1 terá aplicação não só nos casos

45
HENRIQUES GASPAR, CPP Comentado, Art. 58.º, 2. Contra, PAULO DÁ MESQUITA, Comentário
Judiciário do CPP, I, Art. 57.º, § 4.
23

em que não foi possível chamar o suspeito para ser interrogado, mas também naqueles
em que o Ministério Público considerou essa diligência desnecessária46.

Não tendo o suspeito sido constituído arguido durante o inquérito, por exemplo,
em virtude de impossibilidade de notificação para interrogatório, tal não constituirá
obstáculo à dedução de acusação, sendo esta o meio através do qual o acusado passará a
ser arguido no processo. Conseguindo-se a notificação da acusação, dever-lhe-á ser
comunicado que passou a deter a qualidade de arguido no processo, passando o processo
a correr contra ele nos mesmos termos que correria se tivesse sido constituído arguido
durante o inquérito. Não sendo possível notificá-lo da acusação, o processo é remetido
para julgamento (art. 283.º/5), ficando em aberto a possibilidade de acionamento do
mecanismo da contumácia (art. 335.º e ss.), designadamente, se o tribunal não lograr
notificá-lo da data marcada para a audiência de julgamento nos termos previstos nos arts.
313.º/3 e 113.º/1/2.

3. Ainda de acordo com o art. 57.º/1, a qualidade de arguido também é assumida


por aquele contra quem for requerida a instrução, fase processual que só tem lugar no
processo comum (286.º/3). Ponto é que o processo tenha corrido contra essa pessoa e o
Ministério Público haja arquivado o inquérito em relação a ela47.

Dado que supõe não ter havido uma prévia constituição do suspeito como arguido
durante o inquérito, a aquisição da qualidade de arguido por esta via sucederá, em regra,
naqueles casos em que o visado não chegou a ser objeto de uma suspeita fundada, sendo
precisamente essa a razão pela qual o Ministério Público acabou por arquivar o inquérito.
Se o assistente reagir a esse arquivamento, requerendo a instrução contra essa pessoa,
passa ela a deter a qualidade de arguido no processo, para que possa defender-se da
imputação que lhe é dirigida pelo requerente da instrução. Só assim não será se o juiz de
instrução vier a arquivar o processo, por inadmissibilidade do procedimento ou da própria
instrução, não abrindo a instrução, caso em que o requerido não chega a assumir a

46
No sentido da inaplicabilidade do disposto no art. 272.º/1 ao processo abreviado, pela jurisprudência
maioritária, Ac. do TRL de 14.11.2007 (Proc. n.º 5100/2007-3); em direção contrária, PEDRO SOARES DE
ALBERGARIA, “Os processos especiais na revisão de 2007 do Código de Processo Penal”, RPCC, 2008, p.
483, nota 30.
47
FIGUEIREDO DIAS / NUNO BRANDÃO, “Uma instrução inadmissível”, p. 662 e ss
24

condição de arguido. Sendo, porém, declarada aberta a instrução, o requerido adquire a


qualidade de arguido, devendo-lhe ser comunicado que adquiriu essa condição (art.
58.º/2, ex vi art. 57.º/3), de modo a que possa exercer o direito de defesa em relação à
pretensão do assistente de o submeter a julgamento.

III. Procedimento e formalidades

1. Nos n.ºs 2 a 6 do art. 58.º encontra-se definido o procedimento a cumprir para


concretizar a constituição de arguido, em obediência ao disposto no n.º 1 desse preceito,
especificando-se várias formalidades que devem ser observadas. Tais exigências são
correspondentemente aplicáveis nos casos em que o suspeito é constituído arguido nos
termos do art. 59.º e naqueles em que assume a qualidade de arguido ao abrigo do art.
57.º/1.

2. A constituição do suspeito como arguido inscreve-se na competência tanto das


autoridades judiciárias – durante o inquérito, em princípio, o Ministério Público –, como
dos órgãos de polícia criminal (art. 58.º/2)48. Sendo o Ministério Público a autoridade
judiciária que dirige o inquérito e os órgãos de polícia criminal as entidades competentes
para o coadjuvar na investigação criminal e estando a constituição de arguido dependente
de um juízo de suspeita sobre o visado, o impulso para a atribuição da condição de arguido
não lhes poderia ser alheio.

Resta, porém, saber por que razão o juiz de instrução não está envolvido na
realização do ato de constituição de arguido. É assim não porque a aquisição dessa
qualidade e a concomitante prestação do termo de identidade e residência não assumam
relevo na esfera dos direitos fundamentais do visado49, sendo por isso desprovido de
caráter jurisdicional, mas antes porque a obrigatoriedade da constituição do suspeito
como arguido está prevista em situações em que aquele se confronta com o Ministério

48
Contra, numa posição minoritária, no sentido da competência exclusiva do juiz de instrução, LOBO
MOUTINHO, Arguido e Imputado no Processo Penal Português, p. 93.
49
Afirmando também esse relevo, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, CRP Anotada4, I, Art. 32.º,
V.
25

Público ou o órgão de polícia criminal num quadro em que urge assegurar-lhe a


titularidade e o exercício das garantias de defesa inerentes à qualidade de arguido50. Casos
em que, por norma, uma tutela efetiva dos interesses do suspeito não se compadeceria
com a demora que a chamada de um juiz de instrução implicaria. Resulta daqui a
competência do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal para decidir e operar
a constituição de arguido. Tal não tem, porém, de implicar um total afastamento do juiz
de instrução desta matéria, atento o impacto que a constituição como arguido tem para a
pessoa do visado, devendo àquele ser reconhecida competência para controlar a
legalidade (e não, naturalmente, a oportunidade) da constituição de arguido51 – mais
especificamente, se se encontravam reunidos os pressupostos estabelecidos legalmente
para esse efeito – e da prova adquirida com violação das regras e formalidades de
constituição de arguido52.

Durante o inquérito, quando a constituição de arguido é decidida e operada por


um órgão de polícia criminal, deverá este, no prazo de 10 dias, comunicar essa
constituição ao Ministério Público, para que este a aprecie, em ordem à sua validação, no
prazo de 10 dias (art. 58.º/3). Decidindo o Ministério Público não validar a constituição
de arguido ou não a validando dentro do prazo de 10 legalmente prescrito, a aquisição da
qualidade de arguido adquirida com o ato praticado pelo órgão de polícia criminal não se
chega a consolidar, ficando sem efeito53, mas as provas anteriormente obtidas não ficam
prejudicadas (art. 58.º/6).

3. De acordo com o n.º 2 do art. 58.º, “a constituição de arguido opera-se através


da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um
órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se
arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e
deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe”; e

50
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS / NUNO BRANDÃO, “O controlo pelo juiz de instrução das invalidades
e proibições de prova durante a fase de inquérito”, Homenagem ao Prof. Doutor Germano Marques da
Silva, II, Univ. Católica Editora, 2020, p. 1164 e s.
51
Admitindo este controlo, Acs. do TRL de 15.04.2010 (Proc. n.º 56/06.2TELSB-B.L1-9) e de
20.02.2018 (Proc. n.º 5340/17.7T9LSB-A.L1-5).
52
FIGUEIREDO DIAS / NUNO BRANDÃO, “O controlo pelo juiz de instrução…”, p. 1162 e ss.
53
PAULO DÁ MESQUITA, Comentário Judiciário do CPP, I, Art. 58.º, § 29.
26

segundo o n.º 4 desse mesmo artigo, “implica a entrega, sempre que possível no próprio
ato, de documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver
sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º”. Com o
cumprimento destas formalidades, fica claro, por um lado, que o processo corre contra a
pessoa constituída arguido e assegura-se, por outro lado, que o visado fica ciente da
qualidade que passa a deter no processo e dos direitos e deveres que lhe assistem em
virtude disso. Assume especial importância o dever de indicação, acompanhada de
explicação, se necessário, do direito à liberdade de declaração, positiva e negativa.

Considerando as múltiplas e importantes implicações processuais e substantivas


(v. g., em sede de prescrição do procedimento criminal – art. 121.º/1/a) do CP)
decorrentes da constituição de arguido, é da máxima conveniência que o ato de
constituição de arguido fique documentado no processo, o que se usa fazer através do
chamado “termo de constituição de arguido”. Sobre o arguido recai o dever de prestar
termo de identidade e residência logo que assuma essa qualidade (arts. 61.º/6/c) e 196.º).

Tratando-se de pessoa física, destinatário da comunicação através da qual se opera


a constituição de arguido deverá ser, naturalmente, o próprio visado, não se admitindo a
sua substituição por um seu representante, como, por exemplo, o defensor. Mesmo no
caso de arguido menor, os titulares das responsabilidades parentais ou outras pessoas que
o possam representar não o poderão substituir naquele ato, ficando tão-só autorizados a
acompanhá-lo nas diligências processuais a que compareça (art. 61.º/1/i)).

À semelhança do que sucede com muitos outros aspetos do processamento penal


das pessoas coletivas54, não há nenhuma regulação legal especificamente dirigida à
constituição da pessoa coletiva como arguido. Sendo uma pessoa distinta dos seus donos
(sócios, acionistas, associados, etc.) e dos seus dirigentes (gerentes, administradores,
diretores, etc.), deve a pessoa coletiva que tenha de assumir a qualidade de arguido ser
constituída como tal de forma autónoma. Para este efeito de constituição de arguido, a
representação da pessoa coletiva poderá ser assegurada por um seu representante legal (v.
g., uma sociedade anónima por um seu administrador, uma sociedade por quotas por um

54
Por último, MARIA JOÃO ANTUNES, Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida, Almedina, 2020, e
FLÁVIA NOVERSA LOUREIRO, “A insustentável ausência de normas processuais penais para pessoas
coletivas”, Homenagem ao Prof. Doutor Germano Marques da Silva, II, Univ. Católica Editora, 2020, p.
893 e ss.
27

seu gerente)55, mas, não sendo de excluir que pessoa coletiva e os seus representantes
legais possam ter interesses conflituantes ou divergentes no processo56, deverá admitir-se
a possibilidade de representação por pessoa especialmente mandatada para esse efeito57.

§ 4. ESTATUTO PROCESSUAL DO ARGUIDO

Como se avançou supra, a posição de sujeito do processo que ao arguido é


atribuída radica num estatuto assente em três eixos fundamentais: o direito de defesa,
garantido, em geral, pelo art. 32.º/1 da CRP e depois concretizado por um sem número de
normas constitucionais e legais; o direito à presunção de inocência até ao trânsito em
julgado da sentença de condenação, assegurado pelo art. 32.º/2 da CRP; e o respeito pela
decisão de vontade do arguido, manifestado essencialmente num direito à não
autoincriminação.

I. O direito de defesa

1. O direito de defesa constitui uma categoria aberta à qual devem ser imputados
todos os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de codeterminar a decisão final do
processo, incidindo tanto sobre a questão de facto como sobre as questões de direito que
no processo se discutem58. Direito que, segundo o art. 60.º, é assegurado ao arguido logo
que adquira essa qualidade.

O n.º 1 do art. 61.º densifica o direito de defesa através da consagração expressa


de algumas das suas manifestações fundamentais, parte delas também previstas no

55
Circular n.º 4/11, de 10.10.2011, da PGR.
56
COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão passado”, p. 99 e ss.
57
MARIA JOÃO ANTUNES, Processo Penal e Pessoa Coletiva Arguida, p. 73 e ss., e ANTÓNIO GAMA,
Comentário Judiciário do CPP, II, Art. 140.º, § 20. e ss. Sobre a solução espanhola (art. 119.1, a) da Ley
de Enjuiciamiento Criminal: “La citación se hará en el domicilio social de la persona jurídica, requiriendo
a la entidad que proceda a la designación de un representante, así como Abogado y Procurador para ese
procedimiento”), FERNANDO GASCÓN INCHAUSTI, “Los desafíos del proceso penal frente a personas
jurídicas en la legislación y en la praxis española: representación y derecho a no autoincriminarse”, RPCC,
2019, p. 104 e ss.
58
FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais…”, p. 28.
28

preceito constitucional relativo às garantias do processo criminal (art. 32.º da CRP): o


direito a estar presente nos atos processuais que lhe disserem respeito (art. 61.º/1/a))59; o
direito de audiência (art. 61.º/1/b)); o direito à informação sobre os factos imputados e
sobre os seus direitos processuais (art. 61.º/1/c)/h)); o direito ao silêncio (art. 61.º/1/d));
o direito ao defensor (art. 61.º/1/e)/f) e art. 32.º/3 da CRP); o direito à prova (art. 61.º/g));
e o direito ao recurso (art. 61.º/1/j) e art. 32.º/1 da CRP)60.

É ainda ao direito de defesa que se diretamente reconduzem muitos outros direitos


e garantias processuais que dão corpo ao estatuto processual do arguido, como sejam, sem
pretensões de exaustividade, o direito ao contraditório (art. 327.º e art. 32.º/5 da CRP), o
direito a aceder ao conteúdo do processo (art. 89.º/1), o direito à publicidade da audiência
de julgamento (art. 321.º e art. 206.º da CRP), o direito a uma concretização
circunstanciada dos factos constantes da acusação (art. 283.º/3/b)), o direito à
imutabilidade da acusação, mediante proibição de alteração substancial dos factos
imputados (arts. 1.º/f), 303.º/3 e 359.º), o direito a requerer a abertura da instrução (art.
287.º/1/a)), o direito às últimas declarações produzidas em audiência (art. 361.º/1), o
direito de arguir invalidades e proibições de prova ou o direito de requerer a intervenção
do tribunal do júri (art. 13.º/1/2)61.

As prerrogativas inerentes ao direito de defesa deverão poder ser exercidas em


relação a tudo quanto releve para o apuramento da culpabilidade e para a determinação
da sanção. Mas não só: o arguido deverá dispor do direito de defesa para, querendo, fazer
frente a quaisquer iniciativas e atos processuais que contendam com os seus direitos

59
Cf. art. 8.º (Direito de comparecer em julgamento) da Diretiva (UE) 2016/343 – sobre o regime
português do julgamento penal de ausentes e a sua compatibilidade com o preceituado na Diretiva, MARIA
JOÃO ANTUNES / JOANA FERNANDES COSTA, “Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho
relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em tribunal em
processo penal (COM(2013) 821 final)”, in: Pedro Caeiro (Org.), A Agenda da União Europeia sobre os
Direitos e Garantias da Defesa em Processo Penal: a “segunda vaga” e o seu previsível impacto sobre o
direito português, 2015, p. 38 e ss.; JOÃO MIGUEL CABRAL, “Da validação dos julgamentos in absentia em
face do mandado de detenção europeu”, RPCC, 2020, p. 126 e ss.; e BÁRBARA CHURRO, Julgamento na
Ausência. Contributo para uma Revisão do Regime do Código de Processo Penal à Luz da Directiva (UE)
2016/34, Almedina, 2020.
60
Sobre o direito ao recurso constitucionalmente garantido ao arguido pelo n.º 1 do art. 32.º da CRP,
MARIA JOÃO ANTUNES / NUNO BRANDÃO / SÓNIA FIDALGO, “A reforma do sistema de recursos em processo
penal à luz da jurisprudência constitucional”, RPCC, 2005, p. 609 e ss., e MARQUES DA SILVA / HENRIQUE
SALINAS, Constituição Portuguesa Anotada, I2, Art. 32.º, VII e ss.
61
Cf. ainda MARIA JOÃO ANTUNES, DPP2, p. 39 e ss.
29

fundamentais, como sucede paradigmaticamente em matéria de medidas de coação, em


que a própria Constituição impõe a concessão de uma “oportunidade de defesa” (art.
28.º/1), e de medidas de garantia patrimonial.

2. O direito ao contraditório, enquanto direito conferido ao arguido e concebido, em


termos que se explicitarão infra, como direito de audiência, assume relevo crucial para a
definição do conteúdo do estatuto processual do arguido, no quadro do direito de defesa.
Com efeito, uma participação constitutiva na formação das bases da decisão a tomar pelo
juiz penal no processo, própria de uma posição de sujeito processual, não pode prescindir
de um direito ao contraditório. Direito que, do ponto de vista do arguido, se manifesta na
possibilidade de se fazer ouvir pela entidade a quem cabe decidir a questão que contra ele
pende e de rebater os factos e as provas contra ele apresentados, por si ou através do seu
defensor. Desta forma se traduzem, atualmente, as velhas máximas audiatur et altera pars
e – com específico significado para o papel da defesa, historicamente o que mais vezes
foi esquecido e aviltado – nemo potest inauditu damnari.

2.1 No plano dos princípios da prossecução processual62, o propósito de


verdadeira autonomização material do princípio do contraditório levou ao seu
desenvolvimento como princípio ou direito de audiência, correspondente, numa
formulação intencionalmente enxuta, à oportunidade conferida a todo o participante
processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo. Um
direito que é sobretudo expressão de um direito à concessão de justiça
(Justizgewährungsanspruch), direito de caráter público, como pretensão do particular ao
funcionamento dos tribunais no seu caso concreto63, e que conduz à consideração
processual das pessoas, não como objectos das decisões judiciais, mas como
comparticipantes da própria criação destas64. O que, por sua vez, significa que a

62
FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 148 e ss.
63
FRITZ BAUR, “Der Anspruch auf rechtliches Gehör”, Archiv für die civilistische Praxis, n.º 153,
1954, p. 397 ss.
64
Este aspeto das coisas é particularmente evidenciado por HANS-MARTIN PAWLOWSKI, “Aufgabe
des Zivilprozesses”, Zeitschrift für Zivilprozess, n.º 80, 1967, p. 358 ss., numa via que se aproxima da
traçada no texto.
30

administração da justiça pelos tribunais não se relaciona apenas, como durante muito
tempo se pensou, com a proteção de situações jurídicas substantivas, mas também e
diretamente com a da posição processual daqueles que sejam afetados pela decisão65; e
disto mesmo é expressão o direito de audiência.

Importará só precisar ainda a ideia que, em nossa opinião, deve constituir o elo
íntimo de toda esta argumentação e servir para demonstrar a autonomia do direito de
audiência perante os temas com que historicamente se conexionou. Só apreenderemos
verdadeiramente o fundamento e sentido que buscamos quando tomarmos por base a ideia
de que, nem relativamente à sentença, nem relativamente a qualquer outra decisão que
tenha de tomar no decurso do processo, encontra o juiz o sentido dela previamente inscrito
e fixado na lei. Mais ainda: não se trata, na obtenção de qualquer daquelas decisões, de
uma concretização lógica de normas jurídicas abstratas aplicáveis, mas, verdadeiramente,
de um desenvolvimento normativo de tais normas e de uma comprovação autónoma da
sua aplicabilidade ao caso concreto; nisto se traduz exatamente a “declaração do direito
do caso penal concreto” e o processo “criador” através do qual se efetiva.

Por outro lado – e aqui se insere uma segunda ordem de considerações –, a


finalidade do Estado de direito social reside na criação e manutenção, pela comunidade,
de uma situação jurídica permissiva da realização livre da personalidade ética de cada
membro. Por isso mesmo, o esclarecimento da situação jurídica material em caso de
conflito supõe, não só a garantia formal da preservação do direito de cada um nos
processos judiciais, mas a comprovação objetiva de todas as circunstâncias, de facto e de
direito, do caso concreto – comprovação inalcançável sem uma audiência esgotante de
todos os participantes processuais. Isto significa que a declaração do direito do caso penal
concreto não seja apenas tarefa do juiz ou do tribunal (concepção “carismática” do
processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção
“democrática” do processo)66 e se encontrem em situação de influir naquela declaração
do direito, de acordo com a posição e função processuais que cada um assuma.

Pelo exposto, logo se compreende que o respeito pelo direito de audiência


implique, no mínimo, que se dê ao interessado oportunidade para intervir, no debate e se

65
Assim também HENKEL, § 61, I, 2.
66
Sobre o sentido destas concepções cf. FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 72 e ss.
31

pronunciar sobre a decisão a tomar. Quantas vezes isso haja de acontecer é coisa que
depende da concreta situação do processo, sendo em todo o caso seguro que não basta
que lhe seja dada tal oportunidade antes da decisão final, mas sim antes de qualquer
decisão que o possa afetar juridicamente. Não basta, por outro lado, uma qualquer
oportunidade: tem de tratar-se de uma oportunidade, já se disse, efetiva e eficaz, o que
supõe em princípio que seja dado ao interessado i) conhecimento tempestivo do lugar,
tempo e objeto do debate, ii) concreta possibilidade de se preparar para a intervenção e
iii) efetiva possibilidade de intervir67. Claro é, porém, que já não interessa ao princípio o
uso que o titular faça da oportunidade que lhe é conferida, inclusive o seu não uso.

2.2 Como veremos, o direito ao contraditório é reconhecido constitucionalmente


de forma expressa (art. 32.º/5 da CRP) e recebe uma ampla e detalhada regulação legal,
que cobre todas as fases do processo e abrange uma pluralidade de aspetos relevantes para
a sua efetividade.

É na fase de julgamento, atenta a possibilidade de ter como desfecho uma


condenação do arguido, que o contraditório, sobretudo na descrita faceta de direito de
audiência, deverá ser garantido ao arguido na sua plenitude. Daí a previsão constitucional
de que “a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar [estão]
subordinados ao princípio do contraditório” (art. 32.º/5 da CRP). Atendendo à ideia de
compensação de situações processuais, nas fases anteriores ao julgamento, uma vez que
delas não resultará uma imediata responsabilização penal do arguido, mas tão-só,
eventualmente, uma decisão de o submeter a julgamento, compreende-se que o
contraditório não tenha de ser garantido com a mesma extensão e intensidade com que é
assegurado no julgamento.

A efetivação do direito de audiência pressupõe que ao arguido seja dado


conhecimento do conteúdo da imputação que contra ele é dirigida e das provas que contra
ele são apresentadas. Estas condições basilares de exercício do direito de audiência
encontram-se largamente garantidas ao arguido, não só no julgamento, como até mesmo
antes dele, ainda que em menor medida. Concomitantemente, preveem-se, para as

67
Assim, GAETANO FOSCHINI, RIDPP, 1963, p. 1041 e ss.
32

diversas fases processuais, atos e meios através dos quais o arguido pode materializar o
contraditório e o seu direito a ser ouvido.

a) No processo comum, no caso de o inquérito ser encerrado com uma acusação,


ao arguido deve ser dado a conhecer o essencial da imputação que sobre ele recai, antes
de a acusação ser deduzida, de forma a que ele possa pronunciar-se sobre ela. Tal
exigência decorre do já referido art. 272.º/1, que estabelece, sob pena de nulidade (art.
120.º/2/d))68, uma obrigatoriedade de interrogatório do arguido em relação ao qual haja
suspeita fundada da prática de crime, conjugado com o art. 61.º/1/c), que prevê o direito
de o arguido ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações
perante qualquer entidade. No âmbito do interrogatório, tal informação deve incluir,
sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo dos factos que
lhe são concretamente imputados (art. 141.º/4/d)).

O dever previsto no art. 272.º/1 só será de considerar cumprido se o suspeito tiver


sido ouvido na qualidade de arguido. Uma sua primeira audição como simples suspeito,
por inexistência de suspeita fundada, não é suficiente para que tal obrigação se dê como
satisfeita se, em momento ulterior, a suspeita se adensar e conduzir a uma acusação. Nesta
hipótese, o suspeito deve ser chamado de novo ao inquérito e aí interrogado na qualidade
de arguido, cumprindo-se o disposto nos arts. 61.º/1/c) e 141.º/4/d). O mesmo deverá
entender-se naqueles casos em que um arguido começa por ser interrogado sobre os factos
que então lhe eram imputados, vindo-se depois a apurar factos com autónomo relevo
criminal em relação àqueles. Quando isto suceda, uma interpretação do art. 272.º/1 à luz
dos direitos de defesa e de audiência constitucionalmente assegurados ao arguido
determina a obrigatoriedade de uma sua nova audição, que verse sobre tais factos. Nesta
direção pronunciou-se já o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 72/2012: “se é certo que
da Constituição não resulta a exigibilidade do conhecimento preciso de todos os factos
que venham a ser inseridos na acusação e em momento anterior à formulação desta, não
é menos certo que, no pleno respeito das garantias de defesa constitucionalmente

68
Ac. do STJ n.º 1/2006. Qualificando o vício como nulidade insanável prevista no art. 119.º/c),
JOSÉ LOBO MOUTINHO, “O arguido no processo preparatório, revisitado em 2008”, in: Tratado Luso-
Brasileiro da Dignidade Humana, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 709 e s., e PAULO DE SOUSA MENDES, Lições
de Direito Processual Penal, p. 128.
33

consagradas, tal conhecimento não poderá nunca ficar aquém dos factos essenciais a
verter ou vertidos em tal peça processual (acusação), sob pena de violação das
enunciadas garantias”69.

Durante o inquérito, além de dever ser informado sobre a suspeita de que é alvo e
ser interrogado sobre ela, o arguido poderá, em regra, consultar o próprio processo e obter
uma cópia dele. Será assim nos processos que corram sob o signo da publicidade (art.
86.º/6/c) e 89.º/1) e até mesmo ainda naqueles nos quais tenha sido aplicado o segredo de
justiça, mas o Ministério Público não se oponha (art. 89.º/1) ou já não se possa opor a um
tal acesso (art. 89.º/1/6).

Pelo que vem de se ver, durante o inquérito, o contraditório poderá ser oferecido
pelo arguido no âmbito do interrogatório a que seja sujeito e através do carreamento para
o processo de provas que deponham em sua defesa, sendo-lhe, além disso, permitida,
tanto no inquérito como nas fases processuais subsequentes, a apresentação de
exposições, memoriais e requerimentos sobre a matéria objeto do processo (art. 98.º/1).

No inquérito, o direito de audiência conhece, em todo o caso, limitações de variada


ordem, justificadas sobretudo pelo interesse na salvaguarda das condições necessárias à
descoberta da verdade material: ao arguido pode ser vedado o acesso ao processo coberto
pelo segredo de justiça (art. 86.º/3), o que muitas vezes implicará um desconhecimento
da prova contra ele recolhida; e, em regra, é-lhe vedada a assistência às diligências
probatórias realizadas no âmbito da investigação. Limitação, esta última, que contribui
para justificar o princípio da imediação em sentido objetivo a que está sujeita a prova na
fase de julgamento (art. 355.º/1): uma das razões pelas quais, em princípio, em julgamento
não devem valer senão as provas nele produzidas é justamente a circunstância de as
provas produzidas durante o inquérito não terem estado sujeitas, nessa fase, ao
contraditório pleno que ao arguido deve ser proporcionado na fase de julgamento.

Sendo o inquérito encerrado com uma acusação, o conteúdo desta deve ser um tal
que viabilize um exercício cabal e efetivo dos direitos de defesa e de audiência por parte
do arguido. Para esse efeito, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, antes de mais,
“a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de
uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a

69
Na linha desta jurisprudência, vd. o Ac. do TRE de 10.10.2017 (Proc. n.º 127/16.7GCPTM.E1).
34

motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer
circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. Na
linha do que é sustentado pelo Supremo Tribunal de Justiça, a imputação de factos tem
de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos
que são relevantes para caraterizar o comportamento penalmente relevante70. De modo a
possibilitar o contraditório, a acusação deve ainda especificar as disposições legais
aplicáveis e as provas relevantes para o julgamento (art. 283.º/3/c)/d)/e)/f)).

b) Na fase da instrução, o debate instrutório tem natureza contraditória (arts.


289.º/1, 301.º/2/II e 302.º) e os atos de instrução que o precedem estão também, desde a
revisão de 2007 do CPP, sujeitos ao contraditório, ainda que mitigado (289.º/2)71.

c) Na fase do julgamento, deve ser assegurado ao arguido um direito de audiência


pleno, desde logo imposto, como vimos já, pelo art. 32.º/5 da CRP, sendo o contraditório
assumido como princípio geral relativo à audiência pelo art. 327.º Exemplos do direito de
contraditoriedade e audiência garantido ao arguido são o direito de apresentar contestação
e arrolar e requerer provas (315.º); o direito de ser ouvido sobre as questões incidentais,
nas quais tenha interesse, sobrevindas no decurso da audiência (327.º/1); o direito de
exercer o contraditório sobre os meios de prova apresentados no decurso da audiência
(327.º/2); o direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência (343.º/1); o
direito de contra-interrogar coarguidos, assistentes, testemunhas e outros depoentes,
diretamente ou por intermédio do tribunal (arts. 345.º/2, 346.º/2, 348.º/4/5, 350.º/1); e o
direito de ser previamente informado de possíveis alterações dos factos e da qualificação
jurídica dos factos e de se pronunciar acerca delas (358.º e 359.º).

d) No âmbito dos recursos, o direito ao contraditório concedido ao arguido exige


o direito a oferecer resposta aos recursos contra ele interpostos e respetivos aditamentos

70
Parafraseamos o Ac. do STJ de 06-11-2008 (Proc. n.º 08P2804), tirado em sede
contraordenacional. Na mesma direção, HENRIQUES GASPAR, CPP Comentado, Art. 61.º, 5. Ainda neste
sentido, o Ac. do STJ de 21.02.2007 (Proc. n.º 3932/06).
71
NUNO BRANDÃO, “A nova face da instrução”, RPCC, 2008, p. 244 e s.
35

(arts. 413.º/1/5) e às promoções e pareceres apresentados pelo Ministério Público (art.


417.º/2), justifica o direito a tomar posição sobre alterações não substanciais dos factos e
da sua qualificação jurídica dele desconhecidas (art. 424.º/3) e implica o direito a ser o
último a intervir no âmbito da audiência (art. 423.º/4).

II. O direito à presunção de inocência

Determina o n.º 2 do art. 32.º da Constituição que “todo o arguido se presume


inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. A presunção de
inocência do arguido em processo, até que uma eventual condenação se torne definitiva,
é uma marca de água do Estado de direito, sendo afirmada universalmente 72, constando,
v. g., do art. 11.º/1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (“Toda a pessoa
acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique
legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias
necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”), do art. 14.º do PICDP (“Qualquer pessoa
acusada de um delito tem direito a que se presuma a sua inocência até que se prove a sua
culpa conforme a lei”), do art. 6.º/2 da CEDH (“Qualquer pessoa acusada de uma
infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente
provada”) e do art. 48.º/1 da CDFUE (“Todo o arguido se presume inocente enquanto não
tiver sido legalmente provada a sua culpa”)73.

Enquanto direito subjetivo fundamental, que se opõe a todos os órgãos e agentes


do Estado, o direito à presunção de inocência obriga a que o Estado, no âmbito do
processo e inclusive fora dele74, considere e trate o arguido não como se fosse culpado,

72
Sobre a génese e a evolução do princípio, ALEXANDRA VILELA, Considerações Acerca da
Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2000, p. 29 e ss.
73
Ainda no direito da União Europeia, merece especial referência a Diretiva (UE) 2016/343, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da
presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal – cf. MARIA JOÃO
ANTUNES / JOANA FERNANDES COSTA, “Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu…”, p. 21 e ss.
74
RUI PATRÍCIO, O Princípio da Presunção de Inocência do Arguido na Fase do Julgamento no
Actual Processo Penal Português, AAFDL, 2004, p. 34 e ss. Cf., todavia, o Ac. do TC n.º 194/2017, tirado
em Plenário, que decidiu “não declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do
artigo 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, aprovado pela Lei n.º 7/90,
de 20 de fevereiro, na parte em que determina a suspensão de funções por efeito do despacho de pronúncia
em processo penal por infração a que corresponda pena de prisão superior a três anos”, apreciando a questão
36

mas como se fosse inocente. Uma obrigação que pode ser estendida, por via legal, a certos
particulares, como é o caso dos jornalistas, que, por força do art. 14.º/2 do respetivo
Estatuto (Lei n.º 1/99, de 1/1), se encontram sujeitos ao dever de se abster de formular
acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência.

A presunção de inocência de que o arguido beneficia tem óbvios e importantes


reflexos sobre o seu estatuto processual:

Se não obsta, per se, à aplicação de medidas de coação, este princípio determina
que só sejam aplicadas ao arguido “as medidas que ainda se mostrem comunitariamente
suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente”75. Na vertente
do tratamento que o arguido deverá receber no processo, o princípio da presunção de
inocência projeta-se assim numa absoluta proibição de utilização dessas medidas como
formas de sancionamento antecipado do arguido através do processo (nulla poena sine
culpa) 76 e na atribuição a essas medidas de finalidades punitivas77; bem como ainda numa
sujeição da sua aplicação aos corolários da necessidade, proporcionalidade e adequação
do princípio da proibição do excesso e ao princípio da precariedade, bem como numa
subordinação do respetivo procedimento ao critério de que “a comunicação dos factos
deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos
comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico criminal,
por forma a que lhe seja dada «oportunidade de defesa» (artigo 28.º, n.º 1, da CRP)”78.
Deste princípio resulta igualmente os deveres para os agentes do Estado de se absterem
de emitir declarações públicas que se refiram ao arguido como culpado79 e de assegurarem

à margem do princípio da presunção de inocência e afastando-se do juízo de inconstitucionalidade


formulado pelo Ac. n.º 62/2016.
75
FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais…”, p. 27.
76
Ac. do TC n.º 123/92, considerando que este princípio “contém implicações ao nível do próprio
estatuto ou da condição do arguido em termos de, seguramente, tornar ilegítima a imposição de qualquer
ónus ou a restrição de direitos que, de algum modo, representem e se traduzam numa antecipação da
condenação”; ALEXANDRA VILELA, Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito
Processual Penal, p. 58; e NUNO BRANDÃO, “Medidas de coacção: o procedimento de aplicação na revisão
do Código de Processo Penal”, Revista do CEJ, n.º 9, 2008, p. 71.
77
MARIA JOÃO ANTUNES, DPP2, p. 142.
78
Ac. do TC n.º 416/03 (13.).
79
Art. 4.º da Diretiva (UE) 2016/343, na esteira do Ac. do TEDH de 10.02.1995, 40. e s., no caso
Allenet de Ribemont v. França. Como notam MARIA JOÃO ANTUNES / JOANA FERNANDES COSTA, “Proposta
de Diretiva do Parlamento Europeu…”, p. 30 e s., trata-se de uma obrigação que colhe ainda respaldo nos
deveres estatutários de reserva ou de sigilo que impendem sobre os magistrados judiciais e do Ministério
Público e sobre os agentes dos órgãos de polícia criminal.
37

que o arguido não é apresentado como culpado, em tribunal ou em público, através da


utilização de medidas de coerção física (v. g., exibindo-o algemado)80.

A presunção de inocência releva ainda na direção da proibição de outros meios


processuais coercivos, em especial dos vocacionados para a aquisição de provas81. Se é
certo que o arguido pode ser objeto de diligências probatórias, não pode, em todo o caso,
ser ele coagido a atuar probatoriamente contra si mesmo. Uma proibição de princípio que
radica também na presunção de inocência de que o arguido é titular, dando corpo ao
direito fundamental à não autoincriminação.

O princípio da presunção tem outras incidências sobre a matéria da prova com


importância para o estatuto processual do arguido. Dele deriva a ilegitimidade de normas
que impliquem o estabelecimento de uma previsão de culpa do arguido ou que deem como
presumida a verificação de elementos do crime imputado82. Ao arguido não pode ser
imposto o ónus de provar a sua inocência, desde logo porque esta se presume. E se não
impede o recurso a presunções judiciais ou à prova indireta83, o princípio da presunção
de inocência obriga, em todo o caso, à adoção de critérios e cuidados especiais no uso de
tais presunções (v. g., proibindo cadeias de presunções, impondo que prova indireta
assente em factos conhecidos a partir de prova direta84). Ainda no plano da valoração da
prova, da presunção de inocência decorre a adoção do estalão da convicção para além da
dúvida razoável como critério de apreciação da prova dos factos que fundamentem ou
agravem a responsabilidade criminal e é fundamentalmente porque o arguido se presume
inocente que em caso de dúvida inultrapassável sobre factos relevantes para a sua punição
deve ela ser resolvida a seu favor (princípio in dubio pro reo): em caso de dúvida

80
Art. 5.º da Diretiva (UE) 2016/343.
81
Sobre a ligação originária do princípio da presunção de inocência ao domínio da prova, RUI
PATRÍCIO, O princípio da presunção de inocência…, p. 26 e ss.
82
FIGUEIREDO DIAS, “La protection des Droits de L'Homme dans la procedure penale portugaise”,
p. 174, RUI PATRÍCIO, O princípio da presunção de inocência…, p. 37, e, na mesma linha, os Acs. do TC
n.º 179/2012 (9.), relativo ao crime de enriquecimento ilícito, e n.º 338/2018, julgando inconstitucional, por
apelo ao princípio da presunção de inocência, uma norma interpretada no sentido de estabelecer uma
presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a
autoria for feita em processo judicial.
83
Acs. do TC n.ºs 391/2015 e 521/2018.
84
Assim, de há muito, a jurisprudência constitucional espanhola – entre muitos outros, Acs. do TC
espanhol n.º 174/1985 (ECLI:ES:TC:1985:174) e 189/1998 (ECLI:ES:TC:1998:189) –, naturalmente
acompanhada pela jurisprudência comum. E, entre nós, o Ac. do TC n.º 521/2018 (9.), e SUSANA AIRES DE
SOUSA, “Prova indireta e fundamentação da decisão”, RPCC, 2019, p. 407.
38

insuperável, os factos que lhe sejam desfavoráveis devem ser dados como não provados
e os que lhe sejam favoráveis devem ser dados como provados.

Uma vez que a presunção de inocência se estende até ao trânsito em julgado da


condenação, enquanto o processo estiver em curso, em virtude de recurso interposto da
decisão condenatória, não pode iniciar-se a execução de penas que nele tenham sido
aplicadas ao arguido85. Vale aqui, de forma absoluta, o princípio nulla poena sine culpa.

À presunção de inocência liga-se o direito do arguido – também ele fundamental


e plasmado na mesma norma que estabelece que o arguido se presume inocente (art. 32.º/2
da CRP) – a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. O
que implica, “por exemplo, que as fases processuais anteriores ao julgamento não possam
prolongar-se além do que já não possa ser razoavelmente compatível com a presunção de
inocência do arguido, num exercício de ponderação das finalidades que são apontadas ao
processo penal de Estado de direito democrático”86.

III. O direito ao respeito pela decisão de vontade do arguido (em especial, o direito
à não autoincriminação)

1. O conteúdo essencial da consideração do arguido como sujeito do processo,


constitutiva da natureza acusatória do processo (art. 32.º/5 da CRP), está em que todos os
atos processuais que pratique deverão ser expressão da sua livre personalidade, devendo
o processo pautar-se pelo princípio do respeito pela decisão de vontade do arguido.

Um princípio que se repercute essencialmente em matéria de prova: a adução de


contributos probatórios para o processo, através da prestação de declarações ou da
disponibilização de outras provas, deve representar uma manifestação de liberdade e de
autorrealização pessoal do próprio arguido. Este há de poder então decidir, de forma
incondicionada e informada, se participa ou não pessoalmente na atividade probatória que
se desenvolve no processo. Só assim se faz jus também ao direito de defesa (art. 32.º/1 da

85
Assim, v. g., mesmo uma simples pena de admoestação só “é proferida após trânsito em julgado
da decisão que a aplicar” (art. 497.º/1), só podendo ser proferida de imediato, ato continuo à leitura da
sentença, “se o Ministério Público, o arguido e o assistente declararem para a ata que renunciam à
interposição de recurso” (art. 497.º/2).
86
MARIA JOÃO ANTUNES, DPP2, p. 42 e s.
39

CRP), sobre o qual se estrutura o estatuto processual do arguido, e à presunção de


inocência de que é titular (art. 32.º/2 da CRP), pois devendo o arguido ser considerado e
tratado como se fosse inocente, não se haverá de ter de contar com ele para esclarecer os
factos objeto do processo. Da conjugação destes direitos, liberdades e garantias
processuais fundamentais de que o arguido é portador resulta enfim um direito à não
autoincriminação, ao qual é unanimemente reconhecido o estatuto constitucional de
direito fundamental87. No quadro da CEDH, é-lhe ainda atribuído um estalão
convencional, radicado no direito a um processo equitativo, previsto no art. 6.º88.

Com isto torna-se claro que a relação intercedente entre o arguido e a finalidade
de descoberta da verdade material que o processo penal visa se encontra como que
“cortada” — no sentido de que aquele não é obrigado a participar nesta finalidade através
das suas declarações e não é, portanto, destinatário próprio de um “dever de colaboração
na administração da justiça penal”89.

2. Ainda que naturalmente ligado à integridade pessoal e à dignidade da pessoa


humana, como aliás é próprio da generalidade dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais, não é nelas que este princípio nemo tenetur se ipsum accusare se deverá
direta e imediatamente fundar90. Dada a sua valia eminentemente processual – é no
processo e para o processo que a colaboração probatória do arguido poderá relevar –, será
nos princípios estruturantes do estatuto processual do arguido que deverá, em primeira
linha, ancorar-se o direito de decidir, de forma livre e esclarecida, se contribui ou não
para a formação da prova do processo91. Na medida em que se trata de uma liberdade
fundamental, este direito à não autoincriminação não deixa de representar uma projeção

87
Na jurisprudência constitucional portuguesa, cf., entre outros, os Acs. do TC n.ºs 695/95,
304/2004 (4.), 155/2007 (12.1.5), 461/2011, 340/2013, 360/2016 e 298/2019.
88
JOANA FERNANDES COSTA, “O princípio nemo tenetur na jurisprudência do Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem”, RMP, n.º 128, 2011, p. 117 e ss., e SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como
Meio de Prova contra si mesmo, p. 305 e ss.
89
Neste sentido, logo EDUARDO CORREIA, RDES, n.º 14, 1967, p. 38 e s.
90
Apontando nesse sentido, porém, SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova
contra si mesmo, pp. 245 e 697
91
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS / MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Poderes de supervisão, direito ao
silêncio e provas proibidas (Parecer), in: Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, 2009, p.
40 e ss.
40

da dignidade da pessoa dela titular, sem que daí, todavia, se deva seguir uma sua
absolutização92. Tal como tantas outras liberdades fundamentais, com a liberdade
ambulatória à cabeça, que admitem amplas restrições, não obstante a sua íntima conexão
com a dignidade pessoal, também o princípio da proibição da autoincriminação não está
imune a limitações. Na linha do que vem entendendo o nosso Tribunal Constitucional,
será, enfim, de admitir que “o direito à não autoincriminação não tem carácter absoluto,
podendo ser legalmente restringido em determinadas circunstâncias”93.

Este princípio não proíbe, como é evidente, a autoincriminação – aliás,


expressamente prevista e regulada no art. 344.º, relativo à confissão –, mas veda a
obtenção de contributos probatórios ativamente94 prestados pelo arguido através do
recurso à violência, à coerção95 ou ao engano96. Pois que provas assim arrancadas ao
arguido não são manifestação de uma decisão resultante de uma vontade livre e
esclarecida. O que será de afirmar mesmo naqueles casos em que a prova tenha sido
obtida através do próprio arguido – no âmbito do processo ou antes e fora dele, num
contexto extraprocessual penal – em cumprimento de um dever de colaboração com o
Estado previsto legalmente, sob cominação de uma sanção. Pairando sobre o arguido uma
ameaça de sancionamento, não se poderá dizer que a sua cooperação probatória é fruto
de uma vontade livre.

92
Na direção, todavia, da sua consideração como um direito absoluto, MANUEL DA COSTA
ANDRADE, “Nemo tenetur se ipsum accusare e direito tributário. Ou a insustentável indolência de um
acórdão (n.º 340/2013) do Tribunal Constitucional”, RLJ, n.º 3989, 2014, p. 146 e ss., e SANDRA OLIVEIRA
E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p. 688 e ss., na linha da conceção dominante na
Alemanha: por todos, o Ac. do TC federal alemão de 13.01.1981 (BVerfGE, ano 56, n.º 37, p. 49 e s.).
93
Ac. do TC n.º 340/2013 – com comentário crítico de COSTA ANDRADE, “Nemo tenetur se ipsum
accusare e direito tributário”, p. 121 e ss. –, neste ponto reiterado pelo Ac. do TC n.º 298/2019 (12.): “O
mesmo princípio, todavia, não tem um caráter absoluto”. Assim, também o TEDH, no caso Ibrahim e outros
c. Reino Unido (Ac. da Grande Chambre, de 13.09.2016): “the right not to incriminate oneself is not
absolute” (269.).
94
Sobre o critério, altamente controvertido, da atividade, COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições
de Prova em Processo Penal, p. 127 e ss. Contra este critério, submetendo-o a uma crítica profunda,
SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p. 643 e ss.
95
Na jurisprudência do TEDH, por todos, caso Saunders c. Reino Unido (Ac. de 17.12.1996), 68.
96
Pela inclusão do engano no âmbito de proteção deste princípio, o TEDH no caso Allan v. Reino
Unido (Ac. de 05.11.2002, 50. e ss.), com acolhimento na jurisprudência alemã: Ac. do BGH de 26.07.2007
(BGHSt 52, 11). E, entre nós, o Ac. do TC n.º 304/2004 (4.), e SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como
Meio de Prova contra si mesmo, p. 515 e ss. Contra, na linha da doutrina alemã dominante, COSTA
ANDRADE, “Nemo tenetur se ipsum accusare e direito tributário”, p. 144 e ss. (nota 26).
41

De fora do domínio de tutela do princípio nemo tenetur deverão assim ficar as


provas cuja produção ou obtenção não careçam de uma colaboração ativa do visado, ainda
que a viabilidade da sua aquisição esteja dependente da sua passividade e tolerância, ou
que possam ser carreadas para o processo independentemente da sua vontade 97. Como
frisa Sandra Oliveira e Silva, “o direito à não autoincriminação não confere ao seu titular
uma pretensão de neutralização do valor probatório de informações livremente prestadas
e objetivadas noutros meios de prova: diários pessoais ou outros documentos privados,
conversas mantidas com testemunhas, confidências captadas em escutas, correspondência
trocada, etc.”98. A circunstância de uma determinada forma de obter a prova não
contender com o direito à não autoincriminação não significa, naturalmente, que não
possa ser proibida por ação de outro direito fundamental.

Titular do direito à não autoincriminação será não apenas o arguido, mas também
o próprio suspeito99. Só assim se assegurará que o exercício das prerrogativas inerentes a
esta liberdade fundamental não fique dependente de um ato formal de constituição de
arguido, que está essencialmente nas mãos de quem investiga e é por isso vulnerável a
manipulações, e que possa ela servir a proteção de quem, sem disso ser informado, está a
ser investigado, face a condutas (enganosas) destinadas a obter uma sua colaboração
inadvertida.

Além do direito ao silêncio, o princípio da proibição da autoincriminação abrange


ainda contributos como a entrega de documentos pela mão do arguido100, a redação
manuscrita de palavras para comparação da caligrafia101 ou a expiração de ar para um
aparelho de medição do nível de álcool no sangue102. Formas de obtenção de prova que,

97
Caso Saunders c. Reino Unido (Ac. do TEDH, de 17.12.1996), 69., seguido pelo Ac. do TC n.º
155/2007 (12.1.5), e art. 7.º/3 da Diretiva (UE) 2016/343. Em sentido divergente, AUGUSTO SILVA DIAS /
VÂNIA COSTA RAMOS, O Direito à Não Auto-Inculpação (Nemo Tenetur se Ipsum Accusare) no Processo
Penal Contra-Ordenacional Português, Coimbra Editora, 2009, p. 32 e ss.
98
SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p. 700.
99
Cf. novamente o Ac. do TEDH de 28.06.2010 no caso Aleksandr Zaichenko v. Rússia (42. e 52)
e o art. 7.º/1/2 da Diretiva (UE) 2016/343. Assim, também, AUGUSTO SILVA DIAS / VÂNIA COSTA RAMOS,
O Direito à Não Auto-Inculpação, p. 20, e PAULO DE SOUSA MENDES, Lições de Direito Processual Penal,
p. 123 e ss.
100
Acs. do TC n.ºs 461/2011, 340/2013, 360/2016 e 298/2019.
101
Cf. o Ac. do STJ n.º 14/2014, admitindo, não obstante, a restrição do princípio mediante a
imposição, sob cominação do crime de desobediência, de uma colaboração processual através da realização
de autógrafos.
102
AUGUSTO SILVA DIAS / VÂNIA COSTA RAMOS, O Direito à Não Auto-Inculpação, p. 24 e ss.
42

à partida, por receberem a incidência do direito à não autoincriminação, deverão


considerar-se proibidas, mas que poderão ser admitidas se e na medida em que tenham
expressa e suficientemente densa previsão legal, não atentem contra o princípio da
proibição do excesso e não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo essencial deste
direito fundamental.

3. A manifestação mais importante do princípio da proibição da autoincriminação


é o direito ao silêncio de que o arguido é titular: qualquer que seja o interrogatório a que
o arguido seja sujeito, quanto aos factos que lhe são imputados, relevem eles para o
apuramento do crime, para a determinação da sanção (v. g., os antecedentes criminais) ou
para a aplicação de medidas de coação poderá ele remeter-se ao silêncio (art. 61.º/1/d)),
sem necessidade de dar qualquer justificação ou explicação para o efeito. Via de regra,
essa prerrogativa constituirá expressão do direito à não autoincriminação, mas o direito
ao silêncio valerá mesmo em relação a factos não imputados ao arguido e irrelevantes
para uma sua eventual responsabilização criminal, mas que façam parte do objeto do
processo em virtude de uma conexão processual estabelecida com base nos arts. 24.º e
25.º

O silêncio a que o arguido se remeta não pode ser valorado, seja ele completo (art.
343.º/1) ou parcial (art. 345.º/1), não sendo legítimo, neste último caso, atendendo ao que
expressamente se prevê na parte final do art. 345.º/1, retirar quaisquer conclusões ou
presunções da falta de resposta a certas perguntas. Daquilo que não é dito pelo arguido
não pode ser extraída qualquer inferência para a comprovação dos factos objeto do
processo, devendo o silêncio ser considerado como um nullum jurídico103. Deste modo, a
falta de apresentação pelo arguido de explicações sobre uma certa circunstância ou
situação não deve ser tomada em consideração na tomada da decisão sobre a matéria de
facto.

Só se poderá considerar o direito ao silêncio como um autêntico direito se o


arguido não puder ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de o exercer.

103
COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, p. 128 e s. Em sentido
contrário, HENRIQUES GASPAR, CPP Comentado, Art. 61.º, 6., e PAULO DÁ MESQUITA, in: Comentário
Judiciário do CPP, I, Art. 61.º, § 9.
43

É isso que se prevê expressamente na parte final do n.º 1 do art. 343.º – “… e sem que o
seu silêncio possa desfavorecê-lo” – e que deve valer quaisquer que sejam os atos
processuais em que o arguido se prevaleça do direito a ficar calado. Destarte, o exercício
de um tal direito processual não pode ser valorado como indício ou presunção de culpa
(deparando-se aqui com uma nova e autêntica proibição de prova), nem tão-pouco, uma
vez provada a culpa, como circunstância relevante para determinação da medida concreta
da pena, nos termos do art. 71.º do CP, designadamente, no quadro do fator relativo à
conduta posterior ao facto (art. 71.º/2/e) do CP). A ausência de sinais de arrependimento
não pode, per se, ser valorada negativamente na graduação da pena, de modo algum
podendo invocar-se o silêncio a que o arguido se tenha remetido na audiência para agravar
a medida da pena que lhe é concretamente aplicada104. Como é evidente, esta proibição
de desfavorecimento vale ainda em quaisquer decisões a tomar no decurso do processo
que possam afetar o arguido, maxime as que se refiram à aplicação, substituição ou
revogação de medidas de coação.

Se o arguido não pode ser juridicamente desfavorecido por exercer o seu direito
ao silêncio, já, naturalmente, o pode ser de um mero ponto de vista fáctico, quando do
silêncio derive o definitivo desconhecimento ou desconsideração de circunstâncias que
serviriam para afastar a tipicidade, a ilicitude ou a culpa relativas à infração que lhe é
imputada105. Então, mas só então106, representará o exercício de tal direito um privilegium
odiosum para o arguido.

4. Do facto de as declarações do arguido sobre a questão da culpa não poderem


ser puníveis como falsas, dada a falta de previsão incriminatória que lhes atribua relevo
criminal, aliado à circunstância de se encontrar “cortada” – como vimos que o revela o
reconhecimento do direito ao silêncio – a ligação entre o arguido e o dever de colaboração

104
MARIA JOÃO ANTUNES, “Direito ao silêncio e leitura em audiência de declarações do arguido”,
Sub Judice, n.º 4, 1992, p. 26.
105
Ac. do STJ de 10.01.2008 (Proc. n.º 3227/07): “Tem entendido o STJ que o silêncio, sendo um
direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido
prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados
pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu
silêncio”.
106
Como notava já CAVALEIRO DE FERREIRA, I, p. 153.
44

com a justiça e o seu fim de descoberta da verdade, já se pretendeu concluir que ao arguido
caberia um verdadeiro direito a mentir107. Esta opinião deve, porém, ser repudiada108.

Nada existe na lei, com efeito, que possa fazer supor o reconhecimento de um tal
“direito”. As soluções legais em matéria de silêncio e de cessação do dever de colaboração
explicam-se perfeitamente pela oposição que assim se quer fazer à velha e odiosa ideia
inquisitória, segundo a qual o arguido, enquanto meio de prova, poderia ser obrigado –
inclusivamente através de meios de coação física e psíquica, sem excluir a própria tortura
– à prestação de declarações que o incriminassem. E sabe-se como todo o processo penal
“reformado” fez de uma tal oposição um dos seus propósitos mais salientes109.

Mas sendo assim, poderia pensar-se (e não faltam autores a lançarem-se, mais ou
menos profundamente, nesta via de compreensão das soluções legais) que, podendo o
arguido optar livremente entre o silêncio ou o prestar declarações, caso escolhesse esta
segunda possibilidade continuaria a recair sobre ele um dever de verdade — ou como
mero dever moral, ou mesmo como verdadeiro dever jurídico110. A verdade, porém, é que
do reconhecimento de um tal dever não ressaltam quaisquer consequências práticas para
o arguido que minta, uma vez que tal mentira não deve ser valorada contra ele, quer ao
nível substantivo autónomo das falsas declarações, quer ao nível dos direitos processuais
daquele (mesmo dos relacionados com a prisão preventiva)111.

Que concluiremos então? Não existe, por certo, um direito a mentir que sirva
como causa justificativa da falsidade; o que sucede simplesmente é ter a lei entendido ser
inexigível dos arguidos o cumprimento do dever de verdade, razão por que renunciou
nestes casos a impô-lo. Só não compreenderá esta solução quem esqueça que a
inexigibilidade não é apenas critério de culpa jurídico-penal, mas também critério apto a
decidir, com sentido, da própria ilicitude de um comportamento. E se tem de aceitar-se
que ela é princípio normativo para o juiz, quando este se ocupa com determinar a concreta

107
HENKEL2, § 39, IV, 3., nota 21.
108
Assim, entre nós, ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, 1968, p.
175 s. e CAVALEIRO DE FERREIRA, I, p. 152 s. Na Alemanha, cf. HENKEL2, loc. cit., e os que refere na nota
22.
109
Cf. FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 61 e ss.
110
Assim, CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, p. 175 (“dever moral e
processual geral de dizer a verdade”).
111
Admitindo, não obstante, a valoração da mentira no âmbito da graduação da medida concreta da pena,
ROXIN / SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht28, § 25, 10.
45

contrariedade ao dever de um certo comportamento, não se pode recusá-la enquanto


princípio para o próprio legislador, quando se preocupa com determinar em abstrato o
âmbito dos deveres que há de impor.

Com isto não se terão resolvido todos os problemas nascidos de um


comportamento processual mentiroso do arguido. Parece-nos seguro que, de um ponto de
vista processual, ele não constitui um ato processualmente inadmissível. Como seguro é
que, de um ponto de vista substantivo, tal comportamento não integra já o tipo
incriminador da falsidade de declaração (art. 359.º/2 do CP). Resta saber, porém, se ele
não poderá eventualmente integrar outros tipos incriminadores, maxime o de denúncia
caluniosa (art. 365.º do CP) e o de difamação (art. 180.º do CP), e se, de toda a maneira,
não constituirá ilícito civil. Uma resposta negativa – que nos parece, em princípio, de
afastar – não está sem mais coberta nem pela ideia de inexigibilidade acima exposta, nem
pela simples invocação do direito de defesa do arguido.

5. O relevo fundamental do direito ao silêncio no quadro do princípio constitucional


da proibição da autoincriminação projeta-se muito particularmente, como é evidente, em
matéria de prestação de declarações e conduz diretamente à distinção entre meios
legítimos e ilegítimos (admissíveis e inadmissíveis) de interrogar e de obter declarações.

A Constituição, no art. 32.º/8, estabelece a proibição, qualificando-as como nulas,


de todas as provas obtidas mediante tortura, coação e ofensa da integridade física ou moral
da pessoa, no que é acompanhada pelo art. 126.º do CPP, que, no n.º 1 reitera essa
proibição, determinando a inamissibilidade da utilização das provas assim obtidas, e no
n.º 2 concretiza os métodos de obtenção de prova ofensivos da integridade física ou moral
das pessoas112. Logo destes preceitos resulta uma proibição de valoração das provas
adquiridas através de uma restrição ilegítima do direito à não autoincriminação,
incluindo, portanto, as obtidas através de uma aberta e frontal violação do direito ao
silêncio. À proteção deste direito fundamental acorrem ainda o art. 58.º/5, ao estabelecer
a proibição de valoração das declarações obtidas mediante omissão ou violação das
formalidades relativas à constituição de arguido, e o art. 103.º/5, ao proibir a utilização

112
Para uma ligação destas proibições de prova ao direito à não autoincriminação, SANDRA
OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p. 373 e ss.
46

como prova das declarações prestadas pelo arguido em interrogatório realizado com
inobservância dos horários e limites definidos no art. 103.º/3/4.

IV. Os deveres processuais do arguido

O estatuto processual do arguido é composto também por deveres processuais que


sobre ele impendem, enunciados, além do mais, no art. 61.º/6:

1. Sobre o arguido recai um dever de comparecer “perante o juiz, o Ministério


Público ou os órgãos de polícia criminal sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido
devidamente convocado” (61.º/6/a)). Devendo o arguido ser interrogado ou sendo
necessária a sua comparência num dado ato processual (v. g., para ser sujeito a um exame,
para a realização de um reconhecimento, etc.) deverá ele comparecer quando
regularmente notificado para o efeito, havendo atos nos quais é estabelecida a
obrigatoriedade da sua presença (v. g., a audiência de julgamento, art. 332.º/1).

A inobservância deste dever de comparência poderá acarretar, tratando-se de falta


injustificada, o sancionamento do arguido com multa processual (art. 116.º/1), justificar
a ordem da sua detenção para assegurar a sua presença (arts. 116.º/2 e 254.º/1/b)) e, caso
tenha prestado caução carcerária (art. 197.º), implicar a quebra da caução (art. 208.º/1).

2. O arguido tem o dever de “responder com verdade às perguntas feitas por


entidade competente sobre a sua identidade” (art. 61.º/6/b)).

Quando questionado sobre a sua identidade – num qualquer interrogatório (art.


141.º/3) ou na audiência de julgamento (art. 342.º) –, o arguido tem o dever de responder
e de responder com verdade. O incumprimento deste dever não é sancionado
processualmente – isto é, não a possui efeitos ao nível do processo penal em que ocorre,
maxime desfavorecendo a posição do arguido ou sendo indício valorável como presunção
de culpa –, mas sim punível como crime autónomo: de desobediência (art. 348.º/1/b) do
CP), se se recusar a revelar a sua identidade mesmo depois de advertido do dever de o
fazer e de que o seu incumprimento acarreta uma responsabilização penal por
47

desobediência; ou de falsidade de declaração (art. 359.º/2 do CP). Disto mesmo deve ser
o arguido advertido em qualquer interrogatório em que seja questionado sobre a sua
identidade. Esta solução justifica-se, até certo ponto, pelo facto de a comprovação da
identidade do arguido constituir questão básica de todo o processo penal, sem, todavia,
dizer diretamente respeito à culpa daquele. Se os atos processuais se dirigem contra
pessoa diversa da que é arguida no processo, falta a este um pressuposto processual; e a
comprovação destes pertence, oficiosamente, a todos os órgãos oficiais que atuam no
processo penal.

Com a redação dada ao atual art. 61.º/6/b) e ao art. 141.º/3 pela Lei n.º 20/2013,
deixou se prever a possibilidade de existência de previsão legal que impusesse ao arguido
o dever de responder sobre os seus antecedentes criminais, tendo a partir de então deixado
de ser possível questionar o arguido, no âmbito de interrogatórios realizados nas fases
preliminares do processo, “se já esteve alguma vez preso, quando e porquê e se foi ou
não condenado e por que crimes” 113. Uma proibição que valia já, e continua a valer, no
âmbito da audiência de julgamento desde 1995114. De modo que em momento nenhum
do processo pode o arguido ser perguntado sobre os seus antecedentes criminais; e se –
indevidamente – o for, não está obrigado a responder; nenhuma consequência para ele
advindo de uma falta de resposta ou de uma resposta não verdadeira sobre o tema. É ao
registo criminal, e não à memória do arguido, muitas vezes lacunosa e imprecisa, que as
autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal deverão recorrer para se inteirarem
do passado criminal do arguido.

113
Com a Lei n.º 20/2013 ficou, portanto, sem efeito a jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º
9/2007 - “O arguido em liberdade, que, em inquérito, ao ser interrogado nos termos do artigo 144.º do
Código de Processo Penal, se legalmente advertido, presta falsas declarações a respeito dos seus
antecedentes criminais incorre na prática do crime de falsidade de declaração, previsto e punível no artigo
359.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal” –, caucionada pelo TC no Ac. n.º 127/2007.
114
Decreto-Lei n.º 317/95, de 28/11. No sentido da inconstitucionalidade da disposição da versão
originária do Código que impunha ao arguido a revelação dos seus antecedentes criminais no início da
audiência de julgamento, MARIA FERNANDA PALMA, “A constitucionalidade do artigo 342º do Código de
Processo Penal (O direito ao silêncio do arguido)”, RMP, n.º 60, 1994, p. 101 e ss. e o Ac. do TC n.º 695/95.
Pela não inconstitucionalidade da imposição desse dever no âmbito dos interrogatórios realizados no
inquérito, Acs. do TC n.ºs 372/98 e 127/2007.
48

3. À assunção da qualidade de arguido é inerente o dever de prestar termo de


identidade e residência (art. 61.º/6/c)), medida de coação em sentido impróprio prevista
e regulada no art. 196.º Dela não resulta qualquer restrição à liberdade ambulatória do
arguido, mas obriga-o a revelar dados pessoais e a manter o processo permanentemente
informado sobre o seu paradeiro: qualquer mudança de residência deve ser comunicada
ao processo e qualquer ausência superior a 5 dias da morada indicada nos autos gera um
dever de informação do lugar onde poderá ser encontrado (art. 196.º/3/b)). Do processo
poderão ficar, assim, a constar informações sobre as mais variadas deslocações do
arguido, a partir das quais será possível inferir rotinas profissionais, destinos de férias,
problemas de saúde, etc. Informações que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por poder
ser acedidas por um conjunto indeterminado, e não raro muito vasto, de pessoas. Tudo o
que comporta uma ingerência estadual nada despicienda nos seus direitos fundamentais
à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informacional (art. 26.º/1
da CRP).

4. A circunstância de o arguido dever ser considerado sempre sujeito do processo,


seja qual for a fase em que este se encontre, não obsta a que ele possa ser também objeto
de medidas coativas (arts . 61.º/6/d) e 191.º e ss.), prevendo-se no art. 61.º/6/d) o dever
de o arguido se sujeitar às medidas de coação e de garantia patrimonial que lhe sejam
aplicadas. Deste preceito resulta para o arguido a obrigação de cumprir o regime de
execução das medidas de coação e de garantia patrimonial que lhe sejam impostas.

5. Finalmente o arguido pode constituir também, como dissemos, meio de prova,


prevendo-se no art. 61.º/6/d) o dever de se sujeitar a diligências de prova. Pode sê-lo, na
verdade, em um duplo sentido:

a) Em sentido material, através das declarações prestadas sobre os factos. Já


sabemos que ele não pode ser coagido à prestação de tais declarações; e importa agora
acrescentar que, mesmo prestando declarações falsas sobre os factos imputados, nem por
isso lhe poderão ser aplicáveis as sanções penais previstas para a falsidade de depoimento
(art. 359.º do CP) ou para a falsidade de testemunho (art. 360.º CP), só ficando sujeito a
responsabilidade penal relativamente a declarações sobre a sua identidade (art. 359.º/2 do
49

CP). Esta solução justifica-se formal ou processualmente pelo facto de a nossa lei, como
a generalidade dos sistemas continentais, não ver o arguido como testemunha ou
declarante em causa própria — como o faz o direito processual penal anglo-saxónico —
, antes sim como um meio de prova autónomo.

b) Em sentido formal, na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem
ser objecto de exames (arts. 61.º/6/d) e 171.º e ss.) e de revistas (arts. 61.º/6/d) e 174.º)115.
Cumpre notar que tais “exames” participam de uma como que dupla natureza: ainda que
legalmente qualificados como meios de obtenção de prova, os exames, hoc sensu, não
deixarão de valer como meios de prova, enquanto neles se faça avultar o juízo que se
emite sobre as qualidades ou características de uma pessoa, isto é, enquanto neles se tenha
primacialmente em vista a sua mais ou menos acentuada natureza de “inspeção” ou de
“perícia”; na medida, porém, em que o objeto do exame seja uma pessoa, que assim se vê
constrangida a sofrer ou suportar uma atividade de investigação sobre si mesma, o exame
constitui um verdadeiro meio de coação processual – como claramente o inculca, de resto,
a parte final do n.º 1 do art. 172.º, ao estatuir que, para realização de um exame, “pode [o
visado] ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente” –, tendo por isso
de submeter-se aos princípios que estritamente demarcam a admissibilidade de tais meios
de coação, maxime o princípio da proibição do excesso.

115
SANDRA OLIVEIRA E SILVA, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, p. 718 e ss.,
PATRÍCIA NARÉ AGOSTINHO, Intrusões Corporais em Processo Penal, Almedina, 2014, e JORGE DOS REIS
BRAVO, Corpo e Prova em Processo Penal: Admissibilidade e Valoração, Almedina, 2020.
50

PARTE II

O DEFENSOR
51

§ 1. FUNÇÃO E POSIÇÃO JURÍDICA DO DEFENSOR EM PROCESSO PENAL

1. O defensor é o profissional forense que assume a função de defesa do arguido.


Um papel que, no nosso direito processual penal, está exclusivamente reservado aos
advogados. O direito ao defensor é um direito fundamental do arguido em processo penal,
previsto expressamente no art. 32.º/3 da CRP – “O arguido tem direito a escolher defensor
e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as
fases em que a assistência por advogado é obrigatória” –, com afloramentos ainda nos
arts. 20.º/2 e 208.º da CRP e densificado legalmente no CPP (arts. 61.º/1/e)/f) e 62.º e ss.),
na LOSJ (art. 12.º e ss.) e no EOA (art. 88.º e ss.). Dada a sua crucial importância para a
defesa do arguido em processo penal, trata-se de um direito reconhecido e explicitado em
numerosos instrumentos normativos de direito internacional e europeu, dele dependendo
a própria conformidade do sistema processual penal com o paradigma do Estado de direito
material: art. 14.º/3/b)/d) do PIDCP, art. 6.º/3/c) da CEDH116, art. 49.º/2 da CDFUE e
Diretiva 2013/48/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013,
relativa ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de
execução de mandados de detenção europeus.

A participação do defensor no processo penal visa, antes de mais e


fundamentalmente, dar consistência ao direito de defesa de que o arguido é titular117,
relevando, sob esta perspetiva, como direito subjetivo fundamental do arguido,
intrinsecamente ligado ao seu direito de defesa. São óbvias as razões pelas quais a
assistência do arguido por advogado é imprescindível para que o direito de defesa seja
efetivo. A necessidade de uma defesa técnica é, com efeito, por demais evidente. Em
geral, só juristas estarão habilitados a proceder a um enquadramento jurídico rigoroso e
preciso dos factos que importam para o apuramento da responsabilidade penal do arguido,
discernindo e dando-lhe a conhecer aqueles que, realmente, têm relevância para esse
efeito; o que é basilar para a definição da estratégia de defesa. Além disso, em regra, o
arguido desconhece boa parte dos direitos, garantias e prerrogativas processuais de que é

116
Cf. Ac. do TEDH no caso Poitrimol c. França (23.11.1993), § 34: “Although not absolute, the
right of everyone charged with a criminal offence to be effectively defended by a lawyer, assigned officially
if need be, is one of the fundamental features of a fair trial”.
117
Acs. do TC n.º 49/86 e 7/87 (2.5).
52

titular, bem como o seu conteúdo e a sua extensão e a forma processualmente adequada
de os exercer, pelo que, para a sua efetivação, é imprescindível a assistência do defensor.
O defensor está assim longe de se limitar a ser uma espécie de mero fiscal da legalidade
da atuação e das decisões das autoridades judiciárias e dos órgãos de polícia criminal no
processo118: bem mais do que isso, a ele cabe o essencial da materialização da defesa do
arguido no processo. A participação do defensor é ainda necessária para que o arguido
possa exercer o seu direito ao silêncio sem que daí resulte uma situação de indefesa:
dispondo de um defensor, o arguido, ainda que se remeta ao silêncio, terá quem fale por
ele, em sua defesa, e exerça o contraditório no seu interesse.

A intervenção do defensor no processo é igualmente reclamada pelo interesse


público na realização da justiça penal: a efetivação do direito de defesa é uma condição
imprescindível para uma cabal prossecução desta finalidade do processo penal; e, além
disso, o seu asseguramento por um advogado, independente e tecnicamente habilitado
para atuar no foro, contribui para garantir que, do lado do arguido, a lide processual é
conduzida por quem domina as leges artis do processo, de forma a não comprometer a
fluidez da tramitação processual. Promove-se, assim, do mesmo passo, um equilíbrio na
competência de ação, também ela importante para uma boa administração da justiça
penal: se, de um lado, a promoção do processo fica a cargo de juristas, os magistrados do
Ministério Público; do outro, a defesa é igualmente assegurada por juristas, os
advogados119.

Este interesse público contribui para justificar a previsão da obrigatoriedade da


assistência do defensor em certos atos e fases processuais, que o afastam de um modelo
que passe por considerá-lo exclusivamente como “representante dos interesses do
arguido”120, abrindo caminho à possibilidade de nomeação de advogado ao arguido sem
ou mesmo contra a sua vontade (art. 64.º/1) e impondo a previsão de um estatuto
processual que garanta a autonomia do defensor no exercício das funções de defesa e de
representação do arguido que lhe são cometidas. Tudo o que, em definitivo, atenta a

118
Nesta direção, todavia, KARL-HEINZ GÖSSEL, “A posição do defensor no processo penal de um
Estado de direito”, BFDUC, 1983, p. 275 e ss.
119
Sublinhando este ponto, o Ac. do TC n.º 49/86 (2.2).
120
Sobre isto, cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Para uma reforma global do processo penal
português”, in: Para uma Nova Justiça Penal, Almedina, 1983, p. 214.
53

possibilidade que tem de codeterminar a decisão final do processo, legitima a


consideração do defensor como sujeito processual121.

2. Assim se caracteriza, substancialmente, a função do defensor em processo


penal; e através dela podemos agora determinar a posição jurídica deste sujeito
processual, como meio de compreensão das singulares disposições legais que àquela
função se referem. Assim:

a) Prejudicada fica, desde logo, a tese segundo a qual a função de defensor


asseguraria a este, na esteira do processo civil, a posição jurídica de representante
judiciário do arguido122. O fundamento da prática, pelo defensor, de atos processuais não
deve ver-se na “procuração forense” ou nos “poderes representativos” concedidos pelo
arguido. Deve sim encontrar-se diretamente no poder-dever que a lei confere ao defensor
de exercício da sua função – ufficio, lhe chamam com razão os autores italianos123! – de
defesa, que não fica ligada às instruções ou à vontade do arguido. Neste sentido pode e
deve afirmar-se que a função da defesa é pública124, tem o seu assento no direito
público125 e não no instituto jurídico-privado da representação.

b) Insuficiente – se bem que não inexata – parece ser por outro lado a
conceitualização da função do defensor como de assistência ao arguido. Compreende-se
e aceita-se que ela seja utilizada pela lei (art. 64.º do CPP) como terminus technicus126
capaz de caracterizar a situação coadjuvante que ao defensor pertence relativamente ao
arguido. Não parece, porém, que doutrinalmente devamos bastar-nos com ela.
Se, na verdade, por assistência quisermos entender uma mera função de auxiliar
processual do arguido, teremos então de opor que tal caracterização é inexata a partir de

121
FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais…”, p. 11, e MARIA JOÃO ANTUNES, DPP2, p.
46 e s.
122
Cf., no entanto, entre nós, à luz da ideia de que o processo penal é, “formalmente, um processo
de partes”, EDUARDO CORREIA, Processo Criminal, n. 40.
123
Cf., por outros, GAETANO FOSCHINI, Sistema del Diritto Processuale Penale, I, 2.ª ed., Giuffrè,
1965, cap. XV: L’ufficio della difesa.
124
De novo GAETANO FOSCHINI, cit., p. 286 (cap. XV B. La difesa pubblica).
125
Assim, por outros, HENKEL2, § 33, II, 2, citando jurisprudência alemã.
126
Cf. HENKEL2, § 33, II, 3.
54

um duplo ponto de vista; pois nem o exercício da função de defesa está, como dissemos,
essencialmente subordinado às instruções ou à vontade do arguido, nem ele está
exclusivamente dependente do interesse subjetivo deste – v. g., o de obter uma absolvição
a todo o custo. Se, diferentemente, alargarmos o conceito de “assistência” até o fazermos
coincidir com uma colaboração autónoma na função da defesa, então ele revela-se exato;
só que, com isto, nada se acrescenta ou se tira à própria noção de defensor e em nada se
contribui para desenhar a verdadeira função que se lhe atribui em processo penal.

c) Tal como o Ministério Público, também o defensor é um órgão autónomo de


administração da justiça127. Devendo a função de defensor ser obrigatoriamente exercida
por advogado (art. 1.º/10 da Lei n.º 49/2004), é esta uma caracterização que beneficia
inclusivamente de amparo constitucional e legal, nos arts. 208.º da CRP e nos arts. 12.º/1
da LOSJ e 88.º/1 do EOA. Enquanto tal, cabe basicamente ao defensor colaborar com o
tribunal – na sua maneira diferenciada, que trataremos já de explicitar – na descoberta
da verdade e na realização do direito.
Assim é, desde logo, na medida em que – como já anotámos – os direitos do
defensor não têm a sua origem e fundamento na “procuração” concedida pelo arguido,
constituindo esta apenas uma das fontes de onde pode derivar a assunção da função de
defensor; aqueles direitos são, na verdade, mais amplos do que o poderiam ser se tivessem
fundamento apenas contratual e têm a sua origem na própria lei processual penal. Isto
significa, por força, que o defensor exerce uma função pública de administração da
justiça e é, por conseguinte, um órgão desta administração.
Resulta do exposto, por outro lado, que a função de defesa ultrapassa o eventual
interesse subjetivo do arguido para cumprir uma tarefa que interessa à própria
comunidade jurídica: a de que só sejam punidos em processo penal os verdadeiros
culpados e, para isso, a de que sejam juridicamente protegidos todos os arguidos. O que
serve para dar a entender o que há de erróneo numa conceção, infelizmente muito corrente
na prática, que vê o defensor, a priori, como opositor do Ministério Público, e se não

127
Assim, entre nós, logo CAVALEIRO DE FERREIRA, I, n. 47 e FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p.
469 e ss.; e posteriormente, a generalidade da doutrina nacional: v. g., RODRIGO SANTIAGO, “O defensor e
o arguido…”, p. 211 e ss., HENRIQUES GASPAR, CPP Comentado, Art. 62.º, 2., e MARIA JOÃO ANTUNES,
DPP2, p. 46 e s. E pela doutrina alemã dominante, ROXIN / SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht28, § 19, nm.
11, e MEYER-GOßNER/SCHMITT, StPO62, antes do § 137, nm. 1.
55

também mesmo do próprio juiz, quando na verdade a sua posição é a de um colaborador


– embora de um colaborador à sua própria maneira e de forma diferenciada – na realização
dos objetivos em que todos participam.
De forma diferenciada, porém – dissemos e repetimos. Efetivamente, a função de
defesa aparta-se tanto da atividade judicial como da do Ministério Público – podendo
nesta medida surgir o defensor, facticamente, como “opositor” daquelas entidades –, na
medida em que, servindo embora como aquelas a descoberta da verdade e a realização da
justiça, serve-a atuando exclusivamente em favor do arguido. E não existe nisto qualquer
contradição: dentro da sua tarefa específica de defesa, cumpre ao defensor aconselhar o
arguido, contrariar qualquer visão unilateral ou parcial que no processo tenda a formar-se
em desfavor daquele – seja na apreciação dos factos, seja no entendimento a dar às
questões de direito –, velar, enfim, para que a autonomia ética do arguido e a sua
dignidade pessoal não sofram qualquer dano. Assim se serve uma verdade que não basta
que corresponda à realidade dos factos e ao reto entendimento do direito material, mas é
ainda necessário que seja processualmente válida – só assim se correspondendo
inteiramente à própria Ideia de Direito.
Estas considerações dão um particular sentido ao dever de verdade do defensor,
sem, todavia, tocar a sua essência como dever ético-profissional e como dever processual.
Ele não significa, por um lado, que o defensor seja obrigado a apresentar no processo toda
a verdade que conheça – sob pena de se confundir irremediavelmente a função do
defensor com a do Ministério Público128 –, mas apenas aquela verdade que possa
favorecer a posição processual do arguido. Que assim é mostra-o, por outro lado, a
circunstância de um tal dever de verdade se encontrar limitado pelo dever de segredo
profissional (art. 13.º/2/a) da LOSJ e art. 92.º do EOA) relativamente a tudo o que possa
desfavorecer a posição do arguido.

128
E de se não poder então esperar que os arguidos dissessem sempre a verdade deles conhecida
aos seus defensores – o que seria desastroso do ponto de vista da política processual penal.
56

§ 2. ADMISSIBILIDADE E OBRIGATORIEDADE DA ASSISTÊNCIA POR DEFENSOR

1. Nos termos do n.º 1 do art. 62.º, “o arguido pode constituir advogado em


qualquer altura do processo”. Por esta forma dá a lei a entender que o exercício da função
de defesa por defensor é admissível em qualquer processo e em qualquer altura do
processo – o que corresponde à ideia de uma geral admissibilidade da defesa em processo
penal. Claro, é, porém, que com isto nada se diz quanto ao modo permitido de participação
do defensor e de execução da defesa em cada uma das fases do processo129.

2. Geralmente admitida, como acabamos de ver, em qualquer fase do processo, só


em certos casos a defesa com assistência de defensor se torna necessária ou obrigatória.
Esta obrigatoriedade encontra previsão na terceira parte do n.º 3 do artigo 32.º da
Constituição: “(…) especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por
advogado é obrigatória”. Ao contrário dos trechos anteriores do preceito, nos quais se faz
menção à assistência por defensor, neste último segmento a Constituição refere-se à
assistência por advogado, daqui resultando, portanto, que em certos casos e fases do
processo penal deverá ser obrigatória uma defesa técnica e que tal defesa deverá ser
necessariamente assegurada por um advogado.
Esta injunção constitucional constitui uma projeção do princípio do Estado de
direito130. É certo que ao arguido estão sempre reservados os direitos de escolher defensor
e de providenciar pela sua assistência quando o desejar. Mas não pode ignorar-se que, na
prática, estes direitos poderão não estar realmente ao seu alcance. O que pode suceder
pelas mais variadas razões: v. g., por desconhecimento de um advogado a quem recorrer,
por dificuldades económicas, por estar privado da liberdade, deparando-se com
dificuldades de monta para contactar e contratar um advogado, por obstáculos que lhe são
colocados pelas autoridades, etc. Dificuldades que tendem ser sentidas sobretudo pelos
arguidos mais vulneráveis e desfavorecidos, nomeadamente, por se encontrarem detidos,
viverem numa situação de pobreza, padecerem de doença ou patologia graves, não
dominarem a língua portuguesa, terem baixos níveis de instrução e literacia, etc. Ora, não

129
Sobre isto cf. infra, § 4.
130
Ac. do TC Federal alemão de 19.10.1977 (BVerfGE ano 46, n.º 202, p. 210), e MEYER-
GOßNER/SCHMITT, StPO62, § 140, nm. 1.
57

seria aceitável que o Estado abandonasse esta mole de arguidos à sua sorte, fazendo
descaso das dificuldades com que poderão deparar-se para constituir advogado e assim
deixando que o processo se desenrolasse com privação de uma defesa efetiva, em afronta,
portanto, dos direitos consagrados no n.º 1 do art. 20.º da CRP e do direito de defesa
constitucionalmente garantido (art. 32.º/1 da CRP).
É sobretudo a esta luz que se compreende a imposição constitucional, constante
da última parte do art. 32.º/3 da CRP, de que em certos casos e fases deverá ser legalmente
obrigatória a assistência por advogado. Uma exigência que se dirige aos casos de arguidos
particularmente vulneráveis e às situações e fases processuais especialmente críticas para
os direitos fundamentais do arguido, aquelas em que sobe de tom a necessidade de apoio
do defensor e da defesa técnica que a este está confiada. Assim, embora cabendo “no
âmbito de liberdade de conformação do legislador a seleção das situações em que a
assistência deve ser obrigatória”, é “constitucionalmente exigível que essa seleção seja
adequada à relevância dos diversos atos e fases do processo criminal”131.
O art. 64.º/1 concretiza esta injunção constitucional, determinando a assistência
do defensor132: a) nos interrogatórios de arguido detido ou preso; b) nos interrogatórios
feitos por autoridade judiciária133; c) no debate instrutório134 e na audiência; d) em
qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido, sempre que o arguido for
cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos135,
ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída; e)

131
Ac. do TC n.º 406/2004, que, todavia, não julgou inconstitucional a possibilidade de um arguido
detido ser sujeito a interrogatório policial sem assistência de defensor (situação agora contemplada no art.
64.º/1/a)). A não inconstitucionalidade da não obrigatoriedade legal de assistência por defensor, foi ainda
afirmada pelo TC em relação à prova por reconhecimento realizada perante órgão de polícia criminal (Ac.
n.º 532/2006) e à concordância dada à suspensão provisória do processo (Ac. n.º 67/2006, 8.).
132
Para uma análise desenvolvida, TIAGO CAIADO MILHEIRO, Comentário Judiciário do CPP, Art.
64.º, § 31 e ss.
133
A obrigatoriedade de assistência do defensor nos interrogatórios feitos por autoridade judiciária,
introduzida pela Lei n.º 20/2013, relaciona-se com a alteração feita pelo mesmo diploma ao art. 357.º, de
forma a permitir que as declarações prestadas pelo arguido perante autoridade judiciária durante o inquérito
e a instrução possam ser posteriormente reproduzidas ou lidas, na audiência de julgamento – cf. JORGE DE
FIGUEIREDO DIAS, “Por onde vai o Processo Penal português: por estradas ou por veredas?”, As Conferência
CEJ, Almedina, 2014, p. 67 e ss.
134
A obrigatoriedade parece cingir-se ao defensor do arguido que requereu ou contra quem foi
requerida a instrução, não abrangendo os defensores de coarguidos que não se encontram numa dessas
posições – assim, o Ac. do TRC de 29.10.2014 (Proc. n.º 810/12.6JACBR-E.C1).
135
Cf. o art. 6.º da Diretiva 2016/800/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio
de 2016, relativa a garantias processuais para os menores suspeitos ou arguidos em processo penal.
58

nos recursos ordinários ou extraordinários; f) nos casos a que se referem os artigos 271.º
e 294.º; g) na audiência de julgamento realizada na ausência do arguido; e h) nos demais
casos que a lei determinar.
A imposição de obrigatoriedade de assistência em alguns dos casos legalmente
especificados não se liga só ao referido intuito de proteção do direito de defesa do arguido,
podendo ser perspetivada ainda também a partir de interesses de outra ordem, que se
prendem com o escopo de realização da justiça penal. Mais concretamente, com o
interesse em que a defesa seja assegurada por um profissional forense independente, sem
um interesse pessoal na causa e sujeito a um estatuto deontológico consentâneo com a
sua consideração como órgão autónomo de administração da justiça136. E ainda com o
interesse de promoção da eficiência da justiça penal, contribuindo para viabilizar a
realização de julgamentos na ausência e prevenindo disfunções que poderiam afetar certas
diligências processuais se, por exemplo, se admitisse que o arguido cumulasse essa
qualidade com a de defensor de si próprio137.

3. São estes interesses que, em boa medida, sustentam a posição, há muito


enraizada entre nós, tanto na doutrina138 como na jurisprudência139, de que, no âmbito da
assistência obrigatória, em caso algum poderá admitir-se que o arguido prescinda da
assistência de um advogado, ainda que realmente seja essa a sua vontade. Uma proibição
que vem sendo absolutamente afirmada até em relação a arguidos que são eles próprios

136
Nesse sentido, considerou o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 461/2004, a propósito da
necessidade de os recursos penais serem da lavra de advogado, que tal exigência “visa garantir a intervenção
(no caso, perante um tribunal de recurso) de profissionais devidamente qualificados, assegurando a devida
preparação técnica e o respeito pelos princípios deontológicos da profissão, cujo cumprimento cabe à
Ordem dos Advogados assegurar, bem como, por outro lado, assegurar no recurso uma defesa, além de
tecnicamente preparada, desapaixonada, serena e desinteressada do arguido”.
137
Assim, o Ac. do STJ de 01.07.2009 (Proc. n.º 279/96.0TAALM.S1): “Impõe-se, pois,
claramente, uma demarcação entre o advogado arguido e o advogado defensor, funções que, confundindo-
se, gerariam dificuldades práticas de execução, o que sucederia por ex.º na tomada de declarações ao
ofendido ou inquirição de testemunhas arroladas pela parte contrária, tudo fonte de inextricáveis querelas
e disfunções sem resultado útil à vista”.
138
MARQUES DA SILVA I2, p. 336 e ss., e HENRIQUES GASPAR, CPP Comentado, Art. 64.º, 2.
139
Na jurisprudência comum, por muitos outros, logo o Ac. do STJ de 24.01.1939 (Colecção
Oficial dos Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 78, p. 15) e, no período mais recente,
os Acs. do STJ de 06.12.2001 (Proc. n.º 06/12/2001), de 24.09.2003 (Proc. n.º 1112/03) e 01.07.2009 (Proc.
n.º 279/96.0TAALM.S1). E na jurisprudência constitucional, os Acs. do TC n.ºs 578/2001 e 461/2004.
59

juristas e profissionais forenses, como advogados140 e magistrados141. Para esse efeito,


não raro é invocado o regime legal da obrigatoriedade da assistência por defensor,
quando, na verdade, se trata de uma proibição que é fruto de uma ideia de fundo de, pura
e simples, rejeição da possibilidade de cumulação das qualidades de arguido ou de
assistente142 com a de advogado no mesmo processo. Tanto assim é que, frequentemente,
a possibilidade de “autorrepresentação” é tratada do mesmo modo e com os mesmos
argumentos independentemente de quem pretenda advogar em causa própria, o arguido
ou o assistente143. O que é revelador de que a preocupação com a tutela do direito de
defesa está longe de ser aquela que verdadeiramente anima este pensamento.
Esta rígida proibição de autodefesa144, vem sendo fundadamente questionada145 a
partir do direito à escolha do defensor (art. 32.º/3 da CRP) e do direito do arguido a
defender-se a si próprio previsto nos arts. 6.º/3/c) da CEDH146 e 14.º/3/d) do PIDCP147.
No acórdão proferido no segundo caso Correia de Matos c. Portugal, de 04.04.2018, o

140
Ac. do TC n.º 578/2001 e Ac. do TRP de 05.12.2018 (Proc. n.º 497/14.1TASTS.P1).
141
Ac. do STJ de 06.12.2001, cit.
142
Ac. do STJ n.º 15/2016.
143
Cf. o Ac. do TC n.º 578/2001, relativo ao arguido, louvando-se no Ac. do TC n.º 252/97,
referente ao assistente; e do mesmo modo o Ac. do TRP de 05.12.2018 por referência ao Ac. do STJ de
18.04.2012 (Proc. n.º 172/11.9TRPRT-A.S1).
144
Com uma breve resenha do estado da questão no direito comparado, Ac. do TEDH no caso
Correia de Matos c. Portugal (Ac. da Grande Chambre de 04.04.2018), 81. e ss.: a autodefesa é admitida,
em via de princípio, em 31 Estados signatários da CEDH e é proibida, em regra, em 5 (Portugal, Itália,
Noruega, São Marino e Espanha).
145
RODRIGO SANTIAGO, “O defensor e o arguido…”, p. 233 e s., e PINTO DE ALBUQUERQUE, CPP4,
Art. 62.º, nm. 6 e s.
146
Cf. a decisão do TEDH de 15.11.2000 no primeiro caso Correia de Matos c. Portugal (Queixa
n.º 48188/99) e o mencionado Ac. do TEDH de 04.04.2018, no segundo caso Correia de Matos c. Portugal.
147
Cf. a Comunicação n.º 1123/2002, de 28.03.2006, do Comité de Direitos Humanos das Nações
Unidas que no caso Correia de Matos c. Portugal, concluindo existir violação deste preceito pelo Estado
português. Note-se, não obstante, que este direito foi aí tido como não absoluto, admitindo restrições: “7.4
The right to defend oneself without a lawyer is not absolute, however. Notwithstanding the importance of
the relationship of trust between accused and lawyer, the interests of justice may require the assignment of
a lawyer against the wishes of the accused, particularly in cases of a person substantially and persistently
obstructing the proper conduct of trial, or facing a grave charge but being unable to act in his own interests,
or where it is necessary to protect vulnerable witnesses from further distress if the accused were to question
them himself. However, any restriction of the accused's wish to defend himself must have an objective and
sufficiently serious purpose and not go beyond what is necessary to uphold the interests of justice”. Posição
adotada pelo CDH da ONU num dos seus Comentários Gerais ao PIDCP – cf. “General Comment No. 32
– Article 14: Right to equality before courts and tribunals and to a fair trial”, de 23.08.2007
(CCPR/C/GC/32), 37.
60

TEDH, numa votação muito dividida148, concluiu que a solução normativa que vem sendo
sufragada entre nós, de terminante proscrição da possibilidade de autodefesa e
concomitante dispensa de assistência de defensor nas situações previstas no art. 64.º/1 do
CPP, ao ponto de abranger arguidos tecnicamente habilitados a defender-se em juízo,
assenta em razões atendíveis149 e está dentro da margem de apreciação que deve ser
reconhecida aos Estados na limitação do direito de autodefesa, e por isso não viola o art.
6.º, n.ºs 1 e 3, al. c), da CEDH.
A imposição de defensor parece-nos, com efeito, justificada na generalidade dos
atos processuais enunciados no art. 64.º/1 quando os arguidos não sejam juristas. Dada
a sua falta de preparação técnica, esses arguidos não estarão, em geral, habilitados a
oferecer uma defesa efetiva em tais atos. Atos que, recorde-se, podem contender com
direitos fundamentais ou ter um relevo decisivo para o desfecho do processo e, portanto,
também, em regra, para a sua liberdade. Atendendo a estas circunstâncias, cremos que o
interesse (que também é público) de tutela efetiva do direito de defesa deverá sobrepor-
se à eventual vontade manifestada do arguido de se defender sozinho.
Tratando-se de arguidos que são juristas e profissionais do foro, tecnicamente
habilitados a atuar em juízo, parece-nos que a limitação do direito à autodefesa só se
justificará quando a cumulação de papéis de arguido e de defensor puder ser prejudicial
a uma regular tramitação do processo, em função do interesse público de que a justiça
penal seja realizada com eficiência150 – de que será exemplo a audiência de julgamento,
no âmbito da qual se procede ao interrogatório do arguido e por vezes há necessidade de
ouvir sujeitos e participantes processuais sem a sua presença. Não havendo razões para
temer que a autodefesa por arguido profissional do foro poderá vir a revelar-se
disfuncional, a sua proibição com o argumento de que é para seu bem, porque só terá a
ganhar com a intervenção de um terceiro que cuidará da sua defesa com a vantagem do
distanciamento, de forma desapaixonada, radica num paternalismo estadual que, neste
domínio, nos parece injustificado. Um argumento que as mais das vezes é convocado no
âmbito de recursos subscritos pelo próprio arguido e que pode redundar nesta situação

148
Dos 17 juízes que compuseram a Grande Chambre, 9 votaram a favor da posição vencedora e
8, incluindo o então juiz português Paulo Pinto de Albuquerque, votaram vencidos.
149
As razões encontram-se sumariadas nos pontos 147. e s. do acórdão.
150
Na linha, portanto, das restrições admitidas pelo CDH da ONU ao direito à autodefesa previsto
no art. 14.º/3/d) do PIDCP – “General Comment No. 32…”, cit., 37.
61

paradoxal: a possibilidade de autodefesa é negada ao arguido por se considerar que a sua


defesa estaria mais bem servida se exercida por um terceiro e, nessa sequência, rejeita-se
o recurso interposto, o qual poderá ser nem mais nem menos do que o único meio
processual de que o arguido dispõe para se opor à decisão contra ele tomada.

4. Nos atos e diligências processuais previstos no n.º 1 do art. 64.º, a assistência


do defensor é obrigatória ainda que o arguido a não solicite e até mesmo quando dela
pretenda abdicar, seja porque deseja não apresentar qualquer defesa, seja porque
considera estar em melhores condições para exercê-la do que um advogado que lhe seja
nomeado. Neste último caso, tratando-se de arguido profissional do foro e não havendo
razões para temer riscos para uma boa realização da justiça, parece-nos, pelas razões
mencionadas supra, numa leitura do art. 64.º/1 conforme aos arts. 6.º/3/c) da CEDH e
14.º/3/d) do PIDCP, que a autodefesa deverá, não obstante, ser admitida. Ponto é que a
vontade de prescindir da assistência de defensor seja manifestada pelo arguido de forma
expressa, livre e inequívoca.
Tratando-se de ato processual escrito que deva ser obrigatoriamente subscrito
pelo defensor (v. g., um recurso, como prescreve a al. e)), a sua apresentação pelo próprio
arguido151, à revelia do defensor, poderá implicar a sua rejeição. Só assim não será se a
iniciativa do arguido se tiver ficado a dever a uma carência de defesa decorrente de inércia
ou erro grosseiro do defensor que àquele não seja imputável152.
Considerando o direito do arguido a defender-se a si próprio, previsto nos arts.
6.º/3/c) da CEDH e 14.º/3/d) do PIDCP, o art. 64.º/1 deve ser interpretado estritamente,
só permitindo a rejeição de requerimentos com cariz jurídico subscritos unicamente pelo
arguido nos casos nele expressamente previstos. Fora desses casos, aquele direito – que
não se circunscreve apenas às questões de facto, abrangendo também questões de direito
– legitima a apresentação de exposições e requerimentos com substrato jurídico pelo
próprio arguido, mesmo que disponha já de defensor153.

151
Recorde-se que “o arguido, ainda que em liberdade, pode apresentar exposições, memoriais e
requerimentos em qualquer fase do processo, embora não assinados pelo defensor, desde que se contenham
dentro do objeto do processo ou tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais” (art.
98.º/1).
152
Cf. infra, § 4, 3.
153
Assim, por exemplo, não estando o requerimento de abertura da instrução contemplado no
catálogo do art. 64.º/1, não se afigura aceitável a sua não admissão pelo facto de ser apresentado pelo
62

A ausência do defensor em diligência processual em que, nos termos do art.


64.º/1, seja obrigatória a sua assistência determina a nulidade insanável do ato realizado
sem a sua presença (art. 119.º, c)).

§ 3. A ASSUNÇÃO DA DEFESA

1. O direito fundamental do arguido a escolher defensor, previsto no art. 32.º/3 da


Constituição, tem correspondência na alínea e) do n.º 1 do art. 61.º: o arguido goza, em
qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de constituir advogado
ou solicitar a nomeação de um defensor.
Neste art. 61.º/1/e) encontram-se, assim, especificadas as fontes determinantes da
assunção da defesa em processo penal, dispondo-se sobre a questão de saber quem chama
o defensor a assumir a defesa: se o arguido, se uma entidade pública, atualmente a Ordem
dos Advogados154. Se for o arguido, estaremos perante uma constituição de advogado (art.
62.º); se for a Ordem dos Advogados depararemos com a nomeação de defensor
oficioso155. A defesa oficiosa é assegurada por advogados inscritos no Sistema de Acesso
ao Direito e aos Tribunais, da responsabilidade da Ordem dos Advogados156; e não por
agentes públicos, como sucede noutros países, como é o caso do Brasil, onde a função de
defesa de arguidos economicamente carenciados deverá, em regra, ser confiada à
Defensoria Pública.
Esta distinção entre constituição de advogado e nomeação de defensor oficioso
entrelaça-se em certo sentido com a que anteriormente fizemos entre defesa “obrigatória”
e simplesmente “admissível”. Na verdade, se a defesa obrigatória tanto pode ser exercida

arguido e não pelo seu defensor – em sentido contrário corre, todavia, a jurisprudência dominante, que faz
depender a admissão do requerimento da sua ratificação pelo defensor: assim, v. g., os Acs. do TRL de
10.02.2009 (CJ, 2009, I), do TRG de 06.05.2013 (Proc. n.º 1508/09.8TAGMR.G1), do TRE de 24.09.2013
(Proc. n.º 599/09.6TAOLH) e do TRP de 05.12.2018, cit.
154
Arts. 30.º/1, 39.º/1 da LAD e art. 2.º e ss. da Portaria n.º 10/2008.
155
Cf. os arts. 61.º/1/e), 64.º/2/3/4, 66.º do CPP; e ainda os arts. 39.º/1 da LAD e 3.º e 4.º da Portaria
n.º 10/2008
156
Sobre a nomeação de defensor oficioso no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito e aos
Tribunais, VÂNIA COSTA RAMOS / CARLOS PINTO DE ABREU / JOÃO VALENTE CORDEIRO,
“Confidencialidade da comunicação com o defensor como exigência de um processo penal justo e
equitativo”, Estudos em Homenagem ao Juiz Conselheiro António Henriques Gaspar, Almedina, 2019, p.
189 e ss.
63

por defensor constituído como nomeado, já a defesa simplesmente admissível ou


voluntária tende a ser levada a cabo por defensor constituído. Não sendo obrigatória a
assistência de defensor, poderá, ainda assim, haver lugar à nomeação de defensor
oficioso, designadamente, nos seguintes casos: quando seja atendida solicitação do
arguido para que lhe seja nomeado um defensor (art. 64.º/2); quando o arguido contra
quem seja deduzida acusação ou requerida a instrução não disponha de defensor (arts.
64.º/3 e 287.º/4); e quando o arguido, encontrando-se numa situação de insuficiência
económica157, beneficie de apoio judiciário que cubra a intervenção do defensor (arts. 16.º
e 39.º da LAD).
Deste modo, durante o inquérito, se o arguido não constituir advogado poderá essa
fase decorrer com uma total ausência de assistência por defensor. É o que acontecerá se
não houver lugar à realização de qualquer ato processual em que a assistência do defensor
seja obrigatória e se não lhe for nomeado um defensor oficioso em virtude da insuficiência
económica que apresente (art. 39.º/5 da LAD). Sendo deduzida acusação ou requerida a
instrução contra o arguido, mesmo que não haja motivo para crer que o arguido não esteja
em condições de custear a contratação de um advogado, dever-lhe-á ser nomeado um
defensor (arts. 64.º/3 e 287.º/4). Nestes casos, bem assim como naqueles em que haja
lugar à nomeação de defensor para observância da exigência de obrigatoriedade de
assistência do arguido por defensor (art. 64.º/1), poderá o arguido vir a ser
responsabilizado pelo pagamento dos honorários do defensor oficioso, salvo se lhe for
concedido apoio judiciário (art. 64.º/4 do CPP e art. 39.º/9 da LAD).
O princípio geral nesta matéria é o da liberdade de escolha de defensor e, portanto,
da sobreposição da constituição à nomeação: o arguido pode constituir advogado em
qualquer altura do processo (art. 62.º/1); e daí justamente que cessem as funções do
defensor nomeado sempre que o arguido constitua mandatário (arts. 43.º/1 da LAD e
64.º/4 do CPP). A esta sobreposição não deve, porém, ser associada uma qualquer
menorização ou subalternização do papel do defensor oficioso: o advogado não deve
estabelecer diferenciações no cuidado, no empenho e na qualidade que coloca na defesa
dos arguidos de que é defensor consoante seja deles advogado constituído ou defensor
oficioso; e as autoridades judiciárias, no asseguramento das condições necessárias para o
exercício da defesa, devem abster-se de distinções entre advogados constituídos e

157
Cf. arts. 8.º e ss. da LAD.
64

defensores oficiosos. Coisa diferente é a atenção que deve ser prestada pelas autoridades
judiciárias a possíveis carências de defesa efetiva de que a atuação (ou a falta dela) do
defensor dê sinais158: como é bom de ver, esse cuidado deve ser mais intenso nos casos
em que a defesa é confiada a um defensor oficioso do que naqueles em que é assegurada
por advogado constituído pelo próprio arguido.

2. Como se referiu já, não é qualquer pessoa e nem sequer qualquer jurista que
poderá assumir a função de defensor. Só advogados podem ser constituídos como
defensores ou ser como tal nomeados. É isso que se determina no art. 1.º/10 da Lei n.º
49/2004: “Nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por
defensor, esta função é obrigatoriamente exercida por advogado, nos termos da lei”.
Esta delimitação prende-se com a função de defesa técnica cometida ao defensor
e com a sua posição de órgão autónomo de administração da justiça, com os direitos,
prerrogativas e deveres que lhe devem ser inerentes: considerando a sua formação
jurídica, o estatuto deontológico que os rege e o papel na administração da justiça que
lhes é constitucional e legalmente reconhecido, só os advogados deverão admitidos a
assumir o lugar de defensor em processo penal. Não havendo, como atualmente parece
não haver, razões para recear que esta exigência seja inexequível ou coloque dificuldades
insuperáveis à tramitação processual de atos urgentes159, cremos não haver motivo para
que lhe possam ser estabelecidos desvios, mesmo que só pontualmente.

3. Em regra, o arguido poderá constituir como seu defensor qualquer advogado


com inscrição ativa na Ordem dos Advogados e sem limitações disciplinares ao exercício
da advocacia. Dentro desse leque, a escolha do arguido deverá ser inteiramente livre e
incondicionada, sendo proibidas quaisquer ingerências das autoridades públicas nessa
escolha: a menos que exista determinada circunstância que obste, legitimamente, à sua
intervenção no processo, o arguido deverá poder constituir como seu advogado quem ele
bem entender. Rectius, como seus advogados, já que o arguido poderá ter mais do que um
defensor constituído (art. 62.º/2).

158
Infra, § 4, 3.
159
Cf. arts. 3.º (nomeação para diligências urgentes) e 4.º (escalas de prevenção) da Portaria n.º
10/2008.
65

O mesmo não se poderá considerar em relação à nomeação de defensor oficioso.


Aí, o arguido não tem qualquer palavra a dizer na seleção do advogado que será indicado
como seu defensor160. Existem razões ponderosas para limitar o direito de escolha do
defensor no âmbito da defesa oficiosa, como a necessidade de garantir a sustentabilidade
financeira do Sistema de Acesso ao Direito e o interesse numa distribuição equitativa de
processos entre os advogados que inscrevem nesse Sistema, que por seu turno procurou
pôr termo a práticas de cambão enraizadas nas nomeações de defensores oficiosos,
altamente perniciosas, pela cumplicidade que estimulava entre os advogados oficiosos e
os funcionários e polícias que os nomeavam, colocando aqueles numa posição de
dependência económica em relação a estes. Mas deveria, pelo menos, existir uma abertura
para que o arguido pudesse ter a oportunidade de solicitar, com base em motivos
atendíveis (v. g., o acompanhamento anterior de processos conexos, o domínio de língua
estrangeira que é a língua mãe do arguido), a nomeação de um certo defensor da sua
escolha161.
A escolha e a nomeação do defensor podem ser condicionadas pela verificação de
circunstâncias relativas ao próprio advogado. Condições e relações pessoais e
profissionais do advogado podem, com efeito, constituir obstáculo à sua intervenção
como defensor no processo. Por exemplo, não pode ser constituído ou nomeado defensor
ou mantido como defensor de um determinado arguido no processo o advogado que: seja
ele próprio arguido nesse processo, ainda que a detenção dessa qualidade tenha passado
a verificar-se só após o estabelecimento de uma conexão processual entre um processo
em que ele é arguido e um processo em que ele é defensor162; seja defensor de coarguido
cuja defesa seja incompatível com a de um outro que ele se disponibiliza para assumir,
caso em que não deve ser autorizada a sua constituição ou nomeação como advogado
deste último (art. 65.º); seja defensor de dois ou mais coarguidos cujas defesas se tornam
incompatíveis no decurso do processo, devendo, nessa hipótese, deixar de ser defensor de
todos (art. 99.º/3/4 do EOA); seja ou tenha sido advogado, nessa causa penal ou numa

160
A Lei n.º 47/2007 revogou o art. 40.º da versão originária da LAD, preceito no qual se dava
alguma margem de escolha ao arguido: “A autoridade judiciária a quem incumbir a nomeação disponibiliza
ao arguido listas de advogados para efeitos da escolha de defensor”.
161
Criticando também a presente solução legal, considerando-a violadora do princípio da
igualdade e das garantias mínimas de defesa, VÂNIA COSTA RAMOS / CARLOS PINTO DE ABREU / JOÃO
VALENTE CORDEIRO, “Confidencialidade da comunicação…”, p. 190 e s.
162
Ac. do TC n.º 196/2007.
66

conexa, de sujeito ou participante processual com interesses opostos ao do arguido que o


pretende constituir como defensor (v. g., o assistente, o ofendido ou o lesado); seja
cônjuge, viva em economia comum ou seja parente próximo de magistrado que já
desempenhe ou tenha desempenhado funções no processo (art. 115.º/2/3 do CPC, ex vi
art. 4.º do CPP)163.

§ 4. O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE DEFESA

1. O exercício da função de defesa por parte do defensor constitui o cerne do


direito fundamental ao defensor, expresso na segunda parte do n.º 3 do art. 32.º da CRP:
“O arguido tem direito (…) a ser por ele assistido em todos os atos do processo”. É no
sentido amplo de que o arguido há de poder contar, ao longo de todo o processo, com um
defensor que atue no interesse da sua defesa, e não meramente no de que o arguido tem o
direito a estar acompanhado de defensor nos atos processuais em que seja chamado a
participar, que deverá interpretar-se o direito à assistência por defensor que o art. 32.º/3
da CRP consagra.
No desempenho dessa função, deve o defensor guardar sempre independência
(art. 13.º/1 da LOSJ e arts. 81.º/1 e 89.º do EOA), não só em relação aos demais sujeitos
e participantes processuais, como também em relação ao próprio arguido. A
independência perante aqueles é fundamental para que o defensor atue exclusivamente
no interesse do arguido e a independência face a este é essencial para que faça jus à sua
posição de órgão de administração da justiça, não se envolvendo ou deixando arrastar
para práticas ilegais ou contrárias aos seus deveres deontológicos porventura desejadas
pelo arguido.
Ao defensor, como órgão de administração da justiça, tem a lei processual penal
de assegurar uma competência e uma intervenção que possibilitem o eficaz desempenho
e exercício da função que lhe está confiada e juridicamente o caracteriza. Na medida,
pois, em que o concreto exercício da função de defesa é previsto e acolhido nas mais
diversas disposições legais que regulam a tramitação do processo penal, deve o seu estudo
ter lugar quando se leve a cabo a exposição desta tramitação processual. Neste lugar

163
Ac. do TRE de 10.04.2018 (Proc. n.º 40/18.3YREVR).
67

apenas importará a menção dos grandes pontos de vista que dominam toda a matéria do
estatuto do defensor no exercício concreto da sua função164, a par da referência a alguns
dos mais característicos e específicos problemas que neste domínio se suscitam.

a) Cumpre antes de tudo ao defensor prestar ao arguido o mais completo e


esclarecedor conselho jurídico de que for capaz165/166. Não deve aquele, com efeito,
limitar-se a estar ao lado do arguido, a assisti-lo ou representá-lo, nas suas diversas
intervenções processuais: a assistência ou a representação só ganham sentido quando cada
intervenção seja, sempre que possível, precedida do esclarecimento da situação jurídica
material e processual. É claro, porém, que logo nesta matéria pode começar a surgir, para
o defensor, o conflito entre o seu dever de defesa e a sua participação na descoberta da
verdade e na justa realização do direito. Contra o seu dever de verdade atuará o defensor
que aconselhe o arguido a produzir afirmações inexatas ou que sabe serem falsas, mesmo
quando elas possam determinar uma absolvição ou uma atenuação da pena. Um tal
conflito não existirá, naturalmente, ali onde a conduta processual aconselhada tenha
cobertura jurídica, como, por exemplo, quando o defensor recomende ao arguido que se
remeta ao silêncio.

b) Uma vertente essencial da defesa assegurada pelo defensor é o


acompanhamento do arguido em quaisquer atos processuais que envolvam a sua
presença (v. g., interrogatórios, acareações, reconhecimentos, exames, revistas,
reconhecimentos, buscas, audiências, etc.). Nesse sentido, prevê o art. 61.º/1/f) que o
arguido goza do direito de ser assistido por defensor em todos os atos processuais em que
participar. Assim, sempre que seja chamado para participar numa diligência processual,
o arguido terá direito a que nela esteja também presente o seu defensor (cf. ainda o art.
20.º/2 da CRP). E quando se veja confrontado com uma diligência para a qual não chamou

164
Na síntese do TEDH, “the fairness of proceedings requires that an accused be able to obtain the
whole range of services specifically associated with legal assistance, pointing out that discussion of the
case, organisation of the defence, collection of evidence favourable to the accused, preparation for
questioning, support of an accused in distress and checking of the conditions of detention are fundamental
aspects of the defence which the lawyer must be able to exercise freely” (caso A. T. c. Luxemburgo, Ac. de
09.04.2015, 64.).
165
ROXIN / SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht28, § 19, nm. 61.
166
Daqui justamente os designativos de counsel e de conseil, correntemente dados aos defensores
na linguagem jurídica inglesa e francesa.
68

ou não pôde até aí chamar um advogado, poderá o arguido igualmente solicitar ou


reclamar a presença de um defensor. Tratando-se de interrogatório no qual não é
obrigatória a assistência de defensor (art. 64.º/1/a)/b)/d), a contrario), o art. 143.º/4
prescreve inclusivamente que “a entidade que proceder ao interrogatório de arguido em
liberdade informa-o previamente que tem o direito de ser assistido por advogado”.
Compreende-se sem dificuldade a importância que a presença do defensor assume
para a defesa do arguido nos atos processuais em que este participe. Estando presente, o
defensor pode impedir o arguido de fazer declarações originadas por inconsideração,
equivocidade ou ignorância; pode obstar à utilização de meios ilegítimos de interrogatório
e controlar as condições em que este é realizado, arguindo as invalidades e proibições de
prova que considere verificadas; pode garantir a pureza real dos autos, dada a facilidade
com que as declarações do arguido poderão ser, até inconscientemente, desvirtuadas na
sua redução a escrito; pode facilitar à defesa a recolha de material probatório que
contradite a imputação que ao arguido é dirigida. Uma presença que, por tudo isto,
favorece a adoção pelas autoridades judiciárias e pelos órgãos de polícia criminal de um
comportamento processual de respeito para com a pessoa e os direitos processuais do
arguido, cumprindo assim, na visão do TEDH, uma importante função de salvaguarda
contra maus-tratos a que ele possa ser sujeito167.

c) Ao defensor cabe também expor toda a verdade favorável ao arguido, à melhor


luz possível; daí que deva trazer para o processo todo o material capaz de convencer da
inocência ou da menor culpa do arguido. Pela mesma razão, porém, não estará ele
obrigado – ou, em certas circunstâncias, sequer autorizado – a carrear o material apto a
demonstrar a culpa do arguido. Nada isto implica, aliás, o dever de trazer para o processo
factos que saiba não serem verdadeiros, ou dever – ou mesmo poder – entravar por
qualquer forma a recolha e apresentação, pelos outros sujeitos do processo, do material
desfavorável, bem como sustentar e cobrir comportamentos que saiba desconformes com
a verdade168. Fazendo-o, na verdade, o defensor falta aos seus deveres ético-profissionais

167
Ac. do TEDH no caso Salduz c. Turquia, de 27.11.2008, 54. Para mais referências sobre esta
função, VÂNIA COSTA RAMOS / CARLOS PINTO DE ABREU / JOÃO VALENTE CORDEIRO, “Confidencialidade
da comunicação…”, p. 188.
168
Cf. sobre estes pontos HEIRICH ACKERMANN, “Die Verteidigung der schuldiger Angeklagten”,
NJW, 1954, p. 1385.
69

e processuais (art. 90.º/1/2/a) do EOA) e pode mesmo, eventualmente, incorrer na prática


de um favorecimento pessoal punível, previsto no art. 367.º do CP.
Ao contrário do que no processo penal anglo-saxónico sucede –
compreensivelmente, dado que nele recai sobre a defesa o ónus da prova das
circunstâncias que justifiquem o facto ou atenuem a responsabilidade169 –, não é entre nós
tarefa específica do defensor proceder a investigações autónomas do material fáctico,
paralelas às que cabem ao Ministério Público e aos órgãos seus auxiliares. Isto não
significa, porém, que o defensor não possa e não deva proceder às suas próprias
averiguações complementares, sempre que tal seja imposto ou aconselhado pela função
de defesa: v. g., exame do lugar da infração, procura de testemunhas ou declarantes
relevantes para a defesa e comprovação do seu conhecimento e da sua razão de ciência –
sem, é claro, tentar influenciar, expressa ou encobertamente, o sentido das suas
declarações –, advertência mesmo aos familiares do arguido, mencionados no n.º 1 do art.
134.º do CPP, de que não são obrigados a prestar declarações nos termos desse mesmo
preceito, etc. Para realização destas averiguações, o defensor não terá, porém, ao seu
dispor meios coercivos de obtenção de provas que lhe poderão ser úteis170. Caso tais
provas não estejam ao seu alcance, poderá o defensor requerer à autoridade judiciária que
providencie pela sua obtenção (art. 61.º/1/g)).

d) A assistência do defensor materializa-se em larga medida nas intervenções que


no processo realiza em nome e no interesse do arguido. Grande parte dos direitos
processuais atribuídos ao arguido podem – e em certos casos devem (cf. 64.º/1) – ser
exercidos pelo defensor (art. 63.º/1). Em geral, é o defensor que elabora e apresenta o
requerimento de abertura da instrução, interpõe recursos, oferece provas, requer
diligências de prova, inquire e contra-interroga as testemunhas, suscita invalidades e
proibições de prova, toma posição sobre as questões e incidentes processuais que se
levantam na lide, etc.
O defensor não poderá exercer os direitos reconhecidos ao arguido que a lei
reserve pessoalmente a este (art. 63.º/1, segunda parte). É o caso, por exemplo, das

169
Circunstância esta que está na base da figura do advogado-detetive, vulgarizada pela ficção
policial, como a do conhecido Perry Mason criada por Erle Stanley GARDNER.
170
ROXIN / SCHÜNEMANN, Strafverfahrensrecht28, § 19, nm. 63.
70

declarações do arguido como meio de prova, que são indelegáveis (art. 138.º/1, ex vi art.
140.º/2)171, da aceitação da suspensão provisória do processo, da tomada de posição sobre
uma proposta condenatória em processo sumaríssimo, da manifestação da aceitação de
pena que dela careça (v. g., art. 58.º/5 do CP), da renúncia a estar presente no debate
instrutório, do pedido para ser julgado na ausência, entre outros172.
Em caso de discordância do arguido em relação a ato praticado pelo defensor,
poderá ele retirar eficácia a esse ato, desde que o faça por declaração expressa anterior à
decisão que sobre tal ato recaia (art. 63.º/2)173.
Se é certo que no exercício da função de assistência do arguido que ao defensor é
cometida tal atuação ocorre em representação daquele, ao ponto de a assistência e a
representação estarem de tal modo imbricadas que são praticamente indistinguíveis – não
havendo sequer necessidade de considerar de forma diferenciada essas facetas da ação do
defensor –, no papel que a lei processual adscreve ao defensor podem contar-se
atribuições em que aquela dimensão de representação é mais marcada e acaba por adquirir
autonomia em relação à assistência propriamente dita174. É o que se verifica,
nomeadamente, nas situações em que a notificação ou a presença do defensor fazem as
vezes da notificação ou da presença do arguido (cf., v. g., respetivamente os arts. 113.º/10,
373.º/3175 e 425.º/6176; e os arts. 300.º/3/4, 325.º/5, 334.º/4).

2. A viabilidade de apresentação de uma defesa efetiva pelo defensor está


dependente de fatores de variada ordem. Uns que se prendem, em geral, com as
imunidades e prerrogativas próprias do estatuto do advogado (art. 13.º da LOSJ); outros
que se reportam à regulação do processo e aos direitos que ao arguido são nele
reconhecidos ao longo da sua tramitação (v. g., a possibilidade de acesso ao conteúdo dos

171
As declarações subscritas pelo defensor em peças processuais, alegando ou reconhecendo
factos, não são meio de prova, não substituindo nem podendo fazer as vezes de declarações do próprio
arguido, essas sim meio de prova (cf. art. 140.º e ss.).
172
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, CPP4, Art. 63.º, nm. 2 e s., e MARIA JOÃO ANTUNES, DPP2,
p. 48.
173
Para mais desenvolvimentos, MARIA DO CARMO SILVA DIAS, Comentário Judiciário do CPP,
I, Art. 63.º, § 15 e ss.
174
Cf. RODRIGO SANTIAGO, “O defensor e o arguido…”, p. 218 e ss.
175
Ac. do TC n.º 378/2003.
176
Ac. do STJ de 10-05-2007 (CJ STJ, 2007, II, p. 178) e Acs. do TC n.ºs 59/99, 109/99 e
275/2006.
71

autos e dos meios de prova dele constantes); e por fim ainda dos que se ligam ao
relacionamento entre o arguido e o defensor.
Sob esta última perspetiva, pedra fundamental da consistência do direito de defesa
será o direito do defensor de comunicar, oralmente e por escrito, com o arguido177. A
possibilidade de diálogo entre um e outro é crucial para ambos, sendo essencial para o
exercício da defesa. Por isso, normas que imponham a um arguido privado da liberdade
um isolamento total, extensível ao próprio defensor, proibindo a comunicação entre
ambos, mesmo que só temporariamente, serão inconstitucionais, seja qual for o domínio
da criminalidade em que se inscrevam178. Assim, assiste sempre ao arguido o direito de,
mesmo quando detido, comunicar com o defensor – direito que é expressamente
reconhecido pelo art. 61.º/1/f).

2.1 Se o arguido se encontra em liberdade o problema da comunicação entre


arguido e defensor não chega, é claro, a pôr-se seriamente: em qualquer altura, e

177
FIGUEIREDO DIAS, DPP, 1974, p. 499 e ss., seguido pelo TC nos Acs. n.ºs 7/87 (2.5) e 417/98
(II., 2.).
178
Assim, o Ac. do TC n.º 7/87, concluindo pela inconstitucionalidade, por violação do disposto
no art. 32.º/3 da CRP, do art. 143.º/4 da versão originária do CPP, na medida em que previa a possibilidade
de, nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, o Ministério Público
determinar que o detido não comunicasse com pessoa alguma, incluindo o defensor, antes do primeiro
interrogatório judicial.
Já o TEDH, no caso Salduz c. Turquia (Ac. de 27.11.2008, proferido pela Grande Chambre), 37.
e 53., embora afirmando, a partir do direito a um processo equitativo (art. 6.º/1 da CEDH) e do direito à
assistência de um defensor (art. 6.º/3/c) da CEDH), que um arguido detido deve poder contactar o defensor
logo no período de detenção que preceda o primeiro interrogatório realizado na fase preliminar do processo
(direito enfatizado pelas opiniões concordantes dos juízes Bratza e Zagrebelsky), não deixa de admitir que,
em circunstâncias excecionais, se houver “razões imperiosas” para tal, o arguido poderá ser privado do
direito à assistência do defensor aquando da detenção e até mesmo dos primeiros interrogatórios (52. e 55.).
Ainda nesta linha, as decisões do TEDH nos casos John Murray c. Reino Unido (Ac. de 08.02.1996, 63.,
decidido pela Grande Chambre), Brennan v. Reino Unido (Ac. de 16.10.2001, 45.) e Dvorski c. Croácia
(Ac. de 20.10.2015, proferido pela Grande Chambre, 80.).
Um exemplo de denegação de acesso ao defensor tida por justificada é o do caso Ibrahim e outros
c. Reino Unido, no contexto de atentados terroristas levados a cabo em Londres em julho de 2005 (Ac. da
Grande Chambre, de 13.09.2016, 249. e ss.). Sem embargo, o TEDH tem ressalvado que “the rights of the
defence will in principle be irretrievably prejudiced when incriminating statements made during police
questioning without access to a lawyer are used for a conviction” (casos Salduz c. Turquia, 55., e Dvorski
c. Croácia, 80.). Esta posição de princípio não obstou, porém, à conclusão de que no referido caso Ibrahim
e outros c. Reino Unido não houve violação do direito de defesa (275.-294). Para os desenvolvimentos mais
recentes da jurisprudência do TEDH nesta matéria, cf. os casos Beuze c. Bélgica (Ac. da Grande Chambre
de 09.11.2018) e Doyle c. Irlanda (Ac. de 23.05.2019).
72

nomeadamente antes de qualquer interrogatório, a liberdade de comunicação é (ou deve


ser), pela própria natureza das coisas, total.
Já, porém, se o arguido se encontra preso o problema do exercício do direito de
comunicação ganha particular acuidade. Ainda que, como vimos, tal direito esteja
legalmente previsto de forma expressa, a sua efetivação na prática pode revelar-se difícil
e estar sujeita a alguns constrangimentos, por vezes inultrapassáveis, para garantia das
condições de segurança do local onde o arguido se encontra detido179: o arguido poderá
deparar-se com escolhos para chamar o advogado180; este nem sempre saberá onde o
arguido se encontra detido e quem deve contactar para a ele ter acesso; o tempo para
reunirem pode ser limitado; as condições disponibilizadas para o efeito são
frequentemente muito precárias, etc.
O problema maior nesta matéria reside, em todo o caso, nas situações em que o
arguido não chama ou não tem quem chame por ele um advogado durante o período em
que está detido e aguarda a sua apresentação ao juiz de instrução para primeiro
interrogatório judicial de arguido detido. Tratando-se de um ato processual em que a
assistência do defensor é obrigatória (art. 64.º/1/a)/b)), a praxis judiciária, nesses casos,
vem sendo a de só nomear defensor ao arguido já à “boca de cena” do interrogatório181.
Neste cenário, as possibilidades de arguido e defensor conferenciarem, de este último se
inteirar da imputação e das provas que pendem contra o arguido e de em conjunto
delinearem uma estratégia de defesa são substancialmente afetadas, com óbvio prejuízo
para a efetividade da defesa. A legislação vigente não parece, assim, suficiente para
assegurar o cumprimento do determinado pelo art. 3.º/2/c) da Diretiva 2013/48/UE – “Os
suspeitos e acusados devem ter acesso a um advogado sem demora injustificada. Em
qualquer caso, os suspeitos ou acusados devem ter acesso a um advogado a partir dos
seguintes momentos, conforme o que ocorrer primeiro: c) Sem demora injustificada, após
a privação de liberdade” –, nomeadamente quando haja razões para admitir que o arguido
não constituirá advogado, sendo provável a necessidade de recurso à nomeação de um

179
Para uma descrição e análise crítica destas dificuldades práticas, cf. o instrutivo estudo de
VÂNIA COSTA RAMOS / CARLOS PINTO DE ABREU / JOÃO VALENTE CORDEIRO, “Confidencialidade da
comunicação…”, pp. 187 e s. e 192 e ss.
180
Cf., não obstante, o art. 124.º/3 do CEPMPL: “O detido tem direito a contactar com o seu
advogado a qualquer hora do dia ou da noite”.
181
VÂNIA COSTA RAMOS / CARLOS PINTO DE ABREU / JOÃO VALENTE CORDEIRO,
“Confidencialidade da comunicação…”, p. 187 e s.
73

defensor oficioso182. Justifica-se, pois, ao menos nesses casos, uma intervenção


legislativa que assegure ao arguido detido a nomeação de defensor o mais brevemente
possível após a realização da detenção.

2.2 Seja quais forem as condições em que os contactos entre o arguido e o defensor
se estabeleçam, o conteúdo das comunicações mantidas entre ambos deve permanecer
reservado e imune a intromissões do Estado183. A garantia do sigilo das comunicações
entre arguido e defensor é absolutamente essencial para que aquele possa sentir-se seguro
de que as revelações que faça ao defensor não serão usadas contra si no processo.
Condição que, obviamente, é indispensável para que o arguido possa, com franqueza e
abertura, colocar o defensor a par de todos os factos que tenha por relevantes para que
este possa compreender o caso em toda a sua plenitude, o que é evidentemente
fundamental para a realização da defesa.
Deste modo, salvo quando as comunicações entre arguido e defensor ligadas à
defesa daquele num processo criminal em curso envolvam a prática de crimes, deverão
os órgãos do Estado abster-se de quaisquer tentativas de ingerência nessas comunicações
ou de tomada de conhecimento dos registos que delas existam184.
É com vista a assegurar essa proibição de ingerência que se prevê no art. 61.º/1/f)
que o direito à comunicação com o defensor reconhecido ao arguido detido deve poder
ser exercido em privado, acrescentando-se no n.º 2 desse art. 61.º que essa comunicação
em privado “ocorre à vista quando assim o impuserem razões de segurança, mas em

182
Cf. ainda a regra 61.1 das Regras de Mandela (Regras Mínimas das Nações Unidas para o
Tratamento de Presos): “Os presos devem ter a oportunidade, tempo e meios adequados para receberem
visitas e de se comunicaram com um advogado de sua própria escolha ou com um defensor público, sem
demora, interceptação ou censura, em total confidencialidade, sobre qualquer assunto legal, em
conformidade com a legislação local. Tais encontros podem estar sob as vistas de agentes prisionais, mas
não passíveis de serem ouvidos por estes”.
183
Cf. o art. 4.º da Diretiva 2013/48/UE: “Os Estados-Membros respeitam a confidencialidade das
comunicações entre suspeitos ou acusados e os respetivos advogados no exercício do direito de acesso a
advogado previsto na presente diretiva. Nas referidas comunicações incluem-se as reuniões, a
correspondência, as conversas telefónicas e outras formas de comunicação permitidas pela lei nacional”; e
de novo a regra 61.1 das Regras de Mandela.
184
Foi a violação deste dever que determinou a condenação do juiz espanhol Baltasar Garzón por
crime de prevaricação e a sua expulsão da magistratura, no caso Peláez, Crespo y Correa vs. Garzón, que
versou sobre a gravação, ordenada por aquele juiz, de conversas mantidas entre presos preventivos e os
seus advogados em locutórios do estabelecimento prisional em que aqueles se encontravam privados da
liberdade – STS n.º 79/2012, de 09.12.2012.
74

condições de não ser ouvida pelo encarregado da vigilância”185. No mesmo sentido, em


caso algum poderá o defensor ser obrigado ou autorizado a revelar, como testemunha,
factos ligados ao objeto do processo de que tenha tomado conhecimento na qualidade de
defensor (arts. 135.º/1 do CPP, 92.º/1 do EOA e 13.º/2/a)/d) da LOSJ), sendo proibida a
utilização de provas obtidas em infração dessa proibição (art. 92.º/5 do EOA)186.
Diferentemente de outras matérias sujeitas ao segredo profissional do advogado, no
âmbito das quais, de acordo com o disposto no art. 135.º/3, o sigilo pode ser levantado
com base no princípio da prevalência do interesse preponderante, o segredo respeitante a
factos relevantes para o desfecho do processo conhecidos pelo advogado no exercício
das funções de defensor é absolutamente inderrogável. Reserva irrestringível que vale
igualmente para os documentos e apontamentos elaborados pelo defensor no âmbito e
para exercício da defesa a partir do que lhe foi transmitido pelo arguido, bem como para
os documentos correspondentes a comunicações dirigidas pelo arguido ao defensor para
aquele efeito (arts. 179.º/2 e 182.º/1).
O conhecimento fortuito, isto é, não preordenado, do conteúdo de comunicações
trocadas entre o arguido e o defensor no âmbito da preparação da defesa está igualmente
sujeito a proibições de valoração de prova de diversa ordem: “é proibida, sob pena de
nulidade, a apreensão e qualquer outra forma de controlo da correspondência entre o
arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela
constitui objeto ou elemento de um crime” (art. 179.º/2); e “é proibida a intercepção e a
gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o
juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objeto ou elemento de crime”
(art. 187.º/5).

3. A oposição de obstáculos injustificados ou arbitrários de acesso do arguido ao


contacto do defensor, bem como a não concessão ao defensor de condições para se poder
inteirar, num tempo côngruo, do conteúdo do processo e concertar uma estratégia de
defesa com o arguido – como frequentemente sucede nas nomeações de advogados
oficiosos que se encontram de escala187, com desconsideração do disposto nos n.ºs 1,

185
Normas que dão cumprimento ao disposto no art. 3.º/3/d) da Diretiva 2013/48/UE.
186
Sobre a questão, e no sentido do texto, VÂNIA COSTA RAMOS / CARLOS PINTO DE ABREU / JOÃO
VALENTE CORDEIRO, “Confidencialidade da comunicação…”, p. 211 e ss.
187
Cf., v. g., o caso Bogumil c. Portugal, Ac. do TEDH de 07.10.2008, 47. e s.
75

segunda parte, 2 e 3 do art. 67.º – poderão gerar situações de indefesa. Verificando-se um


tal de estado de indefesa, não pode o mesmo deixar de ser tomado em consideração na
ponderação da validade dos atos processuais em que não tenha sido possível exercer uma
defesa efetiva, bem como das provas assim neles produzidas. Assim, por exemplo, dado
o caráter jusfundamental do direito à assistência do defensor e a sua relevância para o
exercício e efetividade das garantias e direitos de defesa do arguido, estão sujeitas a
proibição de valoração as declarações do arguido obtidas em interrogatório policial no
qual lhe tenha sido negada a assistência por defensor mesmo depois de ele a ter
solicitado188.
Outros casos há em que a situação de indefesa em que o arguido acaba por se
encontrar é imputável ao próprio defensor, que, por inércia ou desinteresse, pura e
simplesmente deixa de cuidar da defesa ou é tão inepto na sua condução que a sua atuação
se revela altamente prejudicial para o arguido em virtude de erros grosseiros que comete.
Trata-se de situação delicada e melindrosa, pois uma intervenção das autoridades
judiciárias no sentido de sinalizar esse comportamento, promovendo a substituição do
defensor ou alertando o arguido para a indefesa a que está votado e para a conveniência
da constituição de novo advogado, corre o risco de ser tomada como uma intromissão
indevida do Estado na esfera de atuação de um profissional forense independente como é
o advogado.
Ainda que tal risco exista, atenta a prevalência dos interesses de defesa do arguido
e de realização da justiça, sendo, de facto, patente, que o defensor abandonou a defesa189,
deve a autoridade judiciária – desejavelmente, e se possível, auscultando o arguido em
momento prévio – lançar mão do mecanismo de substituição do defensor previsto no art.
67.º/1190. Uma constatação que poderá ocorrer naturalmente com o normal
acompanhamento do processo que é feito pela autoridade judiciária ou mediante alertas
lançados pelo próprio arguido, em queixas ou exposições acerca da assistência que (não)
vem recebendo do defensor.

188
Acs. do BGH de 29.10.1992 (BGHSt 38, 372, 373) e de 12.01.1996 (BGHSt 42, 15, 21), e
FISCHER, KK-StPO8, Introdução, nm. 254.
189
HENRIQUES GASPAR, CPP Comentado, Art. 67.º, 3.
190
Cf. Acs. do TEDH de 13.05.1980, no caso Artico c. Itália, 33. e 36., e de 21.04.1998, no caso
Daud c. Portugal, 42. e s.
76

Quando a autoridade judiciária se depare com uma defesa exercida pelo defensor
de uma forma tal modo desastrosa, considerando os erros palmares de que padece, que
não seria reconhecível num advogado minimamente capaz e diligente, deverá tomar
medidas apropriadas à tutela do direito do arguido à assistência por defensor, por
exemplo, informando-o dos erros detetados e prevenindo-o para os riscos processuais
associados, para que ele possa acautelar os seus interesses191. Isto, sem prejuízo de
deverem ser adotadas medidas que colmatem a carência de defesa constatada, por
exemplo, reajustando a marcha processual de forma a viabilizar um exercício efetivo da
defesa192.

191
Cf. o Ac. do TEDH no caso Czekalla c. Portugal, de 10.10.2002, 68. Admitindo que, nos casos
de inércia manifesta e de erro do defensor, possa recair sobre o Tribunal o dever de dirigir ao arguido um
convite à retificação ou mesmo à substituição do defensor, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, CPP4, Nota
Prévia ao Art. 62.º, nm. 12.
192
Acs. do TEDH nos casos Czekalla c. Portugal, cit., 68., Bogumil c. Portugal, cit., 49, e
Panasenko c. Portugal (Ac. de 22.07.2008), 51.; e TIAGO CAIADO MILHEIRO, Comentário Judiciário do
CPP, Art. 64.º, § 11.
77

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TC (Tribunal Constitucional) – salvo indicação noutro sentido, disponível em
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STJ (Supremo Tribunal de Justiça) e TRC/E/G/P/L (Tribunal da Relação de
Coimbra/Évora/Guimarães/Lisboa/Porto) – salvo indicação noutro sentido, disponível
em www.dgsi.pt.
TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos): http://hudoc.echr.coe.int/.

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