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OPINIÃO
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27/07/2023, 18:45 ConJur - Soares e Filgueiras: Individualização da penalidade pecuniária
Pensamos que esse posicionamento não procede. Nunca procedeu, na verdade, porquanto
firmado em premissas equivocadas — parte de interpretações desarrazoadas dos
dispositivos do CTN referidos acima. E, ainda que possuísse alguma consistência, viria-na
perdendo, em face do evoluir da doutrina e da jurisprudência.
No que segue, pretendemos tecer uma breve crítica à teoria da responsabilidade objetiva no
Direito Tributário Sancionador, emprestando especial atenção ao equívoco que é inadmitir
a dosimetria das penalidades fiscais de natureza pecuniária.
Antes disso, será necessário fazer um breve resgate conceitual das multas fiscais, a fim de
delimitarmos o objeto da análise a que nos propomos. Em seguida, estudaremos
brevemente as funções das sanções tributárias, o que será essencial para o deslinde da
questão.
Em segundo lugar, em vista dessas observações, há de ser feita distinção entre dois tipos de
normas: as normas que impõem um dever jurídico e as normas que sancionam
(negativamente) o descumprimento do mesmo. Esses dois tipos de normas são o
equivalente, respectivamente, ao que Kelsen chamou de normas secundárias e normas
primárias; ou ao que Cossio, em sua teoria egológica do direito, chamou de endonormas e
perinormas. Preferiremos esta última terminologia. Sendo desnecessário maior
aprofundamento, o importante aqui é ter-se em mente que, em última análise, o suposto ou
prótase da perinorma é justamente o descumprimento da endonorma, ou melhor, do
comando contido em sua apódose. De maneira mais simples: o que enseja a punição é o
descumprimento de um dever jurídico; é o ilícito — lembrou Silva [8].
Em terceiro e último lugar, não há confundir o plano da norma com o plano dos fatos. Em
outras palavras, não há confundir a prótase e a apódose (plano da norma), que acabamos de
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Pois bem. No dizer do Código Tributário Nacional, "a obrigação (tributária) principal
surge com o fato gerador" (artigo 113). Já se nota que, ao menos neste dispositivo, "fato
gerador" reporta-se ao plano dos fatos; reporta-se a um fato jurígeno ou imponível. Certo é
que, também segundo esse mesmo artigo 113, "a obrigação principal tem por objeto o
pagamento de tributo ou penalidade pecuniária". Vê-se que a obrigação tributária dita
"principal" pode tanto ser uma obrigação de pagar tributo como uma obrigação de pagar
penalidade pecuniária. A norma em virtude da qual aquela se instaura é uma endonorma, e,
esta, uma perinorma. Diz-se da primeira norma tributária impositiva, e, da segunda, norma
tributária sancionadora.
Funções
Podemos apontar — com Oliveira [10] — ao menos três funções das multas fiscais. Tal
como em demais ramos do direito, em Direito Tributário, assumem as sanções função (1)
penalizante e punitiva, (2) reparatória e (3) preventiva.
O mesmo se diga quanto à função preventiva. Qualquer que seja a sanção tributária de que
se cuide, sempre a multa — ou a consciência de sua potencial aplicação — tenderá a
compelir o sujeito passivo da obrigação ao pagamento.
Sendo cediço que as normas tributárias impositivas são, em larga medida, normas de
rejeição social [12], é bem possível imaginar no que resultou a seguinte política — narrada
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"Na França, por exemplo, diante da crise fiscal tomada como estopim da famosa
Revolução de 1789, um tributo patriótico foi 'exigido' dos cidadãos, que deveriam
contribuir voluntariamente com cerca 1/4 de sua renda, a fim de sanar o gigantesco
déficit orçamentário que assombrava o país. Necker, entusiasta da ideia, considerava
que os cidadãos contribuiriam felizes para o bem-estar e interesse geral da nação"
[13].
Desnecessário dizer que a política teve seu propósito absolutamente frustrado, tendo sido
ínfima a arrecadação lograda pelo governo francês. Essa passagem revela, de maneira
cômica, a função preventiva das sanções tributárias.
Em primeiro lugar, há uma razão que guarda relação com as funções das sanções
tributárias, abordadas logo acima. É ela: o não acolhimento da individualização ou
dosimetria esvazia de sentido todas ou algumas das funções das sanções tributárias, o que
acaba por conduzir ao efeito confiscatório e, por consectário, à inconstitucionalidade.
Inadmitir a dosimetria das penalidades fiscais a serem fixadas para esses contribuintes é o
mesmo que puni-los igualmente. É o mesmo, portanto, que aquiescer com que a dificuldade
financeira do segundo contribuinte, que o levou a cometer a pretensa infração, em nada
importe para (1) o quanto deva ser penalizado/punido esse contribuinte, (2) o quanto o
erário deva ser reparado por esse contribuinte e (3) o quanto devam ser prevenidas
reincidências desse contribuinte.
Tudo bem que, sendo idêntico o prejuízo ao erário em ambos os casos, justifica-se o igual
desempenho da função reparatória das multas sobre os dois contribuintes.
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Acontece que, se é certo que o segundo contribuinte cometeu infração fiscal por razões de
dificuldade financeira (não tendo, portanto, agido por dolo ou culpa), não há porque puni-
lo, ao menos não com a mesma intensidade com que se pune o primeiro (este, sim, tendo
tido elemento subjetivo no seu agir). Trata-se, mais do que uma questão de
(ir)reprovabilidade da conduta ou de culpabilidade, de uma questão de justiça individual,
como ainda será comentado.
Enfim, vê-se que, nesse exemplo, somente a função reparatória importou. Somente a
necessidade de reparação do erário era idêntica em ambos os casos, e ela, por si só,
conduziu a multas de igual importe. As funções de penalização/punição e de prevenção,
que acenavam para a necessidade de sanções diversas — o que teria sido proporcionado
pela individualização ou dosimetria das penalidades —, tiveram seu sentido esvaziado.
Nisso, revelou-se patente o efeito de confisco da multa fixada para o segundo contribuinte,
e, por isso mesmo, a sua inconstitucionalidade.
Em segundo lugar, não pode o artigo 136 do CTN — referido acima — ser interpretado
irrestritamente, como quer parte da doutrina. Tenha-se em mente que a individualização da
pena, inscrita no artigo 5º, XLVI da CF/88, decorre dos princípios da culpabilidade e da
igualdade, e consiste em "direito individual que busca dar concretude ao princípio da
justiça" [14], como já deixamos entrever. Não deixa espaço, portanto, para aplicações
chapadas ou padronizadas de penalidades fiscais.
A doutrina, em face do artigo 136 do CTN, não hesita em afastar a exigência de dolo para a
caracterização dos ilícitos fiscais. Por outro lado, grande controvérsia gera a
imprescindibilidade de culpa. A bem ver, este elemento subjetivo é, sim, exigido. Isso
porque o artigo 136 do CTN não pode ser interpretado ignorando-se que "a exigência de
culpa, em seu sentido estrito, é decorrência natural do direito sancionatório" [15].
Em terceiro lugar, nem mesmo o parágrafo único do artigo 142 — também referido acima
— obsta a individualização da pena. É verdade que a atividade administrativa de
lançamento é vinculada e obrigatória, mas disso não se segue, pela ótica do Direito
Administrativo, que a dosimetria da pena não encontre o seu lugar. Ensinou Carsoni,
valendo-se de Marçal Justen Filho:
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27/07/2023, 18:45 ConJur - Soares e Filgueiras: Individualização da penalidade pecuniária
"Em matéria de graduação das penas fiscais, a discricionariedade não figura como
um 'defeito da lei', mas como um mecanismo de promoção da justiça, pelo qual é
encontrada 'uma solução normativa para o problema da inadequação do processo
legislativo'. O legislador não dispõe de condições para prever antecipadamente a
solução mais satisfatória para todos os eventos futuros. Por isso é que 'A
discricionariedade é uma solução normativa orientada a obter a melhor solução
possível, a adotar a disciplina jurídica mais satisfatória e conveniente para resolver o
caso concreto.' A discricionariedade, nessas condições, constitui instrumento
necessário para dar concretude à individualização da pena, permitindo a adequação
da sanção a cada situação concreta" [16].
Já no que toca à autoridade judicial, seria até mesmo de se perguntar, sob a ótica da Teoria
do Direito, se é possível falar-se em discricionariedade. Pensamos, apoiados em Dworkin
[17], que não. Também aqui, partindo-se da compreensão do direito como integridade,
mostra-se plenamente possível a individualização da penalidade fiscal.
Em quarto lugar, não se pode perder de vista um argumento histórico trabalhado pela
doutrina. À época do anteprojeto do Código Tributário Nacional, cogitava-se da
incorporação, ao Direito Tributário Sancionador, de variados institutos do Direito Penal,
tais como imputabilidade, autoria, coautoria, cumplicidade, extinção da punibilidade e — o
que é especialmente interessante aqui — circunstâncias atenuantes e agravantes [18].
Essa importação de figuras, é certo, não vingou, talvez em razão da grande complexidade
que proporcionaria [19]. Mas é fato que a possibilidade de graduação das penalidades
fiscais não restou em nada prejudicada. Dispositivos do próprio CTN o sinalizam,
"tais quais o art. 108, inc. IV, ao impor a equidade na aplicação da legislação
tributária pelas autoridades administrativas; o art. 112 do CTN, que impõe a
consideração da natureza ou as circunstâncias materiais do fato ilícito, sua natureza e
seus efeitos na cominação de penalidades; e ainda o art. 100, parágrafo único do
CTN, que exclui a pretensão punitiva caso o contribuinte tenha agido em estrita
conformidade com instrução ou informação da autoridade administrativa" [20].
Para mais, as discussões da época vieram a inspirar uma série de disposições da legislação
infraconstitucional, que, em nada obstada, consignou regras de dosimetria das penalidades
fiscais [21]. A título exemplificativo, cita-se, aqui, a Lei nº 4.502/64, que, em seu artigo 67,
reza que "compete à autoridade julgadora, atendendo aos antecedentes do infrator, aos
motivos determinantes da infração e à gravidade de suas consequências efetivas ou
potenciais; II - fixar, dentro dos limites legais, a quantidade da pena aplicável".
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Conclusão
Numa conclusão, seja porque a graduação das penalidades fiscais é um imperativo
constitucional, sob pena de desvirtuarem-se as funções das sanções fiscais, conduzindo-se
ao efeito confiscatório e, por isso mesmo, à inconstitucionalidade; seja porque a doutrina
tradicional, partidária do "mito da responsabilidade objetiva" parte de uma interpretação
desarrazoada dos artigos 136 e 142, p. u., ambos do CTN; seja, ainda, porque uma breve
digressão histórica legislativa revela que nada obsta a legislação de prever mecanismos de
graduação das penalidades fiscais; conclui-se que, mais do que autorizada, é devida a
individualização ou dosimetria em matéria de Direito Tributário Sancionador.
[1] COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1998, p. 29.
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 18. ed. rev., atual. e
ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 271.
[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 5. ed. São Paulo: Quartier
Latin, 2009.
[8] SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier
Latin, 2007, p. 132.
[9] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed., 8ª tiragem. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006, pp. 72 e ss.
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[12] NOBRE, Simone Cruz; VIEIRA, Iracema Teixeira; TUPIASSU, Lise. Fundamentos da
Sanção no Direito Tributário. Revista Direito Tributário Atual, n.43. ano 37. p. 386-409.
São Paulo: IBDT, 2º semestre 2019, p. 396.
[17] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3ª ed. São
Paulo: WWF Martins Fontes, 2010, pp. 108 e ss.
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