Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
35
Resumo:
A Constituição Federal de 1988 vedou as provas obtidas por meios ilícitos, entendendo‐se como tais,
aquelas obtidas de forma contrária ao direito, pouco importando se a violação concerne ao direito
material ou ao direito processual. Há que se observar, no entanto, que os direitos fundamentais
podem ser objeto de limitações, não sendo, portanto, absolutos, de modo que é necessário
reconhecer que há várias situações em que será impossível a conciliação dos interesses em jogo, pois
a proteção de determinado direito fundamental fatalmente acarretará a violação de outro bem
jurídico igualmente protegido pela Constituição Federal. É justamente neste ponto que se ingressa
na análise do princípio da proporcionalidade e das suas consequências jurídicas.
Palavras‐chave:
Constituição Federal, direitos fundamentais, princípio da proporcionalidade.
Keywords:
Federal Constitution, fundamental rights, principle of proportionality.
Resumen:
La Constitución Federal de 1988 prohíbe las evidencias obtenidas por medios ilícitos, las cuales se
obtuvieron en contra de la ley, independiente si la violación se refiere a la ley material o procesal.
Cabe señalar que los derechos fundamentales pueden estar sujetos a limitaciones y, por lo tanto, no
son absolutos, y que es necesario reconocer que hay varias situaciones en las que será imposible
conciliar los intereses en juego, ya que la protección de un cierto derecho fundamental
inevitablemente resultará en la violación de otro activo legal igualmente protegido por la
Constitución Federal. En este punto se empieza el análisis del principio de proporcionalidad y sus
consecuencias legales.
Palabras clave:
Constitución Federal, derechos fundamentales, principio de proporcionalidad.
36
a prova vincula‐se à verdade e à certeza, que se ligam à realidade, todas voltadas, entretanto, à
convicção de seres humanos. O universo no qual estão inseridos tais juízos do espírito ou
valorações sensíveis da mente humana precisa ser analisado tal como ele pode ser e não como
efetivamente é. (NUCCI, 2015, p. 18)
Por outro lado, a existência de uma distinção entre dois tipos de verdade – a material, objetiva,
real etc. e a formal, subjetiva, processual, judicial etc. – exige uma releitura interpretativa, sob pena de
se buscar uma falsa saída para o dilema, nos moldes do que já era apresentado por Francesco Carnelutti,
na década de 1940. A noção de verdade formal, para o autor italiano,
não é mais do que uma metáfora, sem dúvidas; em realidade, é fácil observar que a verdade
não pode ser senão uma, de forma que a verdade formal ou jurídica ou coincide com a verdade
material, e não é mais que verdade, ou diverge dessa, e não é mais do que uma não verdade 37
[...]. (CARNELUTTI, 1947, p. 29‐30, tradução nossa)
o que importa observar é que nunca será possível reconstruir inteiramente o iter criminis,
porquanto por parte dele se processa no mundo subjetivo, na mente do delinquente, sendo
inalcançável pelo julgador e pelo Ministério Público, mesmo diante da confissão.
Há que se trabalhar, de fato, com o conceito de probabilidade, haja vista, repita‐ se, a
impossibilidade de um conceito de verdade absoluta. Como bem leciona Aury Lopes Jr. (2011, p. 520),
o juiz “elege” versões (entre os elementos fáticos apresentados) e até o significado (justo) da
norma. Esse “eleger” é inerente ao “sentire” por parte do julgador e se expressa na valoração
da prova (crença) e na própria axiologia, incluindo a carga ideológica, que faz da norma (penal
ou processual penal) aplicável ao caso.
Quando se fala de verdade no processo (processual, relativa, jurídica, material etc.) não está se
tratando de verdade. Quando se trata de certeza, também não se está tratando quer da
incapacidade de duvidar, quer de infalibilidade. O que existe é, sim, uma escolha ou adoção da
hipótese mais provável como aquilo que (supostamente) aconteceu, num passo de fé.
O que se quer demonstrar, neste ponto, é que se deve trabalhar com uma escolha razoável,
adotando‐se, dentro de um determinado contexto processual, uma hipótese provável, que consiga
identificar a dinâmica dos fatos. Em outras palavras,
a adoção do standard de prova acima da dúvida razoável traduz o alto grau de probabilidade
necessário a produzir a certeza pessoal (convicção) que se exige para fins de condenação no
processo penal (guilty beyond a reasonable doubt), afinal, havendo provas suficientes do fato
criminoso praticado – e não, frise‐se, prova plena, cabal ou absoluta –, deve o acusado ser
condenado. (REIS, 2018)
Avançando nesse contexto, para se chegar à formação de uma prova para além de uma dúvida
razoável – beyond a/any reasonable doubt –, faz‐se necessário o rigoroso cumprimento das regras
constitucionais vigentes, afastando‐se qualquer abuso que viole as garantias fundamentais do indivíduo,
com destaque especial às garantias do contraditório e da ampla defesa. Neste ponto, é imperioso
destacar o ensinamento de Muñoz Conde (2007, p. 115), segundo o qual, no processo penal, a busca da
verdade está limitada pelo devido respeito às garantias que têm incluso o caráter de direitos humanos
reconhecidos como tais em todos os textos constitucionais e leis processuais.
38 É evidente que esta pretendida “verdade substancial”, ao ser perseguida fora de regras e
controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação,
degenera em juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o cognitivismo ético
sobre o qual se baseia o substancialismo penal resulta inevitavelmente solidário com uma
concepção autoritária e irracionalista do processo penal.
Há que se atentar, ainda, para a observância estrita dos direitos fundamentais, pois a
Constituição Federal assinala, em seu art. 5º, inciso LVI, que “são inadmissíveis, no processo, as provas
obtidas por meios ilícitos” (BRASIL, 1988).
A Constituição vedou as provas obtidas por meios ilícitos, entendendo‐se como tais aquelas
obtidas de forma contrária ao direito, pouco importando se a violação concerne ao direito material ou
ao direito processual.
Em sintonia com o dispositivo constitucional, o art. 157 do Código de Processo Penal (CPP)
complementa que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim
entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais” (BRASIL, 1941).
O ensinamento das normas acima transcritas impede que o seu aplicador se afaste da
observância dos direitos e das garantias fundamentais, com exigência de que “o processo só pode fazer‐
se dentro de uma escrupulosa regra moral, que rege a atividade do juiz e das partes” (GRINOVER;
FERNANDES; GOMES FILHO, 2009, p. 121). Deveras, seria de todo contraditório que, em um processo
criminal, destinado à apuração da prática de um ilícito penal, o próprio Estado se valesse de métodos
Dessa forma, a partir da proposta teórica de Pietro Nuvolone (1966, p. 442‐475)1, há que se fazer
uma distinção para conceituar prova ilegal e distinguir as provas obtidas por meios ilícitos daquelas
obtidas por meios ilegítimos:
Nesse prisma, a prova será considerada ilegal sempre que sua obtenção se der por meio de
violação de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento, de natureza material ou
processual. Prova obtida por meios ilegais deve funcionar como gênero, do qual são espécies
as provas obtidas por meios ilícitos e as provas obtidas por meios ilegítimos. (LIMA, 2016, p. 609)
A prova será considerada ilícita quando for obtida através da violação de regra de direito material
(penal ou constitucional). Portanto, quando houver a obtenção de prova em detrimento de
direitos que o ordenamento reconhece aos indivíduos, independentemente do processo, a
prova será considerada ilícita. [...]. Exemplificando, se determinado indivíduo for constrangido
a confessar a prática do delito mediante tortura ou maus‐tratos, tem‐se que a prova aí obtida
será considerada ilícita, pois violado o disposto no art. 5º, inciso III, da Constituição Federal.
[...] 39
De seu turno, a prova será considerada ilegítima quando obtida mediante violação à norma de
direito processual. A título de exemplo, suponha‐se que, ao ouvir determinada testemunha, o
magistrado se esqueça de compromissá‐la. Assim o fazendo, incorreu em violação à regra do
art. 203 do CPP, dispositivo este que obriga o juiz a compromissar a testemunha. Em outro
exemplo, no curso de audiência una de instrução e julgamento, o magistrado pede à vítima que
realize o reconhecimento do acusado. A vítima, então, olhando para trás, aponta o acusado
como o suposto autor do delito, o que fica registrado na ata de audiência. Como se vê, tal
reconhecimento foi feito ao arrepio do art. 226 do CPP, que traça o procedimento a ser
observado na hipótese de reconhecimento de pessoas e coisas. Em ambas as situações, temos
exemplos de provas obtidas por meios ilegítimos, porquanto colhidas com violação à regra de
direito processual.
Ainda, há doutrinadores que apontam a existência da prova obtida por meios ilícitos e ilegítimos,
simultaneamente. Tal situação ocorre quando a prova é obtida mediante violação simultânea à norma
de direito material e processual. A título de exemplo, podemos citar uma busca e apreensão domiciliar
cumprida por uma autoridade policial, independentemente de prévia autorização judicial, tampouco
situação de flagrante delito. Nessa hipótese, haverá violação de norma material, na medida em que a
conduta é prevista como crime de abuso de autoridade, assim como infringência da norma processual
que prevê os requisitos para a realização de busca e apreensão domiciliares (CPP, arts. 240 a 250, c/c
art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal) (BRASIL, 1941, 1988; LIMA, 2016, p. 610).
1 Conferir Grinover (1982, p. 67): “Para evitar confusões terminológicas e conceituais, utilizaremos a linguagem de Nuvolone: a prova será ilegal
toda vez que caracterizar violação das normas legais ou os princípios gerais do ordenamento; de natureza processual, a prova (rectius, o meio
de prova) será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilícita (rectius
à fonte de prova será ilicitamente colhida)”.
É necessário que se faça a devida distinção: se tratar‐se de uma prova ilícita, a Constituição
Federal (art. 5º, inciso LVI) e o CPP (art. 157) reconhecem como sanção processual a inadmissibilidade
dessa prova (BRASIL, 1941, 1988). Não se está tratando de nulidade da prova, mas de sua não aceitação
nos autos do processo. E, se mesmo assim, uma prova ilícita for juntada aos autos do processo, surge o
direito de exclusão. Nesse ponto, cumpre observar o previsto no § 3º do art. 157 do CPP, que dispõe:
“preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por
decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente” (BRASIL, 1941).
Complementando o raciocínio posto, caso a ilicitude da prova seja reconhecida apenas em grau
recursal, tendo favorecido a defesa, a matéria somente poderá ser examinada em recurso de apelação
interposto pela acusação (veda‐se, como sabido, a possibilidade de reformatio in pejus). De outra via, se
a prova ilícita favoreceu a acusação, não haverá necessidade de se decretar a nulidade da sentença,
desde que, suprimida a prova ilícita, decorra a absolvição do acusado. Nessa situação, o tribunal deverá
determinar o desentranhamento da prova ilícita (art. 157, § 3º do CPP) e desconsiderá‐la em seu
julgamento (BRASIL, 1941). No entanto, se, mesmo com a supressão da prova ilícita, houver elementos
que permitam a condenação, a melhor solução será a decretação de nulidade da sentença pelo tribunal
para que outra seja proferida (GOMES FILHO, 1997, p. 168).
De outro modo, quando se trata de provas ilegítimas, que são aquelas obtidas mediante violação
à norma de direito processual, tudo se resolve dentro do bojo processual, de acordo com as regras que
determinam as formas e as modalidades de produção da prova, com a sanção correspondente a cada
transgressão, que pode ser o reconhecimento de mera irregularidade, ou até mesmo uma nulidade,
40 absoluta ou relativa.
os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. [...] Até o
elementar direito à vida tem limitação explícita no inciso XLVII, a, do art. 5º, em que se contempla
a pena de morte em caso de guerra formalmente declarada.
A limitação de direitos fundamentais deve, por conseguinte, ser adequada para produzir a
proteção do bem jurídico, por cujo motivo ela é efetuada. Ela deve ser necessária para isso, o
Porém, faz‐se necessário estar atento para que as proteções constitucionais não se tornem
frágeis sob o argumento de relativização constante de direitos fundamentais:
Afirmar que “não há direitos absolutos” e que “toda norma de direito fundamental é relativa,
passível de limitação” é extremamente perigoso, já que pode levar a uma ideia equivocada de
que as proteções constitucionais são frágeis e que podem ceder sempre que assim ditar o
“interesse público”, expressão vaga que, no final das contas, pode justificar quase tudo. [...].
Na verdade, quando a Constituição determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” ou
então fala em “inviolabilidade do direito à vida” ou ainda que “é inviolável a liberdade de
consciência e de crença”, pode‐se dizer que, na grande maioria das vezes, a norma constitucional
prevalecerá, ou seja, será inflexível. A regra é a observância dos direitos fundamentais e não sua
restrição. [...]. Mesmo assim, não se pode negar que, em alguns casos, a limitação ao direito
fundamental será inevitável. O grande paradoxo é justamente este: apesar de serem os valores
mais importantes, ocupando o ponto mais alto da hierarquia jurídica, eles podem ser restringidos
caso o seu exercício possa ameaçar a coexistência de outros valores constitucionais. Se não
houvesse limites para o exercício dos direitos fundamentais, seria um verdadeiro caos. Imagine
se todos pudessem fazer o que quisessem mesmo que prejudicassem outras pessoas. Numa
situação assim, voltaríamos à lei do mais forte. Na verdade, a lei é, por essência, um instrumento
de limitação da liberdade e, ao mesmo tempo, um instrumento essencial para essa mesma
liberdade. Limitar direitos não é apenas plenamente possível como muitas vezes necessário.
(MARMELSTEIN, 2016, p. 376‐378)
Sobre o tema específico deste trabalho – provas no processo penal –, assinala o professor 41
Fernando Capez (2007, p. 36):
a proibição de provas obtidas por meios ilícitos é um princípio relativo, que, excepcionalmente,
pode ser violado sempre que estiver em jogo um interesse de maior relevância ou outro direito
fundamental com ele contrastante.
É preciso reconhecer que há várias situações em que será impossível a conciliação dos interesses
em jogo, pois a proteção de determinado direito fundamental fatalmente acarretará a violação de outro
bem jurídico igualmente protegido pela Constituição Federal.
De fato, apesar de não existir, do ponto de vista estritamente normativo, hierarquia entre os
direitos fundamentais, já que todos estão no mesmo plano jurídico‐constitucional (princípio da
unidade da Constituição), parece inquestionável, sob o aspecto ético/valorativo, a existência de
diferentes níveis de importância dos direitos previstos constitucionalmente. Certamente, alguns
direitos “valem” mais do que outros, sobretudo diante de conflitos que podem surgir em casos
concretos, podendo, nesse aspecto, falar‐se em hierarquia axiológica entre as normas
constitucionais, incluindo‐se aí, obviamente, os direitos fundamentais.
Aqui, há que se fazer duas distinções importantes: primeiro, tem‐se que diferenciar a utilização
da prova ilícita e da prova ilegítima. E, segundo, tem‐se que diferenciar a utilização de referidas provas
em favor do réu e em favor da sociedade.
Desse modo, é possível a utilização de uma prova ilícita em favor do réu (favor rei) ou em favor 43
da sociedade (pro societate)?
Apesar de a Constituição Federal proibir expressamente a utilização das provas obtidas por
meios ilícitos, a doutrina e a jurisprudência majoritárias vêm considerando possível a utilização das provas
ilícitas em favor do réu, quando se tratar da única forma de absolvê‐lo ou de comprovar um fato
importante à sua defesa. Neste ponto, utiliza‐se justamente a aplicação do princípio da
proporcionalidade, partindo‐se da premissa de que nenhum direito constitucional possui valor absoluto,
sendo necessário fazer o sopesamento dos direitos envolvidos para se verificar qual deve prevalecer e
qual deve ceder.
Alguns autores defendem, nessa hipótese, a aplicação da teoria da exclusão da ilicitude, doutrina
capitaneada pelo mestre Afrânio Silva Jardim, e sustentada na medida em que a conduta do réu é
amparada pelo direito e, portanto, não pode ser chamada de ilícita. Assim, o réu estaria, quando da
obtenção (ilícita) da prova, acobertado pelas excludentes da legítima defesa ou do estado de
necessidade, conforme o caso, arredando‐se, por conseguinte, a ilicitude da conduta, além de eventual
inexigibilidade de conduta diversa, com a consequente exclusão da culpabilidade, afastando‐se, em
quaisquer das hipóteses, a ilicitude da própria prova, e tornando‐se, desse modo, legítimo o seu uso no
processo. A título de exemplo, cita‐se a hipótese da conduta do réu que intercepta ligação telefônica,
sem ordem judicial, com o escopo de demonstrar sua inocência, agindo de acordo com o direito, em
verdadeiro estado de necessidade justificante2.
2 Nesse sentido, ver Lopes Jr. (2016, p. 412) e Rangel (2018, p. 505).
Ainda, são relevantes os ensinamentos de Fabiana Lemes Zamalloa do Prado (2006, p. 209),
promotora de Justiça no estado de Goiás:
Sob outro aspecto, analisa‐se a possibilidade de utilizar, no processo penal, a prova ilícita pro
societate, o que gera intensa controvérsia doutrinária e jurisprudencial. Há que se fazer algumas
observações que se apresentam relevantes.
Geralmente existem, portanto, pelo menos dois direitos a serem tutelados, reclamando a
adoção de um verdadeiro balanceamento de valores, com um prevalecendo sobre o outro, sendo que
é nessa operação que incide o princípio da proporcionalidade.
E, com exceção de situações bem extremadas (por exemplo, direito à vida versus direito ao
lazer), é muito difícil estabelecer, de antemão, qual o direito fundamental mais importante. Não se pode
dizer, por exemplo, que a liberdade de expressão vale menos do que o direito de intimidade ou vice‐
versa. Essa hierarquia será estabelecida sempre à luz do caso concreto, ou seja, serão as peculiares
circunstâncias de cada caso que fornecerão as bases argumentativas para descobrir qual direito
fundamental é, naquele contexto, mais importante do que o outro, através do exercício de ponderação
(MARMELSTEIN, 2016, p. 400).
Com fundamento nesse raciocínio, pode‐se afirmar que o direito à intimidade do réu deve
sempre prevalecer sobre valores supremos também preconizados pela Constituição Federal, como o
direito à vida e à segurança do cidadão?
Em consonância com o argumento acima exposto, Antonio Scarance Fernandes (2012) aponta
caso concreto relativo à tentativa de fuga de presos considerados perigosos de estabelecimento
penitenciário, em que a correspondência dos presos foi violada sem prévia autorização judicial. Com a
violação da correspondência, foi descoberto o plano de fuga, bem como o objetivo de sequestrar um
juiz de direito quando todos estivessem reunidos em audiência em determinada comarca do estado de
São Paulo. A defesa contestou a admissibilidade da prova resultante de violação de correspondência
de preso sem prévia autorização judicial, tendo o STF concluído que a administração penitenciária, com
fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica,
pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único
da Lei nº 7.210/1984, proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, posto
que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de
salvaguarda de práticas ilícitas (BRASIL, 1994; LIMA, 2016, p. 631‐632).
Veja‐se, a título de exemplo, um caso da Suprema Corte em que se inadmitiu o uso da prova
ilícita pro societate, com interpretação e aplicação literal do dispositivo constitucional que veda as provas
obtidas por meios ilícitos, envolvendo uma situação de pornografia infantil, quando uma pessoa,
sabendo que um homem fotografava e guardava material no qual apareciam crianças nuas e mantendo
relações sexuais, entrou em seu local de trabalho e subtraiu tais materiais:
Sob tal perspectiva, tenho como incensurável a advertência feita por ANTONIO MAGALHÃES
GOMES FILHO ("Proibição das Provas Ilícitas na Constituição de 1988", p. 249/266, in "Os 10 Anos
da Constituição Federal", coordenação de ALEXANDRE DE MORAES, 1999, Atlas): "Após dez
anos de vigência do texto constitucional, persistem as resistências doutrinárias e dos tribunais
à proibição categórica e absoluta do ingresso, no processo, das provas obtidas com violação do 47
direito material. Isso decorre, a nosso ver, em primeiro lugar, de uma equivocada compreensão
do princípio do livre convencimento do juiz, que não pode significar liberdade absoluta na
condução do procedimento probatório nem julgamento desvinculado de regras legais. Tal
princípio tem seu âmbito de operatividade restrito ao momento da valoração das provas, que
deve incidir sobre material constituído por elementos admissíveis e regularmente incorporados
ao processo. De outro lado, a preocupação em fornecer respostas prontas e eficazes às formas
mais graves de criminalidade tem igualmente levado à admissão de provas maculadas pela
ilicitude, sob a justificativa da proporcionalidade ou razoabilidade. Conquanto não se possa
descartar a necessidade de ponderação de interesses nos casos concretos, tal critério não pode
ser erigido à condição de regra capaz de tornar letra morta a disposição constitucional. Ademais,
certamente não será com o incentivo às práticas ilegais que se poderá alcançar resultado positivo
na repressão da criminalidade. (BRASIL, 2000b, p. 68)
Por tais razões que, respeitado o entendimento do eminente ministro Celso de Mello, se
discorda de seu posicionamento no julgado, pois, de um lado, se está diante de direitos fundamentais
do réu, quais sejam, a proteção constitucional de seu domicílio e de sua intimidade (art. 5º, inciso XI, da
Constituição Federal) e, de outro, tem‐se direitos fundamentais que visam a proteção de crianças e
adolescentes – que possuem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, à dignidade,
ao respeito e à liberdade – além de colocá‐los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, da Constituição Federal).
Não se pode concordar que os direitos do réu (proteção de seu domicílio e de sua intimidade)
possam prevalecer, não sendo sequer razoável ou proporcional – considerando que no choque
axiológico, o maior peso ou valor é o da proteção à criança ou adolescente – aceitar que o acusado na
sua defesa alegue a ilicitude da prova pelo furto ocorrido em seu estabelecimento profissional, ainda
mais quando se reconhece que tais fotos são incriminadoras e expõem graves crimes de abuso sexual
contra menores.
Imagine‐se, por exemplo, uma situação diametralmente oposta ao caso julgado pelo STF, em
que o furto do material fotográfico fosse realizado para servir de prova absolutória. Poderia ser afastada
a utilização desse material para negar a absolvição do réu, fazendo com que ele fosse eventualmente
privado de sua liberdade? Obviamente que não, pois se privilegia o direito fundamental à liberdade, não
se podendo, de antemão, afastar a aplicação do princípio da proporcionalidade, fazendo uma
interpretação literal do texto constitucional para vedar a utilização de provas ilícitas no processo penal.
Ainda sobre a decisão proferida pelo STF, destaca o professor Eugênio Pacelli Oliveira (2017, p. 379‐380):
Há que se atentar, ainda, que a prova ilícita, em momento algum, foi produzida pelo Estado,
por meio de seus agentes. No caso, uma das próprias vítimas angariou a prova, apresentando‐a
posteriormente ao Ministério Público para formalizar a acusação:
Ora, se é possível, como de fato nos parece, sustentar que a norma da inadmissibilidade das
provas obtidas ilicitamente destina‐se prioritariamente (e não unicamente) ao Estado, no
processo penal, dado que este é o produtor da prova, mesmo nas ações penais privadas, não
há como negar que o referido princípio constitucional não perderia tanto em sua efetividade
quanto aquele (princípio) que garante a proteção dos direitos fundamentais, e cuja violação se
demonstraria por meio da prova ilicitamente obtida pelo particular. É de se ver, mais, que se a
Por fim, é importante destacar que o STF, posteriormente ao julgado acima, voltou a se
manifestar sobre o tema, no sentido de que, da explícita vedação da prova ilícita, sem distinções quanto
ao crime objeto do processo (Constituição Federal, art. 5º, inciso LVI), resulta a prevalência da garantia
nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: a
consequente impertinência de apelar‐se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras
inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão
da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da
imputação (BRASIL, 2001).
Ressaltando o posicionamento adotado pelo Supremo, Walter Nunes Silva Júnior (2008, p. 519)
afirma que:
cabe ao juiz, mesmo que remotamente, aplicar a teoria da proporcionalidade, e, assim, dar
validade à prova que, em princípio, devido à ilicitude de sua obtenção, não tem validade, desde
que a inobservância da regra formal que alberga direito fundamental tenha sido cometida em
caso de extrema necessidade inadiável e incontornável, situação que dever ser considerada
tendo em conta o caso concreto.
Por fim, encerrando o último tema deste trabalho, questiona‐se: quais são as consequências
do descumprimento de normas que acarretam o reconhecimento de ilegitimidade de uma determinada
prova produzida?
No que tange à utilização das provas ilegítimas pro reo e pro societate, destaca‐ se que não há
como dispensar às provas ilegítimas o mesmo tratamento destinado às provas ilícitas, pois, conforme
já analisado, provas ilegítimas são aquelas obtidas mediante violação à norma de direito processual, em
que tudo se revolve dentro do bojo do processo, de acordo com as regras que determinam as formas
e as modalidades de produção da prova, com a sanção correspondente a cada transgressão, que pode
ser o reconhecimento de mera irregularidade, ou até mesmo uma nulidade, absoluta ou relativa.
50
Nesse ponto, há que se fazer a necessária distinção, pois, em se tratando de nulidade absoluta,
não poderá a prova ser utilizada por qualquer das partes, nem mesmo a favor do réu, considerando‐se
a insanabilidade das nulidades absolutas.
Todavia, se a nulidadearguida possui natureza relativa, será preciso verificar o caso concreto. Assim:
b) Se a nulidade relativa não for arguida no momento oportuno: neste caso, preclusa a
oportunidade de ser arguido o vício, poderá ser a prova utilizada tanto pela acusação como pela defesa
(AVENA, 2016, p. 580).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em sede de conclusão, o principal objetivo deste trabalho foi explanar acerca do tratamento
da prova no âmbito do processo penal moderno, destacando‐se conceitos relevantes, como verdade,
certeza e standard de prova.
Não se pode, a pretexto de proteger os direitos fundamentais individuais dos cidadãos que se
veem investigados, processados e condenados, menosprezar outros direitos fundamentais, como a
vida e a segurança.
Assim, as normas penais e processuais penais devem estar em consonância com os postulados
da Constituição Federal, não podendo assentar‐se em interpretações literais de caráter absoluto, uma
vez que seus comandos se traduzem como dirigentes e ordenadores, o que necessariamente reclama
uma interpretação sistemática dos princípios, das regras e dos valores constitucionais que estão em
debate.
REFERÊNCIAS
ARAS, Vladimir. Princípios do processo penal. Jus navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 2001. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/2416/principios‐do‐processo‐penal/1. Acesso em: 20 mar. 2020.
AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. 10. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método, 2016.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A constituição e as provas ilicitamente obtidas. Revista de Processo,
São Paulo, v. 21, n. 84, p. 144‐155, 1996. 51
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, n. 191‐A, 5 out. 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Habeas Corpus 70.814/SP. Relator: Min. Celso de Mello, 1º
de março de 1994. Diário da Justiça, Brasília, DF, p. 16649, 24 jun. 1994.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Mandado de Segurança 23.452/RJ. Relator: Min. Celso de
Mello, 16 de setembro de 1999. Diário da Justiça, Brasília, DF, p. 20, 12 maio 2000a.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Recurso Extraordinário 251.445‐4/GO. Relator: Min. Celso
de Mello, 21 de junho de 2000. Diário da Justiça, Brasília, DF, p. 68, 3 ago. 2000b.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Habeas Corpus 80.949/RJ. Relator: Min. Sepúlveda
Pertence, 30 de outubro de 2001. Diário da Justiça, Brasília, DF, p. 26, 14 dez. 2001.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Pleno). Habeas Corpus 79.512/RJ. Relator: Min. Sepúlveda Pertence,
16 de dezembro de 1999. Diário da Justiça, Brasília, DF, p. 108, 16 maio 2003.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
DALLAGNOL, Deltan Martinazzo. As lógicas das provas no processo: direta, indícios e presunções. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
FERNANDES, Antonion Scarance. Processo Penal Constitucional. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
GOMES CANOTILHO. José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 2003.
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades e processo penal: as interceptações telefônicas. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1982.
GRINOVER, Ada Pelegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As
nulidades no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
HESS, Heliana Maria Coutinho; SILVEIRA, Rodolfo Mazzini Apontamentos sobre o princípio da
proporcionalidade na Alemanha e no Brasil: aplicações ao direito midiático. In: DE PRETTO, Renato
Siqueira; KIM, Richard Pae; TERAOKA, Thiago Massao Cortizo (coord.). Interpretação constitucional no
Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2017. p. 271‐296. Disponível em http://www.tjsp.jus.br
52 /download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/ic11.pdf?d=6366760 94064686945. Acesso em: 20 mar. 2020.
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1998.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2016.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2011.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 6. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.
MUÑOZ CONDE, Francisco. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3 ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
NUVOLONE, Pietro. Le prove vietate nel processo penale nei paesi di diritto latino. Revista di Diritto
Processuale, Padova, v. 21, p. 442‐475, 1966.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
PRADO, Fabiana Lemes Zamalloa do. A ponderação de interesses em matéria de prova no processo penal.
São Paulo: IBCCRIM, 2006.
REIS, André Wagner Melgaço. Standard de prova além da dúvida razoável (proof beyond a reasonable
doubt). Consultor Jurídico, São Paulo, 14 ago. 2018. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018‐ago‐
14/andre‐melgaco‐reis‐standard‐prova‐alem‐ duvida‐razoavel. Acesso em: 20 mar. 2020.
SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. Curso de direito processual penal: teoria (constitucional)
do processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
53