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Ignácio N. Fernandes
RESUMO: Este ensaio propõe-se a fazer uma breve crítica à proposta advinda do MPF
(Ministério Público Federal) de flexibilização da prova ilícita no processo penal. Nesta seara
buscaremos entender os motivos jurídicos e sociais, bem como o momento político que
ocasiona tal medida de cunho expansionista e antidemocrático. Para isto faremos uma ilustração
dogmática das teorias da prova ilícita, as diferenciando e compreendendo que em nosso
ordenamento pátrio a sua aceitação ofende a Constituição. Trataremos ainda de compreender
sob uma lógica social os motivos “legitimadores” desta proposta, tais como a sensação de
insegurança, a sensação de impunidade e a proliferação do discurso de ódio promovido em larga
escala pela mídia. Uma série de fatores que geram uma distorção da realidade e que acabam por
legitimar uma política criminal que visa burlar as regras do jogo, ou seja, o jogo democrático,
do devido processo legal; para alcançar o único fim proposto, que é a condenação.
ABSTRACT: This paper has the intention to build a brief critique to the proposal of the MPF
(Ministério Público Federal) on easing illegal evidence in criminal procedure. In this field we
seek to understand the legal and social reasons, as well as the political moment which results in
such a measure of expansionist and anti-democratic nature. So we will make a dogmatic
illustration of the theories of illegal evidence, discriminating them and understanding that in our
parental planning their acceptance offends the Constitution. We will also perceive from a social
logic the reasons wich "legitimize" this proposal, such as the sensation of insecurity, of
impunity and the proliferation of the hate speech that is widely promoted by the media. A
number of factors that cause a distortion of the reality and end up turning into rightful a criminal
policy aimed at circumventing the rules of the game, the democratic process, due to achieve a
sole purpose, which is condemnation.
1. Introdução
Essa proposta que surge em um contexto político favorável, pois logo após o
julgamento do “mensalão” e em pleno processo em andamento da “lava jato” a opinião
pública esta ainda mais favorável à expansão penal as críticas a tal propostas surgiram
de diversos segmentos como OAB, o próprio MPF, advogados, em suma aqueles que se
propõem a defender um Estado Democrático de Direito pleno.
Devemos trazer à baila que tais mecanismos não foram inventados, a ideia de
aproveitamento de uma prova ilícita é algo trazido pela doutrina mais consagrada.
Evidente que essa matéria é trazida apenas a critério de conhecimento, elas não são
defendidas, ou pelo menos não eram até agora. Frente a isto buscamos num primeiro
momento uma elucidação da matéria, entendo em que consiste a prova ilícita, a sua
diferenciação com a prova ilegítima e sua conexão com as nulidades.
Por fim traremos a crítica a esta proposta do MPF de mudar as regras do jogo
sob o pretexto de estar combatendo a criminalidade, ou seja, de que assim teremos um
alcance maior da justiça.
Antes de iniciarmos aquilo que é a proposta deste trabalho, qual seja trabalhar a
ideia de prova ilícita e a sua possível flexibilização em nome de um eficienticismo
insano que objetiva apenas a condenação, entendemos por bem definir o conceito de
prova em processo penal segundo a doutrina majoritária.
1
Ferrajoli compreende o nexo que através do direito liga as diferenças e igualdade e as opõe com as
desigualdades e discriminações. (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y garantías. La ley penal del más débil.
6ª Ed. Madrid: Editorial Trotta. p. 82).
Para Choukr2 a prova é todo produto obtido por meio legítimo, pelas partes
legitimadas perante um juiz em contraditório. Já Lopes Jr 3. entende acertadamente que a
função do processo penal é de fazer uma reconstrução de fatos passados, através
basicamente ou necessariamente por provas. Com base nestas provas é que será possível
o convencimento do julgador sobre esse fato. O interessante na reflexão de Lopes Jr. é
de que, a ideia da aproximação nos remete que, o fato não será devidamente provado,
pois não teremos uma prova cabal, a mais perfeita das provas tende a se aproximar do
fato passado, essa situação nos remete que aquele que é julgado no presente não é a
mesma pessoa de outrora, e não será o mesmo a cumprir a pena. Pensando essa
complexidade vemos o quão delicado é a situação vista como um todo. Sob o prisma de
Pacelli de Oliveira4 prova é a reconstrução dos fatos investigados no processo buscando
a verdade dos fatos, aludindo que a tarefa mais difícil, quando não impossível que é
justamente a reconstrução dessa verdade.
Entende-se por prova ilícita aquela que viola normas de direito material ou
constitucional. Conceito este plasmado no próprio art. 157 do CPP em sua parte final:
“art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas,
assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Já a prova
ilegítima é aquela que viola uma norma de direito processual no momento de sua
produção em juízo, sendo esta resolvida dentro mesmo do processo.
Tal situação que se propõe neste pacote anticorrupção não surge como
novidade, existe teorias que buscam justificar o uso de provas obtidas através de meios
ilícitos, são chamadas teorias das provas ilícitas.
2
CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários consolidados e crítica
jurisprudencial. 5ª Ed., Rio de Janeiro: Editora. Lumen Juris. 2011. p. 275.
3
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2013. p. 535.
4
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Editora. Lumen
Juris. 2010. p. 341.
A primeira delas é a admissibilidade processual da prova ilícita, esta teoria
como sustenta Lopes Jr.5 minoritária atualmente, sustenta que a prova poderia ser
admitida desde que não fosse violada uma norma processual, pouco importando se
houvesse sido violada uma norma de direito material.
Como podemos admitir uma prova que é ilícita, ou seja, obtida por um meio
que afronta a constituição, obtida sabe-se Deus como, por meio de tortura, ou de um
interrogatório sem a presença de seu advogado, enfim, não nos faltariam exemplos de
práticas ainda muito usuais em nosso cotidiano, que seriam segundo essa teoria,
perfeitamente adequadas ao processo. Seguramente voltaríamos aos tempos das bruxas,
dos hereges sem dúvida alguma.
5
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. op. cit. p. 594.
6
CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários consolidados e crítica
jurisprudencial. op. cit. p. 292.
7
“A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para
revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena
de ofensa à garantia constitucional do due processo of law, que tem, no dogma da inadmissibilidade das
provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de
direito positivo”. (A constituição e o Supremo. 3ª Ed. Brasília: Secretária de documentação. 2010 p.
279).
8
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 9ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2012. p. 211.
9
LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. op. cit. p. 595.
A terceira teoria que concerne o objeto da primeira parte deste ensaio é a
admissibilidade da prova ilícita em nome do princípio da razoabilidade ou
proporcionalidade. Esta teoria admitiria a possibilidade de aceitação de provas ilícitas,
desde que o interesse público estivesse em jogo. Em outras palavras, quando um
interesse relevante estivesse em jogo poderíamos aceitar a prova ilícita. Nos termos de
seus seguidores, para os demais casos a admissibilidade da prova ilícita estaria vedada.
10
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. op. cit. p. 386.
11
LOPES Jr. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. 5ª ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris. 2010. p. 586.
12
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. op. cit. p. 387.
inocência)13”. Para Pacelli de Oliveira “a prova de inocência do réu deve ser sempre
aproveitada, em quaisquer circunstâncias. Em um Estado de direito não há como
conceber a ideia de condenação de alguém que o próprio Estado acredita ser inocente14”.
O conceito de prova ilícita já esta mais que claro a esta altura, porém agora
trataremos da prova ilícita por derivação ou mais conhecida como “teoria dos frutos da
arvore envenenada”. Tal previsão encontra-se no §1º do art. 157 do CPP que dispõe:
“são também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não
evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando derivadas puderem
ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”.
Pois bem, tal previsão entende que aquela prova lícita, que advém de uma
prova ilícita não será aproveitada, por exemplo, uma confissão mediante tortura.
Interessante posicionamento de Greco Filho 15 com relação ao nexo de causalidade entre
prova ilícita e prova derivada. Para ele, não há necessidade de haver um nexo de
causalidade claro, tal conexão entre a prova ilícita e a derivada deve ser analisada pelo
juiz, através do critério da íntima convicção, este declarará se a prova guarda relação
com a ilícita ou não.
Se pensarmos desde uma lógica simplista argumentar que a prova ilícita é nula
seria algo totalmente desnecessário, pois estamos diante do óbvio. No entanto faz-se
necessário aclarar duas situações: em primeiro lugar a prova ilícita por constituir
instituto próprio, não esta elencada no rol das nulidades, como seu próprio nome diz, ela
é ilícita e não nula, constitui outras particularidades, “a ilicitude é uma qualidade
atribuída pela norma jurídica a uma conduta”18. Gloeckner nos ensina que como se fala
em ilicitude da prova se fala em sua antijuridicidade. Num segundo momento essa prova
quando inserida no processo, ou seja, aproveitada teremos a nulidade, por isso a
afirmação correta de Gloeckner de que a teoria da prova ilícita pode se enquadrar dentro
do gênero das nulidades19. Em suma a questão reside no critério temporal 20, tendo a
prova ilícita como ato prévio, no momento de sua concepção, enquanto a nulidade seria
essa mesma prova já inserida no processo.
Vimos no transcorrer de teorias justificadoras das provas ilícitas que para obter
a “verdade dos fatos”, ou seja, buscar o fim do processo que no jargão popular é a
condenação do acusado, o Estado usa os meios mais sórdidos, tendo como exemplo
máximo o ponto aqui criticado neste breve estudo (o uso da prova ilícita pro societati).
Quando há absolvição, no entendimento popular alguma coisa saiu errada, certo é um
processo resultar numa sentença condenatória, e de preferência com uma pena bem
elevada22.
21
Lei 11.690 de 09/062008.
22
Sobre o tema invocamos o magistério de Rui Cunha Martins quando trabalha a ideia deste imediatismo
pela apuração da “verdade” produzida pela mídia que de certa forma constrói um senso comum da
sociedade buscando sempre penas elevadas, e que o sucesso do processo é a acusação: “mas o
fundamental, para o nosso presente proposito, tem a ver com o uso que é feito desses valores na
perspectiva dos próprios media. E, desse ponto de vista, não só é incorreta a ideia de total abdicação de
valor ‘verdade’ do discurso dos media (até porque, conforme o exposto antes, a possibilidade de
coexistência entre duas funcionalidades – no caso ‘velocidade’ e ‘verdade’ – é tão ou mais provável
quanto a ideia de substituição de um valor por outro), como é crucial reconhecer que o valor ‘verdade’ se
encontra entre os argumentos auto-fundantes e auto-legitimantes da actividade jornalística, ainda quando,
como sabemos, ele é trabalhado ao arrepio do canône”. (MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do
direito. The brasilian lessons. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011. p. 66).
operando dentro de uma lógica limitada. Respeitando estes profissionais comprometidos
com um pensar distinto é que se faz essa consideração inicial.
23
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Conferencias de criminologia cautelar. São
Paulo: Editora Saraiva. 2014. p. 465.
24
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. trad. José Viegas. São Paulo: Editora
Cia das Letras. 2007. p. 46.
totalmente desconectados com a realidade, permitindo ao poder punitivo total
(des)controle sobre o corpo social.
25
Poderíamos citar inúmeros exemplos conectam a globalização a uma ideia de risco, ou de sociedade de
risco, no entanto entendemos que a ideia de soberania do Estado esta para além de qualquer tema de
relevância no que tange a ideia de mundo globalizado. Nesse sentido Silva Franco nos ensina que:
“embora no plano do discurso se afirme a soberania do Estado nos limites de suas fronteiras territoriais, a
realidade deixou patente que, numa sociedade mundial não há mais espaços geográficos fechados e que as
políticas estatais, de aspecto financeiro, monetário, social, de meio ambiente, militar, etc. tem seus centros
de decisão fora do Estado-nação, não em outro ou outros Estados-nações, mas sim, nos grandes
conglomerados econômicos transnacionais”. (FRANCO, Alberto Silva. “Globalização: efeitos danosos e
alternativas viáveis”. In Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal, criminología, año 1, nº 1.
Buenos Aires: Editora AD-HOC. 2002. p. 76).
26
BECK, Ulrich. La sociedade de riesgo mundial. En busca de la seguridad perdida. 1ª Ed.
Barcelona: Editora Paidós Ibérica, S.A. 2008.
por fim a si mesmo, seja através das guerras, através do abuso das reservas naturais ou
até mesmo pelo terrorismo internacional nas suas mais variadas formas27.
Sem embargo para conter esse risco crescente, pois temos uma demanda de
“marginais” que excede ao alcance do atual sistema penal vigente, direito penal clássico
não alcança punir a todos os que o sistema impõe excluir, nesse sentido o que se faz é
aumentar o poder punitivo através do fenômeno de expansão penal 32. Como alude
27
Quando falamos em terrorismo sempre nos remetemos aos atentados de 11-S, mas devemos sempre
pensar, nas outras formas que são o terrorismo biológico, cibernético, químico e nuclear. Ameaças
infinitamente mais geradoras do pânico que o terrorismo do século XXI objetiva e muito mais fáceis de
pôr em prática. (FERNANDES, Ignácio Nunes. El paradigma de los delitos de terrorismo entre
derecho interno y internacional. Los delitos de terrorismo entre derecho interno e internacional en
los albores del siglo XXI. 1ª Ed. Saarbücken: Editorial Académica Española. 2012. p. 18).
28
PRITTWITZ, Cornelius. “O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo”. In
Revista brasileira de ciências criminais. Nº 47. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. pp. 31-45.
29
BECK, Ulrich. La sociedade de riesgo mundial. Em busca de la seguridad perdida. Op. cit. P. 86.
30
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal
en las sociedades postindustriales. 2ª Ed. Madrid: Editora Civitas. 2001. p. 27.
31
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal
en las sociedades postindustriales. Op. cit. p. 28.
32
“No es infrecuente que la expansión del derecho penal se presente como producto de una especie de
perversidad del aparato estatal, que buscaría en el permanente recurso a la legislación penal una
(aparente) solución fácil a los problemas sociales, desplazando al plano simbólico (esto es, al de la
declaración de principios, que tranquiliza a la opinión pública) lo que debería resolverse en el nivel de lo
instrumental (de la protección efectiva). (SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del derecho
penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Op. cit. p. 21).
Khaled Jr. “temos um sistema que para muitos é voltado para o combate ao crime, mas
que continuamente amplia a esfera do que é classificado como crime, fazendo com que
cada vez mais aspectos da vida humana sejam criminalizados em nome da irrealizável
promessa civilizatória33”.
Por fim, merece salientar que dentro desse debate de sociedade de risco, de
expansão penal como já salientamos uma teoria que ganhou grande repercussão no
debate sobre os limites da antecipação da punibilidade e a flexibilização de garantias
para determinados grupos considerados “desertores” do Estado, é o direito penal do
inimigo de Jakobs. O debate acerca do conceito e limites de um direito penal do inimigo
já foi exaustivamente esgotado por inúmeros autores 34. A teoria de Jakobs não será
tratada neste ensaio, porém devemos apenas lembrar aqui um claro exemplo entre o
direito penal e legislação penal 35. Enquanto o discurso por parte do direito penal é
totalmente contrário ao direito penal do inimigo, o que vemos por parte da legislação
penal é cada vez mais a adesão a medidas que tem todas as características que Jakobs
prescreveu como algo menos perigoso que o estado atual em que vivemos36.
33
KHALED Jr., Salah H. “O homem do dique e a irracionalidade do pensamento jurídico-penal
sedimentado: reencontro subversivo com a história política do direito penal”. In Controvérsias
criminais: estudos de direito penal, processo penal criminologia. 1ª Ed. Jaraguá do Sul: Editora Letras
e conceitos. 2013.
34
PRITTWITZ por exemplo defende a ideia de um direito penal de risco, ao passo que o direito penal do
inimigo para ele é algo que deve ser repudiado. (PRITTWITZ, Cornelius. “O direito penal entre direito
penal do risco e direito penal do inimigo”. In Revista brasileira de ciências criminais. Nº 47. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais. pp. 31-45. Sobre um debate mais profundo sobre o tema recomendamos,
Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusíon. Vol. 1 e 2. Cord. Cancio Meliá e
Gomez-Jara Díez. Buenos Aires: Editora B de F. 2006.
35
KHALED Jr., Salah H. “O homem do dique e a irracionalidade do pensamento jurídico-penal
sedimentado: reencontro subversivo com a história política do direito penal”. op. cit. p. 2.
36
JAKOBS, Günther. Direito penal do inimigo. 3ª ed. Porto Alegre: Editora Livraria do advogado.
2008. p. 49.
A ideia de medo37 nos leva a distintos horizontes, pois ao pensarmos em que
consiste o medo, ou melhor, ao pensarmos: o que nos causa medo? Cada pessoa terá
uma resposta em particular e talvez todos, ou pelo menos uma grande maioria tenha um
medo comum. No geral as pessoas temem a morte. Mas por que a morte? Porque não se
sabe o que há depois dela, alguns dizem que tudo se termina, para outros é apenas um
ciclo, enfim, muitas hipóteses, mas nada é certo, com exceção da morte em si. É
justamente esta incerteza que nos causa temor, como nos ensina Bauman 38, quando este
medo é difuso, disperso ele é potencializado.
Mas também o medo pode ser a causa de um pensar diferente, todos nos
vivemos num estado de conforto, quando nos defrontamos com uma situação que nos
coloca em choque frente este estado de segurança, normalmente sentimos medo. Mudar
causa medo, por isso muito temor com certas ideias novas, políticas novas,
determinadas teorias que colocam em confronto uma minoria que não esta disposta a
abrir mão do seu estado de conforto em benefício da coletividade39.
37
Como nos ensina Bauman, “desde o início, o Estado moderno teve de enfrentar a tarefa
desencorajadora de administrar o medo”. (BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de
Janeiro: Editora Zahar. 2009. p. 17).
38
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar. 2008. p. 8.
39
FRANCO, Alberto Silva. “Globalização: efeitos danosos e alternativas viáveis”. Op. cit. p. 85.
40
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. op. cit. p. 9.
41
“Finalmente, en la sociedad se ha difundido un exagerado sentimiento de inseguridad, que no parece
guardar exclusiva correspondencia con tales riesgos, sino que se ve potenciado por la intensa cobertura
mediática de los sucesos peligrosos o lesivos, por las dificultades con que tropieza el ciudadano medio
para comprender el acelerado cambio tecnológico y acompasar su vida cotidiana a él, y por la extendida
percepción social de que la moderna sociedad tecnológica conlleva una notable reducción de la
solidaridad colectiva”. (RIPOLLÉS, José Luis Diéz. “De la sociedad de riesgo a la seguridad ciudadana:
un debate desenfocado”. In Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusíon. Vol. 1 e 2.
Cord. Cancio Meliá e Gomez-Jara Díez. Buenos Aires: Editora B de F. 2006. p. 556).
construída de proteções e a capacidade efetiva da sociedade de colocá-las em
funcionamento42.
Não é necessário um grande esforço mental para entendermos que essa politica
de construção de uma sensação de insegurança esta totalmente orientada pelo poder
econômico. A segurança privada é um negócio lucrativo, a ideia de que o Estado não
tem capacidade operativa para proteger à todos, abre margem para esse comércio45.
52
ZAFFARONI. Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Conferências de criminologia cautelar. 1ª Ed.
2ª tiragem. São Paulo: Editora Saraiva. 2014. p. 479.
53
ZAFFARONI. Eugenio Raúl. O inimigo do direito penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Revan. 2007.
54
ZAFFARONI. Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Conferências de criminologia cautelar. Op. cit.
p. 480.
55
DAL RI JR. Arno. O Estado e seus inimigos. A repressão política na história do direito penal. Rio
de Janeiro: Editora Revan. 2006. p. 280. MENDEZ. Emilio Garcia. Autoritarismo y control social.
Buenos Aires: Editora Hammurabi. 1987. p. 107.
56
Aqui nos reportamos ao direito penal do inimigo já mencionado neste ensaio.
No que tange ao primeiro exemplo, depois do atentado à revista Charlie Ebdo
o Estado Islâmico reascendeu a chama do temor ao terrorismo, resultado disso é que
recentemente a França aprovou uma Lei que autoriza as interceptações telefônicas sem
prévia autorização judicial, batizada como patriot Act57. Tal mecanismo remonta a
patriot Act dos EUA58 e Reino Unido59 no combate ao terrorismo, nos faz lembrar que
em pleno século XXI temos uma prisão como Guantánamo, ou seja, sob o pretexto de
garantir a liberdade, restringimos todas as garantias básicas de terroristas e suspeitos,
pois muitos que lá estão nunca foram julgados e provavelmente nunca o serão.
57
http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2015/05/05/assembleia-da-franca-aprova-lei-
antiterrorismo.htm. Acessado dia 21/05/2015.
58
ANITUA. Gabriel Ignacio “la legislación penal en la dinámica de la guerra contre el ‘mal’ o el
‘enemigo’. In Políticas de seguridad. Peligros y desafíos para la criminología del nuevo siglo. Comp.
María Laura Böhm e Mariano H. Gutiérrez. Buenos Aires: Editores Del Puerto. 2007. p. 35.
59
GARCÍA. José Ángel Brandariz. Política criminal de la exclusión. Estudios de derecho penal y
criminología. Granada: Editorial Comares. 2007. p. 218.
60
AGAMBEM, Giorgio. Estado de exceção. 2ª Ed. São Paulo: Editorial Boitempo. 2007. p. 13.
microchip inserido via subcutânea permite saber onde a pessoa esta, também justificado
sob os frequentes casos de sequestros que vemos todos os dias na mídia.
A busca por uma segurança total é alimentada diariamente por uma mídia 66 que
apenas reproduz a barbárie67. Sob esse pretexto buscamos ferramentas de vigilância
alimentando um mercado poderoso que é o da segurança privada. Nessa dinâmica
cedemos o nosso direito à intimidade em troca de uma segurança nunca alcançada 68.
Nessa extensão da vigilância a globalização ocupa lugar importante oferecendo ao
capitalismo ferramentas de controle de pretensos consumidores, uma visão globalizada
do panóptico de Bentham. Observa-se que todas as promessas de segurança estão
atreladas a um maior controle social por parte do poder e como consequência disso, em
tempos de globalização esse mesmo mecanismo serve para aumentar o consumo,
alimentando o sistema capitalista, causando consequentemente uma separação entre
consumidor e não consumidor, sendo este último excluído do corpo social. A vigilância
opera em suma para controlar “os de dentro” e “os de fora”69.
66
ROSA, Alexandre de Morais da; KHALED, Salah H. Jr. “In dubio pro hell: o processo penal do
inimigo”. In Indubio pro hell: profanando o sistema penal. 1ª Ed. Editora Lumen Juris. 2014. p. 11.
67
“Estes problemas de percepção pública são exacerbados pelo fato de que o sistema de justiça criminal
é, em qualquer caso, um campo minado. Ele habitualmente lida com casos emocionalmente carregados e
de grande visibilidade, que sufocam o significado de justiça e provocam reações hostis de um lado e de
outro”. (GARLAND, David. A cultura do controle. Crime e ordem social na sociedade
contemporânea. 1ª reimp. Rio de Janeiro: Editora Revan. 2014. p. 253).
68
Nesse sentido questiona Agambem: “a crescente multiplicação de dispositivos de segurança testemunha
uma mudança na conceituação política, a ponto de podermos legitimamente nos perguntar não apenas se
as sociedades e que vivemos ainda podem ser qualificadas de democráticas, mas também e acima de tudo
se elas ainda podem ser consideradas sociedades políticas”. (AGAMBEM, Giorgio. “Como a obsessão
por segurança muda a democracia”. In Le Monde Diplomatique Brasil. disponível em:
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568 . acessado dia 30/07/2014).
69
BAUMAN, Zigmunt. Vigilância liquida. op. cit. p. 65.
ilícita como consta no projeto inicial 70, como sustentou Lênio Streck71 em artigo
publicado pelo boletim Consultor Jurídico, quando compara o Ministério Público a
criança dona da bola, quando o jogo lhe desfavorece, ela pega a bola e vai embora.
Mudar as regras do jogo sob o pretexto de combater a criminalidade não tem nexo e
muito menos sustentação em qualquer plano, principalmente num país que se intitula
democrático. Lembra Alexandre Morais da Rosa que “O processo penal é o uso do
confronto em contraditório para garantia da democracia” 72, pois parece que esta lição
básica esta sendo desconsiderada.
70
A proposta inicial consistia em: “Art. 157, § 3o Ressalvados os casos de tortura, de violência física, de
ameaça, ou de violação da residência e interceptação de comunicações sem mandado ou ordem judicial,
bem como outros de igual gravidade, poderá o juiz ou tribunal determinar o aproveitamento da prova
ilícita, com base no princípio da proporcionalidade, quando os benefícios decorrentes do aproveitamento
forem maiores do que o potencial efeito preventivo, da decretação da nulidade, sobre o comportamento
futuro do Estado em investigações”. (Grifo nosso). (http://s.conjur.com.br/dl/proposta-mpf-prova-
ilicita.pdf, acessado dia 1/06/2015).
71
STRECK, Lênio. “O que fazer quando o Ministério Público quer violar as regras do jogo”? in
Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-22/lenio-streck-quando-mp-
violar-constituicao. Acessado dia 01/06/2015.
72
ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2ª Ed.
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2014. p. 183.
73
http://www.dm.com.br/politica/2015/03/oab-e-juiz-criticam-pacote-anticorrupcao-do-mpf.html.
Acessado dia 01/06/2015.
74
http://www.conjur.com.br/2015-mar-20/mpf-propoe-mudanca-prova-ilicita-seja-aceita-justica.
Acessado dia 01/06/2015.
prova ilícita e sua valoração75. Argumenta o MPF que foi um “problema de redação”,
que jamais passaria pela cabeça de ninguém que qualquer prova ilícita poderia ser
aproveitada no processo, o que se busca é uma análise mais detalhada das provas para
que não seja anulado qualquer processo de forma imediata. Dessa forma com essa nova
redação estamos a salvo do fantasma da prova ilícita rondar o processo penal?
Infelizmente nossa visão sobre este assunto é que este fantasma permeia e seguirá
“vivo” se este parágrafo terceiro for aprovado.
75
“Art. 157, § 3o Ressalvados os casos de tortura, de violência física, de ameaça, ou de violação da
residência e interceptação de comunicações sem mandado ou ordem judicial, bem como outros de igual
gravidade, poderá o juiz ou tribunal determinar novos parâmetros para definição da prova lícita e sua
valoração, com base no princípio da proporcionalidade, quando os benefícios decorrentes do
aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito preventivo, da decretação da nulidade, sobre o
comportamento futuro do Estado em investigações”. (Grifo nosso). (http://s.conjur.com.br/dl/versao-
prova-licita.pdf. Acessado dia 01/06/2015).
76
Nesse sentido nos elucida Streck que a história já nos mostrou que depender da consciência dos juízes é
algo muito perigoso, e ainda traz o exemplo dos Estados de nossa Federação que invertem o ônus da
prova em casos de furto, estelionato e tráfico de entorpecentes. (STRECK, Lênio. “O que fazer quando o
Ministério Público quer violar as regras do jogo”? op. cit.).
mesmo as provas contaminadas está diretamente violando a constituição, como sustenta
Streck, “abrir a porteira do ilícito cometido pelo Estado é cair na barbárie” 77.
A história nos mostrou que o desprendimento das leis e uma ampla margem
discricional nas mãos dos magistrados permitiram a legitimação da barbárie, tais casos
são o Código Rocco do fascismo78, o direito penal do terceiro Reich79 e não poderíamos
deixar de mencionar a nossa política criminal de segurança nacional Latino-americana
que como diz Zaffaroni80 em sua matriz inicial adotou uma militarização sob o pretexto
de lutar contra um inimigo comum (o comunismo), mas que hoje despida dessa ameaça
veste novas roupagens, adotando outros bodes expiatórios para uma legitimação
desconectada com as garantias constitucionais e com os direitos humanos. Hoje a
ameaça cotidiana é a segurança urbana, e graças a uma construção que descrevemos
anteriormente essa política de segurança nacional, hoje com distintos apelidos ganha
força e vem a ser proposta não pelo legislativo, famoso pela aprovação de leis
desconexas com a realidade e contrárias a Constituição, mas de um órgão que deveria
proteger a Carta Magna, que é o próprio Ministério Público.
8. Conclusão
Não causa espanto tais medidas de cunho autoritário, o estado sempre buscou
criar mecanismos mais aptos ao eficienticismo penal do que voltados às garantias, ao
respeito do cidadão. Buscamos no decorrer deste ensaio demonstrar uma construção
legislativa que advém a nosso entender de motivações de cunho social, normalmente
construídas por meios sensacionalistas que reproduzem uma falsa realidade, uma falsa
77
STRECK, Lênio. “O que fazer quando o Ministério Público quer violar as regras do jogo”? op. cit.
78
DAL RI JUNIOR. Arno. O Estado e seus inimigos. Rio de Janeiro: Editora Revan. 2006. p. 225.
79
JESCHECK. Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. parte general. Trad. Miguel Olmedo
Cardenete. Granada: Editorial Comares. 2002. p. 107.
80
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro vol.
1, parte geral. 7ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 314.
sensação de insegurança, enfim aparatos constituídos com o objetivo de excluir uma
massa indesejada do corpo social, ou nas palavras de Baumann os não segurados,
aqueles que não consomem.
Entretanto, esse comportamento por parte da mídia não nos espanta, assim
como não nos espanta que boa parte da sociedade se deixe levar por essa informação
diária que apenas mostra o caos, chegando ao cumulo de alegar que a solução seria
voltarmos ao Estado de exceção. Nada pode ser mais descabido com relação ao tema,
ora levantar a bandeira de um Estado de total insegurança jurídica com a escusa de
buscarmos mais segurança é algo totalmente absurdo. Tais argumentos também não nos
espantam pois vem de setores que não tem autoridade para discutir aquilo que se
propõe, ou seja, a segurança pública e a normatização, a criação de leis adequadas ao
combate da criminalidade.
Por outro lado o que nos espanta é quando tal proposta surge por parte daqueles
que devem proteger a Constituição, que devem salvaguardar os direitos individuais e
difusos da sociedade, de uma instituição que tem por bem defender o Estado
Democrático de Direito que é o MPF. Podemos nos atrever a pensar o pior, que até
mesmo o Ministério Público Federal se deixou levar por esse discurso que advém da
mídia ou de setores da sociedade contaminados por estas informações desconectadas da
81
ZAFFARONI. Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Conferências de criminologia cautelar. Op. cit.
p. 463.
realidade. Por outro lado podemos questionar acerca da forma como o Ministério
Público leva suas investigações, questionando sua capacidade cognitiva em levar a sério
uma investigação, pois seguindo as regras não conseguem prender, não conseguem
efetuar seu trabalho, sendo necessário burlar o devido processo legal para aí sim efetuar
as condenações desejáveis. Note-se que quando falamos efetuar seu trabalho, no jargão
popular não é esgotar os meios processuais disponíveis para uma aproximação dos fatos
ocorridos, e depois sim, vencida esta fase que caiba ao juiz decidir com base nos
elementos discutidos. O que se busca, com essa tentativa de flexibilizar a prova ilícita é
alcançar o maior número de condenações. A verdadeira vitória do Ministério Público
que defende tal implementação no CPP é condenações e não respeitar o devido processo
legal.
9. Bibliografia