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AINDA HÁ ESPAÇO PARA DISCUTIR O CONCEITO DE CRIME?

Por Patrick Assunção Santiago

Durante muito tempo os juristas buscaram dar uma resposta satisfatória à pergunta: ‘o que é
crime?’ buscando definir o que seria crime, muitos nomes tentaram solucionar esta aporia.
Tivemos, por exemplo, o ilustre Magalhães Noronha, que afirmava ser crime ‘’a conduta
praticada pelo ser humano que lesa ou expõe a perigo o bem protegido pela lei penal’’. De
outro modo, Professor Damásio de Jesus, afirmava ser crime ‘‘o conceito que resulta do
aspecto da técnica jurídica’’.

Tais definições, no entanto, se demonstram insatisfatórias, pois não vão muito além da
ambigüidade conceitual. Ambas as definições pouco nos conduzem à resposta a que nos
empenhamos aqui descobrir: o que é (ou o que deveria ser, num sentido normativo) crime?

Sobre isso, Roxin nos alerta sobre os riscos de uma lei penal imprecisa, dizendo que uma lei
indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não pode proteger o cidadão da
arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal.

Neste fundamento de auto-limitar a violência do estado, surge a definição defendida por Ernst
Von Beling, cuja delimitação consistia em estabelecer um critério analítico para o conceito de
crime, que fundamentava o juízo de reprovação em três critérios, sendo eles critérios
objetivos, como o da tipicidade e antijuridicidade, e também em critérios subjetivos, como o
da culpabilidade, à época sob a égide da teoria psicológica da ação, elaborada por Von Liszt,
que posicionava o elemento subjetivo na culpabilidade, à luz da teoria causal-natural.

O papel deste (breve) texto é questionar a atualidade da teoria analítica do crime em seu
conceito tripartite, bem como a sua necessidade de atualização. Afinal, ele ainda cumpre bem
o seu papel? não teria ele também se tornado um conceito ambíguo?

Para compreender a dimensão do problema, imperioso se faz retornarmos ao século XVI,


com o embrião do que mais tarde ficou conhecida como a teoria quadripartida do crime, sob
formulação do grande jurista Tiberii Deciani, na famosa obra ''tractatus criminalis'', para
quem a punibilidade integraria a noção de crime. Naturalmente a teoria passou por severas
modificações dogmáticas e tais formulações foram modificadas, adaptadas e readaptadas ao
longo da história, tendo sido defendida por autores como Francisco Muñoz Conde e Winfried
Hassemer.

Posteriormente o conceito foi retrabalhado à luz dos escritos do Samuelis Boehmer, na obra
''Elementa iusisprudentia criminalis’’, cujo delito havia sido definido como ‘ação ou omissão
espontânea, contrárias à lei, cujo cumprimento é imposto mediante a cominação da pena’

O núcleo duro da teoria foi novamente remodelado, desta vez por Karl Binding, que definiu o
conceito de delito como um ilícito penal culpável e punível, esclarecendo que, nessa mesma
estrutura, o ilícito penal culpável somente é denominado como delito quando também é
punível.

Muito embora tenham sido elaboradas outras formulações teóricas alternativas, a teoria
quadripartida evoluiu com o tempo até ser utilizada pelo Von Liszt, para quem o conceito do
delito é a ação típica, antijurídica, culpável e ameaçada por pena.

Durante a evolução histórica da teoria do delito, a punibilidade era considerada em sua


configuração abstrata, como definição de uma pena em uma norma estrutural e secundária.
Segundo Andreas Eisele, o aspecto da punibilidade considerado para a composição do
conceito é a expressão abstrata da punibilidade, que consiste na previsão legal de uma pena,
como possível consequência jurídica, devida pela eventual prática de um ilícito penal
culpável.

Fato é que, historicamente, a teoria quadripartida foi “deixada de lado” pela maioria dos
teóricos, pois a punibilidade não conseguiria alcançar um nível de compatibilidade e
coerência suficientes para integrar o conceito de crime, tanto no âmbito teórico quanto
prático.

O principal motivo da expulsão da punibilidade como critério do conceito de crime se deu


por causa de uma suposta “tautologia” alegada por seus opositores. Um desses opositores foi
Max Ernst Mayer, que considerava que a inclusão da punibilidade abstrata no conceito de
crime seria pleonástica.

Mezger, por exemplo, entendia por crime a ação tipicamente antijurídica e culpável, e
formulou tal pensamento sob influência das considerações do Mayer, que não incluía a
punibilidade no conceito de crime, pois entendia que o próprio delito seria definido como
uma ação punível e, segundo o autor, alocar a punibilidade no conceito seria redundante.

Ao que parece, Mayer não considerou um dado importante na dinâmica da dogmática


criminal, que é o próprio conceito de delito como “fato punível”. Nessa mesma linha, autores
como o Rodriguez Devesa e Serrano Gómez tendem a discordar da existência dessa
“tautologia” presente na integração da punibilidade ao conceito de crime, pois, segundo os
autores, não existe um pleonasmo na inclusão da punibilidade como elemento do conceito do
fato punível. Ambos os autores entendem que tal objeção somente seria adequada se todas as
condutas tipicamente antijurídicas e culpáveis fossem sancionadas com uma pena
preestabelecida e fixada por lei, o que não ocorre em diversos tipos penais incriminadores.

Vicenzo Manzini, por sua vez, afirmava que ainda que a definição do delito como fato
punível fosse redundante, tal redundância seria necessária, pois o que define o delito é o
ordenamento jurídico, e essa definição tanto é estabelecida mediante a especificação da
incidência da norma, quanto pela cominação da sanção. Assim, a tautologia não é um defeito
da norma, mas sim uma característica essencial do conteúdo conceitual.

A punibilidade como critério integrador do conceito do crime trata-se de um requisito da


própria precisão do conceito. E, conforme a dogmática moderna, a precisão configura
garantia frente ao princípio da legalidade.

No mesmo diapasão, afirma Polaino Navarrete que a punibilidade deve necessariamente


integrar a estrutura da categoria jurídica denominada como fato punível, pois se o fato não
fosse punível, não seria crime. Na mesma linha, Giulio Battaglini entendia que a não inclusão
da punibilidade no conceito de delito levaria à admissão de um ‘’delito não punível’’ e tal
afirmação seria uma contradição conceitual.

Ottorino Vannini dizia que não existe um fato jurídico sem uma correspondente
potencialidade de produção de consequências jurídicas, a partir do qual seria inconcebível a
constituição de um delito em relação ao qual não existisse a possibilidade real de aplicação de
uma pena. Sem a punibilidade de um fato não existe um delito. Um fato sem consequências
jurídicas não é um fato jurídico, e para ser delito, o fato precisa ser, necessariamente, jurídico.

Nisso consiste a necessidade lógico-dogmática da inclusão da punibilidade concreta no


conceito de crime. O debate segue aquecido.
Referências:

ROXIN, Claus. Derecho Penal.

DECIANI, Tiberii. Tratactvs Criminalis

BOEHMER, Samuelis. Elementa iusisprudentia criminalis

LISTZ, Franz von. La idea de fin en Derecho Penal.

BALTAZER, Júnior. Crimes Federais.

DEVESA, Rodríguez. Derecho Penal Espanhol

MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho penal

NAVARRETE, Polaino, Miguel. Criminalidad Actual y Derecho Penal

BATTAGLINI, Giulio. Diritto penale: parte generale

VANNINI, Ottorino. Manuale Di Diritto Penale Parte Generale

EISELE, Andreas. A Punibilidade no Conceito de Delito

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