Você está na página 1de 17

JOSÉ DE SOUSA E BRITO

TEORIA DO CRIME E TÉCNICA DE SUBSUNÇÃO1

1. Premissa metodológica: A inserção do sistema do direito penal entre uma


jurisprudência dos conceitos formal e uma (dis)solução funcionalista

O sistema do direito penal deve evitar, quer o formalismo da jurisprudência dos concei-
tos, quer o perigo da sua autodissolução às mãos do funcionalismo. Certamente que foi esta
uma preocupação constante de CLAUS ROXIN, ao propor uma dogmática penal orientada
pela teleologia político-criminal.

Onde vejo eu o principal defeito da jurisprudência dos conceitos? Não tanto no seu
formalismo como no seu ontologismo. Na verdade, a jurisprudência dos conceitos nunca se
constituíu como uma ciência formal, como uma lógica jurídica, por exemplo. Também nunca
aplicou rigorosamente o método axiomático. Mas pretendeu que o método científico do direito
era a demonstração, o raciocínio dedutivo do modelo aristotélico das ciências teóricas do ser.
Ora, as frases da ciência dogmática não têm o sentido de declarações sobre o ser das coisas,
mas sim o de recomendações acerca do comportamento das pessoas, são normativas, dizem
como fazer, embora não por autoridade do jurista mas segundo o direito 2. Correspondente-
mente, a sua forma característica de raciocínio não é o dedutivo, mas sim o raciocínio prático,
segundo o modelo da ética e da política. Eu arriscaria mesmo mais: a ciência jurídica
dogmática é uma aplicação da filosofia ético-política 3. Mas não é preciso ir tão longe para
reconhecer a desfocagem ontologista da jurisprudência dos conceitos. Um argumento não só
ontologista mas conceptualista é o de WELZEL acerca da legítima defesa putativa: se dolo é a

1
Inédito.Publicado em tradução espanhola: "La inserción del sistema de derecho penal entre una
jurisprudencia de conceptos y una (di)solución funcionalista", Fundamentos de un sistema
Europeo del Derecho Penal, ed. J.M.Silva Sanchez (ed.española) e B.Schünemann/J.de
Figueiredo Dias, Barcelona, Bosch, 1995, pp. 99-111. Existe uma edição alemã, com referências
ao direito alemão: "Etablierung des Strafrechtssystems zwischen formaler Begriffsjurisprudenz
und funktionalistischer Auflösung", Bausteine des europäischen Strafrechts, Coimbra -
Symposium für Claus Roxin, ed. Bernd Schünemann, Jorge de Figueiredo Dias, Köln, Carl
Heymanns Verlag , 1995, pp. 71-86.
2
Assim o meu estudo "Science and Technique in Jurisprudence", Rechtstheorie, Beiheft 10, 1986, p. 349.
3
Cfr. o meu estudo "O princípio da Utilidade, Razão e Direito", Filosofia, 4, 1990, p. 49.
sobredeterminação final da causalidade e tal existe na hipótese há dolo. Ora a questão é
precisamente a de saber se quando além dessa sobredeterminação há admissão errónea dos
pressupostos de legítima defesa ainda deve haver dolo: o que em boa hermenêutica depende de
então valerem as razões, isto é, os fins que justificam a maior punibilidade do crime doloso.
Ora um tal raciocínio não teria a forma de uma dedução, mas de um raciocínio prático 4.

O funcionalismo tende a dar uma interpretação pragmática dos conceitos que orientam a
acção social. Evita assim o escolho de ontologismo e argumenta teleologicamente. Mas tende
a transformar o direito numa técnica de estabilização de expectativas, independente do
conteúdo destas, e a ciência jurídica numa tecnologia. Pressupõe metodologicamente, pelo
menos, o relativismo dos valores ou o cepticismo ético, isto é, a possibilidade do direito sem
ética. Torna-se assim incapaz de universalizar, de justificar racionalmente um sistema
normativo e, por consequência, de fazer afirmações jurídicas com força obrigatória universal.
Assim, para JAKOBS5 se o reincidente ou o criminoso por tendência são desculpados depende
de a desilusão das expectativas causada pelos factos poder ser compensada pela alteração dos
dados da vida, através do tratamento ou da ressocialização - então haverá desculpa -, ou de só
o poder ser pela reafirmação do direito - prevenção geral positiva - através da imputação da
culpa e da pena. De ambas as maneiras se pode realizar a mesma função social de
estabilização das expectativas, pelo que a reprovação da culpa depende de circunstâncias e
juízos históricos contingentes, como sejam a crença na possibilidade de tratamento. Assim se
explicaria a "paradoxal" maior inculpação do reincidente e a recente discutibilidade da culpa
do delinquente por tendência - no primeiro caso descrê-se da recuperação, no segundo discute-
se a sua possibilidade.

Mas importa não esquecer a parte de verdade da jurisprudência dos conceitos.


Reconhece a dogmática como ciência, embora a suponha teórica quando é prática. E não se
exime a trabalhar no conceito. Postos de lado o formalismo e o ontologismo, faz falta uma
nova maneira hegeliana de desenvolver o sistema numa dialética teleológica entre a forma e a
matéria - como ROXIN fez exemplarmente para o conceito de autoria em Täterschaft und

4
Sobre este ponto o meu estudo "Hermenêutica e Direito", Boletim da Faculdade de Direito, LXII, 1986, pp. 207-
213. O argumento de WELZEL encontra-se por exemplo em WELZEL, Das deutsche Strafrecht, 11. Aufl. 1969, 22
III.
5
Schuld und Prävention, 1976, p. 11, 15 ss.; JAKOBS, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2ª ed. 1991, 17/26, 28.

2
Tatherrschaft 6.

De modo semelhante, o funcionalismo reconhece bem que o nexo de fundamentação na


argumentação jurídica é funcional ou teleológico, que se orienta, por isso, no direito penal
pelos fins das penas.

Como construir um sistema de direito penal orientado teleologicamente pela política


criminal que seja o meio aristotélico entre a jurisprudência dos conceitos e o funcionalismo?

Limito-me aqui a defender algumas teses sobre a teoria do conceito de crime como
sistema científico orientado funcionalmente pelos fins das penas. Concentrar-me-ei no
problema da construção do sistema e no lugar sistemático do conceito de tipo. Ficam de fora
as questões mais importantes, como a que respeita ao conteúdo indisponível da culpa, decisiva
no confronto com o funcionalismo.

2. 1ª tese: A teoria do crime é um sistema aberto ao serviço da subsunção, ou, o que


vai dar ao mesmo, um sistema hermenêutico de tratamento de casos

Pode chamar-se subsunção à operação de determinar a lei aplicável a certo facto, olhada
do ponto de vista do caso concreto. A lei penal faz corresponder a certos factos, que descreve
genericamente, certos efeitos jurídicos, que também descreve genericamente. Pela subsunção
integra-se um facto concreto na previsão normativa: tem-se assim o pressuposto que
desencadeia o concreto efeito jurídico que lhe corresponde. "Subsumir", escreveu KANT, "é
distinguir se algo cai debaixo de uma lei dada (casus datae legis) ou não" 7. Importa, portanto,
distinguir os factos que se integram na previsão da lei penal, ou crimes, dos restantes. A teoria
do crime é um meio de o conseguir. Fundamenta uma técnica de subsunção.

O facto de o termo subsunção ser usado na lógica para designar que certo objecto
pertence a uma classe, é um elemento de uma classe, não quer dizer que tal relação se possa
estabelecer sempre com facilidade em cada caso. O "acto" de subsumir pode ser um processo

6
Cfr. este mesmo, 5ª ed. 1991, p. 527 ss.
7
Kritik der reinen Vernunft, 2ª ed. (1787), p. 171.

3
lógico complexo. Com efeito, o caso concreto nunca é um puro facto, mas uma unidade de
sentido socialmente relevante mais ou menos complexa e integrada por elementos culturais
difíceis de definir. Para o descrever, a previsão legal contém muitas vezes expressões que não
se deixam reduzir a conceitos precisos, que possibilitem, por seu turno, imediatos juízos de
subsunção. Assim será quando a lei se serve de noções sociais típicas, isto é, de contornos
vagos mas em que é determinante uma certa imagem ou ideia de conjunto, como "acto de
crueldade", "meio insidioso" (art. 132), "intimidade da vida privada" (art. 180), "escândalo"
(art. 212) e "astuciosamente" (art. 313 nº 1). O mesmo acontece com o recurso a valorações
vigentes na sociedade e implícitas em conceitos normativos como "honra", "consideração"
(art. 164 nº 1, 165 nº 1, 362 nº 1), "torpe" (art. 132 nº 2); bem como com a remissão para todo
um sistema de normas: "bons costumes" (art. 149, nº 2), "coisa alheia" (art. 296) e até com
simples conceitos de graduação, como "pequeno valor" (art. 301 nº 2, 302 nº 1 e 2, 305 nº 3).
É claro que a subsunção aqui é o resultado de uma série de juízos e raciocínios que não são
todos subsuntivos, incluindo as mais variadas espécies de valoração. Não é razão para
abandonar o termo subsunção e substituí-lo, como propôs LARENZ, por "julgamento jurídico
de situação de facto" 8. Ao dizer que um caso concreto pertence à classe dos casos previstos
pela previsão legal, a sua equiparação aos outros casos dessa classe não é mais do que uma
subsunção no sentido rigoroso da lógica formal 9, que a exprime dizendo que o facto x "é um
elemento" da classe a (x E a), da classe dos factos previstos no art. 132º, por exemplo. O
jurista dirá mais simplesmente, segundo a fórmula de KANT, que o facto x é um caso de
homicídio qualificado.

A correspondência que na subsunção se estabelece entre a lei penal e o caso resulta por
um lado da interpretação da lei, por outro da compreensão do caso, do tratamento ou
julgamento jurídico deste. A equiparação entre o caso e os restantes casos que cabem na
previsão faz-se por um raciocínio de analogia. A teoria do crime como parte geral de
interpretação das previsões das leis penais faz-se no horizonte de todas as subsunções

8
Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6ª ed. 1991, p. 275.
9
Outra questão, essa terminológica, é saber se o termo subsunção não deverá antes reservar-se para designar a
relação entre duas classes de diferente extensão que se exprime ao dizer que a classe a está incluída na classe b (a Ì
b). Tal é a opinião de KLUG, Juristische Logik, 4ª ed.1982, p.66, seguindo a terminologia de CARNAP. Contra,
poderão invocar-se as autoridades de KANT, (que aliás, engloba ambas as relações no conceito de subsunção: cfr.
EISLER, Kant-Lexikon, reimpressão 1964, pp. 519-520 e 565-566), de HUSSERL, Ideen zu einer reinen
Phänomenologie I, ed. Haia 1950 (Husserlinan), p. 33, de FREGE, Nachgelassene Schriften, ed. Hermes et al. 1969,
p. 230 s e de WHITEHEAD-RUSSEL, Principia Mathematica (1910), 2ª ed. 1927, I, p. 27, e, sobretudo, o uso
jurídico. No mesmo sentido, cfr. também ENGISCH, Logische Studien, p. 23 s.

4
possíveis e progride de facto numa espiral hermenêutica com cada nova subsunção 10. Pode,
por isso, também descrever-se como um sistema hermenêutico de tratamento de casos.

3. 2ª tese: A teoria do crime é uma teoria analítica. A cada elemento da definição do


conceito de crime corresponde uma subsunção subordinada do crime como um todo

A definição de crime faz-se através da distinção de vários elementos em que se analisa o


crime. O termo "análise" é tão pouco de evitar como o termo "subsunção". A análise não
decompõe mas relaciona. Não se faz por separação real dos componentes do facto do crime,
mas por definição de classes diferentes, isto é, classes integradas por elementos diferentes, sob
as quais se subsume sucessivamente o crime como um todo. A cada teoria analítica
corresponde uma diferente técnica subsuntiva. Mas uma das tarefas da teoria científica do
crime é explicar como análises diferentes podem ser construções jurídicas equivalentes, do
ponto de vista da subsunção final, e como, em geral, técnicas subsuntivas diferentes podem
alcançar o mesmo resultado. Ao invés, também a mesma técnica subsuntiva, ou melhor, os
mesmos passos subsuntivos com os mesmos nomes podem esconder interpretações diferentes
e, portanto, diferentes resultados no tratamento dos casos (mais exactamente: diferentes
resultados nas subsunções subordinadas, podendo ou não coincidir na subsunção final).

A definição de crime tem-se mantido na aparência extraordinariamente estável, desde


que existe uma parte geral do direito penal. Já DECIANO, que foi o primeiro 11 a fazê-la,
disse: "delictum est factum hominis vel dictum vel scriptum dolo vel culpa a lege vigente sub
poene prohibitum, quod nulla iusta causa excusare potest"12 (delito é o facto, ou dito ou
escrito, do homem, por dolo ou por culpa, proibido pela lei vigente sob pena, e que não pode
ser excusado por nenhuma justa causa). Se considerarmos o facto, o dito e o escrito, como
espécies de acção, tratarmos o dolo ou a culpa como as duas formas de culpa e abstrairmos da
última parte da frase, que se refere a elementos negativos - "excusas" ou causas de exclusão
recondutíveis aos outros elementos que excluem -, obtemos os quatro elementos da definição
dita clássica de LISZT: "Crime é a acção ilícita, culposa, cominada com pena" 13. A principal

10
Cfr. o meu estudo "Hermenêutica e Direito", cit., 199-203.
11
Assim SCHAFFSTEIN, Die europäische Strafrechtswissenschaft im Zeitalter des Humanismus, 1954, p. 42.
12
Tractatus criminalis, 1590, lib. II, cap. III, nº 2.
13
Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, 21ª-22ª ed., 1919, p. 112.

5
diferença está na ordem da análise: em LISZT a ilicitude precede a culpabilidade, há factos
ilícitos não culposos, mas a inversa não é verdadeira 14. A doutrina posterior, na esteira de
BELING 15, transformou o requisito da punibilidade no da tipicidade e inverteu de novo a
ordem da análise, passando a tratar em primeiro lugar a tipicidade. Ora, LISZT não podia
deixar de considerar a punibilidade como o último, por ser o "específico", elemento do
conceito de crime (sendo os outros três elementos genéricos que integram o conceito de delito:
"do círculo quase inenxergável dos delitos - escreve LISZT - (o legislador) extrai certas acções
exactamente descritas e forma assim os tipos (Tatbestände) (espécies) dos vários crimes
cominados com pena. Em certos casos até faz depender ainda o aparecimento da pena da
existência de outras condições de punibilidade" 16. Como pode LISZT então dizer que
BELING "concorda no fundo com a opinião do texto"17 ? Só ao nível profundo, é claro, ao
contrário das aparências. Em sentido contrário, sugiro que se pode dar uma interpretação à
definição de LISZT no espírito de uma teleologia político-criminal, fazendo corresponder aos
três elementos de LISZT três valorações fundamentais do crime: a valoração do ilícito,
baseada na violação do bem jurídico ou no desvalor da acção, a valoração da culpa, baseada na
determinação pelo ilícito apesar da motivabilidade normativa, a valoração da punibilidade
baseada na necessidade da pena. A valoração como facto humano é pressuposta de todas elas
e, por isso, antecedente no sistema. Como o que importa aqui é continuar a esclarecer as
relações entre a análise sistemática do crime e a subsunção, não importa aqui a correcção
material do sistema. Postularei assim que o sistema de quatro elementos de LISZT, com uma
interpretação de teleologia político-criminal próxima da doutrina hoje - quase - dominante de
ROXIN, é o "sistema científico do crime" (SCC).

Qualquer análise pode descrever-se de duas maneiras: em termos de propriedades e em

14
Contra, admitindo actos culposos que não são ilícitos, KADECKA, Gesammelte Aufsätze, 1959, p. 19, seguido por
NOWAKOWSKI (cfr. a sua anotação ao artigo cit. de KADECKA, ob.cit., p. 9-10 e em Juristenzeitung, 1958, p.
336). Tal seria especialmente o caso da tentaiva impossível. Cfr. também, do último, Österreichisches Strafrecht in
seinen Grundzügen, 1955, p. 42 s., 54.
15
Die Lehre vom Verbrechen, 1906 (reimp. 1964), p. 7. Nesta obra BELING pretende afastar da definição «o
tautológico 'cominada com pena'» e substituí-lo por três elementos: a tipicidade» («Typizität» oder
«Tatbestandsmässigkeit» p. 24) que coloca em primeiro lugar, o «cabimento numa cominação penal determinada» e
a «existência das condições da cominação penal», que coloca nos dois últimos lugares da definição, depois da acção,
da tipicidade, da ilicitude e da culpa.
16
Ob. cit., p. 111.
17
Ibidem, nº 4.

6
termos de relações 18.

Em termos de propriedades traduz-se na decomposição de um todo em partes, elementos


ou propriedades distintas umas das outras. A comparação estabelece-se entre as diversas
propriedades da mesma coisa. O resultado é uma diferenciação intrínseca. Na análise do crime
tratar-se-á de no crime considerado caracterizar cada elemento pelas diferenças que o separam
dos restantes elementos do crime. Pendor constante desta descrição da análise é não admitir
diferenças que não se traduzam numa separação real no objecto da análise. Que o dolo faça
parte na tentativa do elemento ilicitude e no crime consumado do elemento culpa é uma
dificuldade típica desta maneira realista de entender a análise em termos de propriedades 19.

Em termos de relação, a análise traduz-se no estabelecimento de linhas de afinidade ou


semelhança entre coisas que se comparam. Cada passo da análise separa dois grupos de coisas:
as que apresentam certas características e as restantes. A comparação estabelece-se agora, já
não entre as propriedades da mesma coisa, mas entre diversas coisas em função da mesma
propriedade. O resultado é uma progressiva diferenciação do objecto da análise como um todo
em relação às restantes coisas comparáveis. A exigência do facto, como primeiro elemento do
crime, significa que todos os crimes têm de comum serem acções ou omissões e que toda a
realidade que não esteja numa tal relação de afinidade (como um movimento reflexo ou em
estado de hipnose ou resultante de força externa, etc.) não é crime. Neste primeiro passo da
análise partimos o universo em dois grandes grupos de realidades: as acções ou omissões e as
restantes. É sobre o primeiro grupo que vai incidir a análise como definição de linhas de
afinidade ou semelhança entre factos - os crimes -, como resíduo resultante da exclusão de
grupos de outros factos, determinados em função de certas propriedades. Uma concreta acção
ou omissão será crime se: primeiro, não for um dos factos lícitos ou justificados (como os
praticados em legítima defesa, por exemplo), isto é, respeitantes à classe dos factos ilícitos;
segundo, se de entre os factos ilícitos não for desculpável (por ter sido cometida por
inimputável, ou em erro desculpável sobre a ilicitude, por exemplo), isto é, se pertencer à
classe dos factos ilícitos culposos; terceiro, se não obstante se verificar a última hipótese, o
facto ilícito e culposo não for um dos factos que a lei penal prevê (exemplo, tendo havido

18
A lógica tradicional falaria respectivamente da análise da compreensão e análise da extensão. Nós preferimos
seguir a terminologia e os desenvolvimentos de CARNAP, Der logische Aufbau der Welt (1928), 2ª ed. 1961, §§ 10,
69 ss.
19
Cfr. ENGISCH, Rittler-Festschrift, 1957, p. 174; ARTHUR KAUFMANN, Das Schuldprinzip, 1961, p. 184.

7
apenas negligência, a negligência não é punível na hipótese; ou depois de um falso
depoimento a parte retrata-se de modo a evitar que a mentira influencie o julgamento), isto é,
se for um elemento da classe dos factos ilícitos e culposos puníveis.
Assim, definir cientificamente crime, ou desenvolver tal definição no SCC pela
determinação hermenêutica dos elementos do crime não é outra coisa senão fazer a distinção
entre o crime e outras realidades comparáveis 20.

Do ponto de vista do correspondente tratamento analítico do caso concreto no processo


subsuntivo, acabámos de demonstrar que se chega a ela através de sucessivas subsunções, na
comparação do caso concreto com outras realidades afins ou não. O número de realidades
comparáveis reduz-se em cada passo da análise. Paralelamente, as classes em que o caso
concreto se subsume têm uma extensão cada vez mais pequena, até coincidir com a extensão
da classe analisada, que é a dos crimes previstos em certa lei penal.

O SCC implica nessa medida uma técnica de subsunção ou de tratamento de casos ou,
vale o mesmo, uma técnica de aplicação da lei penal.

Esta formulação do problema em termos relacionais, além de articular correctamente a


teoria do crime com a teoria da aplicação do direito, é a mais consentânea com o carácter
indivisível do todo que é cada crime como acto humano. A concepção totalizante da chamada
escola de Kiel não tinha, pois, um argumento contra a análise do crime. Era uma pretensa
justificação para evitar os correctos resultados da subsunção, sempre que se tratasse de
impedir a "submissão do agir soldadesco e político a conceitos gerais e burgueses" (DAHM)
21
. No exemplo dado por DAHM e por este atribuído a CARL SCHMITT: "SCHWINGE teria
de considerar furto, quando a Hitler-Jugend arrebata a bandeira da organização da juventude
católica e a queima como troféu (exemplo de CARL SCHMITT). Nós não consideramos furto,
porque ladrão não é aquele que "subtrai uma coisa móvel de outra pessoa com a intenção de
dela se apropriar ilicitamente", mas somente aquele que por essência é ladrão. A essência do
furto não se esgota na soma dos seus elementos" 22 . Isto é a clara linguagem duma "ciência"

20
Assim também, e invocando igualmente CARNAP: ENGISCH, Die Idee der Kronkretisierung in Recht und
Rechtwissenschaft unserer Zeit, 1953, p. 143 ss.
21
Grundfragen der neuen Rechtswissenschaft. 1935, p.74.
22
Die Idee der Konkretisierung, p. 142 ss., assim também ARTHUR KAUFMANN, Das Schuldprinzip, p. 183.
Aliás reagindo entre outras (SCHWINGE-ZIMMERL, METZGER), à crítica de ENGISCH, Archiv für Rechts-und
Sozialphilosophie, 30 (1935-36), p. 145 ss., o próprio DAHM veio dizer que «a censura do'pensamento separador' se

8
soldadesca e política!

A interpretação relacional da análise explica como os mesmos pressupostos de facto


podem integrar diferentes elementos do crime. "Integrar" aqui significa apenas que a
verificação de determinado elemento, como a ilicitude, a culpa ou a tipicidade, e assim a
predicação dele do crime como um todo realmente indivisível depende da verificação de
determinado pressuposto de facto. Ora nada impede que a inexistência de determinado
pressuposto de facto implique a inexistência de mais do que um elemento do crime, isto é, de
mais do que um fundamento da exclusão do facto da classe dos crimes. Tal acontece, desde
logo, sempre que a falta de qualquer pressuposto de facto deste último exclui o primeiro.
Assim, por exemplo, se se entender como o finalismo que não há acção sem finalidade,
embora não necessariamente, como na negligência, uma finalidade com a mesma descrição da
acção, então a falta de finalidade exclui não só a acção como também a ilicitude, a culpa e a
tipicidade. O mesmo é dizer que a finalidade integra não só a acção, como todos os restantes
elementos do crime. O mesmo argumento vale da capacidade de agir se entendermos que ela,
e não a finalidade, é essencial à acção e à omissão 23. Aliás nunca se viu dificuldade em
admitir que o conjunto de pressupostos que integram uma acção seja igualmente pressuposto
pelos restantes elementos do crime: nem de outro modo a acção poderia ser o suporte comum
dos outros elementos.

É certo que não pode haver identidade completa entre os pressupostos de facto de dois
elementos do crime, porque então estes seriam inextrincáveis 24. Em particular quanto aos

dirige contra divisões erradas da matéria jurídica, e não pura e simplesmente contra generalizar enm contra dividir»;
também consideramos, com ENGISCH, lug, cit., p. 149, uma divisão diferenciadora do conceito de crime, como
pensável e necessária. A divisão em si não 'rompe'»: ZStW 57 (1938), p. 269; assim também: Der Tätertyp im
Strafrecht, 1940, p. 60. Só que a batalha da escola de Kiel não era lógica, como DAHM revela ao dizer que
«SCHWINGE teria de considerar furto, quando a Hitler-Jugend arrebata abandeira de uma organização de juventude
católica e a queima como troféu (exemplo de CARL SCHMIDT). Nós não consideramos furto, porque ladrão não é
aquele que «subtrai uma coisa móvel de outra pessoa com a intenção de dela se apropriar ilicitamente», mas somente
aquele que por essência é ladrão. A essência do furto não se esgota na soma dos seus elementos. (Grundfragen cit. p.
102). Ou ainda: «a essência da tradição e da desleal subtrai-se à divisão em tipos e em geral a uma apreensão
racional» (ibidem, p. 103). O «núcleo da questão» é «o sentido (ou «conteúdo») político» das teorias: o pensamento
abstracto, em nome da segurança do direito (p. 78, 104), acusa DAHM, quer «a submissão do agir soldadesco e
político a conceitos gerais e burgueses» (p.74). Este ponto parece esquecido por SCHILD, Die Merkmale der Straftat
und ihres Begriffes, 1979, p. 31.
23
Cfr. a nossa dissertação, Estudos cit., p. 211.
24
Este ponto é pressuposto no argumento de ENGISCH, Festschrift für das DJT, 1980, p. 435-436; já no Festschrift
für Rittler, 1957, p. 173 s.. Cfr. sobre a relação entre o valor e os respectivos critérios do valor: FELIX
KAUFMANN, Die philosophischen Grundprobleme de Lehre von der Strafrechtschuld, 1929, p. 12.

9
elementos valorativos, não há diferença de valor que não corresponda a uma diferença de
substrato ou critério do valor. Mas a identidade parcial de dois substratos de facto em nada
impede a clara distinção de dois conjuntos de pressupostos e das valorações correspondentes.
Assim, se os elementos subjectivos da ilicitude, como a intenção de apropriação no furto, ou o
dolo na tentativa, também suportam ou fundam a valoração do facto como culpável, como já
notaram FRANK 25 e MEZGER 26, isso em nada impede a clara distinção entre a ilicitude e a
culpabilidade. Para citar o exemplo de Engisch: "na valoração do ilícito, a decisão do facto,
que caracteriza a tentativa impossível, está relacionada com a acção executiva supostamente
agressiva, na valoração da culpa está relacionada com tudo o que determina a censurabilidade
da motivação defeituosa: com a imputabilidade, as causas de exclusão da culpa, etc."27 .

Mas, no fundo, não se passa outra coisa com a totalidade dos pressupostos de facto de
qualquer elemento do crime - bem como com os respectivos elementos em si mesmos e suas
partes - relativamente aos elementos posteriores. Todos os pressupostos de ilicitude são
pressupostos da culpa e todos os pressupostos da culpa são pressupostos da punibilidade, estes
últimos são, pois, tripla e os anteriores duplamente valorados 28. Há, pois, que distinguir, na
culpa e na punibilidade, pressupostos autónomos e não-autónomos.

4. 3ª tese: o sistema científico do crime explica a funcionalidade de uma técnica


alternativa de subsunção, estruturada segundo o esquema regra-excepção, a partir do
tipo de delito. Em tal técnica a valoração da tipicidade constitui o primeiro elemento da
análise do crime e, assim, decide da primeira fase do processo subsuntivo.

Visto que o SCC é um sistema hermenêutico de tratamento de casos, está orientado para
a prática, ao serviço da aplicação do direito e da subsunção, permite esclarecer dois aspectos
25
Das Strafgesetzbuch, 18, Aufl. 1931, § 59 VI a. E.
26
Lehrbuch, 1933, p. 127 ss.
27
Lug.cit., Quanto à dupla valoração do dolo na ilicitude e na culpa, cfr. também GALLAS, Beiträge zur
Verbrechenslehre, 1968, p. 57 (1954), Niederschriften über die Sitzungen der Grossen Strafrechtskommission, II,
1955, p. 42; FIGUEIREDO DIAS, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 1969, p. 235 ss.
Relatório, 1976, p. 123. Também ROXIN acentua a possibilidade de imputação plúrima (à acção, ao ilícito e à culpa)
do mesmo elemento objectivo ou subjectivo: Gedächtnisschrift für Gustav Radbruch, 1968, p. 260 ss.,
Strafrechtliche Grundlagenprobleme, 1973, p. 140-1 (1970).
28
Assim, quanto à relação entre ilícito e culpa, ARTHUR KAUFMANN, Das Schuldprinzip, 1961, p. 183,
JESCHECK, Lehrbuch, 3ª ed., 1978, p. 347; BOCKELMANN, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 3ª ed., 1979, p. 57-8; e
implicitamente o último WELZEL, Lehrbuch , 11ª ed., 1969, p. 165.

10
importantes da prática. São eles: a variação da ordem da análise e a técnica negativa na
descrição dos elementos do crime.

A ordem na análise pode variar porque todos os elementos do crime se equivalem para o
efeito da subsunção. A falta de qualquer deles no caso concreto é suficiente para excluir o caso
da classe dos factos subsumíveis, ou seja, para impossibilitar a subsunção. Cada elemento do
crime se reconduz a uma série de pressupostos de facto. Basta que não se verifique um desses
pressupostos do facto para excluir a subsunção. Para este efeito negativo é indiferente a ordem
da análise.

Mas também para o efeito positivo de fundamentar a subsunção é relativamente


indiferente essa ordem.

Decerto, só tem sentido falar de ilícito por referência a um acto humano, a culpa
depende da existência da ilicitude e varia com a gravidade desta, e a previsão na lei penal
representa a escolha daqueles factos ilícitos e culposos que, precisamente pela gravidade da
ilicitude e pelo grau da culpa e, ainda, porventura, por outras razões de política criminal,
tornam indispensável a punição 29.

Nesta sucessão há uma "lógica da própria coisa", como diria RADBRUCH, e só a


"sistemática materialmente lógica" que lhe corresponde tem verdadeiro valor científico 30. Já
se aludiu, porém, ao facto de cada elemento do crime se reconduzir a uma série de pres-
supostos do facto, que dão origem, por sua vez a uma série de juízos, de subsunção, de valor,
etc., em que se resolve afinal a atribuição das propriedades que presidem a cada fase da
análise. Ora muitos destes juízos e valorações podem antecipar-se sem prejuízo da ordem das
três valorações fundamentais: ilicitude, culpa, punibilidade. É o que costuma fazer-se, com
manifesta comodidade, relativamente aos pressupostos de facto descritos nos preceitos incri-
minadores da Pasta Especial do direito penal e às cláusulas gerais extensivas dessas
29
É a verdade da distinção de Binding entre a norma e a lei penal: ARMIN KAUFMANN, Lebendiges und Totes in
Bindings Normentheorie, 1954, p. 230 ss.. Para a doutrina dominante, a tipicidade é o primeiro elemento do crime;
mas em sentido contrário veja-se LISZT-SCHMIDT, Lehrbuch, 24ª ed.., 1922, pp. 118 e 191 ss., que trata a
tipicidade na ligação com a punibilidade, depois da ilicitude e da culpa, como estava implícito no juízo de LISZT
atrás referido (supra, nota 11). EBERHARD SCHMIDT não tardou a afastar-se de LISZT, e a tratar, com BELING
(supra, nota 13) e MAX ERNST MAYER, (Lehrbuch, 2ª ed., 1923, p. 13) a tipicidade como primeira qualidade da
acção criminosa: LISZT-SCHMIDT, Lehrbuch I, 26ª ed., 1932, p. 145.
30
Cfr. RADBRUCH, Frank-Festgabe, I, 1930, p. 159 s.

11
incriminações, que são os preceitos que descrevem a tentativa e a comparticipação criminosa,
que são tipos dependentes ou não-autónomos do crime, na terminologia de BELING. Função
das previsões legais incriminadoras, ou tipos legais (autónomos ou não) de crimes, é descrever
os factos ilícitos e culposos que são puníveis. Mas visto que a punibilidade depende, na sua
existência e na sua medida, do ilícito e da culpa, é punibilidade de certos factos ilícitos e
culposos precisamente pelo tipo do ilícito e da culpa que apresentam, há pressupostos de facto
da punibilidade que o são também do ilícito e da culpa. Assim, as previsões das leis incrimina-
doras descrevem afinal pressupostos do facto que:

a) fundamentam o ilícito. Podem ser positivos ou negativos (por exemplo: o não-


consentimento na introdução em casa alheia - art. 176º -), objectivos ou subjectivos. Estes
últimos são os elementos subjectivos do ilícito, como a intenção da apropriação no furto - art.
296º - e o dolo. Todos os que integram a mesma incriminação são, em geral, suficientes para
fundarem a ilicitude, se não se verificarem também os pressupostos de uma causa de
justificação - a qual pode, aliás, ser regulada também na Parte Especial (as causas de
justificação do aborto - art. 140º -, o consentimento nas ofensas corporais - art. 149º).
As normas incriminadoras também podem remeter para outros critérios da ilicitude,
explícita (por ex., a ilicitude no peculato - art. 424º - ou a ilegitimidade no abuso de confiança
- art. 300º) ou implicitamente ("coisa alheia" no furto - art. 296º) ou fundamentar
especialmente o dever de agir na omissão (a posição de garante no abandono - art. 138º, nº 1,
al. b) ). Finalmente descrevem as circunstâncias que, em função dos vários bens jurídicos em
presença, qualificam ou privilegiam o crime simples (assim, por exemplo, as circunstâncias
qualificativas do furto - arts. 297º a 299º - e algumas das qualificativas do homicídio - as
circunstâncias objectivas das als. a), b) e f), o dolo de outro crime da al. e) e o dolo qualificado
da al. g) do nº 2 do art. 132º), graduando assim a ilicitude material.

b) fundamentam e graduam a culpa. É o que se passa, antes de mais, com todos os


pressupostos referidos em a), como tal não-autónomos. Todos os pressupostos autónomos da
culpa, a imputabilidade, a consciência ou a possibilidade de consciência da ilicitude estão
regulados na Parte Geral a propósito das correspondentes causas de exclusão de culpa, a
inimputabilidade e o erro sobre a ilicitude. Pressupostos ou elementos também autónomos da
culpa, não já da sua existência, mas de uma certa graduação dela, são as circunstâncias
qualificativas ou privilegiantes em que as razões da graduação da responsabilidade se ligam à

12
motivação do agente e à exigibilidade da determinação deste pelo direito e não à ponderação
dos bens jurídicos em presença 31. Assim, por exemplo, no homicídio as circunstâncias -
agravantes por regra - dos motivos da avidez, do prazer de matar, da excitação ou satisfação
do instinto sexual, de qualquer motivo torpe ou fútil e do ódio racial ou religioso (als. c) e d)
do nº 2 do art. 132º), ou as circunstâncias privilegiantes da compreensível emoção violenta, da
compaixão, desespero ou outro motivo de relevante valor social ou moral (art. 133º), da
determinação pelo pedido da vítima (art. 134º), da influência perturbadora do parto ou do
motivo de ocultar a desonra durante ou logo após o parto (art. 137º).

Algumas leis incriminadoras descrevem circunstâncias que são em geral aptas a atenuar
a culpa e que, porém, a partir de certo grau ou em certos crimes, se tornam uma causa de
exclusão da pena. Penso, por exemplo, no parentesco ou afinidade até ao 3º grau no
favorecimento pessoal (art. 410º, nº 4); na desistência, em primeiro lugar da tentativa, como
"tipo não autónomo do delito", mas também no incêndio e outros crimes de perigo comum
(arts. 268º, 269º nº 5, 273º, 279º nº 5), na associação criminosa (art. 287º, nº 4) ou terrorista
(art. 288º, nº 7), na traição à Pátria e outros crimes contra a segurança do Estado (art. 382º), na
retratação de falso depoimento ou testemunho (art. 404º), etc.; e ainda na coacção de leis
militares estrangeiras a tomar armas contra Portugal (art. 335º, nº 3) e na necessidade no furto
formigueiro (art. 302º, nºs 1 e 2), na burla (art. 316º, nº 2) e na receptação (art. 330, nº 2).
Trata-se então de causas de exclusão da culpa ou de causas de exclusão da punibilidade (ou,
noutras terminologias, de causas de exculpação - Entschuldigung - 32, de exclusão da
responsabilização pelo facto - Tatverantwortung - 33 ou de exclusão da responsabilidade -
Verantwortlichkeit - 34 ? Em todos estes casos se pode falar de tipificação da culpa, mas este
modo de falar não é aqui esclarecedor, uma vez que se trata precisamente de saber se são
pressupostos que fixam critérios de existência de culpa para o direito (por diferença de culpa
moral) ou que fixam critérios da relevância penal da culpa (da necessidade da pena). A
expressão "tipo de culpa" é equívoca: o facto punível (Straftat), como resultado da valoração
de punibilidade, é um tipo de culpa; noutro sentido, a culpa jurídica, como resultado da
31
Cfr. FRANK, Über den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907, p. 5 ss; HEGLER, ZStW 27 (1915), 184 ss, Festgabe für
R.v.Frank, I (1930), pp. 251 ss; Cfr. JESCHECK, Lehrbuch (Fn. 27), p.422 ss.
32
Assim, entre outros ARMIN KAUFMANN, Lebendiges und Totes in Bindings Normentheorie, p. 172 s, 202 ss;
Die Dogmatik der Unterlassungsdelikte, 1959, p. 156 ss; WELZEL, Lehrbuch (Fn.3), p. 23; JESCHECK, Lehrbuch
(Fn.27), p. 429.
33
Cfr. MAURACH-ZIPF, Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, 7ªed. 1988, §§ 31ss.
34
ROXIN, FS für Henkel, 1974, S. 171 ss; ZStW 96 (1984), 641 ss; ESER, in: FLETCHER (Hrsg.), Rechtfertigungs-
und Entschuldigungsgründe, Bd.I, 1987, p. 236 ss.

13
valoração de culpa, é definida (naturalmente pelo direito penal) através de um outro tipo de
culpa.

Levantada a questão, penso que a resposta deve distinguir os três grupos de casos. Nos
casos de parentesco, casamento ou afinidade e nos casos de estado de necessidade - estes
últimos análogos ao do estado de necessidade desculpante da Parte Geral (art. 35º) trata-se de
saber se a determinação do agente pelo direito é exigível, isto é, se há o dever de conhecer e
avaliar a ilicitude do facto e de se motivar por esse conhecimento como o direito espera de
"uma pessoa identificada com os valores juridicamente protegidos", na expressão dos §§ 10 e
32, secção 2 do Código austríaco. Temos aqui um problema de concretização da norma de
culpa no dever de motivação de acordo com o direito, de determinação pelo direito objectivo
nas circunstâncias do caso. Ultra posse nemo tenetur, tanto na violação do dever de praticar o
acto que funda o desvalor do ilícito, como na violação do dever da motivação pelo ilícito (isto
é, da normal motivação contra o ilícito), que funda o desvalor da culpa. Somos assim levados
a um desenvolvimento da teoria normativa da culpa que tal como em GOLDSCHMIDT 35 - e
não obstante os diferentes critérios normativos -, supõe uma norma de culpa que tem como
objecto aspectos diferentes do comportamento e funda um desvalor que, se varia não-
autonomamente em função da ilicitude, varia também autonomamente em função de outros
elementos de facto, como são as atitudes, os modos de ser e as representações do agente, de
que depende a sensibilização pelo direito (normative Ansprechbarkeit, segundo ROXIN). Ora,
é claro que a questão da concretização da norma de culpa no dever tem que ser respondida ex
ante, antes do início do facto. Nos casos de inexigibilidade, como o estado de necessidade
desculpante e os casos de parentesco, etc., questiona-se a existência de culpa jurídica.

Pelo contrário, nos casos de desistência, a culpa reduz-se e até se apaga pelo mérito da
desistência no decurso do facto. Como no ilícito, só a quantidade, mas não a existência de
culpa pode depender do decurso do facto.

Todas as causas de exclusão de culpa são causas não-autónomas de exclusão de


punibilidade. Mas algumas causas de atenuação da culpa podem ser, como a desistência,
causas de exclusão da punibilidade. Com efeito, a punibilidade é aquela valoração política do
facto ilícito e culposo que determina a necessidade político-criminal da pena: não só da pena,

35
Festgabe für Frank, I, p. 428 ss.

14
mas de certas medidas de pena. A punibilidade varia directamente em função da culpa, mas
nem toda a culpa é punível. A irrelevância penal da culpa pode resultar da desnecessidade de
punir a diminuta culpa para assegurar os fins do direito penal, mas pode também resultar da
colisão entre os vários fins das penas - a exemplo das razões que podem levar na
individualização judicial da pena a não punir toda a culpa - ou da colisão dos fins das penas
com outros fins do Estado. Há, assim, critérios de existência e de graduação da punibilidade
que variam autonomamente dos critérios de culpa. É o caso, por exemplo, das condições
objectivas de punibilidade como a declaração de insolvência na frustração de créditos (art.
324º), a declaração de falência na falência dolosa (art. 325º) e negligente (art. 326º), as
relações diplomáticas e a reciprocidade nos crimes contra Estados estrangeiros ou organização
internacional (art. 355º, nº 1, al. a) ), cuja existência é indiferente para as valorações de
ilicitude e da punibilidade.

À correspondência do caso concreto à previsão duma lei incriminadora (ao tipo abstracto
de crime ou de delito 36 chama-se "tipicidade" 37. Agora "tipicidade" já não é sinónimo de
punibilidade, porque, se todos os pressupostos de facto descritos na previsão duma lei

36
O «tipo de crime ou de delito» (Delikts typus) distingue-se do «conceito geral de crime" (alguns dizem
equivocamente «tipo de crime” (Verbrechenstatbestand), porquanto o primeiro só inclui dos pressupostos do crime
os que integram uma lei incriminadora. Ficam, assim de fora, os pressupostos da ilicitude, da culpa e da punibilidade
atípicos.
Semelhante equivocidade existe nos conceitos de «tipo de ilícito» e de «tipo de culpa» (que se integram no anterior),
que umas vezes designam todos os pressupostos da ilicitude (Unrechtstabestand: facto ilícito) ou da culpa
(Schuldtatbestand: facto culposo), outras vezes apenas de entre estes pressupostos os que estão descritos numa lei
incriminadora (Unrechtstypus, Schuldtypus).
Diferente ainda é o conceito de «tipo de garantia» (Garantietatsbestand), que abrange todos os pressupostos
positivos, autónomos e não-autónomos, típicos e atípicos, de punibilidade: cfr. o meu estudo “A Lei Penal na
Constituição”, Estudos sobre a Constituição, lI, 1982, pp. 233 s ..
Esta equivocidade é aumentada pelos autores, sobretudo alemães, que, por vezes, não seguem a sugestão de Beling, e
da. sua própria língua, de separar claramente os conceitos de Tatbestand (facto ou, na acepção abstracta, previsão) e
Typus (tipo), e, constroem conceitos dogmáticos de Tatbestand com uma função própria no sistema de cada autor.
Assim, por último, os conceitos de «gesetzlicher Tatbestand» e de «Unrechtstatbestan»d de SAX, „Tatbestand und
Rechtsgutverletzung“,Juristenzeitung, 1976, pp. 9 e ss., 80 e ss .. Para uma visão aprofundada, cfr. CAVALEIRO
DE FERREIRA, A Tipicidade na Técnica do Direito Penal, 1935 e ENGISCH, Festschrift für Metzger, 1954, pp.
127 e ss.
37
É, exactamente, o conceito da «Typizitãt» da última fase do pensamento de BELlNG: cfr. DieLehre vom
Tatbestand, 1930. Para BELING a «Typizitãt» é - ao contrário de «Tatbestands - (Leitbilds -) mãssigkeit», definida
por referência ao objecto do dolo - um elemento do conceito do crime (ob. cit., pp. 18 e ss.), que deixa de incluir a
«Tatbestandsmãssigkeit»: crime é agora definido como «a acção tipicamente ilícita e correspondentemente culposa,
desde que não exista uma causa (material) legal de isenção da pena» (isto é uma «mera causa de isenção da pena
atípica», como a extraterritorialidade do lugar do crime) (p.19); cfr. também Grundzüge, 11.1 ed., 1930, p. 70. A
doutrina alemã posterior continuou a falar de «Tatbestand» onde BELING falaria de «Typus». Cfr. SCHWElKERT,
Die Wandlungen der Tatbestandlehre seit Beling, 1957.

15
incriminadora são pressupostos da punibilidade, há pressupostos da punibilidade que o não são
da "tipicidade" por estarem descritos noutras leis. Ora, é evidente que, uma vez estabelecida a
"tipicidade", o que se faz com relativa facilidade e segurança, o trabalho de subsunção fica
extraordinariamente adiantado. Há, por isso, toda a vantagem prática em começar por aí,
embora assim se comece pelo que está logicamente no fim, na ordem da análise. Vendo bem,
começar pelo que está no fim não é começar pelo fim, porque a "tipicidade" não é ainda
punibilidade. Esta pressupõe um faco ilícito e culposo e mesmo que a previsão da lei
incriminadora enumerasse todas as meras condições de punibilidade, sempre ficaria por
estabelecer o ilícito e a culpa, e, portanto, afinal, em perfeita ordem, a punibilidade.

Só com a "tipicidade" não temos ainda nenhum elemento da infracção, mas só um


indício da sua presença, uma parte dos seus pressupostos. Sempre que na "tipicidade" se
reconhecer um mero indício, susceptível de uma posterior "correcção negativa" (GALLAS),
de um ou de todos os elementos da infracção, seja do ilícito 38, seja do ilícito e da culpa 39, seja
do ilícito, da culpa e da punibilidade 40, sempre é certo não ser a "tipicidade" um elemento da
infracção no mesmo sentido em que o são os elementos indiciados.

Quando, não obstante, os autores, conformando-se à prática, apresentam a "tipicidade"


como primeira fase da análise, não constroem um sistema científico, mas expõem uma mera
técnica, uma ordenação prática do trabalho de subsumir, que, aliás, não repugna como tal ao
sistema, mas que lhe é, em rigor, alheia. RADBRUCH falaria talvez neste caso de um "sistema
didático"41 - melhor se diria um sistema pragmático ou prático -, como simples "forma de
exposição", sem "valor de conhecimento". Com a sua habitual perspicácia, BELING distingue
a este propósito entre "o método de trabalhar os casos práticos de direito penal, isto é, a
subsunção de um caso da vida sob o conceito de crime" e a ordem dos elementos desse
conceito. Decerto que para a subsunção, escreve BELING, "é preciso esgotar todos os
momentos do conceito de crime, uma vez que se quer afirmar como dada uma acção punível.
Mas a sequência que se deve observar nas questões é uma coisa à parte em confronto com o
escalonamento dos elementos do conceito teórico de crime"42. Aqui o único erro de BELING

38
Como por exemplo para BELING (em relação ao"Tatbestand" ou ""Leitbild": ver supra a nota 36).
39
Assim para GALLAS, ZStW 67 (1955), p. 19.
40
Assim a Typizität de BELING (supra, nota 36).
41
Frank-Festgabe , I, p.159.
42
Die Lehre vom Tatbestand, p. 20.

16
está em admitir uma oposição entre a subsunção e a análise teórica do crime, que conduziria a
dois "sistemas" separados. O erro compreende-se pela falta de esclarecimento do significado
relacional da análise da infracção e, portanto, da íntima relação entre subsunção e análise, de
como se explicam mutuamente. O uso de certos expedientes técnicos no trabalho de subsumir
integra-se na ordem da análise e é compatível com o seu sistema. É o facto de a análise da
infracção se poder descrever como uma técnica de subsunção, que ao mesmo tempo explica e
exige tal compatibilidade e tal integração.

Posto isto, o segundo ponto que importava esclarecer, a técnica negativa na formulação
pela lei dos requisitos da infracção, não oferece qualquer dificuldade.

É a própria lei que nos convida a começar na prática a tarefa de subsumir pelo
estabelecimento daquele provisório juízo de punibilidade que vai implícito na "tipicidade".
Com efeito, o tipo de garantia é constituído exclusivamente pelos elementos do "tipo do
delito" que fundamentam positivamente a punibilidade. O princípio da tipicidade, no sentido
do tipo de garantia, é uma das aplicações do princípio constitucional nullum crimen nulla
poena sine lege. Todos os elementos do tipo de garantia têm que ser interpretados com
especial rigor, proibindo-se a integração. Torna-se, assim, conveniente começar por averiguar
da correspondência com o tipo de delito. Não se determina ainda nenhum elemento da
infracção, e, por isso, não se pode falar com rigor de um primeiro momento ou fase da análise.
Pelo contrário, é o resultado final da análise que se antecipa globalmente com a afirmação da
"tipicidade". A autêntica análise começará depois, como quem tira a prova dos nove, portanto,
por via negativa, de determinação de excepções à regra presumida da correspondência entre
tipicidade e punibilidade.

4ª tese (conclusão): O tipo, no sentido de Tatbestand, não é a primeira valoração


autónoma no sistema científico do crime, nem determina a primeira fase da técnica de
tratamento de casos.

17

Você também pode gostar